o que faz ser nordestino

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MAURAPENNA o QUE SER NORDESTINO Identidades sociais, interesses e 0 "esc6ndalo" Erundina Apoio Cultural: SMC Secretaria Minicioal deCultura

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MAURAPENNA

o QUE SERNORDESTINO

Identidades sociais, interesses e 0"esc6ndalo" Erundina

Apoio Cultural:

SMCSecretaria

Minicioal deCulturaPREFEJTUlAOO~IESAOPAlllD

Dados lnternacionais de Cataloga?o na Publica?o (CIP)(Omara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Penna, Maura.

o que faz ser nordesrino : idemidades sociais,imeresses eo"escindalo" Erundina I Maura Penna.

- Sao Paulo: Correz, 1992.

Bibl iografla.

ISBN 85-249-0464-X

I. Caracrerfsricas regionais - Brasil, Nordesre

2. Idemidade social - Brasil, Nordesre 3. Souza,

Luiza Erundina de I. Tirulo.

92-1998 CDD-305.8009812

Indices para cacilogo sistemarico:

I. Brasil: Nordesre : Idenridade social 305.8009812

2. Nordcsrinos : Brasil: Idcmidadc social 305.8009812

o QUE SERNORDESTINO

o QUE FAZ SER NORDESTINO:ide:ntidades sociais, inte:rc:sses e: 0 "esclndalo" ErundinaMAURAPENNA

Capa e projeto grdfico: Carlos Cleme:n sabre: gravura de: Milton Jose de: Alme:idaRevisiio: Maria de: Lourde:s de: Alme:ida, Marise: Simoes Lc:al, Rita de: Cassia M. LopesComposifiio: Dany Editora Ltda.Coordenariio editorial: Danilo A. Q. Morales

,

i

Ncnhuma patte: desta obra pode: se:r re:produzida ou duplicada se:m aurorizas;ao expressada autora e: do editor.

~ 1992 by MAURA PENNA

Direiros para esta e:dis;ao

CORTEZ EDITORA

Rua Battira, 387 - Tel.: (011) 864-0111

05009 - Sao Paulo - SP

Impressa no Brasil - agosto de: 1992

a minha mae

corajosa mulherque nascida num rio (grande do none)conquistou outro (de janeiro)

e novos mares...

porque desvendouaos meus olhos de meninaos pescadores e rendeirasdas praias do Nordesteas vaquejadas do serrao

... e tanto matS

A todos que, de mUltiplas (ormas, direta ou indiretamente,deram sua ajuda para a realizas:ao deste rrabalho, em quaJ­q uer de suas etapas,

minha gratidao.

5

Sumario

Prefiicio ..

lntrodu(ao

Capitulo I - EXAMINANDO PRESSUPOSTOS:A RECIAO NORDESTE

11

13

Os Conceitos de Regiao e Regionalismo . . . . . . . . . .. 18

o &gionalismo Nordestino e a Constitui(ao do Nordeste comoRegiiio . . . . . . . . . 21

• As Provincias do None ..... 22

• A Casa Grande e 0 Cangac;:o 25

• Dois Brasis ou Nenhuma Regiao 28

Regionalismo Hoje 31

• Li~o de Casa . ., . . . . 32

• Um Exemplar da Academia 34

• Caso de Separa~o? 37

• Fala, Deputado! ... 43

7

Resgatando 0 Nordeste

Capitulo II - QUE FAZ SER NORDESTINO:EXAMINANDO HIP6TESE5.

47

Os Referenciais Politico-Territoriais e 0 Dinamismo darConstru(oes de Identidade . . . . . . . . . . . . . . 51

• Nordestino: Nascimento ou Vivencia? .... 52

Caminhos de Perceber e Pensar 0 Mundo Social: Identidadecomo Representa(iio 57

• Revendo Conceitos: Simb61ico e Representa.yao 57

• Diretrizes Sociais do Pensamento . . . . . 61• Classifica.yao: Ordenamento e Qualifica.yao . . 64• Jogo de ReconhecimentolJogo de Poder 67

As Duas Dire(oes do Jogo de Reconhecimento e os ProblemasMetodo16gicos 71

• Identidade: Materialidade ou Auto-representa.yao? 71• Estrategias de Manipula.yao de Identidades 76

• Por urn Tratamento da Identidade 78

Capitulo III - ANALISE EMP/RICA: 0 JOGO DERECONHECIMENTO NO CASO ERUNDINA

Algumas Considera(oes Metodo16gicas . . . . . . . 84

o Eixo Politico-Partiddrio 87

• Esquerda/Direita: Limites Problematicos 88

• "Valente Sim, Comunista Nao" . . . . . 90

De Mulher a Nordestina: da Candidata do PT aPessoade Erundina . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

• Who is Erundina? 94

• 0 "Jegue de Tr6ia" X 0 Sertanejo Fone 99

8

A /denticlade Nordestina como Eixo de Acusariio ..• "Paulo Francis, de Nova York, Esculhamba

Parafba PT" .

101

102

• Varias:6es sobre urn T ema: a Invasao dosNordestinos 104

• Q Preconceito contra os Nordestinos . 108

Mulher e Nordestina: /ncompetencia ou Trunfi? 114

• A Equas:ao Pobre/Brega/Incompetente 114

• Revenendo 0 Jogo: 0 Qucra Lado da Moeda 117

• Q Jogo de Identidades na Exp1icas:ao do Voto 120

A /mprensa cia Parafba: 0 Discurso do Orgulho .... 123

• Antes de Mais Nada, Somos Todos Nordestinos 125

• Q Sacerd6cio de Erundina e "Todos pelos Pobres" 129

• Mulher Nordestina X Mulher do Povo . . . . 132

"Jdentidade de Classe'~' um Buraco Negro na /mprensa? 135• Q Pobre, 0 Povo e 0 Trabalhador 135• Semelhans:as e Distins:6es: em Jogo a Questao

de Classe . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138

Nas Pdginas dos fornais, Afinal, Quem eErundina? 141

• Q Interesse em Perceber 142

• Representas:6es de uma Mesma Matriz .. 145

Capitulo IV - EM BUSCA DE UM CONCE/TO DE/DENT/DADE PARA AS SOC/EDADES COMPLEXAS

Em Lugar do ldentico, 0 Semelhante . . . . . .

• Em Questao: Identidade, Identificas:ao,Homogeneidade . . . . . . . . . . . .

A Experiencia cia Urbis Moderna e as ldentidades

• Identidade Social e Identidade Pessoal

9

151

155

158

161

Modos de Ser e "0 Modo» de Ser

Conciusiio . . . . . . . .Referincias Bibliograficas

10

164

167172

Prefacio

o trabalho de Maura Penna dispensa, a rigor, prefacios. A clarezade seus argumentos e a montagem muito bern articulada dos capftulosdeste ensaio facilitam sobremaneira 0 exerdcio da leitura. Mas isso,como sabemos, nao e tudo na estrutura e qualidade de urn livro. AUniversidade como instituiyao, em todo 0 mundo, tern sido fabrica,lamentavelmente, de milhares de teses "bern feitas" sobre 0 vazio. Istoe, temos nos exaurido na determinayao de metodos e tecnicas precisos,na consrruyao de modelos quase perfeitos, mas continua faltando 0

essencial: urn born assunto.

Maura Penna foi exrremamente arguta e feliz na escolha do tema.Este e urn livro que dari pano para manga porque tern assunro, e muito;porque 0 leiror reconhecera logo os motivos da tese e as raz6es doverbo. A aurora revitaliza 0 panorama algo m6rbido das ciencias sociaisbrasileiras, em particular da sociologia, com uma pesquisa em que seenrrelayam de modo equilibrado a discussao te6rica sobre a questao dasidentidades sociais e a analise empfrica sobre discursos produzidos naimprensa quando da hist6rica campanha eleitoral que surpreendente­mente conduziu a mulher, paraibana e socialista Luiza Erundina apre­feitura da maior cidade da America do SuI, em novembro de 1988.

Em plena crise generalizada dos paradigmaS dominantes nas cien­cias humanas, entre eles 0 conceiro 16gico-absrrato e positivista de iden-

11

tiddde, Maura Penna preferiu, sabiamente, recorrer a perspecriva maisanalogica, trabalhando na fronteira de sentidos entre identidade pessoale identidade social, entre 0 jogo dos interesses, do poder polftico-ide<rlogico e 0 jogo do reconhecimento, entre a materialidade e as repre­sentas;6es simbolicas da vida social. Este livro trata da condis;ao da mu­lher, sem ser restritamente feminista; fala de uma conjuntura polftica

especial e decisiva da historia contemporanea do Brasil, sem ser espe­cificamente uma anilise de ciencia politica; examina, afinal, a complexaquestao do regionalismo, sem se fixar simplesmente num estudo deregiao.

Atualizado no plano nacional e internacional da bibliografia, 0que faz ser nordestino e urn alento para os que acreditam no pape! in­substitufve! da universidade publica como lugar da crftica cultural per­manente e, em especial no domfnio das humanidades, como espas;oprodutor privilegiado de uma imaginas;ao sociologica vigorosamente dig­na deste nome.

Para mim, a merecida e urgente publicas;ao deste trabalho oferecemotivo de grande contentamento intelectual. Tive a honra de orientarMaura Penna no Programa de Mestrado em Ciencias Sociais da Uni­versidade Federal da Parafba, no perfodo 1986-1990. Ela foi dessasorientandas que se pede a Deus: aplicadfssima, trabalhando incansave!­mente nas condis;6es adversas de uma regiao periferica, com alto graude autanomia devidamente calibrada pe!a autocrftica. A Associas;ao Na­cional de Pos-Graduas;ao e Pesquisa em Ciencias Sociais (ANPOCS),ao conceder-lhe mens;ao honrosa pe!a dissertas;ao em concurso serio econcorrido, nao fez mais do que reconhecer, a justa tftulo, a qualidadeda pesquisa dessa verdadeira colega, cuja dedicas;ao a pesquisa socialpromete-nos ainda muitas frutos.

Por ora, basta ler com atens;ao 0 que Jaz ser nordestino. Este des­comunal esdndalo chamado Brasil ressurgid. com densidade e ironiadessas paginas. A sociologia esta salva. Enos?

Francisco Foot Hardman

Instituto de Estudos de Linguagem/UNICAMP

Campinas, junho de 1992

12

Introdu~io

As questoes re1ativas a idemidade social sao complexas, en­volvendo processos psicol6gicos, cognitivos e sociais. Localizan­do-se na intersec;ao do individual e do coletivo, recolocam 0 pro­blema te6rico da aniculac;ao entre identidade pessoal e identidadesocial - coletiva, ou que tern por referencia urn grupo social.Tratada em contextos te6ricos diferenciados por diversas discipli­nas - psicologia social, psicanalise, sociologia, amropologia, se­miologia, fUosofia etc. - a identidade constitui-se em urn campode trabalho multidisciplinar, que talvez apenas pdo interclmbiode diferemes enfoques e contribuit;6es possa ser eficazmente des­vendado.

Existem hoje, nas ciencias sociais, inUmeras definit;oes e em­pregos diferenciados da noc;ao de idemidade. Urn primeiro examede estudos que tratam da quest3.o 1 revda-nos que, de urn modogeral, nao se dispoe de urn quadro conceitual definido - excec;ao,

I. Ver, entre ourros, Da Mana (1983,1986); Velho (1985a, 1987) e Freitas (1985).

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talvez, do campo espedfico da identidade etnica, onde a concen­trac;:ao de diversas pesquisas tern firmado alguns elementos te6ricosbasicos.

Nao apenas em seus usos do senso comum, mas tam bernna produc;:ao cientifica, e grande, portanto, a diversidade (e mesmoambigliidade) no emprego do rermo identidade - e especifica­mente quanto a que se refere na pratica social. A isto soma-se,no ambito das ciencias sociais, a discussao sobre a validade dessacategoria, onde a pr6pria existencia de alguma realidade que cor­responda a ideia de identidade e posta em duvida. Este questio­namento foi, certamente, impulsionado pe!o posicionamento deLevi-Strauss, ao encerraro seminario multidisciplinar sobre 0 tema,por ele dirigido em 1974-75:

... "a identidade e uma especie de foco virtual ao qual nose indispensavel referir para explicar certo numero de coisas,mas sem que tenha jamais uma existencia real. (...) sua exis­tencia e puramente te6rica: e a existencia de urn limite aoqual nao corresponde, na realidade, nenhuma experiencia".(Levi-Strauss, 1981:369)

Nesta mesma trilha, Cunha encerra 0 seu trabalho, em quea questao da identidade etnica e urn eixo central, considerandoque nada garante a existencia empirica da identidade:

"A identidade, tanto a pessoal quanto a de urn grupo, saopressupostos metodol6gicos; sao a priori, sem os quais seriaimpossive! classificar e entender os dados hist6ricos (...). Con­dic;:ao de intel igi bilidade, de coerencia, de homogeneidade"(Cunha, 1985:209).

Se Levi-Strauss nos alerta para a necessidade de descartar aidentidade como uma entidade dotada de existencia pr6pria, naose pode negar que ela e, na vida cotidiana, urn referencial para aperceps;ao do social e do pr6prio individuo, enquanto ideia ounoc;:ao que permite perceber 0 mundo e apreende-Io como dotadode sentido. Enquanto tal, acreditamos que meres;a e deva ser tratada

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como objeto de estudo, e portanto nos alinhamos, neste debate,com 0 posicionamento de Brandao, de que nao se trata de eliminarconceitos e elementos te6ricos que, apesar dos riscos, sao aindavalidos, no sempre provis6rio quadro de nossa capacidade de ex­plicar:

"Trata-se de submeter 0 seu sentido epistemol6gico e 0 valorconcreto de sua aplica<;ao a situa<;6es de pesquisa e a umacdtica sistematica" (Brandao, 1986: 164).

Nesta perspectiva situa-se 0 objetivo ultimo deste trabalho,que, dentro de seus limites, procura resgatar 0 conceito de iden­tidade, tendo em vista particularmente 0 estudo da questao nassociedades complexas. Para nao realizar essa reflexao em abstrato,escolhemos 0 tema "0 que faz ser nordestino". Na analise domaterial jornallstico do pedodo imediatamente subseqUente aelei­<;ao de Luiza Erundina de Souza, em novembro de 1988, para aPrefeitura de Sao Paulo, essa questao dirige-se, especificamente,ao modo como a identidade regional e utilizada no jogo de atri­bui<;6es de identidades.

o nosso esfor<;o, portanto, e em desvendar os mecanismosque definem "quem e quem", no campo de intera<;ao social.

15

• a I UOExaminandopressupostos: aregiaoNordeste

"Esta e uma das faces do Nordesteque chega as plagas do SuI. A face dadesolas;ao. Do sofrimemo. Da pobreza.Do atraso econ6mico-social. E chega deforma variada: na sfmese da poesia. Nolamemo do baiao; na magia multicoloridada televisao; ou na voz polltica debil dequem aparemememe sempre teve mals 0

que pedir do que oferecer a grandeza do,

paIs.

"A outra face e a da terra amena.Do tr6pico sedutor, que amolece 0 animoe exacerba os sentidos. 0 Nordeste para­disfaco, terra de desempregados mas queretempera, como estas;ao de ferias, 0 can­sas;o do trabalho."

Roberto Magalhaes, palestra em Sao Pau­lo, 1986.

(in: Magalhaes, sid: 133)

17

Ao colocar a questao basica "0 que faz ser nordestino", par­timos da premissa de que 0 Nordeste, hoje, "existe". Existe en­quanto referencial disponfvel que auxilia a dar sentido ao mundoe as experiencias de vida, no ambito da sociedade brasileira. Estepressuposto e em si problematico, pois se tomarmos 0 Nordeste(ou qualquer omra regiao) como se configura no momenta atual,juridicamente instituido, estarao sendo relegados todos os proces­sos hist6rico-sociais que 0 tornaram "natural" e "real" para n6s.

Faz-se necessario, ponanto, resgatar em sua complexidade a"existencia" do Nordeste, desvendando os processos de constitui­<;:ao da regiao, 0 que passa necessariamente pelos efeitos da a<;:aodo Estado, dos processos economicos e do regionalismo nordes­tlno.

Os Conceitos de Regiao e Regionalismo

Enormes dificuldades cercam nao apenas a delimita<;:io dosespa<;:os ou territ6rios regionais, como a pr6pria conceitua<;:io deregiao, que efoco de "disputas" no campo ciendfico. Nao havendo

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consenso, diferentes conceps;oes levam a demarcas;oes distintas.Ha conceituas;oes que refletem uma abordagem do espas;o emi­nentemente empfrica, em que as "regioes naturais" correspondema pors;oes do espas;o individualizadas, "com personalidade pr6pria",ou seja, pecuJiarizadas por suas caracterfsticas - visao que sem

duvida depende de que tras;ossao eleitos e priorizados para ca­racteriza-Ias. Outras levam ate 0 quase desaparecimento do con­ceito, dentro de uma 16gica formal que permite definis;oes mol­dadas conforme os interesses do pesquisador - 0 modelo da"regiao analftica" (cf. Costa, 1988:17).

Embora em abordagens distintas, 0 carater polftico do con­ceito de regiao e enfatizado por diversos autores (entre outros,Oliveira, 1985), com base nas re!as;oes entre espas;o/Estado/capitaJ.Por urn lado, a organizas;ao da maquina estataJ moderna em basesterritoriais e urn "produto hist6rico da natureza do poder estataJ"(Markusen, 1981 :95). Por outro, atraves da demarcas;ao dos di­versos Jimites pol ftico-administrativos, 0 Estado regula as relas;oesJ nternas e externas.

Por sua vez, 0 regionalismo pode ser considerado como 0

processo que torna 0 espa(o significativo. Certas abordagens enfo­cam a regiao enquanto experiencia, ou seja, devendo ser captada"onde ela existe, vista pelos homens", distinguindo-se "por certasrepresentas;oes na perceps;ao dos habitantes e dos estranhos" (Cos­ta, 1988:20). Embora a enfase desta conceps;ao seja a perceps;aosubjetiva, traz indicas;oes que apontam 0 pape! do regionaJismoao tomar a regiao socia/mente visivel, criando-Ihe uma forma derepresentas;ao difundida e aceita. A regiao Centro-Oeste, por exem­plo, nao produziu urn discurso regionaJista com a constincia e aprojes;ao do nordestino, e nao e correntemente tomada como re­ferencial para atribuis;oes de identidade. Ja 0 movimento regio­naJista gaucho vincula-se as fronteiras do Rio Grande do Sul, enao as da regiao Sui (cf. Oliven, 1984).

A questao do gauchismo pode ser considerada regional namedida em que "a paJavra regiao supoe uma parte integrante de

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urn conjunto", 0 que depende da escala empregada. No entanto,o Estado-nayao permanece como referencia Ultima, por ser "aunidade espacial mesrra" de nossa epoca e 0 agente de demarcayoesterriroriais (Britto, 1986:29). As fronteiras regionais (inrernas) saomenos claras que as nacionais (externas) devido, tambem, a suamaior mobilidade hist6rica e amultiplicidade de Jimites possfveis,conforme os interesses instirucionais ou dos movimentos sociais.Diversos 6rgaos de planejamento criam suas pr6prias regionaliza­yoes: sao distintas as demarcayoes do Nordeste pela Superinten­dencia de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), pelo 1ns­tiruto do Ayucar e do Alcool (IAA) ou 0 Depanamento Nacionalde Obras Contra as Secas (DNOCS), ou ainda 0 recone dassub-regioes, de acordo com a ayao do Estado via governos estaduais(Martins, 1985:20-23).

Se, sobre as demarcayoes geopoUticas estabelecidas pelo Es­tado, 0 regional ismo, sob determinadas condiyoes s6cio-hist6ricas,di urn significado peculiar ao espayo da regiao, reafirmando-oenquanto urn referencial de identificayao, regiiio entao se explicitacomo urn conceito que, fundado sobre urn criterio territorial ­espacial e fisico, ponanto -, inclui urn plano simb6Jico. 1sto ebastante evidente na definiyao proposta por Costa (1986), onderegiao e:

"... urn espayO (nao institucional izado como Estado-nayao)de identidade ideol6gico-culrural e representatividade pollti­ca, aniculado em funyao de interesses espedficos, geralmenteeconomicos, por uma frayao ou bloco 'regional' de c1asseque nele reconhece sua base territorial de reproduyao" (Costa,1988:25).

Entendemos que a identidade ideol6gico-cultural e a repre­sentatividade polftica que especificam 0 espayo como regional sao"construfdas" pelo regional ismo, Sao fruto de seu trabal ho de "cria­yao e sustentayao de determinados significados sociais" (p. 26).Dessa forma, a concepyao de regiao respalda-se c1aramente noregionalismo, enquanto urn "processo social".

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Este mesmo procedimento - tomar 0 regionalismo comoeixo de definic;ao da regiao - e encontrado tambem em Markusen(1981), de uma forma bastante peculiar. Criticando a reificac;aodo conceito de regiao na literatura, quando definido como unidadeou classe economica, a autora aponta "duas possibilidades de de­fi n ic;ao":

a) 0 uso do adjetivo regional"para qualificar outras categorias"- como desenvolvimento regional -, pois "isto subordina 0

espacial ao social";

b) 0 conceito de regionalismo, enquanto "a adoc;ao de umareivindica~ao territOrial por urn grupo social" (Markusen, 1981:64-65).

o pr6ximo passo e a busca da especificidade do regionalismo.Para tanto, Markusen (1981) examina os "conjuntos adicionaisde institui~6es que, junto com a produc;ao, govemam os relacio­namentos dentro da comunidade humana" (p. 66), concluindoque nem os aspectos do modo de produc;ao ou do modo dereproduc;ao, da populac;ao, nem os elementos culturais, mesmo queterritorialmente diferenciados, sao suficientes por si s6. A definic;aode regionaJismo previameme apresentada e especificada pdo ca­riter polftico da reivindicac;ao, que se volta "contra urn ou muitosmecanismos do Estado" (p. 83). E desse modo 0 regionalismo ereposto sobre 0 conceito de regiao:

"... nem todo territ6rio ou unidade polftica constitui umaregiao. A existencia de uma ou mais fontes de diferenciac;aoem tomo da qual a luta regional se forma, potencial ourealmente, e uma condic;ao suficieme" (Markusen, 1981 :96).

o Regionalismo Nordestino e a Constituirao do Nordestecomo Regiao

No caso em estudo, ebern clara a inter-rela~o entre a pro­gressiva delimita~ao do Nordeste e 0 desenvolvimento de uma

21

"ideologia regio nal ista", enquanto "sistema aniculado de repre­senta~oes do espa~o" (Silveira, 1984: 16).

"... no sentido mais corrente na literatura, na opiniao publ icae nas polfticas e programas governamentais, [0 Nordeste]somente e reconhedvel a partir de meados do Seculo XIX,e sobretudo neste seculo." (Oliveira, 1985:32.)

o marco tanto da forma~ao das regioes no Brasil quanto daconfigura~ao do regionalismo nordestino situa-se no seculo XIX,perfodo de expansao do capitalismo em nfvel mundial e conse­qUentemente de transforma~oes no espa~o interno. Isto evidenciao vfnculo de ambos com 0 Estado nacional, cujas fun~6es polfticas,administrativas e institticionais entao amadureciam.

• As Provfncias do Norte

t justamente sobre este perfodo inicial da constru~o de urn

discurso regionalista com referencia ao espa~o da atual regiao Nor­deste que se debruqa 0 estudo de Silveira (1984), essencial paraa compreensao da questao. A aurora mostra que, ate 0 seculoXIX, a percep~o de espa~o da c1asse dominante regional era es­sencialmente estadualista, ji que referida ao controle que tinhasobre a maquina estatal, territorialmente Jocalizada nas provfncias(ou estados). A anicula~o do espa~o come~a a delinear-se coma crise do a~ucar na segunda metade do seculo XIX, quandocomes:a a surgir urn discurso defendendo, junto ao governo im­perial, os interesses das Provfncias do None - enquanto urnbloco diferenciado e contraposto a urn ourro, 0 SuP. Emboraessa primeira delimita~aodo espa~o regional do None seja bastanteelastica para abranger do Amazonas aBahia, 0 exame desse "dis-

1. Referimo-nos a Sui (au a Sudeste, mais adianre), com relas;ao a nommclatura dodiscurso, c nao a espas:os distinros, como hojc sc configuram na rcgionalizaS::io cs­cabelecida pdo !BGE.

22

curso oficial regionalista" (empreendido por Silveira, 1984) evi­dencia que 0 que se descreve e a zona agroexportadora dependentedo mercado de Recife, especificamente da cana - e por vezesdo aJgodao -, e portanto limitada ao espac;:o do ceara ate Sergipe.

A propria denominar;:ao de Provlncias do Norte traz a marcadas unidades politico-administrativas, mas nela ja se encontra urnelemento basico do discurso regionalista: uma homogeneizac;:ao(simb6Iica) do espar;:o, tecida sobre a ideia de crise. E esta crisee analisada por Silveira (1984) em dois niveis, ja explicitados nosubtitulo de sua obra: a consciencia - 0 discurso, a percepc;:aopossivel do real - e a existencia, aqual a primeira e referida ­a crise polftica e economica concreta, a desigualdade entre as re­gioes brasileiras naquele momento hisr6rico. A frac;:ao agraria re­gional tern consciencia tanto da perda de valor das Provincias doNorte no espac;:o nacional quanto de que a crise, embora atingindodiferencialmente os seus varios setores, afeta 0 regime de trabalhoe as relar;:oes de c1asse que Ihes interessa preservar. A percepc;:ao ede que a crise economica (falta de capital, de fmanciamentos, deinfra-estrutura de transportes etc.) deve-se ao descaso do governocentral, que favorece as provfncias do Sill - onde se desenvolvea lavoura cafeeira. Configuram-se, assim, dois outros elementosfundamentais do discurso regionalista: a oposir;:ao ao SuI, enquanto"espac;:o-obsraculo", e ao Estado, interlocutor ao qual sao dirigidasas reivindicac;:oes. No entanto, 0 Sill-obstacillo e considerado, porseu "equilibrio", como modelo para veneer a crise, sendo outramatriz vigorosa do pensamento regionalista (presente com cons­tancia em reelaborar;:oes posteriores) a visao das desigualdades es­paciais como desequilibrios. Ao mesmo tempo, 0 discurso e sau­dosista, perseguindo uma suposta harmonia do passado.

Se por urn lado 0 discurso evidencia diferenr;:as internas, poroutro sao utilizados diversos mecanismos para promover a homo­geneizac;:ao: apela-se a urn passado comum, configurando 0 espar;:odo Nordeste como 0 berc;:o da nacionaJidade, de modo que a luta .contra a crise possa ser vista como uma luta em defesa dos interesses

23

patrios; proclama-se a superioridade da regiao sobre outros espa~os

(por vantagens hist6ricas, economicas/comerciais e de ordem ffsica)e, por fim, atraves de uma "formaliza~o auto-compass iva", apre­senta-se 0 espa~o em conjunto enquanto viti rna. Ao lado destafetichiza~o da regiao, transformada em sujeito do discurso, surgemos "nortistas", todos igualados e unidos diante da crise (cf. Silveira,s/d:5).

Esses recursos simb6licos, que marcam 0 discurso regionalistadas fra~6es agrarias da c1asse dominante das Provincias do Norte,de!ineiam a regiao enquanto categoria geogcafico-territorial "ex­plicativa" do real, tendo como efeito:

a) criar uma coesao com a c1asse dominada regional, umavez que, sendo a natureza das rela~6es sociais, politicas e econo­micas transferidas para a regiao enquanto entidade, sao ocultadasas divis6es sociais, e a no~o de crise age como mobilizadora,pretendendo uniflcar, diante do perigo, interesses e destinos;

b) estabelecer uma coesao com as outras fra~6es da classedominante, na medida em que a sua pr6pria domina~ao em nive!regional nao e explicitada;

c) aparentar uma desarticula~ao com as demais fra~6es daclasse dominante (especial mente aquelas vinculadas a lavoura ca­feeira), e por tal refor~r 0 mascaramento de sua pr6pria domina~ao

(Silveira, 1984:42-43).

Por tudo isso, 0 uso da categoria regiiio, assim como 0 pr6priodiscurso regionalista, e caracterizado por Silveira como ideologico,no duplo sentido de uma forma de conhecimento e de domina~ao

(1984:39).

o processo de consolida~o do regionalismo nordestino pros­segue, entrecruzando-se 0 discurso e as a~6es oficiais de demarca~ao

do espa~o. Atraves dele, e construida uma determinada forma dea(re)presenta~ao da regiao e, de certa forma, ja que se trata detomar reconhecida e legitimada esta visao do espa~o, constitui-se

24

a pr6pria regiao. Apresentaremos os principais momentos desseprocesso.

• A Casa Grande e 0 Cangac;:o

Como mostra Silveira (1984:21-29), e nas decadas de 20/30de nosso seculo que 0 discurso regionaJista e reelaborado de formarna is plenamente articulada, atraves de toda uma produc;:ao inte­lectuaJ vinculada aos grupos dominantes, onde se destaca, primei­ramente,o movimento regionaJista encabec;:ado por Gilberto Freyree, ainda, a obra classica de Djacir Menezes, 0 Outro Nordeste(1937), enquanto porta-voz do Nordeste algodoeiro-pecuario.Marcadas pelo momento hist6rico de sua produc;:ao, a obra dessesdois autores conserva a matriz originaria que explica a desigualdadepela oposic;:ao de uma regiao em crise a outra em progresso, de­nominadas Nordesre e Sui, aquele compreendendo, nesse mo­mento, a faixa do Maranhao a Alagoas.

Em suas diversas obras, Freyre delineia urn Nordeste que,ultrapassando os limites territoriais polftico-administrativos, ganhaunidade enquanto uma sociedade patriarcal e agraria, caracterizadapor elementos ideaJizados (com saudosismo) da economia ac;:uca­reira em seus tempos aureos. Especificamente no Manifesto Re­gionalista de 19262, a regiao e concebida como a unidade daorganiza00 nacional, de modo que, ao mesmo tempo em que seopoe a organizac;:ao estadualista da Republica Velha, « carrega" asreivindicac;:oes da classe dominante regional, passando pela crfticaao cenrralismo politico que a discrimina e prejudica.

No entanto, se a conservac;:ao dos vaJores regionais e tradi­cionais do Nordeste e urn dos eixos tematicos do Manifesto, esses

2. Cf. Silveira (1984:22.24) e Cavalcami (1988:568).o referido rex to nao deve ser visro puramenre como ral, ja que ele pr6prio afirmaa exisrencia de um Movimenro Regionalisra do. Recife e, ao que COn5ra, foi lidono Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo - Recife, 1926 (Oliven.1986:69).

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valores sao tornados nacionais, em oposiyao aos do Sui (especifi­camente Rio e Sao Paulo), marcados pela modernidade e pela"novidade estrangeira" (Oliven, 1986:70).0 percurso do regionala nacional passa pela defesa do "popular", incorporado enquantoautentico e tradicional, de modo que 0 processo de homogenei­zayaO interna e reforyado, por sobre as diferenyas de c1asse. Fi­nalmente, tal como no discurso regionalista do seculo XIX, as

. .... '- - - . , . .categonas narao e regtao nao se opoem, pOlS as pratlcas e 0 proJetopolItico sao nacionalistas, e nao separatistas, ja que se apela ao~stado para a solu~o da crise.

Por sua vez, Djacir Menezes expIicita disparidades internasao trayar 0 Outro Nordeste, correspondente as areas secas da Bahiaao Ceara: 0 espayo economico da agropecuaria, marcado "pelaconfigurayaO sociol6gica do banditismo e do cangayo e pela or­ganizayao polftica corone1fstica", onde ganha maior dimensao 0

discurso da seca (Silveira, s/d:7). Esta obra vence alguns problemasna abordagem da regiao, uma vez que a evidencia como produzidahistoricamente, enfocando-a em suas articulayoes externas e in­ternas - os dois Nordestes no quadro do capitalismo nacional- e apresentando uma crftica as oligarquias regionais e ao pro­blema das secas e do exodo rural. No entantO, seu projeto econservador, na medida ern que voltado para a manutenyao daestrutura de poder (Silveira, 1984:25-26).

Dessa forma, as obras de Freyre e Menezes sao consideradas,por Silveira (1984:27), como de mesma "matriz ideol6gica auto­ritirio-conservadora, de base oligarquica". Por outro lado, os dis­cursos de ambos, concebendo 0 Nordeste como uma regiao emcrise, contribuem para a e1aborayao de uma "ideologia do atraso" ,que se apresenta, contraditoriamente, "ora como a apologia daCasa Grande, ora como a denuncia da seca e da fome" (Perruci,1984:27).

Os discursos regionalistas dos dois Nordestes entrecruzam-see ganham novos elementos no quadro das transformayoes polfti­co-economicas, encontrando ainda outros intelectuais para reela-

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bora-los. A reestrutura~o do aparelho de Estado, a partir do Mo­vimento de 1930, corresponde uma maior interven~o na divisaoregional do trabalho: a confedera~o oligarquica da Velha Repu­blica esta falida, assim como 0 modelo economico agroexportador(a crise de 29 ja desorganizara 0 espac;:o cafeeiro); a RepublicaNova vai investir em um projeto industrializante ("substitui~o

de importac;:6es"), que mais uma vez "favorece" 0 Sui - seunucleo espacial. Novamente e solicitada a a~o do Estado, nosentido de propiciar a manuten~o da estrutura fundiaria, dasrelac;:6es de produ~o e da estrutura de poder - as bases da (antiga)organizac;:ao do espac;:o regional (Silveira, sid).

A cria~o do Instituto do Ac;:ucar e do Alcool (lAA), noinfcio da decada de 30, revela a interven~o do Estado na regiao.Se, por urn lado, aparentemente responde a reclames da c1assedominante ac;:ucareira, nao the traz, de fato, condic;:6es de recu­perac;:ao e expansao, pois, mantida a mesma estrutura de produ~o,

o ac;:ucar nordestino nao consegue competir com 0 produto pau­lista, ja com caracterfsticas. de agroindustria. Assim, embora con­servando a domina~o em nivel regional, os proprietarios nordes­tinos tern sua posi~o economica e polftica no plano nacionalcada vez mais enfraquecida. Por sua vez, distintamente, 0 grupoalgodoeiro-pecuario consegue encampar e controlar 0 6rgao federalque, a prindpio, deveria intervir na organiza~o de seu espac;:o ­o DNOCS (nascido IFOCS - Inspetoria Federal de Obras Con­tra as Secas, na primeira Mcada deste seculo) -, colocando-o aservic;:o de seus interesses, de modo a manter as condic;:6es dereprodu~o da estrutura economica e social (cf. Oliveira, 1985:51,68-69).

Como consequencia tanto do quadro polftico-economicodeste perfodo quanto da articu1a~o e proje~o do discurso regio­nalista, "a 'questao regional' aflora aconsciencia poJ(tica brasileirade forma mais preocupante: prova disso e a proposta de umaclassificac;:ao do espac;:o no pafs, no ambito do Conselho Nacionalde Geografia" (Silveira, 1984:28).

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• Dois Brasis ou Nenhuma Regiao?

A necessidade de intervir nos espayos regionais para prom overo projeto capitalista no pais vai resultar em formas governamentaisde planejamento. 0 problema dos desniveis regionais ganha 0

interesse da sociedade brasileira, impuJsionado ainda mais pelorecrudescimento das tensoes sociais no Nordeste, projetadas atravesde diversos movimentos populares (cf. Matos, 1986:26 - entreoutros). Nos anos 50/60, ultrapassando 0 discurso regionalistados grupos agririos locais, 0 Nordeste torna-se "questao nacional".A ideologia desenvolvimentista encontra expressao na teoria dasociedade dual, que tern em Celso Furtado 0 seu grande interprete,e cujas anal ises caracteriiam "dois brasis", sendo 0 espayo do N or­deste homogeneizado enquanto "area de subdesenvolvimento", ar­caica e agraria. Para a superayao dos "deseq uilfbrios" regionais,que ameayam a "unidade nacional", e proposta a utilizayao doplanejamento para a promoyao do "progresso". Dessa forma, aayao do Estado consolida-se em novos atos de demarcayao daregiao e na criayao da SUDENE como seu 6rgao de intervenyaoplanejada.

Neste ponto, vale salientar que, embora 0 Nordeste seja a(re)presentado como urn conjunto homogeneo, marcado por ca­racterfsticas 'como a crise, ou agora, na versao dualista, pelo sub­desenvolvimento, sua realidade e bern rnais complexa:

"... uma sociedade C..) permeada por interesses e repre­sentayoes contradit6rias, cujo sentido de modernidade ja es­tava presente desde muito cedo. (...) 0 Nordeste antigo tam­bern esteve atravessado pelos elementos distintivos e marcasda sociedade urbano-industrial" (Hardman, 1988:66).

Apesar da tendencia interpretativa dominante na hist6ria daindUstria no Brasil, 0 processo de industrializayao foi, em suasorigens, descentralizado, tendo havido varias iniciativas no Nor­deste ainda no seculo XIX, algumas delas bastante imponantes.

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A corrente dualista - de uma nova matriz nacionalista, su­lista, c('m proposta industrializante - ira justificar a fundaryaoda SUDENE, para a qual contribui tam bern a matriz regionaJista,com as reivindica<;:6es de uma politica assistencialista por parte

das oligarquias nordestinas. Para a sua cria<;:ao em 1959, a de­marca<;:ao do Nordeste e mais uma vez alterada: da primeira divisaooficial, estabelecida pelo IBGE na decada de 40 (do Maranhao aAlagoas), passara-se ao Nordeste do "Polfgono das Secas" (em1951), que fundamentara a cria<;:ao do Banco do Nordeste doBrasil e que, excluindo 0 Maranhao, se estendia do Piau! aBahia,incluindo ainda algumas areas do norte de Minas Gerais; a re­formula<;:ao de 1959 volta a incluir 0 Maranhao (Silveira, s/d:l0).

Com a SUDENE, ganha novo rumo a articuJaryao das regioesentre si, ja alterada pelo intervencionismo do Estado a partir dosanos 30: a divisao regional do trabaJho e redefinida, integrandocada regiao ao mercado comum nacionaJ. Verifica-se a decadenciada maior parte das industrias regionais tradicionais, e a nova in­dustrializa<;:ao (via SUDENE) e marcada pela dependencia e com­plementaridade em rela<;:ao a indusuializaryao do Sul do pais (cf.Araujo, 1984 - entre outros). 0 espa<;:o economico nacionaltransforma-se.

Na decada de 70, a interven<;:ao do Estado intensifica-se, aomesmo tempo em que proliferam as crlticas aos resultados con­seguidos pela SUDENE. Surge, entao, nos meios academicos, umanova Jinha de abordagem da questao regional, chamada de visaoprogressista, que tern em Francisco de Oliveira sua "formwaryaomatricial"3. Na analise deste autor, as desigualdades regionais sao

3. Nos termos de Silveira (s/d:14).t: possive! apontar a "teo ria da dependencia" de Fernando Henrique Cardoso como,em certa medida, "antecessora" da abordagem de Francisco de Oliveira, par suascrfticas II formula,?-o dualista e pela concep,?-o de tkpm&ncia em fun,?-o da arti­cula"ao das economias locais com a mundial e da domina,?-o de classe (Silveira,1984:32-34).

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explicadas pela divisao internacional e regional do trabalho geradaspelo modo de produryao capitalista, que se desenvolve de formadesigual e combinada. Sua expansao levaria ahomogeneizaryao doespa~o nacional e ao desaparecimento das regioes (Oliveira, 1985).

Seguindo esta venente interpretativa, a "questao regional"passa a ser vista, por alguns autores, como "uma construryao ideo­16gica da classe dominante dentro do processo de realizaryao docapitalismo no Brasil" - e apenas isso: "mera ratica" e, ponamo,"urn falso problema cientifico e polftico" (Perruci, 1984:26, 30).No entamo,

"0 delineamento de regioes nao esimplesmente subjetivo, ba­seado na escolha de classes e outros grupos sociais nas regioes.o regionalismo nao existe somente na consciencia de seusproponentes, mas nas rela~oes polfticas objetivas existentesentre territ6rios e na existencia de opressao politica, econo­mica ou cultural que encontra expressao naquelas rela~oes

politicas" (Markusen, 1981 :86 - grifos nossos).

Apesar do alastramento das rela~oes mercamis e da consti­tuiryao de um mercado nacional, nao hi como negar que, mesmoarualrtlente, se conservam panicularidades regionais - no nlvelda existencia, e nao apenas da consciencia. Sendo assim, Silveira(1984) e Manins (1985) coincidem em suas cdticas ao enfoqueprogressista, apontando:

"-

a) a persistencia de desigualdades no espa~o nacional comoresultante da pr6pria concentraryao do capital; a permanencia dediferen~ tanto nos modos de vida (inclusive no imerior da classetrabalhadora) quanto nas formas de produryao material e simb6lica;

b) que 0 desenvolvimemo do capitalismo se di em urn duplomovimento de homogeneizaryao e diversificaryao:

"A homogeneizaryao do espa~o nacional (...) significa exata­mente, em termos teoricos: a generalizaryao das rela~oes ca­pitalistas de forma articulada, entre os virios espa~os (...) 0

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termo nacional deve ter a substancia de articula(iio de rela(oese nao de uniformizas;ao de suas formas..." (Silveira, sId: 16).

c) os problemas da abordagem progressista como decorrentesda falta, como base para a compreensao da regiao, de urn conceitoe1aborado de espas;o:

"Espas;o enquanto produyao-produto da relayao natureza ­sociedade. Espas;o enquanto expressao de historicidades in­corporadas na paisagem" (Silveira, s/d:16).

Isso tudo evidencia, ponanto, a persistencia da "quesrao re­gional" como fenomeno hist6rico-social e, por conseguinte, en­quanto objeto de estudo.

Regionalismo Hoje

o regionalismo nao se construiu e se expressou apenas atravesdos discursos de politicos, ou atraves de uma produyao intelectualque fornecia "embasamento cientifico" a formas de percepyao doNordeste e a reivindicas;6es da classe dominante regiona1. Cons­truiu-se e expressou-se ainda atraves de toda uma produyao liteciria(formal, de elite) - Jose Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Gra­ciliano Ramos, Jose Americo de Almeida, entre outros - queprocurava afirmar 0 Nordeste contra 0 Sul desenvolvido, buscandodelinear tras;os identificadores da regiao: 0 agrario, a pobreza, asecura (ou a decadencia do as;ucar), a linguagem. E, como observaFrancisco de Oliveira, esta literatura regionalista era por vezesrna is rica, captando as diversidades, a dinamica da regiao, do queoutras obras que pretendiam trac;:ar, com status de cientificidade,a hist6ria economica e social do Nordeste (1985:42).

Se a imagem dominante do Nordeste, hoje, e marcada portras;os que correspondem muito mais ao espas;o da economia dapecuaria - algodao (0 senao) do que ao espas;o da produyaoas;ucareira (a zona da mata), tal fato reflete, tambern a prepon-

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derincia polltico-economica que 0 grupo dominante vinculadoaquele espayo conseguiu ter, em relayao a frayao ayucareira, no­tadamente nas primeiras decadas de nosso seculo:

"A imagem do Nordeste, que as cronicas dos viajantes defins do Seculo XVlII e prindpios do Seculo XIX descreveramem termos da opuJencia dos 'bar6es' do ayucar (. ..) comeyoua ser substituida pela imagem do Nordeste dos latifundiiriosdo serrao, dos 'coroneis'; imagem rustica, pobre, contrastandocom ados sal6es e saraus do Nordeste 'ayucareiro'. Nesterastro e que surge 0 Nordeste das secas" (Oliveira, 1985:35).

Veremos como a imagem do Norde'ste como urn conjunto,vale dizer, enquanto regiiio, marcada pelas ideias de pobreza esubdesenvolvimento, se encomra hoje difundida - e ponamo"disponfvel" -, e como persiste 0 discurso regionalista, atravesdo exame de alguns exemplos de material diditico e jorna\(stico,e da produyao anfstica e academica.

• Liyao de Casa

A Enciclopedia Mirador, no t6pico "Brasil - divisao terri­torial", apresenta 0 Nordeste como uma das cinco grandes divis6es,com caracteristicas pr6prias:

"E a regiiio menos desenvolvida do pais, com populayao rela­tivamente densa mas muito pobre. A emigrayao de nordes­tinos abastece de mao-de-obra 0 restante do BrasiI"4.

o Nordeste como demarcayao do territ6rio nacional - reu­nindo os estados do Maranhao, Piaui, Ceara, Rio Grande doNone, Parafba, Pernambuco, AJagoas, Sergipe ,e Bahia - encon-

4. Perri, Serembrino e Mendes, Josue Camargo - "Brasil II". Enciclopldia MiradorInt~rnaciona4 vol. 4. Sao Paulo/Rio: Enciclopedia Brirannica, 1987, p. 1605 (grifosnossos).

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tra-se institufdo como uma das cinco macrorregioes tra<ra.das peloIBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatfstica. Destemodo, na maioria das vezes, e tornado como urn dado, sendoapresentado pelos livros didaticos como uma "realidade" prontae estabelecida. No entanto, embora pouco freqUente, existem ma­teriais diditicos para 0 ensino· bisico que procuram apresentarnao apenas 0 seu carater hist6rico, mas tambem as diferenciayoesinternas da regiao, incorporando abordagens crfticas mais recentes.E 0 caso de Secas no Nordestes, onde sao apresentadas, a1em dadivisao do IBGE, as subdivisoes do Nordeste, a demarcayao do"Poligono das Secas" e a divisao do Brasil em tres grandes com­plexos regionais (Amazonia, Nordeste e Centro-Sul), explicitandoo cariter construfdo destas demarcayoes:

"Existem varias divisoes regionais do Brasil e praticamentetodas e1as reconhecem 0 Nordeste como uma das regioesque compoem 0 espayo nacional. Mas os limites exatos daregiilo Nordeste nilo silo os mesmos em todas as divisoess regionaiS'(Ponela e Andrade, 1987:28 - grifos nossos).

Mais adiante, aponta como "0 fator que rnais distingue 0

Nordeste" diante das outras regioes 0 fato de "ser consideradocomo regiao problema", sendo reconhecido "como area de mar­cantes questoes sociais", devido ao "baixfssimo nfvel de vida",amplos fndices de fome e desnutriyao, a intensa emigrayao, e porter "uma c1asse dominante que concentra em suas maos parte,consideravel das riquezas" (p. 29). Se os tres primeiros fatoresapontados sao praticamente constantes nas visoes correntes doNordeste - e ja presentes no verbete da enciclopedia -, a ex­plicita~o das relayoes de c1asse internas a regiao, e a panir daf

5. Portela e Andrade (I987): da serie "Viagem pela Geografia" - material didaticocomplementar, para 1.0 e 2.° graus -, apresentam urn relaro de viagem feito poruma equipe de reportagem em 1983, no decorrer de uma das secas mais graves doseculo, intercalado com informac;:6es sobre a regiao. .

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da pr6pria seca como uma questao social, foge do padrao dasrepresenta<;6es e das manifesta<;6es regionalistas:

" ... a maior parte dos brasileiros pensa que a seca eo principalproblema do Nordeste (...).Porem, trata-se de urn exagero, pois 0 Brasil como urn todo(...) e subdesenvolvido e a maioria de seus habitantes ternurn baixo padrao de vida. Inclusive, os grandes problemasdo Nordeste - como a posse de terras, remunera<;ao muitasvezes abaixo do salario minimo etc. - ocorrem muito maisna Zona da Mata, onde nao existe problema da seca, doque no Serrao" (Portela e Andrade, 1987:31).

• Urn Exemplar da Academia

Ja no campo da produ<;ao academica, encontra-se 0 textodo pesquisador da Funda<;ao Joaquim Nabuco (Recife), Cl6visCavalcanti (1988). 0 auror parte da contesta<;ao da visao do Brasilcomo oitava potencia economica, para revelar parricularmente adiferencia<;ao do Nordeste:

"... seja 0 Brasil oitava ou sexagesima economia do mW1do,o fatoe que de nao pode ser considerado urn todo homo­geneo. Nele convivem tempos, espa<;os e reaJidades humanastao divergentes que se torna dificil concebe-lo co mo na<;ao ... "(Cavalcanti, 1988:567).

Atraves de inumeros dados estatisticos, relativos aeconomiae as condi<;6es de vida (habita<;ao, educa<;ao, saude etc.), contra­pondo a regiao ao conjunto do Brasil, mostra que se pode "afirmarque 0 Nordeste e urn Terceiro Mundo dentro do pais" (p. 567).Evidencia-se, deste modo, uma concep<;ao dualista: a oposi<;aoNordeste/Sudeste ganha as cores de uma oposi<;ao Nordeste/Brasil,de modo a explicitar 0 "colonialismo interno" e a relevancia daquestao nordestina em nivel nacional.

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"Celso Furtado tinha rmo. 0 problema magno do Brasil(...) reside na desigualdade exacerbada do sistema distributivodo pals, pelo qual, dentro dele, coexistem uma economia do­minante, central e uma economia dependente, periftrica, emmeio a rela~6es economicas que denotam visfveis formas de

explora~ao. Conflitos ocultos e, as vezes, abertos resultamdesse arcabou<;:o C..) [impondo] a necessidade de certas me­didas governamentais, as quais, se nao tomadas, podem com­prometer 0 pr6prio desenvolvimento economico e social do pais."(Cavalcanti, 1988:571 - grifos nossos.)

De certa forma, reaparece a diferencia<;:ao simb61ica em re­la~ao ao Estado e aos setores da c1asse dominante que 0 controlam,que Silveira (1984: 198) revelou com respeito ao discurso regio­nalista do secuJo XIX: 0 Estado e tratado como governo, e asfra~6es de c1asse como SuJ (ou Sudeste), urn espa~o-obstaculo.

Nao queremos, em nenhum momento, desconsiderar as de­sigualdades que persistem, de fato, no espa~o da atual regiao Nor­deste: os dados apresentados por Cavalcanti (I 988) ou por Andrade(I984) sao suflcientes para evidencia-Ias. Inclusive, ji foi apresen­tada nossa interpreta<;:ao de que a expansao do capitalismo nopais nao implica em urn processo linear de homogeneiza<;:ao doespa~o, mas sim na articuJa~ao de diferen~as. Dentro da (nova)divisao regional do trabalho, que se acelera com a transforma<;:aoda area da economia cafeeira em industrial, 0 Nordeste ganha 0

papel de reserva de mao-de-obra, fornecedor de materias-primase mercado de consumo para os produtos industrializados do Su­deste (cf. Oliveira, 1985:37 - entre outros). Sendo assim, comoaflrma Markusen (I981), 0 regionalismo niio e apenas urn atovolitivo ou de consciencia, pois tern sua origem em fontes concretasde diferencia~ao. Ponanto, Cavalcanti tern razao:

"Ha motivos C..) para se experimentar uma sensar;iio de regiiioexplorada no Nordeste' ...

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"A percepyao desse quadro e generalizada dentro da regiao,quer nos meios academicos quer nos polfticos, quer nos jor­nalisticos, quer no seio do pr6prio povo" (Cavalcanti,1988:569 e 570 - grifos nossos).

No entanto, tomando como eixo as teses da regiao explorada,do coJonialismo interno etc., a analise aproxima-se da reificayaoda regiao. Afinal, areas nao exploram areas, e portanto regioesnao tern rela'1oes: "quem as tern sao as classes e institw'16es polfticasnas na'1oes e regioes" (Markusen, 1981 :91).

Apesar de apontar manifesta'16es separatistas, com especialdestaque para a can'1ao "Nordeste Independente" (que sera ana­lisada adiante), 0 auror revela que 0 separatismo nao chega aconstituir urn projeto politico. Aqui, tambem, a categoria regiaonao se opoe a nar;do, e Cavalcanti, respaldando-se em GilbertoFreyre, mostra a procura do regional (daquilo "que e nordestinoem conjunto") como eixo para a constituiyao do nacional, paraem seguida apresentar 0 regionalismo como tra'10 cultural do Nor­deste:

"Essa procura [do que e nordestino em conjunto] e um dadoda cultura regionaL Ela esta presente no discurso de certaselites nordestinas e penetra no sentimento do povo" (Cavalcanti,1988:568 - grifos nossos).

A nosso ver, ao pretender estudar 0 regionalismo como urndado, urn fato social (de cultura), 0 autor esti de certa formacontribuindo para reativa-Io, reelaborando-o dentro da perspectivade toda uma vertente da cultura nordestina - mais especifica­mente de toda uma produyao formal regionalista que refor~ apercep'1ao da regiao como urn conjunto "com perfJ. pr6prio". Eesta produ'1ao, pelo lugar e papel dos intelectuais em nossa so­ciedade, contribui para a difusao desse "sentimento".

o uso de dados numericos e estatisticos para tra~r a grossomodo as distin'16es do Nordeste dentro do Brasil envolve 0 riscode encobrir possiveis diferen'1as entre camadas sociais ou mesmo

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entre localidades. 0 emprego deste tipo de dado e recorrente, delonga data, nos discursos politicos, mormente os que reivindicamrecursos junto ao governo central6. No entanto, com outro re­manejamento das estatisticas, seria possivel encontrar urn eixo deoposi~ao diverso - alem do "Nordeste x Brasil" utilizado -, ouate mesmo a reversao dessa rela~o, uma vez que a taxa de cres­cimento da regiao foi, nos ultimos 20 anos, 10% maior que amedia nacional (Vrya, 13/6/1990, p. 50).

Refutando a visao homogeneizada do Brasil, Cavalcanti(1988) acaba por enfocar desta forma a regiao que discute. Asc~iticas ao sistema distributivo do pais, em termos espaciais e re­gionais, nao se estendem a pr6pria regiao, internamente. Se os"indicadores economicos, como 0 da renda per capita, sao deso­ladores", s6 ganham a devida dimensao e significado social "quan­do se verifica que uma pequena minoria de sua popula~o vivenuma abastan~diretamente proporcional asua improdutividade"(Matos, 1986:51).

• Caso de Separa~o?

Passamos a analise de dois discursos "separatistas", emborade carater diverso:

a) 0 "Ponto de Vista" assinado por Marcelo Pessoa, na ocasiaovereador sem partido no Recife - "Vamos nos Separar do Sui"(Vrya, 16/12/1987, p. 122);

6. Ver Afi777lariio da Ptmambw:anidatk, que reune discursos proferidos por RobertoMagalhaes (sId) enrre os anos de 1983 e 1986, quando no governo de Pernambuco.Neles, observa-se a recorrencia de rrac;:os basicos-do discurso regionalisra e, ressal­vando-se os contexros hisr6ricos disrintos, as reivindica<yOes dirigidas ao Esrado na­cional mantem-se pr6ximas daquelas das Provincias do Norte: crediro, verbas eobras de infra-esrrurura; maior panicipayao no processo decis6rio nacional erc. Umaaparente renovayao disrintiva e a reivindicayao (expressa) de reesrruturayao fundiaria,sendo proposro 0 acesso 11. rerra para posseiros e lavradores.

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b) a canlYao "Nordeste Independente (Imagine 0 Brasil)", dedois poetas popuIares, Braulio Tavares e Ivanildo Vila Nova?

o primeiro texto e fonemente marcado pela interpretalYaodualista e a tese do colonialismo interno, sendo claramente deli­neados "dois brasis". Retoma-se a forte matriz regionalista ondea rela~o de explora~o/opressao se di entre espalYos:

"0 aguerrido nordestino, que suporta a desgra~ com dig­nidade, vive em estado de pemiria porque a area desenvolvidddo Brasil, ao sui cia Bahia, assim determinou" (Pessoa, 1987- grifos nossos).

Pela pobreza, pela explora~o e pdo sofrimento, em suma,pelo destino comum, a regiao anicuIa-se como urn conjunto naodiferenciado internamente. A rela~o com 0 Estado esta mais umava. ocuIta sob a ideia de governo e, especificamente neste caso,pela pessoa de urn presidente rambem nordestino e de cena forma,ponanto, "traidor". Assim, os problemas do Nordeste parecematribuidos a um ato volitivo dos governantes:

" ... 0 Palacio do Planalto, que deveria zelar pelo bem-estarde seu povo, nao planeja urn programa eficaz para fazer 0

Nordeste avan~r e nem pensa em combater a [orne porqueisto Faria 0 nordestino pensar. (...) E imaginar que essa con­di~o patetica a que somos presos continua a ocorrer numagestao em que 0 presidente da Republica tambem e urncabe~-chata ..." (Pessoa, 1987).

Por todo 0 rexto, e denunciada a discrimina~o dos nordes­tinos - tratados como um "povo menor", "sob a pecha de men-

7. A can~o foi gravacia por Elba Ramalho em 1984, no disco Do Jeiw que a GmuGosta, que teaz 0 aviso de proibi~o de sua "aecu~o publica e cidio-teledifusao",porque "vetacia pela Censura Federal". Nassar (1988) eefeee-se a"recence" revoga~o

cia proibi~o e rranscreve a Jetra completa. A frase "Imagine 0 Brasil ser dividido/eo Nordesto ficar independence" funciona como mote, finalizando cacia estrofe.Durante a analise que se segue, a can~o sera referida por seu titulo. Os grifos, nosteechos transcritos, sao nossos.

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digos" (recebendo esmolas do Sul e do governo), servindo de"macacos nos programas de audit6rio" e "mao-de-obra barata"para 0 SuI.

"Todo pernambucano e baiano apesar dos 839 quilometrosque separam Salvador do Recife8• E ate urn paraense, que edo Norte, vira paraibano, nurna afronta aos valores regionais.(. ..) Somos todos iguais na cabeya dos suIistas." (Pessoa,1987.)

As desigualdades entre as regioes, em prejuiw do Nordeste,estampadas no modo como 0 SuI 0 ve e trata, embasam a rei­vindicac;:ao separatista, nos dois textos:

"Ji que existe no SuI esse conceitoque 0 Nordeste e ruim, seco e ingrato,ji que existe a separafao de Jatoe precise torni-Ia de direito" (Nordeste Independente).

"... a Republica Federativa do Nordeste. Trata-se de urn rachaque jli existe 'de Jato' hi secuIos e que poderia concretizar-sede modo legal. (...) Os nordestinos nao aglientam mais 0

abuso e mais dia menos dia pegam nas peixeiras para declarara independencia" (Pessoa, 1987 - grifos nossos).

A proposta de separac;:ao assenta-se na crenya da possibilidadede "autonomia politica, economica e social" da regiao, similar aoque Silveira chama de "0 discurso da altivez" - quando, noseculo XIX, membros da classe agriria regional, percebendo ainterferencia da unidade nacional no seu espas:o politico, propoemque a regiao se conduza sozinha, 0 que se batia com a sua evidentefalta de recursos (1984:207-208). Em todos os momentos, essa

8. "... 0 Nordeste da SUDENE assume os contornos da ideologia da classe dominanteda 'regiao' da indUstria: desde que os movimenros migrat6rios do Nordeste paraSao Paulo ganharam for~ e intensidade, os migrantes de todos os Estados doNordeste e mesmo os dos Estados do Norte sao apelidados em conjunro de 'bahianos'[sic]" (Oliveira. 1985:38).Ja no Rio de Janeiro, os nordestinos em geral sao chamados de "parafba" ou "pa­raibano" (CEM, 1988:9).

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possibilidade esca calcada numa exaltayao das vantagens do espa<;:oregional, que se insere num processo de diferenciayao da regiaoonde esta e representada de forma maniquelsta diante das outras,sobre uma valora<;:ao positiva daquilo que e regional (cf. Silveira,1988:4).

"A econom ia do Nordeste, tenho certeza, nao en frentariamuitos contratempos: temos frutas, peixes, minerios, umaindustria agropecuaria que pode crescer bastante e homensdispostos a trabalhar, como dizia Graciliano Ramos. A in- .dustria canavieira seria obrigada a modernizar-se (...) A cisaofor<;:aria, entao, urn desenvolvimento rapido." (Pessoa, 1987.)

"Dividindo a partir de Salvadoro Nordeste seria outro paIsvigoroso, leal, rico e felizsem dever a ninguem no exterior

o Brasil vai ter que importardo Nordeste algodao, cana e cajucarnauba, laranja, baba<;:uabacaxi e 0 sal de cozinhar.o arroz, 0 agave do lugara cebo'la, 0 perroleo, a aguardente;o Nordeste eauto-suficiente,e seu lucro seria garantido. "(Nordeste Independente.)

Por outro lado, a proposta separatista baseia-se na tese deque a propriedade "local" dos recursos poderia me/horar a vidadas pessoas e trazer a soluyao dos problemas, como mostra Mar­kusen (1981:93),0 que sem duvida mascara as rela<;:6es de explo­ra<;:ao e opressao internas. E justo nesta linha, urn outro "Pontode Vista" tambem separatista, pda independencia do Rio Grande

do Sui, responde as coloca<;:6es de Pessoa (1987):

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"Mas 0 Nordeste nao tern 0 monop61io da miseria nacionale deveria se queixar muito mais de sua pr6pria elite do queda insensibilidade do Sui" (Streliaev, 1988:90).

Expressando a riqueza da percep<;ao popular do espa<;o e dasdesigualdades regionais, que no geral nao e enfatizada nas analisesdo regionalismo, "Nordeste Independente" traz urn elemento pe­culiar: a separa<;ao e vinculada aafirmac;:ao de valores (culturais)populares e asugestao de novos quadros dirigentes. Como ja apon­ta Costa (1988:91), a identidade regional pode ser apropriada deforma diferenciada por outras classes que nao as que direcionarama sua constru<;ao.

"Jangadeiro seria 0 senadoro cassado-da-ro<;a era 0 suplentecantador de viola 0 presidentee 0 vaqueiro era 0 \ider do partido.

'Asa Branca' era 0 hino nacional;o folhero era 0 simbolo oficial;

Consel heiro seria 0 inconfidente;Lampiao, 0 her6i inesquecido.Imagine 0 Brasil ser divididoe 0 Nordeste ficar independente."

(Nordeste Independente.)

Essas falas separatistas poderiam ser interpretadas como in­dicativas da passagem do discurso (e do projero) regionalista nor­destino de "conservador" a "revol ucionario", de acordo com aclassifica<;ao estabeJecida por Markusen. Esta aurora caracteriza,"peJo grau de severidade de suas reivindica<;6es", tres tipos de"con fl itos regionais" dentro do Estado-na<;ao capitalista:

a) 0 conservador, que busca urn tratamento mais favor<lveldentro da esrrutura politica vigente;

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b) 0 reflrmista, que demanda uma transformayao na "estru­tura te rri to rial do poder e das institui~6es", que pode chegar auma "descentralizayao da maquina governamental" e das instanciasdeciso rias;

c) 0 revoluciondrio, que lura por "uma mudan~ fundamentalna condiyao de nayao-Estado", como e 0 caso de urn projeto deindependencia (Markusen, 1981:88).

No entanto, parece-nos que estes discursos separatistas seencontram isolados, sem bases, sem vfnculos com urn projetopolitico, apesar de Pessoa (1987) aventar em seu texto a possibi­lidade de urn plebiscito sobre a proposta de cisao, acreditandoque "a bandeira da separa~ao sairia vitoriosa com larga margemde voros".

Por ourro lado, enquanto manifesta~ao da cultura popular,"Nordeste Independente" pode refletir "percep~6es recolhidas dapopulayao da regiao", nos termos de Cavalcanti (1988). Este autorrelata ainda sua apresentayao em urn torneio de repenristas (Olin­da-PE, 1986) em que 0 cantor "era aplaudido praticamenre acada verso, por uma plateia heterogenea de pessoas das mais di­versas classes sociais", a fim de respaldar a sua afirmayao de queo "senrimenro separatista" e "uma faceta da vida nordestina" (Ca­valcanri, 1988:568). Ja em urn tratamenro da questao nordestinasob uma perspectiva bastanre distinra, pois a apresenra como "urnfalso debate", Nassar (1988) tambem se refere ao sucesso da canyaona regiao, depois de Jiberada. Na opiniao deste autor, "a Jetra dopoeta repenrista IvaniJdo Vila Nova esra mais para parodia auro­gozativa do que para hino separatista".

Qualquer que tenha sido a inren~ao do auror, e sabido quequalquer obra ou texto permite Jeituras variadas. Procurando con­textualizar a can~ao em relayao a aspectos da cantoria nordestina,de onde se origina (apesar de divulgada tambern no ambiro daind usrria cultural), verificamos que 0 humor e freqiienremenreurilizado como uma forma de critica, enquanro 0 tratamenro am-

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biguo, de modo a "atender a pontos de vistas divergentes", estra­tegicamente responde anecessidade de intera<;ao com urn publicoheterogeneo social e cultural mente, em sua maioria componentesdas classes subalternas, mas tam bern incluindo integrantes dos

grupos dominantes (Ayala, 1988:22-23, 147). Assim, "NordesteIndependente" pode ser entendido tanto como urn ato de ironiae goza<;ao marcando, no fundo, a impossibilidade cia secessao,quanto, como diz Elba Ramalho, para os nordestinos, "a possi­bilidade de urn sonho" (apud Nassar, 1988:33).

De codo modo, acreditamos que urn discurso separatista quenao aponta uma pratica polftica e que nao e sustentado por ne­nhum grupo se encontra isolado, apesar de indicar, simbolica­mente, urn oucra projeto possive\. Assim, tais express6es nao che­gam a descaracterizar 0 conservadorismo (na acep<;ao de Markusen,1981) do regionalismo nordestino como urn codo. Vale ressalvarque esta descri<;ao do regionalismo como conservador, quanto asua rela<;ao com 0 Estado, nao implica em considera-Io estaticoou anacr6nico, em termos culturais.

• Fala, Deputado!

Encerramos a analise do discurso regionalista hoje com doistexcos de Evaldo Gon<;alves, deputado federal paraibano, em suacoluna "Direco de Brasilia": "Problematica Nordestina II" (A Tri­buna, 15 a 21/01/1989, p. 6) e "Problematica Nordestina III"(A Tribuna, 22 a 28/01/1989, p. 6)9. Vale explicitar que estesemanario de Joao Pessoa foi fundado no inicio de 1988, ao quetudo indica com claras inten<;6es poHticas em rela<;ao as e1ei<;6esmunicipais daquele ano.

9. No correr da analise, quando necessario especiflcar, os artigos seGio referid~ comor.N. II e r.N. III. Os grifos, nos rrechos citados, sao nossos.

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Os textos de Gonc;:alves tern c1aramente 0 cariter que Mar­kusen (1981) chama de conservador, permitindo detectar comc1areza a favor de quem se destina 0 tratamento mais favorivelque e pleiteado ao Estado; revelam ainda modalidades atuais dapratica polftica reivindicat6ria. Por ourro lado, estes textos apre­sentam muitos dos elementos que tern caracterizado 0 discursoregionalista desde 0 Imperio, e podem tambern ser consideradosuma "expressao ressentida", no dizer de Robeno Manins (1984).Para este auror, boa pane da produerao cultural nordestina apre­senta esse tipo de formulaerao: valorizaerao do passado regional, acrens:a na "existencia de 'conspira<;:6es' antinordestinas", solicitan­do a reparaerao de prejufzos causados ao Nordeste, com a apre­sentaerao de propostaS "restauradoras" (Martins, 1984:108).

Para Gonc;:alves, 0 Nordeste tern sofrido as conseqUencias de"injustis:as seculares e distor<;:6es odiosas" (P.N.III). As "preven<;:6ese preconceitos" contra os nordestinos ('n6s') tern levado ao de­estfmulo de tudo 0 que e a favor da regiao:

• desde 0 esvaziamento da SUDENE adesativaerao do ProjetoSenanejo, onde se alcan<;:ou "resultados positivos em favor donosso homem do campo" e "muito se fez a favor do Nordeste edo seu sacrificado proprietdrio ruraL" (P.N.II);

• e do DNOCS, esvaziado gradualmente, ji se falando (na­quela ocasiao) em extinerao, "exatamente por conta de seus obje­tivos voLtados excLusivamente em favor do Nordeste' (P.N.II);

• ate 0 sumi<;:o dos emprestimos subsidiados, que deixaram"nossos agricultores e pecuarisras" sem recursos (P.N.II).

Embora os problemas sejam apresentados como de rodos,rorna-se claro que se lamenta a perda de mecanismos que favo­reciam principalmente os grandes proprietirios rurais, ji que 0

pequeno agricultor nunca teve real acesso aos emprestimos (cf.Bursztyn, 1985:31). Por sua vez, 0 DNOCSraramente construfabarragens publicas, ji que este 6rgao foi, durante muiro tempo,capturado pela oligarquia algodoeira-pecuiria. Assim, onde se Ie" h d "" f: dNd "1'o nosso omem 0 campo ou em ravor 0 or este , ela-se...

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A pobreza e a situa~ao economica "crftica" tornam todos"nordestinados", unidos num mesmo destino, mobilizados e so­lidarios diante da crise (Silveira, 1988:5). E a a~o polftica apon­tada para a conquista de urn tratamento mais favoraveI passa peIoesrabelecimento, nos espa~os de decisao, de alian<yas por sobrepossiveis outras divergencias:

"Diante de todas essas dificuldades e marginaliza~6es a quevern sendo submetido 0 Nordeste (...) as bancadas de todosos partidos politicos, na Assembleia Nacional Constituinte,se uniram e lutaram por inscrever no texto constitucionalconquistas e mecanismos, visando minorar 0 quadro depres­sivo dominante na regiao" (P.N.III).

Assim foi garantida a "indusao de dispositivos salvadores",os artigos 159 e 192 da Constitui~o, que garantem a aplica~o

de "3% C..) de roda Receita Tributaria da Uniao para programasde desenvolvimen to nas areas subdesenvolvidas do pais", com aobrigatoriedade de destinar 50% da parceIa do Nordeste a projetosde irriga~o (P.N.III).

"Na pratica, a implementa~o desses dispositivos constitu­cionais representaria a reposir;iio de quase toclas as nossas perclas,em termos de a~o desenvolvimentista em favor do Nordes­te." (P.N.III.)

Como em outros momentos desde 0 Imperio, nao se vis­lurnbra que a atua~o planejada do Estado nao poderia deixar deinserir 0 Nordeste no processo capitalista do pais, ja que nao sepode reverter 0 curso da hist6ria. Desse modo, ainda que a pobrezaFosse eficazmeme combatida, qualquer "restaura~o" seria impos­sive\. Mas, na visao de Gon~ves, "a~6es desenvolvimentistas"esrariam garantindo ao Nordeste a "repara~o" merecida. Estariam,se nao fossem os "veros do Governo Federal" (P. N .III). Mais urnavez, 0 obsrciculo percebido e urn ato volitivo e injusto do governo:uma "conspira~ao antinordesrina"?

Diante disso, 0 auror projera 0 problema da regiao como detoda a na~o, prerendendo uma ampla a1ian~ para buscar solu~6es:

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"Governo e Povo, Empresarios e Trabalhadores, PolIticos elideran<;:as de todos os matizes, nao importa a coIora~o, nemas tendencias, todos tern compromissos com 0 FutUro e naopodem se exonerar dessa missao hist6rica de promoverem 0

bem-estar geral da Na<;ao, cujo pressuposto bisico eerradicaras disparidades regionais, para que sejamos urn s6 Povo eurn s6 Pais, desenvolvido e forte" (P.N.III).

o discurso regionalista procura tecer, escamoteando as con­tradi<;:6es economicas, polfticas e sociais,um Ia<;:o de "solidariedade"com base no territ6rio e na cultura 4a regiao (cf. Martins,1984:105). Sendo assim, a amplia~o desta "solidariedade", pre­tendida por Gon~ves, talvez expresse que, no contexto atual, apostura regional ista (nordestina) esbarra nos pr6prios limites quetra<;:a e que a sustentam. Neste sentido, e significativa a abordagemda reportagem da 15to e/Senhor (Nassar, 1988) num momentaentre a promulga<;:ao da ConstitUi~o e esse em que fala Gon<;alves,com rela<;:ao tanto aos dispositivos constitucionais quanto a dis­tribui<;:ao or<;:amentaria proposta pela presidencia ao Congresso: ec1aramente ha<;:ada uma oposi~o entre Nordeste e SuI, sendo queneste centrada - e 0 SuI 0 prejudicado. 0 dtulo da materia esuficiente: "Os Confederados sao do Norte: Sarney ataca os 'ricos'do Sul na batalha do or<;amento. Vai espalhar a pobreza por todoo Pais". E possive! caracterizar este discurso, que acusa 0 regio­nalismo nos outros, como tambem regionalista, com outra baseterritorial e novos eixos de argumenta~o. Se os interesses dosgrupos dominantes a nivel nacional passassem a se expressar sis­tematicamente atraves de discursos regionalistas, 0 regionalismonordestino estaria em posi~o desvantajosa no confronto - bastapensar nas possibilidades de acesso aos vefculos da indUstria cul­tural de maior penetra~o.

Mais do que pretender caracterizar 0 regionalismo hoje, ten­tamos mostrar 0 seu aspecto dinamico. Mesmo mantendo eixosbasicos desde as Provfncias do Norte, 0 discurso regionalista:

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• nao e urn bloco monolftico, comportando varia~oes queexprimem visoes de mundo e posi~oes sociais diferenciadas;

• e reelaborado constantemente, incorporando novos elemen­tos e conteudos, de acordo com as modifica~oes que se operamem todos os nfveis da vida social.

Apesar dessas atualiza~oes, em termos gerais, permanecemvalidas as conclusoes de Silveira (1984) com respeito aos discursospolfticos do Imperio: a ideologia regionalista, com sua especifici­dade pr6pria, articula-se com 0 discurso ideol6gico da unidadenacional, mais amplo e de matriz liberal, ao mesmo tempo emque suas reivindica~oes refor~m a interven~o do Estado.

Resgatando 0 Nordeste

Construfda historicamente, tanto atraves do processo con­creto de rela~o natureza/sociedade e das relac;:oes sociais estabe­lecidas nessa produ~o de riquezas, quanto atraves das formas derepresenta~o simb6lica, podemos dizer que a regiao Nordeste ehoje uma "realidade". Em outros termos, 0 discurso regionalistae 0 processo s6cio-economico articularam-se, constituindo 0 N or­deste enquanto urn referencial disponfvel atualmente, com urnnucleo bisico de significac;:oes. No nfvel do senso comum, 0 Nor­deste e hoje urn "dado" que, permitindo a cada urn se 10ca1izarespacial e socialmente, auxilia a dar sentido ao mundo e as ex­periencias de vida. Como foi visto, suas significac;:oes podem sofrervariac;:oes, conforme 0 momento hist6rico e 0 espa~o de referencia(por exemplo, quando e visto a partir do Sui), ou ainda indivi­dualmente, de acordo com a vivencia ou 0 grau de escolaridadee informa~o de cada urn, entre outros fatores.

Sabe-se que a pr6pria delimita~o da regiao e diferen<;:iada'conforme 0 criterio utilizado. No entanto, nao ha como °negar 0peso das fronteiras territoriais institufdas, de cariter polftico-:-ad­ministrativo. Se na divisao regional do IBGE 0 tra~do da regiao

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acompanha os limites estaduais, os outros recortes diferenciam-seem relac;ao a essas mesmas fronteiras, ou seja, tomando-as comouma base da qual se aproximam ou se afastam. Por outro lado,a demarcac;ao oficial, alem da forcya de sua institucionalizac;ao, quea faz ser apresentada e "ensinada" praticamente como unica edefinidora da regiao, tambem tern seus fundamentos hist6ricos:

"... os limites territoriais-administrativos dos Estados quecompoem 0 Nordeste brasileiro estao carregados da pr6priahist6ria da formac;ao economico-polltica nacional e de suasdiferenciac;oes" (Oliveira, 1985:32).

No estudo da identidade regional, hi distintos niveis possiveisde analise: por urn lado, 0 processo de construfao coletiva do Nor­deste como regiao (e parale!amente de uma representac;ao matricialdo nordestino), que examinamos neste capitulo apenas enquantonosso pressuposto. N osso foco de estudo situa-se em outro plano:a questao, '(0 que faz ser nordestino" dirige-se ao individuo, aoagente social concreto, ao modo como e!e utiliza e se reapropriadesse referencial para a atribuic;ao de identidades.

o rapido exame que empreendemos sobre 0 conceito deregiao e sobre 0 regionalismo nordestino tornou possive! recuperarnosso pressuposto em suas determinac;oes e em sua complexidade,resgatando 0 Nordeste enquanto uma realidade concretamenteproduzida:

"Nordeste, alem de ser urn ponto do horiwnte situado a450 do N. e do E., cono ta uma divisao regional dentro deurn espac;o maior, que e 0 nacional; urn sistema de re!ac;oessociais; urn conjunto de valores etc." (Martins, 1984:106).

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• a I UOue fazser nordestino:

examinando hip6teses

"Meu ideal evoltar pra minha terra;eu sou brasileiro, mas entao eu to aquiem Sao Paulo, mas nao to como paulista,eu to como nordestino, entao minha terrae 0 Nordeste, meu ideal e voltar pra Ii."

operario paraibano em Sao Paulo

(apud CEM, 1988:32)

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Passamos agora aexposiyao dos elementos centrais de nossaconcepyao de identidade. Conduziremos a discussao pelo exameprogressivo de algumas respostas possfveis a questao "0 que fazser nordestino", sendo a identidade regional considerada comouma forma particular de identidade social. Como foi visto, 0

discurso regionalista das elites nordestinas procurava criar umacoesao interna, tanto em relayao ao espas;o - a visao da regiaocomo urn conjunto pr6prio - quanta em relayao aesfera social.Neste Ultimo nivel, 0 regionalismo pretendia, tomando como basea condiyao de nordestino, unir a todos num mesmo destino eem tarno de interesses identicos. E quem eram os nordestinos?Em bora nem sempre fosse explicitado, possivelmente tados osque nascessem ou que vivessem na regiao, compartilhando dedeterminadas praticas culturais. Oaf podemos extrair tres hip6teses,provisoriamente formuladas, para responder aquestao acima:

1. a naturalidade. a identidade nordestina e dada objetiva­mente pelo local de nascimento, ou seja, se este pertence a regiaoNordeste, auromaticamente 0 individuo e nordestino;

2. a vivencia: a experiencia de vida dentro das fronteiras daregiao e que faz ser nordestino;

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3. a cultura: as priticas culturais indicam a identidade nor­destina.

Todas estas alternativas tomam a identidade numa perspectivaempirica, como algo dado, vale dizer, diretamente decorrente dealgum fato observavel. Podemos ainda apresentar uma wtima hi­p6tese, que eleja como criterio unico 0 ato pelo qual 0 individuose define, se classifica, deste modo identificando-se com urn grupoao mesmo tempo em que se diferencia de outros.

4. a auto-atribuipio: 0 individuo e nordestino se se reconhececomo tal.

Mas convem examinar melhor essas hip6teses. No decorrerda discussao, ao longo do capitulo, as alternativas apresentadasserao contrapostas a depoimentos de pessoas de naturalidade nor­destina que vivem em Sao Paulo e que la "venceram", selecionadose extraidos de reportagem da revista Afinal de maio/SSI. Essesdiscursos, nao sendo em si objeto de analise e sem a inten~o degeneralizar a partir deles," serao utilizados com a finalidade deevidenciar ou exemplificar problemas que cercam as quest6es deidentidade.

Os Referenciais Politico- Territoriais e 0 Dinamismo dasConstrur;oes de Identidade

Para a atribui~ao da identidade regional, a naturalidade e 0

referencial instituido. Por urn lado, e urn dos quesitos atraves doqual os indivfduos sao classificados/qualificados em seus docu­mentos de identifica~ao. Por outro, baseia-se na organiza~o po-

I. Trara-se da reportagem de Joao Carlos Rodriguez, "Vencendo na Vida no Sul Ma­ravilha" (Afi1'll14 3/5/88), que apresema a rranscri~o da pr6pria fala dos enrrevisrados.Podem ser levamadas duvidas quanro Ii fidedign idade dessas rranscris:6es aspeadas;no enramo. elas permanecem v:iJidas para nossa discussao, na medida em que saodiscursos possiveis, em OU[[as bocas.

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Iftico-adminimativa oficial, que hierarquiza diversas delimita<;oesdo espa<;o - da localidade ao municipio, deste ao estado e aregiao e, enfim, a na<;5.o.

A partir destes diferentes cortes territoriais e possive! construirdiversas identidades, dentro de uma hierarquia onde uma identi­dade mais ampla (por ex. regional) e capaz de englobar outrasmais exclusivas (por ex. relativas ao estado ou munidpio) que,em outro nfvel, se oporiam entre si. A referencia ultima e a iden­tidade nacional, a mais abrangeme. Sendo assim, sua capacidadede unificar, de estabelecer, sob a nacionaliddde, uma coesao porsobre tamas possfveis fomes de diferencia<;5.o exige urn maior graude abstra<;ao em reJa<;ao as particularidades da experiencia rna isimediata do indivfduo.

As diversas demarca<;oes espaciais permitem, ponamo, "in­terpretar" uma mesma naruralidade atraves de virias identidades,mobilizadas conforme as necessidades das priticas e das Jutas so­ciais. Como foi visto no regionaJismo, a constru<;5.o de uma iden­tidade nordestina sobrepuja as referencias distimivas re!ativas aosestados ou local idades, e, embora subordinando a regiao a na<;5.o,expressa urn projeto polltico-administrativo alternativo a centra­liza<;5.o vigeme. Por outro lado, 0 discurso separatista rompe ahierarquia da c1assifica<;ao oficial, opondo as regioes emre si e aidentidade regional anacional. Este rompimento e possfve! porque,como mostra Bourdieu, os sistemas de c1assifica<;5.o sao "menosinstrumentos de conhecimento que instrumentos de poder, su­bordinados a fun<;oes sociais e oriemados, mais ou menos aber­tamente, para a satisfa<;5.o dos imeresses de urn grupo" (1979:556).

• Nordestino: Nascimento ou Vivencia?

Sem pretender desconsiderar a identifica<;5.o oficial pela na­turalidade, corrememente utilizada, nao a tomamos como auto­maticameme geradora da idemidade de nordestino. A referidareportagem da revista Afinalapresema diversos depoimemos onde:

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a) a naturalidade e 0 criterio presente, entrecruzada comomros referenciais.

- "Enfrentei muito preconceito por ser mulher e nordestina.(...) Me sinto pau/ista." Luiza Erundina, entao Deputada Estadual,

que "gosra de ouvir sanfona, saborear graviola e fmra-do-condeem restaurantes tfpicos" (Rodriguez, 1988:40 - grifos nossos).

b) 0 discurso procura, de alguma forma, reverter ou escaparda classificac;ao oficial.

- "Sou urn nordestino paulistanado e urn paulista nordes­tinado." Paulo Dantas, sergipano que aos 18 anos ja estava noRio de Janeiro e desde 1945 em Sao Paulo, escritor considerado"urn dos precursores do romance urbano paulistano" (p. 40-41).

c) a naturalidade nao implica no auto-reconhecimento comonordestino.

- "Considero-me mais paulista do que outros com menosde 30 anos de idade." Ricardo Ramos, alagoano, "filho do con­sagrado Graciliano Ramos", publicitcirio e escritor, morou no Rio,e desde 1956 em Sao Paulo (p. 42).

Na fala de Luiza Erundina, e bern claro e reconhecimentocomo nordestina. No entanto, se, entre outros criterios poss(veis,fosse privilegiado 0 que diz respeito ao "sentimento de pertinencia"a urn grup02, 0 sentir-se paulista expressaria uma omra identidade(tambem de base espacial), embora subordinada aprimeira, oficial.

Os depoimentos indicam, pois, que a identidade regional denordestino nao decorre automaticamente do local de nascimento(da naturalidade). Mas, uma vez que se trata de nordestinos quenao vivem mais na regiao, se 0 criterio de nascimento parece naoresponder a nossa questao, passemos a examinar 0 da vivencia.

2. Cf. Bourdieu (1982:144).Por nao se dispor, em porrugues, de urn rermo mais adcquado para designar "0

faro de pertenccr", urilizamos pertinencia como rradu<rao do franc6i appartmance.

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"0 homem nao e urn ser abstrato, que vive em levita<;ao,mas se enralza em espas:os determinados, espas:os que vernassim a funcionar como suporte de comunicas:ao, de inter­reia<;ao, de organiza<;ao de sentido e, enfim, de fecundidade:terra matriz e motriz. 0 homem 'pertence' a urn espa~o.

'Ser de urn certo lugar' nao expressa vinculo de propriedade,mas uma rede de relas:6es." (Bezerra de Menezes, 1987:188.)

Sobrepondo ao local de nascimemo a pratica social, inclusivequanto arela<;ao com 0 espas:o, essa hip6tese permite excluir quemse ausenta da regiao. No entanto, surge a dificuldade de definira quantidade (dura<;ao) e a qualidade (por ex., que fase da existencia- infancia, maturidade etc.) do pedodo de experiencia de vidano espas:o regional que seriam necessarias e suficientes para pro­mover, como conseqUencia, a identidade de nordestino.

o criterio da vivencia remete-nos ao conceito de "povo-re­giao" (que se diferencia da ideia de regionalismo) proposto porMartins, enquanto "a forma pr6pria como aparecem as classessociais na sociedade polltica, no espas:o regional e no contexto deforma<;ao do Estado-na<;ao" (1985:26). No entanto, as pr6priasrelas:6es sociais espedficas e localizadas que caracterizam a regiaogeram diferencias:6es imernas, pois em fun<;ao delas varia 0 acessoaos bens materiais e simb6licos produzidos socialmente e, porconseqUencia, 0 modo de vida e as priticas cwturais.

Muiras outras fomes de distin<;ao estao, ponanto, constan­temente presemes, podendo fundamentar identidades que dife­renciam grupos que vivem na mesma regiao. :E 0 caso, por exemplo,de alguns grupos indlgenas estudados por Carvalho (1984) que,estabelecidos na regiao e partilhando de condi~6es de vida e hibitossemelhantes aos de outros habitantes, tomam a etnia como marcafundamental de identidade, de modo que ate mesmo a referenciaespacial e 0 seu territ6rio pr6prio (a reserva), e nao a regiao.

Por outro lado, seria posslve! afirmar que a ausencia da ex­periencia de vida no espas:o regional - por exemplo, alguem que

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passou a maior parte de sua vida fora - indica outra idemidade?Vejamos:

- "Tenho 32 anos passados fora de la, mas os 14 que passeina Parafba marcaram mais que todos os outros. (oo.) apesar dehabitar 0 Sul Maravilha ha tanto tempo, continuo cada vez maisnordestino, mesmo nao estando preseme". Moacir ]apiassu, jor­nal ista, chefe de reda~o da revista Elle, cuja carreira come~ou

em Belo Horizonte e ja passou pelo Rio.

"Nao viveria em outra cidade. Encontro aqui tudo que querodo Nordeste. (...) Acredito que sou mais util a Parafba aqui doque se ainda morasse hi." (Rodriguez, 1988:41-grifos nossos.) Ou­tra vez a resposta e negativa, pois varios mecanismos - a recons­tru~ao simb61ica pela mem6ria, a manuten~o de la~os de paren­tesco e de amizade da area de origem, por exemplo - podempreservar, como principal referencial para a auto-atribui~o deidentidade, uma experiencia passada.

Uma vez que os referenciais territoriais institufdos podemser diferentemente apropriados na constru~o de identidades, evi­dencia-se a multiplicidade e flexibilidade das identidades sociais.Varios escudos - entre eles os de Cardoso de Oliveira (1976 e1983a) e Zonabend (1981) - apontam a maleabiJidade das iden­ridades no tempo e no espa~o, sendo alteradas pdo indivfduo oupelo grupo conforme as circunstancias, 0 interlocutor ou outrosfatores.

"oo. constatamos que a identidade assume multiplas formas,segundo as ocasi6es, e que cada indivfduo possui ao mesmotempo mulciplas identidades. Coo)

Este carater multiplo e variavel da identidade deriva direta­mente da rela~ao entre quem e identificado e quem identi­fica." (Stahl, 1981 :339.)

Neste sentido, Cardoso de Oliveira (1976), estudando a iden­tidade eenica, concebe a articula~o das identidades sociais emuma rede de identidades possfveis - "virtuais" -,que sao rea-

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Jizadas ou atual izadas conforme a situayao de interayao social,num processo dinamico; em outras palavras, sua mobilidade ternpor base uma "marriz" de identidades, capaz de delimitar mUltiplaspossibilidades de identificayao.

Diame dessa dinamica de articulayao de identidades sociaisdiferenciadas, e preciso abandonar qualquer enfoque da identidadeque a conceba necessariameme como monolftica, linica ou esravel,ou ainda como dotada de existencia pr6pria. Desta forma, supe­ram-se as vers6es da teoria c1assica da identidade: tanto na con­cep<;:ao de Hegel, situada na Alemanha do final do seculo XVIIIe do come<;:o do seculQ XIX, quanto na obra de Herbert Mead,ligada ao interacionismo simb6Jico, nos Estados Unidos das pri­meiras decadas de nosso seculo, esra implicada a possibilidade deuma unica identidade social. Tais teorias, que concebem a iden­tidade social como 0 elememo de integrayao do individuo nocorpo social, vinculam-se as necessidades de determinados mo­mentos hist6ricos: a constituiyao de um Estado nacional, em He­gel, e a constru<;:ao simb61ica de uma identidade nacional, subja­ceme as diferen<;:as culturais denrro de urn mesmo Estado ja cons­titufdo, em Mead (Ruben, 1988).

A evidencia da mobilidade das consrru<;:6es de identidadenos obriga, ponamo, a descanar qualquer tratamento da identi­dade social que a considere quer urn e1emento constitutivo deum determinado povo (e de seus membros) quer uma essenciaou algo dado "pela natureza das coisas" (d. Brandao, 1986:155).Torna-se necessario, neste momento, explicitar a nossa concepyaode idemidade enquamo representayao.

Caminhos de Perceber e Pensar 0 Mundo Social· aIdentidade como Representarao

Varios autores concebem a idemidade social como repre­senta<;:ao - entre outros, Cardoso de Oliveira (1976), Brandao

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(1986) e Bourdieu (1980, 1982) - ou como uma constrw;aosimb61ica ou imaginaria. No entanto, se tais termos sao utilizadospara explicitar uma formulat;io de identidade, nem sempre saoobjeto de reflexao, sendo tornados como explicativos em si, eportanto como pressupostos ou consensuais. Desta forma, a am­bigUidade e a falta de clareza sao apenas deslocadas para essessegundos termos, que remetem a concep<;:6es e desdobramentosdistintos conforme a abordagem na qual se inserem.

Para evitar esse problema, convem retomar rapidamente osconceitos que servem de base ao nosso tratamento das quest6esde identidade. Embora buscando 0 sujeito que age, pensa e atribuiidentidades, optamos por inseri-lo social e culturalmente, e por­tanto descartamos os referenciais da psicanalise, relativos ao in­consciente e seu funcionamento, mais adequados para 0 tratamentoda identidade pessoal e da individualidade, que nao constituemnosso objero de escudo. Privilegiamos, portanto, as abordagenste6ricas que remetem aos processos sociais, sem no entanto re­duzi-los a seus aspectos materiais.

• Revendo Conceitos: Simb61ico e Representat;io

o conceito de simb61ico varia conforme sua apropriat;io pelasdiversas correntes de pensamento. Preferimos, entao, resgatar aconcep<;:ao de alguns autores, no intuito de clarear e demarcar 0

campo do simb6lico.

Cohen define sfmbolos como "objeros, atos, conceitos ouformas lingUfsticas que acumulam ambiguamente varios significa­dos diferentes e que simultaneamente evocam emo<;:6es e senti­memos, impelindo os homens a a<;:ao", referindo-se a fenomenosobjetivos e coletivos (1978:38). 0 cariter publico e observaveldos sfmbolos e reafirmado por Geertz, que, apontando a diversi­dade dos usos que tern sido dados ao termo, considera comoelementos simb61icos todas as "formula<;:6es tangfveis de no<;:6es,

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absrrac;:6es da experiencia ftxada em formas percepdveis, incorpo­rac;:6es concretas de ideias, atitudes, julgamentos, saudades ou cren­c;:as" (1978:105).

A concepc;:ao da "indeterminayao relativa" como a mais pro­funda caracterfstica do fenomeno simb6lico, de Castoriadis(1986: 168), aproxima-se daideia de flexibilidade das formas efunc;:6es simb6licas, na analise de Cohen:

"A mesma forma simb6Jica pode apresentar significados dediferentes tonalidades para individuos distintos, ou para urnmesmo individuo em diferentes momentos. Ela pode ser di­ferentemente inrerpretada por pessoas diversas em diferentescircunstancias. Um simbolo nao funcionara se nao apresentaressa ambiguidade e flexibilidade" (Cohen, 1978:52).

o vinculo encre 0 nivel simb61ico e as relac;:6es de poder, jaestabelecido por Cohen (1978), e reafirmado em Bourdieu (1977),com 0 conceito de poder simb6lico. Para este autor, todas asclasses e fraC;:ges de classe "estao engajadas numa luta propriamenresimb6lica" que reproduz, em outro plano, 0 campo das posic;:6essociais, com a finalidade de "impor a definiyao do mundo socialmais convenience a seus inreresses", luta que se processa tanto"nos confliros simb61icos da vida cotidiana" quanto entre os "es­pecialistas da produc;:ao simb6lica" (Bourdieu, 1977:408-409). Urnexemplo concreto e concundence pode ser encontrado na anilisede Geertz sobre as lutas politicas na Indonesia, ap6s a Indepen­dencia:

"... lutas amargas de grupos que veem urn no outro rivaisnao apenas no poder polftico e economico, mas no direitode deftnir a verdade, a justic;:a, a beleza e a moralidade, apr6pria natureza da realidade C..).[... E 0] que eu chamei em outro lugar de 'Iuta pelo real',a tentativa de impor ao mundo uma concepfiio particular decomo as coisas sao em sua essen cia e, ponan to, como os homensdevem agir..." (Geenz, 1978:211 - grifos nossos).

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'Toda discussao sobre 0 lugar ou fimyao dos nlveis ideais(representas:ao, simb6lico) remete a sua relayao com a realidade,questao de grande complexidade, E imposslve! "atingir urn realsocial anterior asua simbolizas:ao" (Ricoeur, 1980:35), pois a ma­

terialidade nao pode ser tomada em si mesma, devendo necessa­riamente passar pela subjetividade (ideias, representas:6es, refe­renciais culturais).

Sendo assim, como Godelier (1981) e Williams (1979:67),nao concebemos 0 pensamento como situado em uma inscanciaespedfica e compartimentada da vida social, ou como mero reflexoda produs:ao material: as ideias entrelas:am-na por toda parte, naoapenas interpretando, mas tambem organizando todas as praticassociais. Desse modo, 0 pensamento e as representas:6es tern umaas:ao estruturante, ao mesmo tempo em que sao estruturados so­cia/mente, uma vez que os esquemas de pensamento tern sua ori­gem na sociedade, sendo "constituldos no curso da hist6ria coletiva[...e] adquiridos no curso da hist6ria individual" (Bourdieu,1979:545). A atividade estruturante dos agentes, portanto, nao etotalmente livre nem puramente pessoal ou individualizada; paranao alongar a discussao, simplesmente porque sua atuayao nao seda num vazio, mas num mundo social ja simbolizado, urn mundoem movimento, carregado de significas:6es coletivamente estabe­lecidas.

Remetendo tambem a uma concepyao dos sistemas de pen­samento como edificados social mente, encontram-se as correntesda psicologia social que trabal ham com 0 conceito de representayaosocial (autores como Moscovici e Tajfel, cujas ideias basicas saoap resentadas por Vala, 1986). Construs:6es si mb61 icas, co nstrus:6esmentais, as representas:6es sao instrumentos de apreensao da rea­lidade, sendo, em relas:ao asua complexidade, constru(oes redutoras.Este carater simplificador das representas:6es pode ser explicadopor tres condis:6es que afetam a sua formayao, de acordo comMoscovici:

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a) a dispersao das informac;:oes disponiveis, que, por prindpio,

nunca sao capazes de esgotar a apropriac;:ao dos objetos de nosso

ambiente - alem disso, as informac;:oes distribuem-se de forma

desigual, pois "0 acesso dos individuos a informac;:ao nao e alea­

t6rio, mas socialmente regulado";

b) a Jocalizarao dos individuos ou grupos, que varia em

func;:ao de seus interesses, posic;:ao social, c6digos e valores ­vale dizer, 0 que se e capaz de captar depende de fatores decunho social;

c) a pressao para a inferencia, que diz respeito a necessidade

de, respondendo ao meio, emitir opinioes, juizos e explicac;:oes ­em outros termos, a necessidade de atribuir sentido ao mundo e

direcionar a ac;:ao (apud Vala, 1986: 15).

Estas condic;:oes explicitam a interac;:ao social como campo

de emergencia das representac;:oes.

Por caminhos distintos, Vala (1986), Godelier (1981) e Bour­

dieu (1977) apontam as representac;:oes como produtoras de sen­

tido, fornecendo uma explicac;:ao e/ou interpretac;:ao do mWldo e

atuando na organizac;:ao das priticas sociais. Deste modo as iden­tidades sociais, por sua vez, demarcando as fronteiras do grupo

(seus limites) e estabelecendo tanto a coesao do "n6s" quanto adiferenciac;:ao em relac;:ao aos "outros" indicam com quem e como. .mteraglr.

Vma vez que rada representac;:ao e construida atraves de

urn processo de selec;:ao e esquematizac;:ao, pode-se dizer quecompoe urn "ponto de vista", uma reduc;:ao da realidade da

qual e, por outro lado, a apreensao possive!. A abstrac;:ao e,

entao, tomada como a pr6pria realidade social, numa passa­gem que, denominada por Moscovici de naturalizarao (apudVala,- 1986: 15), integra 0 processo de produc;:ao das repre­

sentac;:oes (e, por conseguinte, 0 pensamento do senso co­

mum). Dessa forma, "a representac;:ao se da como uma 'na-

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rureza', pois sendo urn recone, uma visao, se da como 0 visfvel"(Pasta Jr., 1987:62).

• Di retrizes Sociais do Pensamento

Se nosso tratamento da identidade como representa~o en­fatiza que os esquemas de pensamento sao hist6rica e cultural mentemarcados, 0 carater social do pensamento ja era aflrmado pelosautores classicos da Escola Francesa de Sociologia. Contra a tra­di~o kantiana, ideal ista, que concebia "as categorias de entendi­mento" como formas universais (e transcendentais) de consciencia,Durkheim, considerando-as enquanto quadros basicos do pensa­mento, apontou a sua origem hist6rica e 0 seu carater arbitrario(cf. Durkheim e Mauss, 1981). No entanto, se a contribui~o deDurkheim e valiosa, por outro lado "corre 0 grave risco dereiflcar 0 conceito de social" (Velho, 1985b:16), ao concebera sociedade como uma "entidade", com existencia pr6pria acimados individuos:

"oo. os conceitos sao representac;oes coletivas. (...) correspon­dem a maneira pela qual esse ser especial que e a sociedadepensa sobre as coisas de sua pr6pria experiencia" (Durkheim,1984: 175-grifos nossos).

A explicita~o da origem hist6rico-social dos esquemas depensamento nao acarreta, necessariamente, desconsiderar a subje­tividade. Nesta perspectiva, Bourdieu recupera 0 pensamento deDurkheim. De inkio, na rejei~o a universalidade dos sistemasde categorizaC;ao e pensamento, os dois autores a1inham-se. Porsua vez, Bourdieu entrecruza 0 nivel social (coletivo) e individual:a atividade estruturante do agente interpoe-se entre as condic;oes

. de existencia e as praticas ou as representac;oes, mas ena sociedadeque se encontra a origem dos esquemas de pensamento. No en­tanto, isto nao implica na retomada da ideia da sociedade como

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uma entidade superior3, de modo que 0 conceito de "represenra¢ocoletiva" e resgatado por Bourdieu enqual1to "produto d~ urnmesmo esquema de percepc;ao ou de um sistema de c1assificac;aocomum", mas que nao deixa, por isso, de ser objeto de usossociais antagonicos (1979:544, 560).

A intera/yao entre as condi/Yoes universais da mente humanae 0 contexto social, assim como a complexa relalYiio (estruturan­te/estruturada) entre as representa/yoes e as rela/Yoes sociais, e tam­bem evidenciada pela psicologia social:

"Organizadas segundo modalidades de funcionamento donosso sistema cognitivo, as representa/yoes sao sociais, naopela sua extensao; mas porque emergem num dado contextesocial; porque sao elaboradas a partir de quadros de apreensaoque fornecem os valores, as ideologias e os sistemas de ca­tegoriza/yao social partilhados pelos diferentes grupos sociais;porque se constituem e circulam atraves da comunicalYiiosocial; e porque refletem as rela/Yoes sociais ao mesmo tempoque contribuem para a sua produlYiio" (Vala, 1986:20).

A media/Yao entre a sociedade e 0 individuo - quanto aosseus aspectos cognitivos e componamentais - e resolvida porBourdieu atraves do conceito de habitus: integrando todas as ex­periencias em "urn sistema de disposi/yoes duraveis e transponiveis"que "funciona a cada momenta como uma matriz de perceproes,de apreciaroes e de aroeJ', 0 habitus corresponde a incorporalYiiodas estruturas sociais objetivas, da qual e 0 produto, de modoque pode-se dizer que inscreve 0 social no individuo (1983:65).Como os esquemas do habitus sao marcados pela posilYiio social,

3. 0 pr6prio Bourdieu cricica a pusonificaf'lio dos coktivos - ripo "a burguesia pensaque ... ", an:\logo a "a sociedade pensa... " de Durkheim - por seus efeiros re6ricose poliricos, pois leva "a posrular a exisrencia de uma 'consciencia coleriva' de grupoou de c1asse: arribuindo aos grupos Ou as insrirui<;6es disposi<;6es que s6 podem seconscicuir nas consciencias individuais, ainda que sejam 0 produro de condi<;6escolecivas", d ispensando-se a anal ise dessas condi<;6es (Bourdieu, 1983:59-60).

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configuram-se como relativamente homogeneos para os membrosde urn mesmo grupo ou de uma mesma dasse, havendo, no en­tanto, espac;:o para 0 estilo "pessoal" e, na dinamica da pd.tica, aarticulac;:ao do habitus e a con juntura de ac;:ao.

o enfoque que estamos trac;:ando, realc;:ando a atividade es­truturante do agente (na produc;:ao de represemac;:6es e de iden­tidades), reafirma tambem que 0 individuo pensa e represema 0

mundo atraves de referenciais gerados socialmente - assim como,p,or exemplo, a pr6pria categoria de regiao. Isto nao exclui a pos­sibilidade de elaborac;:ao pessoal da realidade, pois, como foi visto,a maleabilidade das formas simb61icas permite que seu significadoseja diferememente apropriado, conforme os individuos e as cir­cunsrancias. No entamo, e limitada a flexibilidade dessa elaborac;:aopessoal, que se dara pela manipulac;:ao dos referenciais disponiveisna sociedade determinada em que vive, em urn dado momemohist6rico - dispon{veis desigualmeme, inclusive, conforme a po­sic;:ao que ocupa e as praticas sociais que desenvolve.

Tanto a Escola Francesa de Sociologia quamo a psicologiasocial vinculam a construc;:ao das representac;:6es sociais aos pro­cessos de categorizac;:ao/dassiflcac;:ao. Esses processos tern sido bas­tante explorados pela psicologia social cognitiva, podendo-se aidestacar a comribuic;:ao de Tajfel, que emende como categorizac;:ao:

"... os processos psicol6gicos que tendem a ordenar 0 meioambiente em termos de categorias. grupos de pessoas, de ob­jetos, de acontecimentos (ou grupos de alguns de seus atri­butos), na medida em que sao ou semelhames ou equivalemesuns aos outros pela ac;:ao, pelas imenc;:6es ou pelas atitudesdo individuo" (Tajfel, 1972:272).

Na categorizac;:ao social intervem aspectos culturais, tamo nasua elaborac;:ao quamo na sua aplicac;:ao. As categorias organizam-seentre si, relacionando atributos, 0 que as toma instrumemais comosistemas de avaliac;:ao e explicac;:ao da realidade social, estando nabase da construc;:ao das represemac;:6es.

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"... a elabora<;:a9 de uma represenra<;:;io reflete 0 sistema decategorias disponfvel num grupo (I 0 sistema de categoriaspre-existente que orienta a avalia(iio, a constru(iio selectiva e aesquematiza(iio do objecto, tornando conhecido 0 desconhe­cido), ao mesmo tempo que e geradora de transforma<;:6es nessesistema de categorias..." (Vala, 1986: 16 - grifos nossos.)

Uma vez que os processos de categoriza<;:;iolclassifica<;:;io fun­damenram a constru<;:;io de represenra<;:6es de idenridade e, poroutro lado, a pr6pria atribui<;:;io de idenridade classifica, na medidaem que delimita grupos, torna-se necessario complemenrar a nossaabordagem, considerando a idenridade como uma forma de c1as­sifica<;:ao.

• Classifica<;:;io: Ordenamenro e Qualifica<;:;io

Orientando a percep<;:;io, os esquemas c1assificat6rios tern,nos termos de Bourdieu (1979:559), 0 poder de "fazer ver e crer":se hi diferen<;:as na realidade, hi tambem semelhanc;:as; os membrosde um grupo tern caracterfsticas comuns ao mesmo tempo emque tem outras distinrivas, sendo a c1assifica<;:;io que d:i 0 recone,uma vez que 0 e1emenro tanto de coesao quanto de diferencia<;:;ioe construfdo, a depender do tra<;:o escolhido como criterio ­tambem em termos de idenridade. A classifica<;:;io, ao direcionara forma de apreensao da realidade, promove a sua organiza<;:;iosignificativa, atraves de urn ordenamento - a delimita<;:;io declasses (conjuntos, grupos) e sua re1a<;:;io - e de uma qualifica<;:;io- os atributos de cada c1asse.

Conceber a c1assifica<;:;io como urn ato de ordenamento e dequalifica<;:;io sup6e que ideias e valores se interligam, sendo con­veniente ressaltar que estamos tratando das classifica<;:6es do co­tidiano, do senso comum, que, como diz Bourdieu (1979), sao"interessadas", e correspondem a urna forma de "conhecimentosem conceitos". Se "afetividade, valor, senrimento sao componen­tes de 'rela<;:6es reais' que envolvem os agentes sociais, produtores

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de ideias" (Cardoso de Oliveira, 1983b: 144), nao se pode deixarde considerar esses aspectos. E 0 que fazem abordagens da psico­logia social, ao evidenciarem que 0 processo de construc;ao dasrepresenta<;:6es sociais, compreendendo aspectos conscientes e in­conscientes, envolve mecanismos cognitivos e afetivos tanto de

carater individual como coletivo (cf. Vala, 1986: 13-17).

o ato de c1assificac;ao, ordenando conjuntos/classes globali­zantes e espedficos, resulta em uma hierarquizac;ao dessas classes:em "uma ordem resultante do emprego do valor" (Dumont,1985:279). Desta forma sao estabeIecidas reIa<;:6es que, emboracategoriais, envolvem a atribuic;ao de significac;ao. E as conota<;:6esvalorativas, nos processos de categorizac;ao, sao mais intensamenteaplicadas, como mostra Tajfel (1972:280), no dominio da inte­ra<;:ao social, onde a questao do valor envolvido nas classifica<;:6esreflete toda uma visao de mundo.

Mais perro de nossas quest6es de identidade, pois discutindoas reivindica<;:6es de reconhecimento da diferen<;:a (que dizem res­peito a grupos que se organizam em tomo de uma identidadeespedfica), Dumont comenta que "reconhecer e a mesma coisaque avaliar ou integrar". Deste modo, "reconhecer 0 outro comooutro" (ou seja, como diferente) implica necessariamente em pen­s3.-lo como inferior ou superior - e, por conseguinte, em pensarsimultaneamente a sua relac;ao com ele (1985:252-276).

Funcionando pela e para a pratica, os sistemas de classificac;aonao tern urn carater racional: "nao tern nada a ver com umaoperac;ao intelectual que implique a referencia consciente a indicesexplfcitos e 0 emprego de classes produzidas peIo e para 0 conceito"(Boutdieu, 1979:551). No cotidiano social, os esquemas de per­cep<;:ao fundamentais que os agentes de uma formac;ao social ternem comum podem ser aplicados, com valor relativo, em diferentespontos do espa<;:o social, de modo que cada ato de classificac;aoganha seu pleno sentido apenas "com relac;ao a urn universo dediscurso cada vez diferenre e na maio ria das vezes implkito" (p. 548).

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"A mesma oposis;ao c1assificat6ria (rico/pobre, velho/jovem,etc.) pode ser aplicada a qualquer ponto da disrribuis;ao eai reproduz todo 0 espa<;o [socia.l] em qualquer urn de seussegmentos (0 senso comum diz bern que se e sempre 0 ricoou 0 pobre de alguem, 0 superior ou 0 inferior de alguem[...J, etc. - 0 que nao condena a um re!ativismo elementar)."(Bourdieu, 1979:551.)

No caso da identidade social, e atraves do sentido que osindividuos e os grupos dao "aos sistemas de c1assificas;ao comunspelo uso que fazem de!es" que se estabelece 0 acordo ticito quebaseia os procedimentos de exclusao e indusao pelo qual se de­finem como "n6s" em relas;ao a "e!es", aos "ourros" (Bourdieu,1979:557-558). Tratar a identidade como uma forma de dassi­fica<;ao, que agrupa e distingue com base num criterio - urntra<;o c1assificat6rio que pode ser chamado de marca -, revela aflexibilidade inerente ao pr6prio processo, uma vez que a tomadade outro criterio demarca novos limites e altera 0 referenciaJ dereconhecimento, 0 que permite 0 uso maldvel de identidades.Dessa forma, conforme a sirua<;ao e as rela<;6es que nela se esta­belecem, varia, por exemplo, a conveniencia (e/ou a possibilidade)de priorizar a identidade regional ou a identidade profissionaletc., assim como, conforme 0 universo do discurso, varia 0 sentidodessas identidades.

o emprego dos esquemas de c!assificas;ao e, ponamo, regidopelo interesse, de acordo com as necessidades do processo sociaJ,tal como a focalizas;ao que afeta a formas;ao das representa<;6essociais. Variam, dentro desta l6gica, por urn lado as caracter{sticasque devem ser percebidas para embasar a dassificas;ao - em diretarela<;ao com 0 interesse em percebe-las -, e por ourro 0 principiode pertinencia - que determina a incorporas;ao a uma determi­nada c1asse. A disputa pelo sentido a ser dado ao sistema de das­sifica<;ao comum coloca em litigio as fronteiras (limites) das classese os seus conteudos/atriburos (seu valor e significas;ao). No casodo nosso estudo, nao foi 0 regionaJismo nordestino que criou a

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categoria regiao, mas que a estabeleceu como modo de c1assificare dar identidade ao Nordeste como urn conjunto; na disputa pelocontrole de sua aplicayao, foram diversos os conteudos recebidos(por ex.: a casa-grande ou 0 cangac;:o) e os limites demarcados(por ex.: as Provincias do Norte e 0 Polfgono das Secas).

• logo de Reconhecimento/]ogo de Poder

Uma vez que sao capazes de "impor a definiyao legftima dasdivisoes do mundo social" (Bourdieu, 1982:137), os sistemas dec1assificac;:ao sao objeto de disputa. Enquanto as categorias de per­cepc;:ao correspondem e funcionam de acordo com a ordem esta­belecida (vale dizer, em conformidade com os interesses de quema domina), que por sua vez produz os esquemas de pensamentocomo forma de incorporayao dessa ordem, os limites e os criteriosde classificac;:ao sao apreendidos como uma "necessidade objetiva".Deste modo, a ordem estabelecida e, digamos, a "visao" da ordemestabelecida interagem dialeticamente uma sobre a outra, cadaqual esrruturando e sendo estruturada. Nesse quadro, a objetivac;:aoe institucionalizayao de esquemas de c1assificayao com seus limitesdecorrentes (por ex.: fronteiras territoriais, criterios legais para adefinic;:ao de e1eitores etc.) respondem a necessidade de, contrapossfveis contestac;:oes, "explicitar, sistematizar e codificar os prin­dpios de produyao desta ordem, tanto real quanto representada"(Bourdieu, 1979:559).

De modo geraI, podemos dizer que 0 reconhecimento deurn grupo passa pela sua presenc;:a na classificayao dominante, ourna is ainda, na c1assificayao oficial, com tudo 0 que isto possasignificar em diferentes momentos hist6ricos4• Urn exemplo in­teressante de como a classificac;:ao oficial pode ter 0 poder de

4. ..."a exisr~ncia [social) real da idenridade supGe a possibilidade real, jurfdica e

poliricamenre garanrida, de aflrmar a diferens;a" ... (Bourdieu, 1980:71)

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alterar as demarcac;:6es sociais, constituindo urn grupo, e apresen­tado por CarvaJho (1984), em seu escudo sobre grupos indfgenasdo Nordeste - grupos estes que hi muiro perderam seu isola­menro. A aurora mostra como 0 reconhecimento cia identidadeernica por uma auroridade instituida, assim como a delimitac;:aopelo Estado de urn territ6rio indfgena (a reserva) podem contribuirpara a construc;:ao/recuperac;:ao da identidade de fndio: "Eu e quenao sabia que era indio C..) Essa lingua de indio foi de poucostempo. Era caboclo, nao tinha cerra compreensao, nem explicac;:aode nada" (depoimento apresentado ap. 173). Assim, urn "caboclo"se roma "fndio" a partir do momento em que essa identidade Ihee atribuida oficiaJmente, em que sua especificidade e legitimada,passando a se reconhecer como tal com vistas adefesa de direiroscorrelatos: as interac;:6es sociais sao redirecionadas, a ponto de oscasamentos interetnicos serem discriminados, e a "nova" identi­dade etnica e reforc;:ada pela incorporac;:ao de conteudos particu­lares, elaborados a partir de novas informac;:6es recebidas ou re­cuperados pela mem6ria e reconstruidos simbolicamente pelo gru­po.

Lurar pela identidade enquanto reconhecimento social dadiferenc;:a significa lurar para manter visfvel a especificidade dogrupo - melhor dizendo, aquela que 0 grupo roma para si -,para marcar projeros e interesses distintos, ji que, como bern dizBourdieu, "0 mundo social e tambem representac;:ao e vontade, eexistir socialmente e tambem ser percebido e percebido como dis­tinto" (1980:67 - grifos nossos). Sendo assim, pelo entrecruza­mento entre 0 plano simb61ico e 0 das priticas sociais, 0 jogo dereconhecimento expressa e origina-se em relac;:6es de poder: fazer-sereconhecer como, ou seja, legitimar uma certa identidade preten­dida ou rejeitar uma identidade imputada, dar novos conteudosa c1assificac;:ao dominante, impor urn eixo de c1assificac;:ao maisfavorivel; atribuir identidades, jogando com a valorizac;:ao ou dis­criminac;:ao do ourro etc.

Urn claro exemplo e dado por Rambaud que, no seu estudo"Os Agricultores Polopeses em Lura pela sua Identidade" (1984),

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mostra como esta carrega todo urn projeto de sociedade, sendoo eixo de urn movimento de confrontas;ao com 0 Estado em queos agricultores individuais buscam, diferenciando-se dos trabalha­dores das fazendas do Estado, reivindicar a igualdade de direitos.Diante da definis;ao juridica oficial que os exclui das categoriasde trabalhador e de cidadao, pois aquela e 0 pressuposto desta,"seu projeto de se fazerem reconhecer como autenticos trabalha­dores" procura se legitimar pela manipulas;ao da classificas;ao do­minante, dando-Ihe nova abrangencia: "Eles tomam emprestadaa linguagem poHtica oficial para 'domesticar' 0 seu sentido e dissotiram vantagens para si pr6prios" (p. 206). 0 movimento dessegrupo nao se esgotou no n{vel simb6lico - na lma pela presenc;:ada denominas;ao "agricultores individuais" na classificas;ao oficial-, envolvendo ainda a crias;ao de urn sindicato (apesar do im­pedimento legal), mas Rambaud revela claramente 0 vinculo entreo jogo de reconhecimento e a disputa de cariter politico.

Urn omro exemplo, queexplicita 0 dinamismo do jogo dereconhecimento, e fornecido por Da Matta (l983b) com a bri­lhante analise do rito do "Voce sabe com quem estci falando?".o que e esse mecanismo que revela que "eu nao sou quem voceestci pensando, mas alguem muito mais importante"? Simplifican­do, 0 "Voce sabe..." pracura reverter uma posis;ao desfavorivelou subordinada nurna determinada situas;ao, pelo apelo a urnaomra identidade disponivel (no geral concernente a outro domi­nio/espalYo social), a fim de assegurar, a quem dele se vale, 0

controle da relas;ao. Utilizado em situalYoes de conflito, e urn ins­trumento de manobra da identidade e da pr6pria interas;ao social,sustentando-se sobre a possibilidade de mwtiplas classificalYoes so­ciais, sobre eixos variados5. Tratando-o enquanto urn "rito de

5. ..."codos jogam com codas as suas identidades, vale dizcr, com codos os eixos c1as­sificat6rios possfveis, pois quem tem mais identidades e eixos c1assificat6rios parautiliza.r, e certamente mais 'rico' e tern 'mais prestfgio', ficando (...) mais diflcil deser classificado." (Da Mana, 1983b:150.)

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autoridade" e uma dramatizac;:ao de "revelac;:ao da identidade so­cial", como fuga ao anonimato, Da Matta aponta as representa<;:6esde identidade como atos de demarcar;ao social, assim como asrela<;:oes de poder implicitas no jogo de reconhecimento.

Bourdieu (1982: 135-148), por sua vez, exemplifica a re1ac;:aoentre as Juras de c1assifica<;:6es no campo ciendfico e 0 camposocial - que, por sua pr6pria J6gica, da aos intelectuais urn lugarpreponderante -, no caso da disputa pelos criterios de demarc:l. in

de uma regiao, enquanto base para a construc;:ao da identidaderegional. 0 auror toma como referencia os movimentos regiona­Jistas europeus, alguns dos quais separatista.s, mas suas considera­<;:oes sao pertinentes para 0 processo de construc;:ao da regiao Nor­deste, em alguns de seus momentos. Embora a ciencia pretendafundamentar os criterios de definic;:ao "na realidade e na rmo",na verdade 0 que faz e "registrar urn estatio da luta de classifica<;:6es,quer dizer, urn estado da relac;:ao de for<;:as materiais ou simb61icasentre aqueles que tern interesses em urn ou outro modo de c1as­sifica<;:ao" (p. 139). A discussao sobre a relevancia dos criterios"objetivos" (como a Ifngua, 0 territ6rio, a atividade economica)ou "subjetivOs", ou seja, as representa<;:6es (como "0 senrimemode pertinencia") inAui direramente na pr6pria dispura que se pro­cessa no campo social:

"Em suma, os veredictos mais 'neutros' da ciencia contribuempara modificar 0 objeto da ciencia: uma vez que a quesraoregional ou nacional esti objetivamente colocada na realidadesocial (... ), todo enunciado sobre a regiao funciona comourn argumento que contribui para favorecer ou desfavorecero acesso da regiao ao reconhecimento e, atraves disto, aexis­rencia" (Bourdieu, 1982:144).

Se as c1assiflca<;:6es de identidade respondem a interesses so­ciais, se, nos term os de Bourdieu (1979:559), seu uso e funcio­namento sao definidos "na luta e pelas necessidades da luta", porurn lado dependem das rela<;:oes, das divis6es e agrupamenros es-

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tabelecidos num dado momento, num determinado contexto so­cial. Por outro, uma vez que 0 pensamento sobre 0 "real" contribuipara a sua pr6pria "realidade" e eficicia, atuando sobre a organi­zas:ao e Iegitimas:ao das praticas sociais, 0 controle destas passapeIo domfnio dos esquemas de perceps:ao e de classificas:ao, passa,enfim, pela detens:ao do poder simb6Iico. Assim, se 0 jogo dereconhecimento origina-se em reIas:oes de poder, tambem agesobre elas, no sentido de sua reprodus:ao ou de resistencia e trans­formas:ao.

Resumindo, as Jutas de classificas:oes relativas a identidadessao lutas por formas de reconhecimento, que envolvem nao so­mente a inclusao numa dasse, mas tambem 0 valor e os atributosque Ihe sao incorporados. Sao Iutas a respeito da significas:ao eorganizas:ao do mundo, pois as representas:oes de identidade con­tribuem para formar e desfazer os grupos, enquanto dependem,por outro lado, das reIas:oes de fors:a que se estabeJecem entreeIes, nas praticas que cotidianamente os poem em contato e osconfrontam. 0 tratamento da identidade social como uma mo­dalidade de dassificas:ao implica necessariamente em consideraros processos que constroem, social e culturalmente, os esquemasde classificas:ao dominantes e determinadas representas:oes com­panilhadas, e onde e sem duvida relevante a atuas:ao de especialistasda produs:ao simb6Iica, assim como de mecanismos institucionaisde defmis:ao da "realidade": enfim, nao permite esquecer a funs:aopolltica dos sistemas simb6Iicos.

As Duas Direroes do Jogo do Reconhecimento e os ProblemasMetodolOgicos

·.Identidade: Materialidade ou Auto-Representas:ao?

Considerando-se a identidade social como representas:ao, evi­denciou-se 0 estreito vinculo entre, por urn lado, as condis:oes

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para a consrrw;:ao das identidades e os elementos articulados nestasrepresenta<;:6es e, por outro, as condi<;:6es de existencia, a cultUIae as rela<;:6es socia is. Apesar disso, parece nao ser possivel ao pes­quisador "deduzir" a identidade do individuo ou do grupo a partir

de seu modo de vida, pratiCJ.s, bens etc. - ou seja, a partir de

sua "objetividade" -, pois a representa<;:ao mental do investigador,produto do modo como percebe aquela materialidade, pode naocoincidir necessariamente com a que 0 pr6prio individuo ou grupofaz de si ou de suas pratiCJ.s (ou a que outros grupos fazem dele).

"Casas com telhados de duas aguas, uso de enxadas e espin­gardas, vestidos no corpo das mulheres e 0 costume regionalde batizar os filhos na Igreja e possuir padrinhos nao indicama passagem do terena a sertanejo, nem rransformam 0 tukunaem caboc/o. Do mesmo modo, a saida de pessoas ou fam~ias

da rribo para fazendas ou cidades da regiao nao desrr6i ne­cessariamente 0 prindpio de que ainda existe uma rribo eque ela ainda tern express6es de vidd e de ser diferentes detodos os ourros. Nao desrr6i tal prindpio nem no imaginariocoletivo, nem na cabe<;:a individual do indio desrribalizado."(Brandao, 1986:104.)

o relato acima torna flagrante 0 cuidado com que devemser rratados os indicadores tidos como objetivos, especificamenteas varia<;:6es de rra<;:os culturais: devem ser buscados os elementos

que sao social mente importantes e que sao significativos, enquanto

referenciais de identidade, para 0 individuo ou 0 grupo. Por ourrolado, aponta para 0 papel da mem6ria enquanto suporte da iden­tidade: quer em nivel individual quer coletivo, ela seleciona in­

forma<;:6es, conhecimentos e experiencias, articulando de formainteligivel (dando-Jhes significado e valor) os aspectos multi formesdo vivido. No entanto, "a mem6ria pode ser induzida e, mesmo,forjada", e, em termos coletivos, processos sociais podem consrruir

urn passado formalizado e instituido como modelo de valores ea<;:6es (Bezerra de Menezes, 1987:183-184).

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A partir destas considerac;6es, podemos rever a hip6tese deque "as praticas culturais indicam a identidade nordestina"6, se­gundo a qual a identidade e decorrente do modo de vida e dosbens simb61icos que 0 individuo consome (ou eventualmente pro­duz). Neste caso, a presenc;a fisica no territ6rio regional deixa deser fator preponderante, pois praticas culturais podem ser preser­vadas em outros espac;os, recuperadas pela mem6ria ou recriadas.

- "... hoje sou paulista, com titulo outorgado ate de cidadaopaulistano, que nunca fui buscar por achar desnecessario. (...)Mas minha pernambucaneidade continua existindo. Esti no jeitomeio brega de me vestir, no sotaque, na leitura dos jornais daterra, na preocupac;ao com a poJitica local enos contatos com afamilia." Mauro Salles, publicitirio, "bem-sucedido empresario",que gosta de frevo e pode importar sorvete de mangaba: "e 0 quese pode chamar de urn migrante por oPc;ao", que saiu pequenode Pernambuco para 0 Rio, desde 1966 em Sao Paulo. (Rodriguez,1988:38 - grifos nossos.)

Se, no depoimento de Moacir ]apiassu (p. 55), contrapostoa hip6tese da vivencia, era fundamental mente a mem6ria quesustentava a identidade nordestina, aqui a "pernambucaneidade"nao implica no reconhecimento como nordestino. Certamente"veneer" em Sao Paulo, com tudo que isto acarreta, traz a aquisic;aode novas priticas que se articulam as antigas conservadas, que porsua vez ganham novos significados.

Alguns dos problemas de nossas primeiras hip6teses advemdo fato de que a identidade e considerada como decorrente de

6. Esra hip6rese remere a pr6pria definic;:ao de culrura, urn conceiro consrrufdo hisro­

ricameme, e que rem sido amplameme empregado na amropologia, com uma va­

riedade de significados (cf., p. ex., Laraia, 1988). Evitando esta complexa discussao,

consideramos, para os fins da reAexao que se segue, que "a cultura consisre num

conjumo global de modos de faur, ser, inreragir e represenrar que, produzidos

socialmeme, envolvem simbolizac;:ao e, por sua va, definem 0 modo pdo qual avida social se desenvolve" (Macedo, 1982:35).

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algum fator observavel. Torna-se, portanto, prioritirio que 0 pes­quisador busque captar 0 modo como a identidade e simbolica­mente representada, em situac;:oes determinadas, ou, mais especi­ficamente, a forma de auto-reconhecimento. Neste sentido e quese coloca :1 hip6tese 4, onde 0 indicador de identidade e a auto­atribuic;:ao, exemplificada pelo depoimento de Ricardo Ramos (jiapresentado na pag. 53), que se considera "mais paulista" do queos jovens nascidos na capital. Se, por considerar a forma de re­presenrac;:ao, e a unica hip6tese compativel com nossa concep~o

de identidade, ainda assim se revela Iimitada, pois ha que serconsiderada, nas questoes que envolvem reconhecimenro, a exis­tencia de duas dire(oes que configuram situac;:oes diferenciadas,tanto em termos de dassificac;:ao quanto de idencidade: a) a que partedo "interior" do grupo, relativa aauto-atribui~o de identidade, aoauto-reconhecimento ou ao reconhecimento pretendido; b) as das­sificac;:oes originadas na "exterioridade" do grupo, 0 modo comoe reconhecido pelos outros, que podemos chamar de "alter-atri­bui~o". 0 mesmo pode ser colocado em rela~o ao indivfduo.

Essas duas direc;:oes, nem sempre coincidentes, articulam-sedinamicamente. Os depoimentos apresentados ji dao mostras dasdiscordancias posslveis, na medida em que a pr6pria reportagemtrata de "nordestinos que venceram em Sao Paulo", enquantoalguns se reconhecem como paulistas, evidenciando a sobreposic;:aode c1assificac;:6es distintas e, portanto, a constru~o de identidadessobre referenciais diferenciados: a classifica~o oficial, com basena naturalidade (jornalista), e as formas de auto-reconhecimento,onde 0 criterio e a vivencia (entrevistados). Vale lembrar que amaleabilidade das identidades permite supor que as mesmas pessoaspoderiam se a(re)presentar de modo diverso em outros momentose situac;:6es, ou diante de novo interlocutor, ja que 0 individuo(ou 0 grupo) pode dar significac;:oes diferenciadas aos referenciaisde identidade disponlveis: a pr6pria auto-atribui~o de identidadee alterada conforme 0 contexto de intera~o.

Por outra lado, nao se pode desconsiderar 0 papel que osdados observaveis desempenham no pr6prio jogo social de reconhe-

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cimento. Na alter-atribui~ode identidade, as as:oes, habitos, bensde cada urn (grupo ou individuo) sao objeto de "representas:oes(mentais)" dos outros (c£ Bourdieu, 1979:563-564). Servem aestes, portanto, como referenciais para situar socialmente, paradesignar a urna cena classe, para identificar, em suma. Sendoassim, nesta dire~o de reconhecimento que vern "de fora", ganhamgrande imporci.ncia as pd.ticas sociais e culturais, enquanto ma­nifestas:oes que podem ser interpretadas e valoradas diferentementepelo pr6prio grupo e pelos varios setores com que entra em comato,pois tais signos sao apreendidos pelos outros conforme os esquemasde percep~o e aprecia~o de que dispoem. E os esquemas cul­turalmente disponiveis fornecem, como base para a atribui~o deuma identidade regional, os elementos reconhecidos como tfpicos.

a que sera tipicamente nordestino? Que manifestas:oes cul­turais sao correntemente reconhecidas como tal? Talvez 0 forr6e 0 baiao, 0 chapeu de couro, carne de sol com feijao verde oumacaxeira com manteiga de garrafa. au a renda de bilros, 0 cordel,o repente, 0 cego cantador de feira e por ai vai. Tudo isso e maisalgurna coisa, mas nao 0 vatapa - embora este, que representa(enquanto tfpico) a cozinha baiana e a pr6pria Bahia, possa serconsiderado "nordestino" pelo fato de que este Estado penenceatualmente a regiao Nordeste (c£ Penna, 1986). a tfpico, nocaso, e urn elemento que reline em si os caracteres distintivos doNordeste e dos nordestinos, servindo de modelo; urn elementoisolado, urna pane, representando 0 todo, 0 conjunto. Aquilo quee usualmeme reconhecido como "tipicamente nordestino", com­pondo 0 estere6tipo, relaciona-se com a represema~o do Nordestegerada pelo discurso regionalista ou com a imagem criada pdoSul/Sudeste, ao curso das relalYoes de forlYa (materiais e simb6licas)que configuraram as regioes brasileiras. Convem lembrar que, seurn grupo se auto-representa atraves de uma imagem idealizada,na rela~o com outros a valora~o pode ser invenida, nos doiscasos como fruto de urn comportamento etnocentrico (cf. Ricoeur,1980:25 - entre outros).

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Vale ressaltar que as dificuldades de se delimitar uma culturanordestina, que nao e dada, advem do faro de que esra demarca~o,

ao mesmo tempo em que expressa as diferenciayoes sociais e his­t6ricas da regiao, homogeneiza diferenc;:as inrernas sob a marcado tfpico, com 0 risco de se cair numa abstra~o que mascare amultiplicidade de relayoes em que se siruam as diversas praticasculturais, enquanro manifestayoes vivas e cheias de significados.Como diz Bourdieu, "a fronreira, esse produto de urn ato jurfdicode delimita~o, produz a diferenc;:a cultural na mesma medida emque e desta 0 produto" (1980:66). Melhor pensar, enrao, em asculturas da regiao Nordeste.

• Estrategia.~ de Manipula~o de Identidades

o intenso dinamismo do jogo de reconhecimenro indicaque, se a idenridade nao pode ser deduzida de dados objetivos,por outro lado as questoes de idenridade nao devem, rampouco,ser reduzidas a auto-atribui~o. A tarefa que se coloca e a dedesvendar os elemenros desse complexo jogo e sua inrer-rela~o,

pois, como diz Tap (1986: 12), a idenridade do aror social e re­sulrado de duas definiyoes: a externa e a interna.

Pode-se supor que a meta das lutas de grupos em torno deidenridades especfficas e fazer coincidir as duas aireyoes (0 reco­nhecimenro publico com a idenridade pretendida - a auto-re­presentayao), nao apenas em termos da c1asse na qual se inserem,da nominayao que se atribuem, mas tam bern quanto aos conteu­dos/atributos bisicos dessa classe. Assim, na tentativa de controlaras "informayoes" liberadas (representayoes "teatrais", nos termosde Bourdieu) e a forma de sua apreensao pelos OUtros, ganhamurn lugar especial, na pritica desses grupos, 0 nome, 0 discursoe as manifestayoes, assim como cenos componamentos e objetos(emblemas, bandeiras, insIgnias etc.). Pretendendo carregar e pro­jetar os sinais de identidade, marcando a panicularidade do grupo,rodas essas coisas e atos corifiguram "esrrategias interessadas demanipula~o simb61ica que visam determinar a representa~o

(mental) que os outros podem se fazer" (Bourdieu, 1980:65).

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Quando determinados tra~os e pd.ticas culturais sao selecio­nados como "sfmbolos" de identidade7, sua natureza e alterada:sua imutabilidade e enfatizada, pois buscam reproduzir e repre­sentar 0 autentico e 0 tradicional, tornando-se tra~os diacrfticosna constru~ao coletiva da identidade do grupo. Esse processo, queguarda semelhan~s com 0 de constitui~o do tfpico, confere novossignificados a essas praticas, ao mesmo tempo em que lhes retirao carater vivo, mutavel e dinamico, fLXando-as como urn fetiche.

Se a ado~o de emblemas de identidade visa marcar a espe­cificidade do grupo, podem haver estrategias inversas, no sentidode evitar a imputa~ao de identidade com base em certos elementosmateriais, persistentes e visfveis. E 0 caso, por exemplo, da "carade nordesti no" - a complei~o ffsica que corresponde ao este­re6tipo - que muitas vezes (em bora nem sempre) e 0 referencialselecionado para a atribui~o de identidade:

"Nao precisa nem falar, a identidade do nordestino ea cara(. ..). Ele sofre muito por isto, muitas vezes eu cheguei assimnum arribiente diferente, minha roupa nao era diferente, meucal~do nao era diferente de todo mundo, nao e inferior,mas porque nordestino econhecido, eie etipo japones, 0 caraja conhece pela cabe~, pela cara, pdo aspecto da pessoa, asvezes ate pela timidez, 0 modo de falar, de se comportar emdeterminado ambiente, ele e not6rio, ele e visto de longe"(depoimento de migrante paraibano, ajudante em Sao Paulo,apud CEM, 1988:30 - grifos nossos).

as tra~os ffsicos do nordestino, do fndio, do negro, do ja­pones sao freqUentemente priorizados, nos esquemas de percep~o

e de classifica~o dominantes, como criterio para a imputa~o deidentidade - e a conseqUente qualifica~o do indivfduo. Se, a

7. Cunha (1985) usa 0 termo "sfmbolo" ou "sinais" de identidade, enquanto Crocker,discutindo a identidade entre os Bororo. emprega "emblema" no sentido de "ope­radores iconograficos pelos quais a identidade pode ser fisicamenle expressa. mudadae tra nsfo rmada nas t ra nsa¢es sociais" (1981: 186).

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princfpio, parece impossfvel"escapar" do fen6tipo, que pode setomar ate mesmo estigmatizante, ainda assim sao possiveis estra­tegias, no jogo de reconhecimento. Urn exemplo disto e dadopor Marcos Terena, urn dos lfderes da Uniao das Na~6es 1ndigenas,que escondeu "sua condiyao indfgena sob a identidade de japones"durante quatorze anos, como relata em entrevista:

"Eu sentia uma discriminayao ate mesmo dos prafessores.1sso fez com que eu tivesse de adotar uma identidade parecidacom a indigena, nas caracteristicas ffsicas, que e a de japonesC..) [Hoje] eu me sinto indio, sim" (Peter, 1988:5 - grifosnossos).Aqui, a luta contra 0 estigma - que pode ainda se manifestar

pela tentativa de usar outra caracteristica para se definir, impondouma forma de c1assifica~ao mais favoravel, ou ainda pela luta paradar novo conteudo ao esquema de classificayao dominante (Bour­dieu, 1979:554) - direciona a pr6pria forma de apreensao (einterpretayao) dos tra<;:os fenotfpicos.

• Por urn Tratamento da 1dentidade

Todas as indaga~6es que cercam 0 estudo das identidadesdizem respeito as tendencias opostas de privilegiar os indicadoresditos objetivos, por urn lado, ou as representa<;:6es, por outra.Tendencias que perpassam 0 que podemos chamar de 0 duploaspecto da questao da identidade: a representayao que 0 grupo(ou individuo) faz de si (e para si) e a que dele fazem os outros.

Nossa exposi<;:ao a partir da confrontayao entre as hip6tesese os depoimentos privilegiou urn enfoque centrado no individuo.No entanto, acreditamos que as linhas bisicas da reflexao propostasao tambem validas para as quest6es de identidades de grupos,embora nesses casos devam ser consideradas as fun~6es organiza­cionais das representa~6es de identidade, assim como 0 pape! daslideran~as (cf. Cohen, 1978:86ss.).

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As complexas re1a~oes que interligam a realidade e as repre­senta~oes impoem, como diretriz metodol6gica, a necessidade deprocurar apreender simultaneamente os niveis objetivo e subjetivo,para que urn nao seja reduzido ao outro: como propoe Bourdieu,"tomar em conjunto 0 que age junto na realidade", as estruturas"objetivas" e, ao mesmo tempo, as re1a~oes com elas e as repre­senta~oes. Examinar concomitantemente, ponanto:

l.a) as classifica~oes objetivas, isto e, incorporadas ou obje­tivadas (por ex.: instituidas juridicamente), e

b) as rela~oes praticas (a~o ou representa~o) com essasdassifica~oes, panicularmente as estrategias coletivaspara controIa-las ou transforma-las;

2.a) as rela~oes de for~ objetivas, materiais e simb6licas, e

b) os esquemas pciticos pelos quais os agentes classificame avaliam os outros nessas rela~oes e as estrategias sim­b6licas de apresenta~o de si que e1es opoem as classi­fica~oes e representa~oes· que os outros Ihes impoem(1980:67-69).

Em suma, para as ciencias sociais, torna-se indispensave1 pro­curar ultrapassar as interpreta~oes parciais, que, atendo-se exdu­sivamente ou as prioridades materiais ou aos aspectos simb61icos,

. nao permitem "apreender a l6gica espedfica do mundo social,esta 'realidade' que e 0 lugar de uma luta permanente para definira 'realidade'" (Bourdieu, 1980:67).

Esta perspectiva metodol6gica resulta do reconhecimento te6­rico de que "a autonomia re1ativa da 16gica das representa~oes

simb6licas em re1a~o aos determinantes materiais da condi~o"

[de existencia] e limitada pelo fato de que os esquemas de pen­samento que direcionam a "re1a~o pratica" dos agentes com suacondi~o e "a representa~o que e1es podem ter de1a sao e1es pr6­prios produtos dessa condi~o" (Bourdieu, 1979:564).

A abordagem apresentada por Bourdieu aproxima-se da deoutros autores. Cardoso de Oliveira propoe, como caminho de

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analise da identidade e etnia, "penetra-las pela via de suas repre­sentac;:6es sem deixar de levar igualmente em conta a estruturasocial" (l983a:121), enquanto para Brandao:

"Importa compreender a estrutura e 0 processo das diferentestrocas de bens materiais, de servic;:os e de sfmbolos entrediversas categorias de sujeitos e 0 modo como acontecem aiac;:6es e reac;:6es de atribuic;:ao de nomes, de tftulos de deter­minac;:ao de semelhanc;:as e diferenc;:as que, afinal, tanto semanifestam na maneira como as pessoas vivem os c6digosde seus contactos umas com as outras, quanto na forma pelaqual representam os seus relacionamenros e 0 reconhecimentode quem sao, a partir de!es" (Brandao, 1986:38).

Em suma, esses tres auto res, que concebem a identidade comorepresentac;:ao e uma forma de classificac;:a0 8, consideram que 0

simb61ico deve ser necessariamente relacionado as praticas e asrelac;:6es sociais.

Ap6s examinar certas noc;:6es subjacentes ao conceito de iden­tidade (simb6Iico, representac;:ao) e transitar por algumas formu­lac;:6es te6ricas, com enfase especial em Bourdieu, ainda se fazemnecessarias algumas demarcac;:6es. Na tentativa de alcanc;:ar urnconceito de identidade capaz de fundamentar produtivamente es­cudos da questao em sociedades complexas, cabe indagar 0 quediferencia a representac;:ao de identidade de outras representac;:6esde urn grupo (ou indivfduo) relativas asua visao de mundo e suacultura. Para uma definic;:ao mais clara, consideramos que a iden­tidade (social) expressa necessariamente e de modo expllcito, querno nfvel do grupo quer do indivfduo, a problematica do reco­nhecimento social: formas de reconhecimenro que envolvem

8. Cardoso de Oliveira (1983a) tambem enfoca a quesriio da identidade como umamodalidade de classifica<;5o, no "interior" do grupo etnico ou nos sistemas inten~t­

nicos. Em Brandao (1986), 0 rraramento como forma de classifica<;5o nao e taoexplicitado, mas podemos encontrar a preocupa~ao com as categorias utilizadas paradeflni r a adscri<;5o a urn grupo.

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disputas em tomo de criterios de deIimita~o e qualifica~o degrupos (esquemas c1assificat6rios e seus atributos) ou da peninenciade um indivfduo a eIe, e que se encontram em movimento tantoa partir do interior do grupo (ou individuo) em questio quantoa partir de outros grupos que Ihe sao exteriores, ou seja, da so­ciedade que 0 envolve. A disputa em tomo de uma designa~o

(urn nome) toma esses processos de reconhecimento mais c1ara­mente manifestos, mas nao acreditamos ser conveniente adota-lacomo criterio exclusivo de defini~o.

A conceps:ao de identidade que propomos pode, provavel­mente, ajudar a restringir a ambivalencia que cerca 0 termo e adelimitar com rnais c1areza urn objeto de estudo. A analise empfricaque se segue - 0 jogo de reconhecimento no caso Erundina ­tomara por base esta concep~o de identidade social, de modoque 0 seu valor heurfstico possa ser avaliado.

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• a I UOAnalise empfrica: 0jogode reconhecimento nocaso Erundina

" ... 0 preconceito pdo fato de eu sermulher e bern menor do que pdo fatode ser nordestina. Por mais que eu acerte,hi pessoas que nao engolem 0 fato deuma cidade como Sao Paulo estar sendogovernada por uma nordestina."

Luiza Erundina, dois anos ap6s a eleis;ao

(in Freire e Azevedo, 1990: 15)

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Algumas Considerafoes Metodol6gicas

A forma de desenvolvimento desta pesquisa e peculiar: seuobjetivo ultimo ea discussao te6rica sobre questoes de identidade,mas, para nao realizar a reflexao em abstrato, escolhemos 0 tema"0 que faz ser nordestino". Agora a base empfrica e ainda maisespedfica: trata-se de material jornalfstico produzido em torno deLuiza Erundina de Souza, eleita para a prefeitura de Sao Pauloem 15/11/88, em perfodo imediatamente subseqGente ao pleito.Essa analise nao visa discutir as razoes do resultado eleitoral ouo discurso jornalfstico em si, mas sim verificar como a identidaderegional eapropriada no jogo de reconhecimento que se desenvolvena imprensa, em torno de Erundina; particularmente como 0

"nordestino" ediferentemente construfdo, com conteudos dis tin­tos, nos jornais de circula~o nacional (Rio/Sao Paulo) e da Pa­rafba, sendo estes tornados como elemento de compara~o.

Logo ap6s as e1ei<roes de 15/11/ 1988, e as primeiras indica­<roes de que seria eleita, Erundina torna-se foco das aten<r0es dosmeios de comunica<rao que, produzindo uma enorme quantidadede material, procuram mostrar quem t a nova prefeita. Isso se

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deve, entre ourros fatores, ao fato de que a candidata do Partidodos Trabalhadores (PT) era, att~ certO ponto, desconhecida, tendotido, em comparac;ao com os demais candidatos, pouco espac;ona imprensa durante a campanha eleitoraJl, alem de que a im­pordncia polftico-economica de Sao Paulo contribuia para projetara notfcia como de interesse nacional. Entre as diversas versoes,apreciac;oes e comentarios apresentados, busca-se criar, para a opi­niao publica de todo 0 pafs, no momenta p6s-eleitoral e antes desua atuafiio - que rraria dados concretos, embora sempre dife­rentemente interpretados -, uma imagem de Luiza Erundina,no curso de urn processo que procura "digerir" (valorizando-a ouesvaziando-a) a sua eleic;ao.

Tomamos como material empfrico publicac;oes jornalfsticas,tendo como nucleo 0 perfodo de urn mes a contar da data davotac;ao, 0 qual consideramos privilegiado no processo referido decriac;ao de imagem. ]a no final deste perfodo, 0 jogo de atribuic;oesde identidade torna-se menos presente, cedendo lugar as discussoessobre os ganhos para 0 partido ou as notfcias sobre propostas eac;oes preparat6rias para a futura administrac;ao. Materiais de ourrasfontes ou outro perfodo foram eventualmente utilizados, a de­pender de sua relevancia, mas 0 conjunto bisico, cobrindo de15/11 a 15/12/88, foi constitufdo por:

a) publicac;oes da cidade de Sao Paulo (e de circulac;ao na­cional) como os jornais Folha de 5. Paulo (FS.P) e 0 Estado de5. Paulo (0 E5oP) minuciosamente rastreados; do primeiro in­c1uimos ainda 0 periodo de 10 a 15/11/88;

b) as revistas Veja e Isto lJ/Senhor (Isto If,

c) dada a imponancia de sua circulac;ao em nfvel nacional,o Jornal do Brasil (j.B.); por ser uma publicac;ao carioca, produzidafora do palco do evento, foram levantadas especial mente as ma-

1. Como demonsrram dados "metricos" apresemados peIo Jomal do Brasil (19/11188,p.6), a respeiro da cobertura da Fo/ha e de 0 Estatlo tk S. Paulo.

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terias que tratavam diretamente de Luiza Erundina ou das elei~6es

em Sao Paulo;

d) 0 Pasquim, como veiculo de imprensa alternativa.

A especifica~o detalhada do material pesquisado pode serencontrada na bibliografia. Os grifos nos trechos citados, salvooutra indica~o, sao nossos.

Na Jinha de pensamento apontada por Foucault (1973), Osa­kabe (1979) e Bourdieu (1982), consideramos 0 discurso comoa~o ou acontecimento, cujas condi~6es de produ~o sao social­mente controladas. Entendemos que 0 sentido nao esta inscritonas coisas, sendo 0 pr6prio discurso uma a~o que atribui signi­fica~6es, alem de urn ato de argumenta~o que visa conseguir, dealguma forma, a adesao do ouvinte/receptor. Em todo 0 materialjornalistico em torno de Erundina, esta em jogo a interpreta~o

legitima: nao se trata de urna "verdade" a ser encontrada, mas defazer valer urn determinado "ponto de vista", ja que a pr6pria"realidade" e gerada enquanto tal pelo trabalho jornalistico que,reconstituindo os acontecimentos atraves da linguagem, produzsentido (Fausto Neto, 1988).

Em rela~o a prefeita eleita, 0 jornalista detem 0 poder sim­b6J ico de a(re)presentar Luiza Erundina perante a opiniao publica,ou, em outros termos, ele esra numa posi~o de domina~o pelasimples "posse do discurso", pois "quem enuncia e, no momentaespedfico em que enuncia, a entidade dominante, na medida emque e ela quem manipula as coordenadas do discurso" (Osakabe,1979:62). Mas, se por urn lado esse profissional e produtor, nojogo de reconhecimento, sua produc;ao tambem reflete 0 jogo quese passa, em ultima analise, na sociedade mais ampla. E reflete,concretamente, ao relatar, por exemplo, opinioes e comentariosde terceiros. Assim, optamos metodologicamente por tomar asfalas e os atos descritos em si, nao discutindo sua fidedignidade,pois sao apresentados como "verdadeiros" na pr6pria (re)cria~o

da realidade empreendida pelo trabalho jornalistico.

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Orientando nossa analise pela proposta metodol6gica deBourdieu, apresentada no capitulo anterior, podemos considerarque, objetivamente, Luiza Erundina e nordestina, uma vez queesta e a c1assifica~o regional institu£da e oficializada para quemnasceu na cidade de Uirauna, Estado da Paraiba. Embora urnreferencial disponivel, nem sempre e este 0 criterio eleito para aatribui~o de uma identidade, nas duas possiveis diw;oes. Urnprimeiro exame do material selecionado revelou tres eixos prin­cipais no jogo de reconhecimento expresso na imprensa:

a) 0 regional - a identidade nordestina;

b) 0 politico-partidirio - a identidade de petista com seusdesdobramentos;

c) 0 de genero - a identidade de mulher.

Sem deixar de considerar que, no jogo dinamico de atribui<;:aode identidades, os tres eixos apontados se aniculam intimamente,pin<;:aremos, para discussao, a identidade social de nordestino, comos diferentes significados que the podem ser incorporados, e quebuscaremos explicitar. Os outros eixos apontados serao abordadosna medida em que forem necessirios para contextualizar e com­plementar nossa analise.

o Eixo Politico-Partiddrio

Objetivamente, Luiza Erundina e petista: era a candidata doPT aprefeitura, na coliga~o "Panidos do Povo", que reunia aindao Partido Comunista do Brasil (PC do B) e 0 Partido ComunistaBrasileiro (PCB), e ainda hoje e filiada aquele partido. No entanto,esse dado concreto, que permite localiza-Ia politicamente entre osdemais candidatos, pode ser apropriado de diversas maneiras, in­clusive ate mesmo sendo relegado, em fun~o de algum outroreferencial de identidade.

Nao pretendemos esgotar 0 jogo de identidades sobre 0 eixopolftico-partidario, mas apontar alguns de seus aspectos, de modo

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a clarear a disputa pelos contelidos politicos, uma vez que seencontra nesse n{vel 0 significado maior da eleicyao de Erundina.Procura-se, assim, contextualizar 0 jogo de reconhecimento emtorno da identidade regional.

• Esquerda/Direita: Limites Problematicos

« •••a paraibana de 53 anos sera a primeira pessoa de esquerdaa assumir 0 poder em 434 anos de existencia de Sao Paulo,maior centro financeiro e industrial da America Latina e quedetem 0 terceiro ors:amento do pais... " (Jamal do Campus,n.O 75, p. 5.)Ela nao e a primeira prefeita do Brasil. A pioneira foi Noca

Ooana da Rocha Santos), nomeada em 1934, pdo Estado Novo,para a prefeitura maranhense de Sao ]oao de Patos (FS.P.)21/11/88, p. A-4). Mas Luiza Erundina de Souza e a primeiramulher a ocupar 0 cargo no municipio de Sao Paulo, a nossamaior cidade, a "locomotiva do Brasil". Sua eleicyao carrega urnduplo ineditismo, pois e tambem a primeira vez que chega aocargo urn representante politico de esquerda, rompendo os "tabusque sempre alimentaram a inviabilidade dos panidos de esquerdano Brasil" (FS.P., 23/11/88, p. A-3).

Ha, sem dlivida, inUmeras e distintas maneiras de considerara proposta politica do PT, conforme a 6tica de quem analisa ­e, ao mesmo tempo, necessariamente avalia. Tomando como focode constante reflexao seu pr6prio carater (cf. Weffon, Pomar eGenro, 1988), agrupando diversas tendencias, 0 PT oferece ele­mentos diversos que podem respaldar uma variedade de "pontosde vista" a seu respeito, de acordo com 0 tras:o eleito para carac­teriza-Io. No entanto, podemos dizer que de e correntementereconhecido como urn panido de esquerda. Mas esta classificacyaonao resolve muito, pois nao explicita plenamente 0 modo comoo PT e considerado, pois esquerda recebe uma variedade de con­telidos, desde levemente "progressista" ate as propostas radicais

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de transformas:ao da sociedade, "subversivas". As classifica'roes so­bre 0 eixo polarizado esquerda/direita sao relativas, variando deacordo com a posis:ao de quem dassifica. Pierucci aponra que saoraros os politicos brasileiros que se auro-reconhecem como dedir~ita, devido a "carga pejorativa e a ressonancia desagradavelque a designas:ao 'direita' passou a ter no pals nas wtimas deca­das", como heran~ do regime militar (1987:36). No quadro apre­sentado pela Folha de 5. Paulo no dia da e1eis:ao, tra~ndo urnperfil dos candidaros, no item "aurodefinis:ao ideol6gica" a desig­nas:ao "esquerda" e atribufda a Erundina, enquanto os demaisca.ndidaros sao de "centro" (Maluf), "centro-esquerda" (Leiva),"centro-direita" (Mellao) ou "social-democrata" (Serra) (F.S.P.,15/11/88, p. A-4). Se por urn lado 0 eixo esquerda/direita permiteinumeras classifica'roes intermediarias, pode ainda ser invalidadocomo criterio: "Agora nao existe mais esquerda e direita, mas 0

moderno e 0 antigo" (Guilherme Affif Domingos, F.S.P.,23/11/88, p. A-2).

A relatividade nao s6 das designa'roes baseadas nesse eixo,assim como das classifica'roes de cunho politico em geral na tra­dis:ao hist6rica brasileira, e bastanre clara no exemplo que se segue:

"... urn telefonema do Brasil informou ao senador Mario Co­vas (PSDB-SP) que seu nome esta sendo incensado, e muiro,como candidato aPresidencia por setores liberais e de centrodireita.

Reas:ao de Covas: 'Mas eu nao era comunista ate 0 mespassado"'? (F.5oP., 29/11/88, p. A-2).

Com a e1eis:ao da candidata do PT, novos interesses e novasoposi'roes delineiam-se, alterando os referenciais de comparas:ao,e por conseguinte a pr6pria classificas:ao.

Se os posicionamentos politicos podem ter urn alto grau deindefinis:ao em uma hist6ria'marcada pelo personalismo e pelaausencia de parridos claramenre programaticos, de qualquer formaos limites esquerda/direita nao sao inscritos no real:. apesar de osjulgamenros para a atribuis:ao de tais designa'roes se basearerri em

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dados do real, tais fronteiras sao feuto de atos mentais, as;6essimb61icas de organizas;ao do mundo. 0 referido artigo de Pierucci(1987) evidencia com c1areza como, entre os parlamentares ­que recusam a identificas;ao como de direita - e os pesquisadores- que elegem certos elementos como definidores da incorporas;aoa esse grupo-, se encontra em disputa 0 criterio de classificas;aoe por conseguinte a de1imitas;ao legitima.

Considerando tudo isso, recuperamos 0 faro de 0 PT - econseqUentemente Erundina, sua candidata - ser reconhecidocorrentemente como urn partido de esquerda, e que, inclusive,muitas vezes se reconhece como tal (cf. Machado, 1989).

• "ValenteSim, Comunista Nao"2

Sendo Luiza Erundina, objetivamente, petista, 0 sistema dec1assificas;ao dominante, pe10 qual e interpretada a hist6ria poHticabrasileira e a pratica do partido, permite associar ou desdobrar 0"petista" em "de esquerda", ou ainda em outras formas de c1as­sificas;ao/qualificas;ao. Desse modo, e intensa a disputa em rornodas categorias empregadas para caracterizar politicamente Erundina- ou seja, construir-Ihe uma identidade.

Em diversos momentos, as avalias;6es de ordem polftica rran­sitam do PT a Erundina (e vice-versa), ja que ela e representantedo partido. Assim, se, nos termos de seu presidente nacional naocasiao, Olivio Dutra, "0 PT e run partido socialista" (0 E.s.P.,20/11/88, p. 4), ela pode ser tratada como "a prefeita socialista"(F.s.P, 2/12/88, p. A-2) pelo mesmo jornalisra que considera 0 PTcomo "0 unico partido marcadamente programatico" (14/11/88,p. A-2). Em outras oportunidades, Erundina diferencia-se, en-

" d'caI"quanro ra 1 :

2. Titulo de materia (0 E.S.P.. 17/11/88, p. 4).

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"Na ecologia do p.artido, ela era considerada uma 'xiita', ouseja: uma radical, incendiaria e extremada. Para piorar, ela[oi apoiada na conven<;ao por uma serie de facs:oes, organi­zas:oes, grupos, grupusculos e blocos do eu sozinho que seabrigam na frondosa arvore petista" (Vtja, 23/11/88, p. 34).

O " . "d db ".""utras vezes, petlsta es 0 ra-se em marxlsta ou co-munista", quer pela incorpora<;ao dos atributos do partido querepresenta, quer por ser percebida enquanto "radical". Se Pierucci,em pesquisa realizada em 1987, quando era POSSIVel considerar 0

socialismo "tao ausente da cultura polftica do povo brasileiro"(1987:34), nao encontrou expressoes de anticomunismo no dis­curso da "direita" paulistana, 0 contexto polftico deste momentohist6rico que analisamos volta a exigi-las, e 0 "comunista comedorde criancinhas" e novamente invocado, enquanto ameas:a nacional.Entre os exemplos mais exacerbados, encontra-se 0 artigo citadoa seguir, especialmente interessante pela qualifica<;ao que estabelecepara "comunista", justificando assim 0 ataque ao pr6prio sufrigiouniversal como principio democratico:

"...a cupula dirigente desse Partido [PT] era e e toda comu­nista. (...) 0 sufragio universal e a grande farsa do Seculo!

(...) pode levar a popula<;ao nacional, como urn todo, aes­cravidao cientffica do comunismo (...) subjugando-a a do­mina<;ao patol6gica do apdtrida (que se diz internacionalista),do materia/ista (militante ateu, inimigo declarado de toda equalquer religiao), vocaciona/mente violento - que sabota edepedra (...) e que gera e sustenta 0 c1ima de terror social,quando estcl no Poder. .. " (DE.SP., 7/12/88, p. 9).

E esse nao e urn exemplo isolado. E0 "medo do comunismo"que sustenta diversas previsoes a1armistas e catastr6ficas , onde, a

" ." _.nosso ver, comUOIsta se torna wna acusas:ao e wn estlgma, semque qualquer outro elemento seja considerado - como 0 fatoconcreto de 0 direito de ocupar 0 cargo executivo municipal tersido a1cans:ado atraves de wn instrwnento demowitico.

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k designaryoes "de esquerda" (com a imprecisao que carrega)e "socialista" (talvez pe!o referencial possive! da social-democracia)sao menos estigmatizantes, no sentido de nao bloquearem umaapreciaryao que possa articular outros dados. "Socialisra" pode, in­clusive, portar urn projeto de transformaryao da sociedade tantorevolucionario quanto reformista, e a nao expliciraryao desses sig­nificados permite uma maior receptividade em diversos setores.Sao, em suma, menos ameayadoras, mais aceid.veis e rna is favo­raveis, em termos de ganhos simb6licos, como forma de (auto-)reconhecimento no momenta em estudo. Dar uma verdadeiradisputa pe!o emprego ou nao dos "r6tulos" (designaryoes de iden­tidade) de "comunista"e "marxista":

"'Sou cat6lica, devota de Maria, mae de Deus, e sou socialista.Comunista eum r6tulo idiota porque eu luto por uma socie­dade mais justa e fraterna como prega 0 Evange!ho', respon­deu Erundina... " (j.B., 17/11/88, p. 3).

o jogo de reconhecimento expressa-se de multiplas formas:alem das impmaryoes diretas de identidade, que 0 leitor pode julgaradequadas ou nao, os jornais fornecem diversos elementos - de­c1araryoes, hist6rias de vida, informaryoes sobre a militancia etc.- para respaldar aque!as identidades e direcionar a interpreraryaodo leiror (cf., entre outros, 0 E.s.P, 17/11/88, p. 5). De igualmodo, habiros, bens, aryoes e falas de Erundina servem ao omrocomo referenciais para situa-Ia no mundo social e classifici-Ia;referenciais que serao apreendidos de acordo com diferentes es­quemas de percepryao e apreciaryao.

Atribuindo diretamente identidades, fornecendo dados ouconstruindo previsoes (alarmistas ou redentoras) com base nomodo como Luiza Erundina e percebida e caracterizada, 0 discursojornalistico revela-se enquanro urn processo de argumentaryao quebusca a adesao ao pensamento expresso, a aceitaryao da repre­senta~ao construida, da interpretaryao apresentada. Atraves do po­der simb61ico das palavras - "sua capacidade de prescrever soba aparencia de descrever ou de denunciar sob a aparencia de enun-

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ciar" (Bourdieu, 1982: 150) - busca-se construir 0 significadoda e1ei~o de Erundina. Mas vale lembrar nao apenas que 0 ma­terial fomecido pela imprensa nao e uniforme, como tambemque 0 leitor nao e meramente urn receptaculo passivo, como jao mostraram diversos estudos de recep~o (c[, por ex., Lins daSilva, 1985).

A condi~o objetiva de candidata do PT permite diversasatribui<;:6es de identidade a Luiza Erundina: desde "de esquerda"ate "marxista" e "comunista". Mas os criterios para estas classifi­ca<;:6es nao sao precisos ou racionalmente tra<;:ados, assim comosao multiplos e diversificados os conteudos que Ihes podem serincorporados. Dessa forma, 0 ser petista - enquanto 0 referencialpolitico-partidario disponfvel - e reelaborado simbolicamente dedistintas maneiras, que sem duvida se relacionam com 0 significadoque se da aos resultados eleitorais: e a constru~o deste significadopolftico que, mesmo sob as identidades mobilizadas nos demaiseixos, esti em jogo. Vale ressaltar que, se enfocamos, no jogo dereconhecimento do p6s-eleitoral, a identidade regional, 0 moteda cobertura da imprensa de circula~o nacional e sem duvida 0

politico.

De Mulher a Nordestina: da Candidata do PT aPessoa deErundina

Partindo do pressuposto que 0 Nordeste, atualmente, existeenquanto regiao, podemos dizer que Erundina e nordestina, urnavez que e esta a classifica~o regional institufda, com base nalocalidade de nascimento, considerada em rela~o as mUltiplasfronteiras territoriais oficialmente estabelecidas. Erundina e nor­destina, ainda, pela sua hist6ria de vida (cf. Oliveira, 1988; Neu­manne, 1989), que nao apenas traz inumeros elementos comunsas hist6rias de muitos outros nordestinos, mas apresenta tra<;:osque sao constitutivos da representa~o corrente cia regiao. Dessemodo, a origem familiar - rural e pobre -, as diversas migra<;:6es

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,

enfrentadas - com a familia, por causa da seca, ou para estudar- sao dados que se articulam ao da naturalidade. Objetivamente,portanto, Erundina e nordestina. No entanto, nem sempre estacondic;:ao e 0 criterio utilizado para localiza-la socialmente; nemsempre ea sua "nordestinidade" a marca eleita para a construc;:aode identidade, e mesmo quando 0 e, nem sempre recebe os mesmosconteudos.

• Who is Erundina?

A primeira e mais 6bvia distinc;:ao entre Erundina e os demaiscandidatos vern do fato de ela ser mulher, por ser uma diferenciac;:aosocial basica e que independe da analise de propostas polfticas oude qualquer informac;:ao adicional. Apesar de nao dispormos deregistros da pr6pria campanha, as indicac;:6es presentes no materialestudado apontam que a identidade social de mulher foi priorizadapela propaganda peJa televisao, cujas mensagens possibilitavam(tambem) 0 resgate dos conteudos relacionados a sensibilidade,assim como de outros valores morais passfveis de serem associadosa condic;:ao de mulher:

"...a candidata do PT nao tinha nenhum atrativo evidentepara a dasse media, mas 0 partido resolveu apostar na suacondic;:ao feminina. A mensagem transmitida no horario dapropaganda gratuita de televisao era a de que a mulher precisaser testada na administrac;:ao, pois e menos corrupdvel queo homem" (0 E.S.P., 19111188, p. 5).

Num discurso que pretendesse alcanc;:ar tambem a classe me­dia, nao caberia uma agressividade polftica ou dar relevo a nor­destinidade, que poderia canalizar todos os preconceitos contraos nordestinos. No entanto, pode ter sido enfatizada em diversasoutras situac;:6es, como nas panfletagens e comfcios na periferia3.

3. Relaros cia campanha dao restemunho canto cia forma de reconhecimenro como "amulher" quanto da de "nordesrina", nas a<;:Oes em bairros da periferia (cf. Rebelo,1989:43 e 30 - respecrivamenre).

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"Maluf ou Erundina em Sao Paulo. Quem poderia imaginaresta hip6tese hi urn mes? (...) Erundina conseguiu afastar apecha de 'nordestina' e firmou-se, surpreendentemente, comealternativa..." (F.S.P., 15/11/88, p. A-2.)

Tanto a identidade nordestina nao era priorizada como formade reconhecimento, que os dados de sua origem regional passama ser apresentados com mais freqiiencia aos primeiros sinais, pelaspesquisas de opiniao, de que poderia ser a vencedora. Neste mo­mento, a praticamente desconhecida candidata do PT come~ areceber urn tratamento mais pessoaJ.

"Os correspondentes estrangeiros entraram em panico an­teontem quando se depararam com a quase cefta vit6ria deLuiza Erundina.

(...) Who is Erundina?, perguntavam" (0 E.SP, 17/11188,p. 2, Cad. 2; grifos do original).

Assim, no dia 14 de novembro, 0 referencial da naturalidadee apresentado na Folha, pela primeira vez desde 0 dia 11, surgindocomo explicativo de atos. Urn dado de domfnio publico, 0 6bvio,nao seria repisado - coisas da economia discursiva. Ate enta~,

a forma de reconhecimento preferencial era "a candidata do PT"(cf., por ex., 12/11/88, p. A-7).

"...Luiza Erundina curnpriu ontem uma agenda discreta, li­mitando-se (...) as 13 hs, a urn almo<;:o nurn restauranteespecializado em cozinha nordestina no bairro de Pinheiros,zona oeste. A candidata e nascicla no Estado cia Parafba."(F.5.P., 14/11188, p. A-4 esp.)

o Estado de 50 Paulo, no dia 15 de novembro, ji ressalta aidentidade nordestina (cf. p. 7), trazendo, inclusive, as referenciasde sua hist6ria de vida:

"Eta nasceu numa cidadezinha do SertaO da Parafba, UiraunaC..) Luiza Erundina de Souza, a sexta filha do casal, e asegunda mulher a disputar a Prefeitura" (0 E.S.P, 15/11188,p. 46).

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No entanto, na Fofha, 0 quadro comparativo entre os can­didatos, apresemado no dia do pleito - que traz, a1em das pro­postas para diversos setores da administraryao municipal, uma com­pleta ficha de c1assificas;6es sociais (panido, autodefiniryao ideol6­gica, idade, estado civil, escolaridade, profissao, religiao etc., a1emda declaras;ao de bens) - nao inclui a naturalidade. Pdo menosai, esta nao configura urn criterio de diferenciaryao. A informaryaoesta presente, apenas de modo indireto, no item "hist6rico poli­tico": "Comes;ou sua militancia politica na Parafba, onde nasceu,quando cursava a universidade" (FS.P., 15/11/88, p. A-4 esp.).

o registro da imprensa indica tambem a nao consrancia daidentidade regional como forma preferencial de auto-reconheci­memo:

"Como candidata, Erundina poderia ter votado em qualquerlugar (...). Mas declara ter escolhido aquele bairro da zonaleste porque possui a maior concemraryao de nordestinos, '0

meu povo'. Poi essa uma das rarfssimas ocasioes em que efaenJatizou sua condi(ao de nordestind' (FS.P., 16/11188, p.A-3 esp.).

Para tentar mostrar quem e a nova prefeita, as primeirasreportagens ap6s as estimativas de sua vit6ria trazem verdadeirasfichinhas de c1assificas;6es sociais: "paraibana de Uiratina, 53 anos,solteira, assistente social de profissao" VB., 16/11/88, p.l). Saoatribuis;6es de idemidade construfdas sobre referenciais de naru­ralidade (paraibana ou nordestina), profissao (que varia de soci6­loga a professora), posicionamemo politico-ideol6gico etc., po­dendo ter composis;6es diferemes, mas com a presens;a constameda naturalidade, idade e estado civil.

A freqiiencia desses wtimos dois itens anicula-se aos con­teudos culturalmeme estabelecidos para a idemidade social de mu­lher, vale dizer, aos esquemas de percepryao/apreciaryao dominamesque, marcados pelas rdas;6es sociais de reproduryao, apontam comopadrao de componamento 0 papel tradicional da mulher na 50-

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ciedade brasileira. E este papel, que the priva do exerdcio dapolftica e dos cargos publicos, subordina-a ao homem, nao apenaspelo casamento como meta, mas pela interdi~o apr6pria sexua­lidade. Assim, "mulher" nao e 0 bastante, e 0 processo de iden­tificaryao exige 0 complemento do estado civil. A referenda aidade,estabelecendo a inclusao a uma classe etiria, remete tambem aurn padrao de juventude e beleza, culturalmente valores, quandose trata de mulher.

A naturalidade vern completar, nesses fichamentos, a descri­~o social de Erundina. Segundo Bourdieu, a interse~o das di­versas classes (de idade, de genero, profissional, classe social etc.)a que penence 0 indivfduo define, em um momento d4do do tempo,"sua identidade social" (1979:562). Neste sentido, essas diversasfichas de classificas:6es visam tras:ar "a identidade social" de Erun­dina. Por outro lado, a ideia de interse~o indica que esta iden­tidade nao se repona apenas a urna determinada classe, nem eevolutiva ou definitiva; e sobretudo mUltipia e potencialmentedinamica. Assim, nao se pode pensar em a identiddde social ­enquanto unica e central - senao de urn modo extremamenteefemero, e como resultante das diversas identidades sociais (ex­pressas em tftulos, nomes etc.) movimentadas pelo indivfduo. Porisso, preferimos pensar sempre em as identidddes sociais.

A naturalidade pode vir como informa~o sobre 0 estado oulocalidade de nascimento, mas "nordestina" relaciona-se hierar­quicamente com "paraibana" ou "uiraunense" (que, em outro nf­vel, poderiam ser eixos de diferencia~o), pela subordina~o aoposi~o Nordeste/Sul-Sudeste, historicamente construfda. Faz-sesem entraves, ponanto, nos discursos analisados, a passagem de"paraibana" a "nordestina". 0 Jornal do Brasil por exemplo, quan­do comes:a a tratar mais pessoalmente de Erundina, apresenta-arecorrentemente pelo estado de origem; mas, ao longo do texto,a naturalidade da fichinha inicial - "a paraibana Luiza Et:Undinade Souza, solteira, 53 anos" - desdobra-se no regional - "xiita,nordestina, mulher" ... (l6/11/88, p. 3 - grifos do orginal). Mes-

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mo em 0 Estado de 5. Paulo, que nos primeiros dias dedica 0

maior espas;o asua hist6ria de vida com perfeitas "reportagens deinteresse hurnano", enfocando particularmente a cidade natal, aaniculas;ao a referencia regional e evidente: a "vit6ria de urnamulher nordestina", com 0 refors;o da forma de a(re)presentas;ao"a senaneja" (19/11/88, p. 4).

Paralelamente a imputas;ao da identidade nordestina combase na naturalidade, intensifica-se 0 oferecimento de informas;6esque possam respaldi-Ia ou refors:i-la, ji que dados diversos podemser diferentemente articulados para referenciar as atribuis;6es deidentidade. Desse modo, estao presentes os elementos das viriaship6teses de "0 que faz ser nordestino", tratadas teoricamente nocapitulo anterior:

• a naturalidade, com sua relas;ao espacial hierarquizada;

• a vivencia, nas pr6prias hist6rias de vida;

• as priticas culturais, principalmente aquelas consideradastipicas (embora nao sejam apontadas com freqiiencia forado contexto da hist6ria de vida);

"Ao grande publico informa que adora Chico Buarque, Mil­ton Nascimento e Elis Regina. A irma Lourdinha lembraseu entusiasmo pelo flrr6 nordestino" (0 E.5oP, 19/11/88,p. 5).

" ... 0 sotaque forte, nada disfars;ado... " UB., 16/11/88, p. 3).

• flagrantes de auto-reconhecimento, tanto mais significati-vos quando demarcam urn grupo a que se pertence.

"'Escolhi este lugar para votar porque aqui hi urna concen­tras;ao maior do meu povo, 0 povo nordestino', dizia... " (l.B.,16/11/88, p. 3.)

A nosso ver, essas referidas fichinhas revelam nao apenas anecessidade de fornecer informas;6es sobre a candidata ate entaodesconhecida, mas uma abordagem que enfatiza mais a pessoa daprefeita do que a representante do partido - "a candidata doPT" -, que, se era a forma de a(re)presentas;ao recorrente e su-

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ficiente em outros momentos, se torna agora mais urn referencialde identidade em jogo na construs;ao de urna imagem de Erundina.Este enfoque explicita 0 processo de vedetizas;ao, que a transformanuma "personal idade imaginariamente imitivel" , enquanto urnadas estrategias do "discurso da atualidade", marca da reconstrus;aojornalfstica (cf. Fausto Neto, 1988:77-78). Desta forma, Erundinapode ser "a musa da primavera paulistana" (FS.P, 29/11/88, p.A-G) ou "a estrela da polftica nacional" (0 E.s.P, 4/12/88, p.3).

• 0 "Jegue de Tr6ia"4 X 0 Senanejo Forte

Mas a identidade nordestina recebe diferentes conteudos, quecabe explicitar. Nos primeiros dias do p6s-eleitoral, quando 0

dado da origem regional de Erundina e freqlientemente apresen­tado, os significados depreciativos sao esparsos, embora possamser encontrados comentarios galhofeiros que recuperam os este­re6tipos do nordestino:

" ... 0 que a nova prefeita colocari no lugar da estatueta deAbraham Lincoln, que Janio guarda com tanta admiras;aodesde 0 infeio de seu mandato?

Os funcionarios mais ironicos arriscam 0 seu palpitenum jegue, os mais folcl6ricos num chapeu de cangaceiro,e os religiosos, na estatueta do padre Cicero" (0 E.s.P,17/11/88, p. 2-Cad.2).

E exacerba-se 0 cariter depreciativo pela oposic;ao entre esses ele­mentos tfpicos a que se reduz a cultura da regiao, e que sao"deduzidos" a partir da naturalidade, e os valores e emblemaspaulistanos:

4. "Jegue de Tr6ia" - expressao utiJizada com rdas:ao a Erundina (lsto e, 30/11188,p. 30).

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"0 primeiro projeto da prefeita Erundina sera tirar 0 ban­deirante Borba Gato da avo Santo Amaro e colocar 0 'Pa­dincisso'" (F.5.P., 21/11/88, p. A-3 - cana de leitor).

Esta e uma tipica "representae;:ao galhofeira" (cf. Galvao, 1977),pois nao se trata de discutir propostas de administrar;ao, mas desimbolicamente configurar 0 absurdo, com 0 carater de acusa­r;ao/depreciar;ao. No entanto, e interessante notar que chega even­tualmente a ser discutida a serio, numa mudanc;:a de registro doenunciado (cf. 0 ES.P., 25/11188. p. 2 - cana de leitor).

No primeiro momento do p6s-eleitoral, na Folha de S. Paulo,o eixo de discussao prioriza a identidade polftica. Ja 0 Estado deS. Paulo explora amplamente a hist6ria de vida, mas enfatizandovalores morais e intelectuais, construindo a imagem da lutadoraque venceu a adversidade pelo esforc;:o e merito pr6prios:

"A saga da filha de dona Enedina, (. ..) de uma pauperrimacidade do senao da Parafba, ganha tons epicos no momentoem que ela derrota, ao mesmo tempo, a bern aparelhadamaquina administrativa do mais rico estado do Brasil e urnmilionario filho de imigrantes (...).

Stalin era neto de escravos, Abrahan Lincoln foi lenhador(. ..). Mas nem mesmo a Hist6ria pode atenuar 0 impactoda vit6ria de uma mulher nordestina, pobre e sem atrativosfisicos" (0 ES.P., 19/11/88, p. 4).

Desse modo, a hist6ria de vida, privilegiando a identidadenordestina na revelar;ao de quem e Erundina, incorpora conteudospositivos a essa identidade. Por outro lado, estes tambern the saoassociados pela representar;ao idealizada do nordestino, enquantoproduto de uma generalizar;ao universal, que Erundina reedita:ela tern "a paciencia e a garra do nordestino que desabrocha comas dificuldades" (F.5.P., 21/11/88, p. A-3) e 0 "jeitJo despachadodos sertanejos, habituados a urgencia e as mais crueis carcncias"(0 ES.P., 17/11/88, p. 5). De outro modo, elementos oriundos

100

· dessa mesma representa~o idealizada sao articulados a trajet6riaparticular de Erundina, atraves de urna instancia~o existencial:

"Mas eu nao quero esquecer a dimensao hurnana da longacaminhada dessa nordestina, desde 0 serrao da Parafba ate 0

planalro paulista, mostrando a rafa de quem soube veneer osespinheiros do xique-xique e as asperezas do asfalto" (FS.P.,23/11188, p. A-3).

Assim, podem ser encontradas tanto a represenra~o depre­ciativa do nordestino quanto a idealizada, ambas culturalmenteconstruidas, oferecendo sellS conteudos a identidade nordestina~tribufda a Erundina. Em outro momento, a represenra~o idea­lizada torna-se saudosista, pois 0 nordestino de hoje (ainda emtermos universais) nao mais the corresponde, mas sem que a pre­feita seja, desta feita, atingida pela generaliza~o:

"Este sertao feudal, parado no tempo e esquecido na Hist6ria,encontrado pela prefeira e1eita da maior cidade do Pais, con­tudo, esti perdendo seu orgulho inquebrantavel de outrostempos. Hoje, ao contrario do homem forte encontrado porEuclides da Cunha em sua peregrina~o pelas caatingas daBahia na virada do seculo, 0 sertanejo e urn ser domadope1a miseria e pe1a falra de perspectivas" (0 E.S.P., 4/12/88,p. 3 - editorial).

A ldentidade Nordestina como Eixo de Acusarao

Nos primeiros dias do p6s-e1eiroral, a identidade nordestinanao e urn instrurnento de araque a Erundina. Mas passa a serutilizada como urn eixo de acusa~o, com fortes conteudos derebaixamento, a partir de urn dado momento, de uma certa fala"competente" - entendida enquanto "0 discurso do especialisra,proferido de urn ponto determinado da hierarquia organizacional"(Chaui, 1984:11).

101

• "Paulo Francis, de Nova York, Esculhamba Paraiba PT"5

E sobretudo a panir do anigo de Paulo Francis - "~ta,

Enlndiina, arretada" (FS.P, 19/11/88, p. E-12) - que se acirraa disputa pelos conteudos a serem dados aidentidade nordestina,acendendo urna verdadeira polemica, expressa nas inumeras canasde leitores (cf., por ex., FS.P., 25/11/88, p. A-3).

Uma analise detalhada do texto revela que 0 eixo da criticae eminentemente politico, sendo este, inclusive, 0 teor da chamadade primeira pagina: "FARSA PETISTA REPRODUZ A TRACEDIACOMUNISTA". 0 ataque dirige-se, pois, primordialmente a es­querda, e como tal a Erundina:

"Mas do velho PC, farsesco pela pr6pria natureza dos zigue­zagues sovieticos, emergiu esta caricatura absurda que e 0

PT, que ganhou 0 poder nalgurnas 'das principais cidades deSao Paulo, em Vit6ria e Pono Alegre. Sao Paulo e maisgrave. Era 0 unico fugar que fimcionava no Brasil Vai deixarde ser. Erundina, Erundiina, a prefeita da capital, e urnablanqwsta sem 0 saber. Ja disse que 0 'direito' de ocupa~o

e maior que 0 direito de propriedade e vai governar comcomites populares".

Urn ataque polltico que se respalda no modelo de sociedade de­fendido pelo autor, e ao qual 0 Brasil nao corresponde - comexce~o de Sao Paulo. Esta linha de pensamento, que marca 0

texto como urn todo, encadeia 0 unico trecho em que sao expli­citadas as referencias ao Nordeste e a origem regional - naoapenas da prefeita, mas tambern do presidente:

"Com Sarney na Presidencia 0 Brasil mais e mais se assemelhaao Nordeste. Ele nos reduz progressivamente ao seu serraomental. (...) Sao Paulo era outro pais, a Bel da Bel£ndia.

5. T.recho do ametirulo de: Nilson Laje, "Tern que sec macho, Erundina" (Pasquim,25//11/88, p. 5).

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Agora a India chegou Ii capital Sei que ji estava na periferia,nas imensas favelas que a linica chance de e1iminar estavana possibilidade de deixar 0 setor privado criar riquezas. Agora,vamos ter 'lura de classes' C..) a brasileira, conduzida poruma senhora marajd sentadd na Prefeitura. C..) devem estarimaginando que Erundina representa a alianc;;a entre 0 pro­letariado paulista e 0 'campesinato' nordestino... " (FS.P,19/11/88, p. E-12).

Paulo Francis tece previsoes "catastr6ficas": a volta do regimemilitar ("Esta gente parece estar implorando aos militares - aunica forc;;a armada do pais - que os cale e maniete, de novo")e a decadencia de Sao Paulo. Estas previsoes relacionam-se naoapenas a nordestinidade de Erundina, mas principalmente a ima­gem politica que the e construida, sendo sua inadequac;;ao reforc;;adapela sua condic;;ao de mulher: 0 PT e urna "galera de porras-loucas,que poem uma senhora na /rente, puxando 0 cordio de fantasiasde fraternidade sem qualquer base no Brasil real" (FS.P,19/11/88, p. E-12).

Se a critica constr6i (e se constr6i sobre) uma representac;;aode Erundina que tern por eixo a identidade polftica, a apropriac;;ao,no titulo, de urn linguajar tipificado como nordestino e 0 usointermitente de "Enindiina", ao designar a prefeita, sao mecanis­mos que recolocam constantemente a identidade nordestina, en­trecruzando-a a polftica e tornando-a uma forma de acusac;;ao.

A questao da nordestinidade e ressaltada na resposta de MariaRita Kehl, cuja argurnentac;;ao procura, pela acusac;;ao de racismo,deslegitimar a interpretac;;ao de Paulo Francis, especialmente noque concerne as suas previsoes catastr6ficas:

"[Paulo Francis] Acusa a cupula do PT de pensar que aculpa da miseria do Brasil e da ganancia dos ricos (... ) paranos informar que a culpa e da inferioridade racial dos pobres.E porque somos urn pais de nordestinos, pretos e cafusosque somos urn pais pobre. (...).

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A rac;a e nossa perdi~o. 'Sao Paulo era wn freio contra estaderrapada monumental ladeira abaixo' (...). Nossa desgrac;acomec;a agora, e por que? Porque teremos prefeita nordestina"(FS.P., 24/11/88, p. A-3).

Sem duvida, 0 artigo de Francis catalisa preconceitos latentescontra os nordestinos. Mesmo que estes nao estivessem explicitadosnos dias anteriores no material da imprensa, certamente estavampresentes no jogo de reconhecimento que se passava na sociedademais ampla. E, uma vez que nas paginas da Folha - espac;:o deprodu~o de urn discurso reconhecido como competente - aidentidade nordestina surge como acusa~o, carregando wna apre­ciac;:ao eminentemente. negativa, com conteudos depreciativos ede inadequac;:ao, a questao vern a tona, abrindo-se espac;:o tantoa reitera~o desta representa~o quanto a manifestac;:6es divergen­tes, numa clara dispura pela interpreta~o legftima, que extrapolaos limites daquele jornal.

• Variac;:6es sobre urn Tema: A Invasao dos Nordestinos

Apesar de todo 0 ineditismo da elei~o de Luiza Erundina,eJa nao e 0 primeiro cidadao nao paulistano a ocupar 0 cargo deprefeito. De fora tambem e seu antecessor, ]anio Quadros.

"...esta cidade e sequiosa de originalidade. Tanto e que quan­do nao a tern importa-a, de Campo Grande ou Uirauna, embusca do embalo alternado, polarizado, misrurado, da guariniae do xaxado, para a anima~o de nossa democcitica festa-baiJesuburbo-megalopolitana." (0 ES.P., 1/12/88, p. 2.)

Mas a origem nordestina de Erundina contextualiza-a emSao Paulo como migrante, de modo que a vivencia atual e anaturalidade sao opostas wna a ourra, permitindo que a prefeitaseja "igualada" a toda uma leva de nordestinos que chegam aquelacidade, como conseqiiencia das relac;:6es entre 0 Nordeste, en­quanto fornecedor de mao-de-obra, e a industrializa~o centrali­zada em Sao Paulo. f enquanto migrante que a presenc;a de Erun-

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dina pode ser apreendida como uma invasao - como faz PauloFrancis - e nao mais como importa<rio desejivel e desejada:

"Luiza nao e Rosa. E urn sopro violento de nordestino iti­nerante na vida de Sao Paulo. E a surpreendente escolhairresponsavel de uma ilustre Erundina perdida no tumultopolitico da feni! terra de Piratininga. Ea lamentivel ausenciado sentimento glorioso do tradicional paulistano, que infe­lizmente esti perdendo sua hist6rica identidade" (Isto e,14/12/88, p. 14 - carta de leitor).

Generalizando-se da elei<rio de Luiza Erundina para todosos seus conterraneos, a representa<ri0 da invasao de Sao Paulopelos nordestinos demarca, atraves das identidades, os espac;:os deatua<rio. A naturalidade, enquanto marca de origem, toma-se con­di<ri0 de ilegitimidade para a efetiva atua<rio no espac;:o paulistano- 0 que e tanto mais grave quando se trata da atua<rio polftica.Isto permite a articula<rio das identidades politica e regional, nurnaargumenta<rio que aponta a prefeita como indesejivel e que lheinterdita 0 exerdcio do poder:

"Marxis~a, defende a socializa<rio dos meios de produ<rio, ainvasao de terras, a greve sem limites e muita coisa mal ex­plicada. (...)

Quando ji temos no munidpio cerca de 3 milhoes de nor­destinos, onerando Sao Paulo (... ) a pr6pria elei<rio de urnaprefeita nordestina, s6 com essas promessas, podera trazerurn acrescimo de migra<rio que se tamara insustentavel..."(0 E.5.p., 7/12/88, p. 26).

A articula<rio dessas identidades sobrepoe-se ate mesmo aidentidade de genero, que em outros momentos foi priorizadapara marcar, por seus conteudos culturais tradicionais, igual in­terdi<rio. Urn dos exemplos mais expressivos e encontrado naspalavras de seu antecessor:

"...Janio Quadros nao queria nem ouvir falar na possibilidadede ser sucedido por Luiza Erundina, a candidata do PT.

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- Ela nao ganha. Nao admito a hip6tese. Mulher, eu s6gosto com crian~ no colo ou preparando tutu de feijao paramim. 0 que eu penso de passar 0 cargo a uma mulher? Eupenso que ela nao encontrou marido ao longo da vida. S6isso" (j.B., 16/11/88, p. 6).

o esquema da "amea~ comunistalmigrante" pode ser es-tendido facilmente a outros petistas...

"Ja temos uma prefeita ex-guerrilheira, marxista, paraibana(...) E 0 que sera daqui a urn ano? Sera que teremos urnpresidente ex-metalurgico, radical, pernambucano (...)? (0E.5.P, 10/12/88, p. 2 - carta de leitor.)

... ou mesmo a esquerda de modo geral:

"... nossa rude esquerda sertaneja, que hoje naufraga no seuNordeste natal para se emergir erundinicamente, vitoriosa­mente, as margens do Tiete" (0 E.5.P, 20/11/88, p. 2).

Sera, entao, que 0 problema (polftico) da esquerda e ser nordestina?

Ja a representalYao da invasao das "hordas nordestinas" (Istoe, 14/12/88, p.14) muitas vezes nao articula expressamente asidentidades politica e regional, pois esta Ultima, priorizada, e su­ficiente para configurar a "amea~" de Luiza Erundina - e suarejei~o. Para corroborar tal representa~o, sao oferecidos elemen­tos diversos, como a reportagem sobre a chegada de paraibanos,que, pretendendo dar urn tratamento objetivo ao tema, oferecedados numericos6

:

"Diariamente 90 onibus vindos de varias cidades do Nordestetrazem cerca de 3.015 migrantes nordestinos para S. Paulo,uma situa~o enfrentada pela prefeita e1eita Luiza Erundina,

6. As cifras apresentadas rem por base a lotas:ao media dos 8nibus, sem diferenciar osdiversos objerivos dos viajanres (nem rodos sao migranres). Bas dariam, no periodode urn ano, 0 roral de 1.100.475 "migranres nordesrinos" chegados a Sao Paulo,que sao calculados por V~a (23/1 Jl88, p.36) em 60 mil ao ano.

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quando veio para ca, hi 17 anos. (...) Muitos dos conterclneosparaibanos de Erundina tern chegado a Sao Paulo informadossobre sua vit6ria e acreditam que agora dispoem de urn re­presentante leg/timo no poder. .." (F.S.P., 24/11/88, p. C-2).

Desse modo, a identidade nordestina de Erundina passa a carregarnao apenas atributos negativos pessoais, mas uma responsabilidade"coletiva", por todo urn movimento hist6rico-social de migrac;ao.No entanto, tambem nas piginas dos jornais, outra versao possivel:

"Erundina disse que sua posse nao provocaca 0 aumento damigrac;ao de nordestinos para Sao Paulo: '0 problema e an­tigo e, enquanto nao for realizado urn programa global dedesenvolvimento para 0 Brasil, muita gente continuari pro­curando os grandes centros" (0 E.SP., 11/12/88, p. 38).

Urn local espedfico torna-se a arena simb6lica da "luta" pdodireito ao espas:o da cidade:

"0 parque do Ibirapuera, canao-postal de Sao Paulo (...).Eo lugar preferido de gente bem-sucedida (...) e de moradorescia periferia, muitos deles nordestinos (...). No parque do Ibi­rapuera tambern se decide 0 futuro de Sao Paulo: Ii fica asede da Prefeitura, que a panir de janeiro seri ocupada pelanordestina Luiza Erundina" (0 E.SP., 20/11/88, p.l).

Essa disputa revela-se com toda clareza nas canas dos leitores,que, embora tratadas editorialmente, sao 0 reflexo (relativamente)rnais direto dos discursos que se entrecruzam no espas:o socialmais amplo, expressando os valores e os esquemas de percepc;ao- as conceps:oes de mundo, em suma - que nde se confrontam.Reaparecem ai as previsoes catastr6ficas, assim como sua refutac;ao:

"Paulistanos: visitem 0 Parque do Ibirapuera antes que eleacabe. A capital paulistana agora e 'nordestao'" (F.SP.,30/11/88, p. A-3).

"0 maior numero de empregados na construc;ao civil sao depessoas do Nordeste que ajudaram a construir Sao Paulo. Anossa prefeita Erundina nao vai destruir 0 Parque do Ibira-

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(F5.P,a citada

e a de construir"leitor, respondendo

desse povo- carta de

puera, a missao13/12/88, p. A-3acima).

E a identidade regional que fundamenta a equa~o "nordes­tino = migrante = invasor". No entanto, a naturalidade pode serincerpretada com outros significados:

"Espero, sinceramente, que todos os paulistanos, legftimos e/ouadotivos, permane~m lucidos como foram ao eleger nossanova prefeita." (F5.P, 4/12/88, p. A-3)

Na representa~o do nordestino como urn paulistano adotivo,"que veio de longe"?, construfda em outras bases, os direitos aatua~o polftica no espayO de Sao Paulo nao sao consideradosexclusivos dos ali nascidos. Invasao ou ado~o: nao apenas dife­ren~ de termos, mas de esquemas de percep~o, conservados nalinguagem corrente enquanco depositiria das formas de classifi­cayao que norteiam a apreensao das relayoes sociais - vale dizer,dos prindpios de visao do mundo social, que nao sao nuncaindependentes da esttutura social (Bourdieu, 1982:185).

• 0 Preconceito Contra Os Nordestinos

"A 'naturalidade' nordestina e os diversos preconceitos queela desperta estao mais uma vez patentes num momentacomo este, em que a paraibana Luiza Erundina foi eleitaprefeita de Sao Paulo."

7. Exprcssao urilizada em publicidade da Varig - "Ryoichi-San. Um Brasileiro queVeio de Longe" - que, homenageando os 81 anos da irnigra~o japonesa, colocaa interessante questao: "sera Ryoichi urn imigrante japon~ ou urn brasileiro quenasceu no lapao"? (V~a, 21/6/89.)Interpreta~o correlata a do nordestino como urn paulistano adorivo pode ser en­conrrada na forma como Erundina ea(re)presenrada por uma revisra de seu partido,dois anos apcs a elei~o: "a prefeita da capital, pau/istana de Uirauna, na Parafba"(Freire e Azevedo, 1990:11 - grifos nossos).

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Em pesquisa realizada em 1987, Pierucci aponta "a presenc;:adeclarada de atirudes e sentimentos discriminat6rios contra os imi­grantes pobres do None e Nordeste na mentalidade de imponantesestratos das classes medias paulistanas", 0 que considera como"urn triunfo cultural da extrema direita" (1987:29). Esse precon­ceito, que se volta contra os novos vizinhos de bairro ou aquelescom os quais se entra em contato no trabalho, anicula identidadessociais, afirmando a diferenc;:a em relas;ao ao mais pr6ximo, querepresenta a maior ameac;:a. Por outro lado, se forem consideradasas posis:6es sociais que a grande maioria dos migrantes nordestinosocupam em Sao Paulo, observa-se que 0 criterio classificat6rio debase regional encobre a linha de diferencias;ao de classes sociais.

A nosso ver, a representas;ao do nordestino que circula entrecenos grupos paulistanos, carregada de conteudos/atributos nega­tivos - invasor, parasita, sem moral, sem educas;ao etc. (cf Zi­raveII0 , 1988:4) - e, especificamente no momenta p6s-eleitoral,correlata da representas;ao da "ameac;:a comunista". E assim, comofoi visto, a identidade nordestina cruza-se a polltica, ou ainda seisola, quando a nordestinidade de Erundina torna-se urn estigma,capaz de fundamentar, por si s6, a atribuis;ao de identidade e osjulgamentos de valor.

"Dentre as inumeras repercuss6es resultantes da vit6ria deurn partido de oposis;ao na capital paulistana, uma delas me­rece repudio: a de que se queira julgar a competencia de umindivlduo por sua naturalidade, principalmente quando nesseconceito esra embutida a classe social, a que ele penenceu

"ou pertence.

A naturalidade e/ou os tras:os tidos como tipicos (por ex., 0

sotaque), estigmatizados, passaro a ser apreendidos como urna"qualidade diferencial" - nos termos de Goffman (1982:51) -,suficiente para desacreditar. Desse modo, a identidade nordestinase torna uma acusas;ao, urn insulto - enquanto ato com intens;aoperformativa ou migica, que pretende atribuirurna "essencia social"("conjunto de atributos e atribuis:6es sociais"), e por conseqiiencia

109

urn padrao de comportamento e urn determinado espas;o de atua­s;ao (Bourdieu, 1982: 126). 0 preconceito contra os nordestinos,canalizado contra Erundina, mascara 0 faro de que a oposis;ao aela tern sua origem no campo politico e social, pois, sob variosaspectos, ela transgride a "ordem" dominance:

".;.esse preconceiro hoje se despe, arreganha os dentes, es­braveja pelos cantos, indignado com 0 triplo golpe repre­sentado pela eleis;ao de Luiza Erundina: PT, mulher, nordes­tina" (F.S.P., 21/ 11/88, p. A-3)8.

Por seu posicionamento polftico-ideoI6gico, enquanto mi­grante e tambem enquanro mulher, Enmdina rompe as regrasnao escritas de acesso ao poder numa sociedade de classes, capi­talista e de estrutura patriarca!:

"Na dispura pelo cargo da principal Prefeitura do Pais, umamulher nordestina, solteira aos 54 anos, ameas;a quebrar osvalores de uma hist6rica cidade quatrocentona e desafiar a he­gemonia masculina, dispurando um dos posros da adminis­tras;ao que movimenta 0 maior volume de recursos de urnmunidpio brasileiro" (0 E.s.P, 15/11/88, p. 7).

Sua vit6ria e, para quem com ela se indigna, um verdadeiro"esclndalo" - contexro onde se situa a fala da imprensa. Naspaginasdos jornais entrecruzam-se inumeros discursos - inclu­sive aqueles que questionam 0 preconceito e prop6em novos va­lores - numa disputa que reflete a dinamica de poder na sociedademais ampla.

Sao poucos os artigos que tratam daramente da queStao dopreconceiro contra os nordestinos - ou, em outros termos, desua aceitas;ao. Os espas;os que mais se ajustam a essa discussao

8. Todos os cres ulcimos crechos cicados sao do arcigo de Marilene Felinro, "Naturaldo Nordeste". Apesar de nao haver menyao expressa ao arcigo de Paulo Francis,surge, na sequencia de apresencayao, dois dias apcs, podendo ser considerado comouma resposca aquele.

110

sao aqueles dedicados a fala pessoal, aopiniao, ao comend.rio, enao as reportagens. Mais uma vez, as selYoes de canas retraram 0

confronto entre "opinioes preconceituosas" e defesas que apontama "contribuilYao do povo Ii de cima" (F.S.P., 19/12/88, p. A-3- carta de leitor). Alem do ji citado anigo de Marilene Felinto,dedicado ao tema, foi encontrado ainda, apenas, a cranica deRachel de Queiroz, "A Aceitayao cia 'Nordestinidad', Agora Ina­diivel" (0 E.s.P., 25/11/88, p. 2-Cad. 2):

"...a marcha, antes lenta, dos nordestinos, na sua conquistada cidadania paulista, de tal forma se acelerou que atropelatodas as previsoes. (...)

Entao, insisto: s6 estou previnindo, pedindo que se acostu­mem a aceitar a nordestinieUui. (...) Eles estao at. E nao maiscomo mao-de-obra barata, serventes de obras, empregadasdomesticas. Eles ji queimaram essas etapas e agora brigampelas liderans:as. Estao at Lula, pernambucano, Erundina,parai bana, Genoino, cearense, Luis Medeiros, amazonense,filho de nordestino. Nao mais carneiros de batalhao, mas afrente da tropa, carregando bandeira e pendao".

o seu pedido pela aceitayao dos nordestinos e mais urn avisode que eles "chegaram para ficar" , proclamando assim 0 direitoao espalYo paulistano, e nao apenas no hist6rico pape! subalterno,mas em funlY6es politicas de decisao. No entanto, 0 impacto dessadeclarayao e suavizado pela re1ativizayao do aspecto politico:

"Hoje, ao sol da vit6ria, mostram-se radicais ideol6gicos,quase xiitas. Mas ninguem se assuste muito. 0 poder ensina,e quanto. Algum tempo mais e estarao no mesmo grupoaAito de n6s todos, descrentes do poder criador do grito ecia denuncia" (0 E.s.P., 25/11/88, p. 2-Cad.2 - grifos dooriginal).

Nos dois artigos que abordam a questao do preconceito, aargumentayao entrecruza referenciais politicos e de naturalidade

III

regional, mas 0 fazem diferentemente. Marilene Felinto relacionao acirramento do preconceito ao significado politico da eleic;ao,enquanto em Rachel de Queiroz 0 esvaziamento do politico pareceser capaz de "facilitar" a aceitac;ao da nordestinidade de Enmdina.Em ambos os textos, cujas autoras sao tambern nascidas no Nor­deste, encontra-se em curso 0 esfor~o para dar novo conteudo aclassificac;ao dominante quanto aorigem regional (ou, em OUtfOStermos, arepresenta~ao de identidade nordestina), enquanto urnaIuta pelo poder simb6Iico de definir os princfpios de constfuc;aoe de avaliac;ao de sua pr6pria identidade (cf. Bourdieu, 1980:69).

A reivindicac;ao final de Felinto proclama urn ideal igualitirio:

"Nern deve ser bairrista 0 argurnento que se erga contra asvozes do preconceito. (...) Epreciso que se assegure tam berna todos os brasileiros - inclusive aos que deixam a sua terranatal quase sempre pela mais premente necessidade - 0

direito aos Ibirapueras do pais, seja para namorar numa tardede sol, na companhia de urn ridio de pilha, seja para assurnirurn cargo de prefeito Iegitimamente eleito" (FS.P., 21/ 11/88,p. A-3).

Em suma: que a diferen~ (de naturalidade) nao signifique desi­gualdade. Este e0 objetivo de diversos grupos - negros, mulheres,e outros - que Iutam em tomo de identidades especfficas, emboranao tenhamos conhecimento, nesse sentido, de grupos organizadosde nordestinos.

Varios destes grupos recebem apoio do PT e de sua candidata(cf., por ex., Soares, 1989, quanto a relac;ao do PT com 0 mo­vimento de mulheres), 0 que pode ser avaliado de diversas formas.Pierucci acredita que esta nova causa "borra as diferen~s entreesquerda e direita", argumentando ser urn "velho valor da direita"a defesa das diferen~ e a esquerda 0 "porta-estandarte da noc;aode igualitarismo" 0987:35). Quest6es semelhantes sao Ievantadaspela imprensa no perfodo estudado (cf. F5.P., 12/12/88, p. A-2).

112

No entanto, a nosso ver tal nao acontece, na medida em que,coni; as novas bandeiras, se mantem 0 confronto entre concep~oes

distintas da vida social. A "direita" naturaliza as diferen~, e assimas peculiaridades pressupoem e justificam uma hierarquia social- "cada urn no seu lugar". Por sua vez, os diversos movimentosem tomo de identidades buscam 0 reconhecimento social da di­feren~ e a conquista de direitos iguais: diferente, mas nao desigual.Nesta medida, 0 ideal igualitirio nao e abandonado quando sebuscam novos valores, que nao discriminem.

Uma vez que qualquer "subversao poHtica pressupoe urnasy.bversao cognitiva, uma conversao da visao de mundo", essaproposta integra urn projeto polftico, em oposi~o "a visao ordi­naria, que apreende 0 mundo social como mundo natural". En­quanto enunciados performativos, 0 projeto, a proposta, a utopiapodem contribuir para a realidade daquilo que enunciam, na me­dida em que 0 tomam "concebivel e sobretudo acredicivel", crian­do assim "a representa~o e a vontade coletivas que podem con­tribuir para produzi-lo" (Bourdieu, 1982: 150). E essa transfor­ma~o de valores Erundina pode representar - enquanto nor­destina, e tambem enquanto mulher:

'''A substitui~o de valores e revolucionaria; eleger em SaoPaulo uma mulher trabalhadora, nordestina, sem atrativosffsicos, e urn grande sinal de mudan~. A gente s6 altera urnsistema mudando a cabe~ e os valores das pessoas', disse"(0 ES.P., 20/11/88, p. 4).

Finalizando, 0 "escindalo Erundina" e, ponanto, 0 contextoque permite compreender a utiliza~o cia identidade nordestinacomo urn eixo de acusa~o: estao em jogo nao apenas os conteudosa serem incorporados a essa identidade regional, mas tambern aprevisao/prescri~o de espayosde atua~o, componamentos e ati­tudes para a prefeita eleita - e, por extensao, para os nordestinosem geral.

113

Mulher e Nordestina: Incompetencia ou Trunfo?

• A Equa~o Pobre/Brega/lncompetente

A prioriza~o da identidade nordestina permite perceberErundina como pertencente a massa de migrantes que chega aSao Paulo, sendo assim igualada a e1es, recebendo tal identidadeatributos relativos a pobreza, despreparo e incapacidade. No en­tanto, Erundina "nao aportou analfabeta, como os patrfcios emgeral. Ja era estudada, formada, sabida" (0 ESP, 25/11/88, p.2-Cad. 2). Na sua hist6ria de vida, a educa~o formal, enquanto«aquisi~ode competencias legitimas" (Bourdieu, 1982:85), marcauma lenta trajet6ria de ascensao social:

"0 pequeno agricultor Tonheiro [pai de Erundina] (...) criouseus ftlhos no trabalho duro, mas nao permitiu que as filhasse aprox.imassem da enxada. Em sua visao de futuro, as mu­Iheres precisavam se amparar nas letras para evitar a depen­dencia, caso nao viessem a se casar. AfInal, e1as nao tinham

.0 dote dos grandes fazendeiros" (0 ESP, 19/11/88, p. 4).

Diferenciam-se, portanto, nao apenas quanto as condis:6es mate­riais de vida mas principalmente quanto acapacidade de produs:aoe consumo simb6licos, a Erundina crians:a em Uirauna e a can­didata do PT aprefeitura - assistente social do munidpio, pro­fessora universitiria, deputada estadual. No entanto, "pobre" euma dassificas:ao aplicada relacionalmente, ao mesmo tempo emque pode tomar como base elementos diversos. Assim, pela suaorigem social, Erundina efreqiientemente apresentada como "po­bre" ou "nordestina pobre" (cf., p. ex., 0 ES.P, 19/11/88, p.5). "Pobre" pode, ainda, tomar como referencial a sua praticapolftica - sua militancia na periferia, os grupos de que se fazporta-voz:

"Em outubro do ana passado, e1a participou de uma invasao'de terrenos em Guaianazes, na Zona Leste de Sao Paulo, e

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envolveu-se numa refrega com soldados da Polfcia Militar.Quem estava enfrentando a PM nao era uma parlamentarou professora universitiria. (...) Em Guaianazes, Erundinaera a militante petista por excelencia, brigando pela sua gente"(Veja, 23/11/88, p. 37-38).

Alem da correlar;ao com "pobre", 0 conteudo de incompe­tencia pode ser trazido tambem pela identidade social de mulher,nao apenas pelo seu papel tradicional na sociedade, mas atravesde outra associa~ao: via "brega", Erundina e avaliada por urn mo­delo de feminilidade que envolve aspectos como a beleza e a ele­gancia. 0 julgamento pela negar;ao de wn padrao de bek'l:J ex­pressa-se de inumeras formas, que vao desde dedara~6es preten­samente objetivas - "desprovida de beleza fisica" (0 E.5.P,19/11/88, p. 5) - a qualifica~6es que podem (talvez) ser consi­deradas carinhosas - "baixinha e gordinha" (fB., 17/11/88, p.3) -, ate a irreverencia de "com as formas de urn Fusca" (Veja,23/11/88, p. 34) ou "prefiro a [Luiza] Brunet" (FS.P, 15/12/88,p. A-3). E da beleza passa-se aavaliar;ao da elegancia, por associar;aodireta ou por ser esta, enquanto "born gosto", signa de distinr;aosocial, uma transmurar;ao daquela, mais daramente marcada pelacondir;ao social.

"Sempre brega, mas uma mulher flrmiddve4 muito abena;excelente colega de trabalho. C..) e assim que funcioniriosdo atual prefeito (...) se referem a uma antiga companheira- a futura prefeita, Luiza Erundina..." VB., 19/11/88, p. 4.)

"Brega" (mesmo que em outros termos) e a qualificar;ao maisrecorrente no material, com referencia a uma elegancia-padrao.E, wna vez que as representa~6es simb6licas tambem atuam naorientar;ao das priticas, esse modelo direciona a~6es que visamtomar Erundina "mais apresentivel socialmente". Neste sentido,hi diversos relatos a respeito de assessores que tratam de seu visualdurante a campanha e na preparar;ao da posse (p. ex., fB.,16/11 /8&" p. 3), ou ainda de cuidados similares para torni-Ia capade revista (0 E.5.P, 18/11/8.8, p. 1), assim como comentirios

, . .cmlcos a respelto:

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"...assistimos adescaracterizac;:ao da prefeita e1eita de Sao Pau­lo. Vencedora nas umas, e agora assaltada por urna hordade solfcitos e inesperados assessores, menos preocupados comsua futura atuac;:ao polftica do que com 0 visual que ostentaradoravante. E tome corte novo e modemo no cabelo, mode­litos da moda, maquiagem rejuvenescedora para enfrentar as'exigencias' do poder. Talvez venha ate a ganhar aulas deboas maneiras para perder 0 ran<;:o nordestino e compor 0

novo 100/1' (0 E.SP, 27/11/88, p.6 - grifos do original).

Se a c1assifica<;:ao "brega" toma como referencia aspectos com-portamentais e de aparencia, e tambem capaz de articular elemen­tos correntemente associados aorigem regional, de modo que naoe apenas a identidade de mulher que traz 0 conteudo de incapa­cidade:

"Urn certo descuido com a pr6pria aparencia, os cabeloslisos caindo em franja sobre os olhos, 0 sotaque forte, nadadisfar<;:ado, marcaram Luiza Erundina como urna mulhercombativa - mas supostamente ifetradd, despreparadd, in­capaz de administrar a maior cidade brasileira (...). '0 pre­conceito existia ate mesma dentro do partido', revela urnmilitante do PT. 'Muita gente dizia que e1a tinha ar de pobre,de gente inculta, mas poucos se lembraram de que ela e mestrepela Escola de Sociologia e Politica de Sao Paulo, uma dasmais importantes do pafs'" VB., 16/11/88, p. 3).

Erundina e mulher, e nordestina e, quanto a sua origemsocial e asua militancia, e pobre. Qualquer urn destes referenciaispermite a atribuic;:ao de identidades que carregam a qualificac;:aode incompetente. 0 preconceito contra 0 nordestino e 0 pobreestigmatiza certos tra<;:os, tomando-os capazes de anular qualqueroutro dado - como a formac;:ao academica e profissional de Erun­dina. E eis a prefeita dupJamente incompetente: primeiro, porqueamulher nao cabe assumir cargos decis6rios em nfvel do Estadoe, ainda, por ser considerada deselegante, brega e com "ar de

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pobre". E ao pobre - ai incluido 0 migrante nordestino - tam­bern e vetado 0 exerdcio do poder.

• Revertendo 0 Jogo: 0 Outro Lado da Moeda

"... tudo aquilo que antes parecia urn peso incrlvel na can­didatura de Erundina se transformou no seu contrario. Pri­meiro, ser mulher virou urn trunfo: dos 11 milhoes de pessoasque vivem em Sao Paulo, mais da metade sao mulheres.Depois foi a vez do nordestinismo. A cidade brasileira commaior numero de nordestinos nao e Salvador, Fortaleza ouRecife - e Sao Paulo, que tern 2,1 milh6es de migrantesvindos do Nordeste nela vivendo. Esses nordestinos (...) t~mhist6rias semelhantes a de Erundina" (Veja, 23/11188, p. 36.)

Em outro momenta ou numa outra perspectiva, a condiyaode mulher e nordestina - brega ou nao - pode ser apreendidacomo fator favorivel ou ate mesmo urn verdadeiro trunfo. Dessemodo, tais identidades sao privilegiadas e articuladas entre si, re­cebendo conteudos positivos - principalmente quando, no nivelpolitico, a vit6ria do PT e considerada desejavel, como a "voltado sonho" de uma sociedade rnais justa, por exemplo:

"Erundina talvez seja a pessoa publica mais pr6xima do bra­sileiro real. Eta euma sfntese de minorias. t mulher, nordestinae de origem humildJ' (F. S.P. , 19111188, p. C-2).

Esta interessante formulayao, que sem duvida procura, com 0

termo "minoria", expressar 0 carater de dominayao e opressao aque estao submetidos, de urn modo geral, os membros dessascategorias, acaba por reverter 0 carater quantitativo intrfnseco aotermo9• Se, por urn lado, Erundina pode representar uma slntese

9. "Minoria: 1. Inferioridade numerica. 2. A parte menos numerosa duma corpora~o

deliberariva, e que susrenra ideias conrrarias as do maior numero. 3. Menoridade"- no senrido de "a parte ou quanridade menor de urn rodo". Anronimo: maioria.(Aurelio Buarque de Holanda Ferreira, N{)1JO Diciondrio da lingua Portuguesa).

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daqueles que sao exclufdos do exerdcio do poder, por outro, de"origem humilde" e a maioria da popula~o brasileira, da qualmais da metade e de mulheres. Sera, entao, 0 "brasileiro real"uma minoria?

A identidade nordestina pode ser recuperada positivamente,ainda, pelo estabelecimento de uma certa rela~o causal entre aorigem regional e a miliclncia de ErWldina ou 0 seu posiciona­mento ideol6gico, por vezes sendo aquela apontada como a razaod " "d fc·o sucesso a pre elta:

"0 empresario talvez nao tenha tornado conhecimento dagrande massa de nordestinos desvalidos que ocupa a periferiade Sao Paulo. Sua ex-secrera.ria Luiza Erundina e iguaJ a elese encontrou seu talento politico justamente nesta semelhan~"(0 E.S.P., 19/11/88, p. 4).

A representa~o de diversas caracterlsticas de Luiza Erundinacomo "trunfos" e tambem marcante nas argumentar;6es que visamreverter, no jogo de reconhecimento, a conota~o negativa decerras atribuir;6es de identidade, como e 0 caso do artigo da petistaMarta Suplicy:

"Percebi muiro bern, desde as previas do partido, que setfnhamos alguma remota chance seria com uma candidataroralmente nao identificada com 0 sistema. (...) urn voto deproresto se identificaria muito mais com esta mulher solteira,nordesrina, de meia-idade, s6bria, doce, franciscana no trajar.Nao e a toa que alguns brincam que Erundina parece urnToyota. E isso mesmo, na sua capacidade de trabalho e su­perar obsraculos inacreditiveis" (F5.P., 21/11/88, p. A-3).

E clara, aqui, a rea~o a representar;6es de Erundina (e de suasrelar;6es com 0 partido) construfdas pela imprensa. Em "0 'Erun­dina Look' sorri para anos 70" (F5.P., 18/11/88, p. E-1), 0 estiloda prefeira eo"freira-de-ferias-vai-a-feira". E, em "A Vit6ria daFera Radical", encontra-se:

"Nada pior (. ..) que ter ErWldina como candidata em SaoPaulo. (. ..) E, requinte tetrico numa paisagem que os noraveis

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do PT consideravam a pi de cal na candidatura, havia 0

preconceito dos costumes. 'Tfnhamos medo do desastre querepresentaria a candidatura, em Sao Paulo, de uma paraibana,mulher, xiita e, principalmente, solteird, conta uma intelectualdo partido. Era demais" (Veja, 23/11/88, p. 34).

Urn outro exemplo contundente de denUncia e tentativa dereversao de imagens criadas nas piginas da imprensa - e queao mesmo tempo reafirma que esta nao tern urn discurso homo­geneo - e a irreverente pagina do Pasquim, urn vefculo "alter­nativo", fora do circuito da "grande imprensa". Esse texto revelatambem a dualidade de valores a que se ve submetida a mulherna carreira po1ftica: cobra-se urn modelo de feminilidade (calcadona fragilidade, beleza, submissao etc.) ao mesmo tempo em quese aplaude 0 distanciamento a ele, na medida em que persiste a"ideia de que a energia e a determinac;ao sao atributos tipicamentemasculinos" (0 E.S.P., 18/11/88, p. 7). Por urn lado, a condic;aode solteira de Erundina pode se tomar desabonadora, no momentaem que the sao dirigidas sugestoes de homossexualidade - en­quanto acusac;oes de desvio, sendo este uma relac;ao social e naouma qualidade intrfnseca a qualquer comportamento lO

• Por outro,para enfrentar a prefeitura, "tern que ser macho" - as contradic;oesdo julgamento social.

"Esse e 0 tipo de humor que a grande imprensa pratica. C..)Como a mulher nasceu na Paraiba, Paulo Francis, de NovaYork, esticou seu nome para Erundiiiiina - 0 que, na opiniaodele, imita a pronuncia nordesl ina.

o que isso quer dizer? Primeiro, que ninguem encontrounada de concreto que desabone Erundina (...).

10... ." os grupos sociais criam 0 tUsvio ao (S/ab~ieca as r~gras cuja infrarlio constitui tUsvioe ao aplicl-la a pessoas particulares" (Vdho, 1985b: 23-24). Embora nao renhamsido enconrradas no marerial analisado acusa~6es expllciras, a presen~ da refura~o

- "Agora esrao espalhando que ela e sapariio. E menrira" (Pasquim, 25/11/88, p.1) - expressa. certamenre, que 0 rema da homossexualidade esrava presenre nojogo de reconhecimenro que se passava na sociedade mais ampla.

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EJa e solteira e cat61ica. Eproibido? D. Evaristo Arns tambemnao e E a Irma Dulce? C..) Erundina nasceu na Parafba.Sera melhor 0 Bras? 0 Brooklin? 0 Jardim Paulista?

A conclusao que se tira disso tudo e que, de fato, Erundinatera que ser muito macho. Tera que enfremar 0 emusiasmode seu partido (...), 0 snobismo de uma sociedade e wnaimprensa que nao precisam de fatos para esculhambar C..)[e] a mobiliza<;:io disso tudo por pessoas inceressadas em des­moralizar, nao apenas 0 PT, mastodo pensamemo liberal,progressista e democratico.

Haja saco, Erundina" (Pasquim, 25/11/88, p. 5; grifos dooriginal).

Justameme por nao priorizar 0 eixo politico - que de faroe relevance em uma elei<;:io para 0 maior cargo executivo municipal-, todo 0 jogo de atribuiS;6es de idemidade (e de seus significados)em rorno dos referenciais de genero e de naturalidade revela-seenquanco urn jogo de poder.

• 0 Jogo de Identidades na Explica<;:io do Voto

Nao e nosso objetivo aqui discutir as causas da vit6ria dacandidata do PT em Sao Paulo; na imprensa, foi amplo 0 debatequanto a ser urn voto ideol6gico ou de protesto. Particularmeme,imeressa-nos como as idemidades nordestina e de mulher sao ar­ticuladas compondo uma equa<;:io em que 0 voto em Erundinaresulta de percebe-Ia como semelhante, sendo ponamo explicadopela suposi<;:io de uma identidade companilhada. Neste semido,a tradis;ao personalista da polftica brasileira e refors;ada, neste mo­mento, pela reconstru<;:io jornaHstica, onde sao raras as interpre­tas;6es de que "0 PT venceu pelo programa polftico e nao, pro­priameme, pelo nome escolhido. Em Sao Paulo, teria triunfadocom Erundina, PHnio ou Suplicy" (F.S.P., 17/11/88, p. B-2).Raras ate mesmo entre correligionarios, cuja enfase nas caracte­r1sticas pessoais de Erundina pode ser urn recurso para valoriza-Ia:

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"Temos enrao varios aspecros que conrribuiram para a vir6riade Erundina: alguns de conjunrura polfrica nacional, e queesrao fazendo 0 PT ganhar no Brasil rodo, are as caracrerisricasda candidara, que simbolizavam a vonrade de proresrar emudar" (F.SP., 21111188, p. A-3).

"Por ser mulher" e uma explicac;ao do voro freqiienremenreapresenrada, recebendo conora~oes disrinras:

"Urn outro assessor [de Malufj (...) considerava que a viradado PT foi decorrenre do voro feminino. 'Poi 0 voto tid mulhercontra 0 marMo', disse" ... (F.SP., 18111188, p. A-6)

"'0 PT caprurou 0 voro da populac;ao revolrada com 0 queesra aconrecendo no Brasil', explicou. Esse sopro de mudan~,no enrender de Fernando Henrique [Cardoso], foi simboli­zado, ainda, pela escolha de uma mulher" (0 E.SP,18111/88, p. 6).

E rambem respaldado por dados esratisricos de pesquisas de opi­niao: entre chamadas, rexros, rabelas e graficos, esres dados for­necem refor~os diversos ao "por ser mulher" como jusrificarivado voro. "0 Ibope acha que uma das causas da virada da periferia(...) foi 0 faro da candidara do PT ser a unica mulher" (j.B.,4/12/88, p.1). No enranro, se isro reve 0 seu peso na escolha,por outro lado 0 e1eirorado de Erundina foi "praricamenre equi­librado enrre homens e mulheres" (0 E.S.P, 26111/88, p. 5).

Mas "a virada da periferia" - ou os dados de que, apesarde rer recebido boa vora~ao em roda a cidade, perdendo apenasna area homogenea urn (a mais rica), Erundina reve "folgada mar­gem nas regioes mais pobres da cidade", as mais populosas (FSP.,1/12/88, p. A-8) - remere, com facilidade, ao migranre e aonordesrino:

"... um aspecro dos mais relevanres e que nao pode ser es­quecido: a panicipac;ao dos migranres nordesrinos nessa re­voluc;ao polfrica. (...) Sao quase rres milhoes de pessoas oriun­das do N ordesre provavelmenre, 1.200.000 e1eirores, e que

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se uniram, coesas, para a vit6ria de uma conterranea. Eramfortes e nao sabiam. Agora sabem... " (0 ESP., 29/11/88,p. 39).

Mas, se os nordestinos cia periferia sao apontados com fre­qii<~ncia como eleitores de Erundina, refon;:ando a equa<;:J.o inicial(identidade comum = voto) como uma justificativa de sua vit6ria,os dados das pesquisas de opiniao sao pouco utilizados neste sen­tido. A pesquisa do DataFolha apresenta, para 0 item abrangente"identificac;:ao com a candidata - nordestina, trabalhadora, hu­milde" como razao do voto, 0 modesto indice de 6%, como 0

setimo motivo apresentado. Mesmo sem 0 respaldo "cientifico"das estatisticas, a equa<;:J.o inicial e reafirmada, com relac;:ao a iden­tidade nordestina, ate mesmo pela fala de petistas:

"Segundo 0 deputado Pllnio de Arruda Sampaio (SP), 0

eleitor de Erundina foi, em primeiro lugar, 0 trabalhador.'Em segundo, 0 migrante. Ele viu um migrante que poderepresentd-Io, porque quando chega a Sao Paulo este migrantenao tern casa, emprego, remedios. Ele sentiu que Erundinaestava a seu lado', explicou" (0 ESP., 18/11/88, p. 6).

Por outro lado, a justifica<;:J.o do voto pela identidade nor-destina compartilhada, mesmo que subjacente, pode reafirmar essaidentidade como eixo de acusa<;:J.o a Erundina e reforc;:ar a repre­senta<;:J.o da oposi<;:J.o Nordeste/Sul-Sudeste:

"Em plena recessao, parece instalar-se uma guerra de secessaoas avessas: 0 Norte-Nordeste agririo, protegido e quase es­cravocrata se revolta contra 0 SuI Maravilha, industrializado,mais moderno e mais cheio de conAitos - ate porque amigra<;:J.o levou a Sao Paulo dois milh6es de nordestinos,que engrossaram 0 caudal de votos cia paraibana Luiza Erun­dina, prefeita eleita cia Capital" (lsto e, 7/12/88, p. 30 ­grifos do original).

o peso do voto do migrante enquanto morador da peri feriae apontado por cientistas sociais (Pierucci e Prandi, 1989), emanalise com base em pesquisas de opiniao. Os nordestinos cons-

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tituem 19% do total de eleitores do munidpio de Sao Paulo,superando em numero 0 maior colegio eleitoral do Nordeste. Vmapesquisa realizada dez dias antes do pleito apontou que 0 maiornumero de indecisos era de nordestinos (42%), compondo assimurn importante eleitorado "flutuante" - isto e, que "decide seuvoto diferentemente em cada conjuntura, sem muita fidelidade apartido ou a lideran~as polfticas personalistas, ou mesmo a outrosgrupos aos quais perten<;a, como dasse social, religiao, ernia, idadeou mesmo religiao" (p.lO-ll):

«...os resultados desta pesquisa permitem conjecturar comcerta plausibilidade que boa parte dos votos decisivos que,na ultima hora, levaram Luiza Erundina ao cargo de prefeitaeo PT ao poder municipal, vieram de nordestinos que, mas­sivamente, engrossaram as fileiras dos trabalhadores rna is po­bres, residentes nos bairros mais distantes e rna is carentes dacapital. Nao foram votos no PT mas em Luiza" (Pierucci ePrandi, 1989: 12).

A lmprensa da Paraiba: 0 Discurso do Orgulho

o que marca a cobertura da imprensa de ]oao Pessoa e 0

que chamamos de "discurso do orgulho", que tern por eixo aidentidade nordestina como elemento de coesao. Sem duvida hadiferencia~6es. e 0 material jornalfstico e mais amplo e diversifi­cad0', nao se reduzindo a esse discurso, mas e ele que caracterizaa representac;:ao dominante da prefeita eleita na imprensa da Pa­ralba, em contraposic;:ao a paulista. Dessa forma, enfocaremos 0

discurso do orgulho enquanto urn elemento de comparac;:ao, bus­cando evidenciar como a identidade nordestina e diferentemente«manobrada", de acordo com os contextos, interesses e ocasi6es,ganhando significado conforme 0 universo do discurso. Para me­lhor compreende-lo, faz-se necessario considerar as condi~6es desua produc;:ao, embora nao seja nosso objetivo estudar a imprensada Paralba em suas particularidades ou em seu desenvolvimentohist6rico.

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Na ocasiao da visita de Luiza Erundina, no final de 1988,circulavam apenas em Joao Pessoa seis jornais (sendo dois sema­narios), alem de uma revista local - A Carta. Vale lembrar quesao distribufdos na cidade os grandes jornais da imprensa nacional,alem de que varias localidades da Parafba tern publica~oes pr6prias.]a que a Grande ]oao Pessoa concemra cerca de 20% da popula~ao

do Estado, estimada em 3 mUhoes de habitantes, trata-se de urnnumero bastame elevado de vekulos impressos, 0 que torna aindamais desconcertame a presen~ de urn jornal mantido pelo governoestadual: A Unitio, 0 rnais antigo dos que circulam no pedodoestudado, fundado em 1893 (cf. expediente do jornal), original­mente como 6rgao de urn partido polftico. E, wna vez que 0

desenvolvimemo da industria cultural brasileira, como urn todo,foi marcado pela "introdu~o de tecnologias avan~das de comu­nica~o", como a pr6pria televisao, ames da consolida~o de "urnpubl ico de massa para os vekulos impressos", esse nUmero indicaposslveis fun~6es polfticas na edi~o desses peri6dicos:

"...e normal encontrar em varias cidades do Nordeste jornaiscom tiragens irris6rias, sem publicidade (. ..), mantidos apenaspara que seus proprietarios possam usufruir de vantagenspolfticas com eles, sendo produzidos nos mais modernos sis­temas de composi~o a frio e reproduzindo valores de formae con teudo de diarios norte-americanos" (Lins da Silva,1985:23; cf. tb. p. 27).E assim que a maior e mais moderna impressora da Paralba

pertence ao A Unitio, com grande capacidade ociosa, mas e 0Norte (fundado em 1908) 0 jornal de maior tiragem no Estadoeo unico filiado ao Instituto de Verifica~o da Circula~o (IVC),apresemando, em janeiro de 1990, a m6dica tiragem de 5.049exemplares de 3. a feira a sabado e 8.567 aos domingos ll . Este e

11. Dados do NC. apresentados na revista Imprensa: jornalismo e comunicaftlo (ano III,n.O 32). Para comparas;ao, no mesmo m6, de 3.a feira a sabado, a tiragem do lB.ulu-a passa os 150 mil e da Folha os 343 mil. No perlodo anaJisado (1988);a referidarevisra nao rrazia dados sobre a ciragem dos jornais paraibanos.Informa~6es sobre os jornais da Paraiba segundo Ferreira (1990).

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o Correio da Paraiba sao os linicos mais consolidados enquantoempresas, 0 que lhes cia maior aparencia de independencia, emborana pratica dependam do governo enquanto principal anunciante.

Os demais ve1culos sao mais recentes e efemeros, todos criadoscom alguma finalidade politica, embora 0 semanario 0 Combatetenha "ressuscitado", na decada de 80, urn jornal do infcio doseculo. 0 Momento, que inicialmente era urn semanario, foi fun­dado em 1973 (cf. 0 expediente) ...e fechado em 1990. A inten~ao

politica e mais nftida no caso do semanario A Tribuna que, criadoe,m 1987 para lutar contra "a prepotencia e a corrup~o" do go­verno Burity (A Trib., 27/11/88, p. 6), encerrou sua carreira emmar~o de 1990, por problemas economicos resultantes do PlanoCollor 1.

o material pesquisado abarcou todos os jornais publicadosem Joao Pessoa, abrangendo 0 periodo da viagem de Erundina aParafba (28/11188 a 2/12/88): os diarios A Uniiio, 0 Norte, Correioda Paraiba (Cor. PB), 0 Momento (0 Mom.) e os semanarios ATribuna (A Trib.) e 0 Combate (0 Comb.). Os semanarios seraoindicados apenas pela primeira data. Os grifos, nos trechos citados,sao nossos - salvo indica~o em contrario.

Para contrapor, como exemplares da fala da pr6pria Erundina,pronunciamentos efetuadoS" por ocasiao de sua estada em JoaoPessoa, que serao referidos da seguinte forma: suas iniciais (L.E.)/indica~o do local, data (cf. bibliografia para a rela~o especificadade todo 0 material).

Com base nesse material, procuraremos apresentar os tra~os

recorrentes do discurso do orgulho, atraves dos seus exemplos. .rnaIS expresslVos.

• Antes de Mais Nada, .Somos Todos Nordestinos

No discurso do orgulho, a quesrao quem eErundina e res­pondida, antes de mais nada (ou acima de tudo) pela identidaderegional, para a qual sao disponfveis, como foi visto, os referendais

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de naruralidade, vivencia, tra<;os culturais e flagrantes de auto-re­conhecimento, como: "Eu vim a Paraiba beber urn pouquinhona fonte do meu povO"12. A origem territorial pode, assim, sersobreposta tanto a sua trajetoria pessoal quanto a sua militanciapolitico-partidaria, tornando sua e1ei~o "a vit6ria da Paraiba"(Cor. PB, 29111188, p. 2).

"A Paralba tern uma razao toda especial para homenagearhoje a 'Musa de Uirauna', Luiza Erundina. C..)De norte a sul so se fala nela, e na onda vern a sua parai­baneidade sempre destacada, nunca omitida e colocada emsegundo plano." (Cor. PB, 29/11/88, p. 5.)

A naturalidade de Erundina pode ser tomada em termosainda mais restritos, a depender do criterio eleito, de modo quea defini~o dos conterraneos de Erundina - a delimita~o deurn "nos" atraves deste elemento de semelhan<;a e coesao - possase dar de modo mais exclusivo:

"0 solo que brotou esta guerreira e Uiraunense. Hoje 0

povo desta cidade Ihe reencontra com orgulho e esperan<;a(...) [e] recebe de bra<;os abertos a sua filha maior, mulherde fibra que venceu batalhas e abriu horizontes" (Cor. PB,29111/88, p. 5).

No entanto, se a referencia espacial, quanto a naturalidadede Erundina, pode ser especificada em termos do estado ou mu­nicipio, estes nao se contrapoem avisao da regiao - estao inte­grados a e1a. A passagem, entao, faz-se sem problemas: "sertanejada Paraiba" e "mulher do Nordeste", por exemplo, revezam-senum mesmo artigo (0 Norte, 29/11188, p. 4). No editorial "Ques­tao de Identidade", embora a referencia partidaria (nem sempreexplicitada no material) esteja presente, 0 eixo do elogio aprefeitaeleita e outro - a identidade nordestina compartilhada, e maisainda, tornada intdnseca, como ra<;a:

12. Manchece de 0 Nork (30/11188, p. 3); fala cecocrente nos pronunciamentos deErundina em Joao Pessoa, aparece com freqii2:ncia nos cextos cia imprensa.

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"As comemorac;6es pelo aniversario de Luiza Erundina, aestrela do PT, na cidade de Uiralina, marcaram 0 sentimentode vit6ria e serviram para alimentar 0 ego do sertanejo.

C..) A pr6pria Luiza Erundina e uma retirante. Deve sabero que e ser nordestino em Sao Paulo. (...)

Erundina conseguiu mostrar que acima da colaborac;ao ideo­16gica, estcl a identificarao com seu povo, a familia e os valoresculturais.

C..) E agora, uma paraibana vai administrar a cidade dossonhos de milh6es de nordestinos. Precisa saber corresponder,para que entre os de origem asiatica, europeus e latinos,deixe brilhando nao s6 a estrela de seu partido, mas os trarosde sua rard' (Cor. PB, 3/12/88, p. 4).

A visao do nordestino como uma rac;a sup6e uma homogeneidadedos habitantes da regiao, certamente inexistente tanto em suascaractedsticas ffsicas (alias, neste nivel, a "galega" Ertmdina naocorresponde ao estere6tipo) quanto no aspecto cultural. Preferi­mos, pOrtanto, tratar a identidade regional como uma identidadede origem - origem espacial, territorial. Por outro lado, se 0

nordesti no em Sao Paulo emigrante, visto do Nordeste eretirante- esquemas de percepc;ao nao apenas geograficamente distintos,mas historicamente construidos e diferenciados no bojo das rela­c;6es entre as regi6es brasileiras, resultando em diferentes conteudospara a identidade nordestina.

o dado da filiac;ao partidaria ou os posicionamentos poHti­co-ideol6gicos de Erundina podem ser referenciais de diferenciac;aoe confrontac;ao. Diante disto, 0 e1ogio a Erundina nao equivalenecessariamente a urn louvor a representante do partido: baseia-seem aspectos morais pessoais, capazes de diferencia-Ia dos demaismilitantes petistas - principalmente os locais, que constituem a"ameac;a" mais imediata. Com estes nao se estabelece, neste mo­mento, 0 elo de uma identidade regional compartilhada, apesarda disponibilidade de referenciais: a proximidade exige a diferen­ciac;ao, de modo que 0 "somos todos nordestinos" nao se aplica.

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Por sua vez, os conteudos incorporados arepresenta~o de petistanao atinge a "nordestina Erundina", cuja imagem - sustentadaem outros eixos de identidade - e esvaziada politicamente:

"...a prefeita Erundina demonstra ser uma pessoa lucida e,sobretudo, independente. (... )

A imprensa nao merecia 0 tratamento que alguns 'xiitas' doPT dispensaram ontem, no aeroporto Castro Pinto, quandoda chegada da prefeita Luiza Erundina. (...)

Registre-se apenas que a sra. Erundina veio a Para(ba para.atender a compromissos sentimentais - e fazer palestra aconvite da UFPB. 0 PT, eclaro, nao ia perder a chance detentar armar 0 palanque para ela" (Cor. PB, 29/11/88, p.3).

Uma vez que qualquer representa~oeesquematizante e redutora,a "Sra. Erundina em viagem a Paraiba" pode ser desvinculada deseu partido, e por conseguinte a "ilustre" visitante se opoe aos"fanaticos" petistas. Outras interpretas;oes sao poss(veis, como esta,na imprensa paulistana:

"As bandeiras vermelhas agitadas no aeroporto (...) ja mos­travam que a volta da ftIha pr6diga tern urn carater de de­monstra~o de fors:a para 0 PT. (...) Erundina parece maisinteressada em prestigiar seu partido do que os adversariosno poder" (0 E.s.P, 29/11/88, p. 7).

Os acontecimentos no aeroporto na chegada de Luiza Erun­dina, diferentemente reconstru(dos pelo trabalho jornalistico, re­sultaram em versoes distintas. Em varios jornais, os tumultos naoforam enfatizados nas reportagens, sendo-o apenas nas colunaspessoais, por excelencia 0 espas;o do comentario (c£ A Unitio, 0Norte e Cor. PB, 29/11/88). Por sua vez, em 0 Momento, torna­ram-se manchete - "TUMULTOS E AGRESs6ES MARCARAM A

VISITA DE ERUNDINA A pARAfBA". Neste jornal, cuja coberturase caracteriza por este tom "sensacionalista" e pelo tratamentorecorrente de Erundina como "prefeita eleita" e "professora", tor­na-se mais significativa a argumenta~o que a diferencia do PT,

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onde aqueles eventos sao novameme retomados, justo quando 0

vfnculo partidario vern a ser clarameme explicitado:

"Ela provocou risos, admira~o e reconhecimemo quase una­nime. Primeiro, por pertencer ao Partido dos Trabalhadores(PT) e, segundo, porque nao negou suas origens, seus pa­remes, seus amigos. (...) Como eque uma nordestina quebraos ossos da burguesia paulistana (...)?

o PT nao e a eara do povo brasileiro e Erundina niio separece nem um pouco com esse partido, que guarda 0 ran~o

ererno das esquerdas (...).

A op~ao preferencial de Erundina sera pelos pobres e mar­ginalizados de D. Paulo Arns, arcebispo de Sao Paulo. Erun­dina prefere volrar-se para essa geme" (0 Mom, 3/12/88,p. A-2).

A necessidade de construir uma idemidade comum que sustemeo discurso do orgulho conduz a argumema~o, na qual Erundinaora e represemame do partido, ora, enquamo pessoa, dele se dj­ferencia. Embora sua nordestinidade nao seja tao enfatizada aolongo do texto, eela que sustema a coesao, ao lado de uma op~ocrista pelos pobres (compartilhada). Malgrado a oposi~o tra~da

emre "pobres" e "burguesia" ("Leia-se como 'burguesia' paulistaos grandes empreiteiros do Estado"...), a condi~o de pobre podeser apreendida como circunstancial, permitindo que todos possamse declarar a seu favor. Este e outro meeanismo recorrente nodiscurso do orgulho, possibilitando a dilui~o de diferen~.

• 0 Sacerd6cio de Erundina e "Todos Pelos Pobres"

"Foi cuidar dos pobres, porque a pobreza ela conhecia commais profundidade. Em Sao Paulo dedicou-se it AssistenciaSocial, tratando as feridtzs de seus irmiios nordestinos C..). Comsua dediea~o) seu destemor, sua coragem e sua alma sertaneja,Erundina, que niio teve nem mesmo tempo de casar, alean~ou

o ponto mais alto da maior cidade brasileira, resultado doamor que sempre dedicou aos seus sernelhantes.

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Esta e a hist6ria de vida de uma mulher que soube homarurn prindpio de luta que formou desde a infancia." (0 Mom.4/12/88, p.e-I.)

A constru<;ao simb6lica de urna seme!han<;a com Luiza Erun­dina necessita que os signiflcados polfticos de sua e!ei<;ao sejamesvaziados. No texto citado, onde nao hi sequer uma indica<;aode sua f1Jia<;ao partidiria, esse efeito e alcan<;ado pe!a representa~ao

de sua vit6ria como "por obra e gra<;a de seu esfor~o", ao longode urn sacerd6cio humanitcirio sem qua1quer vinculo com a or­ganiza<;ao dos trabalhadores. Uma outra interpreta<;ao possive!:

"... a disputa e!eitoral e urn momenta de urn processo muitomais amplo, de constru<;ao partidaria, de constru<;ao das or-ganiza~6es independentes e autonomas dos trabalhadores ( )e a luta pela poJitiza<;ao da luta social e economica "(L.E./Lyceu, 28/11/88).

Vale ressaltar que a representa<;ao do sacerd6cio nao e ex­clusiva da imprensa paraibana. Se Erundina e, com freqU~nci3

(na imprensa do Rio e Sao Paulo), representada pe!a nega<;ao dosconteudos que 0 esquema de classiflca<;ao dominante incorpora aidentidade social de mulher, ela e capaz de corresponder aflrma­tivamente a urn outro eixo de julgamento, ji que cabe a mulher,cultural mente, a emo~ao e 0 sentimento. Muitas vezes a recons­tru<;ao de sua trajet6ria de vida reaflrma tamo a religiosidade quan­to a dedica~ao ao pr6ximo/aos pobres. Neste quadro, ao mesmotempo em que sao encobertos signiflcados politicos, 0 "solteira"e recuperado, ji que sao oferecidos ao leitor elementos suficiemespara que Erundina possa ser vista como uma verdadeira santa,inclusive atraves da apresenta<;ao de declara~6es suas:

"Foi na Igreja que encontrei espa~o para exercitar a solida­riedade e a generosidade. Quis realmente ser freira, mas naofoi por isso que nao namorei e nao me casei. Se nao 0 f1zfoi porque, na sociedade tal como formulada nos termos dehoje, a mulher casada e mae nao pode desenvolver 0 trabalhodo tipo do desenvolvido por mim..." (0 E.s.P., 19/11/88,p. 4).

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E a sele<;ao de aspectos de sua hist6ria de vida, que vai daassistencia social a militclncia sindical e polftico-panidaria, quepermite a elabora<;ao da representa<;ao da "missao quase evangelica"(Neumanne, 1989: 147) de Erundina. Interessante comparar comoa experiencia pode ser diferentemente avaliada pela pr6pria Luiza:

"Como assistente social, eu tinha contato muito direto comos graves problemas sociais, que no come~o e nwna forma~ao

deformada a gente imaginava que eram problemas das pes­soas, dos grupos, das comunidades, eram deficiencias deles(...). Puro engano! Os problemas estao na raiz da sociedade"(L.E.lLyceu, 28/11/88).

o "sacerd6cio" de Luiza Erundina paniculariza-se na im­prensa paraibana: nao e apenas a favor do pobre, mas especifica­mente do nordestino - 0 que permite refor~r 0 elo da identidaderegional. Referenciais para tal podem ser encontrados em decla­ra~6es da pr6pria Erundina:

"... eu estava sendo empurrada para wn outro espa~o, paratrabal har junto com os irmaos nordestinos expulsos da terraonde trabalham, e cuja terra nao Ihes penence.

Nas favelas de Sao Paulo, nos corti~os de Sao Paulo, naperiferia de Sao Paulo, eu jUi encontrar 0 meu irmao nordes­tino..." (Cor. PB, 30/11/88, p. 2) 13.

Mesmo quando hi, aparentemente, a explicita<;ao de posicio­namentos politico-ideol6gicos de Erundina - "sendo ela declarada­mente de esquerda e fundadora de uma agremia<;ao" -, estes podemser diluidos atraves da ideia de que todos sao a favor dos pobres:

"0 seu desempenho a frente da Prefeirura de Sao Paulo (. ..)podera abrir-Ihe novos caminhos em dire<;ao a posi~6es maiselevadas na condu<;ao do Pars. (...) e 0 povo abrir-Ihe-a osbra~os, dando-lhe 0 supone necessario para a grande arran­cadd patri6tica.

13. A materia apresema transcri~o de trechos do discurso de Erundina na AssembleiaLegislativa. A imagem (trecho grifado) e recorreme em seus pronunciamentos e nomaterial da imprensa.

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(...) ela sabe 0 que diz, como se estivesse apenas aguardandouma oportunidade de melhor servir ao povo sofrido cia terraque a viu nascer. (. ..) 0 seu maior esfon;o sed. no sentido demelhorar as condic;:6es de vida da gente pobre..." (A Trib.,4/12/88, p. 6).

A percep<;ao da pobreza como circunsrancial, sem conota<;aoestruturaJ ou de classe - "0 seu enorme pendor em defender ossimples ehumildes de todas as classeS' - permite ao emissor do discurso10caJizar-se junto a Erundina. Alem disso, pela relatividade das clas­sificac;:6es polfticas em como do eixo esquerda/direita, ela pode serrepresentada como defensora de prajecos gerais, da pr6pria "patria",nao havendo, nesta elabora<;ao, quaJquer diferencia<;ao entre os inte­resses de quem faJa e os que a prefeita eleita pelo PT defende.

• Mulher Nordestina X Mulher do Povo

Na imprensa de circula<;ao nacional, como foi visco, por vezesa identidade social de mulher tambem se toma uma acusa<;ao,por seus conFeudos de inadequac;:ao e de interdic;:ao aos cargospublicos. No entanto, no discurso do orgulho da imprensa pa­raibana, a condic;:ao de genera e mais urn referencial que, juntoa origem territorial, pode se sobrepor as divergencias de cunhopolItico e sustentar a construc;:ao da coesao. Dessa forma, dentrode uma visao em que as diferenc;:as entre homens e mulheres saonatural izadas (apreendidas como fazendo parte da "natureza" dascoisas) dissolvendo qualquer conflito de genero, Erundina e per­cebida como, antes da petista que ganhou a prefeitura, a mulhernordestina. Mulher, que compartilha tambem com homens umaidentidade regional comum:

"Erundina vern de capucho bravo dos algodoais sertanejos.(...) e mulher que nao tern medo de assombrac;:ao. E s6 mu­Iher, encamada e esculpida, mulher do Nordeste. (...)Mulher do Nordeste governando Sao Paulo?! Oxente, porque nao? (...) Ela se obriga a desmistificar todas as imposturasdisseminadas contra os nordestinos" (0 Norte, 29/11/88, p. 4).

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Ou entao, dentro de uma demarca~o distinta, mulher que,enquanto tal, diferencia-se dos homens, "iguaJando-se" pela con­di~o de genero a tantas outras mulheres, com as quais compartilhaa opressao sofrida numa sociedade patriarcaJ. Desse modo, podeportar a bandeira de outras mulheres, mesmo daque/as que, porsua condiC;ao de vida, visao de mundo e vaJores, de/a se diferen­ciam. Por ocasiao da visita da prefeita a Joao Pessoa, foram es­palhados pela cidade outdoors com os dizeres 0 CLUBE DAS EX£­CUTNAS DA PARAfBA PARABENlZA LUlZA ERUNDINA:

"Erundina sintetiza bern 0 ideaJ do nosso Clube das Execu­tivas que e demonstrar a competencia das mulheres em qual­quer campo de atividade..." (0 Norte, 30/11/88, p. 3-Cad.2).

Em diversos momentos, Erundina vincula a sua vit6ria asluras e aos movimentos de mulheres: "sobretudo as mulheres queluram no mundo inteiro tern se manifestado e se sentido reaJizaratraves da vit6ria dessa candidatura, dessa mulher do povo"(L.E./Espac;o, 29/11/88). Mas logo recoloca em questao as posic;6esde classe que as diferenciam: nas suas faJas em Joao Pessoa, Erun­dina apresenta-se e procura fazer-se reconhecer enquanto uma"m u1her do povo", "uma mulher trabalhadora", entrecruzandoassim os referenciais de genero e de classe sociaJ.

Entretanto, a multiplicidade de eixos possiveis de classifica~o

permite distintas construc;6es de identidade. No discurso quea(re)presenta Erundina como "uma simples mulher que lutou bas­tante e que aos cinquenta e tres anos conseguiu uma fac;anha: sereleita prefeita de Sao Paulo", sao vistos como ilegitimos compor­tamentos e atitudes orientados por diferenciac;6es de natureza po­Iitica ou de classe: 14

14. Para comparayao: "se urn grupo e5tudantil (reaJmente decidido a continuar umagreve) nao atende aos apelos das autoridades (que e feiro em termos da aberrurado grupo como cidadaos, patriotas, ftlhos, homens de boa vontade etc.) e flca'decidido

a manter-se no eixo da identidade social de esrudante, encao 0 grupo sera fatal mentechamado de rebelde e 0 confliro vai se configurar como cada vcr. mais grave." (Da

Marra, 1983b:150).

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"0 Clube das Executivas da Parafba C..) ficou frustrado pornao poder saudar, condignamente, a Prefeita eleita de SaoPaulo, Lufza Erundina na visita a Joao Pessoa.

(...) tudo foi por agua abaixo em fun<;ao dos estericos [sic]petistas pessoenses que nao admitiram em hip6tese algumahomenagens com empresarias. Eru (como esra sendo cha­mada) s6 teve contato com 0 povo" (0 Mom, 2/12/88, p.B-5).

o conflito pela sele<;ao de referenciais de c1assifica<;ao, nojogo de atribuic;;ao de identidades, e bastante evidente na ocasiaoda homenagem a Erundina na Assembleia Legislativa da Parafba:

"N6s, os Deputados desta Assembleia Legislativa, vemos emvossa vit6ria nao s6 a afirma<;ao da bravura da mulher parai­bana, como tambem uma definitiva resposta a todos os pre­conceitos, especialmente contra a m ulher (...) Sabemos quevossa luta vai continuar pelos desprotegidos e desamparadose, como sempre fizestes, acolhed.s os nossos irmaos nordestinos(...). Vejam esta pequena e singela mulher, e1a vai comandaros destinos de cerca de 12 milh6es de patrkios. (...)

Eu vos saudo em nome da eterna luta dos nordestinos" (Dep.Leonel Medeiros/Assembleia Legislativa, 29/11/88).

A saudac;;ao do parlamentar peemedebista que requereu a sessaoespecial para a homenagem, onde se articulam, num tratamentopessoal de Erundina, as identidades de mulher e de nordestina,ela responde explicitando os significados polfticos de sua vit6ria:

"Nao foi apenas a vit6ria de uma nordestina, de uma mulher,de uma paraibana, de uma trabalhadora. Foi a vit6ria deuma proposta polftica, de urn programa de governo que apon­ta para mudanc;;as mais imponantes, mais profundas, rna isradicais, mais fundamentais, ate que urn dia a gente consigaeliminar todo 0 tipo de opressao, de injustic;;a, de discrimi­na<;ao, contra a mullher, contra 0 negro, contra 0 fndio"(L.E./Assembleia Legislativa, 29/11/88).

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'ldentidade de Classe '~. Urn Buraco Negro na lrnprensa?

Ao levantar os principais eixos de atribuic,:ao de identidadeno jogo de reconhecimento que se desenvolve na imprensa emtorno de Luiza Erundina, poderia ser esperado, com base emteorias sociais, que urn dos eixos Fosse 0 da "identidade de classe".No entanto, apesar da disponibilidade de referenciais que dizemrespeito a posic,:ao nas rela~oes de produc,:ao, nao se configuramexplicitamente, no material estudado, imputa~oes de identidadecom esta base. Nao procuraremos apontar agora 0 porque destefato, mas apenas comoa questao permanece subjacente e mascarada,principalmente quando 0 partido da candidata pode ser conside­rado, por seu pr6prio nome, urn "partido de classe auto-assumido"VB., 6/12/88, p. 11).

• 0 Pobre, 0 Povo e 0 Trabalhador

Mesmo nas discussoes acerca do ideario ou do projeto doPT ou da pr6pria Erundina - inclusive nas atribui~oes de iden­tidade sobre 0 eixo polftico-partidario -, a questao das posi~oes

de classe esta implfcita, mas na maioria das vezes permanece difusa.Fala-se do povo, do pobre, do trabalhador, mas 0 significadodestes termos nao e univoco.

Alem dos significados que ganha na representac,:ao do "sa­cerd6cio" de Erundina, pobre recebe, na imprensa do Rio e SaoPaulo, diversas outras conota~oes, implicando em concep~oes di­ferenciadas de sua relac,:ao com a sociedade e, por conseguinte,da vit6ria eleitoral do PT.

"As vit6rias eleitorais do PT dao testemunho duma mudan~profunda que 0 povo pobre vai realizando e que muito pro­vavelmente e irreversivel.

(...) 0 po bre, tocado pelos movimemos sociais, envolve-seneles, deixa de encarar sua pobreza como prova de inferio-

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ridade para ver nela 0 estigma duma sociedade injusta, quecabe mudar." (F.s.P., 22111188, p. A_3.)15

Outros termos - como despossufdos, explorados, oprimidos-, recorrentes tanto no material da imprensa quanto na pr6priafala de Erundina, em Joao Pessoa, podem ser percebidos comorepresentantes de classe. Esta e Unul leitura, mas sao possfveisapreensoes diferenciadas, pois apenas no interior da relalfao deprodulf:iolreceplf:io do discurso se define a conotalfao, urna vezque esta "remete a singularidade das experiencias individuais",constituindo-se "dentro de uma relalf:io socialmente caracterizada,onde os receptores engajam a diversidade de sellS instrumentosde aproprialf:io simb6lica" (Bourdieu, 1982:16).

Da mesma forma, a imagem de Erundina como pertencenteou representante do povo nao configura, necessariamente, a atri­builf:io de uma identidade referida a condilf:io de classe. ]a tradi­cionalmente empregado pelos politicos brasileiros (cf. a analisedos discursos de Vargas por Osakabe, 1979), 0 termo povo fun­ciona, aqui tambem, como urn implfcito do discurso. Todo dis­curso, em sua emissao, pressupoe a existencia de significalfoes in­corporadas pelo receptor, e portanto capazes de assegurar a suaaceitalf:io. Esses conteudos nao sao explicitados, seja por razoestaticas - "nao se explicita urn objeto que se pretenda nao serquestionado"- seja para evitar redundincia, porque consideradossuficientemente assimilados (Osakabe, 1979:60-61). Assim, povopermanece como uma "nolf:io confusa", para a qual raramente "eexplicitado e escolhido urn sentido mais espedfico entre os variosque urn dicionario ou 0 consenso dos falantes" Ihe atribui. Estanolf:io sustenta a relalf:io emissaolreceplf:io na medida em que, a

15. Na imprensa de circulas;lio nacionaI, por vezes perisw r~m acesso direro para exporsuas idtias - na secs;lio "Tend~ncias/Debaces" da Fo/ha, por exemplo. ~ 0 caso docexco cicado, de aucoria de Paul Singer.

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prindpio, e aceita na sua ambigiiidade por todos os envolvidosna rela~o discursiva (p. 66-67).

o emprego do termo povo (ao lado de outros, inclusive tra­balhadores) e recorrente nos exemplares da fala de Erundina, massua significa~o nao e fechada na emissao. Desta forma, conside­rando os diversos contextos de seus pronunciamentos em JoaoPessoa, evidencia-se que povo deve ter sido apropriado diferente­mente no Lyceu Paraibano - urn debate organizado pelo PTlocal - e na Assembleia Legislativa da Paraiba. Por vezes, povoganha (a1gwna) precisao atraves de wna demarca~o pelo con­fronto - NOS X ELES -, quando se opoe aos "poderosos", a"burguesia" (etc.), tanto nas suas falas quanto na reconstru~o

jornalistica. Mas e no Lyceu, discursando para sellS pares petistas(a plateia pressuposta), que se torna possivel e/ou necessario quea questao de c1asse seja explicitada com todas as letras (exemplarunico nos pronunciamentos estudados), inclusive para reverter aprioriza~o da identidade nordestina no jogo de reconhecimento:

[respondendo a uma pergunta da plateia]"h preciso saber de que paulista a gente esra falando, e deque nordestino (...). Tern burgues nordestino la explorandopdo nordestino, como tern paulista tam bern sendo exploradopor nordestino. C..) mais importante do que a gente sernordestino, paulista, paranaense, matogrossense e a nossacondi~o de c1asse. (...) qual e 0 trar;:o de uniao entre 0

trabalhador paulista ou de qualquer outro estado? h a nossacondi~o de c1asse.... " (L.E.lLyceu, 28/11/88).

Por outro lado, 0 termo trabalhador, a prindpio de maiorprecisao, e capaz de portar 0 projeto politico do partido, em seupr6prio nome. No entanto, pode tambem se tornar objeto dedisputa, neste momenta em que, tendo Erundina eo PT a1canr;:adoo poder municipal, pode ser visto como conveniente ser incor­porado nesta c1assifica~o, que ganha entao urn sentido moral:

"Uma definir;:ao sua [de Erundina] que me impressionou (... )e a de que trabalhador 't aquele que vive de seu saldrio.

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Trata-se de uma grande injustis;a, no mfnimo para com osesfor~ados pequenos empresarios (. ..) Trabalhador eaquele quetrabalha, 0 que exclui os aprove itadores, especuladores (. ..)o resto etrabalhador, posto que vive do seu trabalho, assa­lariado ou nao" (F.S.P., 30/11188, p.A-3).

Em suma, 0 uso desses termos nao configura, por si s6, aidentidade de classe como um dos eixos do jogo de reconheci­mento. E sua ausencia e significativa, como veremos adiante.

• Semelhanc;:as e Distins:6es: em Jogo a Quesuo de Classe

Mas nao apenas a nomeas:ao direta retrata as atribuis:6es deidentidade no discurso jornalfstico. As diversas comparas:6es en­volvendo Erundina sao possibilitadas por construs:6es de identi­dade que tomam por base uma caracterfstica comum selecionada.E a identidade social de mulher, por exemplo, que permite esta­belecer semelhans;as entre Erundina e Margareth Thatcher (cf.fB., 29/1 1/88, p.3-Cad.B), desconsiderando outras diferens:as, in­clusive de natureza polftica. No entanto, se a condis:ao de mulherecomum as duas, isto nao implica necessariamente uma identidadecompanilhada, e, no jogo de reconhecimento, a refutas:ao de de­terminadas comparas:6es/representas:6es revela a prioridade dadaa outros referenciais de identidade:

"'Vou combater com mao de ferro a corrups:ao no meu go­verno', disse Erundina, evitando comparas:ao com a 'damade ferro' Margareth Thatcher, primeira-ministra britanica.'Ela nao e urn born exemplo, mesmo porque a (mica coisaque temos em comum esermos mulheres determinadas que naohesitam em disputar 0 poder', disse" (0 E. S. P., 11/12/88,p. 38).

Por sua vez, e freqliente no discurso do orgulho "igualar"Erundina a outros nordestinos (e panicularmente a paraibanos),

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atraves de uma identidade regiona1. ~ ponanto significativo 0

exemplar da imprensa local que, rompendo aquele discurso, ex­pI icita as distin<;:6es de cunho politico e de c1asse:

"Brasilia esta inflacionada de paraibanos ilustres, na promessa

de darem nome a Parafba. (...) Some todos juntos e nao

teremos a emo<;:io nacional perante essa paraibana de Viraunaque entrou em S. Paulo, como milhares de outros nordesrinose hoje governa a cidade. (...) Malison e 0 inverso de Erundina.(...) MaOson e (...) prestfgio que 0 prestfgio gerou, elire quea elite acaricia. Erundina e ideologia. ~ a for~a de suas con­vic<;:6es nos restemunhos de sua vida" (0 Norte, 20/11/88,p. 3).

Mailson da N6brega, Ministro da Fazenda do governo Sar­ney, e "paraibano como Erundina e bancirio como OHvio" [Du­tra], eleito pelo PT para a prefeitura de Pono Alegre. Alem disso,"ha ainda algo mais importante a unir os tres: rodos tern origemmodesta" (e rural). No entanto, se constru<;:6es de identidade combase em qualquer urn desses tra<;:os permirem esrabelecer urnasemelhan<;:a entre 0 ministro e os prefeitos peristas, ela se desfazquando ourros criterios sao utilizados para demarcar - criteriosque dizem respeito a posi<;:io social:

"Vma pessoa com alguma faria razoavel de poder podia serde direita ou esquerda, a favor de Leonel Brizola ou de PauloMaluf, mas no fundo rodos se reconheciam em meia dliziade coisas decisivas - freqUentavam os mesmos restaurantes,por exemplo, ou compravam roupas em butiques semelhan­tes, ou nao diferiam mwto em seus projetos de ferias. (...)OHvio Dutra e Erundina vern de uma extra<;:io social quejamais freqilentou 0 palco da polirica brasileira.

(...) Ambos chegam aprefeirura de Pono Alegre e prefeirurade Sao Paulo direto, sem sair do lugar onde socialmenteestao ha muito rempo. (...) trazem a extraordinaria novidade

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de impregnar com cheiro de povo 0 poder no Brasil" (fB., .20/11/88, p. 4-Cad.B esp.)

Em suma, 0 "escindalo Erundina" e ainda maior pelo quesua vit6ria pode representar em termos de classe, embora estadimensao seja constantemente mascarada. Urn mecanismo de ocul­tamento eficaz e 0 de representi-Ia como a pr6pria "Cinderelado Agreste" (0 ESP) 18/11/88, p.2-Cad.2), de modo que a suavit6ria possa ser aceita, porque esvaziada simbolicamente. Esseprocesso e denunciado no interior da pr6pria imprensa, nao semque isso signifique 0 refors;o de outras interpretas;6es - e claro:

"... uma cerra simpatia, uma adesao geral acompanha a vit6riade Erundina, mesmo nos meios de comunicas;ao rnais refra­tarios ao PT, (...) e projeta na nova prefeita a imagem deuma especie de ama-seca, simpl6ria, sorridente, pobre e degrande coras;ao. (... ) A eleis;ao de Erundina - pretexto parafotos que mostram a nova prefeita se maquiando, indo aocabeleireiro (...) - traduz-se, sob a 6tiea eonservadora} numahist6ria burguesa de sueesso' (FSP, 21/11/88, p. 2).

Os questionamentos, no interior da imprensa, do tratamentodado a prefeita eleita pelos pr6prios meios de comunicas;ao saopoucos, mas significativos. No mesmo sentido do anterior, urnexemplar da imprensa paraibana:

"No caso Erundina, ficou evidente demais a intens;ao dealgumas emissoras brasileiras em ftltrar suas mensagens emprol dos trabalhadores. Foi lamentavel ver aquela mulher defibra banalmente desfilando em carro aberro, dans;ando eapagando velinhas (...).

56 simo ver uma mulher conscientizada como Luiza Erun­dina parecendo uma burguesa alienada, perdida entre home­nagens e risadinhas... " (Cor. PB, 4/12/88, p. 4).

Eles explicitam claramente a luta pelo poder simb6lico de definirquem eErundina.

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Nas Pdginas dos Jornais, Afinal, Quem eErundina?

Os diversos vefculos da imprensa diferenciam-se entre si, epoderiam ser analisados de acordo com sua linha editorial e ascaractedsticas bcisicas de seu discurso - e nesse sentido seria pos­SIVel considerar a Folha de S. Paulo mais democritica, e a Vejacomo uma fala da "razao autoritciria", como faz Bucci (1989).Quanto a postura liberal da Folha, vale lembrar que a expressaode pensamentos divergentes e necessaria ate mesmo para conso­lidar, atraves da industria cultural, urna hegemonia de classe (c£Lins da Silva, 1985:22). No entanto, essa caracteriza«;:ao nao enosso objetivo. 0 estudo empreendido revela que 0 material daimprensa nao e, naquele momenta hist6rico, uniforme - mesmointernamente, em cada publica~o. Ja na campanha presidencialde 1989, ha anilises que indicam urna maior interven~o dosempresarios da imprensa, no sentido de urn controle rnais dgidoda produ~o no interior de cada ve1culo (c£ Kucinski, 1990).

Embora os jornalistas possam ser considerados como espe­cialistas da produ~o simb6lica ou mesmo intelectuais que pro­curam direcionar a opiniao publica, tratar 0 seu discurso sob urnacategoria globalizante e homogeneizadora - como, por exemplo,ideologia dominante - nao seria suficientemente explicativo, ape­nas reafirmando a fun~o geral dos meios de comunica~o nurnasociedade de classes, 0 que ja e suficientemente sabido, e ate dito ...nas paginas de urn jornal:

" - N6s C..) temos clareza de que a informa~o e urnpoder, que os meios de comunica~o sao urn poder, e sabemosque esse poder nao esta a servir;o da maioria da popular;ao, aocontririo, esti a servi«;:o de uma minoria. Como n6s somosurn partido de oposi~o, que ,ate agora nao teve poder real,e alem do mais, como temos uma proposta de esquerda, (...)os meios de comunica~o procuram nos noticiar a partir deurn angulo que possa nos prejudicar" (jB., 20111/88, p.10-Cad. B esp. - entrevista com Luiza Erundina).

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Sem esquecer que a produ~o do discurso e controlada socialmentee que 0 direito privativo de quem fala e urn dos mecanismos deexclusao - e nesse sentido e evidente 0 privilegio intrfnseco afala do jornalista, da qual Erundina se encontra dependente -,vale ressaltar que, historicamente, 0 discurso tern sido tambtmurn meio de luta. Por outro lado, 0 pr6prio processo de produ~o

do material jornalistico esti permeado por contradic;oes, inclusivepelo "confronto entre os interesses dos donos da empresa e os deseus funcionarios", 0 que se traduz tambern no conteudo do pro­duto final (Lins da Silva, 1985:21).

o jornal e urn espac;o em que se entrecruzam inumeros dis­cursos. Urn espac;o onde se desenvolve uma disputa pela inter­preta~o legitima do mundo social, que reflete a dinamica dasrelac;oes de poder na sociedade mais ampla. Procuramos desvendaros mecanismos envolvidos na cria~o de uma imagem de Erundina- enfocando especificamente os tres eixos centrais de atribui~o

de identidades -, acreditando que, investigando esses mecanis­mos, sao revelados os pr6prios caminhos de reprodu~o da ideo­logia - ou de resistencia.

Erundina e uiraunense/paraibana/nordestina, emulher, e as­sistente social, militante petista... I: tudo isso e muito mais, demodo que nenhuma atribui~o de identidade, nenhurna formade reconhecimento podeci abarca-lao Erundina sera. sempre maisdo que as paginas de urn jornal podem fazer crer.

• 0 Interesse em Perceber

As identidades sociais sao maleaveis e, enquanto repre­sentaeroes, sao construeroes redutoras e simplificadoras, pois 0 traeroque funciona como criterio para a constru~o de identidade, 0

elemento que distingue e agrupa - a marca -, e sempre esco­Ihido, selecionado entre outros trac;:os e referenciais possiveis. Apartir dessa marca organiza-se simbolicamente 0 mundo social:sao estabelecidas as fronteiras do grupo, direcionando a rela~o

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EU/N6s/OUTROS e tornando 0 grupo socialmente visivel. Semduvida, esse processo e mais claro em um grupo que companilhade ay6es concretas, mas mesmo que nao haja esta pcitica comum,a demarcayao tern seu efeito: delimitar um grupo ("formal") aque tambem penenya Luiza Erundina, no momento em que elase projeta nacionalmente, pode representar 0 ganho simb61ico decompartilhar de seu prestigio. E isto pode ser conseguido atravesda identidade regional, enquanto forma de reconhecimento prio­rizada, como fica claro no discurso do orgulho (mas nao apenasnele).

"Os nordestinos que trabalham com 0 presidente Sarney an­dam felizes da vida com a ascensao de Luiza Erundina.

Apesar de os moyos estarem muxoxos com 0 PMDB, elesdescobriram que nunca [oi tao 'chic'ser nordestino. " (F.SP,22/11/88, p. E-2.)

As imputay6es de identidade sao "atribuiy6es interessadas"(0 que nao qu'er dizer que sejam sempre conscientes ou deli­beradas), direcionadas pelos esquemas de percepyao e pelosvalores disponlveis, mas tam bern pelo interesse em perceber:

"0 fundamento do prindpio de pertinencia que e utilizadopara a percepyao do mundo social e que define 0 conjuntodas caracterfsticas das coisas e das pessoas suscetiveis de serempercebidas, e percebidas como interessantes, posit iva ou ne­gativamente, (...) nao e outra coisa que 0 interesse que osindividuos ou os grupos considerados tern em reconhecereste trayo e a incorporayao do individuo considerado ao con­junto definido por este rrayo: 0 interessepelo aspeeto percebidonao e nunca completamente independente do interesse empercebe-Io". (Bourdieu, 1979:554)

A pr6pria imprensa paraibana revela-o, em momentos em quenao reproduz 0 discurso do orgulho:

"Ai vern Dona Erundina, que ate surgir no Ibope como seriaconcorrente a prefeitura de Sao Paulo, pouca gente sabia

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que e1a era paraibana (inclusive eu), quanto mais de Uiratina"(0 Comb., 27/11/88, p. 7).

Desse modo, contra qualquer conceps;ao da identidade re­gional como inata ou inerente ao "povo do Nordeste", nao e 0

fato de ter ali nascido e/ou vivido que traz como conseqilenciacompartilhar com Erundina de urna identidade valorada positi­vamente, assim como 0 preconceito contra os nordestinos nao edado pela naturalidade sulista. Urna boa ilusrras;ao disto pode serencontrada na cdtica do Pasquim a urn aniculista da Tribuna cialmprensa que acusa a e1eis;ao de Erundina de "rransformar SaoPaulo, mental e materialmente, em gigan"tesco reduro 'pau de

,,,arara :

"Quem pensas, leitor, que vos falou? Urn louro dolicocefalode olhos azuis C..)? Nao. 0 Nenan e, ele pr6prio, urn cabeyachata, urn parafba da peste (...).

o cabra ti cuspindo na macaxera que comeu" (Pasquim,25/11/88, p. 19).

Todo urn processo hist6rico configurou 0 Nordeste comoregiaQ, enquanto no nfvel simb61ico se construiu culturalmenteuma representas;ao (marricial) da identidade regional, moldadapelas rela~oes do Nordeste com ourras regioes. Identidade quepode ser diferentemente apropriada, sendo...

"...avaliada positivamente por seus atores, atraves do orgulhode pertencer a regiao (...) e negativa ou indiferentemente,quando se rendem a outros cuja identidade e concebida demodo positivo" (Costa, 1988:23).

Assim, 0 nordestino (tomando-se 0 criterio oficial de naru­ralidade) pode ter ou nao na sua origem regional referencia paraa auro-arribuis;ao de identidade. Havendo 0 auro-reconhecimento,esta identidade pode ter conteudos diversos. Urn migrante nor­destino pobre em Sao Paulo, por exemplo, com marcantes expe­riencias pessoais (e coletivas) de discriminas;ao, pode passar a per­ceber a sua diferenya (de naturalidade, vivencia ou cultura...) como

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marca de inferioridade. No GlSO, a representaryao de identidaderegional com fortes conteudos de rebaixamento, que the e impu­tada, e por de incorporada como inerente. A diferen<;a, assimnaturalizada, justifica a hierarquizaryao social, demarcando 0 seu"lugar", de forma que a discriminaryao pode passar a ser percebidacomo resultante, de alguma forma, de sua pr6pria condiryao e porconseguinte de sua pr6pria culpa. Ha de ser considerado, ponamo,como essa representaryao depreciativa do nordestino se difunde ese reproduz socialmente como uma forma de dominaryao, inclusiveatraves dos meios de comunicaryao - 0 que redimensiona a disputapdos conteudos da identidade nordestina atribufda a Erundina,na medida em que dela se estendem ao conjunto dos migrantesda regiao.

• Representa<;:6es de Vma Mesma Matriz

Se 0 jogo de reconhecimento coloca em disputa 0 podersimb6lico de impor as defini<;:6es legftimas do mundo social, tam­bern envolve uma luta por poder real, na medida em que a formade apreensao do mundo orienta as praticas sociais: no GlSO daidentidade, .direcionando a organizar;:ao de grupos e, especifica­mente neste estudo, implicando em apoio ou alinhamento com(ou contra) Erundina.

No caso da imprensa de Sao Paulo, e bastante clara a vin­cularyao entre 0 "escindalo" Erundina - 0 rom pimento das regrasde acesso ao poder - e a imputaryao da identidade nordestinacom 0 carater de acusaryao, atraves da qual e marcada uma exclusiio,ou seja, a diferenciaryao entre os nordestinos ("des") e quem fala.Ai, a distin<;:ao NOS/ELES (os outros) explicita a oposir;:ao de in­teresses e legitima 0 conflito: "os grupos humanos nao hostiJizame nao dominam 0 'outro povo' porque de e diferente. Na verdade,tornam-no diferente para faze-lo inimigo" (Brandao, 1986:8).

Ja no discurso do orgulho da imprensa paraibana, a priori­za<;:ao da identidade nordestina, em rdaryao a Erundina, estabdece

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o "n6s", a inclusiio, ao mesmo tempo em que diversos mecanismosprocuram anular outras diferens;as, num trabalho de neurralizas;aoonde a pr6pria despolitizas;ao do discurso revela sua natureza po­litica (cf. Bourdieu, 1982:155).

Os dois discursos e os contextos em que se situam apresentamdiferenciat;6es. Na Paraiba, a construs;ao da coesao e posslvel, semduvida, porque Erundina nao participa efetivamente da dispurapelo poder local:

"Se morasse aqui, nao se e1egeria vereadora. 0 povo daquiC..) vota em troca de uma telha, de urn quilo de feijao, deuma nota de mil. (...) ninguem votaria em Erundina. C..)o reitor e os 'homenageadores', pelo menos eu acho, ror­ceram por Paulo Maluf ate as wtimas horas" (Cor. PB,26/11/88, p. 4).

Tanto seu discurso enquanto representante do PT quanto atosconcretos confrontam-se com priticas politicas locais - quando,por exemplo, se recusa a atender pedidos pessoais, mesmo dosprefeitos de Uirau.na, ou quando dispensa 0 aviao colocado asuadisposis;ao pelo governador da Paraiba (cf. 0 E.5.P, 7/12/88, p.2, entre outros). No entanto, e justamente no seio da visao demundo em que se inserem tais praticas polfticas, consolidadas emantidas por todo urn processo hist6rico e social, que em muitosmomentos Luiza Erundina e percebida:

"... foi sautkula em sua terra como profeta. Por onde passou,o povo quis rocar a fimbria de suas vestes (... ), puxar urnfio de seu cabelo claro. Ninguem prestou muita atenr;iio aspalavras inflamadas de sua pregar;iio do socialismo. 0 povopreferiu ver nela a esperans;a ja depositada antes no profetade ]uazeiro do Norte, no beato de Canudos..." (0 E.5.P,4/12/88, p. 3 - editorial).

Outra 6bvia distins;ao entre os discursos que caracterizam aimprensa de Sao Paulo e da Paraiba e 0 fato de se situarem emp610s opostos da construs;ao regionalista que contrap6e os dois

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espas:os. Na medida mesmo em que nao se configura como wnaameas:a concreta imediata a estrutura de poder local, Erundinapode corporificar a redentora, nao mais dos oprimidos em termosgenericos, mas do Nordeste contra 0 Sul, como aquela que redimea sina dos nordestinos destinados a migrar para Sao Paulo emcondis:oes de exploras:ao e submissao. Neste momento, a "mulherdo Nordeste governando Sao Paulo" (0 Norte, 29/11/88, p. 4)pode representar a reversao simb6lica de todo urn processo his­t6rico. Ou ainda pode sustentar reivindicas:6es regionalistas:

"A eleis:ao de wna digna representante da Parafba para aPrefeitura de Sao Paulo foi 0 grito de alerta do sufocadoNordeste brasileiro, abandonado a seca e a fome, e que 0

resto do Brasil esconde para nao ver C..) nao resta outraalternativa ao centro polftico instalado em Brasflia, senaoestabelecer wn plano de emergencia para 0 Nordeste... " (fB.,3/12/88, p.lO - carta de leitor).

Por vezes tais reivindicas:6es sao atribufdas a pr6pria Erundina:

"A prefeita eleita de Sao Paulo, Luiza Erundina, condenouontem a discriminafao a que estd relegado 0 Nordeste porconta cia [alta de apoio do Governo Federal as iniciativas daregiao. Conforme a prefeita, tal discriminas:ao e a ratio prin­cipal do exodo rural verificado nos wtimos anos. (...) na suaadministras:ao 0 nordestino sera. tratado, em Sao Paulo, comocidadao brasileiro" (0 Mom., 29/11/88, p. A-3).

A notfcia acima refere-se a entrevista coletiva realizada naOrdem dos Advogados do Brasil (OAB/PB), no dia 28111/1988,a qual infelizmente nao tivemos acesso direto. No entanto, asfalas de Erundina diretamente estudadas, embora tratando comfreqUencia de temas como 0 exodo rural ou a situas:ao dos nor­destinos na periferia de Sao Paulo, nao se configuram como mar­cadamente regionalistas. No caso da sessao de homenagem naAssembleia Legislativa (29111/88), cujo apanhado taquigcafico foiconsultado, 0 Momento - que emprega constantemente em 5Uasreponagens 0 discurso indireto, enquanto 0 Norte e 0 Correio cia

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Paraiba costumam transcrever trechos inteiros (aspeados e bastante£leis) dos pronunciamentos de Erundina - apresenta outra vezuma versao que podemos veriftcar como sendo uma apropria~o

regionalista de sua fala:

[Erundina] "Voltou a condenar a situa~o em que se encontraa regiao Nordeste. Salientou que rrata-se de uma regiao es­quecida pelo Governo Federal, tornando diffcil a manutens;aodo homem-do-campo no seu pr6prio meio" (0 Mom.,30/11/88, p. A-2).

"Se nao houvesse generosidade no povo de Sao Paulo, naoacolheria tantos nordestinos, tantos trabalhadores expulsosnao s6 do Nordeste, mas do Parana e de ourras regioes deMinas, do Norte do pais, expulsos por falta de condis;oesminimas de subsistencia ... " (L.E.I Assembleia Legislativa,29/11/88).

Os contextos dos discursos da imprensa da Paraiba e de SaoPaulo distinguem-se, ainda, quanto as relas;oes de poder entre osgrupos dominantes das duas regioes e com respeito aos meios deque dispoem para a difusao de suas ideias - veiculos da grandeimprensa, de circulas;ao nacional, ou jornais locais, de tiragem edistribuis;ao limitadas. No entanto, malgrado todas as diferen<;-as,tanto no discurso do orgulho quanto naquele que consrr6i a iden­tidade nordestina como acusas;ao, a marriz e, em wtima analise,a mesma. Nestas duas situas;oes, tenta-se esvaziar - seja atravesda coesao (PB) ou da discrimina~o (SP) - 0 significado maiorda eleis;ao de Erundina, que e, sem duvida, ser a vitoria do PT,de urn partido de esquerda com origens sindicais, que tern crescidobastante nos ultimos anos, e mais ainda com a conquista da pre­feitura da maior cidade da America do Sul, - e todo 0 caraterde c1asse que tal vit6ria possa ganhar. Nessa medida, as duas re­presentas;oes de Erundina, embora distintas, sao geradas a partirde uma mesma matriz dominante: a matriz de uma sociedade declasses, que se nega enquanto tal, negando tanto a divisao socialquanto 0 exercfcio do poder por. uma classe sobre outras (cf.Chaui, 1984:28).

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• a I UOEm busca de urnconceito de identidadepara as sociedadescomplexas"Diz wn proverbio de camponeses arabes:'Eu contra meu irmao; eu e meu irmaocontra meu primo; eu, meu irmao e meuprimo contra aquele que nao pertence ao1- ,ca.

(...) inimigos em urn determinado nfvelprecisam ser aliados nwn nfvel diferente.Urn homem e, assim, for~do a ser si­multaneamente inimigo e aliado de urns6 grupo de pessoas, e tais contradil):oessao continuamente enfrentadas e tempo­rariamente resolvidas atraves cia 'mistifi­ca~o' gerada pelo simbolismo."

Abner Cohen

(1978:47)

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o Nordeste, os nordestinos, Erundina nordestina. No sensocomum, coisas tao naturais e evidentes, tao "0bjetivas" , que osnomes (a)parecem (como) a propria realMade, sendo ocultadastodas as operaryoes de apreensao e tratamento do real, todo 0

processo de representayao simb61ica em sua relayao dialetica (es­truturante/estruturada) com 0 mundo social concreto. Os nomes,assim, orientam a pr6pria percepyao.

Tratando com realidades ja nomeadas e classificadas, as cien­cias sociais devem tomar como objeto as pr6prias operaryoes sociaisde classificayao e nominayao, sob 0 risco de retomar e justificar,sem 0 saber, atos de constituiyao cuja 16gica e necessidade elasignoram (Bourdieu, 1982:99). Se for apenas tomada do sensocomum e transposta para a analise cientffica, a noyao de identidadefunciona como urn a priori cognitivo - cujo quadro de signifi­caryoes e pressuposto -, na medida mesmo de seu alto grau degeneralidade e imprecisao. Desse modo, classificaryoes de identi­dade "acabam servindo para dar uma realidade anaHtica aparentea alguma coisa que nao e 'assim' na realidade da vida social esimb61ica" (Brandao, 1986: 160-161). No sentido de investigar osatos do discurso social, acreditamos que pode ser util 0 conceito

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de identidade social proposto (com os referenciais te6ricos que 0

contextual izam), fornecendo elementos que permitem revelar ospr6prios atos de constituis:ao das realidades (sociais) nomeadascomo identidades.

Tomemos, por exemplo, a ideia de "perda de identidade",representas:ao tao recorrente em exp1icaS:6es do senso comum oumesmo em certas anilises, que remete a uma conceps:ao de iden­tidade como essencia. a conceito de identidade proposto permiteque a "perda de identidade" seja reapropriada enquanto a quebraeJe pacametros ftxados de relas:ao com 0 mundo, expressos nasformas de se reconhecer e ser reconhecido, firmados numa dadarepresentas:ao (de identidade) estabelecida e por vezes instituida.Desta forma, a imagem da perda de identidade de urn povo, umanas:ao ou regiao diz respeito a um processo de transformas:ao (des­truis:aolrecrias:ao) dos referenciais simb61icos que marcavam (e/ousustentavam) urn certo projeto ate enrao dominante, e nao aperdade alguma qualidade inerente ou da essencia de um povo.

Como condis:ao para fundamentar mais solidamente a nossaproposta de conceituas:ao de identidade, tocna-se inevitivel ques­tionar a ideia de identico e uno que Ihe e subjace£lte - tributeiria,sem duvida, do princfpio 16gico de identidade, "postulado beisicoda hist6ria da razao ocidental", jei apontado por Duarte (1986:71­72) como um foco de embaras:o da nos:ao de identidade social.

Em Lugar do ldentico, 0 Semelhante

Jei Durkheim, em 1912, observava que 0 prindpio de iden­tidade que dominava 0 pensamento cientifico em sua epoca naoera etecno, mas produto de fatores hist6rico-sociais. Em contextosculturais outros, podiam ser encontradas mitologias com seres do­tados de atributos contradit6rios, seres "que sao ao mesmo tempouns e vdrios, (...) que podem se subdividir indefinidamente sem

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nada perder do que os constitui" (Durkheim, 1984:155 - grifosnossos).

o prindpio da identidade (A = A), da 16gica clissica, cujocoror.irio e a nao-contradi~o, predomina ate hoje no pensamentoocidental. Sua influencia sobre diversas concepyoes de identidadesocial (e tambem pessoal), mesmo que nao explicitada, reve1a-senas crfticas que lhes sao dirigidas por pressuporem coerencia ehomogeneidade. Os limites de tais pressupostos podem ser evitadospela ado~o explicita de nova fundamenta~o para a nossa con­ceitua~o de identidade social. Ena filosofia da linguagem, a partirda rica reflexio de Guerreiro (1985), que pode ser encontradoembasamento s61ido para a no~o substitutiva que propomos: asemelhanya. .

A identidade social refere-se a pessoas, a individuos, a agentessociais1 distintos que podem ser, por uma caracterfstica comum,incorporados a uma mesma classe - ados nordestinos, por exem­plo. Esti em jogo, portanto, a delimita~ao de um grupo, estabe­lecendo-se os "pares" - seja urn grupo "de fato" , que atua con­jumamente, ou urn grupo "formal", que apenas compartilha deuma identidade comum. Embora se configurem como pares ­como "iguais" -, sao individuos distintos : a opera~o que atribuiuma identidade social comum, que classifica organizando grupos,trabalha com objetos diferenciados, independentes, e com maisde um objeto. Isto leva a impossibilidade de que 0 conceito deidentidade social seja fundamentado, explfcita ou implicitamente,sobre 0 principio de identidade 16gica (A = A), pois onde se tern

uma relariio de identidade- que e uma rela~o reflexiva, simetricae transitiva - niio pode ser estabelecida uma relariio de diferenra:

1. Embora rais rermos possam ganhar, conforme os conrexros re6ricos, conora~diferenciadas, que nao sao aqui relevanres. Ver Mauss (1974) para pessoa; Dumonr(1985) e Da Mara (1983b) para indivlduo e pessoa, como conceiros disrinros;Bourdieu (1983) para 0 uso do conceiro de agenre social. Principalmenre no que~ refere a pessoa e indivlduo, remeremos aqui, proposiralmenre, ao uso mais correnre(e mais impreciso) dos rermos.

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as expressoes "e igual a" e "e diferente de" sao contrarias e mu~

tuamente exclusivas (Guerreiro, 1985:87). Ja a expressao "e se~

me1hante a" - contrastando 'om "e diferente de" - poe emjogo uma diferen~ de grau; fiao se trabalha com contrarios mu­tuamente excl udentes, mas com conrrastes relativos:

"Admitimos que 0 azul celeste ediferente do azul marinhoe, ao mesmo tempo, aceitamos que ambos sao semelhantes,sem estar entrando em nenhuma contradi<;io ..." (Guerreiro,1985:87-88).

As condi~oes formais necessarias ao estabelecimento da re­la<;io de seme1han~ sao compadveis com 0 contexte em que secoloca a identidade social: a re1a<;io de seme1han~ e necessaria­mente irreflexiva (dizer que alguem e semelhante a si mesmo euma senten~ desprovida de sentido) e s6 t possivel sobre °pres­suposto da diferenfa, pois de outro modo diriamos que as duascoisas sao iguais. Sendo assim, quando se cia, a panir de urnaidentidade social comum, a configura<;io de pares, trata-se de"iguais" relativos, construidos sobre urn elo de semelhan~.

A altera<;io das bases do conceito de identidade - de urnaigualdade que exclui a diferen~a para a semelhan~, que a esta seanicula - permite superar 0 impasse apontado por diversos au­tores:

"Esse jogo multifacetado em que as coisas nunca sao 0 queparecem, essa nao coincidencia consigo mesmo, que faz comque 0 igual signifique 0 diferente, poem em causa a no<;iode identidade concebida sob as especies de urna continuidadede apar~ncia ..." (Cunha, 1985:13).

As semelhan~s nao estao nas coisas, mas sim entre as coisas,pois a semelhan~ euma relafiio, e nao uma propriedade (Guer­reiro, 1985:86). Deste modo, a semelhan~ efruto de urn processode apreensao do real, de opera~oes de identifica<;io e discrimina~ao

que pressupoem, necessariamente, criterios:

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"...nao dispomos de criterios rigorosos para justificar 0 re­conhecimento de semelhans;as C..). Quando se coloca estacarencia de criterios, as portas ficam inteiramente abenaspara a inventividade e passa a ser possivel estabelecer seme­Ihans;as ou mesmo analogias entre quaisquer coisas, desdeque sejam apresentados e10s de rela~o plausiveis." (Guerreiro,1985:89).

Nao hi, a principio, urn criterio melhor que 0 outro, a nao serquando se e1aboram justificativas para provar tal coisa. Mesmoque se elegesse a aparencia como criterio para comparar, por exem­plo, urn morcego e wna baleia, urn bi610go poderia privilegiartra~os biologicamente relevantes - como a fi.m~o de amamen­ta~o dos filhotes -, estabelecendo elementos comuns impensiveispara urn pintor "realista", interessado nas formas visiveis enosmovimentos dos animais. Para 0 artista e 0 bi610go, "as aparenciasestariam sendo visadas de modos inteiramente distintos" (Guer­reiro,1985:90).

Em sua reflexao, Guerreiro discute duas interpreta~6es paraa semelhan~ enquanto urna rela~o, isto e, a ideia de que assemelhans;as estao entre as coisas. Por urn lado, pode-se entenderque e assim "como reswtado de aspectos OU propriedades indivi­duados em paniculares", concep~o em que tais aspectos sao to­rnados como dados e 0 reconhecimento das semelhan~s comourn processo de abstra~o empirica (1985:86). No entanto,

"0 reconhecimento das semelhan~s esci muito longe de serproduto de urn processo de abstra~o empirica, pois a pr6priaabstra~ao empirica esci orientada por esquematismos con­tendo criterios implfcitos de identifica~o e discrimina~o"

(Guerreiro, 1985:90).

Por outro lado, a interpreta~o de que as semelhans;as estao entreas coisas porque n6s lti as colocamos nao deve implicar na concep~o

de que 0 esquematismo que orienta 0 processo de reconhecimentode semelhans;as e inerente ao sujeito, como dizia Kant. Como foi

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colocado, os processos de apreensao de semelhan~ e diferen~

pressupoem crirerios, e isro remere a esquemas de percepc;:ao/in­rerprerac;:ao que nao sao inaros, mas adquiridos (Guerreiro,1985:90) - vale dizer, social e culturalmente construfdos. Aflnal,sao culturais os referenciais que tornam a experiencia humana"uma sensac;:ao significariva - uma sensas;ao interpretada, umasensac;:ao apreendida" (Geertz, 1978:272).

Desra forma reencontramos a discussao anteriormente de­senvolvida sobre as bases sociais do pensamento, reafirmando-sea adequac;:ao da semelhans;a como fundamento para 0 conceitode identidade social proposro: sua flexibilidade e refors;ada, ja quecriterios distintos resultam no esrabelecimento de relas;oes de se­melhans;a diversas. Nas representas;oes de identidade (social), 0

elo e dado (ou em OUtfOS rermos, a relac;:ao de semelhans;a e es­tabelecida) pelo interesse em perceber, que poe em ac;:ao esquemasde percepc;:ao disponfveis naquela sociedade determinada, numdado momento hist6rico.

• Em Quescao: Identidade, Identiflcac;:aO, Homogeneidade

Com a relac;:ao de semelhans;a como fundamentac;:ao para 0

conceito de identidade social, afastando-o cada vez mais de qual­quer concepc;:ao de uma idenridade inerente, torna-se nao maisrelevante a disrinc;:ao entre identidade e idenrificac;:ao, esta refle­tindo, para Cardoso de Oliveira, "a identidade em processo': ouseja, 0 modo "como e assumida por indivfduos e grupos em di­ferentes situas;oes concreras", 0 que permite dizer que "a identidadesocial surge como a atualizac;:ao do processo de identificac;:ao"(1976:5).

Sao abordagens de base psicol6gica - mais especificamenteda psicanilise - que apontam como necessaria a diferenciac;:ao:identificac;:ao nao e identidade (Green, 1981). Lavieri (1989), in­clusive, vincula a ideia de diferens;a aconstruc;:ao da identidade ea de semelhans;a ao processo de identificac;:ao. No entanto, a nosso

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ver, se a conceitua<;ao de identifica<;ao, no quadro te6rico da psi­canalise, revela-se urn constructo uti! para 0 tratamento de pro­cessos pessoais internos - muito mais relevantes para a analiseda identidade pessoal -, em termos de identidade social concor­damos com Barbu: "identidade nao epor for~ coisa diversa deidentifica<;ao" (I 980:303).

Dentro da concep<;ao de identidade social proposta, em quea semelhan~a e a diferen~ se articulam, podemos tomar a iden­tifica~o em seu sentido mais corrente, vinculada aos processosde percep~o, ao reconhecimento: identi£icar aJguem equivale acaracterizar, a atribuir uma identidade, numa a~o em que sepoem em jogo esquem~ de apreensao e interpreta<;ao. Dessa for­ma, niio consideramos que a identidade esteja em outro fugar queniio nos processos em que se constr6i ou em que se mostra no jogo dereconhecimento - a nao ser enquanto urn instrumento construfdode analise. Em outros termos, 0 que chamamos de "identidadenordestina" e fruto de uma abstra<;ao, e nao decorrencia diretade aJguma qualidade intrinseca do objeto. 0 que pode ser obser­vado e estudado e 0 modo como as atribui~oes de identidade saoconstrufdas e aplicadas: e esta a experiencia possive!.

Urn conceito de identidade social que se ap6ie, de algummodo, no prindpio de identidade formal e tolhido em sua mo­bilidade. Assim, urn conceito de maior dinamismo, que possa seadequar ao estudo das quest6es de identidade nas sociedades com­plexas, deve basear-se na rela<;ao de semelhan~, onde esta e adiferen~ sao uma questao de grau, 0 que permite, inclusive, co­locar lado a lado as diferen~ individuais e as identidades sociais,coletivas, 0 que desfaz qualquer pressuposta homogeneidade comoconseqUencia do uso do conceito.

Neste ponto, e importante ressaltar que, se uma representa~ao

de identidade coletiva nao significa a homogeneidade interna dogrupo ou entre os individuos que compartilham de uma identidadecomum, a representa<;ao construida relega e mascara as diferen­cia~oes internas. ]a que qualquer re1a~o de semelhan~ e estabe-

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lecida, qualquer representa~ao e elaborada sobre elementos sele­cionados, em bora nao haja homogeneidade "de fato", no jogo dereconhecimento a representa~o de identidade homogeneiza sim­bolicamente (c£ Penna, 1989). Dessa forma, os nordestinos ­seja 0 "povo nordestino" ou qualquer nlimero de pessoas quecompanilhem dessa identidade regional - diferenciam-se entresi, enquanto a atribui~o de uma identidade comum, a indusaoem uma mesma categoria os "iguala", por sobre as diferenc;:as dedasse social, entre 0 meio agririo e urbano etc. Cabe ao pesqui­sador, ponanto, considerar necessariamente a rela~o contradit6riaentre a diferencia~o concreta e a representa~o homogeneizante.

Em se tratando de grupos que mantem uma a~o conjunta(panicularmente aqueles que lutam em tomo de uma identidadeespedfica), e essencial nao esquecer que as representa~6es de iden­tidade curnprem fun~6es organizacionais no grupo: demarcam seuslimites (nos/efes), estabelecem uma "comunhao" por sobre possfveiselementos de ruptura, criando simbolicamente uma unidade emtomo de interesses (materias e/ou simb6licos) ou mesmo de urnproJeto com urn.

Se, em urn dado momenta e sob determinadas condi~6es

(por exemplo, ao curso de urn enfrentamento), 0 conjunto dostrabalhadores de urna fabrica se reconhece como urn grupo coesodiante do patdo, tendo, na sua posi~o nas rela~6es de produ~o,

o referencial para a constru~ao de urna identidade comum deoperario e para sua mobiliza~o, isto nao significa que desapare­ceram as diferencia~6es intemas - de genero, de etnia, de religiaoou ate mesmo de nfveis de renda etc. Neste determinado momento,elas foram relegadas a segundo plano, nao estao "em foco", naoestao sendo utilizadas para estabelecer delimita~6es e orientar aa~o, embora em outras ocasi6es possam se tomar, por uma seriede fatores, marcas para a constru~o de identidades, fragmentandoo grupo mais amplo. Logo, uma representa~o de identidade co­letiva nao significa a homogeneidade intema do grupo: uma iden­tidade comum dialeticamente expressa e organiza uma alian~,

estrutura e e estruturada pela dinamica social das rela~6es de poder.

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Se a identidade e 0 pr6prio reconhecimento social da dife­renc;:a, se e "este ser-percebido que existe fundamentalmente pdoreconhecimento dos ourros" (Bourdieu, 1980:66-67), a constru~o

de uma identidade significativa para a organizac;:ao do grupo, tor­nando-o "visfvel", implica em urn processo de re-presentas;ao ­no duplo sentido de elaboras;ao de uma forma de (auro-)reconhe­cimento, de uma "imagem" a ser lanc;:ada para fora, e de urnarepresentatividade de carater polItico perante a sociedade maisampla e suas instituic;:6es. Desse modo, 0 estabelecimenro de urnaidentidade comum, com certos conteudos, envolve dispuras nointerior do grupo, ja que a represenra~o consrrufda relega e mas­cara diferenciac;:6es internas, variac;:6es individuais etc. 0 processode sua consrruc;:ao revelad tens6es denrro do grupo - tendenciasdas vanguardas, a existencia de setores internamente dominadosetc. - e entre 0 grupo e a so;,;iedade que 0 envolve - trac;:osmais aceiraveis ou valorizados, mais adequados para 0 enfrenta­mento com certas instituic;:6es etc. (cf., p. ex., Perlongher, 1987,sobre 0 movimento homossexual no Brasil).

A Experiencia da Urbis Moderna e as ldentidades

A modernidade e uma experiencia hist6rica vinculada aoavanc;:o do desenvolvimento economico capitalista, que, ao mesmotempo em que traz ao homem urn conrrole cada vez maior sobrea natureza e imensas possibilidades de produs;ao material de ri­quezas, carrega tambem urn enorme potencial de desrruis;ao, tantopdos recursos capazes de aniquilar a humanidade, quanto peladesagrega~o de modos de vida e valores ate entao tidos comofundamenrais. Urn processo, em todos os nfveis, pleno de con­rradic;:6es (cf. Anderson, 1986).

Se, por urn lado, 0 capitalismo e marcado por uma profundaexplora~o economica, peJa a1iena~o do processo de trabalho ­quest6es ja fartamente estudadas -, a modernidade propicia, tam-

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bern, espa~o para 0 desenvolvimenro do individuo. £. nas socie­dades industriais modernas que a visao de mundo e marcada pela

. no~o de individualismo, que apenas nelas se configura plenamenreCcf. Dumont, 1985). Mauss, em seus escudos sobre a constru~o

hist6rico-social das "categorias de enrendimenro", ao tratar espe­cificamente das no~6es de individualidade e liberdade, em textode 1921, aponta:

"A no~o de liberdade - possibilidade de escolha - naoaparece imediatamenre na hist6ria. C...)£. ao desenvolvimenroda no~o do indivfduo como sujeito do direito, da moral eda religiao, que se vincula a no~o de liberdade propriamenredita. (. ..) Todas estas formas da no~o de liberdade s6 ex­primem 0 crescimenro consideravel do numero das afoes pos­sfveis oferecidas aescolha d6:·individuo, do cidadiio em nossasnafoes" (Mauss, 1981:375 - grifos nossos).

Nesse mundo em movimenro, de experiencias concomitantesde constru~o e destrui~o, de senrimentos conrradit6rios - ondeas experiencias de descobertas de possibilidades sao inseparaveisdos senrimenros de inseguran~ e frustra~o -, a questao daidentidade tern que ser reexaminada. 0 conceito de identidadeproposto - pela sua flexibilidade, pdo vinculo com 0 reconhe­cimento, fundamentado na rela~ao de semelhan~ - tern valorheuristico na compreensao das praticas sociais, inrensas e dina­micas, da urbis moderna.

Com urn drculo de a~o enormemenre ampliado, no senridode que cumpre mUltiplas atividades, inreragindo em varios grupose espa~os sociais2

, submetido a inrensa rapidez e movimenro davivencia urbana, 0 agenre social :nveste-selreveste-se de mUltiplasidenridades sociais, e reconhecido e reconhece a si mesmo de

2. No mesmo senrido, Cohen (1978:72) refere-se 11 grande diferencia~o insritucionalna sociedade industrial, 0 que resulta em envolvimenros segmenrares, diferenciadosconforme as disrinras esferas sociais em que se atua.

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diversas maneiras, que dizem respeito a diferentes facetas de suaexperiencia de vida. Identidades m6veis, instiveis, ate contradit6­rias entre si, construidas sobre sistemas de classifica~o de aplica~o

maleivel, e cujos significados variam conforme o. contexto social,con forme a posi<;io de quem os aplica. Assim, nao emais possive!pensar em termos de uma experiencia da totalidade, amplamentecompartilhada, capaz de engendrar uma identidade social comume duradoura.

Frans;oise Zonabend (1981), ao estudar a flutua~o de nomespara uma mesma pessoa em uma pequena aldeia francesa, apontaque: os nomes tern fun~o assimiladora e distintiva; refletem po­sis;oes diversas dentro do grupo; variam conforme 0 locutor, acircunstancia e a situa~o; seus diferentes usos correspondem auma manipula~o simb6lica da denomina<;io e da identidade so­cial. Tais reflexoes aparentemente poderiam ser aplicadas as iden­tidades sociais na urbis moderna; no entanto, a diferens;a cruciale que, apesar da imensa variedade de nomes, de formas de trata­mento/reconhecimento, todos sabiam, afinal, quem era quem (en­quanto pessoa), por uma vivencia comunitiria intensamente com­partilhada.

Na grande cidade moderna, marcada por uma enorme di­versifica~o de modos de vida e de conceps;oes de mundo, emque ninguem conhece ninguem, "a identidade social" torna-seinalcans;ivel. E nesse quadro que devem ser entendidas a lura emtorno de c1assificas;oes de identidade cada vez mais diferenciadorase a forma~o de grupos que se organizam enquanto portadoresde uma identidade espedfica. Nao se trata mais da identidadesocial como elemento de igualdade/unidade, como fator de coesaoda sociedade em seu conjunto -' como foi concebida em outrosmomentos hist6ricos (cf. Ruben, 1988). Sao processos de luta doindivfduo para ser reconhecido sob a c1assifica~o que Ihe e maisfavorive!, para diferenciar-se de alguns e assemelhar-se a outros,para incorporar certos atributos a uma determinada identidadeetc. Lutas de reconhecimento que 0 individuo pode manter emdiferentes frentes, correspondendo a distimos alinhamentos, apar-

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ticipa~o em diversos grupos - por exemplo, na associa~o pro­fissional, nurn grupo de mulheres, no panido politico - e asquais procura dar urn sentido pessoal coerente. As lutas em tornodessas identidades sociais colocam em jogo 0 direito a uma dife­ren~ legitima - que nao signifique desigualdade -, sendo 0espa<;o de afirma<;ao do individual e, ao mesmo tempo, luta apai­xonada pelo valor da pessoa, que se reduz socialmente a suasidentidades sociais (cf. Bourdieu, 1980:69).

Uma vez que a experiencia comunitana profundamente com­panilhada que permitia identificar a pessoa como (mica por tcis devariadas formas de a(re)presenta<;ao - e todos como parte do grupo- nao pode mais ter lugar, a experiencia da modemidade redimen­siona 0 jogo de reconhecimento como 0 esparyo de defini<;ao socialdo individuo, ou, nos termos de Geenz, como 0 espatyo em que osseres hurnanos sao personalizados, caracterizados e adequadamenterotulados, sendo 10ca1izados socialmente (1978:229).

• Identidade Social e Identidade Pessoal

No quadro de uma experiencia social multifacetada, que vin­cula as quest6es de identidade ao jogo de reconhecimento e depoder, ate a ideia de identico a si mesmo se torna questionavel.Em diversos sentidos, a pr6pria pessoa e mutavel; sua "identidade",enquanto medida de auto-reconhecimento, altera-se, inclusive,conforme as varias etapas da vida, os papeis sociais que cumpreetc., como ji assinalava Foucault:

"Se n6s tivermos que nos reponarmos aquestao de identidadetera. que ser a identidade de nossa pessoa unica. Mas as relaty6esque devemos manter conosco mesmos nao sao de identidade,mas sim de diferencia~o, cria~o, inova~o. Emuito tedioso

"3ser 0 mesmo .

3. Foucault, M. - "An Inrerview: Sex, Power and rhe Poliries of Idenriry", TheAdfJocau, n.O 400, San Mareo, 7 de agosro, p.26, 1984, aputl Mac Rae (1987:88)- grifos n0550S.

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Temos evitado 0 campo do pessoal, privilegiando, para adelimita<yao do conceito de identidade social, os referenciais co­letivos de inser<yao a urn grupo, os usos sociais das formas dereconhecimento, os processos culturais de constru<yao de repre­sentalYoes. Ao agir assim, admitimos que, havendo urn campo quepossa ser tratado como de identidade pessoal, este nao constituio nosso objeto. Entendemos, como Geertz, que os tralYos psico­l6gicos constituem 0 cerne da identidade pessoal (1978:252), eque esta, por sua vez, articula as diversas identidades sociais. Noprocesso de desenvolvimento pessoal, de forma<yao da personali­dade, e essencial a socializa<yao, e por conseguinte a forma comoo individuo e reconhecido pelos outros. Assim, no nivel da iden­tidade pessoal - que diz respeito a como a pessoa se ve, subje­tivamente, como percebe 0 que the e pr6prio enquanto indivi­dualidade diferenciada -, e necessario dar as varias identidadessociais urn sentido pessoal coerente, de modo a evitar 0 sentimentode fragmenta<yao. Desse modo, essas diversas identidades sociaisganham significados subjetivos a partir de vivencias pessoais, po­dendo ate se distanciar dos conteudos socialmente dominantes.

As questoes relativas a experiencia mais pessoal estao prati­camente exduidas de nossa conceitua<yao de identidade social, pelospr6prios limites de sua constru<yao enquanto objeto-de-conheci­mento - caberiam a psicologia ou a psicanaJise. No entanto, namedida em que "imagem do mundo e imagem de si mesmo estaoevidentemente sempre ligadas" (Castoriadis, 1986: 180), a distin­<yao entre os niveis pessoal e social da identidade e cercada dedificuldades, e qualquer separa<yao dicotomica entre identidadepessoal e social torna-se problemitica. Assim, se por urn lado hiautores que apontam as duas dimensoes contidas na nOlYao deidentidade - a pessoal (ou individual) e a social (ou coletiva)- "como dimensoes de urn mesmo e indusivo fenomeno, situadoem diferentes niveis de realiza<yao" (Cardoso de Oliveira, 1976:4),enfatizando suas coordenadas socioculturais, outros nao estabele­cern qualquer delimita<yao ao tratar da identidade, vinculando-a

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aindividualidade, esta POt sua vez construida pe!a interat;ao sociale continuamente reestruturada4•

Mesmo no campo da psicanilise, ao qual competem, a prin­cipio, as questoes de identidade pessoal, discute-se a validade doconceito. Green (1981), com base nos criterios de unidade e cons­tancia, rejeita a adequat;ao do conceito de identidade com re!at;aoa estrutura basica de urn individuo. T omando como referenciaas formulac;:oes te6ricas de Freud e Lacan, este autor argumentaque na teoria freudiana 0 individuo nao e uma unidade analftica .e, por outro lado, a estrutura nuclear do Ego nao pode constituiro sujeito, pois nao apresenta unidade nem constancia. A nossover, e ainda 0 principio de identidade formal que, aqui, sustentao conceito, provocando a sua rejeit;ao.

Nossa linica contribuic;:ao possive! - ja que nao tomamosocampo da identidade pessoal como integrante do nosso objeto- e no sentido de apomar a necessidade de rever 0 conceito eos principios que Ihe sao subjacentes. Para tamo, sao imeressantesas indicac;:oes de Ricoeur (1988) quanto a distint;ao, nem sempreexaminada, entre os significados de identidade-idem - que serefere ao mesmo - e identidade-ipse - que diz respeito ao si(self soi). Entre essas duas acepc;:oes de identidade, hi urn conegramatical, epistemol6gico e 16gico, e a interset;ao entre as duasconcepc;:oes - 0 mesmo e 0 si - e a permanencia no tempo,tam bern sujeita a interpretac;:oes distintas. A concept;ao de iden­tidade-ipse - considerando-se a permanencia no tempo na linhada imputat;ao (da significat;ao moral da at;ao) e, ponanto, enquantouma especie de fidelidade asi- pode dar ao conceito de identidadepessoal urn maior dinamismo, de modo que, recuperando as pa­lavras de Foucault anteriormente citadas, a "identidade de nossa

4. Vee Cohen (1978, principal mente pp.73-74 e 77-78). Tambem Velho (1987), cujaabordagem centra-se no individuo (em termos do individualismo das sociedadescomplexas); embora use explicitamente 0 termo "identidade social" (p.49), a analiseque se segue aborda aspectos que consideramos como pettinentes ao campo daident idade pessoal.

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pessoa linica" nao implica, necessariamente, no tedio de ser sempreo mesmo.

Sem duvida, formula~6es diferenciadas refletem abordagensdistintas, adequando-se a objetos diversos "recortados" do real.Nossa proposta, interligando as identidades sociais aos processosculturais e as re!a~6es de poder, permite estabelecer urna demar­cayao entre os nlveis social e pessoal da identidade - conceitual­mente e quanto ao objeto que abarca. Por outro lado, a subjeti­vidade nao e negligenciada, na medida em que 0 foco esta nosujeito que atribui identidades no jogo de reconhecimento.

Modos de Ser e "0 Modo" de Ser

" ... 0 objeto diante de mim e urn homem, urn enxame deatomos, urn complexo de celulas, urn ve!ho companheiro,urn amigo, urn tolo e muitas outras coisas. Se nenhurnadestas constitui 0 objeto tal qual ele e, que outra poderiaconstituf-lo? Se todas sao modos como 0 objeto e, entaonenhuma delas e 0 modo como 0 objeto e."5

A quesrao que se coloca, no [[echo cirado, e como ser fie!ao que 0 outro e, quesrao que pode ser transposta para a relayaoentre a representayao de identidade e 0 objeto concreto a que serefere. No caso em esrudo, Enll1dina e mulher, e nordesrina, eperisra, e assisrente social, professora, prefeira eleita de Sao Paulo...~ rudo isso e muito mais. "Nordestina" e urn de seus modos deser, mas nao 0 seu modo de ser. Quer tratemos a sua nordesrinidadeno plano "objerivo" - das re!a~6es de for~ e das classifica~6es

incorporadas ou insrirufdas, em surna, a condiyao de nordesrina,que implica em dererminadas formas de vida - quer em nlve!

5. N. Goodman. umguages ofArt: an Approch to a Theory of Symbols. Indianapolis& Cambridge, Hackett Publishing Co. Inc., 1976, p.6. ApudGuerreiro (1985:91).

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"subjetivo" - das representalYoes, das formas de reconhecimento,enfim, do que tratamos como identidade regional -, ela sempresera urn de sellS modos de sec. Urn modo de ser, urna faceta desua experiencia de vida, uma referencia para identifica~o, que setorna a forma de reconhecimento preferencial conforme as cir­cunstancias, 0 interlocutor, os interesses etc. Se sua nordestinidadenao a constitui integral mente, que outra dimensao de sua vivenciaou que outra identidade poderia constituf-Ia? Pode-se argurnentarque, no plano simb6lico, 0 que a constitui e aquilo que, para elapr6pria, for significatiyo. E assim 0 e, com rela~o ao auto-reco­nhecimento, a identidade auto-atribufda, sem que se esquec;a deque 0 significado e tambem dinamico, e tambem muclve1. Mase na intera~o social, na atribui~o de identidade pelo outro, ondepodem surgir novas significalYoes, ate mesmo em confroma~o?

Tais indagalYoes reforc;am que quaJquer conhecimento do"ser" (de si ou do outro) e urna interpretalYao (c£ Ricouer,1988:295). Imerpreta~o que as atribuilYoes de idemidade refletem,ja que a apreensao dos "modos de ser" de quaJquer objeto (coisaou pessoa) depende dos esquemas de percep~o e dassifica~o

atraves dos quais se operam as identifica~oes. Mais urna vez, rea­firma-se a necessidade de tratar as identidades enquanto formasde reconhecimento: afinal, "0 que escl em jogo e a diversidadede linguagens que falam de 'seme1hanc;as' entre as coisas" (Guer­reiro, 1985:91). Desse modo, 0 problema das identidades sociaistern que ser revisto a panir dos modos de dizer, de expressar ede representar, caracterizando os indivfduos em intera~o social.

" ... 0 mundo e de tamas maneiras quantas de possa ser (. ..)descrito, visto, retratado etc., e nao existe uma coisa tal comoo modo ou a maneira como 0 mundo e."6.

6. N. Goodman. "The Way (he World is". RroiroJ of M~taphysics, vol. 14 (1960),pp.48-56. Apud Guerreiro (1985:91)

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Qualquer abordagem que pretenda alcan~r a identidade su­poe que existe 0 modo de ser - enquanto elemento constitutivodo ser, sua essencia - e que este possa ser apreendido. No entanto,nao hi uma essencia dada, uma vez que e a experiencia socialque engendra os esquemas de apreensao do mundo, atraves dosquais a materialidade e interpretada e val0 rada.

Por outro lado, entendemos que sao modos de ser que saomobilizados no jogo social de reconhecimento, inclusive com ainten<;:ao de que a1gum deles constitua "verdadeiramente" 0 modode ser. Dessa forma, as imputa<;:oes de identidade pretendem atribuiruma essencia, flXandoa origem e significado das coisas e, porconseguinte, legitimando uma determinada interpreta<;:ao do mun­do social.-

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Conclusao

A identidade nao esta na condifiio de nordestino, de classeou de mulher, mas sim no modo como estas condi~6es sao apreen­didas e organizadas simbolicamente. As marcas de identidade naoestao inscritas no real, embora os elementos sobre os quais asrepresenta~6es de identidade sao construfdas sejam dele selecio­nadas. Estao em pauta, portanto, os processos de apreensao domundo social: esta apreensao da-se, sempre, atraves de atos depensamento e linguagem, cujas coordenadas sao geradas social eculturalmente, pois a materialidade nao pode ser tomada em simesma, tanto em termos do conhecimento cientffico quanto comrespeito ao conhecimento-de-mundo que perpassa a vida cotidiana,o senso comwn.

Mesmo em se tratando da ciencia, 0 processo de conheci­mento nao e uma modalidade de extra~o da verdade a partir doreal (esta seria a concep~o do empirismo): cada discurso cientfficose apropria da realidade nos limites do objeto-de-conhecimentoque constr6i. Desta forma, urn conceito nao e simplesmente wnapalavra, urn nome que se da a uma coisa observavel: "e interde­pendente de todo urn campo conceitual, do qual recebe wnasignifica~o" (Evangelista, 1985:15).

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Sendo assim, partindo da ambigiiidade do conceito de iden­tidade no campo das ciencias sociais e da conseqiiente necessidadede sua revisao, procuramos recuperar as suas bases - dos processosde construc;:ao das representa<;:6es sociais aos prindpios 16gico-fi­los6ficos subjacentes. Se, no nfvel do senso comum, a representa<;:aoe tomada como a pr6pria real idade, a reapropriac;:ao do conceitode identidade social deve servir para torna-Io um instrumento deanalise capaz de desvendar as vis6es de mundo envolvidas naspriticas sociais cotidianas.

Dizer que a regiao Nordeste tern uma identidade pr6priadecorrente de fatores objetivos (cf. Matos, 1986, entre Outros) enao explicitar os caminhos do senso comum e, portanto, perder-senele. Como foi visto no Capftulo I, a unidade da regiao foi tecidahistoricamente. Nas quest6es de identidade, hi distintos nfveispossfveis de analise: por um lado, 0 processo de construrao coletivado Nordeste como regiao, enquanto um referencial de identidade,que examinamos apenas por ser nosso pressuposto. Hoje, pode-sedizer que a regiao tern uma identidade pr6pria na medida emque e reconhecida enquanto tal, isto e, na medida em que estaclassificac;:ao regional se tornou legitimada, e que representa<;:6esdo Nordeste e do nordestino - elaboradas sobre tra<;:os espaciaise culturais - circulam socialmente, embora com seu significadomudado de acordo com pontos de vista, conforme diferentes rea­propria<;:6es (cf. Yatsuda, 1987:113). Se a representac;:ao de iden­tidade que encontra fundamentos hist6ricos e sociais tern basesmais s6lidas para uma ampla ace ita<;::io, de outra parte "a forc;:asocial das representa<;:6es nao e necessariamente proporcional aseu valor de verdade (medido pelo grau em que exprimem 0

estado da rela<;::io das for<;:as materiais no momenta considerado)"(Bourdieu, 1980:68). Se essa classifica<;::io regional se tornou ins­tituida, "objetivada", como diz Bourdieu, ela 0 eenquanto resul­tante, num dado momento, das lutas pela pr6pria defini<;::io da"realidade" do mundo social.

Urn outro nfvel de analise, que constitui 0 nosso foco deestudo, pode ser encontrado no pr6prio ato de representarao dos

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agentes sociais. Trata-se, pois, de enfocar 0 modo como as atri­buic;:6es de identidade sao utilizadas na pd.tica cotidiana, 0 queimplica em buscar as pessoas que pensam e nomeiam, que atuamno jogo de reconhecimento, ja que, como mostra Geertz, os sis­temas simb6licos que dirigem a caracteriza~o social dos membrosde urn grupo "sao construidos hisroricamente, mantidos social­mente e aplicados individualmente' (1978:229-grifos nossos). Des­sa forma, procuramos tanto resgatar a subjetividade - sem comisso negar as coordenadas sociais do pensamento - quanto evitartra'tar 0 Nordeste ou a sociedade como fetiches. Tentamos, enfim,escapar da dicotomia "Individuo X Sociedade e/ou Cultura", queou "cria uma individualidade 'pura', uma 'essencia' defrontando-secom 0 meio ambiente exterior de outra qualidade, ou entao urnfaro social 'puro', tambem todo-poderoso, que paira sobre as pes­soas" (Velho, 1985b:19).

Investigando como, num determinado contexto politico ecom relac;:ao a Luiza Erundina, e reapropriado 0 referencial regionalde identidade, nao consideramos os varios agentes sociais (jorna­listas, politicos ou a pr6pria Erundina) como fonte Ultima dasignificac;:ao e do sentido. As quest6es de identidade social podemser tratadas no plano do individuo sem que sejam esquecidos queros processos sociais que estabelecem os esquemas de classificac;:aodominantes quer a func;:ao politica dos sistemas simb6licos, 0 queo tratamento adotado permite. Tal esquecimento da origem a"todas as formas do erro 'interacionista' que consiste em reduziras relac;:6es de forc;:a a relac;:6es de comunicac;:ao" (Bourdieu,1977:408).0 problema dessa abordagem e bern nftido em Freitas(1985), onde e enfatizada a maleabilidade de significac;:6es, "ne­gociadas" na dinamica prostituta/cliente, sem que seja dada a de­vida relevancia ao fato de que a identidade de prostituta estaassentada sobre urn sistema de classifica~o socialmente construfdo,que nao foi e nao e gerado apenas no contexto daquela interac;:ao.

Ao tomar como objeto de analise 0 material daimprensa,sem duvida foi dado urn reCOrte que privilegia a alter-atribuic;:ao,

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em detrimenro das formas de auto-reconhecimenro. Para os jor­nalistas, emissores do discurso, Erundina e urn referenre, sobre 0

qual oferecem uma inrerpreta<;ao, construindo uma imagem sua- como isso aconrece e 0 que procuramos mostrar. A questio"0 que faz ser nordestino" - e como ser nordestino (isto e, com

quais significados) - pode ser respondida, dianre do materialestudado, pela complexa e dinamica combina<;ao de diversos fa­tores:

a) a disponibilidade de urn referencial hist6rica e socialmenreconstru{do do Nordeste como regiao (com urn senrido de conjuntoe como que tendo uma idenridade pr6pria) e, conseqiienremenre,de uma represenra<;ao matricial do nordestino;

b) 0 interesse em apreender certos tra<;os ou dados (a natu­ralidade,o sotaque etc.) como capazes de fundamenrar a atribui<;aode idenridade, em fun<;ao tanro dos esquemas de percep<;ao dis­pon{veis quanto de posslveis ganhos simb61icos;

c) a dinamica do jogo de reconhecimenro (enquanto rela<;6esde poder), onde se articulam as formas de auto-represenra<;ao eas imputa<;6es de idenridade que sao impostas pelo outra.

o caminho te6rico desenvolvido incorpora a conrribui<;aode diversas areas e aurores, ate a concep<;ao de idenridade comorepresenra<;ao, como uma forma de classifica<;ao , marcada pdoreconhecimenro. Embora possam haver criticas de que a vincula<;aoda idenridade social com 0 reconhecimento resuJta no seu "em­pobrecimenro", consideramos que tal vincuJa<;ao, na formula<;aote6rica, alem de evidenciar a flexibilidade das idenridades, con­tribui para a delimita<;ao do conceito, restringindo sua ambigiii­dade, 0 que permite a sua articula<;ao a outros conceitos - decultura, por exemplo -, para alem de uma simples sobreposi<;ao.A nosso ver, tais cdticas sao caudatarias de uma concep<;ao de

. idemidade ainda difusa e ate mesmo mistificada, pr6xima da ideiade idenridade como uma essencia imaneme.

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Por outro lado, nao propomos a rejeir;ao do conceito, poisentendemos que, em nfvel do senso comum, se pensa em termosde identidade, pois esta responde a necessidade orientacional de"caracterizar;ao dos seres humanos individuais", de modo a sinalizaro campo de ar;ao social (Geenz, 1978:228-229). Acreditamos,neste sentido, que a concepr;ao proposta pode ser eficaz para in­vestigar a maneira como, no cotidiano, sao pensadas as posi~oes

sociais, assim como para a analise das (re)elabora!yoes pessoais derepresenta!yoes de identidade, permitindo especialmente a anicu­lar;ao entre as questoes de identidade e de poder. Para atender asespecificidades do material de analise escolhido, buscamos apoioem estudos sobre 0 discurso polftico e jornalfstico; para se adequara outros temas e novos materiais, a busca de outras contribui!yoesdeve ser uti!.

Finalmente, se 0 trabalho desenvolvido fornece pistas paracenos problemas no campo das identidades - como a questaoda heterogeneidade/homogeneidade simb6lica, ou contrapondo asrela!yoes de semelhan~a ao prindpio de identidade 16gica -, traztambem a tona a necessidade de novas buscas, em cujo centro sesitua, sem duvida, 0 aprofundamento de estudos sobre as lingua­gens que falam de semelhan~.

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• Material Pesquisado (par-a a analise empirica do Capitulo III)

• Imprensa de Circula~o Nacional

a) Sao PauloFolha tk S. Paulu. 10/11 a 21/12/1988

o Esf4do tk S. Paulu. 13/11 a 15/12/1988Is/() ESenhor. nOs. 1000 a 1005 - 16/11,23/11,30/11,7/12,14/12 e 21/12/1988.V~a: 16/11, 23/11, 30/11, 7/12, 14/12 e 21/12/1988 - incluindo V~a/SP de

23/11/1988.b) Rio de JaneiroJomal do Brasit. 14/11 a 15/12/1988

• Outros Jornais (SaO Paulo e Rio de Janeiro)

a) Sao Paulo

Jornal do Campus; n.O 75 (novembro de 1988)

Shopping News/City NnuslJornai ria Snnana: 20/11/1988

b) Rio de JaneiroPasquim. nOs. 990 a 995 - 18/11, 25/11, 2/12, 9/12, 16/12 e 23/12/1988

• Jornais de J0300 Pessoa

o Norte: 20111, 26/11 a 5/12, 15/12/1988.Correia ria Paralba: 20/11, 26/11 a 5/12, 21/12/1988.

o M071lnIto: 26/11 a 5/12/1988.

A Uniau; 20/11, 25/11 a 3/12/1988.A Tribuna: n.O 51 - 20 a 26/11; n.O 52 - 27/11 a 3/12; n.O 53 - 4 a 10/12/1988

(semanario).

o Combate: 20 a 26/11, 27/11 a 2/12, 3 a 10/12/1988 (semanario).

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• Pronunciamentos de Luiza Erundina

- Debate no Lyceu Paraibano - }oao Pessoa, 28/11/1988(transcri~o a partir do video realizado pdo CEDOP/Arquidioccse da Paraiba)

- Conferencia "A Prcfeirura de Sao Paulo eo Momenta Politico Nacional" - Espllfo

Cultural- J030 Pessoa, 29/11/1988 (promovida pdo F6rum de Dcbates daUFPB)

(grava~o particular)- Pronunciamento de Luiza Erundina na Assembllia Legislativa da Paralba, durante

sessao especial - J030 Pessoa, 29/1111988(consulta ao apanhado taquigrafico da scssao)

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