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1 LIVROS E LEITURAS NO BRASIL ANTES E DEPOIS DE JOÃO VI Jorge de Souza Araujo – UEFS [email protected] Aqui apresentamos esforços extensivos de uma pesquisa sobre o perfil de leituras no Brasil, cujos resultados foram parcialmente publicados em livros e outros se oferecem, se depender de nosso desejo, a uma veiculação editorial proximamente. Data de 1980 nosso primeiro investimento em bibliotecas de títulos coloniais, um trabalho de levantamento de toda a bibliografia existente em bibliotecas brasileiras, cujos títulos tiveram a data limite de 1825, um ano depois de promulgada a primeira constituição imperial. Esse material constitui hoje uma Memória Bibliográfica Brasileira (1500-1825), aguardando oportunidade de edição, espécie de museu do livro em catálogo, que municiou durante algum tempo o Plano Nacional de Obras Raras da Biblioteca Nacional. Quando procedemos a esse mapeamento, contendo os livros existentes nas bibliotecas brasileiras no período compreendido (1500-1825), percebemos que o fundamental da exposição de um perfil leitor poderia não constar exatamente da catalogação, e que boa parte desse material remetia obrigatoriamente a uma busca mais aprofundada, o que nos levou à extração dos informes através dos inventários de bens, a documentação factual que melhor constituiria o exame nuclear de obras realmente circulares ao menos por sua constância documental. O inventário é um documento jurídico para efeito de partilha e meação e em alguns deles encontramos a rubrica “Livros”. O inventariante dispunha o que havia em “Ouro”, “Prata”, “Escravos”, bens móveis e semoventes, e em alguns encontramos alinhados os “Livros”. Os dois parágrafos acima são relevantes, antes de considerarmos o perfil leitor dos brasileiros pós chegada da Família Real à Colônia em 1808. Parece-nos que com a expressão de Santo Tomás de Aquino — Timeo hominem unius libri, ou Arreceio-me do homem de um só livro — encontramos um mote da destinação inicial desta nossa conversa neste Seminário, uma vez que ela ilustra nossa desconfiança de que não seria efetiva a crença um tanto convencional de que pouco se lia no Brasil Colônia ou Brasil Reino, lacuna que permaneceria nos dias de hoje. A cultura letrada no Brasil tem, entre seus objetos, práticas e representações, em certa medida pouco examinada a idéia do livro como forma impressa de ampla circulação e o suporte desses textos na forma de recepção. Achamos que isso seria de fato relevante no Brasil, particularmente porque entre nós a cultura impressa sofreu interdições e só veio a ser implantada, tardiamente, quando os interesses práticos da corte real se efetivou com a transferência. Diferentes eram os objetos e práticas de leitura e escrita manifestos pela

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LIVROS E LEITURAS NO BRASIL ANTES E DEPOIS DE JOÃO VI

Jorge de Souza Araujo – UEFS [email protected]

Aqui apresentamos esforços extensivos de uma pesquisa sobre o perfil de leituras no

Brasil, cujos resultados foram parcialmente publicados em livros e outros se oferecem, se

depender de nosso desejo, a uma veiculação editorial proximamente.

Data de 1980 nosso primeiro investimento em bibliotecas de títulos coloniais, um

trabalho de levantamento de toda a bibliografia existente em bibliotecas brasileiras, cujos

títulos tiveram a data limite de 1825, um ano depois de promulgada a primeira constituição

imperial. Esse material constitui hoje uma Memória Bibliográfica Brasileira (1500-1825),

aguardando oportunidade de edição, espécie de museu do livro em catálogo, que municiou

durante algum tempo o Plano Nacional de Obras Raras da Biblioteca Nacional. Quando

procedemos a esse mapeamento, contendo os livros existentes nas bibliotecas brasileiras no

período compreendido (1500-1825), percebemos que o fundamental da exposição de um

perfil leitor poderia não constar exatamente da catalogação, e que boa parte desse material

remetia obrigatoriamente a uma busca mais aprofundada, o que nos levou à extração dos

informes através dos inventários de bens, a documentação factual que melhor constituiria o

exame nuclear de obras realmente circulares ao menos por sua constância documental. O

inventário é um documento jurídico para efeito de partilha e meação e em alguns deles

encontramos a rubrica “Livros”. O inventariante dispunha o que havia em “Ouro”, “Prata”,

“Escravos”, bens móveis e semoventes, e em alguns encontramos alinhados os “Livros”.

Os dois parágrafos acima são relevantes, antes de considerarmos o perfil leitor dos

brasileiros pós chegada da Família Real à Colônia em 1808. Parece-nos que com a expressão

de Santo Tomás de Aquino — Timeo hominem unius libri, ou Arreceio-me do homem de um

só livro — encontramos um mote da destinação inicial desta nossa conversa neste Seminário,

uma vez que ela ilustra nossa desconfiança de que não seria efetiva a crença um tanto

convencional de que pouco se lia no Brasil Colônia ou Brasil Reino, lacuna que permaneceria

nos dias de hoje.

A cultura letrada no Brasil tem, entre seus objetos, práticas e representações, em certa

medida pouco examinada a idéia do livro como forma impressa de ampla circulação e o

suporte desses textos na forma de recepção. Achamos que isso seria de fato relevante no

Brasil, particularmente porque entre nós a cultura impressa sofreu interdições e só veio a ser

implantada, tardiamente, quando os interesses práticos da corte real se efetivou com a

transferência. Diferentes eram os objetos e práticas de leitura e escrita manifestos pela

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administração reinol e os brasileiros emergentes como nacionais. Uma vez impresso e

circulante, o livro suscitaria outros objetos, práticas e representações. Esta nossa palestra tenta

agrupar partes de um conjunto de nossa pesquisa tematicamente afiliada aos objetos do

Seminário, de forma a fomentar um mais amplo debate sobre o livro — produção, impressão e

recepção — no Brasil.

No momento em que o país, já completado seu meio milênio de existência, se debate

entre acertos e desencontros e questiona sua identidade, é sempre oportuno que a universidade

acolha interesses de divulgação de resultados de pesquisa, justamente pela apresentação de

produtos dos meios universitários, no paradoxo em que a sociedade não se cansa de cobrar

maior eficácia na produção acadêmica e, no entanto, lhe devota um solene desinteresse por tal

produção. A investigação sobre a trajetória do livro entre nós, antes e depois da chegada de

João VI e da constituição do Brasil Reino, é tarefa instigante, que só pode compreender e

estimular no circuito de idéias que tem o livro e a leitura como fonte e instrumentos

propiciadores do prazer, cuja base essencial lemos na Ética de Aristóteles.

Em 1988, apresentamos os resultados parciais de uma pesquisa que até hoje nos anima

e que foi iniciada a partir de julho de 1980, encerrado o curso de Mestrado em Literatura

Brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ. Março de 1988 divulgávamos a pesquisa sob a

forma de defesa de tese de doutoramento na mesma Instituição e que resultou no livro Perfil

do leitor colonial, editado dez anos depois. Entre 1980 e 1988 militamos na busca de material

bibliográfico e documental para a elaboração da Memória Bibliográfica Brasileira (1500-

1825) e do próprio Perfil, visitando lugares de reconhecida guarda cultural no Brasil e no

exterior, recolhendo pistas que remetessem ao universo que preenchemos em nossos

trabalhos. Alguns dados provocados pela investigação estão em processo para outros

investimentos, a exemplo do suporte editorial dos livros que mais circularam, os Best-sellers

na Colônia, e das marcas de recepção do livro e seu influxo na produção literária brasileira,

ou seja, As marcas da grey — uma relação leitura/escritura no Brasil, identificando as

influências das leituras nas obras de Anchieta, Vieira, Cláudio, Gonzaga e outros. Uma idéia

de saber de que maneira se pode ilustrar a cultura literária brasileira a partir dos livros

existentes nas estantes, no período colonial e hoje.

Para se obter um perfil de leitura praticada na Colônia e no Reino foi preciso o acesso

a documentação que ilustrasse os respectivos períodos. Assim foram processados os informes

e objetos em ordens régias, sobre instrução, comércio e recepção do livro entre nós. Os

documentos do século 16 (encontrados exclusivamente nos arquivos públicos Nacional e de

São Paulo) nada contêm ou esclarecem sobre o período, o que nos leva à conformação com a

historiografia oficial — a História da Companhia de Jesus no Brasil, do jesuíta Serafim Leite,

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A cultura brasileira, de Fernando de Azevedo, Livros e bibliotecas no Brasil Colonial, de

Rubens Borba de Moraes, entre outros — que formulam a identidade brasileira leitora da

época. Do século 17 em diante, os inventários de bens alimentam a pesquisa de seus suportes

concretos nos modelos de comportamento leitor, atingindo no 18 um grande vulto em termos

quantitativos e de variedade de títulos e assuntos e no 19, quando há uma legítima investida

de progressão e volume.

Para efeitos comparativos, é importante distinguir os modelos colonizadores de

Portugal e Espanha. A colonização espanhola foi mais expansionista e eficaz na América. Os

dados desse expansionismo apontaram uma circunstância para a qual os hispânicos se

mostraram bastante espertos. Eles aqui encontraram a base cultural já sedimentada dos

astecas, dos incas, dos maias. Para competir e, afinal, se fixarem, teriam que implantar sua

cultura e sufocar a encontrada. No entanto, adaptaram-se e progressivamente foram impondo

seus objetivos colonizadores, mas trazendo livros, não restringindo as novelas de cavalaria

que conviviam com os breviários dos padres, aliançando o caráter doutrinário do

expansionismo imperialista com o gosto popular em livre acesso. Isso vem magnificamente

estudado por Irving Leonard na obra Los libros del conquistador, alentado estudo acerca dos

livros que os espanhóis puseram em circulação desde o primeiro movimento colonizador. O

mesmo não se deu com os portugueses, até porque as tentativas de aproximação com os

nativos foram mais amenas que as alcançadas pelos espanhóis e nem por isso avocaram a

expansão da cultura entre nós. O resultado é que o Brasil sofreu um atraso criminoso, do

ponto de vista dessa lacuna bibliográfica, porque só irá conhecer extensivamente a cultura

letrada quando da chegada de João VI em 1808. Justamente para tornar mais suave a estada

reinol num sítio provinciano sem qualquer acesso ao conhecimento, nem aos benefícios da

cultura urbana, o monarca trouxe a biblioteca da Casa Real e as máquinas que formariam a

oficina da Imprensa Régia, ou seja, a legitimidade da circulação definitiva de livros, jornais e

revistas, que transformaram a colônia e contribuiriam para a definição de outras legitimações.

Conquanto a intenção original fosse difundir o dogma católico impositivo de

evangelização aos nativos de hábitos primitivos e a colonos gananciosos de riqueza fácil e

imediata, a verdade é que os jesuítas, introduzindo o livro impetrado de importância

apostólica, acabaram transformando-o de instrumento de persuasão ao objetivo catequético e

colonizador em símbolo de sedução. No século 18 especialmente, além da condução

missionária e libertadora da República dos Guaranis, na Colônia do Sacramento, os jesuítas

pontificavam em todo o mapa territorial brasileiro, detentores de grandes extensões de terra

mas, principalmente, formidáveis reprodutores e intérpretes do conhecimento, a despeito do

conteúdo doutrinário de sua pedagogia.

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Em que pese os livros por eles introduzidos fossem expurgados de trechos obscuros ou

que, a seu juízo, contivessem matérias com indícios de controvérsia moral ou obscenidades (e

Ovídio seria o mais expressivo desse modelo de censura leitora prévia, por suas margens de

inconveniência), os jesuítas foram os nossos primeiros mestres de estudo e leitura, sobretudo

porque eram exímios copistas. Essa cultura leitora, sem embargo da imposição doutrinária de

um teocentrismo absolutista com origem na Contra-Reforma e na prática disciplinar dos

inacianos, tem uma importância capital na disseminação do livro e na própria formação da

cultura letrada no Brasil, em especial porque foram nos seus colégios que, de alguma forma,

essa cultura se implantou, circulou e evoluiu. Muitos dos nossos ancestrais leram esses livros,

apreenderam a língua universal de então, o Latim, tendo acesso ao conhecimento produzido e

extensivo do mundo civilizado. Em nosso Perfil do leitor colonial julgamos demonstrar que,

afinal, não estávamos tão distantes da civilização letrada, ao menos no que toca ao

comprometimento leitor.

Talvez por isso é que, pouco depois de subir ao trono (durante o qual foi conduzido o

Tratado de Madrid, que segregava territórios e índios da comunidade jesuítica dos Sete Povos

das Missões), D. José I impôs como ministro plenipotenciário o conde de Oeiras e marquês de

Pombal, Sebastião José de Carvalho, cuja política contra os jesuítas e a presença massiva no

comportamento administrativo de Portugal e colônias modificou inteiramente a mentalidade

metropolitana e colonial, com profundas repercussões sociais, produzindo um vácuo na

cultura literária e na pedagogia do ensino. Foi Pombal quem reconstruiu Lisboa, quase

destruída inteiramente pelo terremoto de 1755. A equivalência de seu pensamento conduzindo

os negócios da administração portuguesa pode se considerar análoga à experiência de

Richilieu na França, com as caraterísticas especiais de deter o estado nas mãos e dele fazer o

espelho de sua personalidade. Entre os que embaraçavam seu poder, os jesuítas foram

expulsos das colônias, perderam o domínio da Universidade de Coimbra e seus outros poderes

detidos desde o século 16. Pombal prormoveria então uma renovação nos estudos da

universidade e no ensino médio. Do Brasil os jesuítas foram expulsos em 1757, acarretando

um sério comprometimento nas instituições de ensino e nos próprios livros que compunham

suas bibliotecas, livros vendidos a preço vil e extraviados para embrulhar sabão.

O papel desempenhado por Pombal, por uma série de injunções políticas, representou

mais atraso na circulação da cultura bibliográfica no Brasil. Com uma circunstância

agravante: Pombal mandou proibir e sequestrar bens e até mesmo castigar com pena de prisão

e degredo os que possuíssem ou fizessem circular alguns livros da pedagogia inaciana,

especialmente o inocente volume da Arte latina, livro de gramática latina do jesuíta Manoel

Álvares, popular desde o século 16. Em substituição aos jesuítas, o ministro todo poderoso

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convocaria os novos responsáveis pelo ensino, os padres da Congregação do Oratório, cujos

títulos não podiam concorrer com a gramática do padre Álvares, que trazia exemplos de

autores consagrados do período clássico, cumprindo um ideário decisivo do objeto

catequético pelo encanto da leitura que o livro produzia nos estudantes.

Sendo os jesuítas conservadores, qual a influência que poderiam exercer na Colônia,

justificando o ato de Pombal? A resposta mais pertinente é que os disciplinados integrantes da

Companhia de Jesus eram conservadores nos aspectos teológicos — em que se mostravam

inflexíveis, como, aliás, é fácil supor em quem votava à Companhia uma obediência de

cadáver... —, mas liberais em outros aspectos, como a preservação dos índios contra a

escravidão e a inserção de livros, inclusive os filosóficos e científicos em sua ordenação

pedagógica, tudo convergindo para os objetos da colonização católica do Novo Mundo, razão

a mais da natureza ascética do que propriamente étnica ou antropológica. No período pós

inaciano e pós reforma dos estudos na Universidade de Coimbra, ao lado dos clássicos, que

circulavam com desenvoltura (Ovídio, Horácio, Virgílio, Quintiliano, Sêneca, Plauto,

Terêncio e outros), o século 18 introduziria outras disciplinas leitoras. O conhecimento

científico se dissemina, já se postula o enciclopedismo, e esses clássicos conviverão com as

ciências médicas e farmacológicas, o direito, a filosofia, disciplinas em latim — língua

universal de comunicação como hoje é o inglês — e francês e uns poucos traduzidos.

Às mulheres, no entanto, praticamente o ofício de ler era vedado. Somente a partir da

terceira década do século 19 as mulheres ultrapassariam sua exclusão do universo leitor. Os

inventários em nome de uma mulher, por exemplo, revelam-na como inventariante e/ou

herdeira do patrimônio do marido varão.

É possível entender, a partir de nossa pesquisa documental e bibliográfica, que o

Brasil cultivou, desde o século de sua fundação, algum modelo de tradição leitora. Essa

tradição não será intensa, nos dois primeiros séculos, não ultrapassando quase os objetos do

ofício católico e catequético, nem tão extensiva que pudesse cobrir os interesses culturais,

considerados subjetivos ante os quadrantes objetivos da incipiente Colônia. O livro, do século

16 ao 18, seguramente era um bem destinado a poucos, como o é até hoje. Sobretudo nos

princípios de expansão dos tipos móveis de Gutenberg o livro era um objeto de consumo

expressivo, mas caro, sendo também um penhor da cultura, formador de juízo e raciocínio,

para o bem ou para o mal, tornando-se ainda um objeto de fetiche, mitologizado como

condutor de benefício ou ameaça ao espírito atemorizado dos indivíduos premidos pelos

ditames da Contra-Reforma. Ter um livro em casa era, portanto, signo de distinção entre os

nossos pentavós. Os poucos que o manuseavam seriam os padres da Companhia de Jesus, os

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fidalgos e bacharéis que para cá se deslocaram a serviço da administração central, um ou

outro mais curioso pelas novelas de cavalaria, muito populares à época.

De par com essa discriminação de classe, mesmo para Anchieta e os demais jesuítas

que são nossos mestres de linguagens, de expansão do idioma do conhecimento formal, as

dificuldades, os empecilhos da primitiva colonização, ao lado dos breviários e outras

disciplinas da tradição ascética e martirológica da teologia dogmática, sempre seria possível

rastrear leituras de um ou outro clássico latino, um Virgílio, um Horácio, um Ovídio, como,

aliás, é fecundo e fácil assinalar na obra poética e dramatúrgica do próprio Anchieta. Lia-se,

pouco ou muito, em Latim e em Latim surgiram os primeiros fundamentos do Direito e

Filosofia e quase nada de literatura de ficção, excetuadas as proibidíssimas e sempre

frequentes novelas de cavalaria. Em nossa investigação nos inventários de bens que indiciam

um Perfil do leitor colonial, no século 16 nada se demonstra em documentos factuais quanto à

expressão leitora. No século 17, a partir dos inventários pesquisados, lia-se um Fernão

Mendes Pinto, um Calderón de La Barca, um Miguel de Cervantes. Na mesma centúria

emergem os livros de teologia moral e dogmática, de doutrina, ascese e apologética cristã

católica, os casos de consciência de Fr. Luís de Granada, ao lado dos entremeses de Calderón,

da Peregrinação (meio história, meio memória ou ficção) de Fernão Mendes Pinto e das

Novelas exemplares de Cervantes.

No século 18, já postos em notável evidência, os indícios leitores se estendem em

variedade de títulos e assuntos que emergem das bibliotecas inventariadas, divulgando, além

das obras da referência religiosa já apontada, o Direito, a Filosofia, as Ciências Naturais, a

Medicina, a Farmacopéia, o enciclopedismo, os clássicos, os moralistas e praticamente todo o

universo cultural do conhecimento de então. A partir do século 18, além do Latim, as matérias

e assuntos aparecem versados em Francês, Espanhol e Português. E ainda que não se possa

precisar com exatidão uma estatística ou ranking dos livros mais freqüentes nas bibliotecas

setecentistas (tarefa em que estamos no momento empenhados, enumerando e analisando o

que constituiria um rol dos best-sellers coloniais), socorrendo-nos da memória resultado do

investimento processado no Perfil do leitor colonial, chegamos à conclusão que, na imensa

maioria dos inventários investigados, alguns livros se alinham estendendo-se ao

Oitocentismo, com maior incidência nas disciplinas da mística, ascese e apologética católica,

obras que, na verdade, não regulariam exatamente um gosto, mas uma imposição de leitura

dirigida.

Em linhas mais gerais, sem a base estatística que resultará de nosso estudo em curso,

figuram como best-sellers nas estantes brasileiras coloniais as Confissões e Cidade de Deus, de

Santo Agostinho; Mística cidade de Deus, da Sóror Maria de Jesus, abadessa do convento da

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Imaculada Conceição de Ágreda, na Espanha; Noites de Young, do poeta britânico Edward

Young; a História de Gil Blas de Santillana e O diabo coxo, de Alain-René Le Sage; a

Imitação de Cristo, de Thomás de Kempis; o Lunário perpétuo, do valenciano Jerônimo

Cortês; o Compêndio narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira; as

Confissões, O contrato social, A nova Heloísa e Emílio ou da Educação, de Rousseau; O

verdadeiro método de estudar, de Verney; a Arte de furtar, de um anônimo do século 18 e

atribuída, por truque de márqueting, ao jesuíta Antonio Vieira, além de outras obras do

próprio Vieira, do padre Manuel Bernardes, e outros títulos que constituiriam uma espécie de

estante básica ou suma orgânica da biblioteca universal praticada no Brasil a partir do século

18.

Se compreendermos a ficção literária, como fazem alguns estudiosos, estendida à

poesia e à prosa filosófica (ou à prosa histórica confundida com invenção), diria que a

circulação de obras ficcionais no Brasil Setecentista estaria de acordo com a observada em

países de maior tradição leitora. No século 18, pelos inventários investigados e pelas

informações historiográficas disponíveis, o Brasil leitor era versado em clássicos como

Virgílio (Eneida, Bucólicas, Geórgicas), Horácio (a poética e a sátira), Ovídio (A arte de

amar, As metamorfoses), Cícero (Da amizade, Da velhice), Quintiliano (As instituições

retóricas), Marcial, Plauto, Terêncio; renascentistas como Tasso (Jerusalém libertada),

Ariosto (Orlando furioso), Camões (as Rimas, Os Lusíadas), o Paraíso perdido de Milton,

mais La Fontaine, La Bruyère, Gracián, Vieira, Bernardes, o Elogio da loucura de Erasmo, os

Apólogos dialogais de Francisco Manuel de Melo, Cândido ou o otimismo de Voltaire, as

Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires, a lista é interminável...

Por isso mesmo e por mais que possa estarrecer, diríamos que, em termos

comparativos e de densidade populacional, recursos midiáticos etc., o brasileiro leitor na

Colônia lia mais do que lê hoje. Se hoje temos a multiplicidade de meios editoriais e de

acesso à enorme potencialidade populacional, a leitura não se efetiva, pelo menos nos termos

que a multiplicidade sugere. Somos quase 200 milhões de almas e as tiragens médias não

ultrapassam dois mil exemplares. A ação leitora no Brasil Colônia, se bem se exercitasse em

maior número nos títulos das disciplinas e matérias religiosas, pelos inventários investigados

verificamos uma surpreendente variedade de assuntos e áreas. Lia-se em Medicina uma Luz

da verdadeira cirurgia, de Pedro Gago, um Tratado da conservação da saúde dos povos, de

Antonio Ribeiro Sanches; em Farmácia, a Farmacopéia geral, de Francisco Tavares, uma

surpreendente Arte de se curar a si mesmo das enfermidades venéreas, de Godde de

Liancourt; em Direito, todos os luminares dessa Ciência em Portugal, a exemplo de Supico de

Moraes, Vanguerve Cabral, Aboim, Lobão e outros. Lia-se Malthus, Adam Smith, Diderot,

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Chompré, Montesquieu, ao lado de Tito Lucrécio Caro e Xenofonte, Platão e Sóror Teresa de

Jesus, Antonio José da Silva e o Satiricon de Petrônio, São Basílio ou Santo Tomás e Pascal e

Catulo, Bossuet, o comediógrafo Juvenal ou Epicuro, das Décadas de Diogo do Couto ao

Apuleio de O asno de ouro, do poeta Rodrigues Lobo ao Exame de bombeiros e Exame de

artilheiros de José Fernandes Pinto Alpoim, da História do Imperador Carlos Magno e dos

Doze Pares de França aos livrinhos de Santa Bárbara, da Arte da Cozinha à Educação de um

menino nobre e às sátiras (expurgadas de obscenidades) de Horácio, Ovídio, Marcial ou

Bocage. Ou seja, com base no que investigamos, tudo nos autoriza pensar que o leitor colonial

no Brasil tinha uma formação bastante eclética.

A educação, que nasceu e se desenvolveu no Brasil sob a ação missionária, pastoral e

didática dos jesuítas, é responsável também pela continuidade e substância da iniciativa dos

inacianos, que para cá trouxeram os primeiros livros, o que significa dizer as primeiras

leituras, a compenetração iniciática da importância do livro como signo de persuasão de

objeto catequético e colonizador, mas também de formação primitiva de um gosto. O latim

era o idioma universal de comunicação. Sem dúvida, os jesuítas tiveram uma extraordinária

influência na constituição de nossos acervos de cultura bibliográfica, bastando lembrar a

fabulosa e complexa monumentalidade cultural, literária e filosófica de Antonio Vieira,

exclusivamente formado no Colégio das Artes na primeira capital do Brasil. Quanto a

preceptores leigos, importa lembrar a completa inércia documentada por Vilhena em suas

Cartas soteropolitanas, mencionando professores vivendo como lacaios das sobras de

recursos metropolitanos — tal como ainda se verifica hoje, quase meio século depois...

Quanto à censura, parece que ela é tão velha quanto o livro. Uma de suas vítimas mais

notórias foi um tal António Isidoro da Fonseca, impedido de aqui implantar o que seria a

nossa primeira tipografia na primeira metade do século 18. A censura convive com o

pensamento. São irmãos quase xifópagos. Tivemos a censura inquisitorial, desde a Contra-

Reforma e os concílios de Trento, tivemos a censura pombalina, a reinol, a imperial, e depois

a republicana, todo um repertório de entulhos autoritários que quase sufocam a mobilidade da

cultura e da representação das identidades. Temos, contemporaneamente, o mais terrível tipo

de censura que é a censura editorial, essa catingada tutelar das elites, na forma de um

Ministério da Cultura apático, uma concentração da informação no eixo Centro-Sul, o

escambau. Ainda quanto a António Isidoro da Fonseca, trata-se de um português que aportou

no Rio de Janeiro, no marquesato de Pombal e teve frustrada sua iniciativa de instalar uma

oficina tipográfica igual à que tinha em Lisboa. Foi vítima da censura de editar...

No mesmo século 18, Alvará expedido pelo marquês de Pombal é um primor em

termos de atentado à liberdade de informação. Pombal exerceu um papel decisivo na

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transformação do século 18, em Portugal e em suas colônias. Discípulo de Maquiavel e

Richilieu, parecidíssimo com próceres da novíssima república brasileira, montou um

verdadeiro estado de terror obscurantista contra idéias (sobretudo francesas) que pusessem em

risco o regalismo de D. José I. Sem Alvará disciplinava os estudos nos territórios sob

jurisdição da Metrópole e proibia tudo o que cheirasse à Companhia de Jesus. Apesar dele,

uma Gramática, a famosa Arte latina do jesuíta Manuel Álvares, circulou abundantemente no

Brasil, a despeito de interditada sob pena de reclusão. Por aí se observa que o prazer de ler

supera até o risco de ir preso...

Daí é fato chegar à conclusão de que os portugueses colonizadores não eram lá muito

amigos dos livros. O homem comum, o degredado, o nobre desterrado, o capitão, o jesuíta,

estes aqui radicaram uma incipiente frequentação leitora, porque precisavam do livro para

expandir sua cultura e registrar seu domínio sobre nativos ágrafos. Mas as elites portuguesas,

os reis e nobres, os plenipotenciários reinóis, estes sustaram, enquanto puderam, a circulação

de livros no Brasil. Muito temos que agradecer a Napoleão que, invadindo Lisboa, forçou

João VI a vir para cá, trazendo-nos os recursos de implantação de uma Biblioteca, de uma

Imprensa, de um Jardim Botânico, de um Museu Nacional, de uns primeiros vagidos de

ensino superior, germe do ser nacional que ainda hoje ostentamos, apesar de todo o esforço

em contrário da idade média e dos neo-iluminados.

******

O perfil do leitor brasileiro no período colonial deve ser visto, consequentemente , a

partir de uma compreensão indissociável e um tanto óbvia: a que leve em conta o parco

legado político, social e cultural que nos imprimiu a experiência colonizadora. Fruto,

especialmente durante os séculos 16 e 17, de uma insuperável inércia administrativa baseada

no modelo extrativo sem preocupações com retorno ou resistências internos, o Brasil leitor

mostra-se parcialmente invisível, a despeito dos traços civilizatórios fornecidos pelo advento

da tradição escolástica trazida pelos jesuítas e seus Colégios das Artes. Do século 18 em

diante, com os desdobramentos oriundos do ciclo da mineração no Brasil e as sucessivas

crises do ultramarino português em outras regiões do mundo, a civilização da cultura

livresca/literária vai-se aos poucos acentuando entre nós até a eclosão, já no século 19, de uma

natural disposição para a diversidade de títulos, autores e obras em extensão e intensidade

consideráveis.

Um levantamento preliminar demonstra cabalmente a extravagante supremacia dos

portugueses, em relação aos demais europeus, na tarja proibitória de livros no século 16. São

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7 da Inquisição portuguesa (1547, 1551, 1559, 1561, 1564, 1581 e 1597), contra 3 da

Inquisição espanhola, 3 da Universidade de Louvain, 2 de Veneza, 1 de Milão, consignando-

se ainda 6 para a Universidade de Paris em diferentes oportunidades e tribunais. A censura era

predominantemente eclesiástica, de natureza preventiva, com a peculiaridade apontada por

Antonio Márquez, em artigo para a revista Arbor:

Contra la tesis romántica, aún en boga, es necesário insistir que ni el autor ni la obra son los objetivos finales de los Inquisidores, sino el lector cuya hermenéutica depende enteramente de la época. A los tiempos si achacan las prohibiciones de autores, por los demás católicos, y por la misma causa se entiende, e solo por ella, que una obra como La Celestina no se prohiba hasta finales del siglo XVIII, cuando su lectura pasa a ser de moralista a volteireana. Estamos em 1793 [...] La justícia inquisitorial es ejemplar: se castiga a uno para que aprendan los demás (ARBOR, p. 99-100.).

Assim serão consideradas de razão natural as dificuldades provenientes do embargo

português ao desabrochar e evoluir de uma inteligência brasileira legitimada pela experiência

viva. Essas carências serão suficientes para retardar e obscurecer nosso autoconhecimento

como povo e nação, aqui expresso na forma de transmissão da cultura literária, isto é, da

leitura, da circularidade de livros que nos retirassem da vala comum dos subtraídos de voz, de

discurso e síntese de suas expressões. O zelo colonialista baseado no extrativismo primário e

sem retorno (o que Vieira adverte em seu Sermão da Visita de Nossa Senhora a Santa Isabel)

fornece os meios de repressão e soterramento de possíveis expansões intelectuais na Colônia.

Desprovidos de escolas de orientação humanista e, mais ainda, inteiramente distanciado de

um universo favorável à livre circulação de idéias, o homem brasileiro só começa a exercitar-

se como leitor, timidamente embora, já nos meados do século 17. Tal formação, ainda que em

extrato conservador e de inspiração medieval, rigorosamente teocêntrico, terá importância

relativa e contribuirá, sem dúvida, para o alargamento de nosso próprio conceito

antropológico.

Quanto ao livro no Brasil Colônia, seus modos de circular e sua produção influindo

diretamente no surgimento de um público leitor, passado o vexame da experiência de Isidoro

em 1747, só assumiremos uma possibilidade leitora já nos começos do século 19, com a

Impressão e a Biblioteca Régias, criadas em 1808 e 1810 pelo Príncipe Regente e depois rei

D. João VI. Os livros serão compostos a partir das caixas de tipos trazidas pela iniciativa do

Conde da Barca e o Brasil leitor irá aos poucos se organizando. Ainda assim, com ressalvas.

Provisão Real de 14 de Outubro de 1808 estabelece que nenhum livro saia ou entre no Brasil

sem licença do Desembargo do Paço. O Intendente de Polícia Paulo Fernandes Viana, por

edital de 30 de maio de 1809, determina que avisos, anúncios, notícias de obras à venda,

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estrangeiras ou nacionais, não poderiam sair sem censura, sob pena de prisão e multa. Em

1815, o príncipe regente passa a rei. A censura aos livros permanece, afirma-se que contra a

vontade do monarca, submisso a seus funcionários mais próximos. Daí o crescimento da

língua portuguesa em Londres e Paris, com o Correio Braziliense e a justificativa de Hipólito

da Costa: “A dificuldade de publicar obra periódica no Brasil, já pela censura prévia, já pelo

perigo a que os redatores se exporiam [...] se estabeleceu a liberdade de imprimir para o

Brasil, posto que não no Brasil”.

A censura, pelo estímulo à delação e à incultura — irmãs siamesas da mesquinharia —

irá sobreviver na Colônia até 28 de fevereiro de 1821, data do Aviso de Pedro I, liberando

parcialmente a circulação de idéias e mentalidades.

Em Buenos Aires, a partir de 6 de agosto de 1799, circa, conhece-se um modelo de

cerceamento à circulação e entrega de livros, com o temor da circulação dos proibidos,

especialmente os interditados pelo Tribunal da Inquisição de Lima pelas ameaças ao Estado e

à Igreja. Para isso estabeleceram um “Control de las aduanas, expurgo de los libros y confisco

de material impreso o manuscrito”. Decisão do Tribunal da Inquisição em Lima para a

Argentina e o Uruguai, nomeadamente. O fim declarado: “evitar los graves males que pueden

causarse por la Instrucción de libros prohividos”.

A recomendação é seguir os Índices Expurgatórios, com seus éditos de proibição. Com

um adicional de escárnio: fazer as fiscalizações o mais “completas” possível, “sin que se

satisfaga por los rotulos de los libros, sino viendo lo interior de ellos, para evitar deste modo

el que bajo de rotulos supuestos, se introduzcan obras prohibidas”.

As caixas de livros eram abertas na presença do Interessado, retirados os que se

destinavam ao expurgo e só entregues os que não fossem do Índex. O tribunal era chamado

“Santo Tribunal dela Inquisición de los Reyes”. Contra os livros que se portassem antípodas à

vassalagem, obediência e reverência ao “Católico Monarca y Vicário Jesu Christo”. As

determinações alcançavam também as estampas e figuras.

Em 6 de julho de 1803, livros expurgados foram retirados das caixas e os outros,

liberados, entregues ao Interessado, o francês Isidoro Omón, com o argumento: “Los del Baul

son prejudiciales à la Religion, à las buenas costumbres, y al Estado por el libertinage que

respiran en todas materias” (In: LEWIN, Boleslao. La Inquisición en Hispanoamérica —

Judios, protestantes y patriotas. Buenos Aires: Editorial Proyección, s.d., p. 315-328.). Dentre

os livros liberados à leitura de Isidoro Omón, destacamos os seguintes, parelhos com a

circulação no Brasil:

Novelas Españolas 2 t.

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Metamorfosis de Ovídio 2 t. Las Viages de Ciro 2 t. Lisuart di Grecia 5 t. Historia Septentrional 4 t. Historia Indiana 2 t. El Triunfo de la Virtud 1 t. Elementos de Quimica 1 t. Romanses de Scarron 5 t. Robinson Crusoe 2 t. Rolando el furioso Poema heroico 3 t. La Diana de Monte mayor 1 t. El Campeon de la Virtud 1 t. Historia de Gil Blas 2 t. La Metamorfosis 1 t. El Infortunado Napolitano 2 t. Romances Comicos de Siaron (sic) 5 t. Metamorfosis de Ovídio 2 t. Entretenimiento Filosofico 1 t. Lisuardo de Grecia 1 t. Persilis y Segismunda 4 t. Biblioteca de Romances 1 t. Elementos de Quimica 1 t. Carta de Voiture (sic) 1 t. Entretenimentos de Damas 2 t. Historia del Mundo 1 t. Escuela dela Juventud 1 t. El Triunfo de la Virtud 3 t. Roland Furioso 3 t. Biblioteca Azul 2 t. Biblioteca de Genio 2 t. El nuevo Don Quijote 2 t. Anedotas Griegas 1 t.

Claro que já chegávamos ao apogeu do século de romances franceses de gosto

duvidoso e alguns títulos não coincidem com os entrados no Brasil. De qualquer forma,

porém, é consolador verificar que os interditos hispanoamericanos abriam margem ao

florescimento de perspectivas literárias significativas como os clássicos, os renascentistas, o

fantasioso à Defoe, os científicos à Fourcroy etc., que legitimam a idade adulta de um leitor

cada vez mais centrado em suas descobertas. Situação evidentemente ainda muito distanciada

da que ocorreria na colonização brasileira.

Também capítulo curioso sobre a distribuição do livro no Brasil é o das livrarias, de

que rareiam informações mais detidas. Além daquela, na Bahia, de João Martins de Andrade,

em 1722, a do mineiro Manoel Ribeiro dos Santos, 1770 e, resultado de pesquisa anotada em

artigo de Nireu Oliveira Cavalcante1, a do fluminense José de Souza Teixeira, por volta de

1 ACERVO, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 8, nº 1/2, p. 183 et. seg.

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1794. Briguiet avaliza a informação de que livrarias eram nulas em 1792, havendo uma única

no Rio de Janeiro, tendo obras devocionais ou de teologia; afora este caso, um vendedor de

livros da medicina portuguesa2. Também Rizzini segue o compasso, referindo-se ao

Almanaque de 1792 atribuído ao Tenente Artilheiro Antonio Duarte Nunes, que registra

naquele ano a existência de 17 casas de pasto, 18 estancos de tabaco, 52 lojas de barbeiro, 216

tavernas e ... 1 livraria3. Este número cresceria para 2 em 1799, inclusive com o sistema de

empréstimo/aluguel de livros. Com a chegada da família real, o volume comercial dessas

livrarias irá crescer significativamente. De 2 em 1808, 5 em 1809, 7 em 1812, 12 em 1816,

sendo principais as de Paul Martin e Manuel Jorge da Silva (1808), Francisco Luís Saturnino

da Veiga, Manuel Mondillo e João Roberto Bourgeois (1809), Manoel Joaquim da Silva Porto

e José Antonio da Silva (1812), Carlos Durand (1815), Fernando José Pinheiro, Jerônimo

Gonçalves Guimarães, Francisco José Nicolau Mondillo, João Batista dos Santos (1816),

Antonio Joaquim da Silva Garcez, João Lopes de Oliveira Guimarães e Manoel Monteiro

Trindade Coelho (1816). Algumas dessas casas sofisticavam a oferta de seus produtos, como

a de Paul Martin, que anunciava romances, folhetos políticos, edições da Impressão Régia em

periódicos da época e os vendia na rua da Quitanda, 344.

John Luccock descreve a importação maciça de livros em 1808, MacCartney diz ter

testemunhado a circulação de livros à venda nos campos da Religião e Medicina, a primeira

não incluindo a Bíblia em vernáculo. Segundo Hallewel, o Velho e o Novo Testamento, do

padre Antonio Pereira de Figueiredo, ficaram proibidos de vir para o Brasil — proibição que

alcançaria o ano de 1850, mas nossas investigações identificam a circulação franca dessas e

outras obras de Antonio Pereira de Figueiredo, festejado oratoriano, de surpreendente

prestígio junto ao público leitor do Brasil na segunda metade do século 18 e princípios do 19.

Em sua Voyage autours du monde, La Barbinais assim representa o modelo de

importação nos portos brasileiros, especialmente o do Rio de Janeiro que “formava um dos

portos de destino da frota anual que de Lisboa transportava, além de vinho, azeite, farinha,

carnes salgadas etc., sedas de Gênova, linho e algodões da Holanda e Inglaterra, tecidos de

oiro e prata de Paris e Lion”. Até à época, era mais importante transportar escravos do que

livros. O mesmo La Barbinais assistiria, no ano em que aportou à Bahia, à representação da

peça espanhola “La Moja Alférez”5.

2 Raul Briguiet, Instrução pública na Colônia e no Império, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. II, nº 04, 1944, p. 10. 3 RIZZINI, cit., p. 233. 4 Sobre o assunto, consultar: HALLEWEL, Laurence. O livro no Brasil, e MORAES, Rubens Borba de. Livros e bibliotecas no Brasil Colonial. 5 Oliveira Lima. Aspectos da literatura colonial brasileira. Leipzig: F. A. Brockhauss, 1896, p. 96.

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Com a vinda da comitiva real, duas ações do príncipe regente modificariam por

completo o panorama cultural do Brasil: a Imprensa Régia (que estimulou a geração das

tipografias comerciais nas províncias) e a Biblioteca Régia (com os 60 mil volumes oriundos

da Biblioteca da Ajuda). A mentalidade leitora vai naturalmente prosperar, com o país sede do

governo e os ares de aristocracia produzindo emulações de civilidade, o livro passando a

representar um signo de classe. Com o progressivo abandono da “Doutrina Monroe” (do

presidente James Monroe, norte-americano da Virgínia, que postulava o fechamento do

hemisfério à colonização européia, vista como ameaça aos interesses da América, e o

absenteísmo nas questões políticas da Europa), o Brasil avança no conhecimento de livros,

ainda que de forma esgarçada pelos limites da concessão.

Os impressos da Impressão Régia inicialmente eram documentos oficiais, entre 1808 e

1822 cerca de 1.173, mais cartazes, sermões, panfletos, volantes etc. Algumas das obras

publicadas tinham fins pedagógicos, como o Tesouro dos meninos: Lições de filosofia contém

por demais dogmas de Aristóteles e dos tempos sombrios para demonstrar que seu Autor não

é nem instruído nem judicioso; outras instruíam na medicina como o Tratado das doenças dos

negros; na economia e na jurisprudência, como as Leis comerciais do Brasil; outras ainda

tinham um ar de ecletismo ambicioso como a História de ilusões extravagantes e influência

sobrenatural.

Apesar do esforço reinol de refrear as liberalidades dos colonos por meio da censura, o

brasileiro leitor cumpriria seus ritos sociais, esquecidos da queixa expressa por Melo Morais

Filho em A Independência do Brasil de que “as artes e as ciências eram proibidas, como era

proibida a entrada de livros que pudessem instruir os talentos brasileiros”6. Afinal, são

publicações da Impressão Régia: Ensaio sobre a crítica, de Pope (1810), Marília de Dirceu,

de T. A. Gonzaga (1810), Uraguai, de Basílio da Gama (1811), Obras poéticas, de Garção, e

Obras, de Virgílio (1818), o que praticamente inaugura um ciclo de leitura estética consentida

na perspectiva colonizadora. Até 1822 são 1.154 publicações, com destaque ainda para a

edição das idéias econômicas de Cairu, da historiografia de Southey, do cientificismo

filosófico de Arruda Câmara, da lexicografia de Antonio Morais Silva etc.

Para a história do livro e da leitura no Brasil Colônia, a Impressão Régia teve, sem

dúvida, amplo significado, desde a Relação dos despachos públicos na Corte (Rio de Janeiro,

13 de maio de 1808, primeiro impresso da I.R.) até obras literárias como as já citadas e um

fenômeno de popularidade de então, O Diabo Coxo, verdades sonhadas e novelas de outra

vida traduzidas a esta, de Lesage, popularíssimo autor de outro best-seller colonial, o Gil Blas

de Santillana. A partir do molde da I. R., outros empreendimentos lhe sucedem em conferível 6 Cit. por Sílvio Romero, História da literatura brasileira, II, p. 410.

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grau de importância, desde a tipografia respeitosa de Silva Serva, na Bahia (1811) à

contrafação dos pernambucanos em 1817 e do jornalismo crítico de Hipólito da Costa e seu

Correio Braziliense, marcando o desenvolvimento da tipografia como elemento de

propagação e difusão do livro e do jornal, vale dizer, da formação de um estilo e um gosto

pela literatura.

Os exemplos da formação desse gosto e estilo vão se sucedendo no Brasil, com

episódios de conservadorismo ou renovação das mentalidades. Ao libelo do Correio

Braziliense responde O Investigador Português, criado pelo Reino para a defesa de suas ações

e que circulou entre 1811 e 1819. O Semanário Cívico de Cipriano Barata incendeia o mundo

político com seu ardor revolucionário. Outra experiência jornalística, com disposição

ideológica distinta e maior proximidade com o público popular, é o Diário do Rio de Janeiro,

fundado em 1821 por Zeferino Vaz de Meireles (dono da segunda tipografia no Rio) e que

teve a duração de seis meses, circulação diária, exceto aos domingos. O Diário.. trazia

anúncios e notícias locais, era também chamado Diário do Vintém (por custar vinte réis) ou

Diário da Manteiga (por veicular anúncios de gêneros, com seus preços e notícias populares).

O humor mais ferino vai aparecer no anúncio de que “ia sair do prelo um resumo da Arte de

Furtar de Padre Vieira” dedicado ao Targini, barão de São Lourenço, detestada e corrupta

autoridade do Brasil Reino. Quando da elevação do barão a visconde, a ira popular foi

despertada e o povo comum festejou e riu com a quadra: “Quem furta pouco é ladrão/Quem

furta muito é barão/Quem mais furta e esconde/Passa de barão a visconde”7.

Na Bahia, Silva Serva põe em circulação o jornal Idade D’Ouro do Brasil e a nossa

primeira revista literária Variedades ou ensaios de Literatura. Plancher imprime no Rio a vida

administrativa e cultural da sociedade brasileira, com sua Constituição do Império (1824),

Coleção de leis e decretos do Império e um curiosíssimo Dicionário das ruas do Rio de

Janeiro. Aliada à imprensa, igualmente a educação se amplia com a criação das Escolas de

Medicina na Bahia e no Rio, Direito em São Paulo e Olinda, a permanência das escolas

conventuais e o Seminário de Órfãos de São Pedro, germe do Colégio Pedro II. Até se

fortalecem as conquistas trabalhistas, com decretos como o de 27 de outubro de 1813,

estendendo aos professores de primeiras letras o direito à aposentadoria. Com a expansão do

ensino e do jornalismo, a conseqüente expansão de leitores.

Nas epígrafes dos jornais outra confirmação das leituras brasileiras. Na Idade D’Ouro

do Brasil, que primava pela liberdade, constituição, patriotismo e religião, a sentença de Sá de

Miranda: “Fallai em tudo verdade/A quem em tudo as deveis”. No corpo interno do jornal

7 In: CARVALHO, M. E. Gomes de. Os deputados brasileiros nas Cortes de 1821. Brasília: UNB, 1978, p. 64-65.

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sonetos patrióticos de Fonseca, citações de Massillon, Vieira, Camões, Descartes, Bacon,

Montesquieu, Boulangier, Voltaire, Rousseau. O exemplo do jornal baiano é representativo do

perfilado por outros periódicos da época, comprovando-se a circularidade cultural e literária,

ainda que indireta, que autores e obras provocavam no universo colonial.

Na Biblioteca Régia, criada por decreto de 29 de outubro de 1810, cumpre-se a

definitiva assunção da importância do livro. Dos particulares do príncipe regente às aquisições

via compras ou doações, como a coleção Barbosa Machado e seus 5 mil volumes, o espólio de

Fr. Veloso, os livros de Silva Alvarenga e do arquiteto José da Costa e Silva, a biblioteca do

Conde da Barca, de José Bonifácio, Princesa Leopoldina, irmãos Andrada, Intendente

Câmara, Cairu, Baltasar da Silva Lisboa, Januário da Cunha Barbosa e outros. São obras em

todos os campos do conhecimento, enriquecendo-se o acervo com a Bíblia de Mogúncia e

com títulos em História, Economia, Botânica, Mineralogia, Matemática, Literatura. O

exemplo da Biblioteca Régia estimula as bibliotecas provinciais, como a da Bahia, criada pelo

Conde dos Arcos em 1811 à base de doações particulares. Wied-Neuwied indicava 7 mil

volumes na biblioteca pública baiana em 1816. Sucessivas riquezas bibliográficas se

acrescentariam ao patrimônio brasileiro, como a do Colégio do Caraça, em Minas, com suas

obras em Latim e Francês, livros de Geometria, Filosofia e Música, dentre outras

tematizações.

No universo específico de leituras oitocentistas irão predominar os assuntos políticos e

legislativos, com a voga dos correios europeus, das gazetas inglesas contra jacobinos desde

1798, e do constitucionalismo pré-positivista cunhado por nomes como Jéremy Bentham, De

Pradt e Benjamin Constant. A vizinhança de movimentos e novidades libertários, em

conseqüência das crises sucessivas no interior dos governos imperiais, enseja continuidades

no sentimento emancipacionista dos fins do século 18, espraiando-se no Brasil para

insurreições como a Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador, de

1824, por exemplo. Alternam-se os títulos das obras freqüentes nas bibliotecas brasileiras,

com anotações de livros em inglês e, até, alemão. Dominam as ciências naturais, como a

Zoologia e a Mineralogia. Multiplicam-se os interesses por viagens, como a obra de

Freycinet, Voyage autour du monde sur les corvettes L'Uraine... e por política institucional,

como Portugal regenerado em 1820 (Lisboa, Tip. Lacerdina, 1820, 48 p.), folheto popular

denunciando o caos e justificando a Revolução do Porto. O século 19 também marca a

presença do pensamento alemão no Brasil, especialmente Kant, primeiro com Martim

Francisco aplicando curso entre 1804 e 1810 e depois, na pós-independência, com Feijó e

outros representantes do Primeiro Reinado. Com Kant, pode dizer-se, introduz-se no Brasil a

imagem do pensamento liberal, da filosofia da Ilustração experimentalista.

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Entretanto, os livros populares, oriundos do gosto setecentista, permanecerão, alguns

alcançando a condição de verdadeiros paradigmas do comportamento leitor brasileiro na

Colônia.

Um desses fenômenos de popularidade no repertório das letras, aqui recebendo a

indicação genérica de “Noites de Young”, é o poema do inglês Edward Young (1683-1765),

autor de notável influência na literatura universal, malgrado a pouca qualidade de sua

produção. O título em inglês — Night thoughts — recebeu em Português a tradução A

lamentação ou pensamentos noturnos sobre a vida, a morte e a imortalidade, em 1742. São

pensamentos impregnados de uma intensa melancolia pré-romântica, onde os desgostos do

poeta funcionam como índice das dores humanas a la Werther, condicionadas, no entanto, pela

íntima configuração cristã e mística da obra. Popular na Inglaterra e sobretudo na França,

Noites de Young impressiona pela atmosfera de rude golpe nos sonhos juvenis, o que

contribuiu decisivamente para o êxito do livro nos fins do século 18, êxito alicerçado na visão

sombria e nebulosa da literatura francesa, inglesa e alemã do Romantismo. Young é também

autor de um poema sobre o Juízo final (1713), outro sobre a Resignação e as tragédias Busiris

e A vingança, entre outras. O penumbrismo de suas Noites, entretanto, é o que lhe confere

popularidade, pontificando o didatismo de suas sugestões místicas, o estilo sublime

combinado com o moralismo clássico sobre a instabilidade corpórea e a imortalidade da alma,

éticas cristãs do estoicismo bebido em Sêneca. Sobre Young e seu estilo, o juízo de Carpeaux

não poupa a verve:

Os contemporâneos consideravam esse estilo como miltoniano, porque viram Milton através dos óculos do classicismo de Pope; e Young era classicista. As suas tragédias são moldadas em Dryden e Corneille; as suas sátiras são imitadas de Pope (...) Realmente cristão em Young é o pessimismo do desiludido. Disso resulta o prazer em evocar imagens de noite, morte, túmulo, cemitério, putrefação — eis os assuntos de Night thoughts — e disso também são provenientes as súbitas explosões de anarquismo moral (...) Young exprimiu em forma clássica e em símbolos cristãos a melancolia angustiada, pré-revolucionária, da época.8

Young influenciou Geller, Klopstock, os romances sentimentais de Miller, o próprio

Göethe e as Noites clementinas (ed. 1775), obra de Aurelio Giorgi Bertola, muito freqüente

nas estantes brasileiras. Sua influência igualmente se fez sentir em Portugal, através de sua

tradutora Leonor de Almeida de Portugal Lorens e Lencastre, a marquesa de Alorna, afinada

com a lira soturna (“Aquele outeiro sombrio/Está de névoa coberto...”), de José Anastácio da

Cunha, e até citações de Young aparecem n’O Investigador Português. No Brasil, seus

êmulos mais destacados serão o padre Antonio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), cujo

8 CARPEAUX, O. M. História da literatura ocidental. 2.ed. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978, IV, p. 940-941.

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sacerdócio aproxima-se da mística younguiana, e o mais fiel, Domingos Borges de Barros, o

Visconde da Pedra Branca, cuja poesia noturna, pré-romântica, se anuncia em Os túmulos.

O leitor oitocentista

O processo de mudanças sociais, políticas e administrativas que se observa no Brasil,

particularmente até o advento do Império, se faz acompanhar, de forma progressiva, por um

conjunto de mudanças nos hábitos do leitor, primeiro, em termos quantitativos, pelo aumento

de livros e bibliotecas; segundo, em termos reiterativos, pela manutenção das tendências de

leitura no século 18; e, terceiro, em termos valorativos, pela permanência consagradora de um

universo sócio-cultural que aparenta pretender um estágio político autônomo ou independente.

De fato, a observação mais óbvia que deriva de nossa investigação das livrarias

oitocentistas, nas fontes subsidiárias e notadamente a partir da análise dos inventários de bens

no Brasil, é que o país parece mudar, aumentam e massificam-se as bibliotecas, ocorre um

crescimento horizontal de títulos e de assuntos, com a variação e circularidade de livros

populares desde o século 18 e o acrescentamento de outros, novos e antigos, alguns até

aparecendo pela primeira vez e antes ausentes das livrarias coloniais brasileiras. O que não

muda é o perfil sociológico desse leitor, em geral um homem abastado ou de classe média,

entre conservador e liberal, ainda preso ao limite da devoção religiosa e ao profissionalismo,

seguramente curioso e interessado numa maior gama de interpretações do mundo à sua volta.

O século 19 brasileiro começa, com efeito, pelo aguçamento, ainda proveniente do

século anterior, de um período conturbado em Portugal, desde o fim do reinado de D. José I e

da sombra impressiva de Pombal, passando pela declaração de demência da rainha D. Maria I,

desaguando na ascensão do Príncipe Regente (depois rei D. João VI) e precipitando-se na

invasão das tropas de Napoleão a Lisboa. O que antes parecia difícil, demorado ou impossível

de acontecer, em termos de civilização, pôde afinal ser conhecido em pouco tempo no Brasil a

partir da transferência da Corte, tangida pela fúria napoleônica para o Rio de Janeiro, em

1808. Alçado em 1816 à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves, o Brasil pôde afinal

contar com melhoramentos sociais efetivos que se vão ampliando, desde 1808, da

modernização da malha urbana ao caráter fundador de novidades, como, por exemplo, a

criação de um Jardim Botânico, de uma Biblioteca, de uma Tipografia e, em especial, de uma

abertura dos portos às nações amigas. Tudo isso, sem dúvida, vem acelerar um sentimento

eufórico de expansão sócio-cultural, um gosto nascente pela natureza da nacionalidade e, o

que nos vai interessar aqui, de uma mais ampla vontade de saber, de ler, de informar-se.

Assim, com a criação e disseminação da arte tipográfica, jornais, livros, confrarias e debates

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vieram a tornar-se elementos multiplicadores de uma característica excepcional: a passagem

do Brasil à condição de país emergente num estágio incipiente de civilização.

Parece fora de dúvida que o Brasil oitocentista passa a ser visto e considerado como

um universo mental diferente a partir da mudança política e administrativa. Mas não será da

acepção exclusiva da transferência da Corte esse processo de transformação. A sociedade

também se organiza, a educação se amplia, começam enfim a ceder algumas das mais

significativas barreiras colonialistas ao nosso papel de gestores de um desenvolvimento

nacional associado a um processo civilizatório que compreenda maior integração com idéias e

culturas correntes no continente europeu. Tanto será isso verdade que, no caso de nossa

investigação documental, constata-se um aumento massivo de títulos e de autores que

encontramos nas bibliotecas desde o Setecentismo a este período do século 19, alguns dos

quais absolutamente noviços ou ausentes das livrarias, aí incluídos os proscritos, como Locke

ou Pascal.

O governador França e Horta, interessado na disseminação de atos festivos pela

chegada do Príncipe Regente D. João ao Brasil, recomendava expressamente a alunos e

professores de Filosofia, Retórica e Gramática, em 10 de março de 1808, que, na

oportunidade dos festejos da mudança da família real para o Rio de Janeiro, nas tres noites de

fogos dados pelo Corpo de Negócios, os estudantes de todas as classes darão hum Carro de

Parnazo com Oitero em q' se repitão, e fação obras aluzivas a tão sublime assumpto. Ou seja,

o governador impunha temas de composições poéticas aos alunos e instruía os professores da

província de São Paulo para dirigirem seus pupilos na ocasião da chegada do príncipe, de

sorte que as composições e as homenagens pudessem ser aplaudidas pela população e, óbvio,

bem recebidas pelo monarca. Claro, o estímulo à produção teatral ou às composições em

poesia sugerem o conhecimento que professores e alunos deveriam ter de autores e obras

correntes no século, segundo o gosto da época. Este gosto, em geral, obedecia a

determinações previstas em documentos oficiais, estabelecendo-se as disciplinas, matérias e

autores que deveriam ser seguidos.

O costume impositivo de leituras e de livros retoma o fôlego e se expande após a

permanência do Príncipe Regente no Rio de Janeiro e, particularmente, após o advento da

Impressão Régia. Isso é o que se pode deduzir da carta encaminhada pelo Secretário de

Governo, em comunicado circular, a todas as Câmaras da capitania de São Paulo e aos

escrivães, remetendo exemplares de leis e mais impressos a vender da Impressão Régia do

Rio de Janeiro, por mandado de S.A.R. em 12 de setembro de 1810. O documento vem

assinado por Manoel da Cunha de Azeredo Couto Souza Chichorro.

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Não deixa de ser curioso o projeto governamental de estender livros e idéias de cunho

prático a uma população ainda desprovida de grandes conquistas no plano técnico-prático,

profissional ou literário. A propósito, é detalhe peculiar em nossas investigações não haver

vultosas bibliotecas nos começos do século 19. As grandes livrarias vão se formando da

segunda para a terceira década do Oitocentismo, em quantidade, variedade e importância de

títulos, autores e assuntos. De qualquer forma, porém, demonstra-se oportuno o conhecimento

das características de leitura estimulada pela ação direta do Reino, tanto em Lisboa quanto no

Rio de janeiro.

O século 19, assim, irá ganhando foros de interesse histórico, com a ampliação do

ensino e com o desenvolvimento da tipografia entre nós. Data de 1809, por exemplo, a

requisição de um professor de Filosofia para o seminário franciscano de Taubaté, São Paulo,

circunstância, aliás, que assinala a continuidade do ensino dito avançado no Brasil Colônia.

Tal ensino, antes considerado médio, veio sendo ministrado pelos franciscanos desde 1650 no

convento de Santo Antonio no Rio de Janeiro, imprimido a todo o século 18 e 19, conforme

salienta Basílio Rower, OFM, na obra Páginas da história franciscana no Brasil. Como os

franciscanos, claro que os beneditinos e, sobretudo, os oratorianos e carmelitas, no século 19,

também desenvolveram seus esforços em igual sentido. Alguma curiosidade reponta,

entretanto, da natureza desses estudos, nem sempre contemplando a ordem e a versão oficial

do ensino. Entre 1814 e 1818, segundo informa o mesmo Rower, sendo professor no convento

dos franciscanos, em Itu, São Paulo, o Fr. Santa Justina, este teria denunciado a subversão de

Diogo Antonio Feijó, que ministrava aulas, no mesmo convento, de uma filosofia pouco

ortodoxa, pois nas suas preleções misturava erros dogmáticos de Anglicanismo, Kantismo,

Jansenismo e outras heresias.

Ainda quanto à instrução pública, que sempre traz consigo reflexos, diretos e indiretos,

da circulação de livros ou das tendências de leitura, lembramos os projetos para instalação de

uma disciplina de Anatomia e Cirurgia em Vila Bela, no Mato Grosso, planos que foram

apresentados em 17 de outubro de 1808 e também os estudos militares e de Engenharia, desde

meados do século 18, na mesma província mato-grossense, conforme Carlos Moura, op. cit.

Ao estudar as características da educação pública em São Paulo e no Rio de Janeiro,

observamos como é rigorosamente específico o universo de leituras decorrentes das

orientações pedagógicas. Tanto no ensino prático, quanto no de Humanidades, o rigor

censório era de molde a não permitir o desenvolvimento de processos educativos que não

estivessem contemplados pela autoridade competente. Em outras palavras, não havia

propriamente o desenvolvimento de um gosto, mas a obediência ao senso ideológico e às

decisões superiores na ordem de leituras dirigidas.

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Em São Paulo e no Rio, praticamente, os mestres deveriam estudar, aplicar

conhecimentos e aferir a desenvoltura do aluno de acordo com os manuais recomendados pela

autoridade superior. Assim, estudava-se pelos Elementos de Geometria, de Euclides,

Aritmética e Álgebra, de Bezout, Mecânica, de Bezout. A Ótica e a Astronomia seriam

entendidas através de textos de La Caille, o desenho segundo o Essai statistique, de Balbi.

Não espanta por isso que, na nossa investigação em fontes primárias, tenhamos encontrado,

sempre, e desde o século 18, esses autores. A vigilância, contudo, era freqüente, de sorte a não

permitir a leitura de obras defesas. A censura passava por outro processo de mudança de

órbita. No caso do estudo de Retórica e Filosofia, muito havia que vigiar e punir. A

Gramática latina, obrigatória, básica para todo o ensino e que se estudava, normalmente, era

aquela nossa conhecida de autoria do padre Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797),

oratoriano das reformas pombalinas. Isso aconteceu praticamente por todo o Brasil Colônia.

No Rio de Janeiro, por exemplo, a Academia Militar advertia para os estudos de

trabalhos de Le Roy, inglês, e Delambre, francês, no caso dos estudos de Geodésia. Era um

documento oficial que propunha isso, uma carta régia que determinava a metodologia a ser

seguida pelos professores e ainda o modelo de leitura e de autor. Carta régia de 4 de dezembro

de 1810, citada por Nizza da Silva em Cultura e sociedade no Rio de Janeiro, lembra a

obrigatoriedade do conhecimento de Lacroix para os princípios de Aritmética e Álgebra, dos

Elementos de Euler para Álgebra e das explicações contidas na excelente Geometria e

trigonometria retilínea de Legendre para a boa formação do princípio matemático aos alunos.

Para a Geodésia, não deveria o professor adotar nenhum outro método ou modelo, pois a carta

diz, textualmente, que o lente não se esquecerá de dar exemplos tirados da célebre obra de

Delambre. No 4º ano, de um total de 7, o professor deveria formar seu compêndio de

instrução pública com base em obras de Laplace, Lalande, Lacaille, Lacroix e Pinkerton, se

quisesse escapar a castigos ou ser considerado revel no quadro das noções gerais de Geografia

do globo. Para a Física, eram obrigatórios os Elementos de física do abade Haüy, tendo

também em vista o Compêndio de física de Brisson. Para o 5º ano, o rigor da carta régia

permanecia, no particular das Ciências Exatas e em especial da Arte militar. São aí indicados

o Manual topográfico elaborado pelo Arquivo Militar da França, completando o currículo de

tática, estratégia, fortificações etc., a que se deveriam aduzir as obras de Guy de Vernon e de

Cessac. No estudo da Química, para este mesmo 5º ano, a carta determina os autores

obrigatórios, devendo o mestre seguir todos os métodos docimásticos para o conhecimento

das minas, servindo-se das obras de Lavoisier, Vauquelin, Fourcroy, Lagrange, Chaptal,

para formar o seu compendio. Para o 6º e o 7º anos ainda se impunham métodos segundo

Bossut, Müller, para estudos de edifícios e muralhas etc. Werner, Napion, Haüy e Brochant,

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para os estudos de mineralogia. No 7º ano, o nome de Rose para o estudo das minas e de

Lineu, acompanhado de Jussieu e Lacepède, para os estudos de História Natural.

O estudo dos idiomas pouco se acentuou nesse período, em que pesem os esforços de

Martim Francisco em fazer correr o estudo do francês como língua geral, e mais útil pelas

muitas verdades necessárias ao bem do país, que podemos escolher dos escritos de seus

sábios. Vigilantes, as autoridades temiam que o estudo do francês pudesse abrir o flanco à

leitura de filósofos suspeitos. Para a Ilustração portuguesa não se deveria abrir espaço algum a

idéias defesas nos reinos de Portugal. Por isso a permanência dos clássicos. E da Gramática

Latina de Antonio Pereira aperfeiçoada por Antonio Félix Mendes, ainda que sem a

obrigatoriedade do método. Permanecia a gramática e mais livros de seletas para uso dos

alunos em prosa. O livro básico era a Selecta latini sermonis exemplaria, scriptoribus

probatissimis ad Christianae Juventutis usum olim collecta. E mais Cícero: Mar Tullii

Ciceronis epistolae ad familiares denuo, selectae, et emmendatae ad Lusitanae Juventutis

commodum, et institutionum. Em relatório de 1820, o professor Bento Francisco da Costa

Aguiar, da Vila de Santos, afirma o uso de alguns desses livros, para a prosa, indicando ainda

que para tradução do verso, ensino os poetas Virgilio, Horácio, e Ovídio pois são os mais

seguidos. Mesmo método parece ter seguido Francisco de Paula Simões, de Taubaté, que

esclarece, em relatório à Secretaria de Governo em 1820, dando o tom das tendências de

instrução e leitura da província de São Paulo, à época:

O livro elementar é o Compendio de gramática, do Padre Antonio Pereira, ensinando-se desde então aos meninos a formar analogias. Dentro em 3 ou 4 meses, conforme a esfera de cada um, principiam a traduzir algumas histórias muito fáceis, como v.g. a História Sagrada, de Sulpicio, e Romana, de Eutrópio e Aurélio lictor. [...] Os autores, que se explicam, são os da melhor idade da língua latina, ou bem os imediatos Nepote, César, Livio, Salústio, Cícero, etc. E os poetas são Terêncio, Plauto, Ovídio, Virgílio, Horácio. Por Plínio naturalista se dão os temas, e os autores da 2a. ordem, que se explanam, são Cúrcio, Suetonio, Patérculo, Tácito, etc.

Relatório do Professor de Filosofia Racional e Moral, Francisco de Paula e Oliveira,

da cidade de São Paulo, redigido em 1820, radica o sentido metodológico dos estudos na

província à época da Independência e dá mostras das tendências de leitura obrigatória na

Colônia:

Os compêndios de que uso para a instrução dos mesmos alunos, são os geralmente adotados na Universidade de Coimbra, em Portugal, e no Brasil, quer dizer, Genuense; adicionando-o com algumas reflexões dos mais

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célebres, e iluminados filósofos, como João Locke, Dr. Dodrig, o abade Condillac, Carlos Bonnet, e Manuel Kant.

Deve ser este o tom de obrigatoriedade na aplicação de matérias curriculares e de

livros, por força da filosofia de educação vigente, em outras províncias brasileiras do século

19. Tal filosofia se aplicaria, certamente, em Vila Rica, onde, por proposta do Barão de

Eschwege, em 16 de maio de 1813, deveriam ser criadas aulas de Matemática e Princípio de

Tática. O Desembargo do Paço, por ato de 25 de outubro do mesmo ano, autorizou o

funcionamento de cadeiras de Latim, em Baependi, um curso de Veterinária em Ouro Preto e,

para Mariana, a concessão aparentemente mais generosa: cursos de Mineralogia, Química,

Zoologia e Metalurgia, Botânica, Física, Aritmética, Geometria e Cálculo. O modelo de

leituras, ou os livros para consulta e estudo nesses cursos, não seriam diversos daqueles

seguidos em São Paulo e Rio de Janeiro.

Para compreendermos certos aspectos da instrução oitocentista em Pernambuco, é

imperioso anotar alguimas informações contidas num opúsculo incompleto Revolução no

Brasil, lastimavelmente apócrifo. Descontadas óbvias e preconceituosas impressões do

anônimo autor, que assinala, quanto à instrução pública pernambucana desde 1799, as

disciplinas e professores que teriam constituído a então chamada Universidade de Olinda. Em

número de onze, as disciplinas eram: Theologia Dogmática, Historia Ecclesiastica, Theologia

Moral, Philosophia Universal, Mathematicas, Rhetorica, Poetica, Língua Grega,

Grammatica Latina, Cantochão, Primeiras letras e Dezenho. Os professores eram religiosos,

em sua maioria, e três ex-religiosos. Logo, os livros que deviam circular, e que afinal (seria

lógico supor) consubstanciariam os Estatutos do Seminário publicados por Azeredo Coutinho,

seriam aqueles considerados úteis expurgados das matérias proibidas ou passíveis de instilar

dúvidas ou ambigüidades nos estudantes.

A questão da instrução pública no Brasil é ainda relevante, em termos das dificuldades

de extensão e adequação, pela natureza social dessas dificuldades e pela política de

implantação pedagógica. Assim, é natural acreditar nas Instruções ditadas pela Diretoria das

Escolas de Ensino Mútuo a Manoel Caetano Espínola, encarregado de instituir e dirigir uma

escola na cidade do Recife, obedecendo à portaria de 18 de julho de 1825. Em função dessa

portaria, o encarregado observará a impropriedade de circulação de qualquer livro, compêndio

ou papel, como objeto de lições ou para uso das escolas, se não forem aqueles aprovados pela

Diretoria das mesmas escolas em atendimento à determinação do Governo. Estávamos em

1825, um ano após a promulgação da primeira constituição imperial, a nação autônoma já era

conhecedora de duas experiências revolucionárias apenas no século 19 e ainda éramos

dependentes de disciplinamentos de cunho português na educação.

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É oportuno anotar o testemunho das gerais dificuldades, à época e desde então, que

acompanham o evoluir da história da educação no Brasil. Em carta de 4 de setembro de 1825,

Fr. Miguel do Sacramento Lopes conclui sua peroração sobre essas dificuldades e julga, com

inquestionável disposição de espírito e isenção, o quadro que documenta a partir da província

de Pernambuco. A carta do frade é documento exemplar porque denuncia não só as

dificuldades operacionais do ensino, a falta de bons honorários aos professores, a necessidade

de substituição do professor de Retórica já velho e entrevado, como também aponta queixas

contra a falta de polidez e civilidade dos alunos e a exigüidade de espaço das salas-de-aula, o

que condenava os alunos, apinhados, ao prejuízo da educação. Considera boçal a atitude do

professor de latim, mais preocupado com as sutilezas do idioma do que com a beleza dos

clássicos. Lamenta a existência de uma única aula de Filosofia Racional e Moral, dada pela

Congregação do Oratório, onde há poucos padres e poucos alunos e cujas lições limitam-se às

sucintas regras de Genuense e à pequena Ethica de Iob. E acrescenta observações para

reformas que julga indispensáveis: reduzir a Logica à metade do compendio; a metafísica a

menos da metade, ajuntando à Ética um estudo mais sério do Direito natural e das gentes.

Exemplo mais contudente e notável do tom lastimoso do frade pernambucano vem no trecho:

As aulas de primeiras letras, tão necessárias á Mocidade estão commumente em lamentável atrazamento. Os professores pela mor parte ignorão os primeiros rudimentos da Gramatica da língua; e d'aqui os rapazes sem a mais leve idéia da construcção e regencia da oração, e nenhum conhecimento da Orthografia, e Prosodia da Língoa; d'aqui os barbarismos, os solecismos, os neologismos, e infinitos erros, a q. des d'os tenros annos se vai habituando a mocidade.

A exemplo do estado da instrução em Pernambuco, inferimos uma igual

correspondência na Bahia. Aqui se instalara, desde o século 16, o primeiro colégio dos

jesuítas, e mais os dos carmelitas e franciscanos. No século 19, a Faculdade de Medicina

começa a distinguir-se a partir do antigo Hospital Militar criado em 1808. Não só pela

instrução propriamente dita, mas pela ação indireta que se origina da instalação e

desenvolvimento da tipografia de Silva Serva e da biblioteca pública se poderia presumir um

ambiente eminentemente favorável à circulação de livros.

A carta oitava de Vilhena, curiosamente, lembra um tanto a do Fr. Miguel do

Sacramento Lopes, quanto às dificuldades do estudo, à parca e nada constante retribuição ao

trabalho dos professores, ao êxodo dos melhores alunos para o serviço militar, ou à própria

lástima dos estudos, o que confere um tom de lamento à oitava carta soteropolitana. Vilhena

dá notícia das aulas dos colégios baianos desde fins do século 18 e, concentrado no começo

do 19, mostra as características dos estudos, com predomínio da Gramática portuguesa,

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rudimentos da Língua latina, estudos de sintaxe e sílaba, Retórica, Matemática, Filosofia e

Teologia moral, compreendendo sucessivamente as sete classes dos estudos. Vilhena observa

ainda — daí seu mais fundo desgosto e certeira premonição — a constante de atrasos nos

pagamentos aos professores, as características pouco adiantadas do ensino público e a pouca

valia atribuível aos profissionais da educação no Brasil. O trabalho das cartas vale muito

como documento de época, embora fiquemos desamparados de informações quanto aos títulos

e livros que deviam circular. Falar nisso, o próprio Vilhena adverte que aqui não aparecem

livros.

Não será difícil a interpretação da natureza desses estudos oitocentistas. O século 19

prolonga a agonia da experiência do Subsídio Literário e, em que pese a compreensão e o

esforço dispendido pelo governo de D. João VI que para aqui se deslocara, a situação da

instrução brasileira não chegaria a despertar maiores entusiasmos e nem seria tão

determinante assim no que tange à formação de leitores, não fosse a ação direta, enquanto

consumidores de livros, dos cidadãos.

Em 1807, foi a vez da consentida experiência calcográfica do padre Viegas, em Vila

Rica. Ali foi editado um folheto de 18 páginas, sendo 15 delas em impressão. O opúsculo era

um poema em 20 oitavas de Diogo de Vasconcelos homenageando o aniversário do capitão-

general Ataíde e Melo. Viegas teria aprendido alguma coisa do ofício na tipografia do Arco

do Cego, com o próprio Fr. Veloso. Na forma tipográfica, porém, Minas Gerais só conheceu

as letras impressas em 1823, com o primeiro jornal O Conciliador Mineiro, em 13 de outubro.

A Tipografia Calcográfica, Tipoplástica e Literária do Arco do Cego, criada em 1800,

teve decisiva penetração no Brasil e em todo o Reino, contribuindo para a divulgação de obras

de cunho científico e de técnicas circulares desde fins do século 18. Até o final de 1801,

quando se transformou na Impressão Régia, transferindo-se os seus diretores para a nova casa,

a Tipografia do Arco do Cego já havia publicado cerca de 70 títulos, a maioria nos ramos das

Ciências naturais. Seu diretor principal, o brasileiro Fr. José Mariano da Conceição Veloso,

chegou de volta ao Brasil em 1807.

Dois ministros são tidos em importância no particular da implantação da imprensa no

Brasil. D. Rodrigo de Souza Coutinho, depois Conde de Linhares, e António de Araújo, o

Conde da Barca, que trouxe uma caixa de tipos de Portugal. A Impressão Régia aqui foi

inaugurada a 13 de maio de 1808. Do ponto de vista da evolução da tipografia e,

especialmente, quanto ao modo de produção e divulgação da letra impressa influindo

diretamente na expansão de um público leitor, a criação da Imprensa Régia estimulou a

identidade leitora dos brasileiros, ampliando o universo e o interesse pela leitura e pela livre

circulação das idéias. Estimulou também a proliferação de outras tipografias, como a de

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Manuel Antonio Silva Serva, na Bahia (experiência notável pela popularidade e pela vitória

do empreendimento, editando leis, livros, jornais como A Idade d'ouro do Brazil e revistas

como As Variedades ou ensaios de Literatura) e atividades de livreiros-editores, como o

próprio Silva Serva, Paul Martin, Paulo Martins Filho e Plancher. A vida administrativa e

social ganha a parceria indiscutível da impressão e da disseminação da cultura. Plancher, por

exemplo, edita, em 1824, duas obras importantes e de larga circulação entre nós: a

Constituição do Império e Coleção de leis e decretos do Império do Brasil, além de outros

posteriores documentos de interesse histórico.

A trajetória da Impressão Régia é das mais ricas, pois criou espaços para a edição de

livros e periódicos — logo, ampliou o universo de leitores e aguçou a curiosidade pública

para o saber. Além de impressos de seu interesse imediato (leis, decretos, papéis, memórias de

efeito localizado), fez divulgar o saber dos livros e das ideologias. Os jornais da época

completam o ciclo de Gutenberg entre nós, ampliando a perspectiva histórica do Brasil Reino

e fomentando o vértice da cultura bibliográfica e periodística. Formalizam-se as profissões de

livreiro e editor, com excepcionais situações de estabilidade. Muitos livros serão objeto de

anúncios nos jornais e cria-se o hábito da ida às livrarias nascentes. A primeira metade do

século 19 será, portanto, a representação de um momento histórico de luzes, da Impressão

Régia e de uma florescente indústria editorial que darão suporte e potencialidade ao consumo

de livros e ampliação de leituras.

A perspectiva alvissareira aberta com a Impressão Régia aqui, acentuada com a

Biblioteca Real e os correios e notícias do mundo europeu, se completa, na Bahia, pela ação

do Conde dos Arcos. Além da tipografia e do comércio de livros de Silva Serva, a novidade é

a criação da Biblioteca Pública baiana, contando com acervos de doações e da incorporação

da biblioteca particular do padre Francisco Agostinho Gomes, ex-conspirador de 1798. Neste

sentido, é imprescindível a leitura do Plano para o estabelecimento de uma biblioteca pública

na cidade de S. Salvador, Bahia de Todos os Santos, offerecido á Approvação do lllustrissimo

e Excellentissimo Senhor Conde dos Arcos, Governador e Capitão General desta Capitania,

por Silva Serva, editado em 1811, para evitar a incultura, pois he só atravez á ignorancia dos

Povos que se devem imputar as desgraças que os opprimem.

No jornalismo periódico, não nos devemos esquecer da experiência de Hipólito da

Costa e da enorme contribuição desempenhada pelo Correio Braziliense (1808-1822), editado

em Londres e com sensível penetração no Brasil, onde formou juízos críticos sobre as ações

do Príncipe Regente depois rei D.João VI. É desse experimento de combate que vão crescer e

multiplicar os periódicos brasileiros, na voga do constitucionalismo e do livre debate das

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idéias, da ansiada glória das insurreições de 1789 e 1817, ao signo múltiplo da Independência

de 1822.

A íntima relação entre imprensa e ideologia acompanha uma nem sempre livre e aberta

circulação de livros e jornais. É, pois, de ideologia, ou, antes, de repressão ideológica que

tratam muitas das proibições ao comércio ou à divulgação de idéias e de livros no Brasil

Reino, como se estivesse recuperada a sombria vocação paternalista e doutrinária nos óbvios

interesses do vácuo colonizador. A circulação da imprensa periódica nunca, como sabemos,

transcorreu de forma pacífica no Brasil. Houve inúmeros interditos, como os que alcançaram

O Portuguez e O Campeão ou Amigo do Rei e do Povo, proibidos de circular, hostilizados

pelo governo de D. João VI, respectivamente em 9 de julho de 1818 e 7 de dezembro de 1819.

A Coroa primava, assim, pela ameaça ao livre trânsito das idéias, como antes, e em igual

sentido, zelaram a Inquisição e o Regalismo.

De qualquer forma, é importante destacar o surgimento e evolução da imprensa

periódica e suas previsíveis conseqüências na formação de um público leitor e crítico. Alguns

desses jornais fizeram história pela postura combativa ou pela margem de notícias sobre os

costumes e vida social no Brasil Reino. Por uma ordem mais ou menos cronológica, temos: A

Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822), a Idade d'Ouro do Brasil (1811-1823), As Variedades

ou Ensaios de Literatura, primeira revista literária do Brasil, de que saíram dois únicos

números (1812), O Patriota (1813-1814, do Rio de Janeiro), Correio Braziliense (1808-

1822), Aurora Pernambucana (1821, de Recife), O Paraense, de Belém (1822), O

Conciliador do Maranhão, de São Luís (1821-1823), Conciliador do Reino Unido, do Rio de

Janeiro (1821), O Bem da Ordem, do Rio de Janeiro (1821), O Seminário Cívico, da Bahia

(1821-1823), Diário Constitucional, do Rio de Janeiro (1821-1822), Revérbero

Constitucional Fluminense, do Rio de Janeiro (1821-1822), Despertador Fluminense, do Rio

de Janeiro (1821), O Maribondo, do Rio de Janeiro (1822), Correio do Rio de Janeiro (1822-

1823), Tamoio, do Rio de Janeiro (1823), Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco,

de Recife (1824), Typhis Pernambucano, Recife (1823-1824), Diário de Pernambuco, de

Recife (1825). O jornal Aurora Fluminense, que ilustra a importante presença de Evaristo da

Veiga no cenário político e cultural brasileiro, já pertence a um período que escapa aos

objetivos deste trabalho, pois é editado entre 1827 e 1835.

Duas experiências de impressão avultam no Brasil oitocentista. A da própria

Impressão Régia e a de Silva Serva na Bahia. Sobre a primeira, já se conhece boa parte da

história. Seu primeiro impresso é um folheto de 27 páginas, divulgando o primeiro daqueles

itens principais para o que foi criada: Relação dos despachos publicados na Corte pelo

expediente da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra no fastidioso dia

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dos annos de S.A.R. o Príncipe Regente N.S. E de todos mais, que se tem expedido pela

mesma Secretaria desde a feliz chegada de S.A.R. aos Estados do Brasil até o dito dia.

Os impressos seguintes, com alguns intervalos de publicações de obras poéticas, de

Economia e Estudos Sociais (de 1808 a 1822, a Impressão Régia atingiu uma marca de 1713

títulos), seguem a voga das publicações de documentos reais, das secretarias de governo, ao

lado de cartazes, sermões, panfletos, volantes etc. Algumas obras se destacariam desse

conjunto, como o Tesouro dos Meninos; as Lições de Filosofia contém por demais dogmas de

Aristóteles e dos tempos sombrios para que demonstre que seu Autor não é nem instruído

nem judicioso; a História de ilusões extravagantes e influência sobrenatural; Leis comerciais

do Brasil e o Tratado das doenças dos negros. O interesse despertado para estudos de

Retórica e Poética privilegiaram a publicação dos Ensaios de Pope, na tradução do Conde de

Aguiar.

Além desses títulos, observa-se uma natural curiosidade pela publicação de livros

extra os documentos oficiais. A relação primária desses títulos se fez gradualmente, desde

1808. Neste ano, além da Relação dos despachos, tivemos a publicação de Observações sobre

o comércio franco do Brasil, por José da Silva Lisboa e a Memória histórica da invasão dos

franceses em Portugal, em 1807, sem autoria conhecida. Os anos seguintes registram algumas

das mais significativas produções da Impressão Régia:

1809 Elementos de Álgebra, de Euler Elementos de Geometria de A.M. Le Gendre, ambos traduzidos por

Manuel Ferreira de Araújo Guimarães. 1810 Observações sobre a prosperidade do estado dos liberais princípios

da nova legislação do Brasil (in 8º, 95 p.). Refutações das reclamações contra o comércio inglês, de José da Silva

Lisboa. Observaçoens sobre a fraqueza da indústria e estabelecimento de

fábricas no Brazil (in 8º, 313 p.). Roteiro e mapa da viagem de S. Luiz do Maranhão até a Corte, de

Sebastião Gomes da Silva Berford. Preâmbulo; ou Ensaio filosófico e político sobre a Capitania do Ceará

para servir à sua história geral, de João da Silva Feijó. Tratado de Aritmetica, por Lacroix, trad. por Silva Torres. Tratado elementar de física (2 v. ilustrados, com 400 p. cada um) de

Haüy. Ensaio sobre a crítica, de Pope, trad. e anotado pelo conde de Aguiar

200 p. in 4º (Notas de José Barton, do tradutor e outros e comentário do Dr. Warburton).

Marília de Dirceu, partes 1-3, 3v. in 8º, 336 p. no total. O Diabo Coxo, verdades sonhadas e novellas de outra vida traduzidas

a esta. Por Lesage. N. ed. T. 1º.

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Com licença. Vende-se 1v. na loja de Paulo Martins Filho. 1811 Ensaios morais, de Pope, trad. Conde de Aguiar. O Uruguai, de Basílio da Gama. Roteiro da cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará pelo Rio

Tocantins, de Oliveira Bastos. Obras completas de Manuel Maria Barbosa du Bocage. O consórcio das flores. De Lacroix, trad. por Bocage. Compêndio das riqueza das nações, de Adam Smith, trad. por Bento

da Silva Lisboa (3 v, 1811-1812). Paulo e Virgínia, de Saint-Pierre. 1812 Elementos de álgebra, de Lacroix, trad. por Francisco Correia da Silva

Torres. Elementos de geometria descritiva extraídos da obra de Monge, por

José Vitorino dos Santos e Souza. Tratado elementar de mecânica, de Francoeur, trad. por Saturnino da

Costa Pereira. Ensaio sobre os perigos das sepulturas dentro das cidades e nos seus

contornos, de José Correia Picanço. Obras poéticas, pelo poeta de meados do século 18 Correia Garção. 1813 Tratado de óptica, de La Caille, trad. por André Pinto. Preleções philosophicas sobre a theorica do discurso e da linguagem,

a esthetica, a diceósyna e cosmologia, de Silvestre Pinheiro Ferreira. Aforismos sobre as hemorragias uterinas e convulsões puerperais, de

Thomas Denman, trad. por Costa Barreto, por ordem do príncipe para a escola de medicina.

Tratado elementar de arte militar, de Gay de Vernon, trad. por João de Souza Pacheco Leitão.

1814 Elementos de astronomia, compilados por Araújo Guimarães para a

Real Academia Militar. Compêndio de matéria médica, por José Maria Bomtempo. Discurso fundamental sobre a população, por Herrenschwand, trad.

por Luís Prates de Almeida Albuquerque. 1815 Memórias da vida pública de Lord Wellington, príncipe de Waterloo,

duque de Victoria, duque de Wellington, duque de Ciudad Rodrigo, Marechal General dos Exércitos de Portugal contra a invasão francesa, feld-marechal dos exércitos de S.M.B., Grão Duque da Ordem da Torre & C. & C. & C. trad. por José da Silva Lisboa, em 2 v.

Primeiras linhas sobre o processo orphanológico, de José Pereira de Carvalho.

Elementos de Geodésia, compilado por Araújo Guimarães. História da donzela Teodora, trad. do espanhol por Carlos Ferreira

Lisbonense. 1816 Filosofia química, de A. F. Fourcroy, trad. por Henriques de Paiva. Coleção de retratos de todos os homens que adquiriram nome pelo

gênio, talento, virtudes... desde o princípio do mundo, retratos de

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Antonio de Carmo, gravados por João José de Souza. 1817 Corografia brasílica; ou, relação historico-geografica do Reino do

Brasil, de Manuel Aires de Cazal. 1818 Obras, de Virgílio, trad. em versos portugueses por Antonio José de

Lima Leitão (3v., 1818-1819). Foram editados outros títulos que serviam aos interesses do Governo (Economia

política, Geografia, Agrimensura, Medicina, Saúde pública), outros à Academia Militar, como

Desenho e Astronomia, que constavam do curriculum. E mais: livros para servirem ao

comércio da livraria de Paulo Martin e outras livrarias cariocas e até atender a encomendas

dos leitores. Foram editados também as Memórias históricas do Rio de Janeiro, por Mons.

Pizarro e Araújo e o poema Assunção, de Fr. Francisco de S. Carlos.

Alguns desses se destacariam na preferência popular, em virtude de um imediato

interesse, como as Primeiras linhas do processo orfanológico, livro didático de leis que se

tornou um trabalho modelo, até o final do século. Outro destaque é que a primeira edição de

obra literária feita pela Impressão Régia parece ter sido a tradução de O Diabo coxo, verdades

sonhadas e novelas de outra vida traduzidas a esta, de Allain René Lesage (Rio de Janeiro,

Impressão Régia, 1810). Lesage é também autor de outra obra de enorme popularidade no

Brasil Colônia, a História de Gil Braz de Santillana. Ambas as novelas são de efeito

moralizante, na tradição de livros e leitores vindos de influência editorial portuguesa.

Em sua maior parte, os livros saídos da Impressão Régia e mesmo os que foram ter

edição em Portugal, tiveram aqui uma considerável aceitação, como se pode comprovar pelas

listas de obras indicadas nos inventários de bens, documentos manuscritos que representam

peça indiscutível de realismo histórico.

Tão logo Portugal se viu livre do assédio francês, os livros voltaram a ser editados em

Lisboa, pois a impressão lá era bem mais barata e o mercado de consumo muito maior.

Alguns títulos brasileiros foram lá editados: o Dicionário da língua portuguesa, de Antonio

Moraes e Silva (1813); os Sonetos sobre diversos assuntos, de Antonio Joaquim de Abreu

(Lisboa, Reg. Of. Tip., 1815); uma reedição do poema As Artes, de Manuel Inácio da Silva

Alvarenga (1821); as Memórias para servir à história no Reino do Brasil, do padre Luís

Gonçalves dos Santos (Lisboa, 1825). E mesmo obras de José Bonifácio, publicadas em

Lisboa por ele mesmo, entre 1815 e 1816.

Após o advento da Impressão Régia, outros empreendimentos tipográficos vão sendo

estimulados e desenvolvem um sólido processo editorial no Rio de Janeiro e na Bahia,

sobretudo, o que demonstra a certeza de recompensa nas iniciativas. Em 1817, a Impressão

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Régia passa a chamar-se Real Oficina Tipográfica. Em 1821, Régia Tipografia, depois Nova

Oficina Tipográfica e, finalmente, Tipografia Nacional. Em seguida, é privatizada com a

denominação de Tipografia de Moreira e Garcez. Um bom número de livrarias vão se

sucedendo em todo o país, com destaque para as de Paul Martin, Plancher e Silva Serva, este

na Bahia. Já em 1822, Manuel Joaquim da Silva Porto, livreiro e poeta, tradutor da Fedra de

Racine, inicia sua célebre Oficina Silva Porto e Companhia, com sensíveis contribuições no

panorama da edição e do comércio de livros no Brasil. Borba de Moraes lembra que, em

1820, Antonio José Coimbra anunciava, na Bahia, que vendia livros e os encadernava de

todas as qualidades.

Com a Independência e suas conseqüências, aumentam o interesse e o consumo de

leituras políticas. Daí se explica, talvez, a notável massa de livros com títulos de matérias

constitucionais, de feitio ainda burguês e aspirando a reformas, valendo ressaltar a circulação

de obras como as de Benjamin Constant (especialmente La politique constitutionel editada

por Plancher, 1818, em Paris), Jéremy Bentham, De Pradt, entre outros. Os jornais

desempenham também importante papel, divulgando sonetos, extratos folhetinescos, resenhas

e comentários políticos e culturais, trazendo fatos e opiniões de natureza administrativa,

enfim, farto painel dos acontecimentos sociais da época. Os correios da Europa atiçam a

imaginação liberal, fazendo avizinhar-se um surto de novos movimentos emancipacionistas

em face das sucessivas crises do Reino no Império. Koster observaria, em 1810, a inexistência

em Recife de tipografias e livrarias. Mais tarde, no entanto, segundo registra Hallewell, ali

teriam circulado obras de revolucionários de 1817 e a de Fr. Caneca, em 1824. Livrarias e

tipografias concorrem, então, para servir aos interesses de leitura despertados nessa época.

Livrarias que, em 1792, se reduziam a uma única, dispondo apenas de obras de Teologia,

além de um vendedor isolado de obras da Medicina portuguesa, eram agora sete em 1822.

Aliás, grande foi a contribuição, para o evoluir do comércio de livros no Brasil, do

francês Paul Martin e de seu sucessor Paulo Martins Filho. O primeiro parece ter sido

possuidor de uma das duas únicas livrarias registradas em fins do século 18, no Rio de

Janeiro. Morto em 1810, sucedeu-o Paulo Martins Filho, com a atividade estendendo-se até

1823. É para este Paulo Martins Filho, pois, que a Impressão Régia editou várias traduções de

novelas de sucesso no Oitocentos Brasileiro, como O Diabo coxo, de Le Sage, e os romances,

a maior parte traduzida do francês, que representam um mau gosto típico que atravessa todo a

primeira metade do século 19 português, obviamente com extensão para o Brasil. Títulos

como O Amor ofendido e vingado, Triste efeito de uma infidelidade (Impressão Régia, 1815);

As duas desafortunadas; e a História verdadeira da princesa Magalona. Assim se

desenvolveria o comércio de Paul Martin e de seu sucessor e filho. Para divulgar os livros que

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vendia na loja da rua da Quitanda n° 34, o empreendedor livreiro fazia propaganda das obras

que tinha à disposição do público. Os anúncios indicam, em geral, o autor, o título e o preço

de cada exemplar. Com o fim da censura a 28 de agosto de 1821, muitos desses anúncios

foram lidos pelos brasileiros. Alguns títulos são curiosos e vale a pena transcrevê-los:

Acontecimentos no Pará acerca da Constituição. O amante da humanidade; ou meios de extinguir a mendacidade em Portugal. Apontamentos sobre os antigos abuzos do antigo governo de Portugal. Theodoro J. Biancardi: Cartas americanas. Manuel Borges Carneiro: Coleção de oito parábolas —————.: Elogio. —————.: A magia e mais superstições desmascaradas. —————.: Portugal regenerado, 3. ed. Catecismo da Constituição Hespanhola. Concórdia Nacional nascida da Constituição. José Daniel: O balão. —————.: Conversações das senhoras antes do chá. —————.: Portugal convalecido. —————.: Portugal enfermo por vicios e abusos de ambos os sexos. —————.: Prazer do luzitano. —————.: Tizoura da critica. —————.: A verdade exposta a sua Magestade Direitos do povo portuguez. Gomes Freire: Allegação de facto e direito sobre o processo de G.F. —————.: Analyse da sentença de G.F. Meios de se pagar a dívida publica. Memoria sobre as minas consideradas como fontes de riqueza nacional. Reflexões philosophicas sobre a liberdade e a igualdade. Reflexões sobre o pacto social e sobre a Constituição de Portugal. Francisco de S. Luiz: Synonimo da língua portuguesa. Soares Franco: Ensaio sobre o melhoramento de Portugal e do Brazil. United States of America: Constituição dos EE.UU.

Esta parece ser a tendência de publicidade das obras oferecidas ao público brasileiro

oitocentista. A voga constitucional alterna com o interesse de disciplinas teóricas tendo em

vista a situação política. O fim da censura, embora parcial, ocorrido em 1821, facilitou a

tarefa dos livreiros em ampliar o acesso dos cidadãos a matérias antes vistas com esquivanças

pelos potentados. Assim, a publicidade de Paulo Martins Filho podia fazer chegar aos leitores

obras como o Direito das gentes e do foro; ou, Princípios da lei natural, de Vatel e o

Contrato social, de Rousseau. Para a eficácia de seu intento de marketing, o livreiro

complementava a informação do anúncio com o seguinte despacho: estas obras que outrora

foram proibidas presentemente se tornam inteiramente clássicas e necessárias a toda classe

de pessoas, pois estão sendo citadas em todas os escritos verdadeiramente constitucionais.

O comércio do livro no Brasil, nesta primeira metade do século 19, é bastante peculiar.

Haveria alguma coisa de importado, ou entrado no país como peça de contrabando. Mas os

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livreiros do Rio, e os da Bahia, por exemplo, punham especial relevo na política de marketing,

dispensando natural tratamento publicitário às obras importantes recém-chegadas do espírito

moderno da Europa. No caso dos títulos de Letras, por exemplo, destacam-se as traduções de

Bocage, O consórcio das flores, de Lacroix e Os jardins, de Delile. Também se

comercializavam As plantas, poema de Ricardo Castel, e as Fábulas escolhidas, de La

Fontaine, traduzidas pelo padre Francisco Manoel de uma edição londrina. Deste mesmo

tradutor eram anunciados Os mártires, ou o triunfo da religião cristã, de Chateaubriand, a

partir da edição parisiense de 1816, livro, aliás, muito popular no Brasil oitocentista.

O comércio de livros compreendia também obras dramáticas, em vista do enorme

prestígio do teatro no Brasil, com prevalência para autores consagrados, o que implica leitura

e circulação de suas peças entre aficcionados e encenadores, destacando-se os nomes de

Metastásio, Voltaire e Goldoni. Tal popularidade se pode atestar também pela presença de

alguns desses autores entre os livros constantes de nossa pesquisa nos inventários desde o

século 18.

No entanto, o mais afortunado dos editores brasileiros no primeiro quartel do século

19, aquele que combina os ofícios de impressor, livreiro e divulgador do livro, é mesmo

Manuel Antonio da Silva Serva, português de Vila Real de Trás-os-Montes, instalado na

Bahia desde 1797, vendendo móveis e posteriormente livros importados da Europa. Em 1809,

Silva Serva consegue licença para trazer uma impressora de Londres, graças aos esforços do

Conde dos Arcos. Começa a editar em 1811, com o Plano para o estabelecimento de uma

biblioteca pública na cidade de S. Salvador, em 4 p., mais um prospecto para jornal e uma

Oração gratulatória do Príncipe Regente, por Inácio José de Macedo, em 11 páginas. Daí

Silva Serva salta para o jornalismo periódico com A Idade d'Ouro do Brasil e As Variedades

ou Ensaios de Literatura, desenvolvendo, em termos particulares, a mais produtiva trincheira

de popularização da leitura no Brasil Oitocentista.

Basta um rápido lance de olhos no catálogo de publicações de Silva Serva, editado em

1812 (como livreiro, ele preparou um catálogo de obras para venda), para nos certificarmos

do acerto e da importância que reveste essa primeira livraria e essa primeira imprensa

particular na Bahia. Avaliando-se a mostra descritiva desse catálogo, não há como

desconhecer o trabalho desenvolvido pelo livreiro e editor trasmontino. Detemo-nos em

alguns títulos, particularmente os que interessam à área de Letras. Entre as orações

gratulatórias e os panegíricos de ocasião (é bom não esquecer que Serva tinha uma Junta

Censória que funcionaria até 1820), a Tipografia baiana edita também obras importantes que

documentam o espírito de uma época. Atento à natureza de publicações correntes na Europa,

o livreiro baiano divulga obras como Princípios gerais ou verdadeiro método para se

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aprender a ler, e a pronunciar com propriedade a língua francesa, em 24 páginas, tendo

como epígrafe, na capa, uma sentença do pai da Retórica, Quintiliano, extraída de De Instit.

Orator. lib. 12, c. II: Omnia breviora reddet ordo, e ratio, e modus. A obra sai em 1811 e é

atribuída por Inocêncio a Diogo Soares da Silva e Bivar. No mesmo ano, Silva Serva edita a

curiosa e bastante popular Observações sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de

fábricas no Brasil, por José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu. Deste mesmo autor e ainda

em 1811 saem as Observações sobre a prosperidade do Estado pelos liberais princípios da

nova legislação do Brasil, tomando como epígrafe versos da Eneida, de Virgílio: Maior

rerum nascitur ordo. Em 1811, ainda, sai o jornal Idade d'Ouro do Brasil, de reconhecida

importância, junto com As Variedades ou ensaios de literatura, publicada em 1812 (Parte I) e

1814 (Parte II), revista que se antecipa ao jornal O Patriota, publicado pela Impressão Régia

(1813), na divulgação da ciência literária no Brasil.

De 1812 também é a égloga de Antonio Joaquim de Carvalho, A guerra e a paz da

Europa, obra que merecera publicação anterior, por Simão Tadeu Ferreira, em Lisboa, 1802.

Igualmente de 1812 é a obra de A. Smith, A riqueza das nações, traduzida por Bento da Silva

Lisboa. No mesmo ano, sai a primeira edição baiana do Marília de Dirceu, por TAG.,

primeira parte, quarta edição. No mesmo ano, ainda, a edição das Fábulas de Fedro e também

o Palafox em Saragoça, ou batalha de 10 de agosto do anno de 1808, drama em três atos por

A.X.F.A., autor identificado como Antonio Xavier Ferreira de Azevedo.

Em 1813, Silva Serva edita Viola de Lereno: Coleção das suas cantigas oferecidas

aos seus amigos, volume I, de Domingos Caldas Barbosa. Berbert de Castro informa que

eram oito folhetos de 32 páginas. A 1.ed. seria de 1798, pela oficina Nunesiana, de Lisboa,

sendo a segunda, também de 1806, na mesma cidade. Marília de Dirceu voltaria a ser

publicada, segunda parte, dita terceira edição, em 1813, sendo, para Berbert de Castro, a sexta

edição. A terceira parte sairá também em 1813, considerada por Silva Serva a segunda edição.

A Escola nova, cristã e política, na qual se ensinam os primeiros rudimentos, que deve saber

o menino cristão, e se lhe dão regras gerais para com facilidade, e em pouco tempo aprender

a ler, escrever e contar — escrita para uso de seus filhos por D. Leonor Tomásia de Sousa e

Silva e oferecida aos meninos da escola, é título também saído dos prelos de Silva Serva em

1813. Berbert de Castro mostra concordância com Inocêncio de que esta obra

verdadeiramente pertence a Francisco Luis Ameno que, sabemos, foi editor em Lisboa no

século 18. A Escola nova se assemelha ao Catecismo de Montpelier que, entre fins do século

18 e meados do 19, era bastante popular por exercer uma dupla função: o ministério de

doutrina de natureza religiosa e o de ensinar a ler, escrever e contar, segundo os objetivos das

normas regimentais das primeiras letras. Ainda de 1813 é a publicação de Paráfrase dos

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provérbios de Salomão em verso português, obra dedicada ao príncipe da Beira e da autoria

do mineiro José Elói Ottoni, muito concorrida no século.

Em 1814, Silva Serva publica a Arte da gramatica portuguesa, ordenada em método

breve, fácil e claro. Terceira impressão mais correcta e acrescentada. Para Berbert de Castro,

a autoria dessa gramática pertence a Pedro José de Figueiredo, merecendo uma segunda

edição, já em 1817, pela mesma tipografia. O livro Finezas de Jesus sacramentado , dos mais

populares do período colonial., tem seu título completo Finezas de Jesus sacramentado,

para com os homens, e ingratidões dos homens para com Jesus sacramentado, pelo padre Fr.

João José de Sta. Tereza, carmelita, nona edição, publicada em 1815. As Paráfrases de Ottoni

voltam em reedição neste mesmo ano.

Em 1815, ainda, aparecem umas Horas portuguesas, em versos de Carlos do Vale

Carneiro, que, parece, viveu na segunda metade do século 17 e publicou a obra com o título

de Horas portuguesas de Officio da Virgem Nossa Senhora, e Ramalhete manual de diversas

orações (Lisboa, Domingos Carneiro, 1673; Ibidem, 1692). Há registro, no entanto, de Horas

portuguesas com Ofício da Imaculada Conceição, igualmente em verso, atribuída a Francisco

Vilela, Lisboa, 1780.

De 1816 são os Rudimentos Gramaticaes, portugueses e latinos; ou Lição proveitosa

para as escolas e geralmente para todos da nação, por Bernardo José da Costa e Aragão.

Em 1817, é a vez de Silva Serva editar Andrômaca, tragédia de Jean Racine, traduzida

pelo Dr. Antonio José de Lima Leitão, médico da Escola de Paris e Físico-mor da Capitania

de Moçambique. Também de 1817 é a Relação do festim que ao ilmo. exmo. senhor d.

Marcos de Noronha Brito VIII Conde dos Arcos, (etc). Derão os subscritos da Praça do

Comércio (etc.). É uma antologia onde aparecem uma Ode pindárica, de Antonio José Osório

de Pina Leitão; um Elogio, de Domingos Borges de Barros; um Elogio poético, de Paulo José

de Melo Azevedo e Brito, etc. Neste mesmo ano, aparecem a Instituciones metaphysicae in

usum tironium scriptae, de Antonio Genuense. De Eduardo Job, Silva Serva publica

Institutiones philosophiae praticae siva principia ethicae universalis, atque specialis, juris

naturae, ac politicae. Editio prior, devendo ser a mesma edição de que se servia o ensino

público na Bahia e Pernambuco.

Em 1817, surge a Arte da gramatica portuguesa, de Paulo José de Figueiredo. Silva

Serva promove, em 1818, uma Tradução portuguesa do Poema bucólico de José Rodrigues

de Melo, feita, oferecida e consagrada por João Gualberto Ferreira dos Santos Reis, Professor

Régio de Língua Latina da freguesia do Senhor de Bomfim da Mata de S. João, natural desta

cidade da Bahia.

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Em 1818, publica-se uma Oração fúnebre nas exéquias da muito alta, muito poderosa,

e fidelíssima senhora D. Maria I, recitada por Januário da Cunha Barbosa; uma Ode

pindárica oferecida à magestade del rey Nosso Senhor D. João VI no dia faustíssimo da sua

gloriosa aclamação, por Antonio José Osório de Pina Leitão. O ano de 1818 também é o da

publicação da Arte poética de Q. Horacio Flacco, epístola aos pisões, traduzida em verso

português por Antonio José de Lima Leitão, e de Alfonsíada, poema heróico da fundação da

monarquia portuguesa pelo senhor rei D. Alfonso Henriques, oferecido à magestade

fidelíssima del rey nosso senhor D. João VI, por Antonio José Osório de Pina Leitão.

Finalmente, sai pela Tipografia Silva Serva um Catálogo dos livros que se acham na

Biblioteca Pública da cidade da Bahia, 1818. E uma Economia da vida humana Obra

traduzida de um manuscrito indiano, escrita por antigo bramane, a qual se acrescenta uma

narração do modo em que o dito manuscrito se descobriu; e a esta se ajunta uma Carta de

um cavalheiro inglês residente na China no ano de 1751, escrita ao Marquês de *** e, agora

outra vez traduzida juntamente com pequeno tratado mencionado, na língua portuguesa, por

Adolfo Standert e c. e c. e c. composta na língua inglesa pelo célebre conde de Chesterfield e

traduzida na língua portuguesa por ***.

E por último, em nosso interesse aqui, em 1819, ano também da morte de seu criador,

a Tipografia baiana lança uma Coleção de cartas para meninos aprenderem a ler, e escrever

letra de mão, de Cornélio Nepotes, que Renato Berbert de Castro (in: A primeira imprensa da

Bahia e suas publicações. Typografia de Manuel Antonio da Silva Serva, 1811-1819.

Salvador, 1968) acredita ser a obra Vitae excellentium imperatorum, coleção de biografias de

capitães estrangeiros, às quais geralmente se acrescentam as de Catão e Ático, obra das mais

utilizadas nos centros de ensino, sem dúvida pelo seu estilo conciso e claro, e sua latinidade

pura. E mais os Sermões e panegíricos recitados pelo presbítero Romualdo Antonio de

Seixas, cavalheiro profeço na Ordem de Cristo, e Cônego da Sé do Pará; Com dois discursos

sobre a filosofia. Encerram o ano de 1819 livros como Atalá ou os amores de dois selvagens

no deserto, por Francisco Augusto Chateaubriand. Trad. ***.

Quando da transmigração da Família Real para o Brasil em 1808, o príncipe regente

trouxe em suas caravelas a biblioteca do Conde da Barca, que alinhava obras

importantíssimas da bibliografia portuguesa e européia. Essa biblioteca, aliás, forneceu grande

parte do acervo da Biblioteca Real, criada em 27 de junho de 1810 (hoje a Biblioteca

Nacional) possivelmente contando, em termos aproximados, com os 60.000 volumes que a

informação genérica dos historiadores atribui à organização da Real Biblioteca da Ajuda, no

reinado de D. José I, justamente o que sobrou do terremoto de Lisboa. Na extraordinária

livraria do Conde da Barca pontificavam, por exemplo, a Henriada, de Voltaire, traduzida por

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Tomás de Aquino Belo e Freitas, Os jardins, de Delille, os Ensaios morais, de Pope, junto

com os Poemas lusitanos, de António Ferreira (Lisboa, 1598), Dos novíssimos, de D.

Francisco Rolim de Moura (Lisboa, 1623), e a Ulisséia, ou Lisboa edificada, poema heróico

de Gabriel Pereira de Castro (Lisboa, 1634) e uma Arte poética, de Felipe Nunes (Lisboa,

1615), além de Milton, Edmund Spencer, Petrarca, Pietro Bembo, Ariosto, Aretino, Tasso,

Tassone, Poliziano e Klopstock.

O leitor do século 19, portanto, não será rigorosamente a mera reiteração de modelos

exclusivos das produções saídas de um incremento tipográfico ou de uma doutrinação

absolutista. Conforme nossa investigação em inventários de bens, ele assume outras capas

culturais. Um tanto porque este leitor não se nutre apenas das obras suas contemporâneas e

nem exclui outras que o acompanhariam desde a centúria anterior. É certo que existe a

probabilidade, a insinuação e até a suspeita de que muitos livros entraram no Brasil, com ou

sem proibição, como peça de contrabando. O rastilho mais recente dessa quase-certeza está

no monumental trabalho de Laurence Hallowell e, bem antes, no de Borba de Moraes. Teriam

livros contrabandeados o padre Francisco Agostinho Gomes, de fins do século 18, começos

do 19. E também o liberal José Lino Coutinho, cujo inventário indicia um curioso percurso de

leitor atento ao que se passa a sua volta, sobretudo nos campos da Literatura, da Filosofia e da

Educação. O próprio Coutinho atualiza um tanto Rousseau por meio de sua obra Cartas sobre

a educação de Cora (1849), que estudamos em nosso Perfil do leitor colonial.