joao luiz lafeta - o mundo a revelia (ensaio)

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o MUNDO A REVELIA JoÃo Luz LÁFL-rÁ "- "..8, é o mundo à a)elia...'- ísso Íoi o fecho do que zé Bebeto Íotou " (GUIMARÃES RosA, Grdlde Serlão: yeredas) l. Dob cap[tulos perdidos O primeiro capltulo de 3Ao B?rrdldo - três concentradas pá_ ginas - alcança ao Ìeitor boa quantidade deinformação. Logo nas linhas iniciais, decÌarado o propósito do narrador de escre- veÍumlivro"pela divisão dotÍabalho", somos lançados em meio a um toÌvelinho de nomes, ocupações, prefeÍências e aptidões: padre Silvestre, JoâoNogueira, AÌqúmedes, LúcioGomes de Azevedo Gondim, o próprio narrador, todos esses personagens surgem em apenas urÌl parágÍafo, sumariâmente caracterìzados, alravés da lunçào que cadâ um dele\ cumprjÍia nae\ecução co- letiva doprojeto. Eufórico, o narrador declara a seguirque este_ ve "uma semana bastante animado",vendo os "volumes expostos, um milheiro vendido", todas âsdificuldades aplaina_ dâs pela manobra que, facilmente, "mediânte Ìambujem", exe_ cutaria. E logo, sem transição, brusco, sem ênfase, sem lastimação, anuncia o fracasso do plano: "Mas o otimismo le- vou água na fervura,compÍeendi quenão nosentenderíamos." t92 O Íitmo rápido dessas primeiras Iinhas prossegue. O leitor, apanhado por suarapidez, nâo f'rccisa esperar muito tempo pa- ra saber asrazões do fracasso. JoãoNogueira e padre Silvestre não servem: O primeiro, porque qüeria o livroem,,línguadeCa- mões"; o segundo, porque andava emmaré aguda depatriotis- mo revolucionário, de cara torcida parao narrador. Este, em anbos oscasos, denotando altiva superioridade, afasta-os coú comentários secos ediretos. E concentra suas esperanças no úÌti- mo quelhe resta, Azevedo Gondim, agora caracterizado como "periodista de boaindole e que escreve o que lhe mandam,,. O projeto inicial, deconstruir o livÍo pela divisâo do traba- lho, começa a ser executâdo. Enxergamos uma fazenda: Azeve- do Condim pedala pela estradade rodagem que Casimirc Lopes está consertando, do aÌpendre da casa (depois do conhaque tra- zido por Maria dasDores e enquanto sefuma)vêem-se novilhas pastando, a mata, o telhado vermelho da serÍaria. O narÍador seentusiasma de novo, esquece as duasgoradas teniativas ÍLi- ciais com João Nogueira e padre Silvestre. Ajeitando o enredo. asidéias fervilhando, chega a considerar o Condim ..uma eooé. cie de lolha depapel", dcsrinado a receber - Darsiramenrc. io- mo folhade pâpel - o quc lhe pa.sa pela cábeça. Mas denovo, e brusco como antes, sem transiçâo e sem ên- fase (como antes), declara: ,,O resultado foi um desastre,,, Os dois capítulos que o Condim lhetrouxera estão cheios debeste! ra. Pamatacálos sua lingragem gânha umabrutalidade extraor- dinária: "-Váparaoinferno, condim, Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há Iá quem faledessa foÌmal" Condim rcplica, amuado, "ÍecoÌhendo oscacos da sua pe- quenina \aidade". que nào se escrere como seÍala. Seu paulo (sabemos apenas agora que o narrador se chama assim) Dârece conlormar-se. afasta-se, vè um touro condu/ido DoÍMarciano. vêa velha MaÌgarjda, o paredão do açude. Ouve uma cigarra e um pio decoruja, Estremece, pensa emMadalena, Depois volta ao assunto, encerando-o; " * E o diabo, Condim. O mingau virouágua. Três tentâtivas faÌhadas nummês. Beba conhaoue. Gondim." Nesta paÌáfrase talvez um pouco longa t€ com cerreza muÌ- 193

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Page 1: Joao Luiz Lafeta - O Mundo a Revelia (Ensaio)

oMUNDO A REVELIA

JoÃo Luz LÁFL-rÁ

"- "..8,

é o mundo à a)elia...'- íssoÍoi o fecho do que zé Bebeto Íotou "(GUIMARÃES RosA, Grdlde Serlão: yeredas)

l. Dob cap[tulos perdidos

O primeiro capltulo de 3Ao B?rrdldo - três concentradas pá_ginas - alcança ao Ìeitor boa quantidade de informação. Logonas linhas iniciais, decÌarado o propósito do narrador de escre-veÍ um livro "pela divisão dotÍabalho", somos lançados em meioa um toÌvelinho de nomes, ocupações, prefeÍências e aptidões:padre Silvestre, Joâo Nogueira, AÌqúmedes, Lúcio Gomes deAzevedo Gondim, o próprio narrador, todos esses personagenssurgem em apenas urÌl parágÍafo, sumariâmente caracterìzados,alravés da lunçào que cadâ um dele\ cumprjÍia na e\ecução co-letiva doprojeto. Eufórico, o narrador declara a seguirque este_ve "uma semana bastante animado", vendo já os "volumesexpostos, um milheiro vendido", todas âs dificuldades aplaina_dâs pela manobra que, facilmente, "mediânte Ìambujem", exe_cutaria. E logo, sem transição, brusco, sem ênfase, semlastimação, anuncia o fracasso do plano: "Mas o otimismo le-vou água na fervura, compÍeendi que não nos entenderíamos."

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O Íitmo rápido dessas primeiras Iinhas prossegue. O leitor,apanhado por sua rapidez, nâo f'rccisa esperar muito tempo pa-ra saber as razões do fracasso. João Nogueira e padre Silvestrenão servem: O primeiro, porque qüeria o livro em,,línguadeCa-mões"; o segundo, porque andava em maré aguda de patriotis-mo revolucionário, de cara torcida para o narrador. Este, emanbos os casos, denotando altiva superioridade, afasta-os coúcomentários secos ediretos. E concentra suas esperanças no úÌti-mo que lhe resta, Azevedo Gondim, agora caracterizado como"periodista de boa indole e que escreve o que lhe mandam,,.

O projeto inicial, de construir o livÍo pela divisâo do traba-lho, começa a ser executâdo. Enxergamos uma fazenda: Azeve-do Condim pedala pela estradade rodagem que Casimirc Lopesestá consertando, do aÌpendre da casa (depois do conhaque tra-zido por Maria das Dores e enquanto se fuma) vêem-se novilhaspastando, a mata, o telhado vermelho da serÍaria. O narÍadorse entusiasma de novo, esquece as duas goradas teniativas ÍLi-ciais com João Nogueira e padre Silvestre. Ajeitando o enredo.as idéias fervi lhando, chega a considerar o Condim ..uma eooé.cie de lolha de papel", dcsrinado a receber - Darsiramenrc. io-mo folha de pâpel - o quc lhe pa.sa pela cábeça.

Mas de novo, e brusco como antes, sem transiçâo e sem ên-fase (como antes), declara: ,,O resultado foi um desastre,,, Osdois capítulos que o Condim lhe trouxera estão cheios de beste!ra. Pam atacálos sua lingragem gânha uma brutalidade extraor-dinária: "-Váparaoinferno, condim, Você acanalhou o troço.Está pernóstico, está safado, está idiota. Há Iá quem fale dessafoÌmal"

Condim rcplica, amuado, "ÍecoÌhendo os cacos da sua pe-quenina \aidade". que nào se escrere como se Íala. Seu paulo(sabemos apenas agora que o narrador se chama assim) Dârececonlormar-se. afasta-se, vè um touro condu/ido DoÍ Marciano.vê a velha MaÌgarjda, o paredão do açude. Ouve uma cigarra eum pio de coruja, Estremece, pensa em Madalena, Depois voltaao assunto, encerando-o; " * E o diabo, Condim. O mingauvirou água. Três tentâtivas faÌhadas num mês. Beba conhaoue.Gondim."

Nesta paÌáfrase talvez um pouco longa t€ com cerreza muÌ-

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ro làscinada peÌo vivoandamentoesdlisticodeGÍacilianoRamos)goíaria de assinalaruns pontosimportanteseelemenlaresdetéc-nica nârÍatìva. O que Íessalta pÍimeiro, natuíalmente, é a ma,neiÍa diietâ de traÌar o assünto. Há algo para ser dito e se vaiaÌé lá sem rodeios, há um pÍojeloa sercumpridoe setenÌacumpri-Io de imediato. As diliculdades aparecem e, numa penada, sãoexplicadas e postas de lado: JoãoNogueira, padre Silvestre e Aze-vedo Gondim, os parceiros da empreita fÍacassada, sâo alasta-dos com segurança pelo narrador, que demonstra saber o quedese.ia e ter energiasuficientepara executálo. Energia- é o queressuma destas arês prìmeiras páginas. O leitoÍ dança entre no-mes, proli:rôes e caracrerÍsticardos personagensque vào surgindo nâo se sabe de onde. QUeê o Cruzeiro, aCazeu, S. Bernardo?Que paisagem é essa que surge aos pedaços, aqui uma estÌada,ali um paslo, adiante uma serraria? E, por fim, quem éeste nar-rador que nos fala e parece dispor assim das pessoas que o cer-cam? Quc livro é esse, que deseja tanto escrever?

O leito. foi - de chofre - empurrado para dentro de ummundoquedesconhece. Não há, na entrada de Sa_o Bemardo,íeÍnuma pala!ra que sirta para localizálo, nenhum painel descridvoque lhe permita conhecer de antemão o mundo que vâi âgora vi-silar. Foi lançado direÌamente na açào, no meio dos fatos. Ape-nas uma voz naÍrativa, falando em primeiÍa pessoa, o dirige. Edirige o resto também - os ouÌros personagens e o pÍojeto emexecuçâo. Sua força cobre tudo, e aquilo que de mâis forte noslìca das páginas iniciais é a impressão da sua figura. Sem nos dizer nada explicitamentesobre si mesmo, fornece-nos no entantoa sua imagem: um homemempreendedor, dinâmico, dominadoÍ,obsÌinado, que concebe uma empresa, tÍaÌa de executáìa, utilizaos oÌrtros paÍa isso e nào se desanima com os fÍacassos,

Paulo Honório suÌge quase inteiro no primeiro capítulo. MaisÌarde iremos compreendeÍ a graÍatiquicedo advogado João No-gueira, o patriotismodo padreSilvestre, alireradceservildoAze-vedo condim. Mais tarde saberemos quem é o Casimiro Lopesque conserta a eslrada, quem é o Marciano queconduz o touro,quem e a velhaMargaÍida. DepoisconherecemosMadalena, saberemos por que o pio da coÍuja seassocia à sualembrança. Porenquanlo são apenas nomes que não retemos, persoiagens quesurgem confusaúenle diante de nós. Mas desde iá - e embora

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nem lhe saibamos o nome - o "eu" que narra se imprime emnossa memória, Agindo sem parar, emitindo opiniões sobre osoutros, concebendoe buscando realizar um plano, este narradoÍavulta e Ìoma forma. Á imagem de seu esÌilo, é direto e sem ro-deios, concentrado sobre si mesmo e sobre seu trabalho, decidi-do, brusco. E, no segundo capítulo, quando se decide a iniciaro livro valendo-se de seus próprios recursos, nós o vemos de no-vo obstinado, Ìutândo agora com as dificuldades de tarefa quenunca anles acometerâ. Ficamos sabendo enlão que é a sua his,tória que deseja conlar. E ficamos sabendo que tem cinqüentaanos, que é fazeÍdeiro, "versado em estatíslica, pecuária, agÍi-cullura, escrituração mercantil, conhecimenaos inúteis" para es-se novo gênero que pretende enfrenÌar: a narraÌiva. Eimpacienta-se: "Dois capitulos perdidos."

O caso é qüe nâo o foram. Sua figura dominadora e ativaestá cÍiada. Fomos já inlroduzidos em seu mundo - um mundoque, em últimaanálise, se reduz àsua voz áspeÍa, ao seu coman-do, à sua maneüa de enfrentar os obstácúos e vencêìos. Um mun-do que se cu a à sua vontade.

Em termos de lécnica narrâÌiva nào pode.ia haver soluçaomais coesa: ÌotaÌmeÍle imbricados surgem, à nossa frente, personagem e ação. Paulo Honório nasce decada ato, mas cadaatonâsce por sua vez de Paulo Honório, Nós o vemos através dasaçôes; mas, por outro lado, é eìe quem deflagra todas as ações.Estecaráter compacto e dinâmico, esta ligação Intimaentreo ho-mem e o ato (espeÌhada pela linguagem direla, brutal, econômica, pelo ritmo Íápido dos dois capítulos), esta intemção entre oseÍ e o lazer vão compor a construçâo do romance, que parececorrer fluentemente dianle de nós, em direçâo a um objeÌivomarcaoo.

2. A posse de S. Bemordo

E sem mais delongas começa a história de Paulo Honório.Um capítulo (o terceiÍo) recua no lempo, cinqüenta anos atrás.AlÍavés de um modo de narrar conciso, que descaÍta os episó-dios menos impoíantes e conta por alto os mais decisivos, fica-mos sabendo sua idância miserável, o crime que o deixou "três

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anos, nove meses e quinze dias,, na cadeia, os primeiÍos íegó-cios e violências no sertão. Algumas páginas cobiem toda sua-vi-da, da meninice à idade de homem feito. O andamento vìvo dosdojs primeiros capítulos se mantóm aqui, inclusive um Douco maisacelerado. O seu primeiío ato ..digno de relerència.. {ó eslaouea-menÌo de Joào fagundeg, por causa dd Cermanâ) é naírado aDe_n:ìs no es\encìal. sem detalhes eçpecilicos. sem juslificarivas, sèmrcflexões: "Depois botou os quartos de banda e enxedu_se como Joào Fâgundes. um que mudou o nome paía lunar cavalos.O resuIado foi eu aÍrumar uns cocorotes na Cermana e esfaouearJoào Fagundes."

A distinção teórica entre,.sumário narrativo" e,.cena',, osdois modos básìcos da narraçâo, pode ser aqui de alguma uiili_dade, paraentendermos melhor o processo compositivo oue estásendo u\ado. O "sumário narrativo ', explica-noì t{orman f;ed-man, "é a exposição genemlizada de uma série deeventos, abran-gendo um certo pedodo de tempo e uma vâriedade de íocais";a cena, por slra vez, implica a apresentação de detalhes concÍetose específicos, dentro de uma estrutura bem determinada ale tem-po e lugar. A diferença fundamental entÍe os dois modos resiale,poìs, ÌÌaoposìção entre o geral (sümário narrativo) e o particulâÍ(cena), Ou ainda, colocando em outÌostermos: quândoo que in-teressa é o acontecimento em si. temos a cena, eìparecem entàoos detalhesi mas, se o que rfleva náo é o aconleiimento, e simaatitudedo nartador, se o dominante não é o evenro. mas o tomem que é narrado, entáo temos o sÌrmário narrarivo. '

Ora, neste terceiro capítulo otempo é vasro e os eventos sâomuitos. O faro é que Paülo Honório não se detém neles, narra_osporclma-e depressa. Sobre os violentos negócios no sertão dizapenas que brÌgara com gente que fala aos benos e efetuaÍa tran-sações comerciais de armas engatilhadas. A título de exemDlo con-ta o ca5o do ú, Sampajo. Nem ai. entretanto, se oode ïalar decena: apesar dos detalhes que surgem, o que imporia é o tom donarradoÍ, a atitude dominadorae dura que paulo Honório assu_me diante das dificuldâdes, arrostanalo-as e vencendo-as. O cue

Pa_â erE drninrro kr \oÌmen Fnedman.. to:nr of r ieq in | t r r iÒn. , i , phi_Ìip85aicr. (ed.) rÍ? /à.o^ oJ íà" Nule/. Nora yo, t. Ì he Fjtr pE-. t%? Oae,.

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Iicâ, portanto, dos epBódios narrados, é menos a sua lembraúcado que a lembrança do peronagem trarrador. Cuârdamos me-nos o acontecido do que as atitudes de Paulo Honório. De novo,como nos câpítuìos iniciais, a ação reflete-se para iluminaÍ o agen-te. Sem nenhuma anáise psicológica, mas graças à modulaçãodo rom narrativo, ficamos conhecendo o caráter violento e maci-ço do herói. Ao mesmo tempo os latos se desenvolvem, a narra-tiva progride e avança, Já estamos em Viçosa, Alagoas, e o fitode Paulo HonóÍio, apoderar-se das tenas de S. Bemardo, estáprestes a realizar-se.

A apropriação da fazenda é contada com â mesma obietivi-dade que caracleria lodo o romance. É.ssa objetividade, rãfleìodo penonagem, deixa'se surpreender de modo fácil num recursode estilo curioso: a narração obsessiva do temÌto que, cÌonome-tado com precisão pelo narrador, delimita as açôes de forma clame - no caso - pÍoduz um efeito de crueldade.

Paulo Honório inicia sua manobra peruando padilha no jo-Eo, pot meia hora, tempo suficiente para se convencer de que ,,orapaz era um pexote". Em do,J me,r?s emprcstalhe dinheiro, queele queima deple$4, e um dra (véspera de Sào Joâo), convidaãopara a festa na fazenda, esticalhe mais quinhentos mil-Íéis.

Duante a festa dois momentos são asúalados: A ÍoiÍe pauloHonóÌio âconselha Padilha a cultivar S. BeÌnaÌdoi de nadrupa-da, bébado. o rapal já \e mosrra ìnlluenciado. E por fim, já aodia seguinte, decide-se a seguir o conselho, decisão que vai levá-lo a endiridar-se. a hipolecar a fazenda e a perdêla.

Essa marcação temporal é feita Ínuito naturalmente Delo ÍÌat-rador. muito de passagem. Mâs sua imporÌà!ìcia é er,idinre, emvários nÍveis. Primeiro, poÍque confere exatidão e veracidade àhistória narÍada, objetivando-a em um tempo preciso e conheci-do. Depoìs, porque o jogo de Paulo Honório depende, para seuêxito, do enredamento de Padilha em um tipo especial de tempo- o dìa em que as promissórias vencem, o prazo. Assim, todoo capitulo quarto é permeado por estas marcações e estas mano-bms, que vão cuhninar na cena de negociaçôes, depois da qualPauÌo Hon rdo se toÍna dono de S, Bernaroo

A c€na lue é um dos pontos mií,<imor LU romance. comecacom o temDo claramente assinalado: ,,4 úlúima Ìetra se venceunum dÉ oe úvemo. (. .) De maúâ cedinho mandei Casimiro Lo-

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pes $elar o cavalo, (..,) Duas lqguas e meia em quatro horas. (...)"Paulo Honório ençontra Padilha dormindo, cobraJhe a dí-

vida, discutem. Padilha pede mais prazo, "uns dias". E PauloHonório: "Não espero nem uma hora." A negociação que sç se-gue é um jogo de negaceios, avanços e recuos, propcstas e con-trapropostas. "Debatemos a transação até o lusco-fusco.,' Afinal,mais forte nesta disputa com o tempo, Paulo Honório vence:"Arengamos ainda meia hora e findamos o ajuste. / Para evitararrependimento, levei Padilha paraa cidade, vigiei-o durante anoite. No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinoua escritura. (...) Não tive remorsos."

O rolo compressor em que Paulo Honório se transformouencontra neste assinalamento preciso do tempo sua expressão sim-bólica. Na verdade, a rapidez rítmica da sucessão de fatos - aquiexplicitamente ligada ao fator ''propriedade" - reforç a a carac-terização de Paulo Honório como um elemento dinâmico por na-ttrÍeza, cujo impulso arrasta o mundo atrás de si. Padilha, mole,preguiçoso, sem iniciativa, é por ele dominado com facilidade.Também com facilidade aparente cedem os obstáculos que sur-girão depois: em dois capítulos (o quinto e o sexto) a dificuldademaior é literalmente eliminada: o velho Mendonça morre com umabala no peito. A falta de crédito, a safra ruim de mamona e algo-dÉ[o, os preços baixos, as ameaças, todos estes empecilhos vãosendo enfrentados e superados graças à vontade e çnergia do herói.

V. Propp demonstrou que os contos populares se constituemsempre em torno de um núcleo simples: o herói sofre um danoou tem uma carência, e as tentativas de recuperação do dano oude superação da carênçia constituem o corpo da narrativa.zAtentando para a estrutura da parte iniçial de São Bernardo çons-tatamos ali a existência deste esquema amplo. Os dois primeiroscapítulos formam, neste sentido, um núcleo: há a necessidade dese compor o livro, há as dificuldades que surgem e há sua supe-ração pela força do herói. A seguir tudo se organiza em tornode um segundo objetivo (ou "carência", na terminologia dePropp), expresso nestas palavras do narrador: "O meu fito navida foi apossar-me das terras de S. Bernardo, construir esta ca-sa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o des-

2V. Propp, MorÍologia del cuento. Madri, Editorial Fundamentos. 1971.

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caroçador, introduzir nessas brenhas a pomicultura e a avicuhu-ra, adquirir um rebanho bovino regular."

Os capítulos de três a oito compõem sua unidade convergin-do para a realização de tudo isso. primeiro paulo Honório venceos obstáculos iniciais de sua miséria (capítulo três), depois con-quista S. Bernardo (capítulo quatro), a seguir elimina o Mendonçae enfrenta as dificuldadesdos primeirostempos de fazendeiro (câ-pítulos cinco e seis), Finalmente, no capítulo oito, que resumeos problemas anteriorçs e mostra as obras já çoncluídas, recebea visita do governador e se apresenta como vitorioso.

Mas o que impressiona é a maneira direta de contar todosestes fatos, como se seguissem em linha reta e em velocidade enor-me. O narrador diz o contrário: ..Ninguém imaginará que, to-pando os obsÍáçulos mencionados, eu haja procedidoinvariavelmente com segurança e percorrido, sem me deter, ca-minhos certos. Não senhor, não procedi nem percorri.', Apesarda advertência, é essa a impressão que nos fïça. Da leitura destesoito primeiros capítulos (e o fato de o narrador sentir necessida-de de dizer o contrário só vem corroborar a existência do efeito)aparece Ìrm personagemesmagador, gue ruma direito e firme paraseus fins, um Paulo Honório que governa o mundo e imprime-lhe seu ritmo.

A história de sçu Ribeiro, contada no capítulo sete, inter-polada às ações vitoriosas do herói, funçiona visivelmente comocontraponto. Seu Ribeiro é um homem derrotado. Já mandouno seu mundo, já governou seu povo. Mas agora, afastado peloprogresso, pela urbanização e crescimento do lugarejo onde vi-vera, está reduzido à miséria e à fraqueza. paulo Honório co-menta, ao ouvir sua história: ..Tenho a impressão de que o senhordeixou as pernas debaixo de um automóvel, seu Ribeiro. por quenão andou mais depressa? É o diabo."

De fato, é o diabo. Compreendemos então o que paulo Ho-nório representa e comoreendemos a velocidade da narrativa. SeuRibeiro, que se prendçra ao ritmo lento da vida patriarcal, é afas-tado do governo do mundo. O elemento novo, que chega trazen-do estradas, máquinas, eletricidade, apuradas técnicas dè pecuáriae agricultura, impõe-se e domina. Paulo Honório traz a ïorça detempos novos que surgem, vencendo a inércia e quebrando os obs_táculos. Pernas contra automóveis. Daí o torvelinho em que, desde

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o começo, fomoô apanhados. Daí â coesão da narrativa, que uneindissoluvelmente penonagem e açâo. Pois Paulo Honório, ÌÈpresentante da modemidade que entra no sertão brasileiro, é Oemblema complexo e conhaditódo do capitalismo nascente, eÌÍ-preendedor. cÍuel. que nào vacila diante dos Íneios e se apossado que tem pela frente, dinâmico e tÍansformador. "A constru-ção de um buÌguês: eir o conteúdo da primeira parte de SAo Ber-n4ldo'J, obse ou com acerto Carlos Nelson Couúnho.l

Ação tÍansformadora, velocidade enérgicâ, posse total: aí e3-tão três caracteÍísticas e três ideais da burguesia. O herói de Sdo-Rendldo os possui em alto grau e os iúprime a fuìdo na tessitu-ra da narrativa, A objetiúdade do romance nasce da postura donaÍador face ao mundo: ele nada problematiza, de nada duü-da, em ponto algum vacila. Tüdo que importa é possuir e dirigiro mundo. Para tanÍo, ele conhece os meios. E não pensa sobr€eles: aplica-os.

3. Madalena

Depois da posse de S. Bernardo vem a posse de Madalena,ÌItrapassada a unidade que se fonnara em toÍno da relação en-tre Paülo Honório e a propriedade, um outÍo núcÌeo começâ âse esboçar. O capífúo nono enfercce alguns motivos novos -e o leitor percebe que o Íomaúce vai gaúar rumo diferente. Oestilo se distende um pouco, a tensão âüefece. A prefeÍência donarador volta-se agoÍa para a teüica da cenaj e suÍgem os deta-lhes conoetos, as câÌacteriza@s mais alongadas dos peÌsona-geDs, os dirálogos miúdos sobre assuntos do dia-a-dia. O tomcompacto se esgarça de leve e a naüativa salta de um t€ma paÌaouÌro.

O motivo que deflagra a intriga desta teÌcei@ paÌte é a cons-trução da escoÌa na fazenda. Pâulo HonóÍio decide realizála co-mo um bom negócio - um negócio que agÌadará ao governadore lhe Íenderá, portanto, certas vantagens. Manala chamar Padi-lha a fim de conhatálo como pÍofessor e el€ vem à fazetrda acom-

icüls Nelson Coüriího, "Cmctli^ao Pt|.m", in Litelatum e HunanntìÌo. RiLode JaneÍo, Pu e Tdra, l9ó7 Gú9. 153).

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panhado por Joâo Nogueira e Azevedo Gondim. EncontÍa-os,de volta do campo, palestrando no alpendre, ,.elogiando umaspernas e uns peitos". Elevam o tomdaconversa. paulo Honórioafasta-se e úata de negócios com o advogado. Retornam ao al-pendre, onde Padilha e Condim reencetaram os elogios às per-nas, "De quem são as pernas?,,, pergunta paulo Honório. Ficasabendo que são de Madalena, uma professora, bonita, loua,que está entre os vinte e os trinta anos.

Depois a conversa toma outros rumos: falam da escoÌa; dâvelha Margarida que fora localizada; da escola de novo; de Madalena, da escola e do Padilha; de política e do padre Silvestre;do Pereira e de negócios. Apesar de Paulo Honórìo estar semDréna iniciaÌiva, coÍnandando os processos. decidindo vingar-seìoPereira, contÍatando o Padilha, o tom destas páginas é mais le-ve, maìs descontraido. Os vários motivos que as compõem pare-cem ligal-se apenas casualmente, como assuntos que brotam comDarìrralidade do lúlo cotidiano dos homens e dàs coisas. Numíeriado Paulo Honório zanza à toa pela fazend4 ouve pedaçosale conve$as, escreve uma carta, visita a velha Margarida.

Mas a casualidade é apenas aparente. De dentro do zigueza-gue de motivos vai surgindo, aos poucos, o dominante. ,,Ama-rúeci um dia pensando em casat.',

Paulo HonóÍio, sem se pÍeocuprr com aÍnores, querendoapenzìs prepamr um herdeirc para as teÍras de s. BeÍnaÌdo, fan_tasia eútão sua futura mulher: morena, alta, sadia. com tíntaanos. Mas se detém aí, pois a imaginação não ajuda e a pregaçãosubversiva do Padilha vem interrompêlo. Depois de resolver es-te probÌema volta ao motivo do casamento, e passa agora em re-vista as mulhercs que conhece, fixando-se em d. Marcela, filhâdo dr. Magalhães, juiz de direito. Nova interrupção: a carta deCosta Brito, com chantagens e ameaças. O parágÌalo final do ca-pítulo onze mostra (melhor que qualquer análise) a técnica de mis-tuÉ dos motivos: r'Recalquei as idéias violentas e esforcei-me ÍrorLÌazer de novo ao espíÍiro as lintas e os ss de d, Marceh. Ìie-ram. Mas afastavam-se de quando em quando - e nos interva-los aparcciam Marciano, a Rosa com os meninos. Luís pâdiÌhae Costa Brilo."

Êstá quase tudo paÌalisado neste ponto quando paulo Ho-úono, misturando casamento e negócios, decide úsitar o dr, Ma-

mr

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salhães e examjnar os Dredlcados de d. Marcela. E emào que surgsúadaleÍÌa € a históriã avança, ganhlrndo novo impulso. Mâs otom não muda sem transições: a presença de Maalalena insinua_se DoÌ entre os letalhos da conve$a banal e interesseÌra na casadoìuiz, e sua figura vai aos poucos tomando conta do espíritode Paulo Honódo. Esse processo aparentemente únples é na ver-dade malistraÌ, pois úodifica toda a sintaxe narrativa desta paÌ_te do romance, estabelecendo uma hierarquia diferente entÌe osfâtos. Vejamos como se dá isso, através de uma rápida adlisedo caDítulo doze.

l.io Drincípio Paulo Honótio vai â casa do juiz para lentaÌresolver :'o caso do Pereira", que estava dependendo apenâs de

"uma penacla nos autos". E vai também, natuÌâlmeúte, por câusade d. Marcela.

Lá encontra MadaÌena e sua tia. A primeira notação é preci_sa e seclL como de hábito: "(...) uma seúhora de preto, alta, ve-lha, magn, outra seúoú moça, louÌa e bonita." O s€lutrdoolhar, mais detido, já é avaliador: "D. Marcela sorri4 agora pa-ra a senhoÌâ nova e loura, que soÍia também mostrando os den_tiÍhos bran@s. Crmparei as duas, e a importâlcia da úiÍha visitaÌere uma rcduçâo de cinqüenLa por cenlo."

A comparaçào enlre d. Marcela e Madalena Ìiqüda' paraPaulo Honório, o valor da primeira, Por isso afasta-a do espfti_to e trata de aÌrancar do juiz o despacho de que precisa. Mas,se d. Marcela foi afastada, é a vez de MaalaÌena penetral nas suâspreocupaçôes; o terceiro oìhaÌ (a terceira notação) mostÌa úoàpeúas a obseÍvação fÍia do primeiro ou a aprovaçeo tácita dos€gundo, mas um ceío grau de eúvolvimento e de fasciíação:"A loüa tinha a câbecinha inclinada e as mãoziÍhas ceradas,lindas mãos. linda cabe{a." O diminutivo (mãoziúhas, cabêci-nha) nào descreve apenas. imprime à descÌiçào um ceío gÍau deafetividade que a Ìepetição do adjetivo oidas, linda) vem rcfor-cÍr.

Neste ponto o dr. Magalhães fala Paulo Hoúrio Ìesponde'empenhado de novo na questiio do Percira. AÍinal, esta era a quegtão importante da íoite, por este ÍÌotivo estara ali. Mas, nào Ma_dalma irrompe de novo, desta vez defidtivamentq "Observei quea mociúâ louÌa voltavâ para nós, atenta, os grandes olhos azuis/ De.epetrte conheci que estava quer€ndo bem à pequem. Preci-

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samente o contrário da muìher que andava imaginando - masagmúlava-me, com os dìabos. Miudinha, fÍaquiDha. D Marcela erabichâo. Uma peitaria, um pé-de rabo, um toitiço:,

A diferença de Ìjnguag€m quando se retìre a Madalena equando se refere a d. Marcçla é sìgrÌificativa_ O mais importan-te, entretanÌo, ó que Madalenapassa a ocupar, a partir deste ins-tante, o lugâÍ cenÌral dos acontecimentos. '.Como o silênçio seprolongâsse, replìquej ao NÕg\teiía, quase me dìigì do à louri-,?ra (... ). " E depois: "Percorri a cidâde, bestando, impressiona-do com os olhos da mocinha louÍa e esperando um acaso que mefizesse saber o nome dela."

Falei atrás em modificaçào da sintsxe n$rativa. Expüco-me.Do capitulo nove até o ponio que estÉunos examjnando os motivos se encadeiâm, justapostos, como num per{odo composto sóde oraçôes independentes, coordenades erìtre si. A panir do ca-pituÌo doze, com o surgimento deste outÍo motivo - MadaÌena- tudo se subordina a ele, Todos os motivos temáticos - mâ-ÌÌobras, negócios, brigas - convergem e enconÍram sua unidadeno novo fito de Paulo Honório, a posse da mulheÍ. Neste senti-do, é importsnte assirÌaìqr que o capítulo trgze, ra[ando a via-gem à capital, as chicotadas em Costa Brito, a conversa com d,Glória, é todâvia uma simples preparaçâo para o encoúo comMadaÌena, o que, aliás, éenunciado nàsua primeiÍa frâs€: ,.Tor-nei a eÍÌcontrar a mocinha Ìoura." Por isso, também úo proce-de a dúvida te.nica do üaÌrador, enunciada ao firÌal: ,,E não teúoo intuito de escÍever em conformidade com as rcgras. Tanto quevou cometer um eÍro. PÊsumo que é um erro. Vou dividir umcapítuìo em dois. ReaÌmente, o que se segue podia encaixâr-seno que procurei expor antes desta digressão. Mas não tem dúvi,da, fâço um capirulo especial por causa de Madalena.',

Na verdade, está de acordo com as regtas: Madalena mere-ce destaque especial, pois se trarNformou no objetivo dç PauloHonório. Assiú como procedeu para apropriar-se de S. Bemar,do, camiúhando em Ìinha reta, alsim ele proçederá agora. Atéa marcação rigorosa do tempo, o jogo da velocidade e os recuostemporários voÌtaú a encolttrar sua expresseo prcaisa. um dìa,insinua a d. Glóda a idéia de casamento; desaparece duraite drat.temffia.r, ocupado coE a colheita do algodão; ÍeapaÌece de novoe laz diretamente o pedido a Madalena, que pede tempo para Ìe,

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fletir. Mas, à scm.lhança do que fizera com Padilha, clc é comosempÍe muito Íúpido: "Uma s€mana dcpois, à taÍdinha, cu, qucâli estÂva abolctado desde meiGdia, tomava csfé c convarsava,bastantc satisfaito." EntÍa Azevedo condim c. indiscrato, revêla que todos conheccm o pÍoreto de casamcnto dc Paulo Ho!ôrio. EÍe não pcÍdc tcmpo, insise com Madalcna e aclba obtcodossr conlantima o. PaÌa DcÍçabcrmos o q|E a'(iíc dc dccitivo l!!.tr naripulaÉo do tetr|Do báslâ citlr:

"- (...1 vst 06 mtÍ.âÍ o db.- Não M Dítss& TalÌ,lz dsqul r un rm,.. Eü prtcilo

ÍrlFenú-Ínc.- Um sío? llc!ódo com Drrzo da rno nlo pÍrat!. Qlr

é qua falra? Um vasddo brstrco fsz{c aro vitrlc G quüÍo hois.Ouündo D€lsos m coÍÍÉdoÍ boixd a voq:- PodcÍtroc avisaÍ sua tia, nIo?Madalena soÌÌiu, iÍÍ.solulâ.- Ellá bco.

(.. .)- D. Cl6rìa, cmunico'lhc qu. cu c sua sobriíha dmtm

da uÍ|a scÍ|.na€srrloc cmbiÍad6. Para usar litrtuagêm naiscorÍí& vaúc câssr. (,..)"

É dc noro 8 8ção dccidida, o SFdo opoíulro, s tapid.z co conh€cimcnto do iíírnte propÍcio quc torD.ú Paulo HonóÍioútorioso. Aqú ele pârEce triuúfar nov&rcotc, c patrce apoçsat-sc de Madaleoa. As dificuldades cedern sob sua foÍça e o dluldose curva à sua vootade.

4. IYnamo qtptúa

Até estc ponto pracuÌei moctÍar como r Gtruauta do roúralcÊse foÍDa pela suboÍdinado de s€|rs elemçntos a dois deles: r ação,ou o cnírdo "oenado", pdrs uúlizalmos I cláslic! distinção dcFoser,' e o Denonagem. De tsl Eodo isto é feilo quc dificil-

'8. M. Fo6rcÍ, á.prir ota†rtotd. Ì{ov. YoÍl, turco|ln, htc. rld Wüt4lDc. (!

't.).

2U

mcate podeÍamos dbtinguiÌ mtÍc pôulo Honório e scus atost as-8im como dificiLnent€ localizaÍêÍhos nâ ÍlarÌativa demmtos quenÀo $tajam ligados a ambos de foÌma coesô c indissolúvel. Niçtc sentido, já vimos taÍnbém como a marcação muito nitida dotcmpo impriÍne ao livÍo caÌacterhticâs de preaisáo edinamismo,quc rellelem â volt&dc e a força enérgicas do herói. Tambéín oastilo, dir€lo€ brutal, feilo de movihenros bruscos (como vimosno cxame dos dois primeiros câpluÌos), g€rve ao Ìipo de enredoque sa.des€Dvolve e à caÌaclerizaçâo dos prrsonagens: ..(...) eÌ-tÌaro oos aconlecjmenlos aÌgumas paÌccÌas; o resto é bagaço..,8llrma e certa altura Paulo Honório-

- - Em outro nlvel já obs€rvamos tamMm como esta objíiü_

drd. implacável lem sampra mdercço ceno - a apÍopriação dearSuna coisa, s€ja da fazandâ S. BemaÌdo, s€ja da Dulher (Dmqucm pÍetendc c:tsar. Dc fato, o scn(imenÍo de propriedade cons.titui uln dos elementos lefiáticos que unificam o livro. paulo HGtróno, afiÍma AÍrônio Cándido, ,.é modalidade de uma foÍçâ queo Iranscende e em fuíçãoda qual vivc: o s€nlimentodc proprìe.lúe . (.,,1-5,ão BeìnoÌdo é cenrralizado pela inupção aunà pèrsonaloaoe loícr eesla,6 s€u tumo, p€la liÍania d€ um senlimentodominânrc. Comorrm herói de Balzac. paulo Honório coÍpori.llc! uDa.paixào, dc que ludo mais, até o ciúme, nâo passa devâÌiantê".t

Se âÌhharmos todas a! caÌacterislicãs examinadas _ açâo,ctaÌtia, objelividade, dinamismo, câpacidade lransformadora c$ntimantode prcpriedadc - toma-s€ imviúvel o suÍginento deüma ana.logja cnlre o hcróic a burguesia mmo classe]Já vimos,rlmDÊm- d! passagem, que psulo Honório parece ser o emblema@ntraúlótio do c€pilalismo nascente em Dosso pais. O conlras-tc qu€ elc mesmo estabelecc entre o ritmo veloz àe sua apÍopÌia-ção.e o passo lento do patriarcalismo dc s€u Ribeiro é demasiadocvroente piúa que o deüemos passar despeÍcebido.

. S€m entrarmos aqui nas complexidades implicadas pelo es-luoo da implanlâçàodo capilalismo no Brasil (eüstência de rela-çõet pÍé-capitaliÍas, relações dccompadÍio, persistència ou nàooe restos clo Ínodo de produçào fcudal) o quc podemos afirmaÌ.

rAÌlôíio CiÌdido, fiqro . Cortt$rr. Rio, José Otynp|o. t9j6 (pdgs. :J . 3O).

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sem sombra de dúúda, é quê Paulo Honório simboliza, no inte_rior do romance, a forçâ modemizadora qua atualiza de folmadevastante o udverso de S, BemaÌdo. A roça de seu Fjbeiro foicâlma e s€m problemas, no tempo do Imperador; Luís Pâdilhatem uma vidâ estalnada e preguiçosa; Paulo HonóÌio é, âli, odinârno que gera eneÍgjae arrebala tudo, pÍovocando umâ co!o'pleta e incrssa[te modificação nas relâções globais daquele duu_do. Açâo, transformação, se[timeDto de propriedade - âaÍalosia é foÍe.

úas o díúamo não pode odsliÌ indefiddamente. Mais do queulna esperança, süa destruição é üma poasibilidade concÌeta e pÍôxima. S€u mecanismo sujeita-sê ao desgaste e ao esgotalDentolsuas possibilidades de gerar tÌaosformação têm um liúitc. As pe

ça5 que o compõem não são tolalmeÍte haÌmônicas, no s€u cor-po achâm-se iúslaladas contradiçô€s que podem a quâlquerinstante eDperrálo e tirarlhe o governo do mundo.

Uma das mÂis séÍias coos€qüências da produçâo para o Í|ea'câdo (caÌaoeÌisticâ do capiialismo) é o afas@mento e a abstra_ção de toda qualidade sensível das coisas, que é substitüída naÍnente hutr|âIla pela noção de qüantidade. O valor{e uso que todarDercadoria possui é dbtanciâdo e tomado iÍDplÍcito pels produ_ção de valores{e-troca. Esle Íenômeno, classicameDte dasiSna_do p€lo doúe de "líichisrno da DeÍcâdoÍú", dá origeÍú a umareificação global das relações eítÍe os homôús. Mediada semprepelo mercado, a coNciência huúana tende progr$sivamente afechaÌ-se à coÍDpreeDsâo dos €lementos qualiEtivos e sensÍveisda reâlidade, Todo valor se tÌansformô - ilusoriameúte - emvalorde-tÍoca. E toda Íelação huDana se traúsfolma - destruidoramente - quma relação gltÌe coisas, entre possuido e pos_súdoÌ.ó

Tâl é a Íelação estabelecida entÌe Paulo Honório e o mun-do, S€u deseúvolvido s€ntimento de propriedade leva_o a consi_derar todos que o cercam como coisas que se manipula à vontadee se possú. Luis Padilha (vimos atrás) tÍansforma_sê em suas meos

úPtua o @neito de reilimçâo vú Lucien Goldnm. "A Rcificâçâo", It tirv/rl4cirili.ação gÌosileho,

^9 16. Rio, Civ, Bras. nov./dez. 1967 Para o caÌudo do

orcblena em 3ão Renatdo \er L. CoÍa Lina. "A Reificação de Prulo HotróÍ1o", in Por quê lüeratura, Pcüópolis, Ed, vozes, 196ó.

2M

num objeto. Marciano e Rosa, seu Ribeiro, d. Clória, CasimiroLopes - todos são coisas que servem a seus desígnios. MesheCaetano, entrevado no leito, dei\a de merccer sua consideração:"Necessitava, é claÌo, mas se eu losse sustentar os necessitados.aÌra8ava-me. " Os despossuldos. os cabras que lrabalham no ei-to de sua fazenda, são considerados aÍ,enas do ponto de vista daquânddade de trabalho que podem oferecer. Repare o leitor co_mo, nesta notação dura, a objetividade do estilo desvela o muD-do reìficado: "(...) Essa gente quase trunca úorre diÍeito. í...)/ Na pedreiÍa perdi um. A alavancâ soltou-se da pedÍa. bateu-he no peito e foi a conta. Deixou viúra e óriáos miúdos.Sumiram-sq um dos medinos caiu no fogo, as Ìombrigas come-mm o segundo, o último teve angitra c a mulher enforcou-s€. /PâIa diminuir a úoÍalidade e aumeDtaÌ a produçâo, proibi aaSuaÌdente. "

A reificação é um fenômeno primeiramente econômico: ostrens deixam de ser erc€rados como valorcs-de-uso e Dassam as€Í vislos como valoÍes-de-lrocâ e portanlo como nercadorias.Mas sabemos que a consciência humana se forma Ílo co zÈ(, @úa realidade, na arividade traDsformadora do mundo, que é pÍGdução de bels. Assim, as característicâs do modo de goduçãoitúiltram-se na consciêocia que o homem tem do muDdo, condi-cionatrdo seu modo de ver e compondo-lhe, Íroíanto, a persoÍa-lidade. A reificação abrarge etrtâo loda a existência, deixa de ser8p€nas ulÌra compoúente das forças econômicâs e Írenetm na v!da pívada dos indivíduos. ..Creio que rem sempre fú egoístae brutal", afrÍma Paulo Honório. ..A pÌofissão é que úe deu qu.4,lidades tão ruins. / E a desconliança terrível que úe apoDÌa ini-úigo6 eíl toda a parte. / A desconfúnça é também cons€qüênciada Fofisgão. ,/ Foi estc úodo de vida que me inutilizou. Sou umaleiiado, Devo ler üÌn coração úiúdo, lacunas oo céÍebro, ner-vos diferentes dos outros hoEetrs. E u.( trariz enorme, utna bocaenoIme, dedos enormes.',

O homem reificado é este aleijeo que cle nos descreve e ve-mos por toda paÍe: o coÌação miúdo e uma boca enorme. dedosenormes. O sentimento de propÍiedade, que unifica todo o ro-malc€ do qual o ciríflÌe é apenas uma modâlidade, distorce o ho-mem desta oaneira radical. A vida ageste, que o fez agÌeste, éa cuÌpada poÌ Paúo Honório úo ser capaz dç çÍÌxergar Madale-

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na. A vida agreste são as lutas pela propriedade, pelo rebanho,pelas plantações de algodão e mamona, pelo poder e pelo capi-tâI. O homem agreste é aquele ser no qual se transformou PauloHonório: egoista e brutal, não consegue compreender â mulher,pois é incapaz de senti-la em sua integridade huúana e em sualiberdade, e a considera apenâs como mais umâ coisa a serpossuída.

Como MadaÌena se recusa a alienar-s€, entmndo no jogo dateifÌcação, os choques sâo inevitáveis. A âçâo da narrativa se con-çêntraÌá, agora, em torno desse novo obstáculo que Paulo Ho-nódo teÍá de enfÍentaÍ. Um novo núcleo se abre. e 06 novosmotivos que surgem s€ oÍganizam em toÍno deste motivo ctntral:a tentativa de Paulo Honório de reduzir Madalena a objeto pos-suido. Na medida €m que a mulher escapâ a s€u controle, üì me-dida em que ela é capaz de apiedar-se dos tÌabalhadores újsêÌáveisque vivem na fazenda, na medida em que Madalena se afasta deseu universo de proprietário e escapa, poÍtanto, à lua compreen-são, Paulo Honório sente ciúmes.

Já o primeiro choque, "oilo dias depois do casamento", sedá em torno de questões financeiras. Madalena acha pequeno oordenado de seu Ribeiro, Paulo Honório se abespinhae retira-seda mesa. A s€gunda desinteligência, o espancamento de Marcia-no, tem também o dinheiro como origem: úo os s€is mntos deréis gastos em material de ensino, por insistênciâ de Madalena,que irritam Paulo Honório, levam-no a exagerâr o descuido doêmpregado e a maltÍatá,Io. O terceiro incidente está ligado aindaao moúvo do dinheiro: D. Clória, com sua tagârelice, atÌasa oserviço de seu Ribeiroepor hso é humilhada por Paulo Honório.

Cada uma dessas brulalidades horroriza Madalena, que nãopode âceitálas. Por seu turno, Paulo Honório espanta-s€ de queela nâo compreendâ seu comportamento. Afinal, coÌÌstruit umapÌopÍiedade como S. BeÍnÍìrdo implica certos atos necessários.Por eÀemplo, espancar Marciaflo, que "não é pÍopriamente umhomem", E, s€ d. Clória não troca Madalena poÌ S. Bernardo,isto são puras vaidades: "ProfessoÍinhas de primeiras ÌetÍas a es-cola normal fabricava às dúzias. Uma propriedade como S. Ber-naÌdo cÍa diferente."

Madalena s€ recusa à reificação e Paulo Honório s€ espan-ta. Já não compreende a mulher, sente que eÌa nâo joga de acoÍ-

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oo com as Ìegras de seu jogo. Sua irritação vai num crescendoconíanre: ..AIém de rudo vesrido de sedÀ para a Rosa, 5apâros€ lençoE paÌa ÌvíaÍgarid a. Sem me consuhar. Já viram de,cara_menlo assÌm? Um abuso. um Ìoubo, positivamenre um Íoubo,..,.r açao oo íomance se transforma neste in,ranre num /igue_zaguenervoso, compondo uma estrutura de idâs e vindas até ciitoponto semelhante à quctxaminamos arrás, nos câp utos ante_Ílor€s ao_conheclmento de Madalena. Novamenre âqui os mori_vo_s,tematrcos se misÌuram, aparenlemenÌe ju\taposto\ ma5, natearoade. convergindo para o moliro cenrral: o ciúme, ou o sen-t|menlo de posse com Íelação à mulheÌ.. Vuanlo a este ponto o capítulo vinte e l rês é exemplar: . .Era

do:1in8o de rarde, e eu tokava do descaroçaoor e dâ serrarla,onoetrnhaesradoaarcnSarcomomaquinista. urD lolcnleem_rEnaoo È!m otnâmo quc emperrâva. O homem prometerâ endi-reltaÍ-tudo.cm dois dias. Contrarempo, tr.Íonies ae madelia,algodão enchendo os paióis. ' . Ëncoler i iado por causa de,re pro-Dlema pallo Honório Iai I isitar Margarida e irr;ra_e muisj sà-Denoo dâs roupas que MadaÌena dá á velha. Encontru Vrr.ünìtanSendo o Sado eexamina o últlmo bezcl ro nascido. Não eía_yc, I rds ruü l rDraçao taz com que ache que esLala magro, Al am"lsluÍã.de m_orivos é clara: ..A culpada eia Madalcna. iue rintraolererido à Rosâ um veíido de seda.,,

r^-Ì o capúuto proslegue desra maneira, com paulo Honóriou4!su rorras sempre em torno do mesmo problena, remoendosemlre-o resrentimento por Madalena. Sua;nterior Iinhd rela deaçao €sta aqui enov.lada. Criricando d. Clória. que vivia de eÀ_pçur( rcs, sempre culdando dc p€quenos úabalhos, di) 'e la pou_co anles,não concordar com ral esbanjamento deenergia, ..A gen.re-d_eve habiruar-se a Íazer uma coi5a só!,, No.nrã'nro, ffi eelc_-Q-m vagueia e dá voltas. Volante emp€nado e dinamo em_r,çrrcuo -.os oors slgnos 5alram aos olhos do lei lor, O dinamir.Íno de P"ulo Honório encontra_se conjlrangjcto. tmpedido de seoesen^volver plenamentc. pois MadÂlena nã-o se submete.

, , .A sotuçao oo con rto. desfecho da narral iva, é a morre deMadatena..virór iâ da rei t icaçào que deÍroi o numano, c,erroraOePiulo Honório. A lécnica urilizada para c,.rnrar esra pâfle danÉrofla ê em tudo semtÌhanre à anterior. Em píimeiro lugar, osmoatvos se reúnem solidamenÌe, em torno do motivo cen,ral do

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ciúme e a ele subordtlados. TÌanscrcvo aÌguns lrechos do capi-tulo viúte e quatro, pÍocurando assinalar o procedimentoi

''De Íepentc invadiu-me uma espíie de desconfiança. Já ha!iâ experimenÌado um senlim€nto assim desagrêdável. Quando?

QuâDdo? Num Inomênlo esclâÍeceu-s€ tudo (...).Sim senhorl Cooluiada com o PadiÌha e rmúrdo alaÍaÌ

os empregado! !érios do bom caminho. Sim senhor, comunislâlEu consrruindo e elê desmanchando.( . . . )

- E a lorupçào. â dissolução da famitia, reimava padr€Silvestre.

Qual seÍia a opinião de Madalena'Ì- AI padre Sihest re t€m razão, concordou condim. A.e

ligiào é um fÌeio.( . . . )

Quâl s€ria a religião d€ Mâdalena? Talvez nenhuma. Nun-ca me havia lratado disso.

- MonÍruosida.lc.()

MareÍiâlisrâ. Lembrei-me dê rer ouvido Cosra BÍho falar emmâterialismo hìstórico. Que significâva nâterialismo histórico?(. . . )

Comunhta, nateÍialisÌa. Bonito casamenro! Amizadc como Padilha, aquele imb€cil! 'Palenras amenas e vaÍiadas.' Quehav€ria nas palesÌÍas? Reformas sociais, ou coisa pior. S€i lí:Mulher s€m r€liSiao é capaz de tudo.( . . . )

Conlio eú Dú. Ma5 exâ$rei os olhos tloni.os do Noauei'ra, a Íoupa bem-feiÌa, a roz insinuante. (...) - e comecei a s€n-tir ciúmes."

A cilaçâo longa dispensa maiores comentários: comunismo.corrupçào, dissoluçAo da faÍnília, ausência de religiao, tnonstruo-sidade, materialismo - lodos são temas que estamos acostuma'dos a ver (aqui e agora e sempre) ügados aro tema domlnaÍte dapropriedade. E nesla piágna p€rfeita vâo desaguar nas palavrasfinaisi "e comecei a serlir ciúmes".

2t0

,, Os capitulos seguinles sâo lerriveis. Agora em linha Íeta oornamo eÍìlouquecido degrada-se e degrada Madalena are a di".rrulçao de ambo\. A cenâ decisiva que antccede a mofle de Ma-oarena- acenâ na igreja. eslá curio5amente peÍm€ada pela mesma::::Ì,,Ìilifiçã"

d"..rempo que assinalumos na cena em querautoÌronono toma a lãz€nda de padilha e naquelâ em que çón_vence Madalena a casar-s€ com ele. Também começa com o cla-1:.ï:ild"ullgtÌto. l:tporal l"decidido a acabar /epr€$c comaqueh Intel tc 'dade"), tambem jOga (om o tempo (. ,NO!e horasno rctoSto da sacn5Ì ia. ' l . .Nem sei quanto rempo e5Ì i !e al i , empe ,. mas desla vel cedendo {..4 medida. porem, que a5 horasse passavam, senda,me caÍdo num estado de perpÌexidade e co_vaÌcl ia.") . lutando durante rrès horas t , .O rclôgro da |arr i ! l ia lo_:(]l Tla-l:lc. .)j i acab.ando por fim der rorado. perdrda a noçãoqorempo{ U retógo tinha @mdo. mâs julgo quedormr horas,.r.rdfado, ( om a mesma notaçào constata, injlanrer üepois, a moíede Madalenai ..Aprojümei_me.

tomei lhe as màos. duras e trias,toquei-lhe o coração, parado. parado.,,O desfecho, s€ elimina fisicamenie MadaleÍa, destrói por

complelo a vida de Paulo Honório. Agjr. mandar. cuttivar S. Ber.naroo. nada drsso tera mais senLido para elc. O mundooesgovernou-!€, so lhe resta lentaÌ e bubcar, sumponoo a narra_::::^oerÌuâ -Ìl11.

o sisliricado de rudo que the escapa. A compo-sìçâo"oo romance (chegamos ao ptescnÌe da escrirura) tai_semootÌlcar agora sensivclmente.

^_..,{ï, 111.. d. qur:ar a esla par.e Íinat, sosÉÍia dc figuraraqur, no esquema abai,(o, o qua me parece constituil a estrÌr-Íura oa narrat j ta. la l como a vimo! alé estc ponto: part indocla Íelaçào indissolúveÌ entre açâo e perconag€m enaonlratlosargumas.caraíerisricasldinaÍrusmo. objerividade. elc.) que, su_Do-rqmadas.ao tema unificador {s€ntimento de propriedadel, cons_troem o univelso reificado do româncee levam a deíruiçáo final,u elquema p€rmite fácil ìisualizaçào e rerume o analisado atéagoÍa:

2ll

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ação - p€rsonagem

dinamismoobjctividadccn.r8ra

desrruiçâod. propric-

- rêiticâção + de si c do

dadc outÍo

foÍça

3, No aíivo e bus(v

Após a morte de Madalcna, Paulo HonóÍio tcnta Íelomaio ritmo antcdor de sua vida, lançando'se ao trabalho, mas logoesfria o enlusiasmo . a lembrança da mulher morta impõe_se aoseu espiÌilo. Entediado, vagueia pela casa de forma inconseqüente'sêm sabeÍ direito o quc fâzer, perdido cÍn "intermiúveis pars€ios'de um lado paÍÊ outÍo". Um a um os Ínoradorçs mais chegâdosveo abândonando-o: d. Glória, depois seu Ribeiro, e enfim o Pa-dilha - o Luís Padilha que cra a imagcm completa da submissão e da subs€Ìviência e qua desaparace para iunlaÍ_s€ âos ÍevolucionáÍios.

Com a Íevolução o mundo de PauÌo Honório descaÍÌünhadc formâ definitiva: "O mundo qua mc ceÍcava ia-se loÌnandoum hoÍível astÌupicio. E o outro, grande, cra uma balbúÍdia'uma confusilo dos demônios, eslrupicio muito mâioÍ." AvitóÍia

tr t

da revolução traz-lhe problemas com a propriedade. Reacendem-sa antrgiú qu$tões de limites, scu cÍediro é coíado, os preçosdos pÍodulos caem. S. Bemardo lransfoÍma-sc numa fazendaabandonada. Os amìgos, que o frcqüentavam reguìaÌmente, sãoobrigados a afastar-se, cele fica sozinho, com seus intermináveisPasselos.

Ë, cnfim, o mundo à revelia, foÍa de seu controle. '.E 06 Íneu!pâssos mc levavam parâ os quâíos, como se procurassem al-guém." Nesta última frase do capiÌulo rÍinta e cinco o estilo re-vela a impolência do herói. A sinédoque se €ngasra na esrrururaação/persona8em. moírando quc o comando dos aros foi Ír€r-dido por Pâulo Honórioi não é elequem anda ue quano em quáÌ_to, mas são suas pernas que o levam. O desnoneamento é Daraleloà perda do mando.

EntÍamos agoÍa numa outm etapa, a vida âtual de paulo Ho_nório. Em contraste com a narÍativa do pÍrssado, o tempo qúcs€ Inslala aSora traz problemas difercnles e, cÍn conseqüência, pro_voca modificaçô€s no conteúdo e nô composiçâo do livro. Èm_bora o Íomance mantenha do comcço ao fim uma extraordináriaunidade €sl illsticâ (muito visivel.m vários planos, da escolha doléxico à constÍuqào sintálicadâs fraees), sua composição geralsealtera rcycmcnte o bastaDte, enlÌctanto, para impÌimir â &io ge.-,oado umâ dimensão nova.. A duplicidade rcmporal - exisrem Ícpresentados o teÍhpo

do enunciado (os eventos que ocorreram na vida de paub HLnóÍio) e o tempo da enunciação (o mo|nento em que se escreveo livro) - eslá ligada ao problema do ponto de viita narrativo.O rom_ance é narrado cm primeira pessoa, por um ..eu protago-rusta quc, distanciado no l€mÍ'o, abranSe com o olhar todalua vida c pÍocura Ìecâpitulála, conrando-a para si e paÍa nós,leitores. É estc dis|anciamenro que lhe dá uma pseudo-onisciência.concomitante à exisrência do olhar abrangenie, capaz de detçr-múaÌ os momcntos imponantes de sua evolução. Este procedi_hento é rcsponsiável por boa paíe da objerividade què, comovrmos, ressuma poÍ toda a narrativa. Náo é eotretanto o únicoresponsável, poisa objetividade nasce - como também já vimos- da alitude que caracterizá o narÍador face a tudo que lhe acon-

'Urilizo âqui I rcminolosia dc Nomrn Fd.dman, no Ênraio |!rás cÍado.

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rece. Na lerdade, existe uma conju8açÀo llncional dos doispíocedimenÌos: o conh€cimento âmplo dado pelo distancìamen-lo temporal lunde-ie a ciuâcÌeÍllaçáo do personâgem nalradoìe os dois juntos criam a postura objetiva que dá o tom do ro-

Neste momenlo, toclavra, entramos no presenle oa €úunclação e o dislanciamento desaparece. Por outío lado' o caráter ali_vo de Paulo Honório está empeÍrado, paraÌisado pela derrotadefiniriva que lbi a morÌe de Madalena. E forçoso que os proce

dimenlos técnjcos se modilìquem e a narralivâ Sanhc uma tctrurâ diferente. A linSuagem s€ca do tempo doenuociado ccde lugarà lamenlação eleglaca do tempo da enunciaçào, e o ritmo rápidoda naÍrativa é substituldo pelos compassot mais lênlos de umareflexão probleínatizada, dificile tonuosa: "AquisenÌado ã me_sa da sala de iânlar, fumando cÀchimbo e bebendo catë' suspendo às vezes o trabalho moroso. olho a íolhagem das laranieirasque a noite eneStece, dlgo o mim mesmo que esta pena e um ob'

.jcto p€sado. Náo e3iou acostumado a penÍìr' levanto_me' cheSoà janela que dei|a para a bona."

A verdadeira busca começa onde ternrinê a vida de PaìioHonóÍio. A bus{a veÍdadeira, enlenda-se, a procura dos veroa-deüos e autênticos valores que deveriam r€ger as relações enlreos hoÍnens, A vida teÍminou. o rom&ncecomeça Oromancc, segundo Lukács, éa hisrória da busca de valo.ês autênticos por uÍÌìpeÍsonagem problemático, denlro d€ um unìverso Yszio e degradado, no qual desapareceu a imanência do sentido à vida." ora'só ne5te instanle o herói se lornâ problemático. o uni\erso \u18<

como vazio e degÍadado, o sentido da vÌda ctesapaÍece, Anles.Paulo Honório fora um persona-qem coeso e Ìorte' movenoo-seem um mundo de objetivos claros e (ainda que ilusóíio) replelod€ significado: a pÍopriedade. O suicídio dê Madalena desmas-cara a falsìdâde do sentido e problematúa tudo Agir paÍa quê?

- pergunta-se ele. " Ne$e mo! lmenlo e ne\se rumoÍ ha!eria muito choro e muita praga."

rc. Lútâcs, A Teorio do Rond,,.! (t€d. pon. de afrcdo M!ryândo). Lúoa.Ed. Prcsenç! G. <1. ), Para un análi$ postutad2 ebc Lutó.:. na difercnt. danosa, veÍ o ei5âio citado d. Cd.lo! Nel$n Cootirho

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-..--l-11o !91ót1o.'bSndona-a ação e volta-se sobÌc si úesmo,ouscanoo na.memóÌia de süa vida o ponlo em quesedesnoneou,''numa €rÍada- - . Nêss€ debruçaÌ_se o est ilo s€ riDge de lirisúo ea--objetividade épica lìcâ abalada. e p..ci"o

"iinafa, qu. o

l:Lo-oj 9 rgmance e.sraÍ narrado nâ primeim pessoa não é gra_

Íu ornem rnconseqúenle. rnas deixa suas maÌcas na composi_çao oa narratlva. O eíaluto do '.nârÍador oniscienre,. (i;lru.so ou não) difere sensivelnenle dessa posiqào aqui adorada, traqual um "eu protagonisla", apÌoteilando_le da disÌeÍcia, no\conra sua [úlória. Nào que s€ja inrpossível falaÌ de si me5mocom objctividade (na medida crn que Í,o6sâ existir realrnmtcoojeüvro,adc) - coisâ que paulo Honório demoDstÍa, alirí6, delgjTi iM no.decorrer do tivÌo. Mas. no in.rant. e. qu.ìtempo oú enuncjaçào começa a ,€Ì representado, notamos ime_olaErnente a intilÌraçào dos signos da subjeriridade, a irrupçàooo monótogo inrerior. o abalo do ponto de vista pseudo_onüioent€.

Ess€ pÌoctsso s€ instâla um pou@ anlcs. Do dccoÍrcr dres_mo do tempo do-enunciado. quaDdo o ciúúe reliÍâ a s€guntnçaqo narÍador c o fa, duvidaÌ do que vê: .,Será? não SeÍã?.. dumais adtanle. nocápÍuÌo \intce novc: ..Os mcus olhos me enga_nav-am.ìras se os olhos me enganavam, em que me havia de flirentâo?"

. È carto que p€rmanecem no romance, muito bem delimitaOOò, OS dOtS nivejs de Íepresenlaçilo. e O leitoÍ percetrc de maDeira-craraoquee real€oqueédeformaçào provocada pelociúme.tao Úenarcto in réÍÍt *mpre uma objelividade quê o torna dife_renle oe,cenos romances conÌemporâreo\, nos quais os plano\oa m€moÌta, Oa imagmaçào ada realidade \€confundem e !e em_Dararnam.- Nem por i!so. entÍetanro, a objetividade deixa de serquesíoíaoa oe rârias maneiras, Uma delas é a marcação do lem_po, que vioos atrás ser feita de forÍna obs€ssiva e pÍecisa, e queagoÌa paÌece cìscapar ao dominio do narradoÌ: ..Uma pancidano reìógio da sala dejanlar. eue horas seriam? Meia? uma? umae0|era., uu metaale de qualqueÍ oulra hora? (...) Segunda panca-qa no relogìo. UÍna hora? uma e úeia? Só \endo. i...) Ah, sim.

ïs o cÍ6alo dr {nrôtuo Cândido. .n!do. pass J] . 4ô

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veÍ as horas. Empurrava a poía' atravessava o coÌÌeoor' entra-và na sala de janìar. Senpre eÍa algulrÌa coisa saber as horas'"Se a capacidaàe decontrolaÍ o tempo estava ligada atftis à cana'cidade ãe açào e dominio, neste momento a incertezâ simbolizaa impotènciã e inseSr.rrança a que eslá redulido o narÍador' Sim'boli ;a. em últ ima aìál ise, sua osci lâção diante do mundo que já

nao oode reduzir à objetividade da medida exaÌa, que já nào po-

de còntrolar.Mâs a subjetividade penetra mesmo, de forma avassalado_

Ía- é ouando começa a ser represenlado o tempo oa enunc|a'

ção, o instanl€ em que Paulo Honóíio escreve O belissimo ca'pituio dezeno"e, colocado no centro do Íomance' embaralhaàe fato consciència e realidade' memória e presente' obietivi'dade e subjetividade. Como afirma Lukâcs, a mais humilhan_le impotência da subjetividade manifesta-se menos no comba_t"

"ontru "atautra"a sociais vazias do que "no fato de ela estar

i". io.iut aante do curso ineÍte e conlÍnuo da duração" 'Paulo Honório escreve seu livro e busca o sentido de sua vida'

A(ravés da escriluÍa faz €mergií um mundo reificado e cÍuel'

Íepleto de corujas qu€ piam agouÍenlas, de rios cheios, atolei

ros e "uma fieura de lobisomem". O que surge é aíìnaì o s€xiit.ato, o.nerãndo d.n!Ìo de si mesmo aÍÌanca um mundo de

oesad.tot retti"eis, de signos da deformação e da monstruosiàade. Um mundo objetivamente real acaba revelando'se' alra-

vès àa subjetinidade 'Mas

é, por outro lado, um mundo alheioa Paulo Hànório, um universo que anda indiferente à sua von_iaãi. õ tempo triitórlco continua a decorrer, à sua revelia: "ooue nào oeriebo é o tique-laqu€ do relógio. Que hoías são? Não

óosso "ei o mostrador assim à5 escuras Quando me seoleiaqui'

áu"i"tn-t" ".

pan""aas ao pêndulo' ouviam'se muito beÍn s€-

Íia conveÍrente dar corda ao relógio, mas não cotlslgo mexer_me."

A objetividade da Íepresentaçào é atingida peÌa subjetiviilade do nãrrarlor, mas ambas acabam inteÍpene[rando-se' com_Dondo uma unidade dialética. "O sujeito poélico' que se eman_cioa ilas convenções da representação objetiva, confessa ao mes_

mo tempo a própÍia imporência, a irepoténcia do mundo Íei.lrcado que volta a apresentaí-se no neio do monólogo."'r orecurso âo monólogo interior, poÍlanlo, aiuda acompor a bus-ca de Pâulo HonóÍio. E é através delâ que surge o mundo deS, BeÍnardo, Siio Benardo Íonâncc, tentativa de encontrâr osenlido_perdido e erìconü o final e trágico consigo mesmo e coma sollOaO: "È, lou l tcar àscscuras, alé nâo seique hOra, até que,moÍto de fadiga, encoste a cabeça à Íhesa e descanse uns minu-

Com estaJ paÌavÌas o romancese fecha,mostrandoa yitóÌiada rcificaçâoe a derrota lotal do herói, que é incapaz de mexeFsc, modificar,se, Penso em oul ro personagem, de oulro Ìoman-cc: "'Ah, o que eu não entendo, isso é qÌje é capaz de me mâ-tar...'- melembreidessas palâvÍas. Mas paÌavrasque, em oürraocasião, quem tinha falado era Zé Bebelo, mesmo.,"t

rrT. w.^domo,..!. posicìón delnâÍador.Í la norela conremporánea,,, ,t Nô.@s d.lire.druÌo, Batetonà, Ld. ArÉt ít. d., (pá8.

'I). A posç;o do naradol

eÍn roo Àl.nr.do pd(e,mesn Íerir do tir ro umadimenúonora. qurotornadirft enr.do romãnc. reâtúa cuia 6rruru,a Lukáci d.srft êu.m 3úáj anátii.. &rrarac, srcndhât.. Mann. Â subielividâd€ do ponro d. riÍa prov@ ens meoÍ@çG€snREú nâ slrutu'., dd quair o monotoSo inrerior éap<nas uma.A .-n"rarN.,proÒÍeháú€" pâ'e(ee\boçar$aqui, norinstânr.sefr qu. pautoHonono arude, ruà dirìcutdaded<conrâr I h isróa. ..temenr o. Ae miratingua.sms inrromer.n. A ürilização decarcsonâ! difereíreeda, de Lurács podìria|anúr uha ourÌa tursob,eo Ì'vro pen\o, espcüatmer re, nor .,modo, da ti( (àorÌâgrca .Iro-postos por \o híop f rte I AnaroaE .lo Crtt r'.,. sdo paulo, iul_n\,

,D.4). tao é.mofto(t^t 'a

rltre/ n5 passâ8cn €nl rf 05 mÕdo, q uc Frre cha-mâ d. rhnarNo bai\o"e,iironko". ì odáqa. tançoa idéiã apend;comohipó-Ìef, rDE rso dâna maréria DlÌJ. Guimaãcr Ros. c.ard" Sanòo:ycìedas t4'ed I.Rio, loséOtrmpio, 1965ítiâe. Ugl-blükáas, ob. c|l., Pót. l2t.

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