[josé william craveiro torres] intertextualidade e residualidade clássicas no cordel nordestino

34
INTERTEXTUALIDADE E RESIDUALIDADE CLÁSSICAS NO CORDEL NORDESTINO 1 José William Craveiro Torres 2 Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros 3 O povo é um clássico que sobrevive 4 . (Claudio Basto) INTRODUÇÃO Se é certo dizer que a questão da diferença entre a Cultura dita popular e a Cultura tida como erudita sempre foi levantada por estudiosos das Ciências Humanas (principalmente por pesquisadores das Ciências Sociais), não é menos correto dizer que poucos 5 foram aqueles que tomaram para si o desafio de diferenciar e de definir, com propriedade, essas duas formas de cultura. O problema em diferençar a Cultura dita popular da Cultura tida como erudita e em dar uma significação precisa 1 Este ensaio traz consigo, ainda que de forma resumida, todas as partes e os aspectos levantados num trabalho mais amplo: uma monografia apresentada pelo autor deste ao Curso de Especialização O Ensino de Literatura Brasileira, ofertado pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), em 2006. Tal trabalho de conclusão de curso, intitulado Acerca dos Resíduos Clássicos Presentes no Cordel Nordestino, foi orientado pela Doutora Elizabeth Dias Martins, professora do Curso de Letras e do Programa de Pós- Graduação em Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC). A monografia foi defendida em 2007. 2 José William Craveiro Torres é especialista n’O Ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), mestrando em Literatura pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 3 Doutor Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros: poeta, crítico, ensaísta e professor do Curso de Letras e do Mestrado em Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC); orientador deste trabalho. 4 Claudio Basto (1886-1945) apud Arantes, Antônio Augusto (2007, p. 16). 5 Nesse grupo poderíamos inserir o nome de Antonio Augusto Arantes, autor do livro O que é Cultura Popular (14. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007. Coleção Primeiros Passos).

Upload: william-craveiro

Post on 27-Jul-2015

564 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

INTERTEXTUALIDADE E RESIDUALIDADE CLÁSSICAS NO CORDEL NORDESTINO1

José William Craveiro Torres2

Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros3

O povo é um clássico que sobrevive4.(Claudio Basto)

INTRODUÇÃO

Se é certo dizer que a questão da diferença entre a Cultura dita popular e a Cultura tida como erudita sempre foi levantada por estudiosos das Ciências Humanas (principalmente por pesquisadores das Ciências Sociais), não é menos correto dizer que poucos5 foram aqueles que tomaram para si o desafio de diferenciar e de definir, com propriedade, essas duas formas de cultura.

O problema em diferençar a Cultura dita popular da Cultura tida como erudita e em dar uma significação precisa para esses dois tipos de cultura certamente passa pela complexidade que existe em torno do que vem a ser Cultura e do que vem a ser povo. Também não podemos esquecer de que esse problema é agravado pelo fato de haver uma linha muito tênue entre o que é tido como popular e o que é tido como erudito, o que faz com que qualquer tentativa de separá-los resulte em algo perigoso ou até mesmo em malogro. Não temos aqui o objetivo de distinguir a Cultura dita popular da Cultura tida como erudita, mas o de mostrar justamente a indissociabilidade dessas duas culturas, tomando como exemplo os modos pelos quais o Cordel nordestino, manifestação literária tida como pertencente à Cultura popular, liga-se à Cultura clássica (para muitos sinônimo de Cultura erudita) e retoma os mitos greco-romanos da Antigüidade.

Nas próximas páginas, mostraremos que o Cordel nordestino resgata a cultura dos antigos gregos e romanos de duas formas: (i) a partir da intertextualidade, quando faz alusões, diretas ou indiretas, em seu conteúdo, a personagens e a trechos das narrativas em verso dos gregos e dos romanos antigos, mas sem realizar qualquer alteração destas histórias, no que diz respeito aos elementos da narrativa, ou quando parafraseia um mito

1 Este ensaio traz consigo, ainda que de forma resumida, todas as partes e os aspectos levantados num trabalho mais amplo: uma monografia apresentada pelo autor deste ao Curso de Especialização O Ensino de Literatura Brasileira, ofertado pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), em 2006. Tal trabalho de conclusão de curso, intitulado Acerca dos Resíduos Clássicos Presentes no Cordel Nordestino, foi orientado pela Doutora Elizabeth Dias Martins, professora do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC). A monografia foi defendida em 2007.

2 José William Craveiro Torres é especialista n’O Ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), mestrando em Literatura pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

3 Doutor Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros: poeta, crítico, ensaísta e professor do Curso de Letras e do Mestrado em Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC); orientador deste trabalho.

4 Claudio Basto (1886-1945) apud Arantes, Antônio Augusto (2007, p. 16).5 Nesse grupo poderíamos inserir o nome de Antonio Augusto Arantes, autor do livro O que é Cultura

Popular (14. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007. Coleção Primeiros Passos).

Page 2: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

greco-latino; (ii) e a partir da residualidade, quando suas histórias, já bem diferentes dos mitos da Antigüidade clássica, no que concerne aos elementos que compõem a narrativa, trazem, através de suas personagens, mentalidades típicas dos deuses, dos semideuses (ou heróis) ou dos populares que se movimentam nas lendas dos antigos gregos e romanos.

Para que se possa entender melhor como alguns cordéis retomam residualmente certos mitos greco-romanos, explicaremos, no tópico dois (2) deste trabalho, determinados conceitos, como o de mentalidade, o de resíduo e o residualidade. Ainda no segundo momento deste ensaio, falaremos da procedência de cada um desses três conceitos e da relação que eles estabelecem entre si. Também nos preocupamos em conceituar intertextualidade, na primeira parte deste trabalho, para que se possa fazer uma idéia do que esse termo significa. Vale salientar que, na conclusão deste, deixaremos bem marcada a diferença entre intertextualidade e residualidade.

Para finalizar, devemos dizer que utilizamos, neste ensaio, os seguintes cordéis: Tróia, de João Pedro do Juazeiro; Aracne, uma Aranha Bordadeira, de Rodrigo Marques; A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará, de Renato H.; História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca, de José Costa Leite; e O Cachorro Encantado e a Sorte da Megera, de Antônio Klévisson Viana. Já no que diz respeito à Literatura da Antigüidade clássica, debruçamo-nos sobre a Ilíada, de Homero, e sobre os mitos “Ífis e Anaxárete”, “Aracne” e “Pico e Canente”, os três presentes em Metamorfoses, de Ovídio, e no livro A Idade da Fábula (ou O Livro de Ouro da Mitologia: Histórias de Deuses e Heróis), de Thomas Bulfinch. No tópico 3.1 deste trabalho, versaremos sobre os cordéis que retomam, a partir da intertextualidade, algumas das histórias gregas aqui apresentadas. Já na parte seguinte (3.2), discorreremos, com base na residualidade, sobre os folhetos que retomam o modo de agir, de pensar e de sentir e certos comportamentos (aspectos duma Cultura, portanto) das personagens que se encontram nos mitos da Antigüidade greco-romana. Vale salientar que, uma vez que estabelecemos uma relação entre os cordéis aqui apontados e as histórias dos gregos e dos romanos antigos que nos foram legadas por Homero e por Ovídio, trabalhamos, durante todo este ensaio, com a Literatura Comparada.

1. Do conceito de intertextualidade

O termo intertextualidade foi cunhado por Julia Kristeva, por volta da década de 60, para se referir às relações dialógicas que um texto mantém com outro(s). Kristeva, no entanto, não foi a primeira a perceber essas relações dialógicas que os textos estabelecem entre si. Essa questão já havia sido levantada há bastante tempo6. Contudo, Kristeva, ao

6 As raízes da intertextualidade, de acordo com Vítor Manuel de Aguiar e Silva (Teoria da Literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2006.), devem ser procuradas entre os estruturalistas. Saussure, com o seu conceito de anagrama, foi o primeiro a lançar as sementes do que, mais tarde, viria a ser chamado de intertextualidade. Por anagrama podemos entender o mesmo que palavra-tema, ou seja, uma palavra em torno da qual irradiam uma série de outras, que estabelecem, com essa palavra-tema, determinadas relações sintagmáticas. Saussure teria percebido que essa palavra-tema estabeleceria sempre determinadas relações sintagmáticas com outros vocábulos, independente do texto em que ela se encontrasse. Então, ele começou a verificar o “comportamento” de uma mesma palavra-tema em textos diferentes. A aproximação dos mais variados textos, portanto, dava-se, para Saussure, a partir da palavra-tema por eles utilizada. Só não podemos dizer que Saussure foi o primeiro a tratar de intertextualidade porque, quando falamos de intertexto ou de intertextualidade, estamos tratando de estruturas lingüísticas que se encontram acima da

Page 3: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

chamar de intertextualidade o diálogo estabelecido entre os textos, baseou-se nos estudos que Bakhtin já havia realizado em torno dessa questão. Para Bakhtin, todo texto é polifônico e dialoga sempre com outros textos, no nível da enunciação.

Para evitar que atribuíssem um significado muito amplo para intertextualidade, Michel Riffaterre propôs uma definição de intertextualidade que se circunscreve apenas ao aspecto estrutural dos textos, sobretudo no que diz respeito aos aspectos sintático e semântico. Para Vítor Manuel de Aguiar e Silva, essa proposta de Riffaterre não é viável por dois motivos: em primeiro lugar, porque ela falseia a noção de dinâmica textual; depois, porque não há nada que comprove que a intertextualidade trabalhe apenas com os elementos invariantes encontrados num texto e noutro. Sobre essa questão da intertextualidade estar ligada à invariabilidade de determinados elementos textuais, diz Vítor Manuel de Aguiar e Silva:

Ocorrem fenómenos de intertextualidade caracterizáveis em termos de identidade estrutural, mas ocorrem também múltiplos fenómenos de interação textual que são refractários a tal caracterização (AGUIAR E SILVA, 2006: 626).

Entretanto, se Vítor Manuel de Aguiar e Silva é cauteloso quanto à visão excessivamente estruturalista (e talvez por isso estreita, para muitos) que Riffaterre tem de intertextualidade, ele não é menos prudente com relação à ampliação do conceito de intertextualidade e ao trabalho com a intertextualidade que é realizado por outros estudiosos no assunto (Roland Barthes, por exemplo). Vítor Manuel de Aguiar e Silva contesta determinados estudiosos em intertextualidade, sem nomeá-los, pelo fato de alguns deles estabelecerem relações intertextuais entre obras literárias somente por elas pertencem ao mesmo gênero ou ao mesmo subgênero literário7, ou ainda pelo fato de afirmarem haver intertextualidade entre os aspectos sintático e semântico de determinadas obras literárias e determinados elementos da Pintura ou da Música8. Preferindo, portanto, a sensatez do meio-termo, Vítor Manuel de Aguiar e Silva dá-nos a sua definição de intertextualidade e de intertexto9: “intertextualidade como a interacção semiótica de um texto com outro(s) texto(s)” (AGUIAR E SILVA, 2006: 625); “intertexto como o texto ou o corpus de textos com os quais um determinado texto mantém aquele tipo de interacção” (AGUIAR E SILVA, 2006: 625).

Em Teoria da Literatura, Vítor Manuel de Aguiar e Silva assinala a existência de dois tipos de intertextualidade: a intertextualidade exoliterária, que podemos entender como o diálogo que uma obra literária estabelece com textos que não pertencem ao âmbito literário;

morfológica, como a sintática e a semântica. Um (pós-)estruturalista que se voltou para o estudo da intertextualidade nos âmbitos sintático e semântico foi Michel Riffaterre, a partir do seu conceito de hipograma, que pode ser um texto ou um grupo de palavras que pertence a um determinado texto.

7 Para Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2006), o fato de dois textos pertencerem a um mesmo gênero ou a um mesmo subgênero literário traz à tona um problema de caráter sistêmico e não algo que esteja no âmbito da intertextualidade.

8 Na visão de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, isso “ocorre porque o policódigo literário contém regras, preceitos e convenções que permitem, legitimam ou valorizam as inter-relações formais e semânticas da literatura com outras artes e não porque a produção de um determinado texto literário envolva relações intertextuais com um determinado texto pictórico ou com um determinado texto musical” (2006: 629).

9 De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001), podemos entender por intertexto um “texto literário preexistente a outro texto e que é aproveitado, por absorção e transformação, na elaboração deste, ou que o influencia”. Também pode ser chamado de subtexto, de texto palimpséstico ou de texto-fantasma (“ghost text”, para Riffaterre).

Page 4: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

e intertextualidade endoliterária, que é a relação dialógica que uma obra literária estabelece com outras obras do mesmo gênero. Ainda sobre essa questão em torno do(s) diálogo(s) que uma obra literária estabelece com outros textos, não podemos esquecer de que esse diálogo pode ser hetero-autoral, quando uma obra literária estabelece diálogos com obras de vários autores, ou homo-autoral, quando uma obra literária estabelece diálogos com obras do próprio autor que a escreve.

A intertextualidade, para Vítor Manuel de Aguiar e Silva, pode se manifestar de duas formas: de modo explícito, através de citações10, da paródia e da imitação declarada11; e de modo implícito, oculto ou dissimulado, por meio de alusões12.

Não poderíamos concluir esta breve explanação sobre intertextualidade sem falar da importância, para a Literatura, do diálogo que as obras literárias estabelecem entre si. Para Vítor Manuel de Aguiar e Silva, graças à intertextualidade é que não podemos falar em literatura puramente lúdica ou em divertimento gratuito. Para o estudioso português, é através da intertextualidade que uma obra literária afirma ou nega algo; daí ele falar nas funções corroboradora e contestatária (ou subversiva) da intertextualidade. A função corroboradora manifesta-se, nas obras literárias, a partir de citações e da imitação declarada, ou seja, quando uma obra literária reafirma, confirma, valida ou exalta outra. Já a função contestatária faz-se sentir através da paródia, expediente pelo qual uma obra literária refuta, invalida ou menospreza outra.

2. Dos conceitos de mentalidade, de resíduo e de Residualidade

Para que possamos apontar em alguns cordéis nordestinos os resíduos clássicos que eles trazem, é necessário falar, antes, sobre o que vem a ser mentalidade, pois resíduo e mentalidade são conceitos que se complementam. Também a esses dois conceitos está atrelado o de residualidade. Apresentaremos, aqui, embora de maneira simplificada e bastante breve, o que vem a ser cada um desses termos.

O termo mentalidade apareceu, com o significado com o qual trabalharemos nas próximas linhas deste ensaio, em 1842, na França, muito provavelmente por influência do vocábulo inglês mentality (1691). Por mentalidade podemos entender, de acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa13, o “conjunto de manifestações de ordem mental (crenças, maneira de pensar, disposições psíquicas e morais) que caracterizam uma coletividade, uma classe de pessoas ou um indivíduo”. Entretanto, foi apenas com a École des Annales, corrente de pensamento francesa que se empenhou em realizar uma História Nova, que o termo mentalidade ganhou notoriedade e passou a ser utilizado, sobretudo, para nomear o novo objeto de estudo dos historiadores14 a partir da

10 Excertos de textos retirados de uma ou mais obras, sem que sofram qualquer tipo de alteração, para servirem como opinião abalizada e, assim, defenderem pontos de vista assumidos por outro texto.

11 Sentimos falta da paráfrase, que, para o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0., quer dizer “interpretação ou tradução em que o autor procura seguir mais o sentido do texto que a sua letra” ou “interpretação, explicação ou nova apresentação de um texto (entrecho, obra etc.) que visa torná-lo mais inteligível ou que sugere novo enfoque para o seu sentido”.

12 Menções a determinados textos, realizadas de forma vaga ou indireta.13 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.14 Dentre os historiadores mais notáveis da École des Annales estão Lucien Febre, Marc Bloch, Georges

Duby e Robert Mandrou.

Page 5: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

década de 50: a atmosfera mental de determinadas camadas ou de determinados grupos sociais extraída a partir de objetos artísticos15 produzidos por membros duma civilização num dado momento. Georges Duby referiu-se à utilização desse termo e ao que ele representava, quando da proposta de mudança do objeto de estudo da História Nova, da seguinte forma:

De maneira mais insistente, Febvre exortava-nos a escrever a história das “sensibilidades”, dos odores, dos temores, dos sistemas de valores, e seu Rabelais demonstrava magnificamente que cada época tem sua própria visão do mundo, que as maneiras de sentir e pensar variam com o tempo e que, em conseqüência, o historiador é solicitado a se precaver o quanto puder das suas, sob pena de nada compreender. Febvre propunha-nos um novo objeto de estudo, as “mentalidades”. Era o termo que utilizava. Pois nós o retomamos (DUBY, 1993: 87-8).

Podemos perceber, nessas palavras de Duby, o caráter imaterial16 e dinâmico17 da mentalidade. Todavia, devemos ressaltar o seu caráter plural18, visto que numa determinada época existem várias mentalidades, uma para cada um dos grupos sociais que existe, e coletivo, visto que a mentalidade é fruto daquilo que um bom número de pessoas pensa: geralmente, um indivíduo, através da sua obra de arte ou de qualquer outro objeto que sirva de documento histórico, expressa não só o que ele pensa, mas também o que um grupo de pessoas traz na mente, de modo que esse indivíduo passa a ser um “porta-voz” duma coletividade; ele faz parte, obrigatoriamente, dum grupo social, o qual geralmente representa.

Já por resíduo podemos entender, de acordo com uma das acepções que o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa traz para esse vocábulo, “elementos culturais que sobreviveram a mudanças com as quais estão em contradição”, ou seja, os resíduos nada mais são que mentalidades duma determinada época que se mantêm ativas em períodos históricos posteriores aos da sua origem. Exatamente por não pertencerem à época na qual se manifestam, mas por terem suas origens numa época anterior, os resíduos, como bem disse o Dicionário Houaiss, são mentalidades de outrora que entram em contradição com as mentalidades da época na qual se manifestam. A crítica marxista, a partir de

15 Os participantes da École des Annales, que se propuseram a realizar uma História Nova, decidiram abandonar, enquanto fontes de caráter documental que procuravam dar conta dos acontecimentos, os papéis cartoriais e os velhos mapas, para se debruçar sobre objetos artísticos, como as pinturas, as construções arquitetônicas, as esculturas e, principalmente, as obras literárias. As obras de arte possuíam, na visão desses estudiosos franceses, com relação aos mapas e aos velhos documentos cartoriais, uma característica que as tornavam melhores aos propósitos da História Nova: a visão crítica do artista sobre a realidade, uma vez que a Arte nada mais é que uma forma de se fazer uma leitura do real, dos fatos, da sociedade.

16 A mentalidade dum povo materializa-se, como vimos, a partir de objetos (artísticos ou não) produzidos pelo Homem.

17 A mentalidade duma época é, em geral, diferente, com relação à mentalidade de outro período da História. Como diria Camões, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

18 Tantos quantos forem os grupos que compõem uma sociedade serão também as mentalidades que essa sociedade possui. Assim, temos, por exemplo, na Idade Média, a mentalidade do nobre, ou senhor feudal, a do clero e a dos camponeses. Poderíamos, ainda, tratar da mentalidade do alto clero e do baixo clero como mentalidades distintas, pois cada um desses grupos pensa o mundo de maneira diferente e, por isso, comporta-se de maneira diferente.

Page 6: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

Raymond Williams19, foi uma das que mais utilizou o termo resíduo para designar o que aqui dissemos:

O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente. Assim, certas experiências, significados e valores que não se podem expressar, ou verificar substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda são vividos e praticados à base do resíduo – cultural bem como social – de uma instituição ou formação social e cultural anterior. É importante distinguir esse aspecto do residual, que pode ter uma relação alternativa ou mesmo oposta com a cultura dominante, daquela manifestação ativa do residual (distinguindo-se este do arcaico) que foi incorporada, em grande parte ou totalmente, pela cultura dominante (WILLIAMS, 1979: 125).

Percebemos, a partir da leitura dessas palavras de Raymond Williams, que o seu conceito de resíduo se coaduna com aquele que o Dicionário Houaiss apresenta, ou seja, são “certas experiências, significados e valores” formados “no passado, mas que ainda está ativo no processo cultural (...) como um elemento efetivo do presente (...) que pode ter uma relação alternativa ou mesmo oposta com a cultura dominante”.

Com base nesses conceitos de mentalidade – proposto pela École des Annales – e de resíduo – trabalhado, sobretudo, por críticos marxistas como Raymond Williams –, Roberto Pontes formulou uma teoria que procura dar conta de como mentalidades de certas épocas conseguem manter-se ativas durante muito tempo e manifestar-se, anos e até séculos depois das suas origens, em períodos históricos posteriores: a Teoria da Residualidade. Assim, essa teoria trabalha com conceitos próprios, como o de hibridação cultural e o de cristalização20, e se alia a explicações e a resultados de pesquisas de outros estudiosos do campo da História, da Literatura, da Antropologia, da Sociologia, da Química etc, para explicar determinados fenômenos culturais e literários.

No tópico 3.2, teremos a oportunidade de demonstrar melhor, através das relações entre as histórias dos cordéis e as das narrativas em torno dos deuses e dos heróis da Mitologia greco-romana, como trabalhamos com esses processos explicativos propostos pela Teoria da Residualidade; sobretudo no que concerne aos fenômenos de hibridação cultural e de cristalização. Apontaremos, também em 3.2, as mentalidades clássicas, principalmente a dos populares e a dos deuses das epopéias e dos mitos greco-latinos, presentes nos cordéis analisados, bem como explicaremos de que formas esses resíduos acontecem dentro dessas produções literárias do Nordeste brasileiro.

3. As alusões realizadas à Cultura clássica por parte do Cordel nordestino

19 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura / Tradução de Waltemir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1979.

20 Por hibridação cultural, grosso modo, podemos entender a união, num mesmo povo ou em certas obras produzidas por alguns dos artistas que compõem uma coletividade, de aspectos culturais pertencentes a diferentes civilizações de momentos históricos anteriores. Já por cristalização podemos entender o processo de refinamento (como acontece com o mel da cana ao se transformar em açúcar) dessa cultura, que vai se afastando daquilo que entendemos por popular e se aproximando do que pensamos ser erudito. Esses conceitos podem ser encontrados de forma mais desenvolvida em: PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza: Oficina do Autor / Edições UFC, 1999.

Page 7: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

Como vimos já na introdução deste ensaio, as alusões à cultura dos antigos gregos e romanos, por parte do Cordel nordestino, podem ser realizadas: (i) a partir da intertextualidade, quando faz alusões, diretas ou indiretas, em seu conteúdo, a personagens e a trechos das narrativas em verso dos gregos e dos romanos antigos, mas sem realizar qualquer alteração destas histórias, no que diz respeito aos elementos da narrativa, ou quando parafraseia um mito greco-latino; (ii) e a partir da residualidade, quando suas histórias, já bem diferentes dos mitos da Antigüidade clássica, no que concerne aos elementos que compõem a narrativa, trazem, através de suas personagens, mentalidades típicas dos deuses, dos semideuses (ou heróis) ou dos populares que se movimentam nas lendas dos antigos gregos e romanos. Assim, conforme os cordéis façam referências a essas lendas da Antigüidade clássica, podemos dividi-los em dois grupos: o das alusões diretas, composto pelos folhetos que se remetem aos mitos greco-romanos a partir da intertextualidade, ou seja, por meio de citações, da imitação declarada, da paráfrase e da paródia; e o dos resíduos mentais, formado pelos “livrinhos de feira” que atualizam, através do modo de agir, de pensar e de sentir e do comportamento de suas personagens, mentalidades típicas de populares, de semideuses (ou heróis) e de deuses da Antigüidade clássica.

3.1 Grupo das alusões diretas (ou alusões realizadas a partir da intertextualidade)

No grupo das alusões diretas colocamos todos os cordéis que citam personagens greco-romanos no âmbito das suas narrativas, os que trazem, no seu interior, trechos daquelas histórias que nos foram legadas pelos gregos e pelos romanos da Antigüidade clássica e os que parafraseiam ou parodiam os mitos dos antigos gregos e romanos. Assim, esses “livrinhos de feira” não fazem outra coisa senão realizar citações ou modificar a linguagem e a forma (o formato) como são contadas essas lendas greco-latinas, geralmente para facilitar-lhes o entendimento, a compreensão. Temos, como exemplos de cordéis dessa natureza, Tróia, de João Pedro do Juazeiro, e Aracne, uma aranha bordadeira, de Rodrigo Marques.

3.1.1 Ilíada, de Homero, e Tróia, de João Pedro do Juazeiro

Todos nós conhecemos o enredo da história que nos foi contada por Homero sobre a Guerra de Tróia. Está tudo lá na Ilíada, considerada pelos estudiosos em Literatura como o primeiro documento literário da civilização ocidental. A história gira em torno duma guerra entre gregos e troianos (povo da Ásia menor) por conta duma mulher, Helena, que tinha fugido para a cidade de Tróia com o seu amante, Alexandre (ou Páris), sem que o seu marido Menelau soubesse. Este, quando descobre que sua mulher decidiu abandoná-lo para viver com outro homem, pede ajuda ao seu irmão Agamenon, comandante das tropas gregas em época de guerras, para que seja organizada uma armada em direção à Tróia, com o intuito de restituir-lhe a mulher e a honra perdidas. Assim é feito e logo inúmeras naus e homens a perder de vista são recrutados para a empreitada. Dentre esses, Aquiles, filho de Peleu, mortal, e da deusa Tétis (razão pela qual era praticamente imortal, por se tratar de

Page 8: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

um herói ou semideus). A obra de Homero narra os acontecimentos dos últimos dez anos dessa guerra: do desentendimento ocorrido entre Aquiles e Agamenon, por conta duma prenda de guerra, a Criseide, até o desfecho trágico, com a destruição completa da cidade de Tróia. Durante a narrativa, Aquiles abandona a guerra, por conta dos desentendimentos com o comandante maior das tropas gregas, Agamenon, o que causa uma desgraça para os gregos, visto que Aquiles era tido como o melhor guerreiro helênico. Este só volta a lutar quando Heitor, filho do rei de Tróia e irmão de Alexandre, mata Pátroclo. A partir daí, Aquiles irrita-se e só se acalma quando vinga a morte de Pátroclo, matando Heitor. Depois disso, com uma flecha envenenada guiada por Apolo, Alexandre atinge Aquiles no seu calcanhar, causando-lhe a morte. Para finalizar, Odisseu, o mais astuto de todos os gregos que estavam próximos à Tróia, pensa num estratagema para conseguir ultrapassar as muralhas dessa cidade. Assim, os gregos constroem um enorme cavalo de madeira, enchem-no de soldados e deixam-no ao alcance dos troianos, para que estes o levem para dentro das muralhas de Tróia. É exatamente isso o que acontece. Durante a noite, os gregos saem de dentro do enorme cavalo oco e abrem os portões da cidade, para que os demais compatriotas possam entrar. Dessa forma, a cidade de Tróia é totalmente destruída pelos habitantes da Hélade.

Conheçamos, agora, um trecho da Ilíada referente ao episódio do assassinato de Pátroclo, para que possamos entrar em contato com a maneira de narrar de Homero e com a linguagem por ele21 utilizada:

(...) Quando, porém, pela quarta avançava, semelho a um demônionessa hora, Pátroclo, aos olhos o termo luziu-te da vida.No mais aceso da luta saiu contra ti Febo Apolo,torvo, sem ser pelo herói percebido no meio da chusma,pois avançava para ele em caligem espessa.Por trás se pondo do herói, com a mão espalmada, nos ombrose nas espáduas lhe bate, causando-lhe aos olhos vertigem.O capacete, também, Febo Apolo da fronte lhe tira;alto rimbomba ao rolar pelo chão, entre os pés dos cavalos, o elmo de quatro saliências, manchando-se a crina ondulantede sangue e poeira. Até então não se havia sujado de terraesse elmo ornado de crina vistosa, que o Fado o vedava, por proteger a cabeça venusta de Aquiles divino.Ora deixou Zeus potente que Heitor na cabeça o pusesse,por já estar perto o momento em que o herói perecer deveria.Na mão de Pátroclo a lança de sombra comprida se quebra, grande, pesada e robusta, com ponta de bronze. Rompeu-se-lheo boldrié; cai-lhe o escudo comprido dos ombros robustos,e o próprio filho de Zeus, Febo Apolo, a couraça lhe tira.(...)Foi este Pátroclo, insigne ginete, o primeiro a ferir-te,sem que te houvesse prostrado. Corre ele a ocultar-se entre a chusma,após ter a lança de freixo arrancado da chaga; receio tinha de a Pátroclo opor-se, apesar de ele estar indefeso.Enfraquecido com o golpe e a pancada que o deus lhe assentara,para as fileiras do seu recuou, procurando salvar-se.

21 Apesar de tratar-se duma tradução realizada por Carlos Alberto Nunes, quando falamos na linguagem utilizada por Homero estamos nos referindo a aspectos relacionados à disposição dos termos que compõem as frases da Ilíada e ao nível de erudição da linguagem.

Page 9: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

Logo que Heitor percebeu que o magnânimo Pátroclo forapor bronze agudo atingido e que a salvo tratava de pôr-se,por entre as fileiras cortando, achegou-se-lhe e a lança lhe enterrano baixo ventre, indo a ponta aguçada nas costas sair-lhe.Tomba, ruidoso, causando aflição aos guerreiros Acaios.

(NUNES, 2002: 384-5)

O cordel Tróia, de João Pedro do Juazeiro, conta-nos exatamente essa história. Os elementos da narrativa – enredo, tipo de narrador frente aos fatos que estão sendo apresentados ao leitor, personagens, tempo e espaço – são os mesmos que foram utilizados por Homero, quando ele compôs a sua obra. Vejamos um trecho do folheto em questão, para mostrar como ele apenas modifica a forma (o formato) como foi realizada a narração da Ilíada e a linguagem na qual essa epopéia está vazada:

No meio da batalhaHeitor, Patroclo enfrentaPensava ser AquilesNaquela luta sangrentaConseguindo lhe ferirMas logo foi descobrirQuando o capacete arrebenta

A luta ali parouAo descobrir a verdadeSer Patroclo não AquilesO engano, a inverdadeTodos na decepçãoCom o menino no chãoTamanha leviandade

Como era de costumeNão deixar o ferido sofrerHeitor cravou a espadaAcabando seu padecerO corpo a Aquiles levaramE para ele contaramComo foi o suceder

Gregos e troianosParou a luta descontenteHeitor vendo o erroFicou triste, indiferenteSabia haver vingançaUma nuvem negra lançaAli na sua frente

Vendo o primo mortoAquiles jurou vingançaApós seu funeralArmou-se de arco e lançaCom escudo e armaduraPra uma luta duraSeguia com confiança

Page 10: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

(JUAZEIRO, s/d: 19-20)

Pelo fato de João Pedro do Juazeiro trazer para os leitores uma história de há séculos, a primeira das epopéias do Ocidente, sem nada lhe acrescentar, sem alterar qualquer dos seus elementos da narrativa (enredo, tempo, espaço, personagens e narrador), e por modificar o formato em que a narrativa original se apresenta (a partir da utilização de versos mais curtos, de estrofes menores) e a linguagem na qual ela está vazada (o cordel de João Pedro do Juazeiro está inegavelmente escrito em linguagem mais simples, mais popular, praticamente livre dos hipérbatos) é que podemos afirmar, com certeza, que Tróia estabelece uma relação intertextual, do tipo parafrásica, com a Ilíada, de Homero.

3.1.2 “Aracne” e Aracne, uma Aranha Bordadeira, de Rodrigo Marques

Chamava-se Aracne uma mortal que, tendo alcançado a perfeição nas artes de tecer e bordar, ousou equiparar-se à deusa Minerva. Aracne tecia e bordava com tal maestria que as ninfas deixavam os bosques e dirigiam-se à sua casa com o simples intuito de vê-la trabalhar. Tal fato envaidecia a tecelã, que não aceitava sequer que a chamassem de “discípula de Minerva”. Em diversas oportunidades – e perante muitas testemunhas – Aracne desfez-se da deusa, chegando mesmo a repudiá-la.

Certo dia, a deusa resolveu, então, conhecer a mortal de perto. Aproveitaria a ocasião, também, para aconselhá-la. A fim de que não fosse reconhecida pelos mortais, principalmente pela dona da casa, Minerva metamorfoseou-se em anciã e dirigiu-se à moradia de Aracne.

Tendo conseguido aproximar-se da mortal, Minerva a aconselhou para que pedisse perdão à deusa. Minerva quis mostrar a Aracne que esta não estava agindo certo, querendo comparar suas habilidades com as da deusa. Porém, o que aconteceu foi justamente o contrário: Aracne, ao invés de se resignar, voltou-se contra a velha e lançou um desafio à Minerva. Irada, a filha de Zeus mostrou-se aos presentes em todo o seu esplendor, deixando Aracne ruborizada de vergonha e de medo.

Em pouco, Aracne e Minerva travavam uma disputa no tear, cujo intuito era o de saber qual das duas tecia – e bordava – melhor. Minerva ornou, em seu tecido, figuras que mostravam o que acontecia aos mortais presunçosos que desafiavam os deuses. Aracne, por sua vez, resolveu guarnecer seu tecido com bordaduras que mostravam os erros cometidos pelos numes.

Minerva, furiosa, atirou a lançadeira sobre o trabalho de Aracne e, em seguida, tocou-lhe na fronte com o dedo indicador. Esse gesto fez surgir em Aracne um grande arrependimento. Assim, a mortal dirigiu-se a um aposento contíguo ao qual todos se encontravam e enforcou-se.

Com o fim da fúria de Minerva, a deusa chegou a sentir pena da pobre moça e a fez viver novamente. Contudo, não mais a deixou na forma humana: ela foi metamorfoseada em aranha. O castigo de Aracne – e de toda a sua descendência – seria passar o resto de sua vida a tecer.

Page 11: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

Agora, um trecho do mito “Aracne”, retirado da edição de Metamorfoses da Editora Madras, para que se possa entrar em contato com o tipo de linguagem na qual ele está vazado. Escolhemos o excerto inicial da lenda greco-latina, a parte da história que traz uma apresentação da personagem que dá nome à narrativa:

Minerva ouviu a história, e adorou a canção,Achou justa a raiva, mas pensou:“Tudo bem, é digna de elogio, mas tambémEu o mereço. Também eu deveria mostrar ressentimentoContra aqueles que zombaram do meu poder”. Ela pensavaEm Aracne, uma moça de Meoniman,Que, segundo o que havia escutado, estava alardeando seu talento,Dizendo que era melhor até do que MinervaNa habilidade de fiar e tecer a lã. A garota não eraDe nenhuma família importante, nem importante era o lugar ondeNascera; seu pai, Ídmon,Era um tintureiro, que tingia de carmim as peças de lã.Sua mãe era falecida, pessoa do tipo comum,Como comum também era o seu marido, mas a filhaFicou conhecida pelo seu talento, e sua fama havia corridoPor todas as cidades da Lídia, embora ela própria Nunca tivesse saído do vilarejo de Hipepa.As próprias ninfas iam com freqüência olhar, curiosas,Deixando seus vinhedos e rios,Os trabalhos que ela fazia com a lã, ou apenas observá-la em ação,Com tanta graça e delicadeza. (...)

(OVÍDIO, 2003: 113)

Conheçamos, agora, um excerto do cordel de Rodrigo Marques, Aracne, uma aranha bordadeira, que recupera essa lenda da Antigüidade clássica.

Não era filha da nobreza,Mas tinha fama na mídia,Seu pai, Ídmon, o tintureiro,Conhecido em toda Lídia,Alertava a sua caçulaDo mau cheiro da perfídia.

Nos pontos, nas linhas e idas,Fosse, de agulha, trabalho,Logo era solicitada.E quando ouvia um chocalho,Sabia: uma Ninfa deixaraUm pedido no assoalho.

Vivia de suas urdiduras,Tosquiando textos-lãs,Qual a família Dumond,Numa luta das mais vãs:A que das mãos vai tirandoMuitas linhas tecelãs.

Fios de todos os tipos

Page 12: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

Não lhe faziam nocró,Desenhos aquareladosBordados noutro filó,Aracne se envaideciaDo talento e do cocó.

(MARQUES, 2006: 02)

Rodrigo Marques, como João Pedro do Juazeiro, conservou, no seu folheto, todos os elementos da narrativa presentes no mito greco-romano em questão (“Aracne”), mas modificou a forma (o formato) e a linguagem da narrativa original (versos curtos, estrofes menores, linguagem mais simples, poucas inversões), para deixá-la dentro dos padrões do Cordel nordestino. Desse modo, o cordel de Rodrigo Marques realizou uma paráfrase em torno da lenda de Aracne; logo, houve um trabalho com intertextualidade.

3.2 Grupo dos resíduos mentais (ou da retomada da Cultura clássica com base na residualidade)

No grupo dos resíduos mentais, inserimos os cordéis que trabalham, ainda que seus autores não saibam disso, visto que dificilmente ouviram falar na École des Annales, com o que os franceses chamaram de mentalidade. Os “livrinhos de feira” em questão trazem histórias que, embora não façam nenhuma alusão direta a personagens greco-romanos, são verdadeiras atualizações ou recriações daqueles mitos das antigas Grécia e Roma. Suas histórias, desse modo, trazem mentalidades clássicas e elementos residuais de lendas greco-latinas. Como exemplo desses elementos e dessas mentalidades, poderíamos citar as metamorfoses22, aquilo que as motiva, as sanções (castigos dados aos seres humanos (mortais, portanto) por divindades, devido ao caráter insolente daqueles com relação a estes) e o modo de agir, de pensar, de sentir e de se comportar dos deuses, dos heróis (ou semideuses) e dos populares que se movimentam nos mitos greco-latinos. Temos, como exemplos de cordéis dessa natureza, A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará, de Renato H., História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca, de José Costa Leite, e O Cachorro Encantado e a Sorte da Megera, de Antônio Klévisson Viana.

3.2.1 “Ífis e Anaxárete” e A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará, de Renato H

Chamava-se Ífis um jovem de origem humilde que se apaixonou por Anaxárete, nobre dama duma antiga família de Têucris. Lutou muito tempo com sua paixão, mas, quando viu que não podia dominá-la, procurou a casa da mulher amada, como suplicante. Primeiro, contou sua paixão à ama de Anaxárete e pediu-lhe que favorecesse sua causa. Às vezes,

22 Em termos bastante gerais, podemos dizer que metamorfose é o mesmo que transformação (ou mudança). Porém, no âmbito do mitológico, quando falamos em metamorfose estamos nos referindo a toda e qualquer narração que se faz, em ordem cronológica, com o intuito de assinalar a mudança de seres humanos em animais, em plantas e em minerais. O contrário – a transformação de minerais, de plantas ou de animais em seres humanos – também pode ser considerado metamorfose.

Page 13: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

escrevia suas súplicas em tabuinhas e, muitas vezes, pendurou, na porta da casa de Anaxárete, guirlandas que molhara com suas próprias lágrimas. Anaxárete mostrava-se mais surda que os vagalhões que se erguem nas tempestades de novembro; mais dura que o aço que vem das forjas germânicas. Sua velha ama, que já tinha vivido bastante, sempre a alertava para que não lutasse contra o seu destino, pois se Vênus a tinha designado a Ífis, ela deveria aceitá-lo como seu amante. Nessas ocasiões, Anaxárete repudiava a deusa do amor. Profanava, na verdade, contra todos os numes. Ela era totalmente incrédula. Não acreditava no poder dos olimpianos e, muito menos, nas palavras da velha senhora.

Certo dia, Ífis, já não podendo suportar os tormentos do amor desesperançado, amarrou uma corda ao portal, onde muitas vezes prendera guirlandas, e, metendo a cabeça no laço, caiu enforcado. Os criados de Anaxárete abriram a porta, encontraram-no morto e levaram-no para sua casa, entregando-o à sua mãe. Ela recebeu o corpo sem vida do filho, apertou-o de encontro ao peito e disse as palavras dolorosas que as mães costumam dizer nessa hora de sofrimento. O funeral do garoto atravessou a cidade. Por acaso, a casa de Anaxárete ficava na rua onde passava o desfile. A moça cruel, então, pôs-se à janela mais alta de sua casa, a fim de que pudesse contemplar o cortejo fúnebre. Vênus, porém, não permitiu que Anaxárete se regozijasse com o funeral de Ífis. Além disso, a deusa resolveu vingar-se da mortal, devido aos impropérios que, outrora, ela havia proferido. Em poucos segundos, a moça fora metamorfoseada em pedra.

Vejamos o seguinte trecho do mito “Vertuno e Pomona”, no qual podemos encontrar a metamorfose de Anaxárete:

Mal demoraram no vulto de Ífis estendidos no caixão, seus olhos começaram a enrijecer e esfriou o quente sangue de seu corpo. Procurando recuar, a jovem percebeu que não podia mover os pés. Tentou virar o rosto, mas em vão. Pouco a pouco, todos os seus membros tornaram-se de pedra, como o coração (BULFINCH, 2001: 96-7).

Conheçamos, agora, a história de Renato H:

A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará narra a história de Maria José, que, apaixonada por Salomão, fez uma promessa a São Francisco de Canindé, com o intuito de casar-se com seu amado. Não tendo a sua promessa atendida, Maria José passou a rejeitar São Francisco. Na verdade, a promessa não se realizara por falta de fé, pois Maria José não acreditava nos poderes do Santo. Tal atitude de incredulidade para com São Francisco propiciou o seu castigo: a moça foi metamorfoseada em cabra. A partir desse dia, Maria José passou a aturdir não só as pessoas de sua cidade (Santa Quitéria), mas também os habitantes de outras cidades cearenses e até mesmo de outros estados, como o Piauí.

A seguinte passagem mostra-nos como ocorreu a metamorfose de Maria José:

A moça disse: - Eu estouJá cansada de rezarFazer preces, acender velasSem ele me ajudarEu não vou pedir mais nadaJá estou desenganadaEle pode se danar!

Page 14: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

Isso foi cedo do diaContou-me Joaquim SeabraQue as três e meia da tardeDisse a moça: - Mamãe, abraLigeiro a porta da frenteEu sinto um troço diferenteE estou virando cabra!

Disse a velha: - Credo em cruz!Jesus, Maria e JoséVocê fez sua promessaPor pilhéria, sem ter féComo fez profanaçãoFoi castigada por SãoFrancisco do Canindé.

A moça pulou e ficouNo terreiro sem demoraDando três saltos e três berrosA velha disse: - E agora?A cabra lhe disse então:- Vou atrás de SalomãoE correu de mundo afora.

A moça virada em cabraNão vai poder casarOnde vê uma pessoaTem vontade de matarDe homem ela corre atrásE quando avista um rapazO seu desejo é capar.

(H, s/d:3-4)

O caráter sagrado da Mitologia greco-romana ficou bastante evidente na história de Ífis e Anaxárete. Como podemos perceber, após termos lido o mito, a metamorfose de Anaxárete deu-se como forma de castigo (ou de sanção), depois que a mortal ofendeu a deusa Vênus, ao recusar o Amor que esta lhe designava. Além disso, Anaxárete mostrava-se indiferente aos deuses, não acreditava no poder que os olimpianos tinham sobre os homens.

Já no cordel A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará, temos a personagem Maria José, que, por sua vez, também não era religiosa. A promessa que havia feito para São Francisco de Canindé não passava de, como disse o próprio cordelista, pilhéria (piada); ou seja, Maria José incorreu no mesmo erro de Anaxárete: tratou a divindade (São Francisco) com desprezo; desrespeitou-a. A metamorfose de Maria José em cabra, portanto, foi uma punição divina, bem como a de Anaxárete. São Francisco, santo da Igreja Católica, mostrou-se vingativo como os deuses da Mitologia greco-latina. Assim, como elementos residuais da Antigüidade clássica dentro do cordel de Renato H., temos a metamorfose – algo bem arraigado na cultura grega, haja vista Ovídio ter dedicado um livro inteiro a tratar desse fenômeno –, o motivo dessa transformação, ou seja, a sanção – ambas as personagens

Page 15: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

perderam a forma humana por negarem os deuses – e o comportamento (bem como o modo de agir, de pensar e de sentir; a mentalidade, portanto) dos mortais perante as divindades e destas com relação àqueles. Vale salientar que, sob a perspectiva da Residualidade, de Roberto Pontes, temos, no cordel A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará, um típico caso de hibridação cultural, uma vez que nele se misturam elementos cristãos e pagãos.

3.2.2 “Aracne” e História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca, de José Costa Leite

Por conta de já termos feito um resumo, aqui neste trabalho, do mito “Aracne”, pertencente à obra de Ovídio, traremos, agora, apenas um trecho dessa lenda, retirado do livro de Thomas Bulfinch e referente à transformação de Aracne em aranha:

Aspergiu-a com o suco acônito, e imediatamente seus cabelos caíram, e, do mesmo modo, desapareceram o nariz e as orelhas. Seu corpo encolheu-se e sua cabeça tornou-se ainda menor; os dedos colaram-se aos seus flancos, transformando-se em patas. Todo o restante dela mudou-se no corpo, do qual ela tece seu fio, suspensa na mesma posição em que se encontrava quando Minerva a tocou e metamorfoseou-a em aranha (BULFINCH, 2001: 130-5).

Agora, a História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca:

Esse cordel narra um fato que ocorreu há muito tempo. Para sermos mais precisos, essa história aconteceu na época em que Cristo andava pelo mundo a fazer milagres.

Estando Jesus Cristo cansado de suas caminhadas, pediu a um ferreiro chamado Clemente que lhe deixasse dormir uma noite em sua casa. Clemente prontamente atendeu ao pedido. Cristo, porém, não pôde deixar de notar o quanto o ferreiro era vaidoso. De fato, Clemente estava tão seguro de si e de sua arte como ferreiro que julgava ser o maior de todos os mestres.

No outro dia, quando Cristo já se preparava para seguir viagem, apareceu, na porta da casa de Clemente, uma anciã pedindo um auxílio. Jesus, então, perguntou à pobre senhora se não era do seu desejo voltar a ser moça, pois, desse modo, ela poderia trabalhar e ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Ao receber uma resposta afirmativa da respeitável senhora, Cristo prometeu ajudá-la e, virando-se para o ferreiro, pediu-lhe licença para utilizar os seus instrumentos de trabalho. Clemente autorizou-o e, em pouco, Cristo começou a trabalhar. O filho de Deus, então, pôs a quantidade de carvão adequada, ateou fogo e, em seguida, levou a velha em direção às chamas. Depois de algum tempo, retirou a anciã das labaredas e a dirigiu até a safra, na qual a colocou e deu-lhe uma martelada na cabeça. Imediatamente, a pele da velha senhora desprendeu-se do seu corpo e surgiu, em seu lugar, outra camada dérmica. A senhora tornou-se uma menina de doze anos.

O ferreiro assistiu a tudo, mas sempre achando que poderia fazer melhor. Com a partida de Cristo, Clemente, mais desejoso de satisfazer o seu próprio ego do que propriamente ajudar alguém, convenceu sua mãe a submeter-se à façanha, prometendo-a deixar “novinha em folha”.

Page 16: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

A mãe do ferreiro aceitou a sua proposta. Clemente, então, levou a mãe ao fogo, da mesma forma como Jesus fizera com a pedinte. Porém, a velha gritava bastante. Tal fato aborrecia profundamente o ferreiro.

Após ter deixado sua mãe muito tempo em meio às chamas, o ferreiro retirou-a e levou-a em direção à safra. Porém, percebeu que a anciã estava muito enegrecida. Havia passado do ponto. Clemente, então, deu uma martelada na cabeça da mãe, o que só veio a piorar a situação, pois lhe afundou o crânio. Desesperado, o ferreiro levou a velha novamente ao fogo, retirando-a logo em seguida e mergulhando-a na água gelada. No entanto, não havia mais o que fazer. A mãe ficara parecida com um carvão. Clemente, aturdido, resolveu sair à procura de Cristo, para pedir-lhe ajuda.

O ferreiro encontrou o filho de Deus numa cidade próxima e contou-lhe o que havia acontecido com sua mãe. Jesus, então, disse que não poderia ajudá-lo, uma vez que sua habilidade como ferreiro estava longe de equiparar-se à arte de Clemente. Este, porém, muito insistiu e Cristo acabou cedendo aos seus apelos.

Ao retornar à casa de Clemente, Cristo analisou o estado no qual se encontrava a pobre mulher e disse que, da forma como ela se achava, não daria para transformá-la numa mulher, mas sim numa macaca. O ferreiro, resignado, aceitou.

Jesus, então, levou-a novamente ao fogo e fez o que pôde (Será? Não poderia Jesus ter feito algo melhor?). Em pouco tempo, uma macaca estava a pular em cima dos dois. Dessa forma, deu-se a metamorfose da anciã em macaca. Clemente pagou caro por sua vaidade, uma vez que a pessoa a quem mais amava no mundo fora transformada num animal.

A metamorfose da mãe do ferreiro em macaca deu-se da seguinte forma:

O ferreiro chegou logoE Jesus aproximou-se,Para fazer o exameE o ferreiro sentou-seJesus disse: - Está perdidaPassou do ponto, queimou-se

- Estando queimada assimSe quiser aproveitarUma mulher não dá maisQue o ponto não vai chegar,Só da mesmo uma macaca!E é pegar ou largar.

Disse o ferreiro a JesusSei que perdi a paradaO seu trabalho é perfeito,Sou uma besta quadrada!Pode fazer qualquer bichoQue é melhor do que nada

Jesus meteu o marteloE fez o serviço na horaO carvão pegou se bolirDisse Jesus: - É agora,A macaca ficou pronta

Page 17: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

E dum pulo caiu lá fora.

A macaca agarrou logoUma palma de banana,Comia com casca e tudoSua fome era tirana,O orgulho é o castigoDesta geração humana.

(LEITE, s/d:7-8)

O fator religioso, a exemplo do que aconteceu nas histórias anteriores (“Ífis e Anaxárete” e A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará), também foi privilegiado pelo mito de Aracne e pela história do ferreiro, de José Costa Leite. Contudo, a competição entre deuses e humanos (que se mostram orgulhosos e imodestos), presente nestas narrativas, representa um fato marcante, o que as assemelha entre si e o que as distancia das anteriores. A metamorfose de Aracne foi resultado de um castigo, por esta ter-se equiparado à Minerva. Já a transformação da mãe do ferreiro em macaca deveu-se à vaidade do filho. Nesse caso, não foi o autor da ofensa aquele que foi metamorfoseado, mas a pessoa a quem ele mais amava. De certa forma, Clemente, o ferreiro, também foi castigado. Estas duas histórias tiveram o intuito de mostrar o quanto os deuses são poderosos e que, certamente, nenhum mortal a eles pode comparar-se. Em História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca, Cristo comporta-se de forma vingativa, mesquinha, ou seja, como qualquer ser humano, da maneira como se portavam os deuses das antigas Grécia e Roma perante os mortais: cheios de vícios. Como elementos residuais da Antigüidade clássica dentro do cordel de José Costa Leite, temos a metamorfose, o motivo dessa transformação, ou seja, a sanção – ambas as personagens perderam a forma humana por tentarem se sobrepor às divindades – e o comportamento (bem como o modo de agir, de pensar e de sentir; a mentalidade, portanto) dos mortais perante as divindades e destas com relação àqueles. Sob a ótica da Residualidade temos, na História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca, um caso de hibridação cultural, visto que, nessa narrativa, misturam-se elementos cristãos e pagãos.

3.2.3 “Pico e Canente” e O Cachorro Encantado e a Sorte da Megera, de Antônio Klévisson Viana

Pico, rei de Ausônia, era um homem belo e inteligente e, exatamente por isso, vivia a ser perseguido pelas ninfas. Porém, rejeitava todas elas. Certo dia, avistou Canente e apaixonou-se. Pico, a partir de então, não tinha olhos para nenhuma outra mulher. Casaram-se logo em seguida. Canente era dona de uma belíssima voz e, certa vez, enquanto cantava, o marido saiu a caçar javalis com alguns de seus guardas. Chegando à floresta, Circe, a feiticeira, avistou-o e, como não poderia ser diferente, apaixonou-se pelo mancebo. A feiticeira, então, através de suas bruxarias, conseguiu aproximar-se de Pico, de modo que nenhum dos guardas dele conseguiu vê-la. Circe declarou-se ao rei, mas ele a rejeitou. Furiosa, a feiticeira transformou-o num pássaro cujo nome (picanço) faz lembrar aquele pelo qual o rei atendia, quando estava na forma humana.

Page 18: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

De acordo com a tradução do livro Metamorfoses, de Ovídio, realizada por Bocage, a transformação de Pico em pássaro deu-se da seguinte maneira:

Ao ocaso, nascente então se volta,Duas vezes àquele, a este duas;Depois no corpo do gentil manceboTrês toques dá coa vara, e diz três versos.Ele foge, e da própria ligeireza,Da nímia rapidez vai admirado:Eis que subitamente em si vê asas.Afrontado, raivoso de sentir-seAve nova a adejar nos lácios bosques,Despede o fero bico aos duros troncos,Com fúria aqui, e ali golpeia os ramos.Cor de purpúreo manto as penas ficam,Em penas o áureo nó também se torna,Listra dourada lhe rodeia o colo,E a Pico do que foi só resta o nome.

(OVÍDIO, 2000:125-6)

Agora, conheçamos a história de Antônio Klévisson Viana, O Cachorro Encantado e a Sorte da Megera, e vejamos como ela traz aspectos que lembram bastante o mito greco-romano que acabamos de mostrar:

Há muitos anos, morava em Bagdá um velho sultão muito bom, que odiava injustiças. Ele costumava tratar os animais da mesma forma como tratava seus súditos. Chegava mesmo a prender todos aqueles que se atreviam a maltratar um animal na sua frente.

Certo dia, o sultão avistou um homem muito honrado – um mercador seu amigo – batendo numa mula. Imediatamente, ordenou a seus guardas para que prendessem o rapaz. Este, tentando explicar-se para o imperador, afirmou estar batendo não numa mula qualquer, mas em sua mulher. Como o sultão não tivesse entendido, o mercador pôs-se a explicar e contou-lhe uma história inacreditável.

Segundo o mercador, a sua mulher começou a apresentar atitudes estranhas logo nos primeiros dias do casamento: passava todo o dia em casa sem nada comer, apesar da despensa estar sempre cheia, e, durante as noites, enquanto todos dormiam, costumava sair. Certa vez, porém, o mercador seguiu a mulher e a viu entrar no cemitério da cidade. Escondido, pôde ver que a sua mulher era uma feiticeira que, abrindo os túmulos através de magia, alimentava-se das carnes humanas em decomposição. Rapidamente – e sem ser visto – o mercador retornou à sua casa e, durante alguns dias, guardou em sua memória as terríveis cenas que avistara no cemitério e não revelou a ninguém o segredo que sua cônjuge ocultava.

Vendo que não poderia continuar casado com uma bruxa, o mercador arrumou suas coisas e, quando já se encontrava pronto para deixar o lar, a mulher transformou-o num cachorro, pois a idéia de ser abandonada pelo marido aturdia-lhe.

O mercador passou muitos anos metamorfoseado em cão. Chegou, inclusive, a ser adotado por um padeiro e tornou-se uma grande atração na cidade, por reconhecer moedas falsas. Tais proezas realizadas pelo cachorro levaram uma boa feiticeira, chamada Bela Aurora, a suspeitar de que aquele cachorro era muito especial e de que, por isso, não se tratava dum simples animal, mas dum homem metamorfoseado em cão. Então, a “bruxa do

Page 19: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

Bem” apiedou-se dele e decidiu ajudá-lo. Pediu, então, à sua mãe que atraísse o cão até ela, a feiticeira, a fim de que pudesse quebrar o feitiço. E assim foi feito. O cachorro logo voltou a ser gente e, juntamente com a mulher que o havia livrado da mágica, pensou numa forma de vingar-se de sua antiga companheira.

A feiticeira deu ao mercador uma garrafa com uma água mágica e ordenou-lhe que a derramasse sobre sua mulher. Dessa forma, ela seria, também, transformada num animal e provaria, assim, de seu próprio veneno. Na primeira oportunidade que teve, o mercador aproximou-se de sua cônjuge e derramou sobre ela um pouco da água que se encontrava na garrafa. Em pouco tempo, a malvada bruxa metamorfoseou-se numa mula. Justamente na mula que ele estava a açoitar, quando os guardas do rei prenderam-no.

Foi assim, a metamorfose que o mercador sofreu:

- Quando botei minhas coisasNuma mala, pra ir embora,A dita tomou a frenteDa porta na mesma hora,Chorando muito fingida:Não me abandones agora!

- Tomei coragem e conteiTudo o que havia avistadoLá no velho cemitério,Como estava impressionado.Ela disse: - Seu covarde!Serás amaldiçoado!

- De sangue muito encarnado,Vi o olhar da megera.Ela partiu para mimComo faz uma panteraCom instinto de matar-me,Virada na besta fera.

- Nesse instante lancei mãoDe uma faca bem ligeiro.Saí com ela brigandoDa sala para o terreiro.E onde a faca pegava,Saía só o fumaceiro.

- Percebi, não era humana...Fiz o Sino SalomãoAli, meio-dia em ponto.Foi a minha salvação!Mas quando me viu fugindo,Jogou-me uma maldição.

- Usando magia negra,Sem ninguém ao meu socorro.O raio que me atingiuAli, por pouco não morro.Já acordei transformado

Page 20: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

Em um pequeno cachorro.

(VIANA, 2002: 9-10)

Já no mito “Pico e Canente” e no cordel de Antônio Klévisson Viana, a característica marcante é a presença da feitiçaria, realizada por uma figura que, sem dúvida nenhuma, está presente não só no imaginário dos gregos e dos romanos antigos, mas também no de qualquer povo: a feiticeira; a bruxa. Os mitos greco-romanos, bem como os cordéis, são povoados de seres fantásticos, de magia, de ação, de suspense etc. As metamorfoses, nessas duas últimas narrativas, não se dão por castigos religiosos, mas por pura vingança, visto que as mulheres que foram enjeitadas eram feiticeiras.

Como elementos residuais da Antigüidade clássica dentro do cordel de Antônio Klévisson Viana, temos a metamorfose, o motivo dessa transformação, ou seja, a vingança – ambas as personagens principais, Pico e o mercador de Bagdá, perderam a forma humana por recusarem o amor duma mulher, que, nas duas narrativas, era uma feiticeira – e o comportamento (bem como o modo de agir, de pensar e de sentir; a mentalidade, portanto) dessas personagens envolvidas em torno da metamorfose. Sob a ótica da Residualidade temos, em O Cachorro Encantado e a Sorte da Megera, um caso de hibridação cultural, visto que, nesse cordel, misturam-se elementos da cultura greco-romana, da cultura árabe e da cultura popular do Nordeste brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao cabo deste trabalho, acreditamos que os nossos objetivos tenham sido alcançados: mostramos que alguns cordéis nordestinos realizam uma retomada – quer de forma direta, quer de forma indireta, na maneira como tratamos aqui dessas alusões – da cultura greco-romana da Antigüidade, e que a Cultura dita popular e a Cultura tida como erudita mantêm, entre si, uma estreita e forte ligação. Como vimos, a mentalidade greco-romana fez-se presente em três cordéis dos cordéis que analisamos (A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará; História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca; O Cachorro Encantado e a Sorte da Megera). Dessa forma, estes se mostram residuais; ou seja, trazem, no seu bojo, elementos de outras culturas (sobretudo da cultura das antigas Grécia e Roma) e também as mesmas idéias acerca do mundo, dos homens e das divindades que os antigos gregos e romanos possuíam. Dentre estas, poderíamos citar a postura demasiadamente humana que os deuses adquiriam, nos mitos clássicos, de modo que chegavam mesmo a experimentar os sentimentos próprios dos mortais, como a vingança. Aliás, nos cordéis, todas as metamorfoses dão-se exatamente por isso, ou seja, por vingança. Justamente por adaptar traços próprios da cultura greco-latina a uma realidade nossa, a uma cultura cristã e nordestina, é que podemos confirmar a hibridação cultural existente no cordel. Exemplo maior dessa hibridação podemos encontrar no “livrinho” de Antônio Klévisson Viana, que retoma as metamorfoses e os motivos dos antigos greco-romanos numa história que se passa em Bagdá, através da literatura popular do Nordeste brasileiro. O fato é que muitos não se dão conta dessa hibridação; tampouco conseguem identificar as mentalidades de outras épocas e de outras culturas presentes nos “livrinhos de feira”. Isso certamente se deve ao fato dessas mentalidades encontrarem-se já sedimentadas ou cristalizadas na nossa

Page 21: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

cultura nordestina, como bem explicaria Roberto Pontes. Em se tratando do processo de cristalização, vimos que, como acontece com o mel da cana que se transforma em açúcar, depois de determinado tempo e de certo processo, uma cultura dita popular pode tornar-se erudita. De fato, se pensarmos nos mitos greco-romanos, foi exatamente isso o que aconteceu: num primeiro momento, eles pertenceram ao âmbito do popular; ou seja, eram histórias passadas dos pais aos filhos, nas antigas Grécia e Roma. Tinham, portanto, um caráter oral. Depois, passaram a ser escritas e, assim, perduraram, chegando à época do Humanismo e do Classicismo, quando foram recuperadas e refinadas por grandes autores italianos, portugueses etc. Assim, os mitos deixaram de pertencer à religião dos antigos gregos e romanos para pertencer à Arte, à erudição e ao bom-gosto, como disse Thomas Bulfinch na introdução à sua obra A Idade da Fábula. Séculos depois, no Nordeste do Brasil, determinados autores voltaram-se para essas narrativas da Antigüidade clássica – de forma indireta (por meio das mentalidades, da Residualidade), como fizeram Renato H., José Costa Leite e Antônio Klévisson Viana, ou de forma direta (através da intertextualidade), como fizeram João Pedro do Juazeiro e Rodrigo Marques, dos quais falaremos em seguida – de forma a adaptá-las a uma realidade nossa, a figuras e a uma linguagem bem conhecidas do nosso povo. Com isso, realizaram uma popularização do que era considerado erudito (não podemos esquecer de que os escritores do Romantismo, escola literária de caráter popular, aboliu das suas obras os traços clássicos do Arcadismo justamente porque a cultura dos antigos gregos e romanos não era conhecida pela maior parte da população); ou seja, realizaram um processo inverso, no que concerne ao refino de uma cultura ou ao processo de cristalização.

Não poderíamos, ainda, deixar de falar da diferença que existe entre intertextualidade e residualidade. Para tanto, utilizar-nos-emos dos cordéis Tróia, de João Pedro do Juazeiro, e Aracne, uma aranha bordadeira, de Rodrigo Marques. Como vimos no tópico 3.1 deste trabalho, esses dois cordéis, diferentemente do que acontece com os outros três, não trazem uma história nova; não recuperam, através de novos personagens e dum novo enredo, as lendas dos antigos gregos e romanos ou a mentalidade desses povos, mas reservam-se a recriar, somente no âmbito da linguagem e da forma (do formato), as histórias da Antigüidade clássica, realizando, portanto, apenas um trabalho de intertextualidade e não de residualidade. Quando aludimos a personagens e a histórias já conhecidas, estamos apenas no âmbito da intertextualidade. Foi exatamente isso o que fizeram João Pedro do Juazeiro e Rodrigo Marques. Entretanto, quando recuperamos histórias que muito nos dizem do comportamento ou da mentalidade de outros povos e/ou de outras épocas, de forma consciente ou não, dando-lhes um outro espaço ou situando-as num tempo diferente daquele no qual a narrativa original ocorreu, estamos no âmbito da residualidade. Foi assim que trabalharam Renato H., José Costa Leite e Antônio Klévisson Viana.

BIBLIOGRAFIA

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2006.ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007. (Coleção Primeiros Passos).

Page 22: [José William Craveiro Torres] Intertextualidade e Residualidade Clássicas no Cordel Nordestino

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia: Histórias de Deuses e Heróis / Tradução de David Jardim Júnior. 28. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.DUBY, Georges. A História Continua / Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor / Editora UFRJ, 1993.H., Renato. A Moça que Virou Cabra no Sertão do Ceará. Recife: Editora Coqueiro, s/d.HOMERO. Ilíada / Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.JUAZEIRO, João Pedro do. Tróia. Fortaleza: Folheteria Padre Cícero, 2005.LEITE, José Costa. História de Jesus, o Ferreiro e a Macaca. Recife: Editora Coqueiro, s/d.MARQUES, Rodrigo. Aracne, uma Aranha Bordadeira. Fortaleza: Tupynanquim, 2006.OVÍDIO. Metamorfoses / Tradução de Manuel Maria Barbosa du Bocage e Introdução de João Ângelo Oliva Neto. São Paulo: Hedra, 2000.__________. __________. / Tradução de Vera Lúcia Leitão Magyar. São Paulo: Madras Editora, 2003.PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza: Oficina do Autor / Edições UFC, 1999.VIANA, Antônio Klévisson. O Cachorro Encantado e a Sorte da Megera. Fortaleza: Tupynanquim: 2002.