[william craveiro] ensinar e deslumbrar proposta de trabalho - final

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UNIVERSIDADE DE COIMBRA UC FACULDADE DE LETRAS FLUC CURSO DE DOUTORAMENTO EM LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA DISCIPLINA: ENSINO DE LITERATURA I PROFESSORA: DOUTORA ANA MARIA E SILVA MACHADO ALUNO: JOSÉ WILLIAM CRAVEIRO TORRES ENSINAR E DESLUMBRAR: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O CONTO “A CARTOMANTE”, DE MACHADO DE ASSIS. Público-alvo: alunos do 9º ano do Ensino Fundamental (faixa etária entre 14 e 15 anos). Procurar um trecho de uma obra (literatura de língua portuguesa) com vista à motivação para a sua leitura integral: Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, foi o que foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; ela mal, ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que o consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, ele fazendo anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia

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Page 1: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

UNIVERSIDADE DE COIMBRA – UC

FACULDADE DE LETRAS – FLUC

CURSO DE DOUTORAMENTO EM LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA

DISCIPLINA: ENSINO DE LITERATURA I

PROFESSORA: DOUTORA ANA MARIA E SILVA MACHADO

ALUNO: JOSÉ WILLIAM CRAVEIRO TORRES

ENSINAR E DESLUMBRAR: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O

CONTO “A CARTOMANTE”, DE MACHADO DE ASSIS.

Público-alvo: alunos do 9º ano do Ensino Fundamental (faixa etária entre 14 e 15 anos).

Procurar um trecho de uma obra (literatura de língua portuguesa) com vista à

motivação para a sua leitura integral:

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens.

Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de

magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo

médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um

emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma

dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo

arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

– É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido

é seu amigo; falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo

confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido.

Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um

pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis.

Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto

Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como

os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem

experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de

Camilo, e nesse desastre, foi o que foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela

cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e

ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de

passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas

principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta

dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e

passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; – ela mal, – ele,

para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os

olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que o consultavam antes de o

fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, ele fazendo anos, recebeu de

Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar

cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia

Page 2: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo

menos, deleitosas. A velha caleça de prata, em que pela primeira vez passeaste com a

mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as

cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se

acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pintou-lhe o

veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo

sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não

tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados,

pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que

algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e a estima de Vilela

continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e

pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as

suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo

respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As

ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse

também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do

marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para

consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante

restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda

algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que

não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a

opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: – a

virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com

Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

– Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que

lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio,

falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso

deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode

ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia;

aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia

acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se

corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem

já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.”

Atentar na capacidade de sedução do trecho:

O trecho é capaz de seduzir os estudantes já a partir da sua temática: o triângulo

amoroso, o adultério, a traição; ou seja, algo passível de acontecer a qualquer pessoa,

inclusive entre os quatorze e os quinze anos, idade em que são despertas as primeiras

paixões.

Page 3: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

Depois, porque, diferentemente do que ocorre com textos de outros autores do século

XIX, no Brasil, como, por exemplo, José de Alencar, a linguagem utilizada por Machado

de Assis, na construção do conto em apreço, é bastante simples, coloquial, próxima da

linguagem dos nossos dias, oferecendo pouquíssimos problemas de compreensão para os

estudantes que estão numa faixa etária entre quatorze e quinze anos. Algumas palavras,

como “magistrado”, “cálidos”, “sufrágios”, “insólitas”, “caleça”, “escrúpulos”, “pérfido”,

“aleivosia”, “avara” e “pródigo”, que não são comuns ao vocabulário dos estudantes, em

alguns momentos têm os seus significados dados pelos próprios contextos em que se

inserem ou, então, são dispensáveis, para fins de compreensão da mensagem. E ainda que

assim não fosse, os estudantes precisam entrar em contato com textos de todas as épocas,

para que não fiquem restritos apenas à leitura de textos contemporâneos. Assim, conforme

afirmaram os Professores Doutores José Augusto Cardoso Bernardes e Marisa Lajolo, os

estudantes habituar-se-ão “a ir ao encontro do desconhecido1” e familiarizar-se-ão “com

textos gradualmente mais complexos [...], [com] diferentes registros [da Língua]”:

Essa tendência modernizante de arejar o livro com a presença

do artigo de jornal, da crônica, da letra de música – enfim – do

texto contemporâneo, pode criar um outro problema: em vez de a

escola ir familiarizando o aluno com textos gradualmente mais

complexos (o que permitiria o amadurecimento progressivo do

leitor), o monopólio do moderno pode estancar o diálogo, sempre

necessário, entre diferentes registros2.

Em terceiro lugar porque é um texto em que o narrador “brinca”, o tempo todo, com

o leitor; como aliás é comum em Machado de Assis: a partir do momento em que o

personagem Camilo começa a receber as cartas anônimas, já somos levados a pensar no

que poderá acontecer a ele e à Rita. Tal situação encontra seu ápice quando o personagem

em questão recebe o bilhete de seu amigo Vilela: teria este descoberto a traição? “O que

vai acontecer?” é, portanto, a pergunta que o leitor, o tempo todo, faz a si mesmo, ao longo

da leitura. Não por acaso escolhemos como o final do nosso excerto a seguinte frase: “No

dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: ‘Vem já, já, à

nossa casa; preciso falar-te sem demora’”. Esta é a frase perturbadora em torno da qual irá

1 BERNARDES, José Augusto Cardoso. “História literária e ensino da Literatura”. In: MELLO, Cristina. et

al (orgs.). II Jornadas Científico-Pedagógicas do Português. Coimbra: Almedina, 2002, p. 28. 2 LAJOLO, Marisa. “Texto não é pretexto”. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na Escola: as

alternativas do professor. 10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991, p. 58.

Page 4: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

girar o restante do conto; daí ser repetida, tantas vezes, pelo narrador. “Mas falar o quê?”:

esta é a pergunta que Camilo e os leitores fazem a si mesmos.

Resumindo, a sedução do trecho encontra-se na atualidade da temática do conto, na

sua atemporalidade e na sua anespacialidade; na sua verossimilhança; na predominância da

coloquialidade, em termos de linguagem; e no suspense narrativo que varre o conto de lés-

a-lés, devido à presença do adultério na narrativa.

Fundamentar a escolha:

Escolhemos o conto “A Cartomante”, de Machado de Assis, por vários motivos; em

parte já explicitados anteriormente: em primeiro lugar, por conta da sua temática, em torno

do triângulo amoroso, do adultério, da traição, coisas comuns – ou perfeitamente possíveis

de acontecer – ao Homem de todas as épocas. Nesse sentido é que podemos constatar, de

forma mais cabal, características típicas do texto literário, como a atemporalidade, a

anespacialidade e a verossimilhança, características, essas, que, vale salientar, fazem parte

dos conteúdos de Literatura dos livros didáticos brasileiros do nono ano, que procuram

diferençar, para os estudantes, a linguagem literária das demais; em segundo lugar, por

conta do predomínio da linguagem coloquial no conto, que o torna de fácil leitura por parte

daqueles que têm entre quatorze e quinze anos; em terceiro lugar, porque o texto em

questão prende a atenção dos estudantes do início ao fim, uma vez que estes quererão saber

sempre o que acontecerá em seguida. Ademais, quando for dada aos estudantes a

possibilidade da leitura de todo o conto, eles verão o quão surpreendente é o final, que

toma um rumo diferente daquele que tínhamos imaginado que tomaria, num primeiro

momento, quando fomos levados pela mão do narrador.

A essas razões acrescentamos duas outras: (i) o fato de ser, sem dúvida alguma,

Machado de Assis o maior escritor brasileiro de todos os tempos, como aliás falou sobre

isso Harold Bloom, no seu livro Gênio: “o maior literato negro surgido até o presente3”, “o

mais original dos romancistas brasileiros4”, razão mais do que suficiente para que os

nossos estudantes conheçam a obra do “bruxo do Cosme Velho”, e nisso há um pouco, ou

muito, de História literária; (ii) o descompromisso que os dois últimos anos do Ensino

Fundamental têm com relação ao trabalho exaustivo, no Brasil, com a História literária, de

3 BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura / tradução de José Roberto

O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 687. 4 Ibidem, p. 688.

Page 5: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

modo que o professor pode realizar, com mais vagar, o trabalho com o texto literário em si

mesmo, discutindo, com os alunos, as temáticas dos textos; questões de comportamento

humano e social suscitadas a partir das leituras realizadas, questões de ética; questões

estéticas, de modo a levar em consideração o trabalho de construção do texto que foi

realizado pelo autor, ou seja, o texto como objeto de arte; e temas transversais (pluralidade

cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual). Essas razões encontram-se consoantes

os objetivos dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – os PCN’s –

que foram elaborados pelo Ministério da Educação brasileiro, em 1998, para o segundo e o

terceiro ciclos do Ensino Fundamental:

Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como

objetivos do ensino fundamental que os alunos sejam capazes de:

[...]

posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva

nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como

forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas;

conhecer características fundamentais do Brasil nas

dimensões sociais, materiais e culturais como meio para

construir progressivamente a noção de identidade nacional

e pessoal e o sentimento de pertinência ao país;

conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio

sociocultural brasileiro [...];

desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o

sentimento de confiança em suas capacidades afetiva,

física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e

de inserção social, para agir com perseverança na busca de

conhecimento e no exercício de cidadania;

[...]

utilizar diferentes linguagens – verbal, musical,

matemática, gráfica, plástica e corporal – como meio para

produzir, expressar e comunicar suas idéias, interpretar e

usufruir das produções culturais, em contextos públicos e

privados, atendendo a diferentes intenções e situações de

comunicação;

[...]

questionar a realidade formulando-se problemas e

tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento

lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise

crítica, selecionando procedimentos e verificando sua

adequação5.

5 BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais:

terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa / Secretaria de Educação Fundamental.

Brasília: MEC/SEF, 1998, pp. 07-08, passim.

Page 6: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

TEXTOCENTRISMO:

Identificar as perguntas que o trecho pode suscitar

Selecionar as que são passíveis

- de resposta inferencial

As descrições dos personagens feitas pelo narrador permitem-nos conhecê-los? Que

leituras podemos fazer deles, a partir do que o narrador nos diz? E o que não nos é

permitido saber?

Qual a relevância das idades dos personagens no desenvolvimento da trama? Qual a

intenção do narrador ao transmitir para os leitores as idades dos personagens?

O que pretendeu o narrador ao dizer para o leitor que “Vilela cuidou do enterro [da mãe

de Camilo], dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e

ninguém o faria melhor”?

Qual o objetivo de o narrador ter afirmado que Rita era “quase uma irmã [de Camilo],

mas principalmente mulher e bonita”?

Que caminho tomou a relação entre Camilo e Rita? Qual o significado das atitudes de

Camilo com relação à Rita?

Quais as pretensões do narrador, ao dizer ao leitor que “Um dia, porém, recebeu

Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido e dizia que a aventura

era sabida de todos” e, logo em seguida, “daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-

se sombrio, falando pouco, como desconfiado”?

O que o narrador quis fazer pensar o leitor, quando aquele disse a este que “recebeu

Camilo este bilhete de Vilela: ‘Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora’”?

Qual(is) leitura(s) Camilo pôde fazer do bilhete que recebeu de Vilela?

- de discussão (pontos de indeterminação, afetos e ethos)

Camilo estava cegamente apaixonado por Rita ou a amava de verdade? Seria Camilo

apenas um aventureiro, um mulherengo? Queria ele realmente algo sério com a Rita,

como o Vilela, que a tomou por mulher?

Page 7: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

Qual a primeira impressão que Camilo teve de Rita? Essa primeira impressão é capaz

de nos dar provas do interesse imediato de Camilo por Rita?

Por que o conto se chama “A Cartomante”? Haveria algo mais que simplesmente uma

referência à cartomante que aparece no fim da narrativa?

- de informação adicional, por parte do professor

Que imagem quis pintar o narrador de Rita, ao dizer que esta, “como uma serpente, foi-

se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pintou-lhe

o veneno na boca”?

- da leitura integral da obra

Qual o medo de Rita com relação a Camilo?

Por que Camilo repreendeu Rita por ter ido a uma cartomante?

Preparar as respectivas respostas

Machado de Assis, como se sabe, foi realmente um gênio da Literatura Brasileira. Ao

lermos sua obra, percebemos que tudo – ou quase tudo – nela é intencional: como

ninguém, Machado sabia valer-se de todos os expedientes para caracterizar as suas

personagens ou, então, para não o fazer, deixando para o leitor uma personagem vaga,

escorregadia, como bem queria o romance moderno (em voga nos séculos XVIII, XIX e no

início do XX), ao qual se dedicou. Como exemplo de uma personagem vaga, em Machado

de Assis, temos justamente Capitu, a sua personagem mais conhecida: nada se sabe acerca

desta, a não ser o que dela disseram as outras personagens, como Bentinho e José Dias. Tal

não ocorre no conto “A Cartomante”, em que os personagens são bem caracterizados pelo

narrador, que é heterodiegético e, portanto, onisciente. Vilela é descrito como um

advogado que outrora foi juiz, como um homem de porte grave, motivo pelo qual parecia

mais velho: disso podemos concluir que Vilela era conservador e que, portanto, era um

homem que dava valor à família, que talvez fosse capaz de fazer tudo para defender a sua,

caso fosse necessário. Em situação diametralmente oposta encontrava-se o seu amigo

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Camilo, que era um “nada”, um perdido na vida, uma pessoa sem os valores morais de

Vilela, um ingênuo na vida moral, um inexperiente, pronto para ser manipulado por

alguém, justamente por aquela que viria a ser a sua “enfermeira moral”. Rita, por sua vez, é

“pintada” como a mais experiente do trio, a que possui mais anos vividos, a de “olhos

cálidos” e “boca interrogativa”, imagem da própria Lilith ou da serpente que tentou Adão6,

aquela que leva o Homem à perdição. Após a descrição dessas personagens, acreditamos

que estava já desenhado o que iria ocorrer: um triângulo amoroso. Aliás, ao longo do

conto, o narrador machadiano o tempo todo leva o leitor a fáceis conclusões, para depois

derrubá-lo, no final, quando este achava que já sabia o que iria acontecer. O final é,

portanto, surpreendente. Nesse sentido, afirmamos que o narrador fez, sim, o perfil das

personagens para anunciar ao leitor o que iria acontecer.

Com a passagem “Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor”,

o narrador deixa claro para o leitor o momento em que teve início o relacionamento de

Camilo e Rita: logo após a morte da mãe de Camilo, durante o período do luto.

Acreditamos que seja digno de nota o fato de estar Rita, na primeira oração, a exercer o

papel de sujeito da voz ativa, o que corrobora com o que dissemos há pouco: ela era a

manipuladora; ela parece ter dado o primeiro passo para o relacionamento extraconjugal.

O fato de o narrador ter dito que Rita era “quase uma irmã [de Camilo], mas

principalmente mulher e bonita”, corrobora com o que há pouco dissemos dos dois: Camilo

talvez a tenha tomado por irmã, num primeiro instante, mas, Rita, depois, seduziu-o,

fazendo com que ele a visse como uma mulher bonita, e não mais como irmã. Assim, teria

sido impossível Camilo não se envolver com Rita, uma vez que começavam os apelos

físico-corporais, ou os dos instintos. Há inclusive um tom naturalista, neste momento da

história, em que o narrador fala em “odor di femina”. Esse ponto, como muitos outros, e

isso mostraremos adiante, também faz com que nos perguntemos se Camilo amava Rita ou

se somente sentia por ela uma atração física, ou uma paixão cega e desenfreada. O que é

certo é que Camilo e Rita foram ficando cada vez mais próximos e cúmplices, como

podemos perceber a partir dos seguintes trechos: “[Camilo e Rita] Liam os mesmos livros,

iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe damas e o xadrez e jogavam às noites;

– ela mal, – ele, para ser agradável, pouco menos mal” e “[...] os olhos de Rita, que

6 Lilith, na Mitologia Babilônica, é o demônio que habitava lugares desertos. Na Cabala, é tida como a

primeira mulher do Adão bíblico. Noutra passagem, é tida como a serpente que levou Eva e Adão a

comerem do fruto proibido, ou seja, foi quem os levou à perdição.

Page 9: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

procuravam muitas vezes o dele, que o consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos

frias, as atitudes insólitas”.

Com as passagens “Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe

chamava imoral e pérfido e dizia que a aventura era sabida de todos” e, logo em seguida,

“daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como

desconfiado”, quer o narrador fazer com que o leitor pense que Vilela mudou o seu

comportamento para com o amigo e com a mulher porque recebeu uma carta anônima,

contando-lhe tudo acerca do relacionamento extraconjugal. Trata-se de mais uma estratégia

do narrador para fazer com que o leitor pense ser o “dono da situação”, ou seja, dominar o

conto, saber o que virá adiante, bem como ele terminará. O narrador está constantemente

jogando com o leitor; por isso diz: “recebeu Camilo este bilhete de Vilela: ‘Vem já, já, à

nossa casa; preciso falar-te sem demora’”. Neste momento, o leitor pensa saber já o que vai

ocorrer, pensa já ter “matado a charada”. O que não sabe o leitor é que logo essa sua

impressão esvair-se-á e, quando ele menos esperar, e achar que estava enganado e que o

conto teria outro fim, verá que tinha razão, que as suas suspeitas tinham fundamento.

Apesar de o conto afirmar que Camilo e Rita chegaram ao amor (“Como daí

chegaram ao amor, não o soube ele nunca”), não podemos dizer ao certo que isso

realmente tenha sido verdade; pelo menos quando consideramos a figura de Camilo, nessa

relação. Ao longo do conto, há algumas passagens que deixam essa dúvida na cabeça do

leitor: “[A cartomante] declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas

que não era verdade... – Errou! Interrompeu Camilo, rindo. [...] Camilo pegou-lhe nas

mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito”, “Rita estava certa de ser

amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele [...], não podia

deixar de sentir-se lisonjeado”, “Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de

rapaz”, “– Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato”, “– Vejo bem que o senhor gosta muito

dela...”. Nessas passagens, vemos o verbo “querer”, e não “amar”. Quando vemos este,

percebemos que não está sendo usado na voz ativa (Camilo amava Rita), mas trazem

somente a impressão de um com relação ao outro. Temos ainda o fato de Camilo dizer a

Vilela que estava apaixonado, “uma paixão frívola de rapaz”, e não amando. Décadas

depois, Drummond diria, num de seus poemas: “Amor é privilégio de maduros”. Enfim,

muitos são os trechos do conto que, aliados aos comportamentos de Camilo que nos foram

“pintados” pelo narrador, dão-nos a ideia de que de fato Camilo não amava Rita, mas sobre

isso nada podemos (professor e estudantes) dizer em definitivo.

Page 10: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

Conhecendo Machado de Assis como o conhecemos, ou seja, como um autor que põe

a Língua Portuguesa a seu serviço, quando constrói os seus textos, é difícil pensar que o

título do conto, “A Cartomante”, refira-se apenas à personagem italiana que aparece no

final da narrativa e à qual é feita uma alusão, no início desta. O título “Cartomante” parece

brincar com os vocábulos “cartas” e “amantes”, elementos que dominam a narrativa.

Podemos bem fazer essa leitura, mas não podemos afirmar com certeza (nós, professor e

estudantes) que Machado tenha tido essa intenção.

Para caracterizar melhor a personagem Rita dentro da história, o narrador diz o

seguinte: “como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os

ossos num espasmo, e pintou-lhe o veneno na boca” (grifo nosso). Noutras palavras, temos

aqui a imagem da Lilith, da Mitologia hebraica, ou da serpente que tentou Adão. Essa

alusão deverá ser feita aos estudantes pelo professor, para que possam ter uma melhor

noção do perfil da personagem Rita dentro do conto: astuciosa, manipuladora.

Para finalizar, exploremos a seguinte passagem: “Foi por esse tempo que Rita,

desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do

procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz

repreendeu-a por ter feito o que fez”. Somente sabemos por qual motivo Rita correu à

cartomante quando lemos os primeiros parágrafos do conto, que trazem a seguinte

informação: “[A cartomante] continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-

me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...”; ou seja,

Rita recorreu à cartomante porque tinha medo de que Camilo a esquecesse. Também

precisamos voltar ao início do conto para saber por qual razão Camilo repreendeu Rita por

ter ido procurar uma cartomante: porque “era imprudente andar por essas casas, Vilela

podia sabê-lo, e depois... [...] Camilo não acreditava em nada”.

Atentar na materialidade do trecho: estruturas formais e semânticas, memória

Apesar de vazado numa linguagem simples, coloquial, com poucas palavras que não

fazem parte do vocabulário de adolescentes que estão entre os quatorze e os quinze anos,

Machado realiza construções textuais incríveis, em “A Cartomante”. Logo no início do

trecho assinalado, podemos perceber como ele trabalha com os números, nesta gradação

decrescente: “Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das

origens”. Tanto os significados das palavras incomuns quanto as figuras de estilo utilizadas

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por Machado de Assis na construção do seu conto deverão ser trabalhados com os

estudantes.

Machado, para caracterizar melhor as suas personagens, ou as diversas situações que

as envolvem, recorre sempre a outras histórias; realiza, portanto, um trabalho intertextual,

ao longo das suas obras. É o que podemos perceber também no conto em apreço, quando o

narrador alude ao carro de Apolo ao falar da velha caleça de prata em que pela primeira

vez Camilo passeou com Rita, de modo a tentar mostrar ao leitor que, nesse momento,

Camilo sentiu-se um deus; e também quando o narrador alude à Lilith, da Mitologia

hebraica, ou à serpente que tentou Adão, para se referir à Rita e ao seu caráter

manipulador.

Outro exemplo de gradação, agora crescente, no texto de Machado em questão, é:

“Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura”. As gradações são figuras de

estilo bastante utilizadas por Machado de Assis, em sua obra. Da mesma forma,

encontramos muitas figuras de linguagem, principalmente metáforas: “a batalha foi curta e

a vitória delirante”, “pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos”. Mas também

antíteses: “candura gerou astúcia”, “a virtude é preguiçosa e avara [...], só o interesse é

ativo e pródigo”. Enfim, em alguns momentos, é bastante poética e cheia de diálogos

intertextuais, a prosa do “bruxo do Cosme Velho”. As figuras de linguagem, assim como

as de estilo, e os diálogos intertextuais também deverão ser trabalhados com os alunos.

INFORMAÇÃO TRANSTEXTUAL

Pensar em trechos complementares susceptíveis de dotar os leitores das coordenadas

estético-literárias necessárias para a compreensão e fruição do trecho, ao nível

- da teoria literária

Todo o texto verbal, como sublinha Bachtin, apresenta como dimensão constitutiva

múltiplas relações dialógicas com outros textos. Estas relações dialógicas pressupõem

necessariamente a langue, que possibilita e garante a interindividualidade dos signos, mas

não existem no sistema linguístico, manifestando-se a nível da enunciação e, por

conseguinte, da produção textual. O texto é sempre, sob modalidades várias, um

intercâmbio discursivo, uma tessitura polifônica na qual confluem, se entrecruzam, se

metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras

consciências.

Fundamentando-se em estudos de Bachtin, quase desconhecidos no Ocidente até o

final da década de sessenta, Julia Kristeva designou o fenômeno do dialogismo textual com

Page 12: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

um termo destinado a conhecer uma fortuna excepcional na teoria e na crítica literárias

contemporâneas: intertextualidade. [...]

Definindo-se intertextualidade como a interacção semiótica de um texto com

outro(s) texto(s), definir-se-á intertexto como o texto ou o corpus de textos com os quais

um determinado texto mantém aquele tipo de interacção7. [...]

O texto acima, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, ajudaria os estudantes a

perceberem que os textos, inclusive os literários, mantêm uma relação dialógica com

outros textos. Essa relação, chamada de intertextualidade, por Julia Kristeva, ocorre

imenso nos textos de Machado de Assis (contos e romances). Além das intertextualidades

mitológica e bíblica que “A Cartomante” traz e às quais fizemos alusões páginas atrás, há

quem defenda que o conto em questão seja, na verdade, uma releitura de Hamlet, de

William Shakespeare, como se pode ver neste texto escrito por Ricardo Gomes da Silva:

A presença do discurso paródico na ficção machadiana há

décadas vem sendo pensada pela crítica literária. Autor inclusive de

uma poesia intitulada “Paródia”, Machado de Assis pôde parodiar

em sua obra diversos tipos de discursos, desde literários até

discursos políticos, religiosos e filosóficos. Nas vezes em que o

escritor carioca se voltou aos discursos literários, suas paródias se

comportaram de forma inversa das demais do gênero. Isto é, ao

invés de procurar depreciar o discurso literário alvo das paródias,

Machado de Assis, ao parodiar, realizou um tipo de imitação

reverenciadora.

[...]

Em “Machado de Assis’s A cartomante: modern parody and

the making of a ‘brazilian’ text”, de Ellen H. Douglass, novamente

encontramos a anotação de que, em Machado de Assis, a paródia

cumpre uma função não necessariamente ridicularizante do alvo da

paródia. Ao analisar a paródia em “A cartomante”, Douglass

considera seu procedimento como respeitoso e não zombeteiro

(DOUGLASS, 1998, p.1037) em relação à peça Hamlet, de

Shakespeare. A marca da consciência paródica em “A cartomante”

é outro aspecto chamado atenção por Ellen H. Douglass. A autora

diz que, ao se referir diretamente a Shakespeare, no início do conto,

“Machado alerta seu leitor da existência de uma operação

intertextual8” (DOUGLASS, 1998, p.1037).

7 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. “Texto, intertextualidade e intertexto”. In: ______. Teoria da

Literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 624-625, passim. 8 SILVA, Ricardo Gomes da. “O comportamento do discurso paródico em Machado de Assis”. In:

NAVARRO, Pedro; ZANUTTO, Flávia. Anais da 2ª JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso.

Maringá: Editora do Departamento de Letras, 2012, pp. 01-08, passim.

Page 13: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

- da história literária

Deslocado, assim, o ponto de vista, um velho tema como o triângulo amoroso já não se

carregará do pathos romântico que envolvia herói-heroína-o outro, mas deixará vir à tona

os mil e um interesses de posição, prestígio e dinheiro, dando a batuta à libido e à vontade

de poder que mais profundamente regem os passos do homem em sociedade. Da história

vulgar de adultério de Brás Cubas-Virgília-Lobo Neves à triste comédia de equívocos de

Rubião-Sofia-Palha (Quincas Borba), e desta à tragédia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D. Casmurro) só aparecem variantes de uma só e mesma lei: não há mais heróis a

cumprir missões ou a afirmar a própria vontade; há apenas destinos, destinos sem

grandeza9.

O trecho acima selecionado, do livro História Concisa da Literatura Brasileira, de

Alfredo Bosi, ajudará a situar um velho tema, que é o do triângulo amoroso, dentro do

cenário da Literatura Brasileira; nomeadamente com relação às escolas romântica e

realista. Os estudantes perceberão a inovação trazida por Machado de Assis, dentro do

Realismo, com relação à temática em questão, que, diga-se de passagem, é uma constante

dentro da sua obra. De empecilho que foi no Romantismo, pelo fato de “o outro” atrapalhar

o enlace amoroso do herói com a heroína, o triângulo amoroso, no Realismo, aparece como

fruto do interesse financeiro ou, como no caso de “A Cartomante”, da simples libido; ou

seja, sem a grandeza de que se reveste na escola literária anterior.

- da crítica literária

Na razão inversa de sua prosa elegante e discreta, do seu tom humorístico e ao mesmo

tempo acadêmico, avultam para o leitor atento as mais desmedidas surpresas. A sua

atualidade vem do encanto quase intemporal do seu estilo e desse universo oculto que

sugere os abismos prezados pela literatura do século XX. [...]

Logo que ele chegou à maturidade, pela altura dos quarenta anos, talvez o que

primeiro tenha chamado a atenção foram a sua ironia e o seu estilo, concebido como “boa

linguagem”. Um dependia do outro, está claro, e a palavra que melhor os reúne para a

crítica do tempo talvez seja finura. Ironia fina, estilo refinado, evocando as noções de

ponta aguda e penetrante, de delicadeza e força juntamente. A isto se associava uma idéia

geral de urbanidade amena, de discrição e reserva. [...]

O que não há dúvida é que essas primeiras gerações [de críticos] encontraram nele uma

“filosofia” bastante ácida para dar impressão de ousadia, mas expressa de um modo

elegante e comedido, que tranqüilizava e fazia da sua leitura uma experiência agradável e

sem maiores consequências. Poder-se-ia dizer que ele lisonjeava o público mediano,

inclusive os críticos, dando-lhes o sentimento de que eram inteligentes a preço módico. O

9 BOSI, Alfredo. “Machado de Assis”. In: ______. História Concisa da Literatura Brasileira. 43. ed. São

Paulo: Cultrix, 2006, p. 180.

Page 14: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

seu gosto pelas sentenças morais, herdado dos franceses dos séculos clássicos e da leitura

da Bíblia, levava-o a compor fórmulas lapidares, que se destacavam do contexto e corriam

o seu destino próprio, difundindo uma idéia algo fácil de sabedoria. [...]

O que primeiro chama a atenção do crítico na ficção de Machado de Assis é a

despreocupação com as modas dominantes e o aparente arcaísmo da técnica. [...] ele

cultivou livremente o elíptico, o incompleto, o fragmentário, intervindo na narrativa com

bisbilhotice saborosa, lembrando ao leitor que atrás dela estava a sua voz convencional.

Era uma forma de manter, na segunda metade do século XIX, o tom caprichoso de Sterne,

que ele prezava; de efetuar os seus saltos temporais e brincar com o leitor. Era também um

eco do “conte philosophique”, à maneira de Voltaire, e era sobretudo o seu modo próprio

de deixar as coisas meio no ar, inclusive criando certas perplexidades não resolvidas.

Curiosamente, este arcaísmo parece bruscamente moderno, depois das tendências de

vanguarda do nosso século, que também procuram sugerir o todo pelo fragmento, a

estrutura pela elipse, a emoção pela ironia e a grandeza pela banalidade. Muitos dos seus

contos e alguns dos seus romances parecem abertos, sem conclusão necessária, ou

permitindo uma dupla leitura, como ocorre entre os nossos contemporâneos. E o mais

picante é o estilo guindado e algo precioso com que trabalha, e que se de um lado pode

parecer academismo, de outro parece uma forma sutil de negaceio, como se o narrador

estivesse rindo um pouco do leitor. [...]

Não é possível enfeixar numa palestra a análise adequada de suas diversas

manifestações. Mas posso tentar a apresentação de alguns casos, para dar uma idéia da

originalidade que hoje nos parece existir na obra de Machado de Assis, e que foi sendo

desvendada lentamente pelas gerações de críticos acima referidas.

1. Talvez possamos dizer que um dos problemas fundamentais da sua obra é o da

identidade. Quem sou eu? O que sou eu? Em que medida eu só existo por meio dos outros?

Eu sou mais autêntico quando penso ou quando existo? Haverá mais de um ser em mim?

Eis algumas perguntas que parecem formar o substrato de muitos dos seus contos e

romances. Sob a forma branda, é o problema da divisão do ser ou do desdobramento da

personalidade, estudado por Augusto Meyer. Sob a forma extrema é o problema dos

limites da razão e da loucura, que desde cedo chamou a atenção dos críticos, como um dos

temas principais de sua obra. [...]

2. Outro problema que surge com freqüência na obra de Machado de Assis é o da

relação entre o fato real e o fato imaginário, que será um dos eixos do grande romance de

Marcel Proust, e que ambos analisam principalmente com relação ao ciúme. A mesma

reversibilidade entre a razão e a loucura, que torna impossível demarcar as fronteiras e,

portanto, defini-las de modo satisfatório, entre o que aconteceu e o que pensamos que

aconteceu. [...] E concluímos que neste romance, como noutras situações da sua obra, o

real pode ser o que parece real. E como a amizade e o amor parecem mas podem não ser

amizade nem amor, a ambigüidade gnosiológica se junta à ambigüidade psicológica para

dissolver os conceitos morais suscitar um mundo escorregadio, onde os contrários se tocam

e se dissolvem.

3. Neste caso, que sentido tem o ato? Eis outro problema fundamental em Machado

de Assis, que o aproxima das preocupações de escritores como o Conrad de Lord Jim ou de

The Secret Sharer, e que foi um dos temas centrais do existencialismo literário

contemporâneo, em Sartre e Camus, por exemplo. Serei eu alguma coisa mais do que o ato

que me exprime? Será a vida mais que uma cadeia de opções? Num de seus melhores

romances, Esaú e Jacó, ele retoma, já no fim da carreira, este problema que pontilha a sua

obra inteira. [...] O grande problema suscitado é o da validade do ato e de sua relação com

o intuito que o sustém. [...]

Page 15: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

4. Parece evidente que o tema da opção se completa por uma das obsessões

fundamentais de Machado de Assis, muito bem analisada por Lúcia Miguel-Pereira – o

tema da perfeição, a aspiração ao ato completo, à obra total, que encontramos em diversos

contos e sobretudo num dos mais belos e pungentes que escreveu: “Um homem célebre”.

[...]

5. Surge então a pergunta: se a fantasia funciona como realidade; se não

conseguimos agir senão mutilando o nosso eu; se o que há de mais profundo em nós é no

fim de contas a opinião dos outros; se estamos condenados a não atingir o que nos parece

realmente valioso, – qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o

errado? Machado de Assis passou a vida ilustrando esta pergunta [...].

Este sentimento profundo da relatividade total dos atos, da impossibilidade de os

conceituar adequadamente, dá lugar ao sentimento do absurdo, do ato sem origem e do

juízo sem fundamento, que é a mola da obra de Kafka e, antes dela, do ato gratuito de

Gide. Que já ocorria na obra de Dostoievski e percorre discretamente a de Machado de

Assis. [...]

6. Pessoalmente, o que mais me atrai nos seus livros é um outro tema, diferente

destes: a transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas

à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual. Este tema é um dos demônios

familiares da sua obra, desde as formas atenuadas do simples egoísmo até os extremos do

sadismo e da pilhagem monetária10

.

Esse excerto do texto “Esquema de Machado de Assis”, como se pôde ver, faz um

apanhado das características fundamentais da prosa machadiana. Praticamente tudo o que

dissemos acerca do conto de Machado de Assis escolhido para análise, “A Cartomante”, e

também acerca das razões que nos levaram à escolha deste encontra apoio nestas palavras e

nestas expressões que o crítico Antonio Candido utilizou para se referir à obra do “Bruxo

do Cosme Velho”: “tom humorístico”, “surpresas”, “atualidade”, “estilo intemporal”,

“ironia fina”, “boa linguagem”, “leitura agradável”, “impressão de que os leitores e os

críticos são inteligentes”, “gosto pelas sentenças morais”, “algo fácil de sabedoria”,

“trabalho com o incompleto, com o fragmentário”, “coisas meio no ar”, “narrador rindo do

leitor”, “moderno”, “contos e romances abertos, inacabados”, “originalidade”, “problema

da identidade”, “relação entre o fato real e o imaginário”, “ciúme”, “a amizade e o amor

parecem mas podem não ser amizade e amor”, “dissolução de conceitos morais”, “mundo

escorregadio”, “sentido do ato”, “diferença entre o bem e o mal” (trabalho com antíteses,

por extensão), “transformação do homem em objeto do homem”. Assim, a leitura do

“Esquema de Machado de Assis” poderá ajudar, e muito, os estudantes a ler melhor não só

o conto em apreço, mas toda a obra machadiana.

10 CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In: ______. Vários Escritos. 3. ed. São Paulo:

Livraria Duas Cidades, 1995, pp. 18-28, passim.

Page 16: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

- da relação interartes e/ou interdisciplinar

Para os que acreditam em coincidência ou para os que acham que tudo na vida é obra

do destino, o longa-metragem A Cartomante, filme de Wagner de Assis e Pablo Uranga,

estréia dia 30 de janeiro em grande circuito e propõe a questão. A história, um romance

que também é considerado pelos diretores como um “thriller romântico”, narra a trajetória

da jovem Rita, personagem de Deborah Secco, quando ela se apaixona pelo bad boy

Camilo, papel de Luigi Baricelli. O romance teria tudo para ser perfeito não fosse a

armadilha do destino: Rita está noiva de Vilela, interpretado por Ilya São Paulo, médico

competente, ambicioso, mas simplesmente o melhor amigo de Camilo. Entre a nova paixão

e a certeza do romance seguro, Rita procura uma cartomante para ouvir o que o futuro lhe

reserva. Mas as previsões da mística mulher não estão de acordo com conselhos que Rita

ouve de sua analista, a dedicada Dra. Antonia, papel de Silvia Pfeifer. E a jovem se vê

diante da dúvida: é possível prever o destino e controlar nossas vidas?

[...]

A Cartomante, cujo roteiro foi escrito por Wagner de Assis, é uma história

contemporânea livremente inspirada no conto homônimo de Machado de Assis. “O conto é

um ponto de partida, apenas”, explica ele. O filme tem também participações especiais da

atriz Giovanna Antonelli, interpretando a empresária Karen Albuquerque, mulher que

resolve encontrar todas as respostas de sua vida numa noite, apenas; e da atriz Mel Lisboa,

no papel de Vitória, uma estudante de psicologia que “acredita que não há salvação

espiritual nem moral se não ajudarmos o próximo”. O ator Sílvio Guindane também está na

história como Duda, melhor amigo de Camilo nas noitadas da cidade.

As filmagens duraram quatro semanas e foram realizadas entre março e abril de

2002, na cidade do Rio de Janeiro. Na trilha sonora, o cantor e compositor Leoni canta

uma versão acústica da consagrada “Lágrimas e Chuva” e o sucesso atual, “Melhor pra

mim”, ambas de sua autoria. A música-tema do filme é a inédita “Canção do Acaso”,

também composta por Leoni especialmente para o filme, mais especificamente para a

personagem Rita. A canção é cantada pela banda Penélope. Verônica Sabino, com as faixas

“Agora” e “Não se afasta de mim”, complementa o tom da trilha, que tem também a magia

do grupo Era num tema que aparece sempre nos momentos em que Rita sobe as escadas da

cartomante, em busca de sua felicidade11

.

O texto acima, escrito por Denise del Cueto especialmente para o Jornal Copacabana,

seria apresentado aos estudantes para que eles soubessem que foi feita uma (re)leitura de

“A Cartomante”, de Machado de Assis, pelos cineastas Wagner de Assis e Pablo Uranga.

A temática do conto, em torno do adultério, da traição, foi mantida no filme, como se pôde

ver no texto de Denise. No entanto, outras personagens, como a Dr.ª Antônia, a empresária

Karen Albuquerque e a estudante de Psicologia Vitória, foram incorporadas à narrativa, no

longa-metragem. Também o tempo em que se passa a história contada no filme é já outro:

o início do século XXI. Com esse texto de Denise del Cueto e com a apresentação do filme

de Wagner de Assis e Pablo Uranga, os estudantes perceberão que uma obra literária não

11 DEL CUETO, Denise. Cinema e Arte. Jornal Copacabana. Ano IX, nº 104, janeiro de 2004.

Page 17: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

se encerra em si mesma, no tempo de sua produção, mas que continua a suscitar sempre

novas leituras, com o passar do tempo, podendo mesmo ser atualizada por meio de outra

linguagem artística.

Também deverão ser levados a perceber que não há mal algum no fato de o filme não

ter sido completamente fiel ao conto, visto que, como Arte que é, o Cinema, tanto quanto a

Literatura, tem o seu direito de (re)criar. Tratam-se, portanto, de artes diferentes, que se

exprimem em linguagens diferentes, em torno de uma mesma questão, ou temática, ou

história.

- da ética

O grande impulso que teve a literatura no século XIX existiu graças aos jornais e

revistas dedicadas às famílias e às mulheres, em que, ao lado de artigos sobre a moda

européia, ensinamentos religiosos, culinária, amor e casamento, escreviam os grandes

autores. O século XIX revestia-se de um grande puritanismo com relação às mulheres,

tanto que alguns anos antes, em 1857, Gustave Flaubert foi processado por ter escrito

Madame Bovary, romance considerado escandaloso para a época por abordar o adultério.

Entretanto foi um período rico em personagens femininos: Emma Bovary (Flaubert), Anna

Karenina (Tolstói), A mulher de trinta anos (Balzac), a Capitu de Dom Casmurro

(Machado de Assis) etc. À medida que a questão da feminilidade surgia no cenário social

daquele tempo, era necessário dar voz a esse ideal de independência, e a literatura, através

de seus personagens e em virtude da sensibilidade dos seus criadores, pôde colocar em

questão e estabelecer uma dúvida produtiva sobre a posição da mulher [...].

O amor não era tão essencial nesta época como era o casamento – este, sim, de suprema

importância. A conjugação casamento e amor não era algo necessário. Uma mulher tinha

de desempenhar as funções de esposa, mãe e dona de casa. Ao homem eram destinados o

espaço público e as conquistas profissionais, intelectuais e políticas, à mulher o claustro

doméstico.

Os personagens femininos, na obra de Machado, vêm ocupar um lugar privilegiado,

um lugar de destaque em todos os romances [...].

Machado surge no romance, em 1872, com Ressurreição. É um romance de enredo

excessivamente simplista. Entretanto, é importante na obra machadiana na medida em que

apresenta um tema que virá a ser uma constante na vida literária de Machado – o ciúme e a

desconfiança implícita do adultério feminino.

Machado foi um grande apreciador de Shakespeare, em suas obras existem várias

passagens em que se refere ao dramaturgo inglês. É curioso, inclusive, como sempre

gostou de fazer referências a Otelo. E, em quantas passagens de seus personagens, não

surge a mesma temática – a traição? Em seu primeiro romance Ressurreição, Félix passa

grande parte de sua vida com a viúva Lívia a pensar na possibilidade de ser traído. [...]

Estas situações triangulares vão também aparecer em outros personagens12

[...].

12 FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. “A Virgília de Machado de Assis, ou a “saída freudiana” para o mal-

estar no amor. In: LOBO, Luiza. Anais do II Encontro de Ciência da Literatura. Rio de Janeiro: Faculdade

de Letras da UFRJ, 2003.

Page 18: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

A partir do conto “A Cartomante”, de Machado de Assis, poderemos trabalhar, com

os estudantes, questões relacionadas ao adultério e à traição: há alguma justificativa válida

para o adultério? Em casos como os do século XIX, dos quais a Literatura dá-nos muitos

exemplos, em que as Mulheres eram obrigadas a se casar com homens que não conheciam

bem, o adultério poderia ser justificado como uma forma legítima de elas irem em busca do

amor verdadeiro? A traição, feminina ou masculina, entre amigos e/ou entre amantes, deve

assinalar o fim de um relacionamento ou pode/deve ser perdoada e superada?

Também poderá ser discutida a situação da Mulher nos dias atuais, a partir do conto

em apreço: podemos dizer que, hodiernamente, no Ocidente, a Mulher possui os mesmos

direitos que o Homem, em termos de relacionamento amoroso? A Mulher, hoje, é dotada

da mesma liberdade sexual dos Homens? Até onde deve ir a liberdade sexual feminina?

Deve haver limites para ela? Essas são algumas questões que poderão ser colocadas para os

estudantes não só a partir do conto “A Cartomante”, mas de toda a obra de Machado de

Assis, como bem nos mostrou Luiz Alberto Pinheiro de Freitas, por meio do seu texto.

Um comentário à guisa de conclusão

Trabalhar uma obra literária (um poema, um conto, uma crônica, um romance) a

partir de um excerto relevou-se para nós uma grande surpresa. Não imaginávamos, é bem

verdade, que um simples fragmento de texto, sem título, sem referências ao seu autor e à

época de sua produção, poderia dar margem a tantas discussões! Para começar, esse tipo de

trabalho com o texto literário permite-nos olhar para ele sem preconceitos, uma vez que

dele, de início, nada sabemos, além do conteúdo da mensagem que foi selecionado pelo

professor. Dessa forma, fica parecendo fácil o que, se fosse posto doutra forma, pareceria

difícil: foi o que tentamos mostrar a partir do trabalho com o excerto selecionado do conto

“A Cartomante”, de Machado de Assis. Esse texto, quando colocado para os estudantes de

Ensino Fundamental (ou mesmo de Ensino Médio/Secundário) na sua integralidade, dá

margem a comentários como estes: “Será um texto de difícil leitura”, ou “Os textos

‘antigos’ são muito difíceis”, ou, ainda, “Machado de Assis é um chato; escreve muito

‘difícil’”. Posto assim, “em doses homeopáticas”, sem referências ao autor e à época em

que foi escrito, o texto realmente mostra-se mais prazeroso, porque leva a uma leitura mais

à vontade, aparentemente sem qualquer compromisso com escolas literárias ou com

autores; a uma leitura mais prazerosa, portanto. Saber “cortar” a narrativa no ápice da

Page 19: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

história também parece ser importante e interessante: faz com que os estudantes sintam

vontade de ir além e, sem dúvida nenhuma, é capaz de desenvolver, neles, o gosto pela

leitura.

O primeiro momento do trabalho com o texto literário, a partir de um excerto,

deverá, está claro, ser dominado pelo textocentrismo, como aliás falaram acerca disso Vítor

Manuel de Aguiar e Silva, no seu ensaio “Teses sobre o ensino do texto literário na aula de

Português13

”, e a pesquisadora brasileira Marisa Lajolo, em “A Leitura Literária na

Escola14

”. O trabalho realizado a partir do trecho, nesse primeiro instante, deverá levar em

consideração a participação dos estudantes, como aliás propõe a Pedagogia moderna: o

professor deverá incentivar a participação destes por meio de perguntas (passíveis de

resposta inferencial; de discussão). Aspectos referentes ao estilo do autor, à linguagem por

ele utilizada e à Língua Portuguesa, ou seja, à “materialidade do trecho”, também poderão

e deverão ser trabalhados nesse primeiro momento: para Vítor Manuel de Aguiar e Silva

(2010), o ensino da Literatura não pode mesmo ser desvinculado do ensino da Língua; daí

a necessidade de colocarmos para os nossos estudantes sempre textos do cânone literário;

noutras palavras, textos exemplares quanto à normatividade linguística; textos inovadores,

que tragam novos horizontes, em termos de expressão e de comunicação. Nesse sentido,

acreditamos que fomos muito felizes, ao termos escolhido o conto “A Cartomante”, de

Machado de Assis, pois ele traz, em si, todas essas características.

Porém, é preciso devolver o texto à sua integralidade, para que ele possa ser melhor

lido pelos estudantes, para que possa ser analisado nos seus pormenores; para que os

estudantes possam contemplar a sua riqueza, tanto em termos de conteúdo quanto em

termos de forma; para que eles, enfim, possam aprender a, de fato, ler um texto. Assim,

para que possam realizar esse trabalho a contento, é preciso que o professor dê-lhes

subsídios para tal: levar para os estudantes textos de Teoria literária, de História literária e

de Crítica literária que girem em torno da obra que está sendo trabalhada e do seu autor

faz-se realmente necessário, se quisermos leituras realmente profundas. Vale salientar que

o professor deve dar aos estudantes condições de realizar uma melhor leitura, a partir

desses textos esclarecedores, mas não deve dar-lhes respostas antes que eles mesmos

elaborem as suas. Assim deverá ser o segundo momento do trabalho com o texto literário:

13 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. “Teses sobre o ensino do texto literário na aula de Português”. In:

______. As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Poética da Língua Portuguesa.

Coimbra: Almedina, 2010. 14 LAJOLO, Marisa. “A Leitura Literária na Escola”. In: ______. Do Mundo da Leitura para a Leitura do

Mundo. 3. ed. São Paulo: Ed. Ática, 1997.

Page 20: [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final

toda a obra deverá ser considerada; deverão ser feitas perguntas capazes de explorar

melhor o texto (perguntas passíveis de resposta inferencial; de discussão; de informação

adicional, por parte do professor; da leitura integral da obra) e textos não literários capazes

de lançar luzes sobre o texto literário deverão ser utilizados. Neste segundo instante,

teremos o trabalho com a História e com a Crítica literárias, importantíssimas também para

que os estudantes tornem-se bons leitores, de acordo com Vítor Manuel de Aguiar e Silva

(2010), José Augusto Cardoso Bernardes15

e Marisa Lajolo, professora universitária

brasileira que, sobre a importância da História e da Crítica literárias para os estudantes,

escreveu o seguinte:

De modo geral, não se pode – e talvez nem se deva – fugir a alguns

encaminhamentos mais tradicionais no ensino da literatura: por

exemplo, a inscrição do texto na época de sua produção, uma vez

que textos assim contextualizados nos dão acesso a uma

historicidade muito concreta e encarnada, à qual se cola a obra de

arte à revelia ou não das intenções do autor; outro caminho, a

inscrição, no texto, do conjunto dos principais juízos críticos que

sobre ele se foram acumulando, fundamental para fazer o aluno

vivenciar a complexidade da instituição literária que não se compõe

exclusivamente de textos literários, mas sim do conjunto destes

mais todos os outros por estes inspirados; outro exemplo, ainda, a

inscrição do e no texto, no e do cotidiano do aluno, entendendo que

este cotidiano abrange desde o mundo contemporâneo (no que essa

expressão tem, intencionalmente, de vago e de amplo) até os

impasses individuais vividos por cada um, nos arredores da leitura

de cada texto16

.

É preciso, também, que os estudantes sejam levados a desenvolver bem outra forma

de leitura: aquela chamada “oral”; ou seja, aquela realizada em voz alta. Essa é outra

competência linguística que os estudantes precisam ter. O professor, após os estudantes

terem realizado suas leituras, deverá ler o texto em voz alta para a classe, a fim de que eles

possam desenvolver também essa importante habilidade. Por acaso, o conto “A

Cartomante”, de Machado de Assis, foi muito bem lido por um ator brasileiro, chamado

Othon Bastos. Tal leitura, muito bem realizada, porque feita por um ator profissional, pode

ser encontrada numa das faixas do CD Machado de Assis por Othon Bastos, que o

professor poderá utilizar numa de suas aulas. Ainda no âmbito da mídia, o professor deverá

colocar os estudantes em contato com o filme A Cartomante, de Wagner de Assis e Pablo

Uranga, para que eles percebam, como já foi dito, que uma obra literária não se encerra em

15 BERNARDES, op. cit. 16 LAJOLO, op. cit., p. 16.

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si mesma, mas que ela continua a suscitar sempre novas leituras, podendo mesmo ser

atualizada por meio de outra linguagem artística.

Esperamos que, com este trabalho, o preconceito que os estudantes ainda têm com

relação a obras de séculos passados, consideradas canônicas, acabe ou, pelo menos,

diminua consideravelmente. Esperamos, também, que os estudantes aprendam de fato a ler

uma obra, que eles a interroguem até a exaustão e que consigam retirar dela tudo o que ela

de fato tem a oferecer; enfim, que eles possam compreender muito satisfatoriamente a

mensagem que lá está, bem como os processos linguísticos e estéticos a partir dos quais

essa mensagem foi elaborada. Esperamos, ainda, e acreditamos não ser algo impossível,

que trabalhos desta natureza possam suscitar (ou aumentar) nos alunos o gosto pela leitura,

pelas razões que foram expostas no início deste comentário.

Para finalizar, devemos dizer que a este trabalho anexamos três planos de aula, com

o intuito de mostrar como as diversas atividades às quais nos referimos ao longo deste

poderão ser desenvolvidas com os estudantes a partir do conto “A Cartomante”, de

Machado de Assis.

Referências Bibliográficas

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Anexos

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