jornalistas sem jornal: a “blogosfera progressista”...

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1 JORNALISTAS SEM JORNAL: a “blogosfera progressista” no Brasil 1 JOURNALISTS WITHOUT NEWSPAPER: the “progressive blogosphere” in Brazil Eleonora de Magalhães e Afonso de Albuquerque 2 Resumo: O artigo se propõe a analisar o fenômeno da blogosfera progressista, que se desenvolveu no Brasil nos últimos anos tendo em vista a combinação de três fatores fundamentais: 1) novas tecnologias da comunicação (a internet); 2) uma cultura profissional que percebe as organizações jornalísticas como um obstáculo ao pleno desenvolvimento do jornalismo; 3) o fortalecimento do jornalismo partidário, especialmente na América Latina - relacionado à “virada à esquerda” que levou ao poder agentes que, historicamente, ocuparam papel marginal no cenário político. Palavras-Chave: Jornalismo politico; Blogosfera; Partidarismo Abstract: This article explores the so-called “progressive blogosphere”, which has been developed in Brazil in recent years as a result of the combination of three factors: 1) new communication technologies (internet), 2) a journalistic culture that perceives news organizations as an obstacle to the full development of journalism; 3) strengthening of partisan journalism, especially in Latin America - related to the "left turn" that led to power agents that historically occupied marginal role in the political arena. Keywords: Political journalism; Blogosphere; Partisanship A Globo leva despudoradamente 70% das verbas publicitárias do governo federal, que paga para apanhar. Mas basta esse mesmo governo anunciar em algum blog progressista para ser chamado às falas pela velha mídia, que posa de vestal, e o veículo ser tachado de chapa branca. Conceição Lemes, blog Viomundo (31/03/2013) 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Política do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Doutoranda em Comunicação pela UFF, [email protected]; doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Professor do PPGCOM/UFF, [email protected].

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JORNALISTAS SEM JORNAL: a “blogosfera progressista”

no Brasil 1

JOURNALISTS WITHOUT NEWSPAPER: the “progressive blogosphere” in Brazil

Eleonora de Magalhães e Afonso de Albuquerque 2

Resumo: O artigo se propõe a analisar o fenômeno da blogosfera progressista, que

se desenvolveu no Brasil nos últimos anos tendo em vista a combinação de três

fatores fundamentais: 1) novas tecnologias da comunicação (a internet); 2) uma

cultura profissional que percebe as organizações jornalísticas como um obstáculo

ao pleno desenvolvimento do jornalismo; 3) o fortalecimento do jornalismo

partidário, especialmente na América Latina - relacionado à “virada à esquerda”

que levou ao poder agentes que, historicamente, ocuparam papel marginal no

cenário político.

Palavras-Chave: Jornalismo politico; Blogosfera; Partidarismo

Abstract: This article explores the so-called “progressive blogosphere”, which has

been developed in Brazil in recent years as a result of the combination of three

factors: 1) new communication technologies (internet), 2) a journalistic culture that

perceives news organizations as an obstacle to the full development of journalism;

3) strengthening of partisan journalism, especially in Latin America - related to the

"left turn" that led to power agents that historically occupied marginal role in the

political arena.

Keywords: Political journalism; Blogosphere; Partisanship

A Globo leva despudoradamente 70% das verbas publicitárias do

governo federal, que paga para apanhar.

Mas basta esse mesmo governo anunciar em algum blog progressista

para ser chamado às falas pela velha mídia,

que posa de vestal, e o veículo ser tachado de chapa branca.

Conceição Lemes, blog Viomundo (31/03/2013)

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Política do XXIII Encontro Anual da Compós, na

Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Doutoranda em Comunicação pela UFF, [email protected]; doutor em Comunicação e

Cultura pela UFRJ, Professor do PPGCOM/UFF, [email protected].

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Há duas maneiras principais pelas quais se pode interpretar o enunciado reproduzido

acima. A primeira relaciona a distribuição das verbas publicitárias do governo entre os meios

de comunicação a uma questão mais abrangente, relativa à democratização da mídia. É o

enfoque da economia política da comunicação. A outra aponta para o predomínio de uma

perspectiva político-partidária acerca da mídia, opondo a “velha mídia” conservadora aos

“blogs progressistas”. Deste ponto de vista, contemplar com mais recursos os adversários que

os aliados não é apenas equivocado do ponto de vista ético, mas também do estratégico. É

“pagar para apanhar”. É esta perspectiva que este texto pretende explorar. Ele busca dar conta

da emergência da “blogosfera de esquerda” (também chamada “blogosfera progressista”)

como um agente político no Brasil contemporâneo e identificar algumas de suas

características particulares, tendo em vista mudanças mais amplas verificadas no plano do

jornalismo, especificamente no que se refere às suas relações com a política.

O papel desempenhado pelos blogs como elemento de tensionamento e renovação do

jornalismo tradicional tem sido objeto de atenção frequente por parte de pesquisadores no

Brasil e no exterior. A primeira geração desses estudos contemplava a questão principalmente

do potencial de renovação dos blogs, em função das características tecnológicas do meio –

geralmente em torno da hipótese de que a internet possibilitaria a “liberação do polo do

emissor” relativamente aos meios de comunicação massiva e considerava o fenômeno de uma

perspectiva fundamentalmente individualista, isto é, os blogs eram entendidos como mídia

pessoal (BLOOD, 2000; ESCOBAR, 2007; QUADROS, ROSA & VIEIRA, 2005;

RECUERO, 2003; SILVA, 2003). Progressivamente o foco dos estudos se modificou de

modo a dar conta de outras questões. Uma que mereceu atenção considerável diz respeito ao

modo como jornalistas (e blogueiros) reivindicam autoridade interpretativa para as suas

atividades, em um contexto no qual a fronteira entre elas se tornou crescentemente nebulosa

(BAILEY, MARQUES, 2012; BENETTI, 2008; CARLSON, 2007; CHRISTOFOLETTI,

2007; KARLSSON, 2011; LOWREY, PARROTT & MEADE, 2011; PRIMO, 2008; 2011;

SINGER, 2005). Um terceiro conjunto de pesquisas tem se detido especificamente sobre a

relação que se estabelece entre os blogs políticos e o jornalismo tradicional (ALDÉ,

ESCOBAR & CHAGAS, 2007; BORGES, 2011; CHIMENTO, 2008; 2010; DAVIS, 2009;

GUAZINA, 2013; SINGER, 2005; SOUZA & PENTEADO, 2013; REESE, RUTIGLIANO,

HYUN & JEONG, 2007).

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Este texto apresenta importantes pontos de contato com as duas últimas linhas de

investigação. Diferentemente delas, contudo, ele centra o seu foco no fenômeno da

“blogosfera progressista” tendo em vista a sua dimensão de “ecossistema midiático”, em vez

de considerar os blogs ou blogueiros políticos em si mesmos. O artigo se propõe a entender o

desenvolvimento da “blogosfera progressista” tendo em vista um conjunto de circunstâncias

específicas ocorridas no Brasil. Dois aspectos em particular merecem destaque em nossa

análise. O primeiro deles diz respeito às mudanças políticas que tiveram lugar no país, a

partir da eleição do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luis Inácio Lula da Silva

como presidente do país em 2002, que rompeu os padrões de relativa proximidade que se

estabeleciam até então entre a grande mídia e os governos federais. O segundo se refere à

premissa de que o verdadeiro jornalismo só poderia ser realizado fora das organizações

jornalísticas tradicionais, em face das restrições que seus compromissos políticos e

econômicos apresentam à autonomia do trabalho dos jornalistas, cujas origens remetem à

imprensa alternativa das décadas de 1960/70 (KUCINSKI, 1991).

A Imprensa Alternativa, ou a Verdadeira Independência Jornalística

A existência de uma “blogosfera progressista” seria, evidentemente, impossível se não

fosse a existência de um conjunto de dispositivos tecnológicos – “os blogs”, “a internet”,

“computadores ligados em rede” ou seja qual for o modo como queiramos chamá-los – capaz

de permitir a veiculação de mensagens para um vasto público a um custo bastante reduzido.

No Brasil, os fundamentos por detrás da “blogosfera progressista” podem ser remetidos a um

passado mais remoto, para o ideal de um “jornalismo sem jornal” (pelo menos na sua

dimensão corrente de organização capitalista, voltada para a obtenção de lucro) que

encontrou o seu caráter exemplar na experiência da imprensa alternativa que teve lugar no

Brasil durante o regime militar que vigorou entre 1964 e 1985.

Embora paradoxal à primeira vista, o “jornalismo sem jornal” não tem nada de novo

no Brasil. De fato, ao longo de praticamente todo o século XIX esse foi o modelo

predominante de jornalismo praticado no país, embora no caso isso se devesse antes à

incipiência de recursos físicos e organizacionais do que uma opção consciente. Em sua

enorme maioria, os veículos jornalísticos do período consistiam de panfletos políticos com

pequenas tiragens, produção irregular e vida curta (LUSTOSA, 2000). De fato, a

institucionalização do jornalismo brasileiro foi um processo lento, que se desenrolou ao longo

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do século passado e cuja forma moderna remete às reformas jornalísticas da década de 1950,

dentre as quais a do Diário Carioca se tornou a mais conhecida. É bem difundida, no meio

acadêmico brasileiro, a concepção de que a principal contribuição dessas reformas foi a

introdução de uma nova cultura jornalística estruturada em torno do ethos da objetividade

jornalística. Contudo, essa percepção parece bastante limitada e, no limite, equivocada para

dar conta da questão. De fato, há poucas evidências de que os jornalistas brasileiros tenham, a

partir de então, guiado suas práticas profissionais pelo código da objetividade. A verdadeira

contribuição dessas reformas está em outra parte: a construção de um conjunto de

dispositivos de controle centralizador da produção da notícia – com destaque para o papel

desempenhado pelo copidesque e pelos manuais de redação – e uma cultura jornalística

associada a eles (ALBUQUERQUE & GAGLIARDI, 2011; BIROLLI, 2007)

A cultura autoritária do jornalismo brasileiro antecede a implantação do regime

militar, mas ela deu à questão novos toques de dramaticidade. A atuação independente dos

jornalistas se viu drasticamente restrita, embora isso tenha se dado de maneiras diferentes:

alguns jornais, como a Folha da Tarde, aderiram entusiasticamente ao regime (KUSCHNIR,

2004), outros estiveram submetidos à censura prévia (AQUINO, 1999) e um terceiro grupo

operou dentro de um sistema de autocensura, que implicou em certa dose de aquiescência

com a censura, ainda que motivada por uma sensação de medo difusa (SMITH, 2000).

Segundo Kucinksi (1998), estes últimos deixaram o legado mais perverso para o jornalismo,

uma vez que a autocensura se tornou uma prática difundida nas redações. De fato,

acreditamos que o regime militar teve um papel no aprofundamento dessas relações, mas o

sistema só pôde funcionar na medida em que o sistema centralizado e autoritário implantado

pelas reformas modernizantes da segunda metade do século passado assim o permitiram.

A imprensa alternativa ofereceu um caminho para o exercício do jornalismo –

entendido de forma bastante ampla – fora das amarras que se apresentavam na imprensa

tradicional. Contudo, ela não é a única experiência de “jornalismo sem jornal” que preparou

os caminhos para o advento da “blogosfera progressista”. Igualmente relevante é o papel que

os sindicatos de jornalistas desempenharam nesse processo. O assassinato de Vlado Herzog

nas dependências do DOI-CODI ofereceu um ponto de virada a esse respeito. Em face da

timidez demonstrada pela imprensa tradicional na cobertura do assunto (PEROSA, 2001), o

jornal Unidade, do sindicato dos jornalistas de São Paulo, desempenhou um papel ativo na

cobertura do fenômeno. Ao longo das décadas de 1970 e 1980 as relações entre os sindicatos

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de jornalistas e empresas pioraram significativamente, tanto por razões econômicas quanto

políticas. Muitos deles viam o processo de redemocratização como uma oportunidade para o

exercício de um jornalismo mais ativo e engajado, e percebiam a lógica empresarial das

organizações jornalísticas e seus compromissos com as classes dominantes como um

empecilho à realização da verdadeira vocação emancipadora do jornalismo. Esses conflitos

levaram a uma greve dos jornalistas em 1979 e estabeleceram as bases de um afastamento

político persistente entre os “patrões” e a base “emancipadora” constituída por jornalistas de

esquerda, dos quais muitos eram alinhados com o PT (ROXO, 2013).

O Jornalismo Político e a “Virada à Esquerda”

A análise do contexto que tornou possível a existência da “blogosfera progressista”

não seria completa se não considerássemos um conjunto de fenômenos recentes que

favoreceram o incremento de uma lógica político-partidária no jornalismo. O primeiro ponto

a se destacar é que essa tendência não é exclusiva do jornalismo brasileiro. Nos Estados

Unidos, por exemplo, o modelo de jornalismo informativo ancorado na ideia de objetividade

entrou em franco declínio a partir da década de 1980, como resultado de inúmeros fatores,

dentre os quais o “fim do consenso da guerra fria” (HALLIN & MANCINI, 2004). No

decorrer deste século, a tendência de polarização política do jornalismo americano se

aprofundou consideravelmente, o que resultou no aumento de veículos dirigidos a nichos

políticos específicos (STROUD, 2011).

O processo de partidarização explícita da cobertura jornalística adquiriu novos tons de

dramaticidade nos países cujos governos “viraram à esquerda”, como o Brasil. Não se trata,

aqui, de discutir se as políticas do PT, partido que controla a presidência há três mandatos

consecutivos, podem ser efetivamente qualificadas como de esquerda, mas de uma percepção

comum de mudança de rumo político em diversos países da América Latina – Argentina,

Bolívia, Chile, Equador, Uruguai, Venezuela, entre outros – que a literatura consagrou sob o

rótulo left turn. Dois aspectos podem ser destacados a esse respeito. Por um lado, a noção de

“virada à esquerda” contempla processos que são muito diferentes entre si. Para os críticos

vinculados a uma perspectiva liberal/conservadora, esses países se distinguem claramente em

dois grupos: de um lado países cujas políticas de esquerda estão mais próximas de uma

tradição socialdemocrata, como o Chile, o Uruguai e o Brasil; e outros, cujo socialismo de

cunho populista apresentaria fortes componentes autoritários e institucionais (CASTAÑEDA,

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2006). Embora essa perspectiva tenha se tornado objeto de diversas críticas (cf. CAMERON,

2009; LUPIEN, 2013), tanto no que concerne à nitidez da distinção estabelecida, quanto às

suas premissas ideológicas, ela serve ao menos para nos atentar sobre a necessidade de

entender o processo em termos mais complexos do que o de um processo homogêneo

supostamente seguido pelo conjunto dos países da região. Por outro lado, a “virada à

esquerda” dos países latino-americanos deve ser compreendida à luz de uma mudança mais

ampla no equilíbrio global, caracterizada pelo relativo declínio dos países ocidentais e o

advento de novos agentes, como por exemplo os BRICS – aliança internacional composta por

Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (ALDEN & VIEIRA, 2005; DAUVERGNE &

FARIAS, 2012)

Do ponto de vista da relação entre mídia e política, a “virada à esquerda” tem duas

consequências principais. No plano interno, ela perturbou a “natural” relação de proximidade

entre jornalismo e governo. Como regra geral, a bibliografia existente no campo da

comunicação política – principalmente aquela de origem anglo-americana – tende a supor

uma tendência “oficialista” implícita no trabalho jornalístico, resultante do seu método de

produção de notícia, que dá especial valor a fontes ocupando um lugar de autoridade.

Contudo, a “virada à esquerda” no Brasil, em 2002, levou ao poder um conjunto de agentes

que, historicamente, ocuparam um papel marginal no cenário político, e cuja relação com a

mídia tradicional foi atravessada por desconfianças recíprocas. As tensões latentes

explodiram após o escândalo do Mensalão, que estourou em 2005 e se tornou uma pauta

permanente da imprensa desde então. Para desencanto de muitos jornalistas e lideranças da

mídia tradicional (PORTO, 2011), tal cobertura negativa não teve um impacto decisivo nas

eleições: o presidente Lula se reelegeu com alguma facilidade, ainda que no segundo turno, e

teve sua candidata à sucessão, Dilma Rousseff, eleita presidente do país em 2010. A

percepção, por parte desses setores da imprensa, de que sua influência junto à opinião pública

estava em declínio – ou pelo menos havia se tornado incapaz de impactar no resultado das

eleições – e de que os partidos políticos de oposição se encontravam fragilizados levou a que

alguns setores da imprensa reivindicassem o exercício de um papel ativo na oposição ao

governo petista, como ilustrado pela seguinte declaração da presidente da Associação

Nacional dos Jornais (ANJ), Maria Judith Brito:

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A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito

geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de

comunicação. E, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a

posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada.

E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda

sobremaneira o governo 3

A essa percepção de declínio político no âmbito nacional, somam-se preocupações

resultantes dos conflitos entre imprensa e governo nos países vizinhos, envolvendo acusações

recíprocas de comportamento antidemocrático, cancelamento de licenças de transmissão

televisiva e leis de regulamentação dos meios de comunicação (CAÑIZALES & LUGO-

OCANDO, 2008, MAUERSBERGER, 2012). Tais mudanças serviram de base a uma série

de acusações, por parte de setores da mídia tradicional, de que o governo e, ainda mais, os

militantes do PT – ou, como se tornou corrente dizer, o “lulopetismo” – estaria engajado em

práticas sistemáticas de ameaça à liberdade de imprensa. São essas circunstâncias que

ofereceram um ambiente bastante fértil para o surgimento e expansão da “blogosfera

progressista”.

A Blogosfera Progressista

Nesta parte, buscaremos lançar luz sobre a “blogosfera progressista” como objeto de

estudo, pivilegiando três aspectos: 1) quem são os agentes que compõem esse campo

midiático; 2) como se articulam; 3) que concepções compartilham sobre jornalismo.

A “blogsfera de esquerda” deve ser entendida enquanto articulação em rede de

diferentes agentes, que incluem jornalistas-blogueiros, geralmente no papel de protagonistas,

compartilhando espaço com outros agentes, tais como blogueiros não-jornalistas e setores da

mídia tradicional – como a Rede Record e a revista Carta Capital – com conexões no

ciberespaço. Essas relações abarcam, ainda, setores da mídia que ocupam um lugar

intermediário ou ambíguo entre a mídia tradicional e os “blogs progressitas" – como o jornal

digital Brasil 247. Vale mencionar que os principais agentes da blogosfera tornaram-se

conhecidos também como “blogueiros sujos”. Cunhada pelo candidato do PSDB à

presidência José Serra, a expressão se tornou pública em agosto de 2010, quando este acusou

o governo federal de financiar “blogs sujos” durante um discurso ao 8º Congresso Brasileiro

3 http://oglobo.globo.com/politica/entidades-de-imprensa-fecomercio-estudam-ir-ao-stf-contra-plano-de-

direitos-humanos-3037045#ixzz2HndMBDbY

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de Jornais. Desde então, caiu no gosto dos “progressistas” e passou a denominar o espaço na

blogosfera daqueles que se opõem à grande mídia e se identificam à esquerda no espectro

politico brasileiro.

Para esta análise, estabelecemos categorias visando a melhor compreender os agentes

integrantes da “blogosfera de esquerda”. Assim, estes serão subdivididos em três grupos: a)

“blogueiros jornalistas”; b) “blogueiros ativistas políticos”; e c) “mídia”, compreendida como

a faceta online de jornais, revista e emissoras de TV. É importante esclarecer que tais

categorias não são excludentes, havendo inclusive certo contínuo entre elas promovido por

meio da articulação entre esses agentes. Nesse sentido, cabe ainda ressaltar que o subgrupo

“blogueiros jornalistas” é definido menos em relação à formação universitária em

comunicação/jornalismo e mais quanto à experiência do blogueiro como jornalista e a um

status conquistado por ele em virtude da atividade profissional na imprensa tradicional (e

que, portanto, precede a sua entrada na blogosfera).

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- blogs de jornalistas

Os “blogueiros progressistas” com maior visibilidade são, majoritariamente,

jornalistas. Entre os mais populares (TAB. 1) ou expoentes estão os blogs de Luís Nassif

(hospedado na página jornalggn.com.br), Paulo Henrique Amorim (Conversa Afiada) e Luiz

Carlos Azenha (Viomundo, feito com a contribuição da também jornalista Conceição Lemes).

Esse subgrupo da blogsfera se distingue dos demais por ser composto por “jornalistas

profissionais” – o que engloba o título de bacharel em jornalismo (diploma), mas

principalmente a prática profissional forjada em anos de redação (o que configura

“experiência”).

Dentre os blogueiros de maior destaque, estão jornalistas egressos da grande mídia

(TAB. 2). E o curriculo com passagens pelos principais jornais, revistas e emissoras de TV

do país costuma ser evidenciado pelo blogueiro, seja em seu perfil no blog, seja quando para

reafirmar seu lugar de “autoridade” (no sentido trabalhado por ZELIZER, 1992). São,

portanto, jornalistas que carregam certo capital social para a blogosfera e se valem dele para

demarcar um território de centralidade em meio às relações estabelecidas com os demais

agentes. Caracterizam-se, portanto, como intérpretes influentes dos acontecimentos, como

espécie de “núcleo duro” da “blogosfera de esquerda”.

Mas nem todo blogueiro será um jornalista. Alguns querem contar as experiências

pessoais, outros querem dar opiniões. Nesse amplo universo, existem alguns

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especializados, como o blogue da NaMaria, que é uma especialista em Diário

Oficial e levanta tudo com uma competência que nunca vi um jornalista fazer. Cada

área terá um especialista (NASSIF, 2010).

- blogueiros ativistas políticos

Também importantes para a concepção da “blogosfera de esquerda”, dela fazem parte

profissionais sem experiência de destaque na imprensa anterior à existência do blog.

Considerando as palavras de Nassif de que antes de 2006 a blogosfera não era mais que

“quatro ou cinclo blogueiros” (NASSIF, 2009, p. 25), encontraremos entre os fundadores

desse movimento diferentes perfis. Alguns, começaram sua atuação na blogsfera de forma

“tradicional”, usando os blogs como versões modernas dos “diários pessoais” (cf. Garden,

2012; Primo 2008), como a historiadora Conceição Oliveira, atualmente colaboradora do

Viomundo e responsável pelo blog Maria Frô, desde 2005 na blogosfera. Outros, porém, já

nascem com a proposta de fazerem crítica e serem alternativa à cobertura política feita pela

“imprensa golpista” (“opositora do governo do PT”), como o blog Por um novo Brasil, da

enfemeira Jussara Seixas, criado em 2005.

Na categoria “ativistas políticos”, ainda podemos encontrar blogs protagonizados por

jornalistas reconhecidos não pelo diploma em Comunicação, mas pela atividade política que

exercem. É o caso do Tijolaço, blog de bastante visibilidade dentre os da “blogosfera de

esquerda”, criado por Brizola Neto (PDT) em 2009 e suspenso quando este ascendeu ao

cargo de Ministro do Trabalho do govern Dilma; hoje a cargo do jornalista Fernando Brito.

Nesse exemplo particular, é o passado político da família Brizola, e não o currículo de um

jornalista, utilizado como credencial para o blog. Outro exemplo é o de Altamiro Borges

(Blog do Miro), jornalista, presidente do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de

Itararé, página que “institucionalmente” reúne os “blogueiros progressistas”, e militante do

PCdoB filiado no fim dos anos 70 (eleito membro do Comitê Central do partido desde 1997).

No universo da “blogosfera progressista” habitam, ainda, blogs e sites de movimentos

sociais (a exemplo do Movimento Mães de Maio) e partidos políticos, como o blog PT na

Câmara, da liderança do PT; e Vermelho, do PCdoB. Este último ocupa o posto de maior site

“.org brasileiro” e tem jornalistas como principais responsáveis.

- mídia

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Também consideramos como vinculados à “blogosfera progressista” meios de

comunicação relacionados ao formato “tradicional” de imprensa, ou seja, jornais, revistas e

emissora de TV. Alguns existem apenas online, outros, por suas vez, foram criados a partir de

sua versão fora do universo virtual. Entre esses, há meios de comunicação tradicionais, já

bastante familiares à audiência, mas que tendem a se popularizar na rede através do

estabelecimento de vínculos com a blogosfera. Um bom exemplo é a Rede Record, que nos

últimos anos tem se configurado como a principal concorrente da Rede Globo, ameaçando a

supremacia da emissora carioca em matéria de audiência. Uma das estratégias adotadas, além

da cobertura jornalística politicamente divergente da feita pela concorrência, foi estabelecer

laços formais com a “blogosfera de esquerda”. Assim, blogueiros expoentes como Paulo

Henrique Amorim, Luiz Carlos Azenha e Rodrigo Vianna, paralelamente à atuação

“independente” à frente dos próprios blogs, compõem o elenco de profissionais contratados

da emissora paulista.

O blog Socialista Morena, da jornalista Cynara Menezes, é outra face da mesma

moeda no que diz das relações de troca de capital simbólico na blogosfera: tem endereço

vinculado à página de Carta Capital4, cujo status ou fluxo de leitores já conquistado pela

revista contribui para gerar visibilidade ao blog.

Um aspecto interessante a ser ressaltado sobre a “blogosfera progressista” é que ela é

capaz de subordinar a “mídia tradicional” a seu espaço. Isso ocorre no dia-a-dia dos

blogueiros, que se apropriam de conteúdo politico produzido pela mídia, incorporando-o à

rede e promovendo novas interpretações (que, em geral, subvertem o sentido originalmente

pretendido pelos grandes meios de comunicação brasileiros, rivalizando com eles).

- articulação

É possível verificar a atuação desses múltiplos agentes, por meio de laços que

conectam um blog ao outro, dando contornos mais definidos à “rede progressita”. Esses laços

de solidariedade (MAUSS, 2003) com outros blogueiros não apenas contribuem para a

construção da chamada “blogosfera progressista”, mas atuam na demarcação de seu território.

Uma característica dos blogs habilmente empregada em favor do reforço da

“autoridade jornalística” dos blogueiros é o uso de links e citações mencionando postagens

4 Desde 2002, quando explicitou sua opção pelo então candidato Luis Inácio Lula da Silva (PT) à presidëncia,

mantém-se declaradamente a favor das candidaturas petistas à presidência.

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presentes nos blogs uns dos outros. Isso contribui para validar a notícia, bem como a

perspectiva adotada e defendida como certa ou “a verdadeira” pelos blogueiros, promovendo

coletivamente a autoridade interpretativa da blogosfera. A presença de links conectando

diferentes blogs funciona, ainda, como vínculos permanentes que, ao se sobreporem e

somarem-se uns aos outros, agregam paulatinamente novos blogs, construindo a estrutura

desse espaço de convivência e produção de sentido que é a “blogosfera de esquerda”. Mas se

a construção de uma rede de compartilhamento se acentua através dos links, não se concretiza

apenas por meios deles: os blogueiros progressistas costumam citarem-se entre si, mencionar

uns aos outros, formando-se como grupo coeso, apesar de heterogêneo.

Nessa teia de links e referências inter-blogs, é possível identificar “nós” centrais e

outros periféricos, e isso impacta no grau hierárquico ou de importância que cada agente

atinge na blogosfera. Quanto mais central, com mais agentes orbitando a seu redor, maior

tende a ser o destaque do blogueiro e sua capacidade de difundir conteúdo relevante em longo

prazo para a respectiva rede, bem como disseminar interpretações, apropriando-se para isso,

inclusive, dos produtos da grande mídia. O conjunto de “nós” compõe, portanto, o núcleo

duro da rede.

Outros blogs, apesar de produzirem conteúdo próprio (vale lembrar que uma das

características intrínsecas aos blogs, que chegou a promovê-los como “diários virtuais”, é o

lado autoral da página), se caracterizam menos pelo quê publicam e mais por serem

disseminadores de discussões de interesse da rede, cujo conteúdo provém, em geral, de algum

outro blogueiro-progressista.

É importante ressaltar o caráter dinâmico da rede. A popularidade de cada agente é

construída coletivamente, cotidianamente. E pode sofrer variações. Como houve com o blog

Cafezinho, que até 2013 participava de forma modesta da blogosfera, mas se tornou central

no debate em torno do caso que ficou conhecido como “Globogate”, ao dar início às

denúncias sobre sonegação fiscal envolvendo a Rede Globo.

- valores compartilhados

A articulação da blogosfera se dá em torno de algo que aparece como dado entre os

“blogueiros progressistas”: a partidarização dos principais veículos de comunicação

brasileiros, colocando-se em oposição ao governo do PT a fim de preencher o que se

considera uma lacuna deixada pelo enfraquecimento dos partidos de direita. Uma expressão

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recorrente utilizada pelos “blogueiros de esquerda” para se referirem à grande mídia, em

especial à Rede Globo, à revista Veja e aos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, é

a sigla PIG (Partido da Imprensa Golpista).

É interessante encarar a “blogosfera de esquerda” como parte de uma ecologia da

mídia contemporânea no Brasil. Ao se inserir como alternativa de jornalismo, não compete

específicamente com a mídia tradicional, mas dialoga e se constrói a partir dela. Apresenta,

portanto, uma perspectiva que aponta para a politização da mídia. Algo que deve ser

encaradao menos como desvio de jornalismo (o que ocorre quando ainda se está preso à

dimensão do jonalismo informativo), mas como uma tendência de um processo de

transformações que abarca a imprensa do Brasil e de outros países, como os Estados Unidos.

O estudo de Stroud, loc. cit., relaciona a partidarização de meios de comunicação

norte-americanos à competição por fatias de mercado, com o desenvolvimento de uma

imprensa mais à direita ou à esquerda no espectro político motivada pela disputa de

audiência. No caso brasileiro, a formação da “blogosfera progressista” não pode ser explicada

apenas pelo componente mercadológico – apesar deste ocupar lugar de destaque para o

entendimento do fenômeno. Aos avanços proporcionados pela comunicação em rede somam-

se: a) transformações políticas ocorridas com a eleição do candidato do Partido dos

Trabalhadores em 2002, momento em que a esquerda passa a ser o referencial de Estado, de

poder e, portanto, a ocupar o lugar de principal financiador dos órgãos de imprensa por meio

da verba oficial gasta em publicidade; b) um movimento de crise da objetividade,

principalmente entre os jorvens (MARCHI, 2012) que obriga jornais e jornalistas a

repensarem seu posicionamento na sociedade de modo a garantir a sobrevivência de sua

autoridade enquanto intérpretes do cotidiano, paralelamente ao imaginário de “imprensa livre

e alternativa” compartilhado por esses profissionais, que tem suas origens ainda na década de

70 (KUCINSKI, 1991; SILVA, 2007).

De modo geral, todos os blogueiros reivindicam formas de financiamento da

blogosfera e responsabilizam o Estado (ou a administração do PT) como seu fomentador,

devendo este “adotar políticas que incentivem a diversidade e a pluralidade, conforme

previsto na Constituição”5. Porém, é possível identificar três vertentes de posicionamento

adotadas pelos “blogueiros progressistas” em matéria de financiamento: 1) blogs que não

aceitam verbas do governo federal (apesar de reivindicarem o incentivo para os demais), de

5 http://www.viomundo.com.br/opiniao-do-blog/o-leitor-que-me-fez-mudar-de-ideia.html

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empresas ou estatais. Caso do Viomundo, que desde 2013 passou a ser mantido por

financiamento coletivo (crowdfounding) e do Maria Frô, que pede ajuda dos internautas para

manter a página; 2) blogs custeados por publicidade pública ou de empresas privadas, como o

Conversa Afiada; 3) blogs ou portais mantidos por entidade política, caso do Vermelho.org.

E um dos principais valores aglutinadores da blogosfera é a articulação de seus

componentes enquanto oposição ou alternativa à grande mídia. Entre os catalisadores que

precipitaram a entrada de jornalistas de renome para esse o movimento de crítica à imprensa

tradicional, estavam demissões, motivadas por crises nas empresas jornalísticas ou

divergências desses pofissionais com a linha editorial adotada pelo órgão noticioso em que

trabalhavam, acentuadas à época das eleições presidenciais de 2006, em que o candidato do

PT concorria à reeleição com amplas chances de vitória. Como explica Azenha:

Aurélio [Marco Aurélio Mello, ex-diretor de economia do Jornal Nacional em SP]

ficou bolado quando, durante a campanha eleitoral de 2006, recebeu a

recomendação do chefe do Rio: deveria tirar o pé de reportagens econômicas feitas

em São Paulo. Explico: como a economia estava bombando, qualquer reportagem

econômica feita em São Paulo poderia ter repercussões positivas para o “governo

atual” (Lula era candidato à reeleição).

Por conta disso e de outras situações, que pretende um dia relatar em livro, Aurélio

não só não assinou o famoso abaixo-assinado de apoio a Ali Kamel, urdido depois

da famosa capa da revista CartaCapital, entre o primeiro e o segundo turnos, como

convenceu colegas a retirarem a assinatura. Demitido com requintes de crueldade,

começou a contar suas memórias no Doladodelá [link para o blog], blog no qual

frequentemente fala de seu desgosto com a podridão midiático-política que nos

cerca. Contrariamente ao que se diz por aí, Aurélio é parte de um grupo de, por

baixo, dez profissionais que se revoltaram abertamente contra aquele estado de

coisas. Sinal de que Ali Kamel talvez mereça um prêmio por incentivar o

empreendedorismo blogosférico 6.

Nesse momento, a existência de um suporte amplamente acessível (tanto a emissores

quanto a receptores) para a veiculação das notícias, na forma dos blogs, possibilitado pelos

avanços na comunicação em rede, aliado ao ideal construído durante o regime militar de

“imprensa alternativa” propiciaram não apenas a migração de jornalistas de renome para a

blgosfera, como o sentimento de que ali era o lócus para a consolidação do projeto de

“jornalismo político independente”.

No fim das contas, o que está em disputa é qual visão prevalecerá acerca de “como o

jornalismo deve ser”, uma vez que é contestada a objetividade do jornalismo da “grande

6 http://www.viomundo.com.br/humor/a-virada-de-pagina-do-doladodela.html

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mídia” e sua legitimidade como defensora do interesse público. E se a imprensa brasileira

tradicionalmente defende o dever moral de ser oposição ao governo, algo entendido como

dever democrático, em virtude de um “esvaziamento” da oposição ao governo do Partido dos

Trabalhodes, a blogosfera progressista reivindica não apenas o papel de “críticos à esquerda”

da administração petista, como também de oposição, não ao governo, mas da própria mídia

tradicional.

Conclusão

Entender a “blogosfera progressista” é lançar luz sobre as transformações que

envolvem o fazer jornalismo na contemporaneidade. O movimento de expansão dos “blogs

de esquerda” aponta para a adaptação aos dias atuais de um ideal de “jornalismo

independente”, construído algumas décadas atrás, bem como uma nova postura no que diz do

jornalismo e sua relação com a política. Sintoma e ao mesmo tempo resultado de uma crise

de crebilidade envolvendo os meios noticiosos tradicionais, a “blogosfera progressista” surge

num cenário de reaproximação do jornalismo com a política e os partidos políticos de forma

explícita – tando à direita quanto à esquerda.

A atuação em rede dos “blogs progressistas” introduz novas nuances na cobertura

política e é capaz de subordinar a mídia tradicional a seu ambiente de convivência. E isso

cocorre seja quando da reapropriação, pela blogosfera, de conteúdo produzida pela “mídia

oposicionista” ou mesmo quando ela incorpora agentes já tradicionais da imprensa.

O advento das inovações tecnológicas, aliado às mudanças politicas ocorridas em

pouco mais de uma década no Brasil, proporciou ambiente fértil para a proliferação desses

“jornalistas sem jornal”, ou seja, desvinculados de uma empresa de comunicação e das

hierarquia que permeiam o trabalho nas redações. E, apesar do fenômeno se configurar como

“jornalismo autoral”, através dos blogs, ele só possui relevância política à medida que seus

agentes atuam de forma articulada, fortalecendo-se e ganhando visibilidade através da

construção desse espaço na rede que é “blogosfera de esquerda”.

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