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FÉTI, KANDUMBO, KANINGUILI, OMBALA GRANDE DO HUAMBO E PRAÇA A. AGOSTINHO NETO PEDRAS VIVAS DA MEMÓRIA COLECTIVA ESPECIAL ENCARTE DIÁLOGO INTERCULTURAL pág. 9 - 24 AFRICANIDADE, ESPAÇO E TRADIÇÃO DIA DA CULTURA NACIONAL ECO DE ANGOLA pág. 3 - 5 NÚMERO 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Ano IV Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00

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FÉTI, KANDUMBO, KANINGUILI, OMBALA GRANDE DO HUAMBO E PRAÇA A. AGOSTINHO NETO PEDRAS VIVAS DA MEMÓRIA COLECTIVA

ESPECIAL ENCARTEDIÁLOGO INTERCULTURAL pág. 9 - 24

AFRICANIDADE,ESPAÇO E TRADIÇÃODIA DA

CULTURA NACIONAL

ECO DE ANGOLA pág. 3 - 5

NÚMERO

18 a 31 de Janeiro de 2016 | Ano IV Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00

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2 | ARTE POÉTICA 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Cultura

Conselho de AdministraçãoAntónio José Ribeiro (presidente)

Administradores ExecutivosCatarina Vieira Dias CunhaEduardo MinvuFilomeno ManaçasSara FialhoMateus Francisco João dos Santos JúniorJosé Alberto Domingos

Administradores Não ExecutivosVictor Silva

Mateus Morais de Brito Júnior

Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX):222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE-mail: [email protected]

CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Um jornal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento

Nº 100 /Ano IV/ 18 a 31 de Janeiro de 2016

E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL:

Director e Editor-chefe: José Luís MendonçaSecretária: Ilda RosaAssistente Editorial: Coimbra Adolfo (Matadi Makola)Fotografia: Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação: Sandu Caleia, Jorge de Sousa, AlbertoBumba e Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Jonuel Gonçalves, Lito Silva, Mário Pereira, Os-valdo Sakamana, Vitor Burity da Silva, XIKwambi da CostaMoçambique: Litos dos SantosSão Tomé e Príncipe: Conceição LimaBrasil: Gildeci de Oliveira Leite, Maurício Waldman

Normas editoriaisO jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicose recensões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devemser originais. Todos os autores que apresentarem os seus artigospara publicação ao jornal Cultura assumem o compromisso denão apresentar esses mesmos artigos a outros órgãos. Apósanálise do Conselho Editorial, as contribuições serão avaliadas e,em caso de não publicação, os pareceres serão comunicadosaos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ougráficos já publicados, são da exclusiva responsabilidade dosseus autores.

Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman,corpo 12, e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficose figuras devem, ainda, ser enviados no formato em que foramelaborados e também num ficheiro separado.

DOIS POEMAS DECONCEIÇÃO LIMA(SÃO TOMÉ)

A HERANÇA

Sei que buscas aindao secreto fulgor dos diasanunciados.Nada do que te recusamdevora em tia memória dos passos calcinados.É tua casa este exílioeste assombro esta ira.Tuas as horas dissipadaso hostil presságioa herança saqueada.Quase nada.Mas quando direito e lúgubremarchas ao longo da Baíaum clamor antigoum rumor de promessaatormenta a Cidade.A mesma praia te aguardacom seu ventre de fruta e de caríciaseu silêncio de espanto e de carência.Começarás de novo, insonecom mãos de húmus e basaltocomo quem reescreve uma longa profecia.OS HERÓIS

Na raiz da praçasob o mastroossos visíveis, severos, palpitam.Pássaros em pânico derrubam trombetasrecuam em silêncio as estátuaspara paisagens longínquas.Os mortos que morreram sem perguntasregressam devagar de olhos abertosindagando por suas asas crucificadas.

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ECO DE ANGOLA| 3Cultura |18 a 31 de Janeiro de 2016

JOSÉ LUÍS MENDONÇA|

“UM DIA CAIU DO CÉU UM HOMEM QUE TEVE O NOME DE FÉTI” Assim começa a lenda que nos fala daorigem do homem no extremo meridio-nal da província do Huambo, junto à con-fluência do rio Cunhungâmua com o Cu-nene. Féti, que significa Princípio, viviatriste e só. Para se distrair, foi o primeirohomem à caça do hipopótamo no Cunene.Enquanto esperava na margem do granderio, vê sair das águas “uma forma humana,muito semelhante a si mesmo: era a pri-meira mulher, a quem denominouTchoya” (do verbo okuoya = enfeite).Com Tchoya teve Féti um rapaz a quemchamou de Ngalangi. Mais tarde, nasceuma menina, Viyé (do verbo okuiya = vir).“Queriam os pais significar que aquela fi-lha havia de chamar a si as populações eser o tronco de uma grande família. E Viyéveio a ser a mãe das raças do norte, isto é,das terras do Bié, enquanto foi o pai dasgentes do Sul. Assim contam os Ngalangi eterminam por afirmar que deles descen-dem todos os habitantes do Bié, Huambo,Sambo, Cuíma e Caconda".Esta é a lenda contada e recontada aolongo dos séculos. No dia 7 de Janeiro de2016, por ocasião das celebração do Diada Cultura Nacional, esteve na estação ar-queológica de Féti, datada do século VIIIa.C., sobre a pedra solta da que foi, no pas-sado, uma pirâmide com 15 metros delargura e oito de altura, a ministra da Cul-tura, Rosa Cruz e Silva, acompanhada pe-lo governador provincial do Huambo emexercício, Francisco Calunga Quissanga, e

outras autoridades locais, para classificaro sítio como Património Histórico-Cultu-ral. Assim, a lenda se molda hoje em Pe-dras Vivas da Memória Colectiva, cujo re-levo patrimonial se corporiza no texto doDecreto executivo 01/16, de 7 de Janeiro,do Ministério da Cultura. A estação arqueológica do Féti, a 95quilómetros do centro da cidade doHuambo, preserva a pré-história do povoovimbundo, pois diz a tradição que é o lu-gar mais antigo da região centro e sul deÁfrica. Féti é considerado um relevantetestemunho do domínio da tecnologia eprodução siderúrgica, constituindo porisso, também, um museu natural da His-tória da Humanidade. Dada a sua relevância histórico-cultu-ral, a ministra revelou à imprensa pre-sente no local que, a partir de agora, háque proceder a “um trabalho aturado querequer o apoio de Universidades, Insti-tuições de estudos arqueológicos, quemsabe até do próprio Egipto que é uma re-ferência na construção de pirâmides, pa-ra que possamos reconstituir esta pirâ-mide, protegê-la, proteger o monte dascinzas, proteger as galerias e ir buscar osmateriais aqui encontrados e que estãoem Portugal e no nosso Museu Regionaldo Planalto”, enfim, regressar material-mente ao passado, com a reconstituiçãofísica desse monumento. LUGARES DA MEMÓRIA

E DE ESTUDO DA HISTÓRIA E o mesmo se pode dizer da OmbalaGrande do Huambo, em Samisasa, da Es-tação de Arte Rupestre de Kaninguiri, nomunicípio do Mungo, ou das Pedras doKandumbo, no município da Tchicala-Tcholoanga, que integram agora a listado património histórico e cultural dopaís, a par da Praça António AgostinhoNeto, no centro da cidade do Huambo. Asua elevação à categoria de PatrimónioHistórico-Cultural Nacional consta de di-

plomas legais exarados pelo Ministérioda Cultura que promovem o reconheci-mento dos locais como importantes luga-res da nossa memória colectiva e para oestudo da História de Angola. Com esteacto oficial, e dada a sua importância uni-versal, está dado o passo inicial para se-rem classificadas pela UNESCO como pa-trimónio mundial da humanidade.Para a ministra da Cultura, “as preocu-pações com a inventariação, a classificaçãodos bens do património, visando a sua va-lorização e divulgação, tal como se regis-tou ontem na estação arqueológica de Féti,no âmbito do Projecto de Mapeamento dasestações arqueológicas do país, (Paleolíti-co, Neolítico, Arte Rupestre, Túmulos Fu-nerários), é um exercício que repetiremostodos os anos, para o que necessitamos demobilizar os estudantes para que se inte-ressem mais por estas matérias, pois o paísé vasto e estas estão repartidas por toda aextensão do território nacional.” Kaninguiri, a quase 150 quilómetros anorte da capital da província, tem marcascriativas inscritas num penedo e as esca-vações arqueológicas, realizadas em1970, datam as pinturas de entre sete adez mil anos. Os motivos geométricos re-presentam cenas de caça, animais e figu-ras humanas, com diferenças cromáticasque vão desde o branco ao amarelo e a vá-rias tonalidades de vermelho.O forte do Kandumbo, a 25 quilóme-tros da cidade do Huambo, foi palco da úl-tima batalha que culminou com a ocupa-ção colonial do território do Huambo, em1902, depois de vencida a resistência dosautóctones, sob comando do soberanoNdala Kandumbo. O Dia da Cultura Nacio-nal, este ano, foi “tempo para recordar oHomem das Letras e Cultura, o Dr. Antó-nio Agostinho Neto, cujo legado teóricosobre a Cultura nos obriga sempre a re-flectir e a buscar os melhores caminhospara as soluções que se impõem na abor-dagem das problemáticas da Cultura Na-cional”, disse a ministra Rosa Cruz e Silva.

DIA DA CULTURA NACIONALFÉTI, KANDUMBO, KANINGUILI, OMBALA GRANDE DO HUAMBO E PRAÇA ANTÓNIO AGOSTINHO NETO

PEDRAS VIVAS DA MEMÓRIA COLECTIVA

Vestígios de Féti

Ministra discursando na Pedra de Candumbo

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4 |ECO DE ANGOLA 18 a 31 de Janeiro de 2016 | CulturaEfectivamente, a Praça Dr. AntónioAgostinho Neto, no centro da cidade doHuambo, classificada como PatrimónioHistórico-Cultural de Angola, transfor-mou o espaço que era um símbolo daocupação colonial construída entre1935 e 1945, e que antes da Indepen-dência Nacional, era a Praça Manuel deArriaga, num local de honra ao primeiropresidente angolano.O Executivo angolano vai dar, dora-vante, uma atenção particular à mobili-zação de efectivos para a investigaçãodas temáticas da História e da Culturade Angola, com a criação de parceriascom instituições académicas, com vistaa desenvolver-se os estudos sobre todoo vasto universo da diversidade cultu-ral angolana”, frisou a ministra.

AMPLIAÇÃO DA REDE DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS“A celebração do Dia da Cultura Na-cional é sempre motivo para revisitar eevocar alguns aspectos de realce donosso património cultural material,imaterial e da nossa história”, afirmou atitular do pelouro da Cultura, Rosa Cruze Silva, no acto central do Dia da CulturaNacional, festejado dia 8 de Janeiro nopavilhão Osvaldo Serra Van-Dúnem. Namanhã do mesmo dia, era inaugurada aBiblioteca Provincial do Huambo, no pe-rímetro dos órgãos do Estado da capitaldo Planalto Central. A animar o acto, este-ve no passeio fronteiriço uma festa demulheres do grupo Katyavala do Bailun-do, ao ritmo de tambores e canções.A Biblioteca do Huambo tem capaci-dade para dispor de 25 mil livros. Na suainauguração, o acervo iniciou com adoação, pelo Instituto Piaget, de 1.500obras de várias áreas e diferentes níveisdo ensino, de autores consagrados in-ternacionalmente. Estas obras, segundofrisou no local o representante do Insti-tuto, Domingos Petterson, vão contri-buir para despertar e enriquecer os jo-vens, professores, investigadores e po-pulação em geral com vista a aprofun-dar os seus conhecimentos. A constru-

ção desta imponente biblioteca ancorana “visão do Chefe do Executivo, o Presi-dente José Eduardo dos Santos, queorientou a ampliação da Rede das Bi-bliotecas públicas, cujo diploma serábrevemente aprovado e nos permitiráter em cada província equipamentoscom estas características, pois esta obraobedece aos mais altos padrões técnicospara o efeito, e assim garantir uma me-

lhoria de serviços à nossa população”,realçou Rosa Cruz e Silva.Em consonância com o escopo da no-va biblioteca, o ministério da Cultura in-seriu nas actividades alusivas à memó-ria do Dia Nacional da Cultura o lança-mento a público da obra Massamba,Prémio Literário Sagrada Esperança2014, da autoria de Marigan, pseudóni-mo literário de Manuel Adriano Paulo.No acto de apresentação da obra ven-cedora, António F. Costa, presidente dojúri, disse que “o que destacou Massam-ba das restantes obras concorrentes foisubstancialmente o seu pendor inventi-vo, a criatividade e o carácter imaginá-rio que a marcou. Trata-se de uma obraem que a temática central gira à volta dafelicidade humana, através da interven-ção sagrada de seres mitológicos e me-diante o combate aos males e compor-tamento negativos que arruínam as so-ciedades, como o ódio, a inveja e a con-denação gratuita.”PRESERVAR O PATRIMÓNIO

IMATERIALNo discurso oficial alusivo ao Dia daCultura Nacional, celebrado este ano na

bela cidade do Huambo, a ministra RosaCruz e Silva destacou o lema “Pela preser-vação do nosso Património Imaterial de-fendamos o Cancioneiro Popular”. A mi-nistra afirmou que as comunidades con-tinuam a transmitir as tradições e a man-

Bandeira de Angola no topo da Pedra de Candumbo

O marco de reconhecimento institucional

Marco colonial em Candumbo

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ECO DE ANGOLA| 5Cultura | 18 a 31 de Janeiro de 2016

tê-las e, por outro lado, a dar-lhes um cu-nho novo quando o assunto é a adapta-ção ao contexto actual da modernidade. Na linha das recomendações daUnesco que apontam para a formaçãodos agentes que irão doravante proce-der ao levantamento desse mesmo pa-trimónio, Rosa Cruz e Silva disse que “aabordagem do cancioneiro popular tra-dicional é um desafio que se impõe e cu-jo sucesso só dependerá do engajamen-to das comunidades e de todos nós. Cre-mos que a recuperação das canções,dos jogos e passatempos, consagrando-os na contemporaneidade, inserindo-os nos círculos escolares, fazendo bem

ao corpo e à mente, reforçarão o senti-do de identidade cultural e o sentidopatriótico das nossas crianças.”Em conversa que o jornal Culturamanteve com um especialista nesta ma-téria, António Fonseca, assessor da mi-nistra da Cultura, este elucidou que “a ce-lebração do Dia da Cultura Nacional trou-xe à tona, de maneira vincada, a proble-mática do património cultural imaterial,aquele em que se expressam e vivem astradições, no que ganham relevo os pro-

vérbios, os contos e as canções. O motelançado na ocasião por Sua Excelência aSenhora Ministra da Cultura, Drª RosaCruz e Silva, quanto a existência de umcancioneiro nacional, é um desafio que seimpõe.Em nossa opinião, a elaboração, oumelhor, a consagração de um cancionei-ro nacional, deve ter em conta vários as-pectos como o são a história, os contextosde cada época, assim como a popularida-

de e notoriedade dos temas, bem como adiversidade cultural, por um lado, e a ex-pansão territorial de tais temas, por ou-tro. Por outro lado, cremos que se deveráter em linha de conta que a tradição não éestática e que, portanto, ao lado de cria-ções antigas, anónimas, que permane-cem e se reproduzem, outros temas sur-giram e se consagraram.uma primeiraabordagem e como ponto de partida para“conversas” em torno do tema “ cancio-neiro”, podemos encarar a sua estrutura-ção, com base nos seguintes grandes gru-pos que, naturalmente, não deixariam deter em conta a respectiva tipificação, combase no fim das mesmas:- Canções Populares Tradicionais,em que tomam relevo o canto-fábula, ascanções educativas, as canções festivas.Dão-se como exemplo os temas Mboio,Njila a Kongo, Venância, Tciungue…- Canções Patrióticas ( ou correlac-tas). Dão-se como exemplo os temas Ta-

ta ku matadi, ula upe, kaputo mwa ngo-lê, muxima,…- Canções recreativas. Dão-se comoexemplo os temas, Eme Pemba, KopeSanda Losa, Ku musambe mbiji a yolola,salalé três três, kalingindon, vinte cin-co, garrafinha, mayé mayé, etc.- Novas criações. Dão-se como exem-plo os temas Meninos do Huambo, Man-daram-me uma cabaça, Canção do Jardimdo Livro Infantil, Professor, Humbiumbi.”

Monumento do primeiro presidente na Praça Agostinho Neto

Maria Piedade, directora do Instituto Nacional do Patrimó-

nio Cultural, lendo o decreto

Katyavala do Bailundo, ao ritmo de tambores e canções

Biblioteca Provincial do Huambo

Ministra da Cultura entrega o prémio a Marigan

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MAWUTOKOJI MA DIZWI DYA KIMBUNDU CURIOSIDADES DA LÍNGUA KIMBUNDU

SOBRE A SÍLABA TÓNICA DOS VERBOS EM KIMBUNDU

Numa aula de iniciação à línguaKimbundu, o professor alertara que aslínguas nacionais deviam ser escritassem acentos. Instado a pronunciar-sesobre o caminho a seguir, Kitumba,aluno e chefe de turma, sugeriu que ti-nha uma ideia de como caçar ou defi-nir a sílaba tónica de alguns verbos emKimbundu. Sob os apupos dos que o ti-nham em mau lugar nessa disciplina,levantou-se e começou a expôr o que amente lhe ia dizendo. – Sr. Prof. Gas-tão, caros colegas. Quero começar,afirmando que:Se numa recta orientada conside-rarmos K= cardinal das sílabas de umverbo, teremos: …(k-n), … (k-3), (k-2), (k-1), (K). Assim, se a sílaba tónicafor a última, o acento tónico situa-seem Y=K-1. Será Y=K-2 se a sílaba tó-nica for a antepenúltima e Y= (k-n) sea sílaba tónica situar-se no infinito.Se atendermos que a sílaba tónica dequalquer INFINITIVO da língua Kim-bundu, em geral, é a penúltima síla-ba, teremos, genéricamente falando,a sílaba tónica em Y=K-1 com K»2;K«8 (dada a raridade da existência de

palavras com mais de 8 sílabas emKimbundu, onde kujimbulukidila=7sílabas) como das expressões commaior número de sílabas dos verbosda língua Kimbundu.O CASO DE UM VERBO DISSILÁBICOSeja o verbo KUTA (pôr, colocar,…),onde a sílaba tónica se acha em Y=K,última sílaba, ou seja: … (k-3), (k-2),(k-1), (K). A conjugação na FormaAfirmativa, demonstra que o Presentedo indicativo tem a sua sílaba tónicaem: Y=K na 1ª. Pess. Sing. Ngita (po-nho). Y= (K-1) na 2ª. E 3ª. Pess.Sing.Uta (pões/ põe). Y= (K-1) na 1ª.Pess. Pl. Tuta (pomos). Y= (K-1) na 2ª.Pess. Pl. Nuta (pondes). Y= (K-1) na3ª. Pess. Pl. Ata (põem). Se a sua con-jugação negativa tiver o seguinte for-mato, Y= (K-1) está na 1ª. Pess. Sing.Ngitami (não ponho). Y= (K-1) estána 2ª. Pess. Sing. Kute (não pões). Y=(K) está na 3ª. Pess. Sing. kate (nãopõe). Y= (K-1) está na 1ª. Pess. Pl. Tu-tetu (não pomos). 2ª. Pess. Pl. Nutenu(não pondes). Y= (K-1) está na 3ª.Pess. Pl. Kata (não põem).

Futuro (Forma Afirmativa): 1ª.Pess. Sing. Ngondota (porei, Y=k-1).2ª. Pess. Sing. Wondota ( porás/hás-de pôr). 3ª. Pess. Sing. Wondota– porá. 1ª. Pess. Pl. Twondota (po-remos/ havemos de pôr). 2ª. Pess.Pl. Nwondota (poreis. 3ª. Pess. Pl.Andota – porão.Futuro (Forma Negativa): 1ª. Pess.Sing. Ngondotami ( não hei-de porei),(Y=k-1). 2ª. Pess. Sing. kwondote –não hás-de pôr. 3ª. Pess. Sing. Kando-te (não há-de pôr), Y=K. 1ª. Pess. Pl.Twondotetu (não havemos de pôr),Y=k-1. 2ª. Pess. Pl. Nwondotenu –não haveis de pôr, (Y=K-1). 3ª. Pess.Pl. Kandota (não hão-de pôr), (Y=K).Pretérito Mais Que Perfeito (formaAfirmativa): 1ª. Pess. Sing. Ngatele(pusera/ tinha posto) (Y=k-1). 2ª.Pess. Sing. Watele – puseras/ tinhasposto) (Y=k-1). 3ª. Pess. Sing. Watele(pusera/ tinha posto). 1ª. Pess. Pl.Twatele (puséramos/ tínhamos pos-to) (Y=k-1). 2ª. Pess. Pl. Nwatele –puséreis/ tínheis posto. (Y=k-1). 3ª.Pess. Pl. Atele (puseram/tinhamposto) (Y=k-1).Na sua forma reflexa, o Futuro doVerbo Pôr-se=KUDITA, faz deslocara sua sílaba tónica na última sílaba,ou seja: 1ª. Pess. Sing. Ngondodita(pôr-me-ei). 2ª. E 3ª. Pess. Sing. Won-dodita (pôr-te-ás/ pôr-se-á). 1ª. Pess.Pl. Twondodita (pôr-nos-emos). 2ª.Pess. Pl. Nwondodita (pôr-vos-eis).3ª. Pess. Pl. Andodita (pôr-se-ão).Deste modo, poder-se-á afirmar quepelo menos neste tempo verbal, oacento tónico situa-se na última síla-ba, ou seja, de: (K-n), ….(k-3), (k-2),(k-1), (K), vem Y=K.Grande parte dos verbos da LínguaKimbundu, tem a sua sílaba tónica napenúltima sílaba, o que significa di-zer que se o número de sílabas for re-presentado por Y=K, com K»1, a síla-ba tónica está em (Y= K-1). Na análiseda conjugação de qualquer verbo, emtodos os seus tempos verbais da For-ma afirmativa, Y=K-1 está semprepresente. Exceptuando eventuais ca-sos onde a sílaba tónica se ache na an-tepenúltima sílaba, teríamos Y=K-2,ou seja: … (k-3), (k-2), (k-1), (K).SEJA O VERBO FALAR (KUZWELA)Assim, como exemplo, considere-mos o VERBO FALAR, pronunciar, di-zer, afirmar,…(KUZWELA). Presentedo Indicativo: 1ª. Pess. Sing. Ngizwe-la (falo).2ª. E 3ª. Pess. Sing. Uzwela(falas/fala). 1ª. Pess. Pl. Tuzwela (fa-lamos) . 2ª. Pess. Pl. Nuzwela (falais).3ª. Pess. Pl. Azwela (falam). Em sín-

tese para a análise da sílba tónica doPresente do Indicativo, na sua FormaAfirmativa, situa-se em Y=K-1, ou se-ja: … (k-3), (k-2), (k-1), (K).Na Forma Negativa vem: 1ª. Pess.Sing. Ngizwelami (não falo). 2ª.Pess. Sing. Kuzwele (não falas). 3ª.Pess. Sing. Kazwele. 1ª. Pess. Pl. Tuz-weletu (não falamos). 2ª. Pess. Pl.Nuzwelenu (não falais). 3ª. Pess. Pl.Kazwela (não falam). Na Forma Ne-gativa do Presente do Indicativo, a sí-laba tónica varia de posição, tal comose segue:Na 1ª. Pessoa do Singular; na 1ª. E2ª. Pessoa do Plural a sílaba tónica estásituada em Y=K-1, ou seja, na penúlti-ma sílaba. (k-3), (k-2), (k-1), (K). Na 2ª.E 3ª Pessoa do Singular o acento tónicoestá situado na última sílaba ou sejaestá em Y=K. … (k-3), (k-2), (k-1), (K).Na 2ª. E 3ª. Pessoa do singular asílaba tónica está situada em Y=K,com K»1, ou seja, o acento tónico si-tua-se na última sílaba. (k-3), (k-2),(k-1), (K). Na 1ª. E 2ª. Pess. Pl., a síla-ba tónica está situada em Y= K-1, ouseja: (k-3), (k-2), (k-1), (K). Na 3ª.Pess. Pl. , a sílaba tónica está situadaem Y= K, ou seja: (k-3), (k-2), (k-1),(K). Se se antepuser KI para a deter-minação do verbo na forma negati-va, (a parte referente ao verbo man-tém-se em Y=K-1. Se a condição para a negação naConjugação Negativa do Presente doIndicativo for a anteposição de KI (1ª.Pess. Sing. ki ngizwela – não falo; 2ª.E 3ª. Pess. Sing. ki uzwela – não falas/não fala; 1ª. Pess. Pl. ki tuzwela – nãofalamos; 2ª. Pess. Pl. ki nuzwela – nãofalais; 3ª. Pess. Pl. ki azwela – não fa-lam) , a sílaba tónica desta conjuga-ção, situa-se em Y=K-1, ou seja, (k-3),(k-2), (k-1), (K). A abdicação de KI como condiçãopara a negação, resulta numa deslo-cação da sílaba tónica que varia entre(Y=K-1) e (Y=K) com K igual ao nú-mero de sílabas, ou seja: 1ª. Pess.Sing. Ngizwelami. 2ª. Pess. Sing.Kuzwele. 3ª. Pess. Sing. Kazwele. 1ª.

MÁRIO PEREIRA

ILUSTRAÇÃO DE MANUEL VENTURA

6 | LETRAS 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Cultura

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Singela. Sente-se nela. E nela, en-contram-se, ainda que em pedaços,um pouco embelezado pela nortadadas viagens. Cores também. Cheiros.Inclusivamente os bancos à beira daestrada, tão iguais aos que já vira, tãoserenamente, por um qualquer jar-dim tantas vezes encoberto pela ne-ve. Poderia até dizer estar, por exem-plo, em Bratislava. Desviados da ra-zão, num voo sonhado, requinte su-blime, sobre a maresia díspar da tuavoz, acoplada enfim, num transporteaéreo de qualquer nação, rumo ao in-terior dos momentos desejados, sa-ber enfim, será sempre uma questãoóbvia, sentir em todos os passos ofrio do espaço. O arrulhar brando,sob as terras secas dum verão sonha-do, sensível café matinal, caminhada,bem perto, os ralhos lentos da maré

acordada, fumegando ansiedades,ou que apelavam corpos nunca lábem-vindos, passo a passo, ante opasseio recolhido da vida galgando, amiragem por lá, urgente, mal seabriam os olhos, perante tal sorriso,tal pranto, cigarra às avessas na ave-

nida como um espinho bailando, oudo torneio ali, vólei de praia até denovo regressar, mimar sequioso re-lento dos teus deveres sequentes esentidos, o ruído à viatura, deixa delado este banco de jardim num largocercado, rede por todos os lados e

ainda assim seguia, ciranda solenecaminhava, até mais não alcançaremos olhos virados ao largo sem sol,perto da praia. (do romance OS MESES NO SEPULCRO,

ainda inédito)

Pess. Pl. Tuzweletu (não falamos).2ª. Pess. Pl. Nuzwelenu (não falais).3ª. Pess. Pl. Kazwela (não falam).PRETÉRITO PERFEITO. (AFIR-

MATIVA). A SÍLABA TÓNICA1ª. Pess. Sing. Ngazwela (falei). 2ª. E3ª. Pess. Sing. Wazwela (falaste/fa-lou). 1ª. Pess. Pl. Twazwela (falamos).2ª. Pess. Pl. Nwazwela (falastes). 3ª.Pess. Pl. Azwela (falaram). Aqui, emY=K-1, está a sílaba tónica.PRETÉRITO PERFEITO. (NEGA-

TIVA). A SÍLABA TÓNICA1ª. Pess. Sing. Ki ngazwela/ ngaz-welami (não falei). 2ª. Pess. Sing. Kiwazwela/kwazwele (não falaste). 3ª.Pess. Sing. Ki wazwela/kazwele (nãofalou). 1ª. Pess. Pl. Ki twazwela/twazweletu (não falamos). 2ª. Pess.Pl. Ki nwazwela/nwazwelenu (nãofalastes). 3ª. Pess. Pl. Ki azwela/ kaz-wela (não falaram). A sílaba tónicavaria de (Y=K-1) a Y=K. na 1ª pessoasitua-se na penúltima sílaba, entãoY=K-1. Na 2ª. Pessoa situa-se emY=K-1 e Y=K, ou seja, pode ser penúl-tima com KI a antepôr-se à conjuga-ção, e também última sem KI.

PRETÉRITO MAIS-QUE –PERFEITO.AFIRMATIVA. SÍLABA TÓNICA1ª. Pess. Sing. Ngazwelele (fala-ra/ tinha falado). 2ª. E 3ª. Pess. Sing.Wazwelele (tinhas/ tinha falado/fa-laras/ falara). 1ª. Pess. Pl. Twazwe-lele (tínhamos falado/ falaramos).2ª. Pess. Pl. Nwazwelele (tínheis fa-lado/ falaram). 3ª. Pess. Pl. Azwele-le (tinham falado/ falaram). Vê-se,então que na forma afirmativa doPretérito Mais-Que-Perfeito, o acen-to tónico está posicionado na penúl-tima sílaba, ou seja, está em Y=K-1,segundo o sistema de coordenadascartesianas, convenhamos, ou seja,(K-n), ….(k-3), (k-2), (k-1), (K).

PRETÉRITO MAIS-QUE –PERFEI-TO. NEGATIVA. SÍLABA TÓNICA1ª. Pess. Sing. Ki ngazwelele/ngazwelelyami: Y=K-1. (não tinhafalado/ não falara). 2ª. Pess. Sing. Kiwazwelele/ kwazwelelye: Y=K-1/Y=K. (não falaras/ não tinhas fala-do). 3ª. Pess. Sing. Ki wazwelele/kazwelelye: Y=K-1/ Y=K. (não fala-ra/ não tinha falado). 1ª. Pess. Pl. Kitwazwelele/ twazwelelyetu (não fa-láramos/ não tínhamos falado). 2ª.Pess. Pl. Ki nwazwelele/ nwazwele-

lyenu (não tínheis falado/ não falá-reis). 3ª. Pess. Pl. Ki azwelele/ kaz-welelya: Y=K-1/ Y=K. (não tinhamfalado/ não falaram).PRESENTE DO CONJUNTIVO.

AFIRMATIVA. SÍLABA TÓNICA1ª. Pess. Sing. Nda ngizwele (queeu fale). 2ª. E 3ª. Pess. Sing. Nda uz-wele (que fales/que fale). 1ª. Pess.Pl. Nda tuzwele (para que falemos).2ª. Pess. Pl. Nda nuzwele (para quefaleis). 3ª. Pess. Pl. Nda azwele (paraque falem). No Presente do Conjunti-vo, na sua forma afirmativa, o acentotónico situa-se na penúltima sílaba.Logo, y=K-1, é o seu lugar.PRESENTE DO CONJUNTIVO.

NEGATIVA. SÍLABA TÓNICA1ª. Pess. Sing. Nda ngilembwe kuz-wela (que eu não fale). 2ª. E 3ª. Pess.Sing. Nda ulembwe kuzwela (que nãofales/que não fale). 1ª. Pess. Pl. Ndatulembwe kuzwela (para que não fale-mos). 2ª. Pess. Pl. Nda nulembwe kuz-wela (para que não faleis). 3ª. Pess. Pl.Nda kazwele (para que não falem). NoPresente do Conjuntivo, na sua formanegativa, o acento tónico pode situa-se na penúltima sílaba. Logo, y=K-1, é

o seu lugar.CONDICIONAL. AFIRMATIVA. SÍ-LABA TÓNICA1ª. Pess. Sing. Ngonzozwela (fala-ria). 2ª. E 3ª. Pess. Sing. Wonzozwela(falarias/falaria). 1ª. Pess. Pl. Ton-zozwela (falaríamos). 2ª. Pess. Pl.Nwonzozwela (falaríeis). 3ª. Pess. Pl.Anzozwela (falariam). Aqui, a sílabatónica reside em Y=K-1.CONDICIONAL. NEGATIVA. SÍ-

LABA TÓNICA1ª. Pess. Sing. Ngonzozwelami(não falaria) Y=K-1.. 2ª. Pess. Sing.Kwonzozwele (não falarias) Y=K. 3ª.Pess. Sing. Kanzozwele (não falaria)Y=K. 1ª. Pess. Pl. Tonzozweletu (nãofalaríamos) Y=K-1.. 2ª. Pess. Pl.Nwonzozwelenu (não falaríeis) Y=K-1.. 3ª. Pess. Pl. Kanzozwela (não fa-lariam) Y=K.Faltavam cinco minutos para a aulaterminar e o prof. Gastão, agradecendoo esforço do aluno tentar definir aspec-tos ligados à compreensão do lugar dasílaba tónica na língua kimbundu, aler-tou que o seguimento do tema teria lu-gar na próxima aula, pedindo que sepreparassem para o efeito.

(uma miragem urgente)

VICTOR BURITY DA SILVA

Obra de Guizef

LETRAS| 7Cultura | 18 a 31 de Janeiro de 2016

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MATADI MAKOLACom António Miguel Francis-

co ´Calabeto´ colhemos, entreoutros assuntos, a nobre inten-ção do Semba galgar de formaconsistente por outras terrasalém de Angola, o sonho de serritmo das paradas internacio-nais e ser fonte de outras fusõespor se encontrar nele.

Jornal Cultura - Como vê osemba nestes frescos anos de2000?Calabeto -Vejo o semba de umaforma extremamente positiva. Otempo corre e a vida passa, nada éestático. Houve um certo desen-volvimento de acordo a dinâmicaque a própria vida nos impõe e amúsica não foge à regra. Nós, quan-do começamos, isto lá para a déca-da de 50, também encontramos osmais velhos com quem aprende-mos e não estagnamos. A partir daíimprimimos outra visão e fomosdesenvolvendo, e, só para dar umaideia, a titulo de exemplo, quandocomecei a cantar o semba era deuma rotação muito rápida. Hoje játemos o semba cadenciado e a sua

integração obriga a constituiçãode teclados, metais, coisas que an-tes não acontecia. Estamos diantede um quadro em que o semba temtudo para evoluir muito mais. Mastambém é bem verdade que temque se trabalhar mais para a ex-pansão do semba, porque ele nãosai e está tudo confinado em Ango-la. Será preciso trabalhar para quese afirme como as outras músicasafricanas, que hoje conquistaramlugares de destaque em paradasinternacionais. Porque nós esta-mos ainda um bocadinho parado.JC - Acha que o governo deve-

ria intervir?Calabeto -Eu acho que sim. Por-que nos, os músicos, não temos ca-pacidade financeira. Isto tem cus-tos e só o Estado é que tem possibi-lidades para esse fim. Por mais quea gente tente, não conseguiremos.Nos anos oitenta a então Secreta-ria de Estado da Cultura organiza-va a Quinzena de Intercâmbio Cul-tural,por força da parceria quemantinha com alguns países. É as-sim que muitos de nós chegamos aactuar em muitos países e os can-tores estrangeiros também vi-

nham para cá. Só que isso parou,desconhecemos os motivos e esta-mos aguardando esperançosospor melhores dias.JC - Este período das roupa-

gens abusivas pode ser bom pa-ra o semba?Calabeto -Bom, é um fenómenoque nós temos de trabalhar paradescobrir o que realmente se pas-sa. Por exemplo, eu conheço músi-cas que têm 50 anos de existência equando tocam toda a gente se le-vanta para dançar. Mas muito con-cretamente, não sei o que realmen-te se passa. No meu caso, há a músi-ca ́ Ngui dia ngui nua´ que até hojeas pessoas ainda me pedem paracantar com grande fulgor. É bemverdade que a inovação existe e elatem de existir, porque a vida é di-nâmica. Quanto a intenção dos jo-vens para a evolução do semba, elatem de ser feita com alguma aten-ção, porque se exagerarem corremo risco de deturpar aquilo que é deraiz, e acho que uma das questõesfundamentais está na forma da suacomposição e estilização para pos-teriormente ser apresentada aopúblico.

JC - O que está a acontecer?Calabeto -Por exemplo, nós te-mos jovens que têm se saído muitobem. Mas o que é que eles fazem eque muita gente não concorda: va-mos ver, um jovem cantor pega namúsica do Robertinho tal e qual co-mo é e vai gravar. Mas isto não énada, porque melhor seria o pró-prio Robertinho a cantar.JC - O dinheiro feito com as

roupagens…Calabeto -Quanto a isso, aUNAC e a SADIA em tempo oportu-no virão a público para definirquem é quem e a partir daí come-çarmos a lidar melhor com essascoisas. Porque não podemos per-mitir o que tem estado a acontecer.É inadmissível! Um camarada pegana música de um outro artista vaipara aí e para lá, ganha concursocom a música do outro e ainda semrespeito e consideração ou remu-neração pelo autor da música. Infe-lizmente, é isso que ainda aconteceem Angola. As entidades compe-tentes vão cuidar deste assunto etudo correrá melhor.

O desejo de Calabaeto“TEM QUE SE TRABALHAR MAISPARA A EXPANSÃO DO SEMBA”

8| ARTES 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Cultura

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DIÁLOGO INTERCULTURAL | 9Cultura | 18 a 31 de Janeiro de 2016

AFRICANIDADEESPAÇO E TRADIÇÃO

ESPECIAL ENCARTE

Griot sentado com um mandolim

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10 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Cultura

MAURÍCIO WALDMAN 2

Em memória a Antônio Lúcio Nogueira (1945-2015),campeão do jornalismo negro brasileiro.

Saudades das conversas sem fim. Saudades da presença.Saudades do fraterno amigo!

I - ALGUMAS REFLEXÕES INICIAISEste texto está voltado para a in-terpretação de um relato, Sundjataou A Epopeia Mandinga, que o histo-riador senegalês Djibril Tamsir NIA-NE (1982), através de um rigorosotrabalho de pesquisa coletou da tra-dição oral africana. Tal tradição en-contra nos griots um de seus maisnotáveis expoentes. De marcanteatuação nas sociedades da ÁfricaD’Oeste ou Ocidental, é assim quesão chamados os tradicionalistas, osbardos, os contadores de história aosquais recorreu D. T. Niane em seutrabalho de investigação.O relato reúne os notáveis feitosque cercam a memória do imperadorSundjata Keita, soberano do Mali, “Se-nhor do umbigo do mundo”, “Pai dopaís luminoso”, “Herói dos cem reisvencidos” e “Senhor dos múltiplos no-mes” (NIANE, 1982:12/13). O resgateda atuação de Sundjata e dos fatos quecercam seu reinado (entre 1230 e1255 d.C.), levou em consideração es-ta memória viva consignada na ativi-dade secular (ou mesmo milenar) dosgriots, interlocutores de uma cosmo-visão - referendada como negro-afri-cana - que tem na oralidade uma das

suas notas mais características.Confundindo beleza e concisão, nanarrativa é possível identificar as pre-figurações tradicionais africanas deespaço e de tempo. Sobremaneira,elas importam por definirem um mo-delado simbólico, uma geografia sen-sível nas quais repousa o relato, sendoseu conhecimento vital para uma exa-ta compreensão dos episódios da Epo-peia. Esta “cartografia”, imbuída degrande singularidade, reporta direta-mente ao que se pode denominar co-mo África Profunda 3 .Embora centrada num personagemfortemente islamizado - o próprioSundjata Keita, imperador do Mali - anarrativa está estruturada numa pai-sagem topológica que não permite aSundjata no interior do relato, itinerá-rios outros que não os ditados por umregramento tradicional do espaço-tempo. Representativa de concepçõesque perduram indelevelmente naconsciência social africana, a narrati-va é originária de um contexto históri-co no qual o islamismo já havia se pro-pagado em meio às elites dos Impériosde todo Sudão Ocidental 4 . Malgrado, e a despeito de uma in-fluência muçulmana que em muitoscasos foi indutora de influências ex-ternas à África tradicional, SundjataKeita, apresentado em toda a narrati-

va como autêntico herói fundador oucivilizador, termina via-de-regra ab-sorvido ou cooptado pelas referên-cias inerentes ao poder tradicional.Como recorda Georges BALANDIER,o poder tradicional é bastante astu-cioso, não se deixando aprisionarcom facilidade. Frequentemente, elesubverte as forças que pretendemdominá-lo, inclusive pela manipula-ção simbólica dos signos dominantes(Vide 1976, 1969 e 1988). Conformedemonstraremos mais adiante, a to-pografia imaginária que molda o nú-cleo da narrativa constitui importan-te aporte teórico para o debate relati-vo aos sistemas políticos africanos,cuja especificidade tem sido clara-mente delineada em diversos estu-dos clássicos da antropologia política(Ver entre outros, FORTES et EVANS-PRITCHARD, 1981).Nesta perspectiva, o Império doMali, enquanto um Estado Tradicio-nal (BALANDIER, 1969), teria, poisseu estudo incluído num rol bemmais amplo de preocupações e inte-resses. Constituindo uma das maisadmiráveis construções políticas dahistória da humanidade, este impériofoi uma das grandes formações esta-tais do passado. Estruturado com ba-se em um Compartimento Territorial(WALDMAN, 1992B e 1994), drena-

do pelo curso de grandes rios - dentreestes o Senegal e o Níger (ou Djolibano idioma mandenka) - e espalhan-do-se soberanamente pela savana 5 ,o Mali caracterizou-se por uma eco-nomia pujante, respaldando um forteintercâmbio comercial que escoavaatravés de inúmeras rotas comerciaisque demandavam na direção dos paí-ses do Golfo da Guiné, do SudãoOriental, do Magreb e do Egito (VerMapas 1 e 2).Ocupando, em seu apogeu uma vas-ta extensão territorial, o Mali reuniaem seu interior uma multiplicidade deetnias, uma estrutura político-cultu-ral para cuja gênese e perpetuaçãoconcorreram formas genuinamenteafricanas de compreender a parceriainelutável do espaço para com o tem-po. Este império, como o precedenteImpério do Ghana (do Século IV-XId.C.) e o Songhay, que o sucedeu (Sé-culos XIV-XV d.C.), aparte a islamiza-ção dos interstícios da sociedade tra-dicional, caracterizou-se por um fortesubstrato cultural africano. Apoian-do-se, pois em fortes inferências comeste aporte - em boa parte mantendo-se na sua essencialidade - relacionarmecanicamente o Mali ao mundo ara-bo-muçulmano constitui conclusãogenérica e imprudente 6 .Neste sentido, esta explanação es-

A TOPOLOGIA DO IMAGINÁRIO ESPACIALTRADICIONAL AFRICANONA FALA GRIOT SOBRESUNDJATA KEITA DO MALI 1

Desenho da cidade de Timbuktu

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tará preocupada em frisar a especifici-dade de padrões culturais que FábioLEITE, com muita propriedade, cate-goriza como valores civilizatórios emsociedades negro-africanas (1984:33-57). Tais valores são constitutivosde um complexo conjunto de sistemassimbólicos, aprofundados durante vá-rios milênios, indistinguíveis e indis-sociáveis da África eterna, de sua psi-cologia, de sua consciência social, dosseus deuses, da sua concepção de fa-mília, de organização social, política eeconômica, do metabolismo mantidopor estas sociedades com seu entornonatural imediato e, no tocante com aspreocupações deste estudo, com suasinterpretações do espaço e do tempo.Neste particular, cabe lembrar queno território que se estende das fran-

jas do deserto do Saara ao extremoSul do continente africano, ou seja, aÁfrica Negra, ao lado da diversidadede práticas culturais, existem con-cepções profundas compartilhadaspor centenas de grupos, tanto naárea cultural Bantu, quanto na Suda-nesa 7 . Esta fisionomia comum, cha-mada Civilização no singular, ou en-tão, para frisar uma terminologiamais contemporânea, de Africanida-de, limita-se exclusivamente à ÁfricaSubsaariana, à África dita Negra(MUNANGA, 1984: 30). Por conseguinte, esta conceituaçãonão se confunde com um ponto de vis-ta geográfico, o continente africano,mas exclusivamente denota o modode ser e de pensar do negro africano,peculiar às suas opções históricas, so-

ciais e culturais (Vide LEITE, 1984,MUNANGA, 1984). A presença de si-militudes marcantes, que se mesclamno cotidiano de todos os povos negrosafricanos, permitiria delinear umaunidade civilizatória própria. Trata-se, pois de um padrão civilizatório es-pecífico - a Civilização Negro-Africana- uma dos conjuntos civilizatórios ma-triciais a marcar presença no mundono qual vivemos 8 .Tendo em vista esta preocupação,torna-se inevitável abordar a questãorelativa à noção de força vital, ou maisprecisamente, forças vitais, conceitodifuso em toda a cosmologia e ontolo-gia negro-africana. Como registra Pla-cide TEMPELS (1949), o africano tra-dicional observa o universo enquantouma hierarquia de forças vitais, ocu-

pando o homem o papel de elo de liga-ção entre as forças que habitam os se-res animados e inanimados do univer-so tangível de baixo, com os podero-sos poderes espirituais do alto. Placide Tempels é taxativo quanto àcentralidade deste conceito no pensa-mento tradicional africano. O africa-no, no exercício de suas atividades,persegue incansavelmente o objetivode “adquirir vida, força ou força vitalpara viver fortemente, para fortalecera vida ou para garantir que a força per-dure para sempre na posteridade deum indivíduo” (TEMPELS, 1949: 1).Nesta cosmovisão se reserva ao ho-mem um papel importante. Ele está li-gado por laços imorredouros ao MaaNgala: o Grande Nome, o Ser Supremo,o Criador de todas as coisas, epítetosque no Sudão designam o criador daTerra e de todos os seres vivos. A cria-ção teria no homem seu supremo tu-tor, cabendo-lhe a representação nouniverso tangível de forças infinita-mente mais poderosas (Ver entre ou-tros, NYANG, 1977: 27). Tal concepção, concebendo o ho-mem como eixo central da criação, éa base do humanismo africano. O ho-mem é subentendido como estandoem interação com uma rede de parti-cipações e de exclusões de ordemmágica, impregnadas por forças vi-tais que atuam num espectro que vaidos minerais ao Pré-existente - o SerSupremo. Considerado como o sermais forte da criação, o homem, parao humanismo africano, vincula-sefirmemente aos fluidos, ao sopro vi-tal que fornece um sentido sensívelpara a estruturação do cosmos(TEMPELS, 1949: 2 e 315). Assim, se verdadeiro que este hu-manismo incorpora um cunho antro-pocêntrico (como decerto seria o casode qualquer outra formulação cosmo-lógica tradicional), este antropocen-trismo é, entretanto, diametralmenteoposto ao que irrompe no ocidentecom a modernidade. Contrariamentea esta, a acepção africana escapa daconceituação reducionista que carac-teriza o antropocentrismo ocidental.O africano tradicional não está preo-cupado em revolucionar seu meio am-biente e sumamente, com vistas a umaprodução suficiente, procura agir emparceria com poderosas forças cósmi-cas que observa como disseminadaspela totalidade do universo. O concei-to de força vital, portanto, é indispen-sável para a compreensão do senti-mento de plenitude que integra o afri-cano com seu meio natural e social.Através dela, o africano repudia a con-cepção materialista que antinomizarazão e emoção, luz e sombra, vida emorte, homem e natureza, enfim 9 .Uma outra ressalva bastante perti-nente, associada à noção de força vi-tal, refere-se à opção das sociedadestradicionais africanas em favor daOralidade enquanto veículo de trans-missão de conhecimentos e de umacomunicação social total (Vide MAZ-

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RUI, 1985). Em África, nada substituia potência da palavra. A escrita, “éconsiderada um fator externo à pes-soa, e por esta razão, impacta negati-vamente os processos de comunica-ção” (LEITE, 1992: 87). No passado, opróprio Pré-existente utilizou-se de-la, isto é, “usou sua própria substân-cia configurada em energias, fluídosou sopro vitais para desencadear oprocesso, o qual inclui o mundo e ohomem” (LEITE, idem). Por isso mesmo, os conceitos deforça vital e da palavra são, na ÁfricaNegra, “o elemento primordial da per-sonalidade da sociedade, desdobran-do-se desde as instâncias mais abstra-tas até as práticas sociais” (LEITE,1992:87-88). Verdadeiramente - da-do que indissociáveis - oralidade e for-ças vitais formam ambas um binômiopermanente: força vital-palavra. Nes-te particular, cabe observar que para aÁfrica, o conceito de analfabetismo éabsolutamente estrangeiro. Objetiva-mente, trata-se de uma terminologiaque nega os pressupostos e opçõeshistóricas do homem africano, para oqual a oralidade é que seria a modali-dade historicamente consensada decomunicação social. No continente ne-gro, a oralidade prefigura um conheci-mento total, vinculado a uma perspec-tiva cosmológica peculiar à consciên-cia social negro-africana. É Amadou HAMPATÉ-BÂ, um sábiodo moderno Mali, quem esclarece:“Nas tradições africanas (...) a palavrafalada se empossava, além de um va-

lor moral fundamental, de um carátersagrado vinculado à sua origem divinae às forças ocultas nela depositadas.Agente mágico por excelência, grandevetor de forças etéreas, não era utili-zada sem prudência” (1993: 182). Jus-tamente por este motivo, a maior par-te das sociedades orais tradicionaisconsiderava a mentira, em virtude desua malevolência potencial, uma ver-dadeira lepra moral.Com base nestes pressupostos,pode-se aquilatar o perfil e a impor-tância dos griots no cenário socialafricano. Personagem inseparável dapaisagem da África D’Oeste, os griots(ou dieli no idioma Bambará), cons-tituem um dos vertedouros da tradi-ção oral, não se confundindo com osdoma (ou soma), os grandes detento-res da palavra, que usufruem um co-nhecimento iniciático. Os griots pos-suem um status social especial, con-ferido pela tradição. Eventualmente, caso suas aptidõesos habilitem a tanto, os griots podem -como no caso daqueles aos quais re-correu Djibril Tamsir Niane - torna-rem-se tradicionalistas-doma, gran-des conhecedores das genealogias edas narrativas históricas tradicionais.Sua atuação se reveste de especial im-portância nos termos de uma memó-ria profunda, responsável pelo enten-dimento sensível do tempo históricoem seu entrelaçamento inelutávelcom o espaço. Foi através de sucessi-vas gerações de griots que a memóriaafricana foi fixada, remontando mui-

tas vezes a um passado imemorial 10. Por último, cabe afiançar que, combase nas leituras africanas de espaçoe do tempo, estaremos preocupadosem esboçar alguns contornos refe-rentes à topologia do imaginário afri-cano tradicional. Fundamentadosnestas aferições, poderemos diferen-ciar este espaço-tempo imerso naAfricanidade dos demais que a histó-ria da humanidade trouxe à luz. Umavez mais antecipamos, tais concep-ções são fundamentais para delimitaro Continente da Africanidade, nãoapenas geograficamente, mas naque-la conotação que transforma a ÁfricaEterna num patrimônio universal, va-le dizer, dizendo respeito a todos oshomens e mulheres deste mundo. II - ÁFRICA, TOPOLOGIA E IMAGINÁRIOAnalisar o imaginário espacial afri-cano tendo por preocupação uma ava-liação topológica é, por definição, umatentativa de captar os sentidos simbó-licos que a africanidade empresta à es-pacialidade vivida, criando uma apre-ciação sensível, específica do espaço.Cada cultura, ao elaborar suas signifi-cações sensíveis da espacialidade,educa os sentidos dos componentes deum grupo de forma a capacitá-los aperceberem o espaço de uma maneiraexclusiva, compatível com as suas ex-pectativas de reprodução material eespiritual. A topologia, terminologiapor sinal importada da matemática11 ,diria respeito, portanto, às formas cul-

turalmente elaboradas de se sentir ede se apropriar o espaço. Evidentemente, o espaço Imaginá-rio elaborado por cada cultura, man-tém uma relação de cunho dialéticocom determinada base material. Nostermos em que a antropologia tem de-senvolvido sua produção conceitual,dificilmente poderia ser postuladaqualquer “autonomia” para estas pre-figurações imaginárias do espaço. Elasincorporam novas significações emfunção dos processos históricos, queservem de diretriz toda e qualquer di-nâmica cultural. Tais processos recla-mam para si as alterações das formula-ções topológicas, visto que estas ja-mais podem ser avaliadas em dissocia-ção com práticas sociais concretas. Nas sociedades pré-modernas (ne-las estando incluídas, naturalmente,as sociedades negro-africanas), estareelaboração dos referenciais topoló-gicos dava-se em lapsos considera-velmente amplos de tempo histórico.Esta característica resultaria no quesetores da historiografia ocidentalchegaram a definir como sociedadessem história ou imutáveis. Nesta óti-ca, as sociedades antigas seriam pri-sioneiras da tradição e da repetitivi-dade das normas existentes, excluin-do a renovação e a mudança, geral-mente apelando para postulados jásocialmente consensados.Todavia, visões discriminandouma “estagnação histórica” são nosdias de hoje consideradas absoluta-mente inadequadas e ultrapassadas.

12 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 18 a 31 de Janeiro de 2016 | CulturaCaravana em Timbuktu nos anos 1300

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Assim sendo, tais acepções tem sidolargamente refutadas pelas pesqui-sas com foco nas sociedades tradicio-nais. No que se refere à África Negra,pode-se observar que suas popula-ções se pautavam por um agudo sen-so de história ofertado à fruição dotempo. Para o africano, o tempo nãoera uma entidade estática, mas pelocontrário, conquistava consistência àmedida que fluía na direção do futuro(Ver a respeito, KAGAMÉ, 1975).Ao lado desta advertência, vale assi-nalar que a visão de história no pensa-mento negro-africano, assim como ou-tros epifenômenos culturais, estavafortemente lastreada no conceito deforça vital. Inseparável de uma óticapertinente à África-Sujeito (LEITE,1992: 85-86), ou seja, de sua especifi-cidade, o conceito é indissociável daexplicação dos significados simbólicosque regem o cotidiano africano, aí seincluindo sua historicidade. Exemplifi-cando, a referência atua como um indi-cativo importante para a explicação devários dos significados profundos quecomandam a sequencia da narrativade Sundjata. Explicitamente, as forçasvitais operam na irradiação do espaçoe do tempo, condicionando os desloca-mentos e os eventos que envolvem aimagem do Imperador do Mali 12 .Com base no conceito de força vital,ganham visibilidade os direciona-mentos que permitem diferenciar to-pologicamente a Africanidade não sófrente às interpretações modernas doespaço e do Tempo, mas igualmentecom relação às demais formulaçõesqualitativas, plásticas, pulsantes, sen-síveis, não-matematizadas ou, numaúnica expressão, pré-modernas deaferição do espaço-tempo. Com o con-ceito de força vital, definimos commaior clareza a conjugação específicaque articula espacialidade, temporali-dade e africanidade, destacando-afrente às demais interpretações. A preocupação com a peculiarida-de da África Negra no universo dapré-modernidade justifica-se pelapresença, nas culturas africanas, denoções espaciais e temporais que nu-ma visada superficial, poderiam si-nonimizar a África com outros pa-drões civilizatórios. Tomemos o ca-so, por exemplo, da noção de tempocíclico, que de modo geral, terminasufragada como um padrão univer-sal da pré-modernidade.O tempo cíclico seria um resultadodireto do que Karl Marx e FriedrichEngels convencionariam definir comosociedades caracterizadas por um“fraco desenvolvimento das forçasprodutivas”. Por conseguinte, a circu-laridade do tempo, nas sociedades ar-caicas, resultaria assim da subordina-ção dos humanos aos ritmos da natu-reza. Resultante do entrosamentomantido com os ritmos naturais e comas categorias míticas, a temporalidadetranscorreria na senda de um eternoretorno (ELIADE, 1975), pelo qual otempo se renovaria em intervalos se-riados, demarcados antecipadamente

no calendário ou pela sucessão das di-nastias e dos reinados.No entanto, estas consideraçõessuscitam, por sua generalidade, umasérie de problemas. Isto porque a cir-cularidade pode perfeitamente apre-sentar-se no interior de ordenamen-tos do tempo social cujo padrãomaior é outro. Certificar a existênciade uma interpretação rotatória dotempo não é, em si mesma, indicativade um caráter cíclico geral. Por issomesmo, sua constatação empírica émerecedora de melhor detalhamen-to, sem o qual pode tornar-se, comono caso africano, pouco eficiente parao desvendamento da especificidadede uma acepção do tempo.Neste sentido, a noção não podeser aleatoriamente estendida para asculturas africanas. Embora o africanonão repudie um sentido rotatórioofertado ao tempo, definir sua tem-poralidade exclusivamente a partirdeste parâmetro pode induzir a umasinonimização da África a contextoshistóricos e culturais estruturados apartir de outras - e muito diferentes -opções civilizatórias. Quando a reali-dade estudada é a africana, a cautelanunca é demasiada, pois a África foidentre todos os continentes, o maissacrificado pela aplicação de meto-dologias não-diferenciais. Pensar aÁfrica-Sujeito deve corresponder auma preocupação toda especialquanto ao desvendamento de suapersonalidade histórica e cultural.As características comuns compar-tilhadas pela África com a pré-moder-nidade, quando ressaltadas enquantocritério exclusivo para as definiçõesconduz, deste modo, a um duplo equí-voco. Primeiramente por contribuí-rem para diluir e/ou borrar as inelutá-veis diferenças presentes no chamado“mundo arcaico”13 , transformado en-tão numa realidade monolítica e indi-ferenciada. Em segundo lugar, pela ra-zão de que o enquadramento no cha-mado mundo pré-moderno geralmen-te obedece às pretensões do ocidenteem alçar-se como supremo referen-cial civilizatório. Consequentemente, se verdadeiroque a África comunga de arquétipos eparadigmas espacio-temporais comoutros padrões civilizatórios, deve-seagregar a esta consideração, o parecerde que isoladamente estes dados nãoimplicam numa sinonímia da ÁfricaNegra com a pré-modernidade comoum todo. Sabe-se muito bem que simi-laridades formais não suscitam neces-sariamente uma identidade de propó-sitos e muito menos uma sinonímia deprocessos históricos, políticos, cultu-rais e sociais. Seguir esta linha de ra-ciocínio seria o mesmo que pressuporque para “idênticos resultados” esta-riam correlacionados indispensáveis“meios similares” para alcançá-los.Assim sendo, as discussões relati-vas às noções africanas de espaço ede tempo pressupõem um nexo emi-nentemente antropológico. Isto por-que é neste marco conceitual que são

evidenciados os simbolismos atri-buídos ao espaço, assim como as es-truturas que articulam os diversosníveis e sistemas de representaçãoda temporalidade. Esta abordagemdiferenciada da formas negro-africa-nas de apreender o espaço-tempopermite compreender como ela é ati-vada, constituída e burilada, condu-zindo o pesquisador para dentro deseu objeto e não se entender comoexterior a ele, esta última, uma pos-tura identificada com a chamada “vi-são periférica” (LEITE, 1992). Neste sentido, as reflexões desen-volvidas por Alexis KAGAMÉ (1975)e Placide TEMPELS (1949), estudio-sos muito familiarizados com as for-mas de pensamento negro-africanas,conquistam uma primazia natural.Com estudos dedicados respectiva-mente às concepções de tempo e deforça vital, as contribuições de am-bos, somadas a outras que serão ar-roladas, evidenciam os contornos to-pológicos da Africanidade 14.O imaginário espacial africano,mesmo quando pontualmente homó-logo com outras topologias prove-nientes do mundo arcaico, denota in-quietações cosmológicas próprias ex-clusivamente do universo cultural ne-gro. Em África, a territorialização doespaço nunca se desvinculou de dire-trizes simbólicas, relacionadas compremissas mágico-religiosas estabe-lecidas com base em determinadasopções históricas e culturais, dentreelas, uma relação de parceria com as

pulsões do meio natural com vistas auma produção suficiente.A implantação do artifício no con-tinente africano foi desenvolvidacom o recurso a orientações total-mente desconhecidas no ocidente,determinando uma organização doterritório na qual os conceitos oci-dentais de naturalidade e de artificia-lidade não fazem sentido algum. Aconstrução social do espaço na Áfricaresultou numa configuração de áreasque, num sentido moderno, teriam si-do quando muito, apenas parcial-mente territorializadas, perspectivaque foi ideologicamente manipuladano sentido de que o continente seriapor extensão, selvagem e primitivo. Pode-se evocar o exemplo dos Bija-gó. Ocupando arquipélago homônimona República da Guiné-Bissau, o terri-tório desta etnia foi articulado emconformidade com preceitos cultu-rais engastados a práticas tradicio-nais de agricultura, de pecuária, pes-ca e coleta. Em toda a extensão do ar-quipélago, existem ilhas ou trechosdo território total ou parcialmente in-terditado, governados por toda sortede prescrições, tais como tabus ali-mentares, sexuais ou percorridosunicamente por ocasião de certas fes-tividades, cerimônias ou rituais reli-giosos, todos relacionados com a re-produção do modo de vida desta so-ciedade (Vide SALES, 1994: 3-4). As chefias tradicionais do arquipé-lago - denominadas régulos 15 - dis-criminam imemorialmente o uso do

DIÁLOGO INTERCULTURAL | 13Cultura | 18 a 31 de Janeiro de 2016Mesquita em Djingareibe

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solo e dos recursos naturais, apelandopara sansões místicas, consubstancia-das no representante do clã proprie-tário de cada ilha, o Uamotó ou Odo-motó, não necessariamente um indiví-duo vivo, mas sim seu espírito. Da so-matória das legislações em vigor nes-te território, resulta um espaço ladri-lhado, no qual as proposições mate-riais estão encaminhadas na senda defornecer os mais variados recursosnaturais de forma cíclica e repetitiva,consorciando práticas concretas a ri-tuais religiosos (SALES, idem). Em linhas gerais, a forma de apro-priação do espaço entre os Bijagó po-de ser estendida ao conjunto do conti-nente africano. Ela é demonstrativa deuma cosmovisão que subentende a es-pacialidade como povoada por forçasmágicas, tidas como inerentes à suaconcretude. Neste espaço assim con-cebido, podem ser detectadas forçasvitais que animam desigualmente oterritório. O território, sendo desi-gualmente energizado forma, por con-seguinte, um mosaico no qual se dis-tinguem focos com maior ou menordensidade energética. A distribuição de forças vitais con-trapõe pontos mais quentes (como asflorestas e os bosques sagrados), a ou-tros mais frios ou inertes (como as al-deias e os campos cultivados). Todosestes elementos são visualizados eapreendidos simbolicamente pelo ho-mem africano de forma tal que, muitasvezes aquilo que o ocidental observa-ria como natureza, trata-se, na óticada população tradicional, de umamarca espacial concernente à sua vidaprática, ou seja, parte do que ela pode-ria conceber como artificial.Obviamente, esta energização di-ferenciada do espaço, estaria relacio-nada ao seu caráter heterogêneo. Pa-ra o africano tradicional, a concepçãode um espaço uniforme, regrado porfinalidades laicas ou objetivas, é in-concebível. A espacialidade está sem-pre ladrilhada em segmentos comfunções, virtudes e valores afetivosespecíficos. O fato da espacialidadena África Negra estar apoiada, quan-to à sua articulação, em fluxos natu-rais, derivava num cadenciamentopulsante do espaço. A espacialidadedeclina de antemão da imposição demarcos rígidos, de fronteiras fixas ede limites carpintejados. Assim, o espaço pode, como entreos Gourmantché do Gobnangú, na Re-pública do Burkina Fasso, amoldar-seao sabor da sucessão do dia e da noite.Para este povo, os limites do territórioda aldeia e do Fuali (área simbolica-mente associada aos animais selva-gens e à vegetação espontânea), eramfluídos, oscilando em razão dos ciclosdiurnos e noturnos. O surgimento doSol coincidia com a dilatação do espa-ço da Aldeia, detendo-se nos primei-ros marcos da floresta. À noite, esteespaço recua em favor do Fuali, que apartir da mata, penetrava então no es-paço do aldeamento, chegando a infil-trar-se no interior das habitações (Vi-

de CARTRY, 1989: 280-281).Em África, o juízo pelo qual a espa-cialidade está impregnada de forçasvitais, influenciava nitidamente as es-tratégias de socialização e de relacio-namento com o meio natural, assimcomo um variado jogo de simbolismosespaciais. A valorização de determi-nados espaços associava-se ao enca-minhamento de práticas cerimoniais,que tanto legitimavam quanto refor-çavam o simbolismo de áreas entendi-das como privilegiadas com relação àdecantação de energias vitais. Comono caso do Poro, um rito de iniciaçãodesenvolvido entre os Senufo da Sava-na costa-marfinense, a cerimônia ini-ciática, vital para a formação da perso-nalidade profunda, objetivando san-cionar a passagem do indivíduo para ogrupo de idade dos adultos, era reali-zado em um bosque sagrado denomi-nado localmente de Sizanga.Estes rituais são desenvolvidos emespaços diferenciados porque impli-cam, como no caso do Poro, num des-locamento social, místico e religiosodos iniciados. Através destes rituais, oindivíduo alcança identidade e plenacidadania em sua sociedade, absor-vendo valores ancestrais que, em-prestando dinamismo a ela, a mantémviva. A promoção por sucessivos gru-pos de idade é sancionada por inter-médio de eventos iniciáticos marcan-tes, que assinalam a fronteira das su-cessivas idades simbólicas. O indiví-duo é visto como um elo de ligação en-tre o mundo natural e o mundo dos an-cestrais, um papel social que se aden-sava paralelamente à progressão sim-bólica de cada membro da sociedadetradicional africana 16 .Há implicitamente uma lógica topo-lógica pela qual os iniciados progri-dem por um espaço mítico. Os gruposde idade constituem na realidade, cír-culos topológicos que na direção dafase adulta, crescentemente se distan-ciam da natureza. Eles pressupõem,ao lado de uma sólida imbricação dotempo com o espaço, um nítido enqua-dramento espacial-energético. A pro-gressão inicia-se com o recém-nasci-do (identificado simbolicamente coma selva), passa pela criança (relaciona-da aos campos de cultivo), pelo adulto(a aldeia), pelo ancião (a região) finda,com a morte física da pessoa (mas nãoa espiritual), com seu ingresso na co-munidade imaginária dos ancestrais,identificada com o Reino.Os desdobramentos destas prefi-gurações imaginárias são nítidos nosagregados político-territoriais esbo-çados pela africanidade. Na medidaem que a sociedade africana dispõede um perfil segmentário (Vide BA-LANDIER, 1969), nas quais o poderpolítico apresenta-se difuso ou es-cassamente centralizado e, simulta-neamente, consorciado com uma re-de de inclusões ou exclusões propi-ciadas pela presença de forças vitaisna espacialidade, isto derivava numasérie de mecanismos de interaçãosimbólicos toda vez que eram busca-

das formas de entrosamento daspartes (o poder local da aldeia ou deuma região) com o todo (o territóriodo Reino ou do Império).Em particular, estas interações ins-creviam-se no campo do sagrado. Devez que em África, é difícil separar,mesmo em pensamento, o lugar dopolítico da função ritual ou religiosa(FORTES et PRITCHARD, 1981: 21), aausência de fronteiras entre os doiscampos permitia frequentes incur-sões da esfera do mágico-religioso nado político. Sobremaneira, há que serfrisado que estas investidas do sagra-do, face sua hegemonia, terminavampor reger o poder e não este último, oprimeiro. Como lembra Georges BA-LANDIER, se os chefes governam seussúditos, o poder governa seus deposi-tários, porque encontra sua origem nosagrado (1969: 67).Tal argumentação é válida tanto pa-ra as sociedades que encetaram for-mas estatais de organização política(ocorrendo, na África Negra, debaixode uma diversidade de configura-ções), quanto para as regidas exclusi-vamente por laços de parentesco.Tanto num caso quanto no noutro, osarranjos espaciais estavam cimenta-dos por meio de um aparato simbólicocujos interlocutores privilegiadoseram lideranças tribais, reis ou impe-radores tradicionais.Este caráter segmentário da socie-dade - e do espaço - refletia-se em cli-vagens que perpassavam pela totali-dade do sistema tradicional de vida,estando sempre conjuminadas cominferências sacralizadas. Mesmo osmais poderosos Estados TradicionaisAfricanos, impérios como o Ghana,Mali e o Songhay (na área sudanesa) e

reinos como o Bakongo (na área Ban-tu), nunca declinaram do diálogo per-manente do poder com o sagrado e si-multaneamente de ambos como astendências autárquicas de cada célulaespacial (No que diz respeito à crono-logia dos impérios sudaneses, certifi-car através do Quadro Cronológico 1).Com base nestes apontamentos, épossível subscrever que o Estado naÁfrica Negra possuía traços marcada-mente diferenciados das formaçõesestatais que surgiram no mundo oci-dental e em outros padrões civilizató-rios. Na África, a articulação do espaçopelo Estado Tradicional obedecia auma lógica segmentária ou comparti-mentada pela qual a amarração terri-torial do Império era obrigatoriamen-te referendada por cada um dos terri-tórios étnicos ou tribais, jamais sedesvencilhando de um regramento oude uma coordenação por poderosasforças vitais.Deste modo, de um ponto de vistatopológico, o ator social de maiorproeminência é o soberano. Em Áfri-ca, a figura do governante ganha rele-vo por sua mobilidade em meio àsgeografias particulares que compõemo território do Império, fonte da per-petuação do poder e do arranjo espa-cial. Os deslocamentos imperiais noespaço do reino, pretendendo suaconsagração enquanto pessoa real es-tá fartamente documentada nos regis-tros etnográficos dos africanistas 17 . Os itinerários percorridos pelosreis, “migrando” de uma célula espa-cial para outra, era condição sine quanon para a aglutinação de forças vi-tais, absorvidas de cada um dos terri-tórios visitados. Verdadeiramente, es-te percurso constituía uma iniciação

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itinerante, na qual o poder do rei eralegitimado e/ou se renovavam os la-ços “das partes” (a aldeia, região ouprovíncia) com “o todo” (o poder cen-tral representado no rei ou impera-dor). Em sua caminhada pelos espa-ços compartimentados do Estado, osoberano assimilava códigos, normase prescrições que asseguravam a reci-procidade dos laços entre o podercentral e as províncias. Nestes traje-tos, o aspecto da apropriação simbóli-ca do espaço se evidenciava na figurado soberano. Ao largo de seu itinerá-rio iniciático, o rei assimila o espaço ea história, e literalmente os incorpora-va (apud BALANDIER, 1988: 98).Por um lado, se ao rei estavam im-postos tais deslocamentos simbólicos,de outro, tal obrigatoriedade era demolde a ressaltar a excepcionalidadedo soberano frente aos demais ho-mens. Sumamente, o imperador era oúnico elemento que poderia incorpo-rar os grandes fluidos cósmicos, crité-rio essencial para sua legitimação - ounão - enquanto supremo mandatário.Como entre os Anyi (República daCosta do Marfim) e os Moundang (Re-pública do Tchad), o rei, envolto porpoderosas forças vitais, estava no cer-ne de uma lógica topológica pela qualseu corpo, o corpo do país, do mundo edo seu povo, não seriam mais do queum (Ver BALANDIER, 1988: 45-46 eSERRANO, 1983: 61).Por sinal, o soberano é simultanea-mente forjador e guardião de umaunidade, assim como de uma coesãoconstantemente ameaçadas por for-ças centrípetas que podem induzir àdesagregação do espaço articulado. OEstado africano, enquanto uma for-mação política tradicional é o resul-tado de um arranjo espacial cujossustentáculos repousam num poderde matiz segmentário, e por isso mes-mo, correndo risco frequente de frag-mentação pela propensão quase irre-freável de cada célula espacial reivin-dicar sua autonomia. Exatamente por esta razão, o dig-nitário real procurava cercar-se, emsua capital, de representantes dasprovíncias, encarregados de aconse-lhá-lo e de assisti-lo, por sinal, umaimagem emblemática extremamentedifundida nos relatos e na arte tradi-cional da África Negra. Procurava-sereforçar, deste modo, uma rede dealianças cuja fragilidade decorria docaráter instável da centralização dopoder, dependente quase exclusiva-mente do prestígio que o soberanoconseguia amealhar.Destacado no centro de uma com-posição territorial obtida pelo enca-deamento de espaços parcelados, la-drilhados, estanques e autárquicos, orei, mesmo amparado por represen-tações imaginárias que o localizavamtopologicamente num omphalos ounum centro do universo, somentematerializava sua autoridade me-diante uma sintonia absoluta com aspartes e nunca em contradição comestas. Daí, a conhecida máxima de

que o chefe tradicional tinha a obri-gação de tornar manifesta, a cada ins-tante, a inocência de sua função (BA-LANDIER, 1969: 39).Sumamente, o rei africano simboli-zava uma espacialidade escassamenteburilada pelo homem, na qual a gran-de maioria da população era imóvel eisolada, sendo desconhecidas redesde conexão econômicas de tipo geo-graficamente intensivo e/ou habilita-das a revolucionar em profundidadeas estruturas sociais e econômicas.Consequentemente, qualquer unida-de deveria ser obtida pelo consenti-mento e pela reciprocidade, por inter-médio de pactos territoriais atravésdos quais a capacidade do soberanoharmonizar-se com forças vitais nota-bilizadas em contextos locais deter-minava ou não a continuidade de seuexercício da realeza 18 .Complementando, estas considera-ções a respeito do imaginário espacialafricano, devem ser acompanhadas deoutras, referentes às leituras negro-africanas da temporalidade. Como deresto já é sabida, qualquer menção aoespaço remete ao tempo e vice-versa.Esta premissa é válida para qualquersistema de relações, visto que tudo oque se move no espaço e no tempo, sóexiste temporalizando-se, e por toda àparte e a todos os momentos de suaevolução, só se temporaliza existindo(Cf. ANDRADE, 1971: 76).No caso africano, e retomando umaadvertência central deste texto, estasolidariedade do espaço para com otempo, aparte as similaridades que ocontinente comunga com outros pa-drões civilizatórios, abarca detalha-mentos próprios quanto à interpreta-ção social do fruir do tempo. Dentre ashomologias, podemos nos referir aoque denominamos de dinamismo es-pacial, que além de regrar os proces-sos sociais do continente africano, fa-zia-se presente na totalidade das so-ciedades de Outrora. Isto se expressanuma leitura da temporalidade pelaqual esta se apresenta encaixada,ajustada, engastada, acoplada ao es-paço, sendo sua cadência, tributáriadas sequências que se manifestavamespacialmente, tanto concreta quantosimbolicamente 19 . Na África Negra, o espaço fornecia amoldura que ordenava e traçava as de-clinações possíveis da temporalidade.Como nas demais sociedades “arcai-cas”, em África o tempo definia-se ten-do como marco epistemológico fun-dante, o espaço, um claro reflexo deuma vivência na qual a territorialidadeera assumida como eixo da vida social.Este tempo apegado ao espaço explici-tava-se, por exemplo, na organizaçãoda produção e atividades voltadas pa-ra a obtenção de alimentos, inspiradasna evolução dos ciclos presentes nomeio natural, em suas variações diur-nas, sazonais e anuais, ou sintetizando,com o tempo da natureza. Uma atitude espacializante comrelação ao transcorrer do tempo,substantivava-se em todas as esferas

da vida social do africano, inclusiveem seu universo vocabular. Nesteparticular, nota Alexis KAGAMÉ quenas línguas Bantu não são encontra-dos advérbios diferenciados para ca-tegorizar o tempo e o espaço, o que édemonstrativo, no campo linguístico,de uma unidade ontológica que sol-dava ambas dimensões na consciên-cia social (1975: 104-105). Esta uni-dade tinha por justificativa metafísi-ca uma coordenada individualizantede lugar e tempo 20 , coincidência quedava significação aos movimentos,quer dizer às ações e paixões dosexistentes, sempre magnetizados porforças vitais (idem, 108-109).Face ao que estamos expondo, otempo em África, da mesma forma queo espaço, está saturado de valor afeti-vo, não alcançando qualquer significa-do mais claro na hipótese de excluirseus sentidos qualitativos. Para o pen-samento africano, o tempo é uma enti-dade incolor, indiferente enquantoum fato marcante não intervém paraselá-lo. Este evento pode ser a ação dopré-existente, do homem, de um ani-mal, de um fenômeno da natureza, queuma vez eclodindo, individualiza de-terminado tempo, tirando-o do anoni-mato e tornando-se o tempo desteevento. Este tempo selado pelo eventoseria a transposição da coordenadaindividualizante do plano metafísicopara a vida cotidiana, subentendendo-se que ao evento marcante, associa-sesempre um lugar, um espaço (Ver KA-GAMÉ, 1975: 115).Tal vocação espacializante do tem-po africano é também um reclamocom origem em seu caráter mítico. Is-to porque o tempo mítico, propondo-se numa senda de simultaneidade,dispõe o passado, o presente e o futu-ro num único plano. A partir do mo-mento em que o presente não se disso-cia do bloco temporal formado pelopassado e pelo futuro, o tempo passa aser vivido da mesma maneira que o es-paço, um autêntico fenômeno de espa-cialização do fruir do tempo (Ver

GOUREVITCH, 1975: 266-267).Desta forma, para o africano, nem opassado, nem o futuro, seriam instan-tes discretos, separados do presente,como acontece no caso do padrãotemporal linear e progressivo, pró-prio da inculturação ocidental 21 . Opassado, não é um instante morto,mas sim um evento vivo, que atua jun-to às práticas do presente, por sua vezincorporando o futuro à sua rotina.Esta ótica reversível do tempo contri-buía para uma segurança ontológicado homem africano. A confiança nacontinuidade do passado vinculava-sea práticas sociais rotinizadas, autenti-cadas por um cotidiano regido pelatradição.Este sentimento estava traduzidono pensamento africano como umapermanente reconstrução do mundopela constante renovação do equilí-brio entre as forças vitais. Nas cultu-ras africanas, o passado era honradopor sugerir aos homens do presenteseus compromissos como devedoresdas gerações ancestrais. Graças aopassado, existiam as linhagens e seprognosticava a proteção para as ge-rações seguintes, ligando o homem dopresente aos antepassados mais re-motos e ao próprio pré-existente. Mas, se para o africano se colocavaa repetição e a circularidade do tem-po - um rebatimento objetivo de umaeconomia suficiente entrelaçada comos ritmos naturais - isto não significaque sua visão do fruir do tempo fosseredutível a estas categorias. Observaagudamente Alexis KAGAMÉ, o tem-po africano notabiliza-se por uniruma convicção cíclica - ou seja, seucaráter reversível - com uma pro-gressão em espiral, imprimindo umsentido histórico para o direciona-mento dos eventos - qual seja, sua ir-reversibilidade (1975: 126-127). Assim sendo, possuindo senso dehistória, o africano não se sente pri-sioneiro de um eterno retorno. Emseu raciocínio, o tempo estabelece umduplo movimento: cíclico, à seme-

DIÁLOGO INTERCULTURAL | 15Cultura | 18 a 31 de Janeiro de 2016

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lhança do périplo da Terra relativa-mente ao Sol, e espiral, relativamenteao movimento da galáxia. “A irrever-sibilidade do tempo serve de certamaneira de eixo central em volta doqual giram os ciclos, à semelhança deuma espiral, que dá a impressão deum ciclo aberto. Cada estação, cadageração a iniciar, cada quarto nomedinástico, volta à mesma vertical, masnum nível superior. Em outros ter-mos, eles não voltam nem ao mesmoponto do espaço, nem ao mesmo ins-tante, o que corresponde logicamenteà nossa individualização da entidademovimento” (KAGAMÉ, 1975: 127).Diferentemente do ocidente e dos

demais padrões civilizatórios quecompunham a pré-modernidade, aafricanidade emprestava ao espaço-tempo uma significação sensível noqual seu dinamismo básico consistianum movimento energético contínuona ordem material e espiritual, doqual as forças vitais eram indissociá-veis 22 . O africano não se observavatrafegando por um espaço-tempoinerte, laico ou carpintejado, mas sim,por uma dimensão na qual o âmago deseu ser manifestava-se nos movimen-tos da natureza e da sociedade.Resgatando observação consigna-da no estudo de Carlos SERRANO so-bre o Reino Ngoyo (atual Cabinda,

República de Angola), “é necessárioter presente que no pensamento afri-cano em geral, o tempo mítico estáestreitamente ligado a um espaço es-pecífico, numa relação concomitantee inseparável de lugar-tempo, ondeas forças dinâmicas da sociedade seconfrontam para se revitalizarem in-cessantemente, num processo que dásentido à concepção de vida do ho-mem africano” (1983: 66). Este cenário mais do que qualqueroutro é o que exalta, no relato deSundjata, os significados profundosda crônica e o associam indelevelmen-te a Africanidade e aos seus pressu-postos. Como veremos, a ele relacio-

na-se o itinerário topológico de Sund-jata, nitidamente magnetizado pelatopografia simbólica de um relato queé essencialmente africano nos seuspropósitos e nas suas locuções. III - SUNDJATA, TOPOLOGIA E AFRICANIDADEA crônica de Sundjata é das maispuras expressões de uma memóriatradicional, perpetuada por sucessi-vas gerações de griots, guardiões so-cialmente reconhecidos de um conhe-cimento cujo grande veículo é a orali-dade. O cunho tradicional que modelaa estrutura do relato, permitindo, nu-ma determinada ótica, sua definiçãocomo popular, impõe uma lógica quereclamaria, para sua decodificação, orecurso às leituras negro-africanas doespaço-tempo. Defendemos este ponto de vistacom base na premissa de que funda-mentalmente, enquanto um código se-mântico, a narrativa nos conduz a um“imaginário profundo” a partir do qualo Imperador Sundjata Keita é magneti-zado e tragado por prefigurações to-pológicas típicas da África Tradicional.Com este pano-de-fundo, se evidencia-riam os aportes simbólicos que indu-zem os movimentos do personagemcentral, assim como a trama espacio-temporal do relato.Tais considerações poderiam confi-gurar um truísmo. No final das contas,a crônica desenvolve-se com base nu-ma tradição oral cujos máximos ex-poentes são justamente os contadoresde histórias. O relato em si mesmo es-clarece a respeito desta proeminên-cia. Com efeito, Sou griot, é a primeiramáxima registrada no relato. Interes-saria, pois nos determos primeira-mente no que nos transparece como aprincipal característica do persona-gem, a saber, os vínculos concretos eimaginários do relato com a cosmovi-são negro-africana.Nesta ordem de considerações, po-deríamos assinalar:1. O destaque dado pelo relato paraNhankumam Dua, griot do rei Mag-han Kon Fatta, pai de Sundjata, queanuncia o nome do futuro mandatá-rio (p. 31) e a Balla Fassekê, filho dogriot anterior e griot de Sundjata.Além do papel relevante na trama, ogriot é sumamente o construtor se-mântico explícito da epopeia.2. Quanto a Balla Fassekê, tambémgriot, a crônica registra que teria sidoarrebatado de Sundjata, subtraído porSuamoro Kantê, rei do Sosso. Este epi-sódio foi o casus belli do conflito quetornou inevitável a guerra entre Sund-jata e Suamoro Kantê (p. 64).3. No texto, em sintonia com umprocedimento tradicional africano, ogriot é a fala do Rei, quem publicamen-te manifesta seus pensamentos e von-tades, suas palavras e ordenações 23 .Não fossem tais razões suficientespara definir a narrativa como uma pe-ça cultural negro-africana, não é per-mitido esquecer que a própria expres-são oral localiza-se no cerne de uma

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tradição viva, associada à noção deforça vital. A oralidade, “envolve umavisão particular do mundo, ou melhor,uma presença particular no mundo,um mundo concebido como um todoonde todas as coisas se religam e inte-ragem” (HAMPATÉ-BÂ, 1993: 183,grifado no original). Em outras pala-vras, temos na crônica de Sundjata ummaterial cuja moldura maior é forne-cida pela Africanidade.Ora, se recordarmos que repousasobre Sundjata uma coloração islâmi-ca, então estas ponderações tornam orelato algo de muito complexo quantoàs motivações e ao tratamento dadoao personagem central. Não pode seresquecido, Sundjata foi historicamen-te um dos veículos de propagação doIslam nos países da savana sudanesa.O islamismo, aparte eventuais afini-dades com o mundo negro (Ver a res-peito, FONSECA, 1984: 65-67), com-preende um bojo de posturas que nãose relacionam, sob qualquer ponto devista, com a África Profunda. A religião muçulmana, identica-mente ao judaísmo e ao cristianismo,é um credo monoteísta, ostensiva-mente contrário ao que define como“paganismo”. Em dissintonia evidentecom o que é pautado pela africanida-de, o Islam exclui atribuições míticasrelativamente ao homem e à natureza,não sancionando fórmulas de mani-pulação mágica do sobrenatural 24 . As discordâncias são igualmentefragrantes quanto às configurações to-pológicas. As concepções de espaço-tempo pautadas pelo pensamento islâ-mico, não se identificam - com exceçãodaquelas características gerais com-partilhadas com a pré-modernidadeem seu sentido mais amplo - com asque vigoram na cosmovisão africana.A civilização islâmica construiu umainterpretação de espaço-tempo distin-ta das demais, estando historicamenteassociada às culturas asiáticas, dentreas quais um componente arabizantesempre foi hegemônico 25 . Sundjata irrompe num contexto

pródigo de agitações e de turbulên-cias, que sacudiram todo o espaçomanden ou Mandenka 26 . Particular-mente, a disputa que opõe Sundjata aSuamoro Kantê, o rei do Sosso, bas-tante explorada na narrativa, enraí-za-se num choque entre uma fraçãoidentificada com o Islam e uma outraapegada ao tradicionalismo. Deve sersalientado, Suamoro Kantê, contra oqual Sundjata irá travar combate, écaracterizado como Rei Feiticeiro eFerreiro. Historicamente, Suamorogovernava um grupo do povo man-den especializado na metalurgia doferro. Este clã, no comentário de Dji-bril T. NIANE manifestou, desde mea-dos do Século XII, “firme vontade derepelir o Islã e impor-se no EspaçoSoninke” (1984: 143).O fato do relato nominar Suamorosimultaneamente como feiticeiro ecomo ferreiro, está muito longe deser fortuita. A identificação de Sua-moro com o ferro possui um duplo - eimportante - significado simbólico.Primeiramente, trata-se de um metalcom distintas finalidades bélicas. Umrei ferreiro é por definição um sobe-rano com pleno domínio da arte daguerra. Em segundo lugar, e isto con-firmaria ainda mais a associação dorei Sosso com o tradicionalismo, oferreiro era um profissional respei-tado na sociedade africana. Ao darforma aos metais, o ferreiro é vistocomo um mago, um homem com umarelação de intimidade com o MaaNgala, o supremo criador.Na crônica, Suamoro Kantê tam-bém é caracterizado como um Rei Sa-queador, inspirando terror aos mer-cadores. Nesta ordem de considera-ções, deve-se ressaltar que este sobe-rano postou-se frontalmente contra oIslam ao aparentemente tentar supri-mir o tráfico de escravos. Muito antesda colonização européia, este comér-cio era exercido por comerciantes is-lâmicos com o fito de abastecer osmercados do Mediterrâneo e de ou-tros países muçulmanos. Já nesta épo-

ca, a escravização dos africanos asso-lava vastas porções do mundo tradi-cional. Regiões como o Manden, pelaproximidade geográfica e facilidadede contatos através de rotas de co-mércio conhecidas de longa data, tor-naram-se alvos inevitáveis de atuaçãodesta atividade.Ademais, se de um lado a crônicaenfatiza para Suamoro o perfil de opo-nente do grande herói da savana -Sundjata Keita - ao mesmo tempo lheatribui a invenção do balafo e do dan,instrumentos musicais muito aprecia-dos pelos bardos sudaneses. Na câma-ra mais secreta de seu palácio, Suamo-ro guarda juntamente com seus feti-ches, um grande balafo, de som excep-cional, instrumento que era tocadopor ele mesmo em sua intimidade (p.63). Assim, numa aparente contradi-ção, os griots estariam hostilizandoum rei consagrado como criador eidentificado com instrumentos rela-cionados à própria modulação dosfluídos vitais da oralidade. Teríamos, portanto pela frente, atarefa de explicar uma lógica que, aomenos numa primeira visada, seriaambígua no tratamento dado aosdois personagens principais. Deta-lhamentos como estes são altamen-te reveladores da impossibilidadede julgar a narrativa a partir de umaanálise simplista opondo um rei“tradicional” (Suamoro Kantê, hos-tilizado pela crônica), a um outro“muçulmano” (Sundjata Keita, ho-norabilizado pelos propagadores daTradição, os griots).Com estas considerações a disposi-ção, poderíamos delinear algumas in-dagações inevitáveis, a saber:1. Admitindo-se que o griot é a falado poder, entendendo-o como a gran-de expressão do tradicionalismo, atéque ponto Sundjata Keita estaria ounão compatibilizado com ele? Não se-ria o caso de postular, em decorrênciade pistas indicadas pelo próprio texto,o rei Suamoro Kantê como o mais au-têntico interlocutor do mundo tradi-cional entre os Mandinga? 2. Mais: Invertendo a proposiçãoanterior, até que ponto seria cabívelperceber em Sundjata um real propo-nente de um sistema islâmico? O rela-to não poderia estar astuciosamentemanipulando uma “identidade mu-çulmana” com a finalidade de desta-car Sundjata dos marcos do tradicio-nalismo, mas, ao mesmo tempo, fa-zendo-o defensor destes mesmos va-lores tradicionais? 3. Mais ainda: Se verdadeiro oponto anteriormente elencado, atéque ponto Sundjata não estaria em-blematicamente transfigurado nu-ma máscara 27 , que superficialmen-te islamizada expressaria, na reali-dade, um arco de forças sociais em-penhadas em preservar um univer-so tradicional de valores, assumin-do-o como seu representante?No que constituiria proposiçãocentral deste ensaio, acreditamosque estas interrogações podem ser

respondidas a partir dos contornostopológicos expostos pela próprianarrativa. Afinal, os conceitos e asconcepções culturais de espaço e detempo são os traços distintivos maiseloquentes dos modelos identitários,da especificidade de um grupo comrelação aos outros, representativo desuas opções civilizatórias.Nesta perspectiva, podem ser di-visadas várias “armadilhas” queaprisionam Sundjata em paradig-mas tipicamente africanos. Uma de-las reporta ao plano espacio-tempo-ral no qual o personagem central semovimenta, um plano composto porcírculos e anéis energéticos que co-mandam sua progressão existencial,do seu nascimento à sua investiduracomo rei do Mandinga. Encarceran-do o rei, este plano magnetiza per-manentemente sua trajetória, apri-sionando-o nas proposições típicasda África Tradicional.Dentre os direcionamentos dosquais Sundjata não consegue desvin-cilhar-se, estão os que procedem emconcordância com os níveis de sociali-zação compostos pelas classes ou ca-tegorias de idade, típicas do mundonegro-africano. A evolução social dopersonagem está marcada pelos even-tos e rituais que na África Negra, sãoconstitutivos da formação da pessoa ede sua identidade social. No relato, a progressão concernen-te à formação da pessoa real, está su-jeita a diretrizes topológicas negro-africanas. Sundjata, num autênticotrajeto iniciático, progride na narrati-va, da periferia do espaço manden (ascidades de Mema e de Wagadu), na di-reção do umbigo do mundo, Niani, acapital do Império do Mali28 . Estepercurso é sincrônico com a trajetóriado Sol, astro que na África Negra é, no-meadamente, o referencial cosmoló-gico do tempo (Mapa 3).A caminhada de Sundjata no espa-ço-tempo é semanticamente cons-truída de forma a conjugar as dinâmi-cas da evolução de sua corporalidade(as classes de idade), com a articula-ção da amarração territorial que iráculminar na formação de seu Impé-rio. As justaposições dos círculosenergéticas com os movimentos emespiral do herói mítico derivam nu-ma concreção topológica cujo mode-lado corresponderia ao de uma mon-tanha, galgada paulatinamente emconsonância com o fortalecimentopolítico e existencial de Sundjata.Na medida em que a epopeia traba-lha os corpos do rei, do reino e domundo em sincronismo, a proeminên-cia de Sundjata explica-se pelo seupercurso estar sob influência de umeixo magnético cuja coordenada cós-mica está centrada em Niani, um omp-halos – o centro do universo - que ina-pelavelmente orienta seus desloca-mentos. Topologicamente, a “migra-ção” do rei está energizada por umarede de forças vitais que sustentamtanto o relato quanto a própria monta-nha, uma rugosidade proeminente

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por resultar da decantação dos fluídosvitais que impregnam a narrativa 29 .Coerentemente, o relato ganha ve-locidade na medida em que nos apro-ximamos do seu término. Se as descri-ções se detêm longamente nos prog-nósticos excepcionais que cercam onascimento de Sundjata, assim comona sua infância e adolescência (fasesque ocupam círculos periféricos comextensão maior), as menções aos em-bates com Suamoro são relativamentesucintas e no que tange à constituiçãofinal do Império, bastante sumárias.Tal cadência, explica-se por uma lógi-ca espacio-temporal. Se a trajetória sedemora em percorrer os círculos maisperiféricos, topologicamente maisvastos, ela é mais rápida nas camadas

centrais, topologicamente menores. Para facilitar a compreensão destalógica, poderíamos representar acartografia imaginária do relato porduas representações, bidimensionale tridimensional, da forma como es-tão ilustradas adiante. Quanto ao re-levo simbólico da crônica, podemos,numa observação mais acurada, enri-quecer esta topografia simbólica comoutras rugosidades ou concreções,formando uma paisagem imagináriacuja marca central é evidentementeSundjata e sua montanha. Em nível desta cartografia sensível,que ilustramos para uma melhor com-preensão do simbolismo espacial dotexto (Vide Figuras 1A-1B e 2), podería-mos afiançar os seguintes pormenores:

1. O trajeto de Sundjata, como foiextensamente observado, tem uma di-retriz solar, e como tal, descrevendoum movimento de Oriente para Oci-dente, do nascente na direção dopoente 30 . Este percurso é exatamen-te oposto da jornada de Djul Kara Nai-ni (Alexandre, o Grande para os oci-dentais e Iskandar para o mundo ara-bo-muçulmano), que procedeu deOcidente (a Macedônia) para Oriente(a Pérsia). Os sentidos divergentesdos trajetos de Sundjata e de Djul KaraNaini, demarcados já no início do rela-to, é bastante explorada pelo griot aolongo da epopéia, incorporando ex-pressivo significado simbólico. Sund-jata, ao espacializar seu roteiro emconsonância crono-tópica com o mo-

vimento do Sol, indica não só umacumplicidade do Imperador com o fa-cho solar, mas explicitamente, com asforças vitais das quais o Sol é uma desuas emanações 31 . É em razão destesentido solar que o percurso de Sund-jata é valorado em detrimento do deAlexandre, O Grande. Muito emboraDjul Kara Naini fosse em todo o mun-do muçulmano um personagem deenorme prestígio, indissociável de um“passado maravilhoso” - o que em tesetambém estaria colocado para o Man-den “islâmico” - para o ouvinte africa-no tradicional, o sentido solar do tra-jeto de Sundjata obrigatoriamente oenaltecia frente a Alexandre. Afinal,Sundjata foi, de acordo com a fala dogriot, “o sétimo e o último imperador”(p. 120). Urge também pontuar emsua devida dimensão o caráter islâ-mico de Sundjata. Isto porque ao ladodo enaltecimento com relação aoconquistador macedônio, há uma ou-tra valoração, não explicitada direta-mente na crônica, atingindo em cheionada mais nada menos que o profetamáximo do Islam, Mohamadu (Mao-mé) como seus sucessores, os Khali-fas. É interessante observar que parao mundo muçulmano, Maomé e osKhalifas é que seriam entendidos co-mo os “últimos conquistadores”. O Is-lam, ao ser a última religião reveladanaturalmente teria em Maomé seu úl-timo profeta 32 . Quem seria então omaior dos conquistadores? Para o re-lato, não parece existir qualquer dú-vida, pois Sundjata é quem finaliza asequência dos grandes conquistado-res 33 . Outra comparação silenciosacom o Islam, diríamos “astrológica”,corre por conta da contraposição en-tre Sol e Lua. Contrariamente aomundo semítico - ao qual se filia o Is-lam - a Lua e as estrelas são bem me-nos representativas para a cosmogo-nia negro-africana. O Sol, exaltadopela Africanidade, relega todos os de-mais astros a um plano secundário.De resto, é notória a lacuna quanto àmagnitude das conquistas árabes,que sequer são mencionadas na epo-peia. No relato, portanto, Sundjataestaria ostensivamente ocupando aposição do profeta.2. No relato, a formação da pessoareal de Sundjata está direcionada demodo a que este conquiste papéis so-ciais cada vez mais densos, numa pro-gressão que se consolida com basenos primados da Africanidade. Pri-meiramente, seus ancestrais foramreis-caçadores, conhecedores dos se-gredos da mata e da cura com ervasmedicinais. Sundjata é descrito comodescendente direto de Mamadi Kani,O amado de Kondolon Ni Sanê, divin-dade da caça dos povos da savana su-danesa. Seus antepassados recebe-ram o título de Simbon, qualificativohonorífico de Grande Caçador (pp.14/15). Mais tarde, o próprio Sundja-ta, em coerência com sua linhagem,irá se destacar como um perito na ar-te da caça (p. 31). Na narrativa, a mãede Sundjata é apresentada com alma-

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irmã do Búfalo que aterrorizava oPaís de Dô, um dos recantos do terri-tório Manden (p. 23). Seu pai, de ou-tra parte, está associado à figura doLeão, animal com forte conteúdo sim-bólico quando associado às realezasafricanas (p. 32). Como é singular dacosmovisão negro-africana, a narrati-va associa a origem e a infância deSundjata com o mundo natural, faseem que para as culturas africanasacredita-se que o indivíduo está maispróximo da natureza. Por sinal, Sund-jata tem sua infância marcada poruma paralisia que o obriga a rastejar,a “andar de quatro”, como os animais.Acresce-se a isto que ele falava pouco,reagindo com hostilidade na compa-nhia de outras crianças (p. 32). Estesepisódios são alguns dos que de-monstram a excepcionalidade deSundjata frente aos seus congêneres.O “Despertar do Leão” (Djata significaleão em mandenka) só vem aos seteanos, quando para espanto geral,Sundjata desenraíza o gigantescoBaobá de Niani (p. 40) e ergue a enor-me barra de ferro que era mantidasob a guarda de Farakuru, o mestredas forjas, que havia sido confeccio-nada pelo mestre anterior, Nun Fairi,pai de Farakuru e conhecido comoFerreiro-adivinho de Niani (p. 34). Aprogressão do personagem, no senti-do africano tradicional, afirma-se porSundjata ter se tornado mais tarde,um excelente caçador e líder de suaclasse de idade, formada entre outrospor Fran Kamara (filho do Rei de Ta-bon), por Kamandjan (filho do Rei deSibi) e por príncipes residentes nacorte de Niani (p. 41). Preterido na su-cessão dinástica por Dankaran Tu-man e perseguido pela Rainha-Mãe,Sassuma Beretê, Sundjata inicia coma mãe (Sogolon) e o irmão (MandingBory), um longo exílio, no qual per-corre os espaços exteriores ao Man-den. Na realidade, este exílio demarcasua introdução junto a círculos topo-lógicos nos quais Sundjata estabelececontatos de grande valia para seu fu-

turo enfrentamento com SuamoroKantê, o rei do Sosso. Sundjata segueprimeiramente para Tabon, no Futa-Djalon (33), depois para Wagadu (ci-dade do antigo Império do Ghana) epor fim, para Mema, no curso médiodo Djoliba (Níger). Todas estas for-mações políticas tinham dinastiasaparentadas com o povo malinké,configurando, pois um espaço étnico,tal como este é categorizado por Jean-Loup AMSELLE (1985). No seu itine-rário, Sundjata aglutina ao seu redoras forças políticas que permitirãoderrotar o Rei do Sosso, SuamoroKantê. Em Mema, Sundjata torna-seum comandante militar, “um jovemcorpulento, de pescoço largo e tóraxpoderoso. Ninguém conseguia esticaro seu arco. Todo mundo se inclinavadiante dele, ele era amado. Os que nãoo amavam, o temiam; sua voz tornou-se autoritária” (p. 61). 3. O percurso através destes níveisenergéticos está permeado por alego-rias localizadas numa cartografia sen-sível e marcadas por eventos signifi-cativos. Como o próprio texto admite,cada coisa tem o seu tempo (p. 19).Sundjata tem que corresponder à lógi-ca sensível da construção topológica,atendendo aos impulsos vitais irra-diados do espaço e selando, em funçãodesta, os eventos do relato. Ela é níti-da, por exemplo, no episódio em queNun Fairi, o ferreiro-adivinho de Nia-ni, confecciona premonitoriamente abarra de ferro que Sundjata irá erguersete anos após a morte do artesão. Es-te feito, dentre outros, é demonstrati-vo dos corredores semânticos que en-quadram o personagem central. Sobpena de comprometer a ordenação to-pológica que condiciona o desenrolarda trama, não cabe a Sundjata qual-quer opção. A fala do griot não deixaqualquer margem a dúvidas: “Cadahomem tem sua terra: se estiver ditoque teu destino deve realizar-se emtal país, os homens nada podem fazercontra isto” (p. 74). Aliás, o relato con-tinuamente adverte para as conse-

qüências nefastas que podem advir dorompimento com a tradição. QuandoSundjata se detém em Wagadu, o grioté taxativo na identificação das causasda ruína da cidade e do Império doGhana. Quando o Rei Ahmadu, o Taci-turno, decepou a cabeça da serpenteCragadou-Bida, que habitava a flores-ta sagrada dos Cissé, clã dominantedos Sarakollé, a decadência tornou-seinevitável. Umas séries de calamida-des abateram-se então sobre o Ghanae Wagadu, desencadeando a destrui-ção da dinastia reinante. Além disso, ogriot nota que Wagadu abandonou atradição ancestral em favor do Islam.Em Wagadu podiam ser notadas vá-rias mesquitas, ao passo que em Niani,existia apenas uma (pp. 53-54). Esta éuma das admoestações dirigidas aSundjata, um “imperador muçulma-no”, instado a acatar as prescriçõesancestrais, sugeridas tanto no episó-dio da serpente dos Cissé, quanto pelasentença que associa implicitamentea decadência do Ghana a uma supre-macia mais visível do Islam. Mas, aci-ma de tudo, a presença do universotradicional aparece com toda força noenfrentamento do Rei Suamoro Kan-tê, “o Rei mais poderoso do Sol poen-te”, isto é, um soberano postado emreferencial geográfico diametralmen-te oposto ao de Sundjata, que tem noSol nascente a sua coordenada-guia.Suamoro é apresentado como um gê-nio do mal, que açoitava anciões, rap-tava mulheres e que a partir de sua ca-pital, Sosso, “o bastião dos fetichescontra a palavra de Alá” (p. 66), im-plantava o terror e a morte por todo oManden (pp. 67-68). Este rei habitavauma torre imensa, de sete andares,guardando em uma de suas câmarasseus fetiches, seu grande balafo e “ascabeças dos nove reis vencidos” (pp.62-63). Este poder mágico é um recur-so que o “rei intocável” manipula paramanter a submissão das populaçõesvencidas. Na batalha de Negueboria,Sundjata, percebendo a magnitudedeste poder, se convence da necessi-dade de apelar para “outras armas” -ou seja, a magia - para vencer o ReiFeiticeiro (p. 80). Sundjata realiza di-versas hecatombes com esta finali-dade (p. 86), somente conseguindoderrotá-lo quando toma ciência doTana (gênio protetor) de Suamoro - aespora de galo branco - flechando-ocom este fetiche. Como é possívelperceber, mais do que pelo talentomilitar de Sundjata ou pela força dareligião muçulmana, foi devido àprática da magia que o “inimigo doIslam” é definitivamente derrotado.Aparentemente muito contraditório,o fato, no entanto é muito coerentecom a moldura espacio-temporaltradicional em que o embate entre osdois oponentes se efetiva. 4. Sundjata Keita governa um impé-rio constituído a partir de sua associa-ção com o mundo da tradição. Daí odestacado papel de cosmogonias tra-dicionais tais como as do trajeto solar,de sua progressão por papéis sociais e

correlatas forças vitais. Sua soberaniase apoia numa ampla rede de aliançasarticulada ao longo de seu itinerárioiniciático, nela participando reis echefarias representativas de diversosgrupos étnicos e sociais sublevadoscontra Suamoro. No Kurukan-Fugan, aassembleia que reúne todos os aliadosarregimentados contra o rei do Sosso,Sundjata, respeitando as atribuiçõesdo poder tradicional, confirma os che-fes aliados como prepostos do Impe-rador, lançando os fundamentos doImpério do Mali (Ver A Repartição doMundo, pp. 108-115). O conjunto depovos e de reinos submetidos a Sund-jata, era considerado como em aliançacom o Mansa, dispondo de autonomiana administração de seus assuntos in-ternos. O Wagadu e o Mema, que ha-viam prestado auxílio e hospitalidadea Sundjata e fornecido seus primeiroscontingentes de tropas, embora reco-nhecendo a supremacia do Mansa Su-premo, conservaram os seus reis. Con-solidando estes pactos territoriais,Sundjata fixou os direitos e os deveresde cada clã e prescreveu uma série demedidas visando a integração dos clãsdos diferentes povos colocados sobsua soberania. Os nomes clânicosmandenka foram reconhecidos comocorrespondentes aos nomes clânicosde outras etnias do Sudão, confirman-do uma estratégia de soldar aliançasinterétnicas. A estratégia de “adotar”outros clãs foi uma prática que “per-durou após a morte de Sundjata e quenão raro contribuiu para a reduçãodas tensões entre grupos étnicos”(NIANE, 1984: 152). Em suma, o novoImpério, como o precedente Impériodo Ghana, reconhecia a lógica seg-mentária das sociedades agregadas aele, assim como o caráter particular decada região, modelo que o rei Sossotentara malbaratar. O caráter flexívelda administração do Mansa fazia comque seu império “se assemelhassemais a uma federação de reinos ouprovíncias do que a uma organizaçãounitária” (NIANE, 1984: 153). Estasensibilidade para com as demandasdo poder tradicional inaugura aosolhos da população do reino uma erade abundância e de felicidade. Comoaclama seu griot Balla Fassekê no Ku-rukan Fugan: Ele chegou/ E a felicida-de chegou/ Sundjata está aqui/ E a fe-licidade está aqui (p. 116).IV - CONCLUSÕES FINAISNesta análise, em que prioritaria-mente buscamos resgatar as nuan-ces profundas da Epopeia de Sund-jata, podemos elencar diversas con-clusões destacando o viés de africa-nidade que desde o primeiro pará-grafo, consideramos indissociávelda narrativa do griot. Mesmo assim, é necessário comen-tar sobre as influências arabo-muçul-manas que pespontam em diversaspassagens da epopeia. Conforme es-clarecemos, a narrativa exclui contra-posições simplistas e recorrentes, ins-crevendo-se numa problemática mui-

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to mais complexa, apresentando co-mo uma de suas principais estratégiasuma persistente manipulação simbó-lica. Assim sendo, atentemos para osarabismos presentes na narrativa,dentre os quais, poderíamos sintetica-mente apontar para:1 . Na questão das linhagens, os Kei-ta teriam como ancestral Bilali Buna-na, proclamado como um fiel servidorde Maomé (p. 13). No Imaginário dorelato, os Keita não seriam autócto-nes, mas sim originários do Hedjaz,pátria do Islamismo 34 .2. Geograficamente, o griot subli-nha claramente que o Hedjaz - umaantiga circunscrição territorial dapenínsula arábica - seria ao mesmotempo o berço do Islamismo e dosantepassados de Sundjata, caso deBilali Bunana (p. 57). O Wagadu, rei-no aliado dos Mandinga, também édescrito como uma área fortementeislamizada.3. A constante menção aos djins, pa-lavra de origem árabe designando di-versas classes de gênios (espíritos).4. A presença de inúmeros patroní-micos de origem árabe, tais comoMussa (Moisés, nome do rei do Me-ma), Sumala (Salomão, nome do rei doWagadu), etc.5. A evocação da graça de Alá emepisódios marcantes do relato. Estasaudação muçulmana é verbalizadaem diversas situações cruciais, comoquando Sogolon - mãe de Sundjata -entoa palavras de agradecimento aDeus por ter dado ao seu filho o usodos pés (p. 39), quando os emissáriosdo Mandinga acudiram a Mema parareencontrar a família do futuro impe-rador (p. 72), etc.6. Outras influências islâmicas sur-gem na menção ao mitcal (uma unida-de de peso de origem árabe), na refe-rência ao mudê (para os tributos) e in-clusive na indumentária. Neste últimocaso, é significativo que Sundjata saiade Mema, para iniciar a luta contraSuamoro Kantê, vestido à muçulmana(p. 74). A aplicação de penalidades co-mo a extirpação das mãos, tambémpoderia reportar - embora parcial-mente - ao Islamismo 35 .7. Os governantes do Mali sãoapresentados como muçulmanos atécerto ponto piedosos, preocupados,por exemplo, com a construção deabrigos para os peregrinos em trânsi-to pela cidade santa de Meca (p. 112).Quanto ao tratamento cerimonial ehonorífico reservado aos soberanos,os referenciais, certamente inspira-dos no prokinesis persa, de detém emapologias e em declinações laudató-rias como Rei dos Reis, Fama dos Fa-mas, etc., como seria habitual numacorte muçulmana 36 . 8. Finalmente, o grande adversáriode Sundjata Keita, Suamoro Kantê é,de acordo com a narrativa do griot, umdeclarado inimigo da religião islâmi-ca, reinando com o auxílio de sortilé-gios mágicos e ameaçando submergirtodo o Manden no paganismo.Há que se considerar que esta pro-

fusão de arabismos testemunha umsecular intercâmbio mantido entreas populações das duas franjas doSaara 37 . No caso do Sudão Ociden-tal, os veículos desta influência fo-ram os mercadores berberes do Ma-greb. Em toda a savana sudanesa,nos núcleos urbanos situados ao lon-go das margens do Gâmbia, do Sene-gal e do Djoliba, estes comercianteseram numerosos, geralmente habi-tando bairros próprios, vez por ou-tra designados como brancos, ára-bes, mouros ou muçulmanos. Váriasfontes atestam a antiguidade de suapresença, e certamente, estes conta-tos redundaram na penetração de di-versas práticas originalmente estra-nhas ao mundo tradicional africano.Nada disto pressupõe antagonismoétnico. Constitui traço comum em di-versas descrições a convivência pací-fica das duas populações. O historia-dor árabe El Bakri (Século XI), visitan-do a capital do Ghana, a cidade deKumbi-Saleh, relatou tratar-se de umacidade-gêmea. Uma parte do sítio ur-bana estava reservada aos comercian-tes muçulmanos, ao passo que outra,próxima da floresta sagrada que abri-gava a serpente sagrada Cragadou-Bi-dá, totem do clã dominante dos Cissé,constituiria a cidade real (A respeito,ver entre outros, NIANE, 1984, PAIGC,1975, PAULME, 1977 e MUNANGA,1984). Neste particular, é preciso atentar

para o fato de que, apesar de terem fir-mado seu timbre na África Ocidental,estes muçulmanos alógenos não lo-graram qualquer predomínio político,religioso ou econômico. Quanto à suagênese, as realezas africanas nãoeram e nem podem ser explicadas, poruma eventual influência ou pelos con-tatos com o exterior. Estas formaçõespolíticas eram eminentemente endó-genas e se estruturaram em face deuma dinâmica social e histórica ne-gro-africana, e não islâmica.Outrossim, o comércio, tanto o decurta distância (intertribal) quanto ode longa (transaariano), não consti-tuía monopólio dos mercadores doMagreb. Muito menos, seria possívelexplicá-lo como uma iniciativa destes.Vale lembrar, os comerciantes sonin-ke já percorriam há vários séculos to-do o espaço da savana sudanesa, e is-to, muito tempo antes do surgimentodo próprio Islam 38. O mesmo pode ser colocado quantoà vida urbana sudanesa. A arqueolo-gia comprova uma florescente - e an-tiga - urbanização na região. A cidadede Djenne-Djeno, por exemplo, re-monta pelos idos do Século III a.C., eseus mercadores indubitavelmente jámantinham, desde pelo menos os Sé-culos V e VI d.C., um ativo tráfico co-mercial transaariano. O comparti-mento territorial formado pela sava-na resulta de um trabalho humanotravado durante milênios pelas popu-

lações locais, vale dizer, negro-africa-nas. Isto posto, qualquer avaliaçãoquanto aos fatores exógenos de suaevolução histórica, e especialmentequando o assunto em pauta detémuma “densidade civilizatória” maisproeminente, deve ser feita com ex-trema cautela 39 . Os elementos islâmicos presentesnas sociedades sudanesas surpreen-dem muito mais por sua incorpora-ção a um substrato cultural cioso desua especificidade do que por umaislamização em profundidade da so-ciedade africana tradicional. “Até achegada dos europeus, a África isla-mizada nunca se integrou verdadei-ramente no mundo muçulmano”(PAULME, 1977: 46). Mormente esteprocesso deu-se nomeadamentejunto às classes dirigentes, progre-dindo muito pouco além dela e mes-mo neste caso, não excluindo os va-lores tradicionais 40 . A topologia da narrativa - detalha-damente exposta - está impregnadapor estes valores, e a “força vital se-mântica” do relato é eminentementenegra. Evidentemente estas conside-rações poderiam ser estendidas aoMali enquanto uma formação estataltradicional. Este império, pelo volumede informações disponíveis, decidida-mente não se enquadraria em catego-rias clássicas como Estado Teocrático,Islâmico, Despótico ou Asiático. A cul-tura política fomentada pelo Mali, daqual o relato coletado por Djibril T.NIANE constitui excelente exemplo, éa de um Estado negro-africano quantoaos seus propósitos e fundamentos ci-vilizatórios. A origem deste impérioenraíza-se num ambiente históricotradicional e é neste marco que pode-mos - e devemos - estudá-lo e com-preendê-lo.Uma outra conclusão, diria respeitoà atraente hipótese da narrativa ope-rar uma radical distinção entre um“imperador islâmico” (Sundjata) euma espécie de “campeão da Áfricaprofunda” (Suamoro). Os problemassuscitados por esta interpretação nãoresidiriam unicamente em sua fragili-dade histórica ou simbólica. Como vi-mos, o próprio texto denuncia umSundjata escassamente islamizado,imerso na Africanidade e pouco afeitoa uma ortodoxia islâmica. Na realida-de, entendemos que cerne da tramareside não na oposição Islamismo xTradicionalismo, mas sim, na disputaque se trava em torno de duas possibi-lidades - cada uma delas identificadacom um dos Reis - do Poder Tradicio-nal fazer frente ao que, naquele con-texto, muito bem poderia ser concei-tuado como sua “modernidade”.Como sabemos, o Islam represen-tou um leque de novas possibilidadespara a África Sudanesa. Possibilidadede travar contatos comerciais bemmais profundos dos que até entãoeram mantidos com o Mediterrâneo,países do Levante e do Golfo da Guiné.O islamismo poderia contribuir paraconsolidar um forte poder político nu-

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ma região detentora de razoáveis po-tencialidades geopolíticas. O Mandené o divisor de águas natural da ÁfricaOcidental, muito promissor para aagricultura e o pastoreio, possuidorde ricos jazimentos auríferos e povoa-do por grupos tradicionalmente reco-nhecidos como ramificação de umtronco comum. A unidade políticadestes grupos seria uma resposta evi-dente e adequada às repercussõesprovocadas pelo fortalecimento deuma economia mercantil e fortementeurbanizada - para os padrões da época- com base num acervo cultural amal-gamado pelo Islam.Com relação a esta linha de raciocí-nio, tanto Sundjata Keita quanto Sua-moro Kantê pareciam concordar. Am-bos estavam determinados em criarum Estado forte, tendo no Manden suabase territorial. Naturalmente caberiaao soberano a gestão e a representa-ção desta nova articulação política.Qualquer que fosse sua pretensão pa-ra com o mundo islâmico, distinguia-se claramente o papel do rei como uminterlocutor do Manden para com os“de fora”. De uma forma ou de outra,Suamoro Kantê e Sundjata Keita en-tendiam a sociedade tradicional, aúnica por sinal que ambos conheciam,como fonte de poder, via manipulaçãosimbólica ou não.Porém, existiam divergências quan-to às posturas a serem adotadas. No es-sencial, a divergência entre os conten-dores residia no que hoje em dia defini-ríamos como estratégias políticas. Ain-da que Suamoro Kantê tenha sido maisexplícito na incorporação do aparatosimbólico proveniente do tradiciona-lismo - uma inferência a nosso ver pordemais evidente para requerer qual-quer exemplificação adicional - é ne-cessário atentar se de fato sua conexãoo mundo da tradição era de molde aagraciá-lo com a realeza ou não.Ora, o projeto político defendido porSuamoro Kantê trabalhava a premissade que a unidade política deveria seralcançada sacrificando-se o carátersegmentário das estruturas de poderda sociedade tradicional ou, como pre-ferimos definir, sua lógica de espaço-tempo. A implantação deste projeto deEstado centralizado, embora esposas-se todos os símbolos da tradição, a co-meçar por sua associação com o uni-verso mágico (Suamoro é o “Rei Feiti-ceiro”), na prática, agia objetivamentecontra ela. Quebrar o procedimentotradicional de buscar consenso atravésde pactos estabelecidos individual-mente grupo a grupo levou Suamoro,em suas últimas consequências, a posi-cionar-se contra a tradição, em cuja de-fesa em tese estaria se posicionando.Esta premissa explica, por exemplo,os motivos que levaram o rei do Sossoa violar tradições ancestrais, caso daviolência contra anciões e mulheres.Nos dois episódios, Suamoro polarizacom aspectos centrais da sociedadetradicional. Matar anciões implica emafetar a relação com os ancestrais,com os quais os mais velhos mantêm

uma relação de proximidade. Raptaras mulheres leva desarmonia às rela-ções clânicas e estruturas de paren-tesco, nas quais a sociedade tradicio-nal está assentada. A atitude de Sua-moro se insere numa clara contradi-ção com prescrições postuladas comonão sujeitas a questionamento. Taisprocedimentos negam a lógica tradi-cional que alicerça o edifício topológi-co proposto pela tradição.Outra, diametralmente oposta é aatitude de Sundjata. Além de sua posi-ção frente ao mundo tradicional sefortalecer pela própria oposição que asociedade do Manden fazia a Suamo-ro, Sundjata estava concretamente emmaior sintonia com ela. A fala do griotmanifesta seguidamente este com-promisso. Sundjata seria um sobera-no que sabe mandar (p. 57), um ho-mem do poder (p. 74). Sua força física,reunindo a majestade do leão e a forçado búfalo (p. 74), numa leitura africa-na, não poderia ser interpretada semum vínculo com poderosas forças vi-tais, resultado direto de sua parceriacom a ancestralidade. Ao contrário de Suamoro Kantê,Sundjata é cuidadoso no respeito a te-cidura espacial, daí sua conduta bus-cando cultivar, caso a caso, pactos ter-ritoriais diferenciados. No relato, asua figura transparece como a de umator social preocupado com uma rela-ção respeitosa com “as partes”, cujasespecificidades se prontifica a defen-der. Fundamentalmente, é esta a pos-tura que o credencia - e não a Suamoro- a cimentar uma vasta articulação es-pacial, o Império do Mali, para cujaformação contribuiu o repúdio da po-pulação do Manden e alhures por for-mas mais centralizadas - verticais - deexercício do poder. Por esta razão,Sundjata persegue o itinerário que omantém unido ao espaço-tempo pro-fundo, harmonizando-se com este.Talvez islâmico na aparência, Sundja-ta Keita é essencialmente tradicionalem sua prática concreta, terminandopor aglutinar as forças sociais que irãoimpô-lo como Mansa em toda a savanaocidental sudanesa.Neste sentido, o relato não corporifi-ca uma contradição Islamismo x Tradi-cionalismo, mas sim, duas leituras dife-rentes quanto à forma mais eficaz deenfrentamento de uma concepção demundo - o Islam - que poderia compro-meter definitivamente a sociedade tra-dicional. Tradicional na forma, Suamo-ro tentava concretamente reproduzir,manipulando um aparato simbólicotradicional, uma forma não-tradicionalde comando dos homens. Sundjata,muçulmano na forma, manipulava o is-lamismo com objetivo exatamenteoposto, qual seja, o de manter as refe-rências tradicionais de Espaço-Tempo. Sintetizando, poderíamos reprodu-zir uma das máximas cunhadas porGeorges BALANDIER, que com lucidez,observa este comportamento cama-leônico do Tradicionalismo. Diz ele:“Com efeito, a tradição não pode ser to-talmente eliminada e alguns de seus

elementos subsistem, mudando de as-pecto”, daí resultando que “a astúcia dotradicionalismo torna-se então, maisdificilmente desvelável” (1969: 167).Entre outras palavras finais destaavaliação, é indispensável dedicar-mos algumas observações para estefabuloso Império que foi o Mali (VideMapas 4). Graças ao gênio de Sundja-ta, foram lançados os alicerces queseus sucessores ampliaram de formaa modelar um respeitável arranjo ter-ritorial, alcançando o Atlântico e ocurso médio do Djoliba no sentidoLeste-Oeste, e o Saara e a FlorestaEquatorial no sentido Norte-Sul. “Estevasto império era, em última análise,uma espécie de confederação, na qualcada província conservava larga auto-nomia” (NIANE, 1984:176).Graças a esta prosperidade, o Impé-rio alcançou uma população de 40/50milhões de habitantes, que segundotodos os informes, desconhecia a ca-restia. Em si mesmo, este contingentepopulacional, é uma cifra nada despre-zível mesmo em termos de uma demo-grafia contemporânea. No Mundo Ar-caico, o Egito Faraônico, e os ImpériosAsteca, Romano e Chinês, alcançaramrespectivamente, nos seus momentosde apogeu, 15, 20, 100 e 200 milhõesde habitantes, o que coloca o Mali comum dos “formigueiros humanos” maisbem sucedidos da pré-modernidade.Outras maravilhas ainda poderiamser imputadas ao Mali. Estado que ti-nha no comércio um de suas notasmarcantes, o Mali não foi indiferente ànavegação marítima. Comprovada-mente, foram lançadas no Atlânticoduas gigantescas expedições, forma-das por 2.000 embarcações, que de-mandaram na direção do Oeste. Mes-mo que a possibilidade de terem alcan-çado ou não a América constitua alvode controvérsias (Ver a respeito, NIA-NE, 1984: 169 GIORDANI, 1985: 106 eFILESI, 1992), por si só a capacidadede organizar frotas com esta enverga-dura demonstra o poderio e o talentoorganizacional de um Estado Tradicio-nal Africano que a historiografia oci-dental tem solenemente ignorado.Contrariando os veredictos que nos

dias de hoje, decretam como inviáveisos Estados pluri-étnicos - dita que re-cai sobremaneira sobre os Estados daÁfrica Negra - o Mali seria uma dasmais soberbas demonstrações de queUnidade e Diversidade não são con-ceitos incompatíveis. Neste império,coexistiram diversas etnias, cada umadelas com sua própria língua e cultura,mantendo durante mais de três sécu-los uma vida comum sob a autoridadedos Mansas. Este lapso de tempo -muito maior do que o da existência damaioria dos Estados europeus moder-nos - explicita claramente que antesde se questionar a diversidade, o pro-blema talvez resida na capacitação ounão das estruturas políticas mais“avançadas” em assumirem plena-mente a pluralidade, um debate que acontemporaneidade expandiu paratodo o mundo.Por último, caberiam algumas pala-vras sobre estes extraordinários depo-sitários do conhecimento sagrado quesão os griots. “Há povos que se servemda linguagem escrita para fixar o pas-sado; mas acontece que essa invençãomatou a memória entre os homens:eles já não sentem mais o passado, vis-to que a língua escrita não pode ter ocalor da voz humana” (p. 65). Foi graças aos griots que chegouaté nós a memória dos feitos de Sund-jata, o Filho do Leão e do Búfalo, o Rei-caçador, Rei dos reis, Último Conquis-tador da Terra. Estes homens, quepercorrem incansavelmente a Savanana solene tarefa de transmitir, educare disseminar um conhecimento sa-grado são, entre outros atores sociais,um dos que representam aquele con-junto de valores civilizatórios pró-prios da Africanidade, da África Eter-na e Imorredoura, que numa solenedisposição de manter-se viva, ergue-se sempre altiva, desafiando podero-sas forças que ameaçam submergi-la.Pela fala do griot, pela tradição vivaque ele representa, pauta-se o reco-nhecimento dos valores de um vastocontinente, que oprimido e desquali-ficado como nenhum outro, ainda as-sim teima em sobreviver, em cons-truir sua própria história.

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1 - Texto preparado em 1993 para o Curso AQuestão da Africanidade – Introdução ao estu-do de elementos estruturadores de processossociais em civilizações negro-africanas, minis-trado em nível de pós-graduação pelo Profes-sor Doutor Fábio Leite, da FFLCH/USP, poste-riormente publicado pela revista África, doCentro de Estudos Africanos da USP (2000) edisponibilizado como texto internacionalmen-te relevante pelo Centre National de la Recher-che Cientifique (CNRS), da França (2007). Apresente edição resguarda todas as caracterís-ticas originais do ensaio, ao qual foram agrega-das pequenas cautelas editoriais e condicio-nantes acadêmicos das atuais pesquisas sobreÁfrica & Africanidades.2 - MAURÍCIO WALDMAN é coordenadoreditorial, jornalista, professor universitário eantropólogo africanista, Doutor em Geografia(USP, 2006), Pós Doutor em Geociências(2011), Pós Doutor em Relações Internacionais(USP, 2013) e em Meio Ambiente (PNPD-CA-PES, 2015). Waldman atuou como consultor in-ternacional da Câmara de Comércio Afro-Bra-sileira e professor do Centro de Estudos Africa-nos da USP. Colaborador do Jornal Cultura (deLuanda), e autor de dezenas de textos sobreÁfrica e Africanidades, é co-autor de MemóriaD’África: A temática africana em sala de aula(Cortez, 2007), obra de referência no campoafricanista. Portal Acadêmico: www.mw.pro.br, E-mail: [email protected] .3 - Para Fábio LEITE, a uma visão profundaou interna da realidade africana se opõe ao queconsidera como visão periférica. Esta últimaseria uma derivação de um “pensamento domi-nado por uma metodologia não diferencial, ei-vada de preconceitos e fundamentada nos limi-tes de suas proposições, não atingindo o núcleode outras realidades históricas” (1992: 85).4- O termo Sudão procede de um topônimode origem árabe: o Bilad-es-Sudan, isto é, oPaís dos Negros (PAULME, 1977: 37). Esta ex-pressão foi incorporada pela geografia colo-nial europeia, dizendo respeito, como paraseus proponentes originais, aos países locali-zados entre o Mar Vermelho, a Oeste, e o Atlân-tico, a Leste, acompanhando a faixa de savanase de estepes que se sucedem latitudinalmenteapós o deserto do Saara. Nesta linha de com-preensão, passou-se a falar em Sudão Orientalou Sudão Anglo-Egípcio (a atual República doSudão) e em Sudão Ocidental, que predomi-nantemente dominado pela França, foi tam-bém nominado como Sudão Francês. 5 - Ao contrário de determinado senso co-mum resultante de uma pregação de mote co-lonialista, as selvas fechadas de tipo equatorialnão constituem a cobertura vegetal predomi-nante na África. A grande marca na paisagemnatural do continente africano são os desertos,sucedidos em ordem de importância territo-rial, pelas savanas, pelas estepes e somenteapós estas, pelas florestas equatoriais. Levan-do-se em conta exclusivamente a África Negra,as savanas é que ocupariam então a primeiraposição. Por sua importância, as savanas de-mandariam por algumas ponderações indis-pensáveis, a começar pelo fato de que a ocupa-ção humana deste ambiente é bastante remo-ta, contemporânea ao surgimento do gênerohomo, há mais de um milhão de anos atrás.Com base nesta evidência, pode-se afirmar queo trabalho humano - ou ação antrópica - impri-miu uma marca nesta paisagem, determinan-do várias das suas características ambientais.

Embora seja um evidente exagero atribuir àação do homem, por si só, a formação das sava-nas (hipótese antropogênica), é inegável a con-tribuição humana nos processos de formação ede manutenção das savanas. A caça pelo fogo,por exemplo, da qual existem registros anti-quíssimos, contribuiu para seu surgimento emregiões nas quais os fatores climáticos ou pe-dológicos parecem não terem sido determi-nantes. Mesmo não correspondendo à totali-dade das savanas, estes casos com responsabi-lidade genuinamente humana respondem porsuperfícies ponderáveis da área savaneira.Ademais, a prática de queimar continuamentea vegetação é fundamental para a perpetuaçãodos processos ecológicos da savana, impedin-do ou detendo o adensamento da cobertura ar-bórea. Ao lado dos caçadores, os pastores tam-bém exerceram sua influência sobre o meio na-tural, pelo pisoteamento do solo, consumo se-letivo da flora pelo gado, etc. Numa escala me-nor, pode-se também relacionar a agricultura,embora muitíssimo mais impactante por pro-mover o surgimento de ecossistemas simplifi-cados (os campos de cultivo). Reservados es-tes destaques, a savana enquanto um ecossis-tema, não forma uma entidade unitária. Noecossistema savaneiro, é possível distinguir: asavana florestada (savanna woodland), a sava-na arborizada (tree savanna), a savana arbus-tiva (scrub savanna) e a savana de gramíneas(grass savanna). Em África, as grandes pasta-gens savaneiras entretêm uma rica fauna com-posta por girafas, rinocerontes, leões, hienas,elefantes, lobos, chacais, leopardos, etc., cujadistribuição foi fortemente condicionada pelaatuação dos caçadores primitivos. As árvoresde acácias e os baobás são espécimes relevan-tes da flora da savana. No caso do baobá, umverdadeiro símbolo do continente negro, a es-tima que lhe é devotada pela população, pro-porcionou considerável auxílio em sua difu-são. (A respeito das savanas, ver ainda HAR-RIS, 1982 e COUTINHO, 1977). Por fim, algu-mas das mais conhecidas e proeminentes et-nias negras são populações savaneiras, casodos Senufo e Mandenka no Sudão Ocidental, edos Luo, Kikuyo e Maasai na África Oriental. 6- Como adverte José Roberto Franco daFONSECA, “é preciso não perder de vista que oIslam não foi o criador dos Estados Imperiaisda África Ocidental e do Sudoeste: encontrou-os já florescentes” (1984: 59). Quanto aos po-vos que se auto-identificam como muçulma-nos, seu caráter islâmico é muitas vezes alvode controvérsias. Estas se materializam emconceituações como as que opõem um islamis-mo árabe (ou berbere), a um islamismo africa-no, ou ainda, mantendo correspondência comas primeiras, em um islamismo puro em oposi-ção ao impuro, etc. De qualquer forma, nota-seum consenso quanto ao prosseguimento dasconcepções religiosas tradicionais, cuja práti-ca foi largamente sincretizada à do Islam (VerFONSECA, 1984: 60-61). Particularmente noSudão, a propagação do Islamismo (em con-traste com a costa oriental africana), resultoude contatos geralmente pacíficos da populaçãolocal com os mercadores berberes, e não comouma sequela de uma empresa conquistadoramanu militari (caso da Jihad - Guerra Santa).Por extensão, o segredo da islamização do Su-dão parece residir na adaptação deste às tradi-ções africanas locais, aspecto que, aliás, se evi-dencia na própria narrativa de Sundjata.7- É comum na literatura antropológica

clássica o uso das tipologias Bantu e Sudanêspara referendar macro-conjuntos. Em princí-pio constituindo dois dos principais grupos ne-gro-africanos, os Bantu e os Sudaneses formamconjuntos a agrupar centenas de etnias. Certa-mente, existem diferenciações especificandoas etnias no interior dos conjuntos maiores, oque não compromete, contudo, um vínculo cul-tural mais abrangente que as unifica, sejam nocontexto Bantu e o Sudanês, e ambos por suavez entre si. Cumpre assinalar, uma visão de di-versidade não é excludente de uma ótica deunidade. Toda a África, independentemente dequaisquer macro-conjuntos, compartilha deigual para igual as mesmas referências de espa-ço e de tempo, de relações sociais e familiares,de um modo de ser regrado por relações visce-ralmente comunitárias, por conceitos como osde força vital e assim por diante.8 - Ao lado da África Negra, seria possívelelencar outras cinco grandes civilizações: a Eu-ropeia Ocidental, Leste Europeia, Islâmica,Hindu e Chinesa (Cf. BRETON, 1990).9 -Por conta dos primados racionais, a atitu-de do ocidental frente ao meio natural é neces-sariamente reducionista, pois termina por res-tringir à natureza ao que seria apreensível pelarazão, pelo racional. Por extensão, a natureza,no meio em que nos movemos, é de antemão,intelectualizada (Cf. MONTERO, 1990: 34).Consequentemente, o espaço moderno é umespaço isento, objetivo, despaganizado, umaentidade artificial gerenciada por uma ordena-ção linear e progressiva do tempo social.10 - Não há nenhum exagero em afirmarque esta memória perde-se literalmente nanoite dos tempos. Eis o que nos relata AmadouHAMPATÉ-BÂ: “Tomemos o exemplo de Thia-naba, a serpente mítica Peul, cuja lenda narraas aventuras e a migração pela savana africana,a partir do Atlântico. Por volta de 1921, o enge-nheiro Belime, encarregado de construir a bar-ragem de Sansanding, teve a curiosidade de se-guir passo a passo as indicações geográficas dalenda, que ele havia aprendido com HammadiDjenngoudo, grande conhecedor peul. Parasua surpresa, descobriu o antigo leito do Ní-ger” (1993: 216).11 - A topologia é um ramo da matemáticaque estuda, dentre outros relevantes assuntos,as propriedades que permanecem inalteradas- as invariantes - mesmo quando a forma das fi-guras é distorcida, e o tamanho, modificado.Por analogia, uma topologia cultural estudariaas propriedades do espaço imaginário, certifi-cando-se do caráter destas transformações to-pológicas, da continuidade ou não de uma geo-grafia imaginária, exclusiva de um povo, grupoou etnia. Nas “paisagens arquetípicas”, estãodispostos objetos espaciais simbólicos, queinspirados ou não no espaço concreto, exalta-dos por uma dada consciência social. O em-préstimo de valores qualitativos à percepçãodo espaço pelas sociedades pré-modernas, re-clamava uma parceria da paisagem topológicacom inferências psicológicas, tais como estaseram historicamente moduladas pelo padrãocivilizatório em questão. De igual forma comopara outras sociedades não-europeias, na Áfri-ca Negra tal postura implica na avaliação dasequivalências existentes entre os dados quali-tativos do espaço com as contribuições prove-nientes das modalidades de pensamento con-sideradas míticas ou mágicas.12 - Naturalmente, importa discutir a tem-poralidade do africano em conjunto com sua

visão de espaço pelo simples fato de que espa-ço e tempo são indissociáveis, estando em con-jugação permanente tanto em seus aspectosditos objetivos, quanto nos simbólicos ou ima-ginários. Não há e jamais poderá existir, excetopara fins meramente didáticos ou pedagógi-cos, discussão relativa ao espaço sem referên-cia ao tempo e vice-versa. Mesmo recordando,como será analisado adiante, que a sociedadetradicional africana está regrada por um clarodinamismo espacial, nada disso depõe pela ex-clusão da variável tempo em um discernimen-to de perfil topológico.13 - A terminologia é amplamente utilizadapor Mircea ELIADE (1975), para avaliar confi-gurações culturais de um amplo conjunto depovos da antiguidade, uma acepção que aaproximaria, de certo modo, ao conceito depré-modernidade.14 - Tanto Alexis Kagamé quanto PlacideTempels centraram suas pesquisas na ÁfricaBantu. Entretanto, suas sondagens relativas aesta área cultural valem virtualmente para aárea Sudanesa. Dentre outros, SulaymanNIANG (1982), Amadou HAMPATÉ-BÂ (1993)e Djibril Tamsir NIANE (1982), proeminentessábios sudaneses, corroboram esta posição.15 - Régulo constitui terminologia adotadaem língua portuguesa, desde o tempo da expan-são e dominação colonial, para nominar amplagama de chefarias tribais asiáticas, africanas, la-tino-americanas e da Oceania, com as quais osnavegantes portugueses travaram contato. EmAntropologia, o termo continuou a frequentar ostextos com o mesmo significado original, qualseja, de referir-se a um pequeno potentado, a umgovernador de província, preposto local de umimperador, um chefe de aldeia ou grupo tribal,situações que em comum, referem-se a formaslocais e/ou autárquicas de exercício do poder.16 - A abordagem da formação da pessoa naÁfrica Negra deve considerar que o africanoobserva sua existência visível como uma sínte-se de elementos vitais naturais - como o corpo,o princípio vital da animalidade e espirituali-dade, bem como o princípio vital da imortali-dade e os elementos vitais sociais - constituí-dos pelo nome, pelos processos de socializaçãocom suas etapas iniciáticas e finalmente, pelosritos funerários, que estão em interação dinâ-mica permanente (Vide LEITE, 1991/1992:69-70). É o que se pode perceber no Poro, umrito de iniciação encontrado entre os Senufo(habitantes das savanas do norte da Costa doMarfim), Bambará (Mali) e os Mende e os Tem-ne (Serra Leoa), caracterizado por uma sinto-nia com estes princípios vitais. Ele é represen-tativo da sociedade agrária tradicional africa-na, dita de “economia de subsistência”, e cen-trada, como entre os Senufo, na aldeia (Kaha).Seu núcleo é a família extensa africana no sen-tido de ascendência, descendência e seus des-dobramentos (Nerigbaa). O Poro é uma passa-gem rumo à personalidade-padrão, habilitan-do o adulto a enfrentar os pesados encargossociais pelos quais ele é responsável. Ele en-volve a morte simbólica da personalidade an-terior e localiza o indivíduo na natureza e nasociedade, alçando-o a uma síntese ótima en-tre as duas dimensões. O Poro exclui aquela ci-são absoluta entre o nível natural e o social talcomo está pautada pela visão de mundo oci-dental (Cf. LEITE, 1993).17 - Uma sentença exemplar provém deGeorges BALANDIER: “No país Mossi [Repú-blica do Burkina Fasso], a última sequencia

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da investidura real impõe um percurso ini-ciático pelo qual o soberano incorpora a his-tória do reino (por contato com os lugaresaonde é investido) e por sua vez o espaço (odos “amos da terra”). O que dá força à metáfo-ra é que, evidentemente, não se diz que o Reiincorpora, senão que devora a história. O reinão adquire plena soberania se não encami-nha estas prescrições” (1988: 46).18 - Tais considerações são das que realçama necessidade de metodologias capacitadas aentender o Continente negro no amparo dassuas perspectivas civilizatórias. Já é fato bastan-te conhecido que a África, enquanto um “labora-tório político” tem oferecido, por exemplo, re-sistências no tocante à aplicação de uma meto-dologia marxista, demasiadamente rígida aomenos em suas formulações originais. Seria ocaso, por exemplo, da adequação do modelo domodo de produção asiático aos Estados tradi-cionais africanos. Isto, independentemente daprópria validade do conceito de modo de pro-dução, que estabelecendo a primazia do econô-mico, torna-se absolutamente estranho na óticadas culturas tradicionais, de vez que estas nãoreconhecem a economia como uma esfera autô-noma da vida social. Na África Negra, as forma-ções estatais não possuíam um caráter despóti-co como está implícito no conceito modo de pro-dução asiático. O “Déspota Africano”, se é queassim poderíamos denominá-lo, estava, nos di-versos reinos e impérios, sujeito a interdições esansões que limitavam consideravelmente suasoberania, bloqueando uma maior concentra-ção de poderes (Ver RIFUKO, 1975). Não semrazão, Maurice GODELIER (1974) e Jean SU-RET-CANALE (1974), conhecedores das limita-ções da conceituação, propuseram adições e re-tificações ao modelo original, ressalvando que omodo de produção asiático teria em África, umagênese diversa das outras paragens. No conti-nente, a formação social asiática não seria umadecorrência da necessidade de “obras públicas”(notadamente hidráulicas), mas sim, o resulta-do do comércio intertribal. Quanto ao conheci-do sábio marxista Giorgi Lukács, este sugeriapara o continente um outro modelo de análise,desvinculado da “Velha Ásia”. Com uma inter-pretação bastante sugestiva, eis suas considera-ções: “Nas condições em que Marx viveu, elenunca analisou o desenvolvimento dos povosafricanos. Com base na mais rigorosa reflexãomarxista estamos no direito de perguntar: Ondeestá escrito que o desenvolvimento dos povosafricanos deverá, inexoravelmente, efetuar-sede acordo com o modelo europeu ou mesmoconforme o esquema asiático? Pode acontecerque, além das relações de produção europeias easiáticas, existam igualmente relações de pro-dução especificamente africanas” (citado emDA SILVA, 1984: 246). Nesta linha de argumen-tação, eventuais rasgos asiáticos não deman-dam, necessariamente, pelas formulações mar-xistas clássicas, como a do modo de produçãoasiático. Estas podem reproduzir em nível daanálise das sociedades africanas, induções decunho generalizante, borrando os contornosidentitários específicos do continente.19 - Lembra Anthony GIDDENS, “No passa-do, ninguém poderia dizer a hora do dia semreferência a outros marcadores sócio-espa-ciais: quando, era quase universalmente ou co-nectado a onde ou identificado por ocorrên-cias naturais regulares” (1991: 25-26).20 - No âmbito da teoria da relatividade, uti-liza-se a expressão coordenada crono-tópicapara a coincidência tempo-lugar, atendo-se no

caso, aos aspectos objetivos e não nos metafísi-cos desta conexão.21 - Embora existam estudos vinculando otempo linear da modernidade à concepção he-braica de tempo, vale assinalar que esta última,mesmo concebendo uma linearidade - ou umdirecionamento retilíneo - para a temporalida-de, não compartilhava com a modernidade ne-nhuma outra nuance. O tempo hebraico é umadas vertentes derivadas do mundo arcaico, enesta perspectiva, possuía elos de ligação mui-to mais íntimos com outras temporalidadespré-modernas (Ver WALDMAN, 1994 B e 1995B). Dentre outras afinidades, o tempo hebraicosubentendia uma mesma valoração qualitativapara a temporalidade, uma mesma lógica tem-poral segmentária e/ou compartimentada e,um mesmo caráter espacial quanto aos dina-mismos gerais da temporalidade. Ademais, oseventos dispostos retilineamente no tempo he-braico não se sucedem, como na modernidade,numa ordem hierárquica, pois o encadeamentodos fatos entre si dava-se através de uma lógicacardinal e não ordinal. Fala-se na Bíblia de Um,Dois, Três, etc., e não, de Primeiro, Segundo,Terceiro, etc. Em suma, retilinearidade nãopressupõe, necessariamente, progressividade.22 - Este corolário manifestava-se vivida-mente na arte africana, em sua persistente re-presentação de espirais, círculos concêntricose desenhos em zig-zag, associados, em todo ocontinente africano, à noção de força vital. Emmeio à literatura oral, isto também se eviden-cia, por exemplo, no relato de Sundjata.23 - Nesta economia política do linguístico,observa-se uma dilatação do corpo do rei, esta-belecendo-se uma correspondência corporalcom os notáveis que cercam a realeza. O griot,no caso, representa a boca, sendo por exten-são, um mestre de cerimônias (Cf. BALAN-DIER, 1988: 36-37).24 - Por esta, entre outras razões, a penetra-ção do Islam no Sudão deve ser avaliada commuito cuidado. A expansão do Islam não repou-sou numa afinidade in abstracto de visões demundo, mas sim, em razão de motivações histó-ricas e sociológicas muito precisas. Em síntese,a implantação do Islam na África Negra, mesmoprocurando uma adaptação ao mundo tradicio-nal, polariza com este em nível de visão de mun-do, o que é, de uma forma ou de outra, assinala-do por diversos pesquisadores africanos (NIA-NE, 1984, LY-TALL, 1984 e NYANG, 1981). 25 - A este respeito, atentemos às palavrasde Louis GARDET: “Se o Islam é e pretende serum universalismo, recebendo no decurso dosséculos expressões persa, turca, urdu, malaia,todas elas deitam raízes num livro árabe, o Co-rão, e foram, a princípio, pensadas e elabora-das sob uma roupagem árabe” (1975: 229).26 - O povo manden - ou mandenka, man-dinga ou mandingo - compreende vários gru-pos e subgrupos na zona sudano-saheliana, po-dendo-se identificar três ramos principais: a)os Soninke ou Sarakollé, fundadores do Impé-rio do Ghana; b) os Sosso ou Sosoe, instaladosaos pés dos Montes de Kulikoro; c) os Maninkaou Malinké, fundadores do Império do Mali.27 - As máscaras, em África, constituemuma das representações de compromissos so-ciais “profundos”. Sua significação relaciona-se a um conhecimento sagrado cujos guar-diões e propagadores são os bruxos e os feiti-ceiros. Contrariamente ao mundo moderno,na África Negra as relações face a face são asque mais importam. Nos rituais iniciáticos,seu componente dinâmico apela para a ima-

gem das máscaras, que transmitem aos ho-mens os elementos da tradição ancestral. Con-trariamente ao que é imaginado no Ocidente,raramente as máscaras estão desacompanha-das, quando de sua aparição, de uma coreo-grafia e de trajes que a complementam, daí aincorreção em entendê-las como representa-ções em si mesmas de deuses ou forças espiri-tuais. A terminologia máscara aplicada aSundjata, tem um sentido figurativo, a de-monstrar o caráter totalizante de que se re-vestem as relações sociais no mundo africano.28 - Notar que o centro do universo, nestecaso, não é Meca como seria óbvio num relatomuçulmano, mas sim, Niani, uma cidade indis-cutivelmente negro-africana.29 - A imagem da montanha surge em diver-sas civilizações de outrora, relacionadas aoque Mircea ELIADE denominava de arquétipomítico (1975). Entretanto, é incorreto pensartodo este conjunto de imagens como associa-das a um mesmo conjunto arquetípico ou civi-lizatório. As formas-montanha refletem inde-pendentemente das homologias existentes,sentidos simbólicos específicos dos quais nos-sa atenção nunca deve se desviar. Debruçar-sesobre os eventuais sentidos simbólicos geraisda ascensão ou da busca do etéreo nestas ima-gens - de resto óbvias por serem justamentemontanhas - é perder de vista o enorme poten-cial particular de cada uma destas “rugosida-des” na topologia cultural de cada um dos po-vos, grupos ou civilizações.30 - Como informação suplementar, subli-nhamos a constatação de Georges BALANDIERquanto ao itinerário iniciático desenvolvidopelo Rei do Yatenga (Estado formado pela et-nia Mossi, correspondendo aproximadamenteao atual Burkina Fasso), também adaptado aopériplo solar (1988: 98).31 - O imaginário espacial africano é am-plamente dominado pelo Sol. O enormeprestígio deste astro em África seria decor-rência direta do caráter agrário da socieda-de tradicional (para as diversas implicaçõesdo Sol para o conceito de dia, Vide KAGAMÉ,1975: 119-122).32 - Recorde-se que a condição de profeta,no mundo semítico, não se desvencilha da dechefe militar, político e religioso.33 - Notar que a crônica manipula o própriosimbolismo numérico semítico clássico, relati-vo ao número sete, para legitimar Sundjata,destacado como o sétimo imperador.34 - Embora a adoção em nível imaginário deancestrais muçulmanos originários do Orientefosse prática comum nas cortes sudanesas, é dese notar que os Keita não reivindicam um ances-tral branco, mas um negro abissínio (NIANE,1984: 147). Isto é condizente com o caráter di-nâmico que Georges BALANDIER (1969 e1976) identifica no histórico das linhagens.Nesta rede de parentesco imaginária, as genea-logias são manipuladas com vistas à manuten-ção ou busca de legitimidade nas disputas porstatus na sociedade africana tradicional.35 - O castigo de decepar primeiramente amão direita não é necessariamente islâmico.Independentemente dos contatos com omundo muçulmano, esta penalidade se coa-duna a um forte substrato negro-africano.Como em vários contextos do mundo pré-moderno, em África, a mão direita estavasimbolicamente associada à ideia de pureza,enquanto que o impuro estava identificadocom a mão esquerda. O exercício da penalida-de não constitui mera difusão cultural, pois

estava concatenado a uma cosmovisão ne-gro-africana que opõe, similarmente ao Is-lam, o esquerdo ao direito e vice-versa. Dignode nota, a extirpação da mão direita era umcastigo psicologicamente atroz, não se res-tringindo à dor física ou ao constrangimentofísico. Dispondo unicamente da mão esquer-da em seu cotidiano, o indivíduo era compeli-do a utilizar-se obrigatoriamente de seu ladoimpuro, situação com evidente impactaçãosocial negativa. Além disso, sua rede socialtambém estaria à mercê da inoculação de po-luição. Por último, no que se dissocia do mun-do muçulmano, o relato não registra o corteda mão esquerda em caso de reincidência, co-mo seria proposição alcorânica clássica. Naepopeia, o reincidente é agrilhoado.36 - Na epopeia, registram-se também in-fluências extra-muçulmanas, mas que aporta-ram no Mali através do Islam. Este seria o casodo sugestivo debate mantido pelos corvos deSundjata e de Suamoro Kantê (página 91), umverdadeiro plágio do que a tradição grega su-põe ter sido travado entre Alexandre, O Gran-de, e o Imperador persa Dario. Na crônica, aambientação é africana, mas a “tecidura” da ex-posição é indiscutivelmente helênica. Esta res-semantização do diálogo provavelmente de-corre de uma estratégia semântica que refe-rencia Djul Kara Naini para promover o enalte-cimento da imagem de Sundjata.37 - Por toda a África, são abundantes asprovas referentes à existência de circuitos tra-dicionais de comércio, quase sempre imemo-riais. Na África Ocidental, por exemplo, um trá-fico antiquíssimo unia as populações nômadesdo Saara - como os Tuaregues - aos numerososaldeamentos camponeses dispostos ao longodo Djoliba. Este comércio estava respaldadopela troca do sal extraído dos lagos salgados dointerior do deserto, pelos cereais cultivadospelos sedentários.38 - Devemos encarar com certa suspeitaênfases demasiadamente pródigas na exalta-ção do conteúdo islâmico externo. Para algunssegmentos da historiografia ocidental, estatendência em destacar a influência árabe-ber-bere-muçulmana na história da África Ociden-tal decorreria do enunciado que não observa,no continente africano, algo mais do que umconjunto de tribos incultas e incivilizadas. Poresta via, ressaltar ou privilegiar este compo-nente arabo-islâmico interessaria por - pelomenos - tratar-se de um referencial não-negro.39 - Devemos encarar com certa suspeitaênfases demasiadamente pródigas na exalta-ção do conteúdo islâmico externo. Para algunssegmentos da historiografia ocidental, estatendência em destacar a influência árabe-ber-bere-muçulmana na história da África Ociden-tal decorreria do enunciado que não observa,no continente africano, algo mais do que umconjunto de tribos incultas e incivilizadas. Poresta via, ressaltar ou privilegiar este compo-nente arabo-islâmico interessaria por - pelomenos - tratar-se de um referencial não-negro.40- Isto não passou despercebido aos via-jantes árabes que visitaram o Manden, cujossoberanos conservaram-se fiéis aos rituaisautóctones. “Ibn Batuta escandalizou-secom algumas práticas pouco ortodoxas; ex-cetuando-se a presença dos árabes e o fracoverniz muçulmano, o que se passava na cortedos Mansa era pouco diferente do que se po-deria observar na corte dos reis não-muçul-manos, como por exemplo, os Mossi” (NIA-NE, 1984: 170-172 ).

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A DINÂMICA SOCIAL DE ANGOLA EM 19432. O pré nacionalismo como etapa histórica

JONUEL GONÇALVES

Antiga Baixa de Luanda onde hoje está o edifício da Sonangol

Em Luanda, entre os colonos fo-ram criados alguns clubes de conví-vio marcados pela região portuguesade origem dos seus promotores, emgeral destinados a almoços e jantaresde confraternização, bailes e come-morações pessoais. Um deles, oTransmontano, ganhou destaque porpossuir boas instalações para festas,abertas até a grupos estudantis comboa participação angolana. Porém, deforma mais alargada para os angola-nos, as diferenças situam-se a nívelda classe social. A pequena classe mé-dia participa, sobretudo, nas ativida-des recreativas dos clubes desporti-vos ou junta-se nas datas comemora-tivas em casas de famílias com maisrecursos. As camadas de baixo rendi-mento, habitantes dos muceques,convergem neste plano para clubesou espaços do Bairro Operário, ondepor vezes surgem pequenas bandaslocais e onde conjuntos depois muitoreputados, como o Ngola Ritmos, fi-zeram seu aprendizado. A soma de todos estes centros re-creativos produzia fins de semanamuito animados e boa conexão aossucessos musicais mundiais, graçasàs emissões dos radio clubes (a Ra-dio Angola-Emissora Oficial só serácriada na década seguinte), contextoassinalável também nas outras setecidades da Angola-1943: Nova Lis-boa, Sá da Bandeira, Lobito, Bengue-la, Silva Porto, Malange e Moçame-des (hoje Namibe).Com incidência nas diversas afir-mações de angolanidade em zona ur-bana – inclusive na própria diversi-dade de definições, umas mais racia-lizadas, outras menos - o Clube Atlé-tico de Luanda era o mais visível. Nas

referidas conversas da década de1960, José Rocha de Abreu apontou-nos exemplos de atitudes culturais,resistências em pequenos detalhesdo cotidiano por parte de sócios, di-rigentes ou atletas do clube, entre osquais um pequeno grupo, ou até a ní-vel individual, agiam politicamentecom muita precaução mas eficazesnos seus círculos de relacionamento.O Clube Ferroviário, sustentado pelaDireção Provincial dos Serviços dePortos Caminhos de Ferro e Trans-portes, dirigido por brancos, mante-ve-se aberto a atletas negros, ao con-trário de alguns clubes – filiais dosmetropolitanos, como o Benfica –que limitavam, evitavam ou até rejei-tavam negros. Esta discriminação em Benguelapelo Benfica local levou – ainda se-gundo Abreu – à formação de novoclube com símbolos e equipamentoem preto e branco. O assunto tornou-se motivo de polêmica publica e in-terrogações da administração colo-nial, de tal forma que para conseguira legalização, os promotores do clu-be deram-lhe o nome de Portugal(atualmente Nacional de Benguela).No vizinho Lobito, o equivalente aoFerroviário de Luanda (LobitoSports Clube) adotava política racialdiscriminatória, como o Ferrovia deNova Lisboa. Nos muceques de Luanda, em1943 vários clubes recreativos oudesportivos existiam ou estavam emformação ou tinham existências efê-meras. O Botafogo ( ou Bota Fogo)ganharia relevo histórico por ser lo-cal de reuniões nacionalistas clan-destinas, enquanto o Benfica do Mar-çal e o São Paulo Futebol Clube desta-

caram-se pela revelação posterior dejogadores importantes no cenáriolocal, um dos quais Ngola Kabango,hoje líder da FNLA. Outra personali-dade política com participação na lu-ta pela independência, Aníbal de Me-lo, foi treinador do São Paulo, nomedo bairro que em 1943 só possui osprimeiros elementos.Para o Dr. Eduardo Macedo dosSantos, natural de Malange, exiladodurante a luta pela independência,primeiro presidente da FederaçãoAngolana de Futebol, jogador doSporting de Luanda na década de1940, antes de ir para Coimbra ondese formou em Medicina e jogou naAcadêmica (clube da primeira divi-são portuguesa), a relação entre raçae classe aparecia com nitidez nacomposição da equipe do Sportingluandense. Para ele, “mestiço claro”de classe média, a integração nãosuscitou dificuldades, mas a inserçãode negros do muceque só se daria emcasos de atletas extraordinários. Ele expressou-nos esta avaliaçãodurante o longo período (entre mea-dos das décadas de 1970 e 1980) denossos debates informais em Luandasobre a evolução do nacionalismo esociedade em Angola desde o come-ço da segunda guerra mundial.Estava-se, portanto, perante umforte associativismo, atravessadopelas mesmas tensões de toda a so-ciedade da época, usado pelos váriosatores sociais como área de atuaçãoe revelação de comportamentos, mo-tivo pelos quais era vigiado pela ad-ministração colonial.Ainda sobre discriminações e pre-conceitos, há um pormenor impor-tante atingindo até algumas das per-

sonalidades que neste ano começa-vam a ganhar influência. Trata-sedas implicações raciais nos laçosafetivos. Assim, o Dr. Eugénio Ferrei-ra por ter casado com uma mestiçaera alvo de comentários sarcásticospelos setores ultra-colonialistas.Mais grave ainda foi o caso de “Liceu”Vieira Dias (negro para uns, mestiçopara outros) principal animador doNgola Ritmos, que casaria com Na-tércia Almeida, branca natural deCamacupa, Bié. Os comentários ra-cistas neste caso eram mais agressi-vos em virtude da mulher ser branca.Na década seguinte, Natércia tor-nou-se uma ativista clandestina degrande coragem no trabalho de liga-ção com os presos políticos e atravésde ação social.A resistência a casamentos mistosnão ocorria apenas entre brancos se-gregacionistas. José Rocha de Abreu,ele próprio branco casado com umamestiça, referiu nas nossas conver-sas comentários negativos do cône-go Manuel das Neves ao casamentode familiar sua com um branco, semter ficado claro se o comentário eraracialmente motivado ou em virtudedo noivo ser europeu.Ainda assim há uma particulari-dade: apesar desses níveis de hos-tilidade, tais casamentos eram pos-síveis, ao contrário do que ocorriajá na África do Sul e, com coragem,os casais continuavam a viver emAngola, relativamente indiferentesàquela hostilidade, encontrando“compensação” na grande simpatiae apoio moral dos círculos antirra-cistas, ou seja, não estavam isola-dos de maneira nenhuma.Uma crítica generalizada na popu-

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lação negra voltava-se contra os colo-nos com amantes negras, sem que issosignificasse oposição a relacionamen-tos amorosos indiferentes à raça. Pelocontrário, essa crítica fazia da exigên-cia de casamento o ponto fulcral, de talforma que mais tarde o cantor popularTeta Lando compôs uma musica abor-dando o assunto e fazendo a mesmaexigência. Considerando formulações inicia-das pelo escritor e político angolanoMário de Andrade, que definem comoproto-nacionalismo o periodo de fi-nais do século XIX ao começo da déca-da de 1930, o ano de 1943 aparece-nos como integrado num período quepodemos designar por pré-naciona-lismo, caracterizado por reivindica-ções politicas e culturais, denuncia doracismo e intenções de independên-cia, embora aceitando no médio prazoum regime de autonomia com largaparticipação de angolanos e fim dosentraves ao desenvolvimento. Os limi-tes entre o pré-nacionalismo angola-no e a oposição democrática portu-guesa são flexíveis. Iniciado com a fun-dação da OSA em 1937 desenvolve-secom mais rapidez que o proto nacio-nalismo e pouco depois do final da se-gunda guerra mundial já se podeconstatar a existência do nacionalis-mo angolano como ideia e vontade es-palhadas por todo o país. Na década de1950 surgirão os primeiros embriõesorganizados nessa linha.O pré-nacionalismo correspondetambém ao período de passagem daadolescência á idade adulta dos futu-ros militantes nacionalistas, tendo amaioria dos mais destacados passadopelas escolas e liceus existentes naépoca. O ano de 1943 dá-nos algumasindicações. O Liceu Nacional de Salvador Cor-reia, primeiro estabelecimento de en-sino secundário oficial na colónia, ti-nha sido criado apenas em 1919 e em1937 iniciou-se a construção do edifí-cio existente até hoje, inaugurado em1942. O impacto histórico deste liceu

é atestado pela permanência, hoje, donome original na fachada de colunas edo mural em azulejos celebrando a re-conquista de Angola aos holandesesem 1648, apesar da mudança pós co-lonial do nome para Liceu Mutu ya Ke-vela. Em 1943 era considerada como amais imponente construção nesse ní-vel de ensino em todo o império por-tuguês, metrópole incluída, ainda queo número de matriculados fosse ape-nas da ordem das centenas, em largamaioria brancos. Monsenhor Alves daCunha foi um de seus reitores. Em1943, Agostinho Neto e Viriato daCruz são alunos deste liceu e come-çam a interessar-se pela poesia. Doisnomes de alunos do Salvador Correiatêm nesse momento destaque por se-rem dos raros negros, membros da co-nhecida familia de classe média AssisBoavida e por serem excelentes joga-dores de futebol: Américo e DiogenesBoavida, ambos a seguirem para uni-versidades portugueses antes de finalda década. O futuro poeta, combatenteclandestino e preso político, AntonioCardoso, então com dez anos, terminaa escola primária e vai entrar no liceu.Naquela época – como quase todos osjovens de então – é mais conhecido pe-la atividade profissional do pai, co-merciante com destaque na praçaluandense onde será um dos sócios dafirma Cardoso & Figueiredo. Ao mes-mo tempo, outro fundador do MPLA,Mário de Andrade, estuda no privadoColégio da Casa das Beiras, após terpassado pelo Seminário católico deLuanda junto com seu irmão Joaquim,que lá permanece junto com Alexan-dre do Nascimento (hoje Cardeal-Ar-cebispo Emérito de Luanda).Mário Torres tem um perfil e traje-tória semelhantes aos Boavida, inclu-sive na pratica futebolistica, mas é doHumabo, conterrâneo mais jovem deSócrates Daskálos que já está em Por-tugal, na universidade; Aires de Al-meida Santos diplomado pelo LiceuNacional de Diogo Cão, na Huíla, insta-lou-se em Benguela após a sua prisão

em 1941, cidade marcada por acen-tuado espírito de resistência comcomponentes nacionalistas, maçôni-cos e de prolongamentos da oposiçãoportuguesa a Salazar, tendo na figurado advogado natural desta cidade,Amilcar Barca, nascido em 1880, umafigura inspiradora, cujo nome era cita-do em todos os meios da resistênciaangolana deste período e no períodoseguinte, ao surgirem os movimentosda década de 1950 preparadores dainsurreição de 1961. Jonas Savimbi, fundador e Presiden-te da União para Independência Totalde Angola (UNITA) até sua morte em2002, no final da guerra civil, nasceuem 1934 no Munhango, estação ferro-viária do leste angolano e, em 1943, es-tá prestes a terminar a escola primária.Vai iniciar uma trajetória de algunsanos em escolas secundárias da IgrejaEvangélica Congregacional - de que seupai é pastor e funcionário ferroviário –e do Colégio dos Maristas, do distritodo Bié. De origem protestante comoAgostinho Neto (este metodista) nãoconhecia Luanda e tal, como o futuro

primeiro Presidente angolano, cincoou seis anos mais tarde obteve bolsa dasua Igreja para prosseguir os estudosem Portugal. Anos depois, Neto afas-tar-se-ia da religião em geral, mas osmetodistas mantiveram-lhe a bolsa. Outra figura de origem protestanteé Holden Roberto, cuja atividade polí-tica é iniciada no então Congo Belgaaté se tornar dirigente da União dasPopulações do Norte de Angola quedepois suprimiu a expressão “norte” eem seguida evoluiu para Frente de Li-bertação Nacional de Angola (FNLA).Trajetória percorrida no território vi-zinho mas com grande repercussão dolado angolano da fronteira. Holden (que usou vários nomes de guerra) vi-via na então Leopoldville desde a in-fância, lá fez estudos primários e se-cundários e foi funcionário publico, si-tuação na qual deve estar em 1943,quando já tem 20 anos.Alguns outros nomes de relevo pos-terior poderiam ser citados, mas osreferidos representam uma amostra-gem interessante, ao incorporar pes-soas de todas as raças, regiões, ori-gens religiosas, vias de formação di-versas e a importância de Portugal edo Congo como pontos de irradiaçãode idéias revolucionarias a partir decomunidades angolanas localmenteinstaladas.O desenrolar da segunda guerramundial tem um papel capital na for-mação das consciências e no ritmo devida em Angola nesse ano. A neutrali-dade portuguesa no conflito deixa An-gola como único país da margematlântica de África a sul do equadorsem inserção em nenhum dos campos.Todos os seus vizinhos estão no cam-po aliado. Isto não significava ausên-cia de problemas e ameaças.(CONTINUA)

26 |HISTÓRIA 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Cultura

Ermida do Lobito, capela de Nossa Senhora da Arrábida (1927)

Quimbele

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Começo este texto com os dois sig-nificativos refrãos, contidos em duasmúsicas diferentes, em sabores eharmonias, até mesmo, por seremtambém de nacionalidades diferen-tes que fui ouvindo ao longo da ma-drugada de um dia qualquer de ter-ça-feira, num programa, suponho degrande audiência virado para os nos-tálgicos, mas dirigido para os noctí-vagos cidadãos angolanos e estran-geiros, dos inúmeros de radiouvin-tes das diferentes rádios angolanas. De facto, é um programa maravi-lhoso e bonito demais para se deixarpassar sem que tenha sido objecto deum comentário benfazejo, só que doponto de vista conceptual, peca (meujulgamento) pelos conteúdos musi-cais expressos, o que me parece, queoutro título se lhe assentasse me-lhor. Assim, sugestivamente, “Recor-dar é Viver”, como afirma o AfonsoQuintas, em um dos seus belíssimosprogramas de música internacionalantiga, nas programações aos sába-dos a tarde, recordando o que se fa-zia no tempo colonial com um pro-grama semelhante “O quê que vocêvai fazer, Domingo a tarde3 ”? Foram mais ou menos 30 trinta demusicas estrangeiras, tocadas em ca-da espaço de 12 músicas “univer-sais” e, interpretadas por um lequede conceituados de artistas brasilei-ros, de acordo com a ordem da suaprecedência, franceses, argentinos,cubanos e de outras nacionalidades,que me conduziram para a lembran-ça de um velho bom gosto culturalque era muito usado no tempo colo-nial em que um grupo de artistas an-golanos daquele tempo, em busca deespaço para as suas representaçõesartísticas, procurava na altura con-fundir o mercado luandense da mú-sica internacional, baseando-se naalegada ideia de que com elas se ser-viam para a promoção da denomina-da aculturação e para a valorizaçãodos artistas angolanos dos musekes.Por essa razão, o seu domínio inter-pretativo para mostrar aos brancosque nós também sabíamos cantardaquele modo e se calhar com mais

perfeição. Lembremo-nos do João Arsénio,Tino Catela, o Espírito Santo, VumVum, Sabú Guimarães, Milita, MizéCosta e eu próprio, dentre outros.Com a imitação interpretativa dasmúsicas desses correligionários des-se nosso antigo tempo, em que a rá-dio colonial e outras que existiam noterritório de Angola só promoviamas músicas de seu interesse e paraconsumo da sua estabilidade emo-cional, os artistas angolanos, tam-bém, se dividiam entre os artistas dacidade do asfalto e os artistas dosmusekes ou dos subúrbios. Estes ex-ploravam esses mesmos gostos, sóque, com uma grande diferença.Quando passamos a gravar as músi-cas angolanas com os sabores dascorruptelas4 assentes nas linhas me-lódicas dos artistas estrangeiros dei-

xávamos intrinsecamente presentesas marcas das suas identidades deorigem. Vejamos as contribuiçõesdeixadas pelo Urbano de Castro, Da-vid Zé, António dos Santos, Calabeto,de entre alguns outros, cujas marcasidentitárias estão bem reconhecidasnos trabalhos dos seus autores origi-nais. De facto, faz-me perceber, paranão me esquecer que, naquela altura,muitos dos artistas angolanos que

cantavam as músicas que reflictonesta exposição, procuravam afir-mar-se naquele difícil mercado colo-nial da música e do canto em portu-guês, para conquistar o seu espaço,discutido também, no âmbito e noquadro da sua luta como contribui-ção pela nossa emancipação nacio-nal e, não apenas como cantor indivi-dual em caça de estímulos, como ho-je se confundem tentativas de inova-ções musicais com corruptelas aber-tamente enganosas em matéria decriação, porquanto, cada conquistade mercado alcançada por cada umde nós era vitoriada por todos os an-golanos, de um modo geral, até mes-mo nos mais recônditos cantos dopaís, ainda colónia. Era sentida comouma vitória de todos os angolanos. Pelo menos era assim, naqueletempo, se ninguém ainda hoje perce-

beu! Era sim, uma conquista indivi-dual, onde alguns artistas de origemangolana, referenciáveis, se firma-ram, mas nunca como defensores damúsica angolana autentica, onde,nas quais se poderiam identificar co-mo tais. Era um dado tempo da nossahistória, nos anos de 1956 aos anosde 1960, em que nos areópagos in-ternacionais da musica internacio-nal, apenas o Duo ou Trio Ouro Negrose propuseram como tal e, tambémrespondendo aos interesses da pro-paganda do regime colonial que sa-bia muito bem o que bem queria e co-mo se impor no mundo dos sistemasde dominação das potencias colo-niais sobre os povos subjugados. Voltando ao assunto que me pro-pus abordar, num conjunto de 30músicas “universais”, separadasapenas por 2 músicas angolanas, de

CULTURA ANGOLANA OU INERNACIONALIZAÇÃO CULTURAL

XIKWAMBI DA COSTA

Aiwé! A suku yange1 !Aiwé! A suku yange!

“Esta cínica farsa de agora Faz-nos rir

Ah! Faz-nos rir2 ”!

Voz De Cabo Verde

GRAFITOS NA ALMA| 27Cultura | 18 a 31 de Janeiro de 2016

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entre um espaço de 10 estrangeirasde cada vez, competem 24 músicasestrangeiras contra 6 angolanas,proporcionalmente tocadas nessamadrugada. Me parece um combateartístico lisonjeiro e conceptualmen-te desinteligente, desleal e grotesco,num espaço que se pretende de re-conquista da nossa cultura identitá-ria, independentemente da impor-tância que a língua portuguesa usu-frui no nosso espaço geográfico. Estarei enganado, se eu disser quenaquele tempo nem todos os angola-nos gostavam dessas 24 músicas quetocaram nessa madrugada. Agora,até mesmo, porque os actuais radio-uvintes, segundo o censo populacio-nal oficial, são jovens e naquela altu-ra muitos desses jovens não estavamnascidos. Se é só mesmo para toma-rem conhecimento, não se devemconfundir objectivos nacionais comos estrangeirismos individuais.Estarei, por outro lado enganan-do, se eu disser, que também não fuium dos promotores, enquanto inter-prete dessas 24 musicas que toca-ram nessa madrugada que analiso, aquando da minha passagem durantefrutuosos anos de participação pelosdiferentes conjuntos musicais ango-lanos, que eram no seu conceito, con-juntos de musica angolana de raizafricana e as tocávamos, apenas, co-mo separadores, precisamente, utili-zando-as nos espaços entre as mui-

tas músicas angolanas que preen-chiam os reportórios dos referencia-dos conjuntos desse tempo com a sa-tisfação das suas promoções para asua divulgação nos bailes em que osnossos conjuntos tocavam e bem pa-ra variar o som e o gosto dos paresque dançavam em alternativa, e mui-tas vezes, como obrigação para res-ponder as solicitações de algum ca-valheiro mais exigente. Não eram esses Conjuntos de Rit-mos Modernos, a semelhança dosThe Rollings Stones, nem dos Bea-tles, mas, eram Conjuntos de MúsicaAngolana, Os Kiesus, Os ÁguiasReais, o África Show, o Ngoma Jazz, oMuzangola, o Super Koba e o CabindaRitmos, dentre outros, os que a me-mória colectiva não esquecerá nun-ca, como eram a semelhança do Ban-tu de La Capitalle da República doCongo Brazzaville, do TP OK. JAZZ daRepública Democrática do Congo,então Zaire, da Voz Di Cabo Verde,dos lembrados músicos Luís de Mo-rais, Bana e Djosinha e de outras re-ferências que o mundo africano damúsica nos ofereceu, proporcionou edeles a África não se esquecerá nun-ca. Isto, para não nos lembrarmosevidentemente da contribuição mul-tifacetada dos artistas que trouxe-ram Angola para a independêncianacional, alcançada a 11 de Novem-bro de 1975 e cujas obras musicaisilustram muito bem a conservação e

a preservação da nossa identidadecultural para alimento do Patrimó-nio Cultural de Angola como um país. A nostalgia circunspecta com asmúsicas expostas nessa madrugadaa que me aludo, nesse lúdico progra-ma de todas as Terças-feiras, cuja “cí-nica farsa faz-nos rir”, pois, expressao conteúdo cínico de um vasto pro-grama para o mercado da música an-golana do momento e que se empre-gava bastante para o preenchimentodos programas que também já seusava no tempo colonial e que in-fluenciaram a mentalidade de algunssectores da vasta comunidade de an-golanos que nunca gostaram da mu-sica angolana de raiz africana, porconceberem-na como uma músicagentílica e exótica, apenas agradávele oportuna para inglês ver e, que ser-via apenas para chamar a atençãodos utopistas portugueses na horada sua necessidade, quando se colo-cava o interesse de a representar co-mo unidade de identidade gentílicado território, perante os falsáriosnos areópagos discursivos das Na-ções Unidas ou em outros da Eurásia,sempre em defesa dos seus interes-ses coloniais.Então, e para não me tornar fasti-dioso nesta minha primeira alocuçãosobre o assunto, resta perguntar-me:-Será que com esse conteúdo mu-sical se está expondo para contri-buir também para o espectro fala-

cioso e tão propalado “resgate de va-lores” que o momento vem exigindonos programas das rádios em Ango-la, e noutros diferentes meios de co-municação? - Será, também, com esse conteú-do musical que Angola verá os seusaborígenes se alimentarem das cul-turas dos seus ancestrais? - Será, também, com essa pseudo-nostalgia que os músicos angolanosde raiz, cuja identidade nunca lhespoderá ser negada, porque em si re-flecte o usufruto das suas conquistasduramente alcançadas ao longo dasduras lutas de Libertação Nacional edas guerras contras as tentativas deocupação imperialistas nos últimosanos do século XX, se enraizarão co-mo produtores, como promotoresartístico e culturais para a sua contri-buição ao mercado mundial da musi-ca, no âmbito da inquestionável glo-balização que nos assola? Ou se fir-marão, como vem acontecendo, nosinimagináveis corrupteladores dascriações de outras nacionalidades,que os angolanos de um modo geral,ouvem tardiamente, mas, pelas ins-talações representativas dos showsse lhes atribuem ouro, jasmim, in-censo e mirra. - Quem afinal tem que fazer o res-gate de valores?- Será mesmo o Povo Angolano,em toda a sua dimensão? A fazer oresgate de valores? Ou para o uso dosprincípios da sua cidadania? Ou, seráuma minoria de cidadãos, que frutoda sua ausência temporária, ou ex-temporânea, regressa e pretende ho-je impor seu legado colonial aos de-mais correligionários, uns até oca-sionalmente nascidos em diferenteslugares deste portentoso país. Eu penso que muitos como eu eoutros mais influentes não perde-ram as suas raízes, pois possuímos ascaracterísticas que se reflectem emoutros cidadãos, mesmo compara-das com a natureza da diversidadeQuando passamosa gravar as músicasangolanas com ossabores dascorruptelasassentes nas linhasmelódicas dosartistas estrangeirosdeixávamosintrinsecamentepresentes as marcasdas suasidentidades deorigem

Os Kiezos

28 | GRAFITOS NA ALMA 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Cultura

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Isto não é uma lista de planos pes-soais, muito menos uma colecçãodos“hábitos das pessoas altamentequalificadas”. É uma exposição sucin-ta de opiniões que podem tornar-sevaliosas para definir e/ou injectar al-gum senso de orientação no decorrerdo ano que agoratomou curso. E quemescreve está longe de ser um guru des-

ses assuntos.Ultimamente me deparei com umconceito que achei muito interessan-te. Segundo a matéria, os séculos, alémde serem uma unidade de tempo,constituem também (quiçá, principal-mente) um espaço caracterizado porculturas, ideologias, clima e assim emdiante. Um espaço onde as pessoas

conseguem se identificar umas com asoutras através dos seus modos e tra-tos. Um século, nessa perspectiva éuma civilização constituída por gover-nados e governantes, onde, por exem-plo, a arte mais interessante em umdeterminado ano, suplanta as produ-zidas antes e depois dela; onde os mo-vimentos sociais fracassados ou depouco impacto seriam como uma ci-dade ou grupo étnico apagado da his-tória do seu país. O tempo, afinal, é umlugar pelo qual se pode viajar atravésde memórias próprias ou dos que nosantecederam e por meio de planos,profecias e um pouco de ciência.A pesar de mais breves, o mesmo seaplicaria aos anos.Ao identificarmos as histórias eprincipais eventos da nossa vida aolongo do ano anterior – sublinhoaqui(para os mais pragmatistas, ob-viamente) que o estudo do passado éa única fonte de informação segura egarantida para prognosticar o futuro– deveremos reconhecer os nossospadrões de comportamento e perfor-mance, os níveis das nossas habilida-des interpessoais, o nosso optimismoe pessimismo, entre outras. Mas,

mais relevante – de acordo a lógicainicial dessa reflexão – será mapearas nossas principais ideias do ano, osresultados mais relevantes, os ami-gos e equipes com as quais participa-mos, o saldo e o fluxo de dinheiro (es-ta palavra está mesmo bem aqui,rsrs), e vários outros aspectos idios-sincráticos a cada um.O ponto aqui é visualizar o ano co-mo uma região geográfica, um espaçonão linear e localizar os castelos e asruínas, as cidades e as periferias danossa vida. Podendo assim, demoliredifícios ou bairros inteiros, manter“novas centralidades” …

A GEOGRAFIA DO TEMPO E COMO DEFINIR METAS PARA 2016

OSVALDO SAKAMANA

Fazenda de Pungo Andongo - Foto de Francisco Bernardo

cultural de cada um dos cidadãos an-golanos de origem. Todos os angolanos têm os mesmoshábitos e costumes, valores que têmsido exaltados pelos diferentes, masaturados discursos em que se fazemreferencias aos aspectos da nossaidentidade. Todos se expressam nas diferenteslínguas nacionais, independentemen-te da variedade linguística existenteem cada um dos recantos étnicos donosso belo país. Todos vestem-se de igual modo, va-riando de acordo com as particulari-dades das suas regiões! Mas, tambémaprendemos todos a vestirmo-nos amoda da Europa, uma imposição quegrassa pelo mundo como a maior con-quista civilizacional da história da oci-dentalização da indumentária.Claro que, atendendo aos níveis dedesenvolvimento sócio culturais atin-gidos por diversos extractos das so-ciedades que compõem as nossas co-munidades, em Angola, nem todosmais, se sentam no chão, salvo para aconcretização dos rituais sincréticos,realidade de cada grupo étnico nacio-nal; nem todos mais comem com asmãos directamente ligadas aos géne-ros alimentícios, porque uma boamaioria faz uso dos utensílios conven-cionais disponíveis para esse efeito.Mas, devemos respeitar o modo co-munitário de convivência dos nossos

mais velhos, reflectores das nossasidentidades, até porque na África deque somos povos de origem temos vá-rios representantes das culturas en-dógenas que comem com as mãos,sentam-se nas esteiras ou no chão pa-ra satisfação dos seus modos de estare de ser, representando o modo cultu-ral do seu bem estar social e cultural. Agora, os que não sabem ser cultu-ra, esses sim. Nem todos mais, têm ohábito multissecular de cumprimen-tar o seu semelhante, como uma ma-neira de considerar o seu próximocom respeito e como valorização quemerece do seu concidadão, porque elefaz uso do variável poder de uso dosbens disponíveis para humilhar o seusemelhante, de entre outras atoardasque as sociedades de consumo arbi-trário criam e muito mal distribuem.Até faltam para com o respeitoaos mais velhos. Dizem mesmo queaos mais velhos, só já lhes falta o cai-xão. Outros dizem até, que aos ve-lhos de sessenta anos não se lhes de-ve dar empréstimo bancário porqueele já não tem idade nem condiçõespara cumprir esse desiderato. Queaberração! Mas, nunca dizem, que deviam sereles a ofertarem o préstito fúnebrepara honrarem a memoria dos maisvelhos, seus pais ou mães, pelo acu-mulo legado que eles não construí-ram e que o recebem de mãos beija-

das como herança distribuída por in-justiças na distribuição que o poder,nem sempre familiar, instituí e defi-niu como que para destruição do seupróprio e pacato concidadão.Será com esse conteúdo temático,melodioso, estético que a sociedadeem Angola, de um modo geral, contri-buirá para a afirmação da idiossincra-sia cultural angolana, para a formaçãoartística, estético e musical dos artis-tas angolanos que integrarão as futu-ras gerações? Ai! A suku yange!Cantava no momento, numa fusãolinguística, em valores da sua línguamaterna o Umbundu misturado como português, língua da sua assimila-ção, o cantor angolano Carlos Alba-no, meu conterrâneo, natural deBenguela, apelando de facto a “Deuspara que retorne a terra” e faça juízodessa ironizante ideia “de termosmesmo que esperar para que a vidapossa melhorar”, porque, senão émelhor que “nos encontremos já lámesmo só no céu, “porque a vida naterra faz-nos rir”, com essa hipocri-sia permanente de se quer dizer que“o angolano não sabe o que quer”. Devemos então concluir que é pre-ciso acabar com esta cínica farsa deagora, do uso constante da necessida-de dos “resgates dos valores” quandosão os próprios programas dos meios

de comunicação que iludindo a ima-gem do bom gosto alheio, mantém odiscurso lamurioso das nostalgias,mesmo depois “de 40 anos de inde-pendência”, com conceitos mal aplica-dos aos nossos ouvidos, de igual mo-do, como se quer fazer passar a ideiados gostos nostálgicos pelos ideólo-gos de tão nefasta nostalgia musical.Porquê, não aplicar o princípio reitordo preenchimento dos programasmusicais com a máxima legada pelocantor angolano da nova vaga “É an-golano, é nosso e eu gosto” André Min-gas5 , me perdoem o erro se não soubecopiar bem esse seu lema. Como nos lembrar dos nossos he-róis? Ao menos, nas escolas, e do pon-to de vista patriótico.No céu, eu já sei! Vou entrar numagrande equipa de futebol. 1- Musica do Carlos Albano, Cantor angola-no e natural de Benguela. Uma referencia domusicall nacional. 2- Musica da Carmélia Alves, Cantora Bra-sileira do século XX. Uma precursora da músi-ca brasileira, o Baião. 3- Música do cantor brasileiro Nelson Ned. 4- Estrangeirismo. Uma gíria do mercadopopular que significa mal copiar ou então cor-ruptela mal digirida. 5- Cantor angolano da nova geração. Luanda ao 29 de Dezembro de 2015

GRAFITOS NA ALMA| 29Cultura | 18 a 31 de Janeiro de 2016

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30 | GRAFITOS NA ALMA 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Cultura

Todo ebó é uma bomba, mas nemtoda bomba é um ebó ! Só para expli-car em bom baianês, ebó é um proce-dimento litúrgico negro que é feitopara se alcançar alguma graça, paracumprir com alguma obrigação sa-grada ou os dois juntos. Vago eu sei,pois ebó pode ser tanta coisa e aomesmo tempo não pode ser qual-quer coisa. Na Bahia há quem morrade medo de ebó, há quem respeite ehá quem finja sentir indiferença. Oebó provoca vários sentimentosAcho um absurdo que culpem oheróico soldado do esquadrão anti-bombas da polícia baiana por não re-tirar aquela caixa do fundo do ôni-bus. Tudo culminou no Largo do Tan-que, uma das entradas da Cidade, lo-cal que se pode avistar a estatueta deLuiz Gama, poeta negro do século XIXda melhor qualidade. Disseram queum homem aparentando estar em-bebedado saiu do Bairro Guarani esubiu no ônibus que desceria a ladei-ra de São Cristóvão. Em tempos de grandes descon-fianças, aquele quarentão negro en-trou com uma caixa de papelão a exa-lar um perfume de comidas de azeitede dendê. Sabe-se lá o que tinha den-tro. Contas no pescoço, roupas bran-cas, representações de Exu, Ogum eXangô e lá vai o cara todo cheio de sisentar-se logo ao lado de uma brancacom nariz de negro a se fazer de im-portante por ali. O ônibus não estavacheio. Com olhar desconfiado o ho-mem revira os olhos à sua esquerda ea branca baiana parecia pensar queseu decote da blusa estava mais insi-nuante do que deveria estar. Os seioseram rijos, aconchegantes e sexual-mente maternais, Odoiá !

O riso de satisfação por ser corte-jada logo deu espaço para uma falsacara fechada, era preciso disfarçar osdesejos em uma falsa polidez do sé-culo XXI. Quando o ônibus chegou aoLargo Tanque e o homem da caixa depapelão avistou a estátua de Luiz Ga-ma, levantou-se, deixou a caixa ao la-do da moça e rapidamente desceu doônibus, pronunciou algumas pala-vras balbuciando. Um pequeno esta-lo ecoou da caixa e a abandonadamoça gritou jurando ter uma bombaque explodiria em alguns minutos,foi o que ouvi do negão, disse ressen-tida, fazendo gestos e cara feia demulher traída. Muitas energias cir-culavam por ali desde a entrada dacaixa de papelão.Em tempos de terrorismo mani-festo, o esquadrão antibombas che-gou rapidamente, toda a turma ar-mada com capacete, fardas e a im-prensa na cola. Esqueceram partedos equipamentos e pela demora daexplosão a bomba não detonaria tãocedo, intuíram de forma oracular.Todos já haviam descido do ônibus.Ninguém estava liberado. Detidos adar informações para retratos fala-dos, comparavam o rosto do homemnegro, portador da bomba ou da cai-xa de papelão, aos policiais. Todos derostos fortes, corpos fortes, homensnegros, mas se todo homem é igual,todos nós somos diferentes, recla-mava o desenhista da polícia já irri-tado com o possível racismo dos in-formantes. Parece que não sabemolhar os detalhes dos pretos, o dese-nhista exclamava em voz alta.Chegaram os equipamentos quefaltavam e o mais destemido dos poli-ciais com uma conta de Ogum à vista

cruzada de um ombro à cintura por ci-ma da farda, quebrando todo o proto-loco militar, partiu para a missão im-possível. Quando tinham esses pro-blemas de atmosfera inexplicavel-mente era sempre ele que ia à frente,o policial filho de Ogum. O entupi-mento do nariz não o permitira sentiro cheiro antes. Com o espirro, que as-sustou a todos, e a dilatação das nari-nas percebeu o aroma de dendê. Pre-parado e com a delicadeza peculiaraos desarmadores de bombas, abriu acaixa, cuidadosamente. A expressãoda face mudou, de uma grave preocu-pação para um riso de alegria.- Laroiê Exu, Agô ! Exu Ba Mi ô ! Exclamou o policial que foi segui-do em coro por outros: Axé. Já algunsevangélicos gritavam: está amarra-do. A mulher dos seios fartos ouviu ogrito do policial e disse: eles sãocúmplices, gente da mesma laia, foiessa frase que o terrorista falou ao selevantar. Alguns crentes até tenta-ram subir ao ônibus e com a bíbliadestruir a caixa. Exu deu-lhes umempurrão que causou fraturas. Osoutros, respeitosos, disseram: viu,não mexam com as coisas de Exu. Acaixa ficou lá, intacta, ninguém é bes-ta de mexer em ebó, principalmentede Exu. A branca baiana arranjou namora-do. No empurra-empurra para afas-tar os curiosos do ônibus, a brancabaiana esbarrou-se com o policialque imprimia forma limitada aos in-sistentes com seu cassetete seguronas extremidades por ambas asmãos, colocando-o em posição hori-zontal para complementar um cor-dão de isolamento. A moça de seiosbelos, inadvertidamente, envolveu-

se na pequena confusão e teve o cor-po parado com o cassetete do policiallevemente pressionando seus seios,suspirou. Em poucos instantes esta-vam a combinar carícias após o horá-rio de trabalho com recitais de gran-des poesias aos ouvidos de um e deoutro. Sou Janaina, sou João, apre-sentaram-se graciosamente. Janainalembrou do sonho da noite anterior.Um homem com um porrete fáliconas mãos lhe garantia felicidadeamorosa. Era Exu, Janaina mal perce-bia. O clima era de intensidades. O policial, filho de Ogum, foi pro-movido pela coragem e o dono doebó alcançou sua graça, pois largou acaixa de papelão como se fosse umabomba, no ônibus, ao lado de umamulher de belos e grandes seios co-mo Iemanjá, ao avistar a estátua deLuiz Gama, assim orientou Exu. A ló-gica disso tudo é o amor. Como se dizna Bahia em uma das possibilidadesda palavra bomba e suas derivações:o Ebó bombou ! De quebra, estoura-ram felicidades e Exu continua bom-bando na boca do povo.___________________Gildeci de Oliveira Leite é professor

de Literatura da UNEB (Universidadedo Estado da Bahia), escritor e colabo-rador em um dos jornais de maior cir-culação do Brasil e o maior do Estadoda Bahia. Tem se dedicado à pesquisasem mitologias afro-brasileiras e a lei-turas de autores baianos e africanos,em especial Manuel Rui. Atualmentecoordena um projeto de iniciação à do-cência com 20 (vinte) estudantes degraduação em Letras, os quais produ-zem oficinas sobre literaturas baianase africanas para mais de 400 (quatro-centos) estudantes do ensino médio.Presidiu o I e II CILLAA (Congresso In-ternacional de Línguas e LiteraturasAfricanas e Afro-Brasilidades) e I e IISINBAIANIDADE ( Simpósio Interna-cional de Baianidade). Os eventos reu-niram diversas personalidades brasi-leiras e estrangeiras, entre elas con-ceituados escritores angolanos comoManuel Rui e José Mena Abrantes,além de representações diplomáticasde Angola e outro países do continenteafricano.

GILDECI DE OLIVEIRA LEITE

Ebó de Exu

O EBÓ E A BOMBA

Exu Bará

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Cultura | 18 a 31 de Janeiro de 2016

O homem estava sitiado pelo mais completo silêncio. Dir-se-ia mesmo que es-tava encurralado. Fechado a sós, na penumbra do seu gabinete, garatujava semdescanso um bloco pousado na secretária ao seu lado. A decisão estava tomada.Há muito que a temia, há muito que lhe fugia, mas agora era chegada a hora. Folhaatrás de folha, redigia tudo o que lhe ia no mais fundo da alma. Agora não tinhamais escolha. Entretanto, o Chefe de Gabinete cumpria, diligente, as instruções que receberado seu dirigente e os telefones retiniam, estridentes, nas repartições e nas redac-ções das rádios, dos jornais e das televisões.Àquela hora nenhum jornalista se encontrava nas redacções – uns andavamocupados a cobrirem seminários, “talkshops” e reuniões pelos inúmeros hotéis epensões, nos quais se faz consecutiva e ininterruptamente, a planificação, o ba-lanço e a revisão de abordagens loucas e estratégias ocas, sem que no meio tenhahavido qualquer acção e sem nunca terem chegado a sair da sala de reunião!Outros estavam espalhados a cobrirem campanhas de consciencialização, cor-ridas de tchovas1 e provas de natação, marchas e jogos de futebol nas vias demaior circulação, de denúncia ou de promoção, de apoio ou de combate, de trata-mento ou de prevenção, de um qualquer tema-chavão, de um qualquer disparate.Enfim, só dependia da imaginação do doador internacional e da “inteligência”2 doparceiro nacional.Alguns tinham sido enviados a acompanharem inaugurações: uma, de trêspostes de iluminação, em cuja aquisição e instalação se despendeu nem metadedo que custou a faustosa recepção de celebração; e outra, de uma escola de pau-a-pique com duas salas, na Ilha de Moçambique, que custou menos de um terço dopreço que custou a viagem de avião para toda a delegação.Outros, ainda, andavam atarefados a divulgarem as doações feitas por algumasdas infinitas Organizações sem mandato nem função, que nos infestaram a naçãopara nos virem espezinhar a cultura e impor a sua visão, e que gastam mais em sa-lários e em condições de acomodação nas suas deslocações do que em benefíciosà população, que não chega a ver nem um tostão, e que se tornaram a maior fontedas nossas preocupações em vez de serem parte das soluções.E havia ainda outros que andavam por aí a dar conta da criação de Altas Autori-dades e Comissões nomeadas para realizarem estudos, pesquisas e investigaçõessobre as razões porque não funcionam as instituições, mas que padecem à nas-cença das mesmas disfunções, porque são constituídas pelos mesmos ladrões,

perdão, pelos mesmos padrões.E todos estes eventos, por onde se escoam os dólares aos milhões, com que nosestão a empenhar o futuro das novas gerações, decorriam sempre sob o alto pa-trocínio e autorização, discurso de abertura e orientação dos mais altos dignitá-rios da governação.Os celulares começaram a retinir e a vibrar nos bolsos de alguns jornalistas,que para se manterem ocupados entre os vazios discursos de abertura e as reple-tas recepções de encerramento, andavam por ali à mistura a simular entrevistas,para desfazerem tempo.E de imediato a informação se começou a propagar: estavam todos os media,nacionais e estrangeiros, instituições do Estado e parceiros, dirigentes dos parti-dos ou seus representantes, convocados para uma conferência de imprensa den-tro de instantes; uma comunicação da maior relevância se anunciava no edifícioem que o Primeiro-Ministro trabalhava. Aquilo é que foi uma correria – todos os jornalistas, sem excepção, se precipita-ram naquela direcção. Uma comunicação feita assim em cima da hora, sem anteci-pação, só se podia tratar de uma grande revelação.Os que tinham carros, atiraram-se para dentro deles de rompante, os que nãotinham, penduraram-se nalgum chapa3 que passasse nesse instante. Os que nãocouberam, desataram mesmo a correr de qualquer maneira, uns a fazerem corta-mato, outros a fazerem corta-feira4 . Ninguém queria era perder uma manchetedaquelas de primeira.A turba de jornalistas chegou ao local em grande tropelia. No exacto momentoem que o Primeiro-Ministro na balaustrada surgia. Os gravadores foram artilha-dos, as câmaras de filmar estrategicamente plantadas, as máquinas fotográficasdesataram a disparar em rajadas entrecortadas. A expectativa era galopante entre as hordas de profissionais da informação,pois em todos eles palpitava a mesma questão: que revelação seria aquela para aqual aquele sujeito, que toda a vida fora dirigente, e, como tal, passara a sua exten-sa carreira a acobertar e a mascarar as máfias da classe governante e a justificar amá governação reinante, os convocara de forma desavisada, agora que o seu man-dato terminava?Com a voz embargada, o cenho franzido, o Primeiro-Ministro cessante, come-çara a falar e dizia agora que não se admitia que aquela situação prevalecesse nempor mais um dia, que se impunha pôr termo imediato a tamanha desgovernação,que tinha que se acabar com tanta pilhagem e subtracção, que era preciso denun-ciar tanto o cúmplice como o ladrão.E numa derradeira tentativa de desviar a atenção dos cidadãos, declarou comsimulada emoção que no que dependesse da sua gestão, “não ficaria por removeruma única pedra, grão de areia ou pedaço de chão” - como se fosse debaixo delesque a corrupção se ocultasse e não fosse bem à vista de todos que ela andasse, nassalas de inúteis reuniões, nos luxuosos carros protocolares e nas mansões de pa-tológicas dimensões, com a descarada conivência das missões diplomáticas, dosdoadores e das Organizações, que este despautério todo têm sustentando e que,por qualquer estranha razão, e voluntariamente e de bom grado, até emprestammais do que o montante que é solicitado!E que, portanto, concluía com a mais descarada encenação, ele ali acorrera pa-ra anunciar à nação, com solene determinação, que o seu governo iria a partir da-quele instante desencadear uma guerra sem quartel, contra essa maldição que é acorrupção. E, asseverou, desta vez não iria ser atacada a arraia-miúda, não, destavez ia ser pesca ao tubarão.Fez uma pausa, para criar suspense e ouvir um aplauso, e, acto contínuo, caiupara o lado, fulminado, com o nariz a crescer-lhe, desgovernado. Afinal, daquela vez fora a sério: o combate anunciado, tinha mesmo começado. 1- Pequenos veículos de duas rodas, que são empurrados ou puxados por tracção humana, significan-

do o termo precisamente “empurrar” em línguas do sul de Moçambique, particularmente em Changana.2- Referência às designadas “Parcerias Inteligentes”.3- Nome dado aos meios de transporte de 25 pessoas que foram o meio de transporte público pre-

dominante em Maputo desde 1990 até à data, e que custavam, inicialmente, 100,00Mt (daí ficarem co-nhecidos como “Chapa 100”).

4- O gabinete do Primeiro-Ministro situa-se por detrás de um recinto recreativo chamado “FeiraPopular de Maputo”.

NARRATIVADE UM SUICÍDIO ANUNCIADO

CONTO DE LITOS DOS SANTOSPINTURA DE PAULO KUSSY

BARRA DO KWANZA| 31

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32| BANDA DESENHADA 18 a 31 de Janeiro de 2016 | Cultura