[william craveiro] acerca dos resíduos clássicos do amadis de gaula - versão final

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1 ACERCA DOS RESÍDUOS CLÁSSICOS DO AMADIS DE GAULA 1 José William Craveiro Torres 2 INTRODUÇÃO Ao analisarmos os modos de agir, de pensar e de sentir do cavaleiro que se movimenta em narrativas portuguesas da Baixa Idade Média (séculos XI a XV, sobretudo nas pertencentes à Idade Média Plena, de XI a XIII), percebemos semelhanças entre o imaginário que foi criado em torno dessa figura e aquele elaborado do século VIII a.C. ao IV d.C pelos antigos gregos e romanos em torno de seus heróis. Tais semelhanças, na Literatura, entre o cavaleiro medieval e o herói da Antiguidade clássica, sobretudo o grego, podem ser explicadas pelo fato de o cavaleiro medieval ter recebido como herança de gregos e de romanos, dentre outros, maneiras de agir, de pensar e de sentir; de modo que os heróis greco-latinos serviram também de exemplos de comportamento àquele. Este ensaio procurará evidenciar esses resíduos clássicos presentes no Medievo a partir de um estudo comparativo entre o imaginário do herói greco-romano, (re)construído a partir de alguns mitos de Metamorfoses 3 , de Ovídio, e o imaginário do cavaleiro medieval (re)criado em torno da personagem Amadis de Gaula, que dá nome à obra mediévica 4 que será aqui analisada. Com este trabalho, realizaremos o que a École des Annales chamava de história comparativa e utilizaremos o método regressivo; ou seja, voltaremos ao passado para explicar algo de uma determinada época iremos em 1 Ensaio exigido pelo Prof. Doutor Paulo Silva Pereira como parte dos requisitos necessários à obtenção dos créditos da disciplina “História e Periodização da Literatura Portuguesa I”, do Curso de Doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra FLUC. 2 Mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará UFC, doutorando em Literatura de Língua Portuguesa (Investigação e Ensino) pela Universidade de Coimbra, sob orientação da Prof.ª Doutora Ana Maria e Silva Machado, e bolsista de Doutorado Pleno no Exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES (processo 0952/12-5). 3 OVÍDIO. Metamorfoses / Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003. 4 MONTALVO, Garci Rodríguez de. Amadis de Gaula / Edición de Juan Manuel Cacho Blecua. 6. ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2008. Dois volumes.

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Page 1: [William Craveiro] Acerca dos Resíduos Clássicos do Amadis de Gaula - Versão Final

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ACERCA DOS RESÍDUOS CLÁSSICOS DO AMADIS DE GAULA1

José William Craveiro Torres2

INTRODUÇÃO

Ao analisarmos os modos de agir, de pensar e de sentir do cavaleiro que se

movimenta em narrativas portuguesas da Baixa Idade Média (séculos XI a XV,

sobretudo nas pertencentes à Idade Média Plena, de XI a XIII), percebemos

semelhanças entre o imaginário que foi criado em torno dessa figura e aquele elaborado

do século VIII a.C. ao IV d.C pelos antigos gregos e romanos em torno de seus heróis.

Tais semelhanças, na Literatura, entre o cavaleiro medieval e o herói da Antiguidade

clássica, sobretudo o grego, podem ser explicadas pelo fato de o cavaleiro medieval ter

recebido como herança de gregos e de romanos, dentre outros, maneiras de agir, de

pensar e de sentir; de modo que os heróis greco-latinos serviram também de exemplos

de comportamento àquele.

Este ensaio procurará evidenciar esses resíduos clássicos presentes no Medievo a

partir de um estudo comparativo entre o imaginário do herói greco-romano,

(re)construído a partir de alguns mitos de Metamorfoses3, de Ovídio, e o imaginário do

cavaleiro medieval (re)criado em torno da personagem Amadis de Gaula, que dá nome à

obra mediévica4 que será aqui analisada. Com este trabalho, realizaremos o que a École

des Annales chamava de história comparativa e utilizaremos o método regressivo; ou

seja, voltaremos ao passado para explicar algo de uma determinada época – iremos em

1 Ensaio exigido pelo Prof. Doutor Paulo Silva Pereira como parte dos requisitos necessários à obtenção

dos créditos da disciplina “História e Periodização da Literatura Portuguesa I”, do Curso de

Doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

– FLUC. 2 Mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará – UFC, doutorando em Literatura

de Língua Portuguesa (Investigação e Ensino) pela Universidade de Coimbra, sob orientação da Prof.ª

Doutora Ana Maria e Silva Machado, e bolsista de Doutorado Pleno no Exterior da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (processo 0952/12-5). 3 OVÍDIO. Metamorfoses / Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003. 4 MONTALVO, Garci Rodríguez de. Amadis de Gaula / Edición de Juan Manuel Cacho Blecua. 6. ed.

Madrid: Ediciones Cátedra, 2008. Dois volumes.

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direção à Antiguidade clássica para mostrarmos que muitos dos comportamentos do

cavaleiro medieval têm suas origens nas antigas Grécia e Roma.

No primeiro tópico deste artigo, faremos uma breve revisão da literatura em torno

do Amadis de Gaula, de modo a mostrar que não é nova a discussão quanto ao “sabor5”

clássico de muitos dos episódios dessa novela: estudiosos portugueses e espanhóis, por

exemplo, dedicaram alguns textos de natureza ensaístico-crítica a essa questão.

No segundo tópico, trataremos do referencial teórico; ou seja, dos termos que

utilizaremos para dar conta de determinados fenômenos culturais, literários e

linguísticos. Assim, falaremos dos conceitos de imaginário, ideologia e mentalidade,

segundo os Annales; de resíduo, elaborado por Raymond Williams; da Teoria da

Residualidade, de Roberto Pontes, com suas respectivas contribuições (os conceitos de

hibridação e cristalização), a qual embasará o presente estudo; e do fenômeno da

intertextualidade, com base em Vítor Manuel de Aguiar e Silva.

No terceiro, examinaremos alguns heróis da Antiguidade clássica a partir de três

momentos das suas vidas: nascimento, infância e rito de iniciação, que assinala o

ingresso na idade adulta, para mostrar que essas etapas das suas vidas não eram muito

diferentes daquelas pelas quais passavam os cavaleiros, na Idade Média.

No quarto e último, trataremos dos aspectos clássico-residuais do nascimento, da

infância e do rito iniciático mediévicos, com base em excertos retirados do Amadis de

Gaula.

Ao cabo, terá sido possível, acreditamos, evidenciar não só o imaginário clássico-

residual do cavaleiro mediévico como também a existência do que poderíamos chamar

mentalidade heroica. Também teceremos algumas considerações em torno do

enquadramento do Amadis de Gaula dentro da História da Literatura Portuguesa.

1. Teor clássico do Amadis de Gaula: uma revisão da literatura

A leitura atenta duma novela de cavalaria revela a um estudioso que se debruça

sobre esse gênero narrativo medieval umas passagens de teor cavaleiresco, outras de

teor religioso e algumas de teor clássico: os trechos de feição cavaleiresca são aqueles

que trazem à tona o comportamento guerreiro e cortês do homem de espada; os de

5 O termo é de F. Costa Marques (COSTA MARQUES, F (trad.). Amadis de Gaula: Notícia Histórica e

Literária / Seleção, Tradução e Argumento de F. Costa Marques. Coimbra: Atlântida, 1972. Colecção

Literária Atlântida.)

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feição religiosa são os que fazem alusão à Igreja Católica, às suas principais divindades

e aos rituais de magia praticados por culturas pagãs (como a dos celtas, por exemplo); e

os de feição clássica são aqueles que transportam para o homem mediévico, sobretudo

para o cavaleiro, os modos de agir, de pensar e de sentir dos antigos gregos e romanos;

nomeadamente os dos heróis que se movimentam nos mitos e nas epopeias.

Como os aspectos cavaleiresco e religioso são os que mais saltam aos olhos, nas

novelas de cavalaria, mais comumente os estudiosos têm falado deles. Contudo, há,

ainda, nessas produções mediévicas, outro aspecto, além dos já citados: o que daqui

para frente será chamado de clássico. Com a extinção da matéria greco-romana, o

aspecto clássico sobreviveu, nas novelas de cavalaria dos demais ciclos – bretão e

carolíngio –, não só por meio de constantes alusões que elas passaram a fazer, através

de intextextualidades, às histórias dos gregos e dos romanos antigos, reais ou míticas,

como também (e principalmente) a partir da identificação do cavaleiro medieval,

enquanto personagem, com o herói das epopeias e dos mitos greco-latinos: o imaginário

deste se fazendo presente no modo de agir, de pensar e de sentir daquele.

Críticos houve que, ao perceberem, no Amadis de Gaula, passagens que faziam

alusões diretas, por meio de intertextualidades, a histórias da Antiguidade greco-romana

(mitos e grandes epopeias), bem como excertos que mostravam, na figura dos cavaleiros

medievais que se movimentavam nesta narrativa, o imaginário típico dos heróis das

antigas Grécia e Roma, resolveram pesquisar as origens de tais trechos, com vista a

elucidar o que estaria escrito já nos originais da novela e o que a estes teria sido

acrescentado pelos escribas humanistas e quinhentistas, quando realizaram as suas

cópias do Amadis. Estão, entre estes estudiosos, os portugueses F. Costa Marques6 e M.

Rodrigues Lapa7, ambos selecionadores e tradutores de episódios da “novela dos

Lobeira” para a Língua Portuguesa, além de terem sido os prefaciadores das suas

edições desta narrativa, e os espanhóis Menéndez y Pelayo8, Rodriguez Moñino

9, Cacho

6 COSTA MARQUES, op. cit. 7 Sobre o classicismo presente no Amadis de Gaula, confira Rodrigues Lapa em LOBEIRA, João.

Amadis de Gaula, de João Lobeira / Selecção, tradução, argumento e prefácio de Rodrigues Lapa. 6. ed.

Lisboa: Seara Nova, 1973. pp. 13-14. 8 MENÉNDEZ Y PELAYO, M. Orígines de la Novela. Madrid, 1905. Tomo I, Introducción, pp.

CXCIX-CCXLVIII. 9 RODRÍGUEZ-MOÑINO, António; CARLO, Agustín Millares; LAPESA, Rafael. El Primer

Manuscrito del Amadis de Gaula. Madrid, 1957.

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Blecua10

e Pedro Salinas11

, que escreveram ensaios em que abordaram a obra medieval

em questão. Entretanto, é preciso deixar claro que o objetivo dos primeiros espanhóis

que se dedicaram ao estudo desses trechos de “sabor” clássico do Amadis de Gaula,

dentre eles Menéndez y Pelayo e Rodríguez Moñino, girava em torno do

estabelecimento do texto original: eles queriam saber o que já estava no primeiro texto

da novela, na primeira edição, e o que teria sido acrescentado à narrativa original por

Garci(a) Rodríguez de Montalvo, no início do século XVI. Este objetivo, portanto,

estava mais ligado à Crítica Genética. Num primeiro momento, chegaram a pensar que

tais passagens de teor clássico tinham sido acrescentadas à história original por Garci(a)

Rodríguez de Montalvo, em virtude de ele ter vivido, na Europa, em plena época do

Classicismo. Tempos depois, viram que não: esses trechos de “sabor” clássico, do qual

poderíamos citar o que gira em torno do filho de Amadis (Esplandián) sendo

amamentado por uma leoa, já existiam numa edição anterior à de Montalvo, uma edição

em Hebraico. É certo que deve haver um maior número de ensaios – brasileiros,

portugueses, espanhóis, franceses, norte-americanos – que tratam desses excertos de

feição clássica presentes no Amadis; no entanto, neste momento conhecemos apenas os

trabalhos que foram aqui arrolados.

O Amadis de Gaula tem o seu aspecto clássico ressaltado pelos medievalistas

muito provavelmente devido ao fato de sua edição mais antiga (uma refundição

castelhana de diversas cópias do original desconhecido), à qual todos têm acesso, datar

de 150812

, época em que os estudos clássicos estavam em voga pela Europa. Muitos

pesquisadores acreditam que esses trechos clássicos do Amadis tenham sido

acrescentados à narrativa original dessa novela pelos humanistas e/ou pelos

quinhentistas que se propuseram a escrever as suas edições dessa obra medieval.

Como dissemos na Introdução, apenas o Amadis de Gaula será o objeto de estudo

da breve investigação que aqui será empreendida. Assim, serão devidamente analisadas

intertextualidades que esta obra estabelece com os mitos e com as epopeias da

Antiguidade greco-latina, bem como passagens em que os modos de agir, de pensar e de

10 Juan Manuel Cacho Blecua, no longo estudo que escreveu, à guisa de prefácio, para a sua edição do

Amadis de Gaula de Garci Rodríguez de Montalvo (MONTALVO, op. cit., pp. 37-39). 11 SALINAS, Pedro. “El ‘héroe’ literario y la novela picaresca española. Semántica e historia literaria”.

In: Ensayos de literatura hispánica (Del Cantar de Mío Cid a García Lorca). Madrid: Aguilar, 1966.

pp. 62-63. 12 Conforme informa F. Costa Marques no prefácio da sua edição do Amadis de Gaula: “No ano de 1508,

Garci Rodríguez (e não Ordóñes) de Montalvo publicava na cidade espanhola de Saragoça Los quatro

livros del Virtuoso cavallero Amadis de Gaula” (COSTA MARQUES, op. cit., p. 5).

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sentir das suas personagens retomam o imaginário ou a ideologia dos heróis e dos

demais seres ficcionais que podemos encontrar nas epopeias e nos mitos greco-

romanos. Entretanto, tudo leva a crer que tanto a forma como a análise dos trechos de

teor clássico do Amadis será realizada quanto as conclusões a que esse exame chegará

possam ser estendidas às demais obras do ciclo bretão; dentre elas, A Demanda do

Santo Graal, como aliás já mostramos na nossa dissertação de mestrado, intitulada Além

da Cruz e da Espada: acerca dos Resíduos Clássicos d’A Demanda do Santo Graal13

,

defendida na Universidade Federal do Ceará, em 2010.

2. Do referencial teórico: considerações em torno dos termos imaginário, ideologia,

mentalidade, resíduo, Residualidade, hibridação, cristalização e intertextualidade

Como dissemos, os conceitos de imaginário, ideologia e mentalidade serão

tratados do ponto de vista da École des Annales; tendo por base as considerações que G.

Duby14

e J. Le Goff15

fizeram sobre esses termos.

Podemos entender por imaginário o conjunto de imagens que um determinado

grupo de certa época faz de si e de tudo o que está à sua volta; ou seja, imaginário vem

a ser o modo como um grupo social enxerga o mundo e a si mesmo; o modo como

(re)age a algo, como sente (no sentido mais amplo da palavra sentir) e como percebe

tudo aquilo que o afeta. Cada época tem, portanto, o seu próprio imaginário, visto que

as pessoas de cada período histórico enxergam a realidade duma determinada maneira e

manifestam-se, por isso mesmo, de forma singular, por meio de palavras, de atos e de

emoções: é o que percebemos quando comparamos povos de épocas (e também de

lugares) diferentes. Também é possível falar em imaginários dentro de um imaginário;

ou seja, temos um imaginário medieval, que comporta todas as imagens relacionadas à

Idade Média, mas temos, dentro deste imaginário, outros tantos: o imaginário em torno

do cavaleiro medieval (uma espécie de imaginário cavaleiresco), o imaginário em torno

da Mulher medieval etc.

13 TORRES, José William Craveiro. Além da Cruz e da Espada: acerca dos resíduos clássicos d’A

Demanda do Santo Graal. Fortaleza, 2010. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) –

Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Ceará. 14 DUBY, Georges. A História Continua / Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor / Editora UFRJ, 1993. 15 LE GOFF apud FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu. Reflexões

sobre Mentalidade e Imaginário”. In: Signum: Revista da ABREM – Associação Brasileira de Estudos

Medievais, n. 5, 2003. (Homenagem a Jacques Le Goff.)

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Ideologia16

, por sua vez, é uma espécie de imaginário voltado para a prática;

possui, portanto, um caráter político: trata-se da visão de mundo que um determinado

grupo ou camada social tenta impor, muitas vezes por meio do poder que detém, a uma

determinada sociedade, com vista a dominá-la.

Já mentalidade, grosso modo, seria o modo de agir, de pensar e de sentir que teria

se originado ainda na Pré-História e se mantido, ao longo da cadeia evolutiva do

Homem, praticamente o mesmo, até os dias de hoje. O imaginário seria, portanto, a

forma como a mentalidade apresentar-se-ia em cada momento histórico.

Quanto ao conceito de resíduo, retiramo-lo do livro Marxismo e Literatura17

, de

Raymond Williams. O residual seria tudo aquilo formado no passado, mas passível de

ser constantemente retomado, de forma inconsciente, por indivíduos de um grupo ou

camada social, de modo a ser tido como algo próprio mesmo das épocas posteriores ao

seu surgimento.

Foi com base nesses e em outros conceitos, como o de hibridação cultural e o de

cristalização18

, que Roberto Pontes pensou a Teoria da Residualidade: “Na Cultura e na

Literatura nada é original; tudo é residual”. Com ela, quis ele primeiramente enfatizar

(sobretudo na Literatura) que certos aspectos comportamentais e culturais “vivos” e

tidos como pertencentes a um dado momento histórico são, na verdade, traços

característicos duma era passada, retomados, por uma pessoa ou por um determinado

grupo, de forma consciente ou inconsciente.

Nessa proposta de análise de textos literários, de Roberto Pontes, o residual, de

Williams, deu lugar ao termo resíduo; o hibridismo cultural, de Burke, passou à

hibridação cultural; já cristalização saiu da Química para explicar determinados

fenômenos culturais ou literários. Pontes não se limitou a “costurar” conceitos de

diversas correntes de pensamento, mas procurou repensá-los antes de os colocar à

disposição de alunos-presquisadores e da comunidade acadêmica em geral. O que à

primeira vista pode parecer simples mudança de nomenclatura, na verdade traz em si

uma demorada reflexão quanto ao vocábulo que melhor explica determinado processo.

16 Termo assim analisado por Peter Burke, em seu livro acerca da École des Annales: BURKE, Peter. A

Escola dos Annales (1929 – 1989): a Revolução Francesa da Historiografia / Tradução de Nilo Odalia.

São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. 17 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura / Trad. de Waltemir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1979. p. 125. 18 PONTES, Roberto. Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto Pontes, concedida à

Rubenita Moreira, em 05/06/06. Fortaleza: (mimeografado), 2006.

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Assim, o estudioso preferiu o termo hibridação, em vez de hibridismo, pelo fato de o

sufixo do primeiro vocábulo transmitir melhor a ideia de ação, de dinamismo, de algo

em constante mudança, em andamento, em processo, como de fato acontece com as

culturas a todo momento.

O conceito de cristalização, na Teoria da Residualidade, também foi

reconsiderado. Como suas origens remontam aos estudos dos cristais, ou seja, à

Química, então ele já não tem o significado que Peter Burke atribuiu-lhe, em seu livro

Hibridismo Cultural, comumente utilizado nas Ciências Sociais: o de ser um período

em que, após determinadas trocas culturais, tudo “vira rotina e se torna resistente a

mudanças posteriores19

”. O termo cristalização, na Química, relaciona-se ao refino de

um elemento natural, como acontece ao melaço de cana ao se transformar em açúcar, ou

então à simples transformação de um elemento cultural em outro. Assim, a

cristalização, conforme pensado por Pontes, deve ser vista como um processo constante

de transformação, de refino, a partir do qual um elemento cultural, um objeto de arte,

transforma-se (ou é levado a se transformar) em outro, mas sem perder as suas

características essenciais.

Ainda no âmbito das revisões por Roberto Pontes, lembre-se que o teórico

cearense descartou o caráter inconsciente do residual de Raymond Williams, de modo a

considerar como resíduo tudo aquilo que remanesce do passado, independente de ter

sido retomado de forma consciente ou inconsciente por parte de um indivíduo ou de um

grupo ou camada social. Acontece que Pontes, como muitos antropólogos

contemporâneos, sabe das dificuldades de se provar a “(in)consciência” de um ato

praticado.

Este tópico não poderia ser finalizado sem que falássemos, antes, da relação entre

intertextualidade e residualidade. São fenômenos distintos. O primeiro, conforme

palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva20

, só ocorre quando um texto, em seu

conteúdo, alude a outro texto ou ao conteúdo de outro texto, no todo ou em parte, por

meio de um sintagma, de uma frase, de uma oração ou de um período, de modo a

corroborar ou a contestar algo. Para que o fenômeno intertextual se estabeleça entre dois

ou mais textos, Aguiar e Silva chama a atenção para o fato de que o aspecto estrutural se

faz tão ou mais importante que o conteudístico, ou seja, dois textos que giram em torno

19 BURKE, Peter. Hibridismo Cultural / Trad. de Leila Souza Mendes. São Leopoldo: Editora Unisinos,

2006. p. 114. (Coleção Aldus.) 20 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Vol. I. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2006.

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do mesmo assunto não permitem que se fale em intertextualidade, pois esta só se

estabelece por meio do intertexto, que é uma estrutura comum (sintagmática, sintática,

semântica) aos textos, permitindo o diálogo entre estes.

O segundo é algo infinitamente mais amplo, pois não se circunscreve aos limites

dos textos ou das palavras. A residualidade procura estudar, como se viu, modos de

agir, de pensar e de sentir de um período histórico em outro; noutras palavras, como os

imaginários de determinados agrupamentos de certa época foram parar, tempos depois,

noutra(s) civilização(ções). Para tanto, a residualidade pode lançar mão de qualquer

objeto como fonte histórica ou documental, com vista a chegar à verdade dos fatos;

como aliás fizeram, outrora, os participantes da École des Annales. Dentro dessa

perspectiva da residualidade, trabalharemos, aqui, apenas com obras literárias, tendo em

vista que elas podem perfeitamente ser utilizadas como registros de imaginários.

3. O nascimento, a infância e a “formação-iniciática” do antigo herói greco-

romano a partir do que podemos retirar dos mitos de Metamorfoses

No âmbito da Mitologia greco-romana, o termo herói pode significar duas coisas:

em primeiro lugar, o indivíduo resultante da união de um deus (ou de uma deusa) com

uma mortal (ou com um mortal), ou seja, o mesmo que semideus; em segundo lugar, já

numa acepção mais ampla da palavra, “um ser humano capaz de superar os limites que

separam o homem dos seres comuns. Sua existência é devotada à busca do Espírito, seja

este o Graal ou um elixir da imortalidade21

”. Acreditamos que a segunda acepção seja a

melhor, já que abarca, em si, de certa forma, a primeira; afinal de contas, Hércules (filho

de Júpiter e de Alcmena), Perseu (filho de Júpiter e de Dânae) e Aquiles (filho de Tétis

e de Peleu) eram considerados heróis não simplesmente pelo fato de terem nascido da

união de deuses com mortais, mas, principalmente, pelo seu comportamento, pelo tipo

de vida que levavam, pelas qualidades morais e pela bravura que possuíam, pelos

propósitos que os moviam e pelos ideais que os guiavam.

Há, ainda, nas narrativas mitológicas, inúmeros exemplos de heróis que não

surgiram da união de deuses com mortais, mas que também realizaram obras valorosas,

como é o caso de Jasão, filho de Esão e de Alcímede (ou Polímede), só para citarmos

um exemplo. Nesta parte do trabalho, procuraremos, com base na leitura de alguns

21 JULIEN, Nadia. Dicionário Rideel de Mitologia / Tradução de Denise Radonovic Vieira e ilustração de

Mônica Teixeira. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2005. p. 109.

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mitos presentes em Metamorfoses, de Ovídio (notadamente a partir dos mitos que giram

em torno de Hércules, de Perseu e de Jasão), traçar um perfil, ainda que de forma breve,

do herói greco-latino da Antiguidade clássica, de modo a delinear, ao cabo desta parte

do ensaio, o seu imaginário.

Em geral, independente de serem filhos de deuses com mortais ou simplesmente

de serem filhos de mortais, as origens dos heróis são sempre nobres. Basta ver, por

exemplo, Hércules, que é filho do deus Júpiter com uma mortal, Alcmena, e Jasão, que

é filho de reis de Iolco, que ficava na Tessália. Também podemos constatar que, desde

cedo, os heróis realizavam grandes feitos e davam provas de sua incomensurável força:

Hércules estrangulou duas cobras que tinham sido enviadas por Juno para matá-lo22

,

quando ainda era uma criança de berço, e Teseu23

, aos dezesseis anos, conseguiu

levantar um rochedo e retirar, de debaixo dele, as sandálias e a espada que seu pai Egeu

lá tinha deixado, para quando o filho tivesse idade suficiente para usá-las. A defesa dos

fracos, das mulheres, dos anciãos e daqueles que amavam era algo que começava a

surgir nos heróis da Antiguidade clássica já em tenra idade.

Durante toda a vida, o herói greco-romano corria o mundo, em busca de

aventuras: nisso consistia a sua “formação-iniciática”. Geralmente, essas aventuras

estavam sempre acompanhadas do maravilhoso, ou seja, de magias, de feitiços, de seres

sobrenaturais etc. Quando não buscavam tais aventuras de bom grado, acabavam sendo

submetidos a elas por vontade de um deus ou de alguém que lhes era superior: um rei,

por exemplo. Perseu, quando criança, foi encerrado numa arca com sua mãe pelo

próprio avô, Acrísio, e lançado ao mar24

. Depois de encontrado por um pescador de

Serifo, foi aceito na corte por Polidectes, o rei desse lugar. Perseu, já adulto, foi

mandado por Polidectes à caça da Medusa, monstro que transformava em pedra tudo o

que para ela olhasse. Com a ajuda de Minerva e de Mercúrio, Perseu conseguiu matar

esse monstro e dar fim ao sofrimento do povo daquela região. Em seguida, utilizando os

sapatos alados de Mercúrio, Perseu, que voava pela Etiópia, salvou Andrômeda, filha da

rainha Cassiopeia, de um monstro marinho. Antes disso, enfrentou Atlas, o gigante, e

transformou-o numa grande montanha, com a ajuda da cabeça da Medusa que havia

cortado e que levava consigo.

22 Juno (ou Hera) mostrava-se sempre hostil aos filhos que seu marido (Júpiter) tinha com outras

mulheres. 23 O herói da Mitologia Greco-Romana responsável pela morte do Minotauro, monstro da Ilha de Creta. 24 De acordo com um oráculo, Acrísio ficara sabendo que o seu neto seria o causador de sua morte.

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Hércules, como já foi dito, enfrentou, desde criança, os obstáculos que Juno pôs

em seu caminho. Durante sua vida, teve de servir, a mando da mulher de Júpiter, a

Euristeus (filho do rei de Argos, Estênelo, e de Nicipe, a filha de Pélope, descendente de

Perseu), que o obrigou a realizar doze difíceis tarefas, conhecidas como “Os Doze

Trabalhos de Hércules”, termo pelo qual ficou conhecido o seu “rito iniciático”; porém,

Hércules, a exemplo de Jasão, não esperava que lhe impusessem tarefas a cumprir para

que pudesse participar de grandes aventuras. Exemplo disso foi o fato de ele ter se

juntado a Jasão na busca do Velocino de Ouro, embora tenha abandonado a empreitada

no meio do caminho. Jasão, exemplo de coragem e de astúcia, acabou por conseguir o

Tosão de Ouro após enfrentar três obstáculos, parecidos com alguns dos trabalhos que

Hércules realizara a pedido de Euristeus: arar a terra com dois touros de patas de bronze

que soltavam fogo pela boca e pelas narinas, semear os dentes do dragão que Cadmo

matara e dos quais sairia uma safra de guerreiros que voltariam suas armas contra o

semeador e adormecer o dragão que guardava o velocino. Com a ajuda da feiticeira

Medeia, filha do rei Étes que tinha se apaixonado por Jasão, este conseguiu vencer as

três provas, ou seja, deu cabo ao seu “rito iniciático” e tomou para si o Tosão de Ouro,

que depois foi oferecido ao rei Pélias.

Um pouco mais de conhecimento acerca dos mitos greco-latinos, sobretudo

daqueles que tratam das aventuras dos heróis da Antiguidade clássica, é capaz de revelar

o verdadeiro objetivo daqueles personagens que neles se movimentam: obter a glória,

chegar à apoteose25

, receber um galardão (presente) dos deuses. Percebemos isso a

partir do fim que era dado aos heróis pelos numes: ou eram levados diretamente para o

Olimpo, como aconteceu com Eneias e com Rômulo, ou eram levados, pelos deuses, a

um local inacessível aos mortais por terra e por mar, no qual teriam tudo aquilo que

desejassem e seriam poupados da morte, de modo que passariam, sem experimentar a

dor, à vida eterna. Este local chamava-se Campos Elísios, mas também poderia ser

chamado de Campos Afortunados ou de Ilha dos Abençoados.

Com base no que foi dito até aqui, já podemos fazer um breve apanhado do

imaginário do herói da Antiguidade clássica: um Ser ao qual mais importava o aspecto

espiritual (não no sentido cristão do termo), que vivia atrás de superar os seus próprios

limites, que almejava um ideal que não se limitava apenas a glórias terrenas; alguém

25 De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, Antônio (dir.). Dicionário

Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.), “inclusão de alguém entre os deuses,

em função de suas qualidades, atributos; deificação, endeusamento”.

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cheio de qualidades morais, como coragem, bravura, lealdade e fidelidade, mas que, em

alguns momentos, podia trazer certos desvios de caráter, ou seja, era alguém passível de

defeitos; um Ser com firmes propósitos, incapaz de se desviar do caminho que desejava

ou que deveria trilhar; alguém a quem agradava a nobreza não só de caráter, mas

também aquela advinda das origens, da família; um Ser cheio de força e de vitalidade,

geralmente pronto a auxiliar os fracos, os oprimidos e as minorias; um Ser que buscava

participar, geralmente acompanhado dos seus iguais, de aventuras impossíveis aos

homens comuns, como enfrentar seres mágicos e sobrenaturais, como deuses,

feiticeiros, gigantes etc; alguém que buscava enfrentar obstáculos com vista a receber,

ao fim de tudo, um galardão, uma recompensa das divindades, e que respeitava os

deuses, acima de qualquer coisa.

4. As intertextualidades e as residualidades clássicas do Amadis de Gaula a partir do

nascimento, da infância e das aventuras de seu personagem principal

Ao lermos o episódio do Amadis de Gaula que gira em torno do nascimento do

personagem que dá nome à obra, é impossível não lembrarmos, de imediato, do

nascimento de Perseu e da exposição a que este foi submetido por seu avô Acrísio:

Amadis, também filho de reis, foi encerrado numa arca calafetada, como ocorrera ao

herói greco-romano que matou a Medusa, e, em seguida, foi lançado ao rio por

Darioleta, uma das amas de sua mãe, a rainha Helisena. Também como aconteceu ao

herói da Antiguidade clássica, felizmente Amadis foi salvo, quando já se encontrava em

alto-mar, por um bom homem, que se encarregou da sua criação e educação: o cavaleiro

escocês Gandales. Por conta desse fato, Amadis de Gaula passou a se chamar “Donzel

do Mar”. Vejamos:

en cabo de una pieça quiso el Señor poderoso que sin peligro

[Helisena] suyo un fijo pariesse, y tomándole la donzella

[Darioleta] en sus manos vido que era fermoso si ventura

oviesse, mas no tardó de poner en esecución lo que convenía

según de antes lo pensara, y embolvióle en muy ricos paños, y

púsolo cerca de su madre, y traxo allí el arca que ya oístes, y

díxole Elisena:

– ¿Qué queréis fazer?

– Ponerlo aquí y lançarlo en el río – dixo ella –, y por

ventura guareçer podrá. […]

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La donzella tomó tinta y pergamino, y fizo una carta que

dezía: «Este es Amadis sin Tiempo, hijo de rey.» […]

Esto así fecho, puso la tabla encima tan junta y bien

calafeteada, que agua ni otra cosa allí podría entrar, y tomándola

en sus braços y abriendo la puerta, la puso en el río y dexóla ir

[…].

en la mar iva una barca en que un cavallero de Escocia iva con

su muger, que de la Pequeña Bretaña llevava parida de un hijo

que se llamaba Gandalín, y el cavallero havía nombre Gandales,

y yendo a más andar su vía contra Escocia, seyendo ya mañana

clara vieron el arca que por el agua nadando iva, y llamando

cuatro marineros les mandó que presto echassen un batel y

aquello le traxessen26

.

No que concerne à infância, a imagem de Amadis de Gaula que nos é transmitida

é aquela do menino iniciado, desde cedo, nas artes da guerra: já a partir dos cinco anos,

manejando o arco. Também a de uma criança corajosa, aos sete anos de vida, com senso

de justiça e disposta a ajudar os seus, caso necessário:

y dende adelante con mejor voluntad curava dél tanto que llegó

a los cinco años. Entonces le hizo un arco a su medida y otro a

su hijo Gandalín; y fazíalos tirar ante sí; y assí lo fue criando

fasta la edad de siete años. […]

Pues estándole mirando todas como a una cosa muy

estraña y creçida en fermosura, el doncel ovo sed, y poniendo su

arco y saetas en tierra, fuese a un caño de agua a beber, y un

donzel mayor que los otros tomó su arco y quiso tirar con él,

mas Gandalín no lo consentía, y el otro lo empuxó rezio.

Gandalín dixo:

– ¡Acorredme, Donzel del Mar!

Y como lo oyó, dexó de bever y fuese contra el gran

donzel, y él le dexó el arco y tomólo con su mano y dixo:

– En mal punto feristes mi hermano.

Y diole con él por cima de la cabeça gran golpe según su

fuerça, y travarónse ambos; assí que el gran donzel malparado

començó a fuir y encontró con el ayo que los guardava y dixo:

– ¿Qué hás?

– El Donzel del Mar – dixo – me firió.

Entonces fue a él con la correa y dixo:

– ¡Cómo, Donzel del Mar!; ¿ya sois osado de ferir los

moços? Agora veréis cómo vos castigaré por ello.

Él hincó los inojos ante él y dixo:

– Señor, más quiero que me vos hiráis que delante de mí

sea ninguno osado de hazer mal a mi hermano27

.

26 MONTALVO, op. cit., vol. I, pp. 246-247, passim. 27 Idem, pp. 258-259, passim.

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A “formação-iniciática”, na Baixa Idade Média, começava com a saída do garoto

da casa de seus pais: ele se dirigia à casa de um “senhor de armas”, geralmente um

homem de posses que fosse capaz de educá-lo, e, quando fosse considerado preparado

para empunhar armas, era-lhe feita a sua ordenação, que poderia acontecer, em média,

entre os quinze e os vinte e cinco anos. A ordenação de cavaleiro dava-se por meio de

uma cerimônia, a da investidura, que consistia no verdadeiro ritual de passagem do

mancebo para a fase adulta. A “formação-iniciática” do cavaleiro mediévico semelha-

se, do início ao fim, à do herói mítico greco-romano: este só passava a ser considerado

herói após intensa formação, realizada, como mostramos no capítulo anterior, longe de

casa (geralmente em meio aos bosques, junto ao centauro Quíron), e após um “rito de

iniciação28

”, que geralmente terminava com a entrega das armas (lança, escudo), de

peças de vestimenta (sandálias) ou de um objeto sagrado, carregado de simbologia

(Velocino de Ouro), aos heróis, por parte dos seus mestres, de alguém que lhes era

superior, em termos de hierarquia (um rei, por exemplo), ou mesmo de seus pais, como

aconteceu, de forma indireta, com Teseu. Amadis, ainda atendendo por Donzel do Mar,

foi tirado da casa de Gandales pelo rei Languines, que se encarregou de sua educação

até entregá-lo ao rei Lisuarte. Este o colocou a serviço de sua filha Oriana, por quem

depois Amadis se apaixonou e com quem teve um filho, Esplandián. Amadis também se

tornou cavaleiro pelas mãos de seu próprio pai, o rei Periom (sem que disso soubesse), a

pedido de Oriana, sua amada: este entregou àquele uma espada, no momento da

investidura ou ordenação.

Além desses trechos do Amadis, que aproximam o personagem principal dos

heróis míticos greco-romanos, temos, ainda, ao longo dessa novela de cavalaria,

excertos em que claramente podemos perceber que a narrativa estabeleceu diálogos com

obras (mitos, epopeias) da Antiguidade clássica; talvez para não deixar dúvidas quanto à

sua ligação a matrizes greco-latinas. Alguns desses diálogos podemos chamar mesmo

de intertextuais, porque a narrativa do Amadis apresenta elementos linguísticos

28 Em muitos casos, o “rito iniciático”, na Mitologia greco-romana, confunde-se com a “formação-

iniciática” do herói, sendo apenas um momento importante desta; assim, os “Os doze trabalhos”, no

caso de Hércules, “a busca pelo Velo de Ouro”, no caso de Jasão, e a tríplice aventura “Medusa-Atlas-

Monstro marinho”, no caso de Perseu, podem ser considerados, além de momentos importantes das

“formações-iniciáticas” desses heróis, também seus “ritos iniciáticos”.

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suficientes (vocábulos, expressões) para que se afirme isso: há alusões claras à Guerra

de Troia, em alguns casos. Vejamos um exemplo:

– Después que no me vistes, mis buenos señores, muchas

tierras estrañas he andado, grandes aventuras han pasado por mí

que largas serían de contar; pero las que más me ocuparon y

mayores peligros me atraxeron fue socorrer dueñas y donzellas

en muchos tuertos y agravios que les fazían, porque assí como

éstas nascieron para obedescer con flacos ánimos, así los de

fuertes coraçones estremadamente entre las otras cosas las suyas

deven tomar, amparándolas, defendiéndolas de aquellos que con

poca virtud las maltratan y deshonran, como los griegos [y] los

romanos en los tiempos antiguos lo fizieron, passando las mares,

destruyendo las tierras, venciendo batallas, matando reyes y de

sus reinos los echando, solamente por satisfazer las fuerças y

injurias a ellas fechas, por donde tanta fama y gloria dellos en

sus istorias ha quedado, y quedará en cuanto el mundo durare.

Pues lo que en nuestros tiempos passa, ¿quién mejor que

vosotros, mis buenos señores, lo sabe?, que sois testigos por

quien muchas afruentas y peligros por esta causa cada día

passan29

.

Esse excerto do Amadis de Gaula realiza uma clara intertextualidade com as três

epopeias da Antiguidade clássica; nomeadamente com a Odisseia e com a Eneida, pois

resume, em poucas palavras, como estas fazem em certa altura de suas narrativas, causa

e consequências da Guerra de Troia: fala de “Gregos” que passaram “os mares”,

destruíram “terras”, venceram “batalhas”, mataram “reis” e os desterraram “dos seus

reinos, só para vingar as violências e injúrias” que foram feitas a mulheres (no caso da

matéria troiana, que foram feitas à Helena, devido ao seu rapto por Páris). Saliente-se,

nessa passagem do Amadis, a fala do protagonista, exortando os seus a agirem como os

antigos gregos e romanos, na defesa das mulheres; noutras palavras, a terem os antigos

como modelo. Esse trecho do Amadis de Gaula pode ser classificado, à luz de Vítor

Manuel de Aguiar e Silva, como um intertexto endoliterário, hetero-autoral, explícito e

corroborador.

Não poderíamos finalizar esta parte do ensaio sem que disséssemos que, além dos

trechos que estabelecem relações intertextuais com obras literárias das antigas Grécia e

Roma, o Amadis traz excertos de “sabor” clássico, como bem a estes se referiu F. Costa

Marques, ao tratar da passagem do Amadis de Gaula que fala do nascimento do filho

29 MONTALVO, 2008, vol. II, pp. 1282-1283.

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que o protagonista desta novela teve com sua amada, Oriana. Esse trecho, em muitos

aspectos, faz-nos lembrar o nascimento de Rômulo e Remo; contudo, como não há

nenhum indício vocabular, frasal ou textual capaz de assegurar a relação intertextual

entre esse excerto do Amadis e o mito romano, Costa Marques preferiu se referir a ele

como um trecho de “sabor” clássico. Eis o trecho do Amadis de Gaula que trata do

nascimento de Esplandián, o filho de Oriana com Amadis:

A Oriana le plugo mucho de la partida del Rey su padre,

porque se le llegava el tiempo en que le convenía parir. Y llamó

a Mabilia, y díxole que según los desmayos y lo que sentía, que

no era otra cosa sino que quería parir, y mandando a las otras

donzellas que la dexassen, se fue a sua cámara, y con ella

Mabilia y la Donzella de Denamarcha, que de antes tenía ya

guisado todas las cosas que menester havían convenientes al

parto. […] Pero el gran miedo que tenía de ser descubierta de

aquella afruenta en que estava la esforçó de tal suerte, que sin

quexarse lo sufría; y a la media noche plugo al muy alto Señor,

remediador de todos, que fue parida de un fijo, muy apuesta

criatura, quedando ella libre, el cual fue luego embuelto en muy

ricos paños. […]

Entonces encendieron una vela, y desembolviéndolo

vieron que tenía debaxo de la teta derecha unas letras tan

blancas como la nieve, y so la teta isquierda siete letras tan

coloradas como bravas bivas; pero ni las unas ni las otras

supieron leer, ni qué dezían, porque las blancas eran de latín

muy escuro, y las coloradas, en lenguaje griego muy cerrado.

[…] Y Mabilia, en tanto, havía el niño puesto en una canastra, y

ligado con una venda por encima; y colgándolo con una cuerda,

lo baxó fasta lo poner en las manos de la Donzella; la cual lo

tomó y fuese con él la vía de Miraflores, donde como su fijo

propio della se havía de criar secretamente. […]

Y cuando la Donzella de Denamarcha y su hermano

llegaron aquella fuente, ella traía gran sed del trabajo de la

noche y del camino, y dixo a su hermano:

– Descendamos, y tomad este niño, que quiero bever.

Él tomo el niño, assí embuelto en sus ricos paños, y púsolo

en un tronco de un árbol que aí stava; y queriendo descender a

su hermana, oyeron unos grandes bramidos de león que en el

espesso valle sonavan, assí que aquellos palafrenes fueron tan

espantados, que començaron de fuir al más correr sin que la

donzella el suyo tener pudiesse […].

haviendo aquel santo Nasciano cantado missa al alva del día, y

yéndose a la fuente por folgar aí, que la noche havía sido muy

calorosa, vio cómo la leona llevava el niño en su boca; el cual

llorava con flaca boz […].

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– Vete, bestia mala, y dexa la criatura de Dios, que la no

fizo para tu govierno.

Y la leona, blandeando las orejas, como que falagava, se

vino a él muy mansa, y puso el niño a sus pies, y luego se fue.

[…] Y pasando [Nasciano] cabe la cueva donde la leona criava

sus fijos, viola que les dava la teta, y díxole:

– Yo te mando de la parte de Dios, en cuyo poder son

todas las cosas, que quitando las tetas a tus fijos las des a este

niño, y, como a ellos, lo guardes de todo mal.

La leona se fue a echar a sus pies, y el hombre bueno puso

el niño a las tetas, y echándole de la leche en la boca, le hizo

tomar la teta, y mamó30

.

Como vimos, Amadis de Gaula, desde a sua origem, aproxima-se dos heróis

greco-romanos: como aconteceu a Perseu, a Édipo e a Páris, foi exposto logo após o seu

nascimento, mas retornou, tempos depois, também como ocorreu com os três heróis há

pouco citados, à casa de seus pais, para ocupar o seu lugar (nobre, diga-se de

passagem); como aconteceu a Héracles, Amadis, desde criança, demonstrava uma força

descomunal e um pendor para a refrega; como todos esses heróis míticos, passou por

uma “formação-iniciática” longe da casa paterna, período em que aprendeu a manejar a

espada e a agir como um caval(h)eiro, e por um “rito iniciático”, momento em que

recebeu, do próprio pai (sem que disso tivesse consciência), a sua arma, como aconteceu

(ainda que de forma indireta) com Teseu.

Como ocorreu com esses heróis mitológicos, que saíram pelo mundo em busca de

aventuras, verdadeiras “formações-iniciáticas”, Amadis de Gaula realizou façanhas que

não ficaram a dever àquelas realizadas por eles: também enfrentou seres sobrenaturais,

como o feiticeiro Arcalaus e o monstro Endriago. Enfim, Amadis procurou agir, como

vimos numa das passagens da novela que selecionamos para esta parte do artigo, como

os heróis greco-romanos, porque os tinha como modelos; tanto que chegou a pedir para

que seus amigos cavaleiros fizessem o mesmo, sempre em defesa das mulheres.

Esplandián, o filho de Amadis, em tudo saiu ao pai; inclusive já a partir do seu

nascimento.

30 MONTALVO, op. cit., vol. II, pp. 1003-1007, passim, grifo nosso.

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CONCLUSÃO

Ao cabo de tudo o que foi dito, acreditamos ter ficado claro o aspecto clássico-

residual e híbrido do Amadis de Gaula: nesta novela, os cavaleiros comportam-se como

os heróis que encontramos nos mitos e nas epopeias da Antiguidade clássica. Nesse

sentido é que podemos afirmar que o imaginário cavaleiresco mostra-se residual,

quando comparado àquele que os antigos gregos e romanos elaboraram em torno de

seus heróis. Tal imaginário é reforçado inclusive a partir das intertextualidades que a

novela de cavalaria em apreço estabelece com trechos de Metamorfoses, de Ovídio, e

com deteminadas passagens da Odisseia, de Homero, e/ou da Eneida, de Virgílio.

A aproximação desses imaginários (do que foi construído em torno do cavaleiro

medieval e do que foi elaborado em torno do herói mítico greco-romano) faz-nos pensar

na existência de uma mentalidade heróica; ou seja, em modos de agir, de pensar e de

sentir comuns a todos os heróis de todas as épocas e de todos os lugares, já a partir da

Pré-História ou do início dos tempos: Gilgamesh, por exemplo, tido como o mais antigo

herói da Humanidade, apresenta características muito próximas às dos heróis míticos

greco-romanos.

Por fim, uma consideração mais acerca dos resíduos clássicos do Amadis de

Gaula. Comumente esta obra tem sido, sobretudo pela crítica brasileira, enquadrada

dentro do Humanismo, pelo fato de trazer, ao longo da sua narrativa, trechos e/ou

elementos de teor ou de “sabor” clássico (neste ensaio denominados de resíduos), e pelo

fato de, diferente do que ocorre n’A Demanda do Santo Graal, não realizar uma

exaltação dos valores e da ideologia cristã (católica, para sermos mais exatos), tão

comum ao espírito medieval. Não concordamos com o enquadramento do Amadis de

Gaula dentro do Humanismo nem por uma razão nem por outra. Em primeiro lugar,

porque resíduos clássicos, conforme mostramos na nossa dissertação de Mestrado,

também podem ser encontrados – quer por meio de intertextualidades, quer por meio de

residualidades, da forma como tratamos desses termos no segundo capítulo deste ensaio

– n’A Demanda do Santo Graal. Depois, porque acreditamos que o aspecto medieval

exaltado no Amadis foi outro: o amor cortês, e não o religioso. É como se toda a

narrativa do Amadis de Gaula fosse, na verdade, formada pelo entrelaçamento de

cantigas de amor (declarações feitas de Amadis para Oriana, em atmosfera de

vassalagem amorosa, de sofrimento por amor e de súplicas) e de cantigas de amigo

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(declarações feitas por Oriana a suas amigas, que dão conta da saudade que ela sentia de

Amadis, quando este se encontrava distante). Enfim, a atmosfera do Amadis é também

medieval, cavaleiresca; apenas não é religiosa, como a da Demanda. Assim,

defendemos mesmo que aquela novela, assim como ocorre a esta, seja mesmo

enquadrada dentro do Trovadorismo.

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