[josé william craveiro torres] um significado para a luz e para o vento em noite de vento

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UM SIGNIFICADO PARA A LUZ E PARA O VENTO NA OBRA DE ANTÓNIO AURÉLIO GONÇALVES William Craveiro 1 INTRODUÇÃO A segunda metade do século XIX, segundo Manuel Ferreira 2 , foi um período de grande importância para as Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, visto que foi nessa época em que começou a surgir, nas obras literárias das colônias portuguesas de África, um forte sentimento nacionalista. Falamos aqui nas colônias portuguesas de África, sem citar os nomes dos países, porque, de um modo geral, esse sentimento foi comum a quase todos, menos a Cabo Verde. Apesar de ter tão ou mais preparo intelectual que as outras colônias portuguesas da África, no período assinalado, podemos afirmar que Cabo Verde não conheceu uma literatura colonial, pois os intelectuais cabo-verdianos iam estudar em Portugal e 1 William Craveiro é aluno do Curso de Especialização O Ensino de Literatura Brasileira (UECE). 2 FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 43.

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Page 1: [José William Craveiro Torres] UM SIGNIFICADO PARA A LUZ E PARA O VENTO EM NOITE DE VENTO

UM SIGNIFICADO PARA A LUZ E PARA O VENTO NA OBRA DE ANTÓNIO AURÉLIO GONÇALVES

William Craveiro1

INTRODUÇÃO

A segunda metade do século XIX, segundo Manuel Ferreira2, foi um período de

grande importância para as Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, visto que foi

nessa época em que começou a surgir, nas obras literárias das colônias portuguesas de

África, um forte sentimento nacionalista. Falamos aqui nas colônias portuguesas de África,

sem citar os nomes dos países, porque, de um modo geral, esse sentimento foi comum a

quase todos, menos a Cabo Verde. Apesar de ter tão ou mais preparo intelectual que as

outras colônias portuguesas da África, no período assinalado, podemos afirmar que Cabo

Verde não conheceu uma literatura colonial, pois os intelectuais cabo-verdianos iam estudar

em Portugal e geralmente não retornavam à sua terra natal; de modo que as suas obras não

continham nenhum traço de cabo-verdianidade: não falavam de Cabo Verde e, tampouco,

da sua gente.

Essa situação só começou a mudar em 1936, com a revista Claridade, quando,

influenciados pela segunda fase do Modernismo brasileiro (fase regionalista) e pela

revolução na linguagem proposta pela revista Presença, os participantes desse periódico

(ou desse movimento) abordaram, em suas obras, apenas temáticas cabo-verdianas.

1 William Craveiro é aluno do Curso de Especialização O Ensino de Literatura Brasileira (UECE). 2 FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 43.

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No presente trabalho, iremos conhecer António Aurélio Gonçalves, um dos principais

“claridosos” e ver o quão importante ele foi para a Literatura de Cabo Verde. Veremos,

ainda, por que sua obra é considerada tão rica pelos críticos.

1 ANTÓNIO AURÉLIO GONÇALVES: VIDA E OBRA

António Aurélio Gonçalves nasceu em 1901, na cidade do Mindelo, Ilha de São

Vicente, arquipélago de Cabo Verde. Depois de realizar os estudos primários e secundários

no seu próprio país (essa última modalidade de ensino realizada num colégio de jesuítas: o

Seminário-Liceu da Ilha de São Nicolau), António Aurélio embarcou, em 1917, para

Lisboa, a fim de ingressar no ensino superior. Na capital portuguesa, freqüentou o curso de

Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras. Em 1939, retornou à sua terra natal,

onde se dedicou, até os seus últimos dias de vida, ao ensino liceal.

No que diz respeito à sua produção literária, devemos dizer que António Aurélio é

considerado um dos nomes mais expressivos da Literatura cabo-verdiana. Escreveu contos

e novelas (ou noveletas, como ele as gostava de chamar), mas também se dedicou à crítica e

ao ensaio. Como ensaísta, escreveu Aspectos da Ironia em Eça de Queirós (1937) que, até

hoje, é considerado, por muitos estudiosos em Eça, um dos mais completos ensaios sobre o

escritor português.

Retornando a Cabo Verde, em 1939, juntou-se aos “claridosos” – nome pelo qual

ficaram conhecidos os participantes da Claridade (1936), revista que, na visão de Manuel

Ferreira3, causou uma “profunda e duradoura transformação na história e na evolução da

vida literária e cultural do Arquipélago”. Esse acontecimento irá justificar a cabo-

verdianidade de suas novelas.

3 FERREIRA, Manuel. Op. Cit., p. 43.

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Em vida, António Aurélio Gonçalves (ou Nhô Roque, como era chamado por

familiares, por alunos e por amigos) não editou nenhuma coletânea de suas novelas. A

primeira delas, Noite de Vento4, só veio a ser editada em 1998, pela editora Caminho,

quatorze (14) anos depois de sua morte, que aconteceu em 1984, na cidade do Mindelo, por

atropelamento. A referida obra reúne nove (9) de suas novelas; dentre elas: “Noite de

Vento” (1970) – noveleta que dá nome ao livro –, “Pródiga” (1956), “O Enterro de Nhâ

Candinha Sena” (1957) e “Virgens Loucas” (1971). A segunda coletânea de suas novelas –

uma recolha de originais dispersos escolhidos do espólio do autor por Arnaldo França –,

Terra da Promissão (2002), também foi publicada pela editora Caminho. É possível, ainda,

encontrar suas noveletas em coletâneas de Literaturas Africanas espalhadas por todo o

mundo.

2 CARACTERÍSTICAS DAS NOVELAS DE ANTÓNIO AURÉLIO

“Todos cantam sua terra / também vou cantar a minha”: esses dois versos iniciais do

poema “Minha terra”, de Casimiro de Abreu, poderiam, perfeitamente, ter saído da boca (e

da pena) de António Aurélio Gonçalves, pois ele foi um dos escritores africanos que mais

valorizou a sua terra e a sua gente. De fato, o espaço onde acontecem todas as narrativas de

Noite de Vento é Cabo Verde; para sermos mais exatos, a periferia do Mindelo, que é

formada pelos bairros Lombo, Ribeira Bota, Fonte Cônego etc.

No que concerne às personagens das novelas de António Aurélio, podemos afirmar

que praticamente todas elas pertencem às camadas mais humildes da população cabo-

verdiana. Assim, em todas as histórias, temos a presença do desempregado, do agricultor

que perdeu tudo, do comerciante prestes a falir ou mesmo do homem que, embora

4 GONÇALVES, António Aurélio. Noite de Vento. Lisboa: Presença, 1998.

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empregado, trabalha numa profissão simples e, por isso mesmo, desvalorizada pela

sociedade. É certamente por conta disso que a linguagem das noveletas de Nhô Roque está

sempre próxima daquela utilizada pelo povo; ou seja, da linguagem coloquial.

Dentre essas personagens simples, António Aurélio dá grande ênfase às mulheres.

Todas elas, desde criança, apresentam um gênio forte, uma enorme inclinação para o

trabalho e uma grande força interior, capaz de resolver os problemas que a sociedade cabo-

verdiana impõe às suas mulheres. Elas possuem, também, uma nobreza de caráter e uma

lealdade jamais vistas.

Todas as narrativas de Noite de Vento acontecem no nosso tempo; são histórias

contemporâneas que falam do cotidiano do povo cabo-verdiano: das suas angústias, dos

seus problemas; mas, sobretudo, de sua enorme crença em dias melhores.

Além de exaltar a sua terra e a sua gente, outra característica marcante das novelas de

António Aurélio é a análise psicológica das personagens. Nesse aspecto, ele não fica a

dever, por exemplo, à Clarice Lispector. No entanto, há algo mui sui generis nas análises

psicológicas das personagens de Nhô Roque: “há uma relação muito íntima entre o

aprofundamento psicológico e o meio social em que as personagens estão inseridas 5”. Isso

significa dizer que o ambiente representa simbolicamente (metaforicamente) o que acontece

no interior das personagens. As metáforas das quais António Aurélio utiliza-se para a

construção de suas narrativas são muito semelhantes àquelas que Saramago utiliza em suas

obras.

5 MANUEL, Ferreira. Op. Cit. p. 78.

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3 UM SIGNIFICADO PARA A LUZ E PARA O VENTO NA OBRA DE ANTÓNIO AURÉLIO GONÇALVES

Podemos perceber a importância do vento, na obra de António Aurélio Gonçalves, a

partir do momento em que esse fenômeno natural é recorrente em várias novelas do autor.

Em Noite de Vento, primeira coletânea de suas noveletas, o vento, com o significado que

veremos aqui, logo adiante, aparece em pelo menos três delas: “Noite de Vento”, novela

que aqui analisaremos; “Pródiga” e “Biluca”.

Em “Noite de Vento”, o fenômeno ao qual nos referimos aparece não menos que vinte

e duas (22) vezes, sob os mais diferentes nomes: vento, lufada, ventania etc. O vento, nessa

novela – mas também nas outras duas –, nada mais é que a projeção, no mundo exterior,

daquilo que acontece na cabeça das personagens (sobretudo na das principais); de modo

que o vento sempre assume a forma de lufada (vento forte) ou de ventania, quando a

protagonista (em todas as novelas em que o vento aparece a personagem é uma mulher de

gênio forte) está passando por conflitos internos (indecisões) ou tomando decisões

precipitadas, ou mesmo de brisa, quando a personagem tem já resolvido os problemas que a

inquietavam.

A importância do vento, para Nhô Roque, faz-se notória, também, quando o autor

dedica parágrafos inteiros, longos ou curtos, para falar desse fenômeno. Vejamos os

seguintes exemplos:

O vento, na Fonte de Filipe, vem de longe, de terras desconhecidas. Aflora a Assomada de João d’Évora com um rumor de fornalha, crepitando por uma linha de cumeadas. Mergulha e cá em baixo, na Chã, são correrias de cavalo assustado, paragens frementes, elevações, mergulhos inesperados e, depois, redemoinhos como piruetas de bailarino fantástico, toda a fantasia descabelada do vento na planície. Quando encontra a Fonte de Filipe, tacteia aquele morrinho com os seus dedos de rajadas, ásperos como vasculhos de ferro, maltrata-o e deixa-o revolto, como alguém que se obstinasse à procura de objeto cuidadosamente oculto. De noite, toda aquela gente desperta sobre esteiras de Santo Antão, ou sobre colchões de palha de milho, de florzinha, e escuta-o passar, reboando e assobiando na sua desinquietação insanável. Por

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último, a gente avista-o ao longe, erguendo das dunas da Galé colunas de poeira esbranquiçada contra o horizonte (GONÇALVES, 1998: 16-7).

E ainda:

O vento rolava sobre os telhados e varria ares e caminhos (GONÇALVES, 1998: 18).

“Noite de Vento” conta a história de Virgílio e de Nita, duas pessoas que se

conheceram numa festa e que, depois de muita relutância desta e de certos desencontros (a

moça viveu, por dois meses, com outro rapaz), resolveram morar juntos e enfrentar, com o

irmão de Virgílio (Anastácio) e com sua mulher, Piedade, a vida difícil de Cabo Verde.

Tempos depois, quando tudo parecia correr bem, Nita, que adquirira a fama de ser

mutável (de ser “de lua”, como dizem algumas pessoas), resolveu deixar a casa na qual

morava com Virgílio e com o outro casal e voltar a morar com a sua mãe: Nhâ Filomena.

Isso ela consegue somente depois de muita briga; de muita confusão com Virgílio. O

motivo dessa reviravolta na cabeça de Nita talvez se deva ao fato dela ter se apaixonado por

outro homem, como podemos perceber pela reação que ela esboça, quando da seguinte fala

de sua mãe:

(...) Amor não é de confiança. Mulher, apenas ela pôs o sentido num homem, não há nada, nem amiga, nem família, nem ninguém que lho tire dele. Assim, uma menina pode estar com um companheiro. Se ela for até aquela esquina e lá lhe aparecer um homem de quem goste, ela pode mudar todo o seu destino para o acompanhar.

Nita teve um riso esquisito (GONÇALVES, 1998:21).

A mudança do comportamento de Nita acontecera dias antes dessa conversa que ela

teve com a mãe. É através da metáfora do vento que ficamos sabendo da época em que

ocorreu tal mudança, na cabeça da personagem, e mais: dos seus conflitos internos; dos

problemas que lhe atormentavam. Abaixo, a passagem que nos mostra o período em que

ocorreu a mudança de comportamento.

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Dias antes levantara-se a ventania (GONÇALVES, 1998:17).

Desde então, os ventos fortes tomaram conta de toda a Fonte de Felipe, o que nos

mostra que, durante todo esse tempo, Nita esteve a pensar se deveria ou não largar Virgílio.

O período de ventania, como veremos agora, é o período dos pensamentos (conflituosos,

indecisos) da personagem:

Piedade declarou:- Este tempo, então, põe-me duma moda... Triste. A mim, quando está assim, dá-me só

vontade de deitar-me na cama, cobrir-me, cobrir a cabeça e esquecer, ficar... ficar... sem pensar em nada.

- Vê como são as coisas – contradisse Nita. – Eu, agora, sou o contrário. Dá-me para ter vontade de estar só e pôr-me a pensar.

- Em quê, Nita?- Eu sei? Coisas... de um tempo velho, de agora... Enfim.Piedade teve o seu riso tranqüilo (GONÇALVES, 1998:19).

Agora, passagens que mostram o vento como metáfora das perturbações, dos

problemas e da indecisão de Nita. A aparição do vento, em todas elas, ocorreu ainda

quando Nita encontrava-se na casa da mãe; portanto, pouco tempo antes dela terminar,

definitivamente, o seu relacionamento com Virgílio. Vejamos:

À porta, ainda conversavam com Nhâ Filomena. Uma paredinha baixa de pedra solta fechava um terreirinho, onde, a um canto, estava o fogareiro, de brasas espertadas pelo vento constante (GONÇALVES, 1998: 22).

O vento picava sobre o terreiro, rodopiava, tufava as saias das raparigas, fugia. Retrocedia, atacava-as de frente, por detrás, caía sobre elas em esfuziadas, obrigando-as a fincarem o queixo sobre o peito, a dobrarem-se, ora para a esquerda, ora para a direita, para todos os lados, para prenderem as saias, para se defenderem contra as suas investiduras. A cobertura de colmo de uma casa vizinha sussurrava. Um trinco, mal seguro com certeza, guinchava perto. Trabalhadores, vindos da cidade, passavam, negros, com a cabeça baixa, desviando o rosto, o peito cortando o vento, as calças, coladas às canelas. Uma mulher caminhava em sentido contrário, aos pulinhos, os braços cruzados debaixo do xale, recebendo o vento por trás (GONÇALVES, 1998:22).

Nita levantou os olhos para o alto e disse com uma súbita serenidade no rosto:- Não sei.... Mas o luar está tão bonito!!! – Todavia, saiu depressa desse encantamento e

voltou com a voz sacudida: - Ah, não! Está vento. Até logo, mamã. Vamos Piedade (GONÇALVES, 1998:23).

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Nesse último trecho podemos perceber, claramente, que Nita ainda titubeava: não

sabia se deveria continuar o seu relacionamento com Virgílio (e o relacionamento, aqui,

metaforizado pelo luar) ou se acabar com ele de vez. Por um momento, é como se ela

quisesse voltar atrás; aquietar-se; permanecer com Virgílio. Porém, ela acaba optando pelo

abandono; tanto que, após dizer que “está vento”, ela se dirige à casa onde vivia com

Virgílio, para buscar o que lhe pertencia. Já nas passagens anteriores, podemos perceber

que as inquietações/os problemas de Nita não apenas lhe faziam mal, mas que atingiam

mesmo a todos os que estavam ao seu redor. O vento também não metaforiza apenas os

problemas dessa personagem, mas o de outras também, como podemos ver neste diálogo

entre Nhâ Filomena e Mélia:

- Nhâ Filomena!- Hei! Quem é? És tu, Mélia? Entra.- Daqui mesmo. Não há de jantar?- Não falta. Mas entra. Donde é a vinda? Num mandadinho?- Da morada. Ó minha tia, que vento!- Não trazes nada?- Irmã, só canseira. Vida não quer a gente. Não quer. Estamos nessa afinação. É planeta.

Temos que deitar tudo à conta de Deus. Estava a pensar... Chamei, mas só para salvar. Deixa-me ir andando (GONÇALVES, 1998:18)

Enquanto caminhava para casa e deixava claro para Piedade o objetivo de abandonar

Virgílio, Nita não pôde deixar de perceber um rapaz (Marquinho) que, em meio a toda

aquela ventania, tocava, alegremente, o seu cavaquinho. A música, nessa narrativa, está por

simbolizar, sem dúvida, a alegria; a felicidade. Tanto é assim que o “músico” não se sente

incomodado pelos ventos fortes (pelos problemas) e Nita, por sua vez, por estar cheia de

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inquietações, mostra-se capaz de sentir apenas os ventos e não consegue deixar-se levar

pela canção alegre que o rapaz toca. Vejamos:

(...) No extremo do passeio, encostado à esquina oposta, um rapazito tocava cavaquinho. As notas caíam vinhas do sonho, arpejadas com uma vivacidade nervosa, dançando num ritmo entrecortado e enchiam a noite luarenta com o seu ouro que se esfiava na ventania.

- Marquinho – cumprimentou Nita -, tu, então, não esqueces o teu instrumento. Não tens frio?

- Ah, deixa-me tocar. Distracção... Dentro de casa a gente aborrece-se. A mim, Deus não me fez para estar fechado. Frio? Não: o vento não faz nada. Deixa-me tocar (GONÇALVES, 1998:24).

Outra passagem da novela vem a reforçar a idéia da música e do vento como

metáforas. Referimo-nos, aqui, ao trecho que nos mostra como foi a chegada de Virgílio à

sua casa, no momento exato em que Nita preparava-se para deixá-la:

(...) Uma lufada bufou como um animal pesado e enfiou pelo quarto adentro; no entretanto, ouviu-se a tarantela do Marquinho, repicando na ventania como uma repentina pureza cristalina. A chama do candeeiro alongou-se muito dentro do vidro e, depois, agitou-se envolta em fumo, quase a apagar-se (GONÇALVES, 1998:26).

Nessa passagem, a lufada de vento, que “bufou como um animal pesado”, certamente

estava ligada à personagem Nita, que teria de apresentar, naquele instante (momento de

tensão na história; pesado mesmo; carregado), a sua decisão a Virgílio, que ignorava por

completo os últimos acontecimentos, uma vez que estava, há dias, a trabalhar noutra ilha do

arquipélago cabo-verdiano. E exatamente por ele não desconfiar do que estava acontecendo

ou do que iria acontecer; ou seja, por posar de inocente perante aquilo tudo, é que lhe

acompanhou, quando da sua entrada em casa, a tarantela do Marquinho: pura como ele

próprio. No que concerne à luz do candeeiro, devemos dizer que ela se trata, também, de

uma metáfora. Em António Aurélio, e isso é mais trabalhado em novelas como “Virgens

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Loucas” e “A Consulta”, presentes também em Noite de Vento, a luz está por representar a

felicidade. Assim, quando Virgílio entra, a chama, que estava envolta em fumo, e prestes a

se apagar, estaria metaforizando a felicidade do casal que, naquele momento de crise

(fumo) estava prestes a acabar (a se apagar). É tão verdade o que estamos a dizer que,

quando o relacionamento acaba realmente; em outras palavras, quando já não há mais

possibilidade de Nita e de Virgílio voltarem às boas, a chama do candeeiro extingue-se de

vez. Vejamos a seguinte passagem:

- Sai daqui, ou não sei o que faço de ti! – gritava ele. Nita resistia. Uma lufada irrompeu, um bilhete-postal de cima da mesa voou. A chama do candeeiro alongou-se muito, como língua que se estica, uma faísca estrebuchou, lutou angustiosamente e extinguiu-se, sufocada pelo rolo de fuligem que invadira e se revolvia dentro do vidro. No quarto ficou uma claridade indecisa, na qual mergulhavam e se esfumavam vultos de objectos (GONÇALVES, 1998:30).

Corrobora ainda com a nossa idéia acerca da metáfora em torno da luz, a passagem,

logo no início da novela, que compara a felicidade de Nita, enquanto ela dançava na festa

em que conheceu Virgílio, à felicidade de uma borboleta que palpita “em torno de um foco

de luz” (GONCALVES, 1998:11). Nesse último trecho, podemos perceber, ainda, que a

lufada já não mais era exclusividade de Nita, mas que Virgílio, por conta dos últimos

acontecimentos, também se sentia inquieto; irado. Assim, a lufada que irrompeu e que fez

voar o bilhete-postal e apagar, definitivamente, a chama do candeeiro, estava

representando, agora, a inquietude e a ira de Virgílio. A decisão do fim do relacionamento

(a decisão de “apagar a chama do candeeiro”), naquele momento, era já dele, conforme

confidencia-nos o narrador (onisciente) logo adiante.

Tendo Nita abandonado a casa de Virgílio, depois de muito alarido no meio da rua,

este voltou para casa e pôs-se a pensar: ora ele lembrava de tudo o que tinha acontecido, ora

procurava acalmar-se e manter distante o seu pensamento, arrumando as compras que havia

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feito e que, por ocasião da discussão, tinha deixado de lado, todas ao chão. É assim que o

narrador fala-nos do momento em que Virgílio ficou sozinho em casa, entregue aos seus

pensamentos, depois da confusão:

De momento, pelo menos, o vento amainara, se bem que lufadas ainda varressem, de quando em quando, cabeços e leito da ribeira, assobiando de encontro a esquinas e oitões (GONÇALVES, 1998:38).

CONCLUSÃO

Ao cabo de tudo o que foi dito, acreditamos que este trabalho tenha alcançado o seu

objetivo principal: mostrar a todos aqueles que desconheciam as Literaturas Africanas de

Língua Portuguesa – e principalmente àqueles que porventura tinham reservas com relação

a essa – o quão ela é rica. Para ilustrarmos essa riqueza, escolhemos o escritor cabo-

verdiano António Aurélio Gonçalves, cuja obra, como mostramos aqui, em muito se

assemelha àquela de José Lins do Rego, por seu caráter regionalista; aos contos da Clarice

Lispector, no que diz respeito à análise psicológica das personagens, e aos escritos de

Guimarães Rosa e de Saramago, no que diz respeito às metaforizações e ao trabalho com as

palavras, como acontece, por exemplo, quando da escolha dos nomes das personagens.

BIBLIOGRAFIA

FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São Paulo: Editora Ática, 1987.

GONÇALVES, António Aurélio. Noite de Vento. Lisboa: Presença, 1998.