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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAJLIO DE MESQUITA FILHOFACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO

JOO PAULO PAL

As relaes no processo de montagem cinematogrfica entre os filmes Um homem com uma cmera e Koyaanisqatsi

Bauru 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAJLIO DE MESQUITA FILHOFACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO

As relaes no processo de montagem cinematogrfica entre os filmes Um homem com uma cmera e Koyaanisqatsi

Dissertao de mestrado apresentada para a obteno do ttulo de mestre na rea de Comunicao, na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho. Orientadora: Prof. Dr. Ana Silvia Lopes Davi Mdola

Bauru 2008

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AGRADECIMENTOS - A Deus pela vida e sade. - Aos meus pais, pelo incentivo e total apoio. - A minha orientadora Prof. Dr. Ana Silvia Lopes Davi Mdola que me ajudou a crescer pessoal e profissionalmente. Aos meus professores e colegas de turma, especialmente a Ldia que me ajudou a rir nos momentos mais difceis. Aos meus alunos de ingls que tambm me apoiaram.

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RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de estudar as relaes no processo de montagem cinematogrfica a partir da anlise dos filmes Um homem com uma cmera (1929) de Dziga Vertov e Koyaanisqatsi (1983) de Godfrey Reggio. A escolha de tais filmes justifica-se, pois ambos procuram em sua montagem trabalhar a relao entre as imagens de uma maneira mais orgnica, relacional, no havendo tantos cortes que geram descontinuidade como na maioria dos filmes narrativos comerciais. A pesquisa tambm apresenta um panorama sobre o desenvolvimento e estabelecimento da linguagem cinematogrfica desde seus pioneiros at o cinema captado com cmeras digitais, passando pelos grandes movimentos do sculo XX como, por exemplo, o Neorealismo italiano ou a Nouvelle Vague francesa e o quanto os filmes provenientes desses movimentos ajudaram no estabelecimento do cinema enquanto linguagem e expresso artstica no sculo XX. A partir dos escritos tericos dos grandes cineastas russos dos anos 1920-30 como Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e Dziga Vertov, alm dos estudiosos brasileiros Eduardo Leone e Maria Dora Mouro, apresenta-se um estudo sobre a importncia da montagem no processo de construo de um filme. A anlise do processo de montagem em Um homem com uma cmera e Koyaanisqatsi evidencia os pontos de contato entre ambos revelando uma lgica da linguagem flmica, mesmo tendo sido realizados em um intervalo de mais de 50 anos e em duas culturas cinematogrficas bastante distintas, alm do que cada um tem de particular e o faz ser visto como produto de sua poca.

PALAVRAS CHAVE: Koyaanisqatsi, linguagem cinematogrfica, montagem, Um homem com uma cmera.

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ABSTRACT: The present research has the objective of studying the relationship in the cinematographical editing process from the analyses of the films A man with a movie camera (1929) by Dziga Vertov and Koyaanisqatsi (1983) by Godfrey Reggio. The selection of such films is justified, because both try in its editing to work the relationship among the images in a more organical, relational way, there are not so many cuts which generate discontinuity as in most commercial narrative films. The research also presents a panorama about the development and establishment of the cinematographical language since its beginning until the cinema captured with the aid of digital cameras, passing through the greatest movements of the 20th century, for example, the Italian New-realism or the French Nouvelle Vague and how much the films originary of these movements helped in the establishment of the cinema as language and artistic expression in the 20th century. From the rhetorical writing of the greatest Russian moviemakers in the 1920s and 1930s like Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin and Dziga Vertov, besides the Brazilian researchers Eduardo Leone and Maria Dora Mouro, a study is presented about the importance of the editing in the process of construction of a film. The analysis of the editing process of A man with a movie camera and Koyaanisqatsi to evident the connecting points between them revealing a logic of the film language, even being produced more than 50 years apart each other and in two totally different cinematographic cultures, besides what each one presents as being of itself and what makes them be seen as products of their times.

KEY WORDS: Koyaanisqatsi, cinematographical language, editing, A man with a movie camera.

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SUMRIO Introduo ............................................................................................................................07 Captulo 1 O panorama e a construo da linguagem cinematogrfica ..........................11 1. Os primeiros passos e o estabelecimento da narrativa cinematogrfica ....................... 11 2. Vanguardas cinematogrficas .......................................................................................18 3. A passagem do cinema mudo para o cinema sonoro ..................................................22 4. Cinema ps II Guerra Mundial .................................................................................29 4.1. Neo-realismo italiano e nouvelle vague francesa .................................................30 4.2. Cinema Novo brasileiro ......................................................................................33 4.3. Cinema americano independente ......................................................................35 5. DOGMA 95 e o Cinema digital .........................................................................39 Captulo 2 Diretores Montadores.....................................................................................42 1. Sobre montagem cinematogrfica ...................................................................................42 2.1. A montagem segundo Sergei Eisenstein ..................................................................50 2.2. A montagem segundo Vsevolod Pudovkin ............................................................53 2.3. O Cinema-Verdade e o Cinema-Olho de Dziga Vertov.......................................55 2.4. Aleksander Sokrov e a Arca russa .................................................................61 Captulo 3 O dilogo entre os filmes Um homem com uma cmera e Koyaanisqatsi....64 1. O documentrio cinematogrfico ...................................................................................64 2. Os filmes Um homem com uma cmera e Koyaanisqatsi.............................................68 3. O dilogo entre Um homem com uma cmera e Koyaanisqatsi..................................71 4. Consideraes finais...................................................................................................89 Referncias Bibliogrficas ................................................................................................94 Bibliografia Complementar ..............................................................................................97 Filmografia .....................................................................................................................99 Crdito das imagens....................................................................................................102

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Introduo

Nos mais de 100 anos de sua existncia, o cinema evoluiu como arte e como linguagem tendo nascido preto e branco, mudo e artesanal, chega atualidade produzido de modo industrial, com todo tipo de efeito sonoro e visual jamais imaginado pelos seus pioneiros. Porm, essa evoluo tecnolgica efetivamente trouxe consigo a evoluo do prprio meio, ou seja, os filmes produzidos na atualidade apresentam uma qualidade artstica muito superior em relao aos filmes do incio do sculo passado ou deve-se medir a importncia de uma produo tendo-se em vista seu momento histrico e os recursos disponveis no momento em que foi produzido? Nos ltimos anos tem se falado muito da emergncia do cinema digital como novo aparato tecnolgico que promete, se no revolucionar, pelo menos modificar substancialmente a maneira de se fazer cinema. O cinema digital parte do processo pelo qual a informao est passando que de transformar em linguagem binria tudo que se refere produo miditica como textos, imagens e sons. No importando para qual mdia se destina a informao, ela convertida ou diretamente produzida dentro de um ambiente digital. De acordo com Silva (2006), em meados dos anos 1990, iniciou-se no cinema, uma migrao dos procedimentos de finalizao para processos digitais. A sonorizao dos filmes passou a ser feita com o uso de sistemas de edio computadorizados, a moviola passou a ser substituda por programas de computador que editavam imagens, alm do surgimento do processo de kinescopagem, que transferia as imagens captadas em cmera digital para pelcula cinematogrfica. O uso de cmeras digitais para captao de imagens algo muito recente, em torno de 10 anos. Os primeiros filmes a chamarem a ateno do pblico vieram de um pas no norte da Europa, a Dinamarca, onde um grupo de cineastas lanou um manifesto chamado DOGMA 95 que procurava explorar as caractersticas desse novo suporte e, ao mesmo tempo, introduzir uma esttica contestadora em relao produo cinematogrfica. Festa de Famlia (1998) e Os Idiotas (1998) seguiam uma srie de regras que procuravam desenvolver uma linguagem mais naturalista, que deixava de lado tudo que pudesse mascarar a produo de um filme como cenas feitas em estdio e o uso de iluminao artificial. O que se buscava era utilizar os recursos das cmeras mini-DV de uma maneira nova, talvez em dilogo com as correntes de vanguarda do cinema dos anos 1960.

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A Nouvelle Vague francesa, o Cinema Novo brasileiro, e outras correntes cinematogrficas como o Neo-realismo italiano j haviam questionado o modo como os filmes eram realizados e a maneira como a esttica hollywoodiana era seguida principalmente fora dos EUA. Esses movimentos aconteceram graas ao talento dos envolvidos, mas tambm devido ao uso de cmeras portteis que ajudaram no surgimento de uma linguagem prpria para esses filmes. H, portanto, uma relao entre os movimentos dos anos 60 e o DOGMA 95, pois ambos se utilizaram de um novo aparato tecnolgico para buscar novas linguagens dentro daquela existente, contando claro, com o engajamento e disposio de seus membros para tanto. Recuando-se ainda mais no tempo em busca de grupos ou cineastas praticantes de um tipo de cinema diferente do realizado comercialmente, chega-se Vanguarda Russa dos anos 1920 e a nomes como Vsevolod Pudovkin, Dziga Vertov e Sergei Eisenstein. A dcada de 20 foi muito frtil no campo das artes na Rssia graas Revoluo Socialista de 1917 que atravs de seus lderes, Trotsky e Lnin, acreditavam que o cinema em particular, teria capacidade de exercer uma influncia sobre as massas alm de ser considerado naquele momento, a mais moderna e revolucionria das artes, e graas a esse respaldo oficial, e tambm por serem membros do Partido Comunista, os cineastas tinham possibilidades de inovar esteticamente, ou ainda, seguindo os ideais socialistas, revolucionar o cinema como havia acontecido com o pas em 1917. Eisenstein, Vertov e outros buscavam uma nova linguagem que privilegiasse e provocasse um outro tipo de raciocnio no espectador e que o levasse a refletir sob sua condio enquanto membro de um conjunto. De um ponto de vista ideolgico, deixava-se de lado a figura de um heri e, para fazer do povo, do conjunto, da massa, aquele capaz de realizar a mudana, bem de acordo com o pensamento socialista. A presente pesquisa surgiu de uma necessidade de se estudar mais detalhadamente a linguagem cinematogrfica, especialmente filmes produzidos com a inteno de no somente entreter seu espectador, mas, sim, de causar um processo de reflexo sobre o que se assiste, o que esse espectador pode retirar de significados que ultrapassam o simples entendimento de uma histria e o faz pensar sobre as imagens apresentadas, tomando um termo emprestado da literatura, o que se encontra nas entrelinhas desse filme. Para se entender e exemplificar tais processos, foram escolhidos como objetos de estudo os filmes Um homem com uma cmera (1929) de Dziga Vertov e Koyaanisqatsi (1983) de Godfrey Reggio. O primeiro um representante da Vanguarda Russa dos anos

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1920-30 em que se procurava realizar um cinema revolucionrio bem ao estilo dos ideais da Revoluo Socialista de 1917, e o segundo, a primeira e mais conhecida parte de uma trilogia produzida nos anos 1980 em que o diretor norte-americano mostra o suposto avano tecnolgico da humanidade custa do preo pago pela natureza por tal avano. A pesquisa pretende demonstrar que, mesmo separados cronolgica e geograficamente, os filmes escolhidos compartilham muitos elementos em comum. A montagem, por exemplo, pensada para fazer com que o espectador possa exercer um papel mais ativo na compreenso do filme, que apresenta margem para uma interpretao mais pessoal, mais aberta, tendo em vista que existe maior continuidade no que se assiste. O corte quando ocorre mais visvel, pois no se pretende mascarar que o que est se vendo um filme, o espectador parte integrante do processo de construo desse filme em particular. A maioria dos filmes que busca principalmente entreter o pblico trabalha as imagens como unidades mnimas ou discretas, que se manifestam de maneira independente umas das outras em que a soma de diferentes imagens pretende, portanto, passar uma idia, um resultado. Como em uma equao matemtica, a margem de interpretao do espectador frente ao que assiste baixa ou quase nula. H maior preocupao em fazer o espectador acreditar que aquilo que ele v na tela pode ser real, por isso, detalhes de cenografia e figurinos so importantes, pois auxiliam na construo da iluso de realidade, de verossimilhana que tais filmes desejam criar. O espectador deve, portanto, reconhecer aquele mundo como o mesmo mundo em que ele vive. A montagem desses filmes privilegia imagens com uma durao mais curta, tais imagens so como as letras de um alfabeto que so somadas para gerar uma palavra, geralmente o espectador no tem muito tempo para refletir sobre a inteno de cada imagem (nem elas so produzidas com esse intuito), ele se d por satisfeito ao ser capaz de seguir o ritmo e compreender a seqncia de imagens que vai terminar por ser a narrativa geral do filme. Para discutir questes relativas montagem cinematogrfica, esse trabalho de pesquisa se divide em trs captulos que procuram desenvolver uma trajetria de raciocnio sobre o cinema e sua linguagem. O primeiro captulo, O panorama e a construo da linguagem cinematogrfica apresenta uma viso geral do estabelecimento do cinema enquanto linguagem, passando pelas evolues tcnicas, seus reflexos e alguns dos mais representativos movimentos estticos do cinema. Iniciando-se no advento do

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cinematgrafo pelos irmos Lumire, o percurso recupera o estabelecimento da narrativa clssica cujo principal nome David Wark Griffith, as vanguardas cinematogrficas dos anos 1920, a introduo do som no cinema, alm dos movimentos ps II Guerra Mundial como o Neo-realismo italiano, a Nouvelle Vague francesa, e o Cinema Novo brasileiro. Ainda dentro do primeiro captulo, so apresentados os movimentos do Cinema Americano Independente das dcadas de 1960 e 70 e o dinamarqus DOGMA 95. O segundo captulo, Diretores montadores, inicia-se discutindo o que montagem cinematogrfica baseado nas pesquisas de Eduardo Leone e Maria Dora Mouro que tem como idia central a defesa de que a montagem no se restringe somente ao ato de edio de um filme, mas de que a montagem no cinema se estrutura sobre um trip cujos vrtices so o roteiro, a filmagem desse roteiro e a edio ou montagem do material filmado. O segundo captulo contempla ainda o trabalho terico de trs cineastas russos dos anos 1920-30, Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e Dziga Vertov que promoveram em seus filmes diversas experincias com montagem que ressoam nos filmes produzidos ainda hoje a fim de desenvolver a linguagem cinematogrfica. Por fim, apresentado o filme Arca russa (2002) do tambm cineasta russo Aleksandr Sokrov, que caminha na contramo das teorias de montagem de seus compatriotas produzindo um filme em que no h um corte sequer, mas um plano-seqncia de 96 minutos mostrando quase 300 anos da histria da Rssia. Finalmente, o terceiro captulo O dilogo entre Um homem com uma cmera e Koyaanisqatsi, apresenta um panorama sobre o documentrio cinematogrfico desde seus pioneiros, discorre sobre a produo de Um homem com uma cmera e Koyaanisqatsi, a trajetria de seus realizadores, e depois os analisa conjuntamente. A principal inteno compar-los para perceber suas relaes de semelhana e diferena no procedimento de montagem, identificar seus pontos de contato e as caractersticas particulares de cada um, buscando relacionar dois filmes de origens e pocas to distintas, mas construdos em bases estruturais to semelhantes.

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Captulo 1 O panorama e a construo da linguagem cinematogrfica

1. Os primeiros passos e o estabelecimento da narrativa cinematogrfica O ano de 1895 considerado o ano zero do cinema, pois foi neste ano, mais precisamente no dia 28 de dezembro, que os irmos franceses Auguste Lumire (18621954) e Louis Lumire (1864-1948) apresentaram em um caf parisiense um novo aparelho batizado por eles de cinematgrafo. O cinematgrafo dos irmos franceses era um entre muitos inventos que procuravam registrar e projetar imagens em movimento. Entre eles pode-se citar o bioscpio dos tambm irmos alemes Max e Emil Skladanowsky, que fizeram a primeira apresentao pblica de seu invento, dois meses antes dos franceses e o mutoscpio de William K. L. Dickson, funcionrio de Thomas Alva Edison, que deixara a empresa do inventor americano para desenvolver seu prprio invento. O cinematgrafo, no entanto, foi desenvolvido pelos Lumire a partir do cinetoscpio criado por Thomas Edison em 1890, sendo sua principal vantagem frente ao antecessor a possibilidade de ser transportado facilmente o aparelho de Edison pesava cerca de 500 quilos e de funcionar tanto como cmera para registrar imagens como projetor para exibi-las. Outra diferena entre o aparelho dos franceses e o do norte-americano, que o cinematgrafo torna possvel a projeo das imagens para o pblico em uma tela, enquanto que no cinetoscpio as imagens eram projetadas em seu interior, sendo possvel apenas a um espectador de cada vez assistir s imagens. Bons negociantes, os irmos Lumire espalharam seu invento pela Europa e Estados Unidos, controlando todas as fases do processo cinematogrfico. Eles fabricavam o cinematgrafo bem como o filme para registrar imagens, alm de controlar a distribuio e exibio de seus filmes por intermdio de seus cinegrafistas/projecionistas e, a cada novo local que o invento chegasse, registravam-se imagens para serem exibidas em outras partes do mundo, criando uma rede que apresentava constantemente novos filmes a um pblico vido por novidades. Em seu surgimento, a imagem cinematogrfica foi comparada com a fotogrfica, uma vez que ambas partiam do mesmo princpio de um dispositivo (a cmera), que capturava imagens e as fixava sobre a superfcie de um filme; entretanto, a principal

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diferena entre imagem fotogrfica e imagem cinematogrfica, segundo Roland Barthes (1984), que a primeira no uma imagem imvel apenas por congelar determinado momento no tempo. A fotografia encerra-se naquilo que est enquadrado dentro de si mesma, enquanto a imagem cinematogrfica proporciona ao espectador a conscincia da existncia de um algo mais; ela no se encerra em um nico fotograma, pois o filme constitui-se de uma seqencialidade de fotogramas, como diz Barthes (1984, p. 86):

(...) diante de milhares de fotos (...) no sinto qualquer campo cego: tudo o que se passa no interior do enquadramento morre de maneira absoluta, uma vez ultrapassado esse enquadramento. Quando se define a Foto como uma imagem imvel, isso no quer dizer apenas que os personagens que ela representa no se mexem; isso quer dizer que eles no saem: esto anestesiados e fincados como borboletas.

A fotografia remete ainda idia de congelamento de um determinado instante, pois na grande maioria dos casos as pessoas param, posam para tirar uma fotografia; o cinema, por seu lado, refuta a imagem esttica. A sucesso de fotogramas que constituem a imagem cinematogrfica pede, por sua vez, que o que esteja sendo fotografado, movimente-se, segundo Barthes (1984, p. 117-118):

Na Foto, alguma coisa se ps diante do pequeno orifcio (est a meu sentimento); mas no cinema alguma coisa passou diante desse mesmo pequeno orifcio: a pose levada e negada pela seqncia contnua das imagens: trata-se de uma outra fenomenologia e, portanto, de uma outra arte que comea, embora derivada da primeira. (grifo do autor)

A primeira exibio do novo invento era composta de pequenos filmes, com aproximadamente trs minutos cada. Entre os filmes apresentados, o que causou maior frisson entre os primeiros espectadores foi aquele intitulado Larrive la ciotat (1895), que mostrava a chegada de um trem a uma estao ferroviria. Para ns, espectadores do sculo XXI, parece anedtico o fato de tal filme, que registrava uma locomotiva chegando ao seu destino final, ter amedrontado os espectadores presentes a sesso inaugural do cinema ao ponto de deixarem a sala de exibio, por medo de serem atropelados pelo trem que aparecia na tela. Nascia o cinema, combinando a evoluo de uma tcnica de apreenso de imagens o cinematgrafo com a participao ativa do pblico que, encantado com aquelas imagens, espalhou a notcia sobre o novo meio de diverso e trouxe mais espectadores para assistir aos seus primeiros passos.

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Durante estes primeiros anos, os filmes produzidos eram documentais, registrando paisagens e pequenas aes cotidianas. A idia tambm fora dos irmos franceses, que decidiram enviar a vrios lugares do mundo homens portando cmeras, tendo como propsito registrar imagens de pases diferentes e lev-las para Paris, difundindo, assim, as diversas culturas mundiais dentro da capital da Frana, naquele momento capital cultural do mundo. Passado o alvoroo inicial, os filmes alm de apresentarem esse carter de registro documental, comearam a desenvolver histrias ficcionais. Uma das primeiras fices tambm deve ser creditada aos irmos franceses que, em 1895, apresentaram L`arroseur arros, histria de um menino que pisa no esguicho do jardineiro e libera o fluxo de gua, molhando-o. Cmico, o desfecho mostra o jardineiro molhado, capturando e dando palmadas no menino. Inicialmente, eram filmados pequenos esquetes cmicos como este, a cmera permanecia esttica, conferindo aos filmes forte cunho teatral. Porm, a necessidade de evoluo, da procura de um diferencial, levara outro francs, George Melis (1861 - 1938), a ser o primeiro homem digno de receber a alcunha de cineasta, pois a partir de seus filmes, entre os quais o mais famoso Le voyage dans la lune (1902), que o cinema passa a utilizar figurinos, cenrios, truques ticos (os predecessores dos efeitos especiais) e tambm buscar a literatura como fonte de histrias passveis de serem transformadas em filmes. Homem do palco, Melis vivia de shows de mgica e ilusionismo, quando descobriu o cinematgrafo e viu no invento, em primeiro lugar, um instrumento para auxili-lo em suas apresentaes. Aos poucos, passou a dedicar-se ao ofcio de fazer filmes e, por meio da Star Films, sua companhia, realizou centenas de filmes distribudos pela Europa e Estados Unidos. O sucesso da companhia prolongou-se at 1913, quando os filmes passaram a desenvolver uma estrutura narrativa mais linear e a ter durao mais aproximada do que hoje entende-se por longa-metragem. Os filmes de narrativa fragmentada e fantstica de George Melis no atraiam mais o pblico, o primeirssimo ciclo cinematogrfico fechava-se. O primeiro passo do cinema foi dado pelos franceses, porm inegvel a contribuio da primeira gerao de cineastas americanos no desenvolvimento do cinema como contadores de histrias. David Wark Griffith (1875 1948) considerado o pai da narrativa cinematogrfica, que se encontra diretamente ligada estrutura narrativa do

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romance do sculo XVIII, em que as estrias seguiam uma estrutura linear com comeo, meio e fim. com os chamados filmes de perseguio que comea a se estabelecer o processo de linearizao dos filmes, porque este gnero o primeiro a trabalhar a idia de sucesso temporal de eventos, ligado a uma continuidade de aes em um determinado espao, de acordo com Machado (1997, p.122):O filme de perseguio (...) ser o primeiro gnero cinematogrfico legalmente considerado como uma unidade e no mais como um agregado de filmes (quadros) independentes. (...) uma sucesso coerente de unidades interdependentes e discretas (planos e no mais tableaux autnomos), ligadas entre si por nexos internos de sucesso no tempo e de progresso no espao.

A estrutura dos filmes de perseguio mostrava em seu incio um roubo, um acidente ou um rapto, que gerava ento uma situao de fuga. Nas imagens seguintes, apresentava-se a perseguio e o desfecho solucionava o problema mostrado no comeo do filme. Apesar de sua aparente linearidade, os filmes de perseguio ainda traziam muitos acontecimentos dentro de um mesmo plano os personagens entravam e saam da imagem constantemente os cortes de plano para plano eram poucos e a cmera limitava-se a um nico ponto de vista. Entre os pioneiros realizadores norte-americanos, importante destacar Edwin Porter, diretor de O grande roubo do trem (1903), que comeou sua carreira como cinegrafista de Thomas Edison e contribuiu muito para o estabelecimento da narrativa cinematogrfica. Em outro de seus filmes, Life of an american fireman (1903), Porter tentou resolver o problema de como mostrar duas aes que ocorrem ao mesmo tempo, o filme apresentava o resgate, pelos bombeiros, de pessoas em um prdio em chamas. O espectador primeiro assistia ao trabalho de resgate dos bombeiros, para depois ver o desespero das pessoas que esperavam pelo salvamento; as duas situaes no eram intercaladas, como para ns hoje parece bvio. A contribuio de Edwin Porter e de seus contemporneos da dcada de 1910 foi comear a unir as situaes que se mostravam independentes e que, graas a seus filmes, comearam a possuir uma ligao e linearidade maiores. David W.Griffith tambm fazia parte desses pioneiros, porm foi quem conseguiu com maior sucesso desenvolver, a partir dos filmes de perseguio, uma noo de

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montagem mais apurada, na qual, em vez da sucesso linear de aes no tempo e no espao, realizou a alternncia de dois espaos distintos, que, ao se sucederem na tela, sugerem aes paralelas; Nascia ento, o narrador cinematogrfico, para Machado (1997, p. 147), a contribuio maior de Griffith foi conseguir orquestrar os fragmentos chamados planos com uma tal habilidade, que eles resultam coerentes para a experincia perceptiva do espectador. De acordo com Costa (2006), at se chegar ao ponto em que as convenes da narrativa cinematogrfica estariam completadas, os cineastas trabalharam a conexo entre os planos de trs modos bsicos: a montagem paralela ou alternada, a montagem analtica e a montagem em contigidade. A montagem paralela, tambm chamada de montagem alternada, apresentava planos que mostravam aes acontecendo em espaos diferentes; primeiro via-se um acontecimento em um determinado lugar, depois outro em outro lugar e, ento, retornavase ao do primeiro lugar. Griffith usou tal montagem em The fatal hour (1908), depois em The curtain pole (1909), baseado no filme francs Le cheval emball (1907). A diferena do diretor americano, frente a outros que tambm comeavam a alternar as aes de seus filmes, que Griffith colocava at trs aes diferentes e encurtava a durao dos planos, no esperava uma situao ser resolvida para mostrar outra; tal alternncia e velocidade criavam suspense e prendiam o pblico ao filme. Outro filme de Griffith a mostrar montagem paralela The lonely villa (1909), histria em que ladres tiram um mdico de sua casa com um falso chamado, para poder invadi-la. Tambm baseado em outro filme francs Le mdicin du chteau (1908), o cineasta americano aprimorou a sensao de aes paralelas acontecendo ao mesmo tempo, criando trs ncleos: um do mdico usando um telefone para se comunicar com a famlia, outro em que descobre a armao dos ladres e um terceiro, que pede ajuda para resgatar a famlia. A montagem analtica trabalha mais com o fracionamento de um espao, a partir do uso de diferentes planos desse espao; planos mais fechados procuram apresentar melhor uma informao no to clara em plano geral. Novamente Griffith foi quem melhor aprimorou tal montagem, por exemplo, no filme The lonedale operator (1911), em que uma operadora de telgrafo ameaada por bandidos. No clmax do filme, vem-se planos das mos da operadora telegrafando um pedido de socorro e, principalmente, a passagem de um plano mdio para um plano aproximado do rosto da operadora, mostrando sua

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expresso de medo. O diretor americano percebeu que podia transmitir a sensao de pavor da personagem ao pblico, ao mostrar seu rosto em um plano que depois ficaria conhecido como close-up. Por fim, o terceiro tipo de montagem apontado por Costa (2006) a montagem em contigidade, tambm presente no filme The lonedale operator, de Griffith. Esse tipo de montagem mostrou-se importante, pois ajudou a situar o espectador dentro do filme. A partir da montagem por contigidade, surgiram padres de continuidade entre planos, transmitindo a idia de que um plano acontece em local prximo ao outro. No filme supracitado, Griffith apresentava o percurso da operadora de telgrafo at sua sala, sempre saindo de cada plano pela direita e entrando no seguinte pela esquerda. Quando os bandidos invadem o escritrio, o espectador sabe quanto tempo eles levaro para alcanla; novamente o diretor trabalha com o suspense em seu filme. O filme que melhor exemplifica a sedimentao do surgimento do narrador cinematogrfico tambm o mais conhecido de D.W. Griffith, The birth of a nation (1915), pois nele se encontra o modo de contar uma histria mais utilizado no cinema mundial desde aquele tempo e que permanece at hoje, ou seja, narrativas com um incio, um meio e um fim, e uma montagem invisvel na qual o espectador no se atem passagem de um plano a outro. No bastasse isso, o filme foi o primeiro a ser visto de uma maneira massiva, inaugurando o cinema comercial hollywoodiano. Realizado na Itlia um ano antes de The birth of a nation, Cabria (1914) de Giovanni Pastrone influenciou o trabalho de Griffith que assistiu o filme inmeras vezes por apresentar uma continuidade narrativa ainda no conseguida pelo diretor americano e pela qual ele depois ficou famoso. O filme de Pastrone conta a histria de Cabria que seqestrada por piratas, vendida como escrava para ser sacrificada e que acaba sendo resgatada por um nobre italiano e seu musculoso escravo. Cabria apresentava paisagens picas do Imprio Romano, os cenrios eram grandiosos e luxuosos, o filme contava com centenas de figurantes, como relata Nazrio (1999, p. 36) os espectadores sentiam-se, em pleno sculo XX, transportados para tempos remotos, assistindo a pseudo-reportagens ao vivo, transmitidas dos palcios, dos banhos, das assemblias e das arenas da antiga Roma. Deve-se reconhecer a importncia do filme italiano, porm, a disputa para saber se Cabria tenha conseguido antes de The birth of a nation estabelecer definitivamente o narrador cinematogrfico parece um ponto menos relevante do que o de situar a metade da dcada de 1910 como o perodo em que isso definitivamente aconteceu.

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David Wark Griffith dirigiu mais de 400 filmes para a produtora Biograph, entre 1908 e 1913. Seu papel para o desenvolvimento das tcnicas de montagem, principalmente a montagem paralela, incontestvel. Um ponto importante, de acordo com Costa (2006, p. 46-47), que o diretor no usou a montagem paralela apenas para combinar diferentes linhas de ao, de modo a criar suspense, mas tambm construir contrastes dramticos, delinear o desenvolvimento psicolgico de personagens e criar julgamentos morais. Assim, em filmes como A corner in wheat (1909), The usurer (1910), One is business, the other crime (1912), o cineasta usa a montagem paralela para contrastar a situao de ricos e pobres, exploradores e oprimidos, bons e maus. O pblico deve, a partir da alternncia de situaes, reconhecer os contrastes e tomar parte de um dos lados. Intolerncia (1916) o filme que melhor apresenta Griffith utilizando a montagem paralela, para mostrar sua opinio ao espectador. O cineasta tinha sido acusado de racismo com The birth of a nation e realizou Intolerncia, apresentando quatro diferentes histrias sobre o tema, que vo da crucificao de Cristo at um caso de amor nos tempos do imprio babilnico, para mostrar que ele prprio tinha sido vtima de um mal entendido. A partir da metade da dcada de 1910, o cinema americano comeou a desenvolver diferentes gneros de filmes, como a comdia, o drama, os filmes de aventura, o western e outros que, baseados nas tcnicas de montagem dos pioneiros que tiveram em D. W. Griffith o principal nome, transformou aquela atividade, at ento artesanal, em uma indstria que, hoje, a segunda maior geradora de riqueza dos Estados Unidos. A construo da linguagem cinematogrfica iniciou-se na Frana e recebeu grande contribuio em solo norte-americano, onde os filmes passaram a ter uma narrativa construda sobre uma montagem que linearizava a histria, aproximando a estrutura do filme da estrutura do romance do sculo XVIII. Paralelamente a essa corrente, encontra-se na Europa da dcada de 1920 movimentos de vanguarda em diferentes pases, sendo um dos mais representativos o expressionismo. Surgido na Alemanha ps I Guerra Mundial, tal movimento de vanguarda acrescentava ao cinema aspectos e nuances at ento no imaginados tanto pelo pblico como pelos pioneiros.

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2. Vanguardas cinematogrficas

A Alemanha no tinha se recuperado completamente da derrota na I Guerra Mundial quando, em 1920, um filme mexeu no s com seu povo, mas com todos que acompanhavam o cinema. O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, apresentava a histria de um mdico recm chegado a um vilarejo, que transforma seu sonmbulo assistente em um assassino. O clima sombrio do filme completado pelos cenrios e tcnicas de iluminao, que seriam a marca registrada da escola expressionista. O movimento expressionista iniciou-se na pintura a partir dos trabalhos dos grupos Die Brucke e Der Blaue Reuter, que contavam entre seus integrantes com nomes como Ernst Ludwig Kirchner (1880 1935), Vassily Kandinsky (1866 1944) e Paul Klee (1879 1940). A literatura e a poesia expressionista esto representadas por nomes como Georg Heym (1887 1912), Georg Trakl (1887 1914) e at Frank Kafka (1883 1924) reconhecido por alguns crticos como tendo obras expressionistas. De acordo com Nazrio (1994, p. 149-150):O termo expressionismo fora usado pelo crtico de arte Herwarth Walden para caracterizar toda arte moderna oposta ao impressionismo. Mais tarde, passou a definir toda a arte na qual a forma no nasce diretamente da realidade observada, mas de reaes subjetivas realidade. De fato, a criao de formas deliberadamente deformadas, o sacrifcio do discurso ao essencial, a captao de um mundo em frangalhos, a preocupao com a doena e a morte, a sublimao da loucura (...) so comuns aos artistas modernos que atingiram os limites da expresso.

possvel identificar trs traos comuns aos filmes expressionistas, sendo o primeiro a composio geral do filme que engloba a cenografia, a iluminao e a fotografia, o segundo aspecto trata de uma temtica comum aos filmes e, por fim, um terceiro trao indica uma estrutura narrativa particular desses filmes. A cenografia foi o primeiro item a chamar a ateno do pblico, que assistiu a O Gabinete do Dr. Caligari; artistas plsticos e arquitetos ligados ao movimento expressionista conceberam os lgubres cenrios da casa do mdico e do vilarejo. No entanto, o filme expressionista portador dos cenrios mais elaborados do movimento Metropolis (1927) de Fritz Lang que apresenta uma histria distpica sobre uma sociedade do futuro que venera uma garota, Maria, que clonada por um cientista para incitar a rebelio contra os poderosos da cidade. A esttica dos cenrios desenvolvidos para o filme foram exaustivamente copiados ao longo da histria do cinema e so referncia at hoje.

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A tcnica de iluminao dos filmes expressionistas alemes acentuava a dubiedade dos personagens; como eram produzidos em preto e branco, a luz trabalhava esses dois tons, para que contrastassem o mais possvel na expresso dos personagens, nos cenrios. Em O Gabinete do Dr. Caligari, por exemplo, ocorre uma inverso de papis, quando o sonmbulo hipnotizado pelo Dr. Caligari insurge-se contra ele e, de vtima, passa condio de carrasco; a luz acompanha essa transformao; jogando mais escurido, mais sombra sobre o mdico. A sombra , portanto, um elemento particular da iluminao, que pode denotar ameaa, angstia; a sombra do sonmbulo assassino encobrindo sua vtima j transmite ao espectador o assassinato que est prestes a acontecer. Luz e sombras representam a dicotomia bem versus mal; esse embate que faz parte da humanidade repetido e aperfeioado no cinema expressionista, personagens de boa ndole geralmente recebem mais luz do que personagens de m ndole. exemplar o caso de outro filme bastante conhecido do movimento, M O Vampiro de Dusseldorf (1930), de Fritz Lang, em que o assassino se esgueira entre os becos e esquinas da cidade atrs de suas vtimas e, quando perseguido, v-se capturado em ruas bem iluminadas. Apesar da grande fora visual dos filmes expressionistas, no se pode negar uma unidade temtica entre os filmes. Os temas dos filmes remetiam a uma literatura alem do sculo XIX pautada no fantstico, de acordo com Cnepa (2006, p. 73) uma predileo por um mundo imaginrio foi freqentemente reivindicada pelos prprios alemes como o diferencial de seu cinema. Os filmes expressionistas trazem uma enorme galeria de personagens viles ligados ao sobrenatural, loucura ou s cincias ocultas. Entre eles, vale destacar o Dr. Mabuse, personagem principal de pelo menos trs filmes, sendo o primeiro Dr. Mabuse: O jogador (1922), dirigido por Fritz Lang; o Conde Drcula; do filme Nosferatu (1922); de Friedrich Wilhelm Murnau; alm do serial killer, do filme M O Vampiro de Dusseldorf (1930), tambm de Fritz Lang. patente a ligao desses personagens com o mal e a violncia; entre suas motivaes comuns, pode-se citar o desejo de poder sobre um grupo de pessoas, a exacerbada crueldade nos atos de violncia, um uso de magia para alcanar seus objetivos, alm da transformao desses personagens em monstros ou fantasmas. Uma terceira caracterstica comum dos filmes expressionistas, segundo Cnepa (2006), diz respeito sua estrutura narrativa que, diferentemente de uma integrao narrativa linear, alcanada principalmente por D. W. Griffith nos Estados Unidos, no final

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dos anos 1910, buscava propostas narrativas mais abertas discusso e especulao do pblico. A ambigidade dos temas, alm de seu carter fantstico, impedia uma nica concluso do que se passava na tela.O progresso narrativo desses filmes era feito por descontinuidades, dando ao espectador, muitas vezes, o papel da construo elptica (...) essa divergncia entre as prticas talvez ajude a explicar por que os filmes alemes deram origem a leituras psicolgicas e sociolgicas aparentemente dspares. (...) as narrativas expressionistas no podem ser analisadas com base na normal textual do cinema clssico hollywoodiano (CNEPA, 2006, p. 78).

Outro importante filme do movimento expressionista A ltima gargalhada (1924) de Murnau que narra a histria de um vaidoso porteiro de hotel que vive em um cortio e tem especial orgulho de seu uniforme, questionando o poder da aparncia representada pelo traje. O espao trabalha a dicotomia entre o meio social artificialmente regulado e o naturalmente desorganizado, enquanto o interior do hotel simtrico e organizado, o cortio apresenta um amontoado de casas de formas e tamanhos diferentes. Murnau restringiu o nmero de interttulos utilizando uma gil montagem e colocando artifcios como cartas para contar passagens que precisam de um narrador. atravs de uma delas que o porteiro informado de que foi rebaixado a trabalhar no banheiro do hotel tendo, portanto, que trocar seu estimado uniforme por um simples avental. A ltima gargalhada se utiliza ainda de vrios recursos de movimento de cmera feitos pelo fotgrafo Karl Freund no freqentemente usados na poca como close e especialmente um travelling vertical que desce pelo elevador do hotel e segue em planoseqncia at o saguo atravessando o espao todo e para em fim, passar pela porta giratria e chegar rua. O eplogo de A ltima gargalhada destoa completamente do resto da obra, em que o agora zelador humilhado pelas pessoas do cortio que descobrem que ele tentava manter as aparncias mesmo no sendo mais o porteiro, recebe uma herana de um senhor que morre em seus braos e torna-se milionrio, ou quando o diretor no esconde que o que se v na tela no passa de pura encenao, fazendo com que os personagens olhem para a cmera quebrando a regra bsica do cinema narrativo. Dentre os cineastas expressionistas, fica patente em Murnau sua inteno de ver os filmes enquanto locais de experimentao, seja ela narrativa ou visual. O cinema expressionista alemo dos anos 1920 produziu inmeros filmes marcantes na histria do cinema; suas contribuies vo desde o uso de temas sombrios e

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fantsticos, passando pelas tcnicas de iluminao e cenrio at a estruturao narrativa dos filmes. Com a ascenso do nazismo na Alemanha, alguns dos principais nomes do movimento, como Fritz Lang e F. W. Murnau aceitaram o convite de Hollywood e foram continuar suas carreiras nos Estados Unidos, influenciando tambm os filmes americanos e, por conseqncia, os filmes feitos ao redor do planeta. Tambm nos anos 1920, outro pas mostrou-se capaz de criar uma escola cinematogrfica vanguardista de peso. A Rssia, recm sada de uma Revoluo, apresentou nomes como Sergei Eisenstein (1898 1948), Vsevolod Pudovkin (1893 1953), Dziga Vertov (1986 1954) e Lev Kuleshov (1899 1970) que, a partir de seus filmes e experincias, colaboraram no desenvolvimento da linguagem cinematogrfica. A segunda metade da dcada de 1910 foi um perodo de intensas transformaes na Rssia, que passou do regime monrquico para o socialista. Essa mudana foi, sem dvida, sentida pelas artes, que passaram a refletir esse momento histrico, negando a arte vigente no perodo dos czares e procurando desenvolver uma arte que estivesse em sintonia com as transformaes sociais propostas pela Revoluo Socialista. O principal movimento do perodo denominou-se Construtivismo Russo, caracterizado pela idia da negao de uma arte pura, um elemento especial da criao humana. Essa nova proposta esttica argumentava que as artes, como a arquitetura, a fotografia, a pintura e tambm o cinema, deveriam inspirar-se nas novas perspectivas trazidas pelas mquinas e pela industrializao, para servir a objetivos sociais e a construo do socialismo. No cinema, os temas dos filmes russos versavam sobre questes como trabalho, luta operria e toda uma srie de assuntos diretamente ligados ao socialismo, regime em vigor na dcada de 1920. O prprio governo stalinista via o cinema como uma forma eficaz de transmitir suas mensagens e apoiava seus cineastas, na busca de um cinema com contedo e linguagem diferente do praticado mundo afora. Entre os nomes supracitados, o do professor e cineasta Lev Kuleshov mais lembrado pelas experincias que realizou com o pblico, como aquela em que alternou o mesmo plano de um ator, primeiro com a imagem de um prato de sopa, depois porta de uma priso e, finalmente, a imagens de uma situao amorosa. O pblico, no percebendo que a imagem do ator era a mesma, disse primeiro ter visto a imagem do ator pensativo frente ao prato de sopa; em seguida, a imagem de seu rosto denotava tristeza, devido segunda imagem mostrar a porta de uma priso e, aps a imagem de uma situao

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amorosa, a imagem do semblante do ator sugeria alegria. Tal experincia ficou depois conhecida como efeito Kuleshov. Em outra experincia do cineasta russo, chamada corpo cinematogrfico, Kuleshov montou uma mulher a partir da imagem de diferentes partes do corpo de diversas mulheres, graas aos recursos de montagem. O espectador imaginava tratar-se de uma nica mulher cujo corpo tinha sido filmado parte por parte. Com essas e outras experincias, Kuleshov foi pioneiro em afirmar e defender o uso da montagem como a principal habilidade que um cineasta deveria desenvolver, para conquistar o pblico. Segundo ele, no cinema o que importa a maneira como a seqncia de imagens montada, ou seja, que a montagem tem um peso maior para o espectador do que at mesmo as prprias imagens, que so, afinal, a matria-prima a ser lapidada para se converter em algo que transmita algum tipo de emoo ao espectador. De acordo com Porter-Moix (1968, p. 95), Lev Kuleshov ao lado de Dziga Vertov pueden, en verdad, ser considerados como los padres de uma nueva forma expresiva. Realizadores, tericos y pedagogos a un tiempo, cimentaron la obra de muchos e influyeron en las realizaciones de todava ms. Alm de Kuleshov e Vertov, Sergei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin contriburam decisivamente para tornar o cinema sovitico conhecido e respeitado. Seus filmes e escritos tericos sobre questes pertinentes montagem cinematogrfica sero apresentados no segundo captulo deste trabalho que trata especificamente de montagem.

3. A passagem do cinema mudo para o cinema sonoro O som constitui-se elemento de extrema importncia no cinema; desde a fala dos personagens at a msica, passando pelos mais diversos tipos de rudo, os filmes apiamse muito nos recursos sonoros. Mesmo na poca do cinema mudo, quando o som era externo imagem, o acompanhamento musical feito por uma vitrola, orquestra ou pianista, acentuava as caractersticas dramticas da imagem. Com o advento do cinema sonoro, a importncia do som junto s imagens s aumentou. Sabe-se que no incio do cinema no havia a possibilidade tcnica de se acoplar o som na pelcula, fato que ocorreu somente em 1927, quando a produtora americana Warner Bros. decidiu lanar um filme falado, O Cantor de Jazz (1927) num misto de ousadia e desespero, pois se encontrava beira da falncia.

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O cinema mudo teve, portanto, quase trinta anos para se desenvolver; da a desconfiana de certos cineastas e tericos em relao aos filmes sonoros1. Acreditava-se que o cinema no necessitava da fala para se expressar, em parte porque a msica tocada por pianistas nas prprias salas de cinema j era suficiente para o pblico, e tambm pelo domnio conquistado pelos cineastas das tcnicas cinematogrficas, principalmente o primeiro plano ou close-up, considerado por alguns tericos um genuno recurso da linguagem do cinema. Para o cineasta e terico francs Jean Epstein (1974, p. 271), o close-up possibilitava ao espectador de cinema chegar aonde nenhuma outra arte poderia lev-lo:Nenhuma rampa entre o espetculo e o espectador. No olhamos a vida; penetramo-la. Esta penetrao nos permite todas as intimidades [...] o milagre da presena real, a vida manifesta, aberta como uma bela rom, descascada, assimilvel, brbara. Teatro da pele.

O close-up cria no cinema o que o terico francs batizou de esttica de proximidade, ou seja, o elemento para se ver o mundo de perto, perscrutando cada centmetro dele, no h mais distncia entre o espectador e o espetculo, segundo Epstein (1974, p. 270) no olhamos a vida, ns a penetramos. Epstein chega a citar o uso do binculo no teatro para colocar a pessoa mais prxima da ao; o cinema j traz esse binculo embutido e capaz de aumentar ainda mais a dimenso de tudo que passa pela lente cinematogrfica. Bela Balzs foi outro terico que se debruou sobre as caractersticas do primeiro plano. Essa soluo unicamente cinematogrfica tinha um poder extraordinrio de mostrar o que nenhuma arte antes tinha conseguido mostrar, a face humana e sua caracterstica mpar de comunicao. A literatura podia at entrar na mente de seus personagens, mas s o cinema tinha a capacidade de mostrar o que estava se passando na mente pela face do personagem. Em A face do homem, Balzs (1923) mostra como o close-up de um rosto humano tem ainda mais subjetividade do que a fala, pois esta, muitas vezes, est limitada a uma srie de regras e convenes da lngua materna de cada um. atravs do close-up de um rosto que o espectador descobre o mais ntimo do ator e o que ele pretende expressar, ao1

Os filmes passaram a ser chamados de filmes sonoros, quando se conseguiu gravar o som nas pelculas cinematogrficas, dispensado o uso de msica ambiente produzida por uma orquestra ou pianista que acompanhava a projeo dos chamados filmes mudos. Oficialmente o primeiro filme sonoro O Cantor de Jazz (The Jazz Singer,1927) de Alan Crosland.

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mesmo tempo em que individualiza o ser humano ao colocar apenas seu rosto na tela, o close-up tambm o universaliza, transforma esse rosto humano em referncia para o espectador, que compartilha dos sentimentos captados pelo close-up. Por ter construdo a maior parte de sua teoria nos anos 1920, Bela Balzs era um dos tericos que considerava os filmes mudos a forma de cinema mais completa, pois realizam a funo de mostrar e ampliar formas de expresso do ser humano. Assim como o pintor capta a essncia de uma paisagem em sua tela, o cinema mudo capta a essncia do sentimento humano em sua lente. Assim como os tericos e cineastas russos, Balzs acreditava que o cinema poderia se transformar em uma linguagem universal, ao utilizar algo comum a todos os seres humanos, o gesto e a expresso facial. No entanto, diferentemente de outros tericos, Bela Balzs no detratava completamente os filmes sonoros desde que o cineasta soubesse utiliz-lo de maneira a ampliar a experincia cinematogrfica e no como mero atributo, para dar maior sensao de realidade ao que se via na tela. Combinado ao drama ntimo de cada um, Balzs via o uso do som como um potencializador desse drama, por meio do uso do monlogo interior, muito discutido e buscado por Eisenstein. Portanto, se o som tivesse que se tornar parte do filme, deveria ser usado para acentuar seu carter dramtico, de acordo com Balzs (1923, p. 198-199) Apud Andrew (1989, p. 82):Apenas quando o filme sonoro transformar o barulho em um de seus elementos, separar vozes isoladas, ntimas, e faz-las falar conosco separadamente em primeiro plano vocal, acstico; quando esses detalhes sonoros isolados forem colocados de novo em ordem objetiva pela montagem sonora, ento o filme sonoro se tornar uma nova arte.

Apesar das restries de alguns tericos e de uma parte dos homens de cinema pelo som, como o caso de Charles Chaplin, que continuou a produzir filmes mudos por vrios anos aps o advento do som, os filmes sonoros rapidamente substituram os mudos e no houve outra soluo a no ser adaptar-se novidade. Cineastas russos como Eisenstein e Pudovkin viram no cinema sonoro uma possibilidade de avano da linguagem cinematogrfica, pois o som traria solues a certos problemas provocados pelos filmes mudos, alm de promover novos contedos que gerariam novas significaes no processo de montagem, de acordo com Eisenstein (1990a, p.218): APENAS UM USO POLIFNICO do som com relao pea de montagem visual proporcionar uma nova potencialidade no desenvolvimento e aperfeioamento da montagem(destaque do autor).

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Eles defendiam o uso do som de uma maneira que a imagem e o som no fossem coincidentes, ou seja, no bastava ao som ser usado como complemento da imagem, por exemplo, ouvir o som de uma batida na porta em uma cena que mostrava algum batendo uma porta, obvio e at desnecessrio, segundo os cineastas russos. O som deveria ser usado de uma maneira que criasse novas significaes imagem, em Alexander Nevsky (1938), o cineasta chega a montar seu filme de acordo com a trilha sonora - notas mais altas ou graves correspondiam a uma durao maior ou menor das imagens na tela. a chamada montagem rtmica que para Eisenstein (1990a, p. 218):

O PRIMEIRO TRABALHO EXPERIMENTAL COM O SOM DEVE TER COMO DIREO A LINHA DE SUA DISTINTA NO-SINCRONIZAO COM AS IMAGENS VISUAIS. E apenas uma investida deste tipo dar a palpabilidade necessria que mais tarde levar criao de um CONTRAPONTO ORQUESTRAL das imagens visuais e sonoras (destaque do autor).

Colocando-se de lado esse uso mais experimental do som, inegvel que sua simples adio imagem fez dela um elemento que transmitia maior realismo, estava, portanto, mais prximo do mundo que procurava representar. O prprio cinema mudo em seu ocaso j tentava desesperadamente introduzir o som na imagem, por meio dos primeiros planos de objetos, cortes rpidos; o cinema mudo no tinha outra soluo a no ser ganhar som. O prprio silncio ganhou mais importncia com o cinema sonoro, que passou a ser utilizado como elemento dramtico representando a morte ou a solido de algum personagem, e ainda o som over onde um personagem poderia narrar os acontecimentos do filme, recurso muito usado nos chamados filmes negros (film noir) americanos dos anos 1930 e 40. Os rudos presentes nos filmes ajudam a enriquecer a sensao de verossimilhana da imagem; h desde aqueles considerados naturais; como o barulho do vento ou da chuva, os mecnicos, produzidos por mquinas e automveis; e as palavras-rudo, como a lngua que os personagens falam nos filmes, contendo uma musicalidade natural. Por isso melhor legendar do que dublar os filmes - para conservar sua autenticidade sonora. Os rudos podem tambm ser utilizados de maneira realista, para enfatizar as imagens na tela, assumir uma caracterstica dramtica, como, por exemplo, homens trabalhando em uma fbrica onde o rudo das mquinas pode representar um estado de explorao dos seres humanos e at como metforas.

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Em Um homem com uma cmera, o giro da manivela da cmera substitudo pelo rudo das rodas de uma locomotiva, estabelecendo uma relao metafrica sonora entre a cmera (meio de expresso), e o trem (meio de transporte), segundo Porter-Moix (1968, p. 132):Existe un aspecto muy importante en la cinta que quizs no ha sido debidamente calibrado: El hombre com l cmara pide, exige la aparicin del sonoro. Vertov, el apasionado buscador de la verdad, ha llegado al virtuosismo en el uso de sus mdios.

A utilizao no-realista dos rudos funciona como um contraponto do som em relao imagem. Seu uso muitas vezes mais complexo, porm produz resultados mais interessantes esteticamente, como no exemplo citado por Marcel Martin no filme Milagre em Milo (Miracolo a Milano, 1950), de Vittorio De Sica, onde segundo Martin (1963, p. 101) as palavras de dois capitalistas ferrados na disputa da propriedade de um terreno se transformam pouco a pouco em latidos. Finalmente, a msica que estava presente desde o cinema mudo o grande elemento sonoro agregado aos filmes; ganhou maior legitimidade quando foi pensada como mais uma pea necessria na construo do filme, como a iluminao, os planos e angulaes de cmera. De acordo com Martin (1963, p. 108), a msica no deveria agir seno como totalidade e no se limitar a dobrar, amplificar os efeitos visuais. Como todos os outros elementos constituintes de um filme, a msica, o som em geral e os rudos no tm um uso pr-determinado, que no pode ser alterado; como exemplo pode-se citar uma msica que parece funcionar apenas para encher as imagens, acentuando suas caractersticas dramticas ou cmicas. Por outro lado h tambm aquele tipo de msica cuidadosamente pensado para despertar um significado maior na imagem. Pudovkin chega a dizer que a imagem deve dar conta dos aspectos objetivos, enquanto a msica deve se ocupar dos subjetivos. J Eisenstein fala sobre o contraponto audiovisual, em que imagem e msica devem ser pensadas em conjunto, e melhor ainda se a criao da msica preceder a criao das imagens, ou montar o filme com a msica j pronta e no o contrrio. Outra abordagem possvel na relao do som com a imagem a proposta por Gilles Deleuze, em que o sonoro tambm ganha sua maturidade e independncia, alcanando a mesma importncia da imagem. Para isso Deleuze (1990, p. 319) cita o cineasta alemo Hans Jurgen Syberberg, em cujos filmes freqente o choque entre corpo e voz, agente e enunciado:

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E um aspecto essencial da obra de Syberberg, pois a disjuno, a diviso do visual e do sonoro vo ser precisamente incumbidas de exprimir esta complexidade do espao informtico. ela que tanto supera o indivduo psicolgico quanto torna possvel um todo.

Deleuze cita os exemplos de um corpo feminino falando com voz masculina e viceversa, ou ainda uma voz que sai de uma boca que no fala; a imagem sonora nunca se reconcilia com a imagem visual, elas correm em paralelo chocando-se e misturando para depois se separarem novamente. Se for inteno do cineasta, a audio pode ser o sentido que comanda o ritmo e o fluxo das imagens que se conectariam ao crebro do espectador, pois o ouvido capaz de fazer a mente trabalhar de maneira matemtica, digital, ligando e desligando de acordo com o som que ouve, enquanto a viso trabalha de maneira analgica, relacional, em que a durao de uma imagem depende do quanto de informao nova essa imagem traz para nossos olhos, conseqentemente para a mente. A msica, os rudos, todo o aspecto sonoro do filme devem ter um propsito definido; como a escolha de um plano, que deve agir de modo que seja indispensvel ao entendimento do filme. O mesmo deve ocorrer com o som; uma nota musical, um rudo tem que contribuir no processo de significao e entendimento de um filme. Aps a consolidao do filme sonoro, o passo seguinte a ser dado seria a adoo do filme em cores, fato buscado desde o advento do cinema, mas que s se tornou confivel e satisfatrio na metade da dcada de 1930, pois at ento todas as experincias com filme colorido que tinham sido tentadas mostraram-se um fiasco. O primeiro sistema a apresentar imagens coloridas de boa qualidade foi o Technicolor, usado pela primeira vez no filme Vaidade e Beleza (1935), de Rouben Mamoulian. Sobre a adeso das cores nos filmes escreve Eisenstein (1990b, p. 58):

(...) a cor foi muito (e ainda ) usada para decidir a questo da correspondncia pictrica e sonora, seja absoluta ou relativa e como uma indicao de emoes humanas especficas. Isto certamente ser de extrema importncia para os problemas e princpios da imagem visual. (grifo do autor).

Ainda de acordo com o cineasta russo, preciso haver uma tamanha correspondncia entre cor e msica para que ambas se integrem de tal forma que seria impossvel existirem separadas, o cineasta batiza tal unio de montagem cromofnica, ou montagem colorido-sonora. Entusiasmado, Eisenstein (1990b, p. 59) exclama: Remover

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as barreiras entre viso e som, entre o mundo visto e o mundo ouvido! Realizar uma unidade e uma relao harmoniosa entre estas duas esferas opostas. Que tarefa absorvente!. A questo da presena ou no de cores em um filme levanta outro fator de extrema importncia no desenvolvimento da linguagem cinematogrfica, que o da iluminao. A pelcula de cinema precisa de uma quantidade considervel de luz, para registrar satisfatoriamente a imagem; alm disso, quando analisado seu papel na produo de um filme, nota-se o quo decisivo seu emprego, devido ao fato de a luz ajudar na construo do drama cinematogrfico. A iluminao se faz essencial na criao de sentido da imagem; um trabalho de luz bem realizado acrescenta nuances dramticas a um filme. O prprio espao em que a ao se desenvolve ganha contornos mais definidos, possvel explorar o quadro da imagem de maneira mais profunda, criar uma atmosfera mais realista ou mais onrica; segundo Ernest Lindgren, (1948) Apud Martin (1963, p. 49-50) a iluminao (...) serve para definir e moldar os contornos e os planos dos objetos, para criar a impresso de profundidade espacial, para produzir uma atmosfera emocional e mesmo certos efeitos dramticos. Com a produo atual de filmes em preto e branco reduzida quase a zero, a iluminao nos filmes em cores tambm um trabalho minucioso e no menos importante; o que acontece quando se tem cores buscar uma iluminao muito prxima da luz natural, para que o espectador tenha na tela de cinema a caracterstica sensao de uma realidade construda. Outro caminho que a iluminao pode adotar nos filmes coloridos iluminar um ambiente demais, para produzir uma imagem saturada, ou buscar iluminar o menos possvel, para que se tenha uma imagem em um tom mais pastel, mais frio. Qualquer direo que se adote faz parte do desejo do cineasta de criar elementos que contribuam na narrativa do filme, e tambm no h regras especficas para se usar a iluminao; o que parece ser importante procurar desenvolver novas idias na criao de um filme e entusiasmar-se, como Eisenstein, na tarefa de remover quaisquer barreiras que impeam que cor e som se unam de maneira harmoniosa. Retornando questo do elemento sonoro na linguagem cinematogrfica, percebese que esta se encontra embasada tanto em seu componente visual quanto em seu componente auditivo, pois o som complementa a imagem e auxilia no processo de fruio de um filme. H casos em que partituras compostas para um filme se tornam to

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imprescindveis dentro da narrativa que, se o espectador a ouve em outro contexto, imediatamente lembra-se do filme. Em outras situaes, a retirada do som pode fazer com que determinada cena perca grande parte de seu impacto, evidenciando o grau de complementaridade que deve existir entre o elemento sonoro e o visual em um filme.

4. Cinema ps II Guerra Mundial

Deve-se reconhecer a supremacia do cinema hollywoodiano no perodo entre guerras, no por acaso chamado Perodo de Ouro, e como ele se profissionalizou no momento em que os pases europeus enfrentavam dificuldades econmicas, perodo que durou da metade da dcada de 10, com a I Guerra Mundial, at a metade dos anos 40, que trouxe o fim da II Guerra Mundial. Porm, com o trmino dos conflitos nos principais pases europeus, suas cinematografias comearam a se reerguer, produzindo movimentos que mudariam o modo de se fazer cinema ao redor do planeta; os mais conhecidos, que mais frutos renderam, foram o chamado Neo-realismo italiano, a partir de 1945, e a Nouvelle Vague francesa, no final dos anos 50. O cinema brasileiro tambm contribuiu com um movimento nos anos 60, o Cinema Novo. Inspirado pelos movimentos italiano e francs lanou cineastas, como Glauber Rocha e Nlson Pereira dos Santos, que, juntamente com os filmes de outros cinemanovistas, colocaram o Brasil entre as principais cinematografias do mundo na poca. Os filmes do ps-guerra no se estruturam mais no que Deleuze chamou de imagem-movimento, ou seja, filmes em que as situaes devem mostrar uma relao de causa e conseqncia, em que os personagens tm objetivos definidos a cumprir, os filmes passam a ser compostos, novamente segundo Deleuze (1990, p. 323), de imagem-tempo; os personagens no tm que agir ou reagir a nada, ocorre a predominncia de situaes e espaos vazios, sem um sentido claro e definido:

De repente as situaes j no se prolongam em ao ou reao, como exigia a imagem-movimento. (...) a personagem no sabe como responder, espaos desativados nos quais ela deixa de sentir e de agir, para partir para a fuga, a perambulao, o vaivm, vagamente indiferente ao que lhe acontece, indecisa sobre o que preciso fazer.

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O desenvolvimento tecnolgico de equipamentos, principalmente de cmeras portteis, um fator a ser considerado na passagem de um cinema mais interessado em representar e trabalhar o tempo do que a ao, pois permitiu que a produo de um filme ganhasse maior agilidade e no ficasse to presa dentro dos estdios de filmagem. Essa suposta liberdade, tanto na rea tecnolgica quanto na artstica, foi o que os movimentos italiano, francs e brasileiro, a serem discutidos em seguida, mais buscou demonstrar em seus filmes.

4.1. Neo-realismo italiano e Nouvelle Vague francesa

O ano que determinou o trmino da II Grande Guerra foi tambm o ano de lanamento do filme considerado o marco inicial do neo-realismo italiano, Roma Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, que apresentava um estilo documental, utilizando-se inclusive de imagens feitas durante os conflitos acontecidos na capital italiana durante os anos de guerra e a atuao da Resistncia italiana. Segundo Guy Hennebelle (1978) Apud Fabris (1996, p. 124) o neo-realismo italiano foi historicamente a primeira afirmao coerente de um cinema tipicamente nacional com vocao popular e tendncia progressista. Os anos seguintes trouxeram filmes como Pais (1946), tambm de Rossellini, Ladres de bicicleta (1948), de Vittorio de Sica, O caminho da esperana (1950), de Pietro Germi, que enfocavam os problemas sociais do momento, como o desemprego, a desestruturao das famlias no ps-guerra, a delinqncia, a reconstruo do pas, entre outros. Os filmes neo-realistas tinham como suas principais diferenas em relao aos filmes hollywoodianos a questo de no utilizarem cenrios, os filmes feitos quase que totalmente em locao e os atores utilizados no eram profissionais. Muitas vezes as histrias contadas nos filmes tinham sido vividas pelas mesmas pessoas que as interpretavam na tela; os realizadores buscavam chegar o mais prximo possvel da realidade italiana daquele momento, de acordo com Deleuze (1990, p. 319):

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O real no era mais representado ou reproduzido, mas visado. Em vez de representar um real j decifrado, o neo-realismo visava um real, sempre ambguo, a ser decifrado; por isso o plano-seqncia tendia a substituir a montagem das representaes.

Esse despojamento, tanto da narrativa quanto da tcnica cinematogrfica, foi possvel tambm pelo fato de os cineastas serem oriundos do documentrio e quererem apontar quais caminhos o pas deveria seguir daquele momento em diante. Era a poca de reconstruir o mundo por meio da arte, especialmente do cinema. Posterior ao Neo-realismo, o movimento da Nouvelle Vague, surgido no final dos anos 50, apresentou fora e influncia sobre outras cinematografias, to grande quanto aquela demonstrada pelos italianos. O termo em francs pode ser traduzido como nova onda, pois, como o cinema Neo-realista, buscava renovar a linguagem cinematogrfica praticada at aquele momento. De acordo com Deleuze, (1990, p. 18) a Nouvelle Vague francesa no pode ser definida se no se tenta ver como ela refaz por conta prpria o caminho do neo-realismo italiano, ainda que tambm seguisse outras direes. O principal expoente deste movimento Franois Truffaut, surgido nas pginas da prestigiosa revista francesa de cinema Cahiers du Cinema como crtico, que depois tornouse diretor de filmes. Ao lado de colegas da revista que seguiram o mesmo caminho como Jean-Luc Godard e Eric Rohmer, Truffaut comeou sua carreira de crtico de cinema atacando os filmes de seu pas que, segundo ele, no possuam qualquer trao de originalidade, uma vez que se calcavam nos filmes norte-americanos. Truffaut defendia um cinema de autor sem influncia dos estdios ou produtores. O diretor seria como o escritor de um livro, cabendo a ele a funo de roteirizar, dirigir e montar o filme; a personalidade do cineasta e sua viso sobre a sociedade deveriam transparecer na obra como um todo, segundo Gillain (1990, p. 40-41):Para ns o importante nossa maneira de ver a vida, falar sobre o que conhecemos. verdade estereotipada, marca do cinema francs, ns tentamos opor nossa prpria verdade pessoal. (...) Quando no sabemos fazer uma coisa, fazemos uma elipse, s filmamos o que acreditamos ser interessante e o modo da ao que julgamos poder dominar.

Em 1959, so lanados Os incompreendidos e Acossado, respectivamente as estrias de Truffaut e Godard na direo de filmes. Ambos apresentam personagens marginalizados pela sociedade, tema tambm muito presente nos filmes do Neo-realismo.

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Alm disso, os filmes utilizavam muitas locaes externas e, no caso particular do filme de Truffaut, atores no-profissionais. Acossado pode ser visto como uma releitura dos filmes de gangster americanos, pois retrata um criminoso parisiense que tem um caso com uma garota americana e constantemente perseguido pela polcia. O grande atrativo do filme so seus cortes rpidos, pouco comuns para a poca, e a constante afirmao de que tudo que o espectador est assistindo no passa de um filme. O diretor queria que o pblico se envolvesse com a histria, no por ela ser perfeitamente narrada com incio, meio e fim, mas pelo seu contrrio, pelo seu grau de transgresso linguagem dos filmes produzidos na poca. O primeiro filme de Godard exemplifica o que ele procurou desenvolver em todos os seus outros filmes, de acordo com Deleuze (1990, p. 22): Tanto de um lado quanto de outro, a descrio tende para um ponto de indiscernibilidade do real e do imaginrio. A partir de ento, surgiram novos diretores empolgados com a possibilidade de fazer um cinema mais barato e autoral, e mesmo diretores com alguns filmes no currculo aderiram ao movimento, em busca de maior liberdade e possibilidades de desenvolvimento da linguagem cinematogrfica. Entre estes estava Alain Resnais que ainda em 1959 entregou o filme Hiroshima, meu amor, considerado um dos melhores do movimento, cuja ousadia de linguagem foi reconhecida internacionalmente. No filme, o passado e o presente se misturam como nunca antes havia sido feito na histria do cinema, no se tratava de um cinema de ao-reao, mas sim de um cinema de memria, a memria o tema manifesto da obra de Resnais (DELEUZE, 1990, p. 247). O que se pode retirar dessa breve descrio sobre o Neo-realismo e a Nouvelle Vague a maneira como seus filmes procuraram deixar de lado o modo de se fazer cinema vigente naquele momento, tanto pelo seu contedo, trazendo tona filmes que refletiam o momento histrico, as questes sociais, quanto pela forma, em que se buscou narrar as histrias fugindo da clssica maneira do incio, meio e fim. Esse novo modo de fazer cinema influenciou uma gerao inteira no cinema brasileiro e criou aquele que , at hoje, o mais respeitado e conhecido movimento cinematogrfico gerado por aqui, o Cinema Novo.

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4.2 Cinema Novo brasileiro

Alm da influncia temtica buscando temas sociais, o movimento do Cinema Novo inspirou-se no modo de produo dos filmes do Neo-realismo, que tinham praticamente abolido a filmagem em estdio, em favor das locaes externas, a utilizao do mnimo possvel de equipamentos como iluminao e tambm o uso de atores noprofissionais. Os cineastas que se engajaram nesse movimento buscavam uma maneira de realizar seus filmes, fugindo do esquema de estdios nacionais, como a Vera Cruz, que seguiam o modelo hollywoodiano de produo; segundo Ramos (1990, p. 302) o Cinemanovo se constitui como grupo enquanto oposio ao esquema industrial da produo cinematogrfica desenvolvida em So Paulo nos primeiros anos da dcada de 1950. O primeiro filme Cinema-novista Rio 40 graus, dirigido por Nlson Pereira dos Santos, surgiu em 1955 e foi o primeiro a mostrar, de modo franco e direto, o tema da pobreza no cinema brasileiro. Para Jean-Claude Bernardet (1967, p. 32), o filme lanou "o tema da criana favelada no cinema brasileiro: os engraxates favelados, ora tristes, ora alegres, eram o verdadeiro centro dessa sociedade mltipla retratada pelo filme, bem como sua vtima indefesa". Em 1957, o mesmo Nlson Pereira lana Rio zona norte, um tipo de continuao de Rio 40 graus, em que prevalecem as lies neo-realistas; em So Paulo; o cineasta Roberto Santos produz O grande momento (1958), histria dos preparativos de um casamento no bairro do Brs, habitado por trabalhadores de fbrica e imigrantes italianos. Da mesma maneira que os filmes neo-realistas, os primeiros filmes do cinema novo interessavam-se por personagens do povo e sua luta frente ao desemprego, preconceitos e excluso social, para Ramos (1990, p. 306):Esta contraposio brusca povo-burguesia, cercada de elementos ficcionais armados detonar a compaixo do espectador, vai se repetir de forma marcante em filmes de toda a primeira fase do Cinema-novo, e constitui, a nosso ver, a forma caracterstica com que a representao do popular se dispe na narrativa em forma de fico.

O grande nome do Cinema Novo e, por conseqncia, do cinema brasileiro como um todo Glauber Rocha. Sua atuao tanto na direo de filmes quanto na luta pelo desenvolvimento de um cinema nacional genuno, leia-se, sem a influncia do cinema de Hollywood, notria. Seu primeiro curta-metragem O ptio (1959) servia-se das

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caractersticas

neo-realistas,2

mas,

seguindo

o

iderio

modernista

brasileiro,

antropoformizava o movimento italiano para, ento, produzir um filme essencialmente brasileiro. Deus e o diabo na terra do sol (1963) considerada a obra-prima de Glauber Rocha; o filme retrata a luta de um sertanejo nordestino contra uma paisagem inspita e contra um grupo de cangaceiros. O filme causou sensao nos principais festivais de cinema do mundo, principalmente em Cannes, na Frana, graas a sua linguagem que apresentava enquadramentos e movimentos de cmera estilizados, montagem fragmentria com idas e vindas na narrativa e uma grande dose de alegoria e discusses polticas, tema favorito do cineasta, segundo Mota (2001, p. 49):

Sobre essa falta de acabamento do produto, que leva o espectador a uma coautoria do filme, Avellar cita a cena do massacre em Deus e o diabo na terra do sol, cuja rapidez dos movimentos na tela impede a reteno de um mnimo de informaes visveis. Esse intervalo da cmera, que muda a angulao sem corte, inclui os restos de um mundo desenquadrado, deixando o vazio imaginao dos que vem o filme, impelidos a preencher a falta. Glauber coloca na tela um material bruto para que o realizador na platia o transforme em filme.

O filme seguinte de Glauber Rocha, Terra em Transe (1967), tambm aclamado no Festival de Cannes, onde recebeu o prmio da crtica, investe ainda mais em questes polticas e mostra um cinema mais autoral, reflete mais a Nouvelle Vague do que o prprio Neo-realismo, apresentando a histria de um jornalista que combate dois polticos corruptos, um populista e outro conservador, em um fictcio pas chamado Eldorado. O Cinema Novo contou ainda com outros cineastas, entre os quais vale destacar Paulo Csar Saraceni, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves, Cac Diegues, que fizeram o cinema brasileiro conhecido internacionalmente pelo

reconhecimento de seus filmes em festivais de cinema mundo afora. O movimento foi perdendo fora com o final da dcada de 60 e a instalao da ditadura militar em 1964; portanto aqueles que quisessem continuar fazendo cinema precisaram se adaptar (para dizer o mnimo) aos novos tempos Embrafilme e censura militar. O que parece ter ficado do movimento foi a disposio de construir um cinema prprio para o pas, recebendo sim, influncias externas, mas no se prendendo a elas, como se no Brasil se fizesse uma simples cpia do melhor ou do pior do cinema estrangeiro. A gerao do Cinema Novo colocou o Brasil no mapa da produo2

Grifos nossos.

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cinematogrfica mundial e contribuiu para que novas geraes de cineastas se formassem nas dcadas seguintes.

4.3 Cinema americano independente

A dcada de 1970 viu nascer nos Estados Unidos uma gerao de jovens diretores, que comeavam a produzir seus primeiros filmes influenciados principalmente pela Nouvelle Vague e seu cinema de autor. O impacto do cinema europeu sobre os cineastas americanos, e a posterior decadncia do sistema de grandes estdios, em que as grandes estrelas tinham um contrato de tempo e no a cada filme em que atuavam, foram as duas linhas de fora que, durante as dcadas de 60, 70 e 80, fizeram mudar o estilo do cinema americano. Uma nova gerao de cineastas acabou surgindo sob a influncia das tendncias europias, principalmente a Nouvelle Vague e nomes como John Cassavetes, Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, para citar alguns dos mais reconhecidos pela crtica internacional, comearam a dar novos ares ao cinema norteamericano. De acordo com Couto (1991, p. 65):A fantasia, que durante dcadas tinha sido o principal sustentculo no s de Hollywood (fbrica de sonhos) como de toda indstria cultural, foi sumariamente banida deste cinema, ou quando nele apareceu, serviu no mais das vezes como alvo de sarcasmo ou ironia (notadamente no Altman pr-Popeye) e no primeiro Woody Allen.

O interessante no caso dos cineastas americanos desse perodo que conseguiram fazer uso da chamada mquina hollywoodiana - to temida por alguns cineastas com medo de venderem suas almas para realizarem seus filmes. Os filmes comearam a receber um tratamento mais autoral, experimental, assuntos polticos no eram contornados e se tornaram parte e motivo de inmeros filmes, que buscavam para Couto (1991, p. 65) traar um impiedoso retrato da Amrica como um mundo insano, corrupto e violento. Os cineastas estavam dispostos a imprimir marcas pessoais em seus trabalhos, o pblico passou ento a ir ao cinema no somente em busca de uma estrela conhecida, mas tambm

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de filmes de diretores conhecidos. o caso de Stanley Kubrick, diretor de 2001 uma odissia no espao (1968) e Laranja mecnica (1971). Os filmes de Kubrick apresentavam um extremo cuidado tcnico e quase sempre lanavam alguma novidade, como o caso da steady-cam cmera acoplada ao corpo do cinegrafista, que permitia acompanhar os personagens de um modo mais fludo e dinmico usada pela primeira vez em O iluminado (1980). Alm de reconhecido por seu domnio das tcnicas do cinema, o cineasta britnico, que construiu sua carreira nos Estados Unidos, tornou-se, de acordo com crticos e tericos, um dos grandes autores do cinema mundial. Para Deleuze (1990, p. 246), o cinema de Kubrick um cinema muito mais do crebro que do corpo:Se considerarmos a obra de Kubrick, vemos a que ponto o crebro que encenado. As atitudes corporais atingem um mximo de violncia, mas dependem do crebro. que, em Kubrick, o prprio mundo um crebro, h identidade do crebro e do mundo (...).

O nova-iorquino John Cassavetes iniciou sua carreira margem de Hollywood e permaneceu nela por toda sua vida, trabalhando como ator em filmes de estdio para poder financiar seus prprios roteiros. Suas obras trouxeram ao cinema americano o homem comum que no se transformava em um heri no decorrer do filme, mas que permanecia preso s suas limitaes, suas histrias costumeiramente falavam de relaes desgastadas pelo tempo e de amores que se deterioram. Como tambm era ator, Cassavetes ensaiava a exausto seus roteiros. Seus filmes so muitas vezes acusados de serem teatro filmado devido s temticas girarem em torno de poucos personagens e seus problemas, no entanto, residia neste ponto a fora de seu cinema. Segundo Deleuze (1990, p. 231), a exigncia de um cinema dos corpos: a personagem fica reduzida a suas prprias atitudes corporais, e o que deve sair disso o gestus, isto , um espetculo, uma teatralizao ou dramatizao que vale para toda intriga. Seu primeiro filme Shadows (1959) que conta a histria de amor entre uma jovem negra e um rapaz branco que tem que enfrentar a rejeio de suas famlias para viverem seu caso de amor. Neste filme esto presentes os elementos que viriam a ser a marca de seu cinema e influenciariam outros diretores americanos, produo modesta, elenco reduzido e tema controverso.

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Faces (1968), considerado por crticos seu melhor filme, trata das insatisfaes da classe mdia americana e a falncia da instituio familiar, a partir de uma trama de troca de casais, com destaque para o trabalho dos atores centrais, entre eles sua esposa Gena Rowlands. Nesse filme, Cassavetes trabalhou cuidadosamente o close, extraindo as emoes e angstias de seus personagens. O diretor morreu em 1989 com uma filmografia de 12 longas-metragens tratando sempre de personagens cujas grandes faanhas era encontrar um sentido para suas vidas. Outro nome importante o de Martin Scorsese que, a partir dos anos 70, dirigiu inmeros filmes, transformando-o tambm em um diretor-autor. Seu primeiro trabalho a chamar a ateno foi Caminhos perigosos (1973) que, de acordo com Kael (1994, p. 85):

Um original verdadeiro e um triunfo do cinema individual. Este filme sobre a experincia de quem se criou na Little Italy em Nova York tem um ritmo perturbador e episdico, e de uma sensualidade estonteante. O diretor Martin Scorsese mostra-nos uma podrido de textura mais densa do que jamais vimos em um filme americano e um maduro senso de maldade.

Outros importantes filmes de Scorsese so Txi driver (1976) e Touro indomvel (1980), alm de vrios filmes que tinham a mfia como tema, destacando-se Os bons companheiros (1990). Os temas caros a Scorsese so a religio catlica, devido sua descendncia italiana, a simpatia e o uso de anti-heris especialmente os mafiosos a violncia e suas conseqncias. Um diretor a tambm trabalhar com temtica mafiosa foi Francis Ford Coppola que, de acordo com muito crticos cinematogrficos, entregou o filme definitivo sobre o assunto, O poderoso chefo (1972). A saga da famlia Corleone teve continuao com O poderoso chefo parte II (1975) e O poderoso chefo parte III (1990), que se constituram talvez no maior painel feito sobre a vida de uma famlia contempornea, mafiosa ou no, nas ltimas dcadas. Nos trs filmes esto presentes os mais variados temas, como traio, perdo, fracasso, sucesso, que, de acordo com tericos, uma analogia da vida poltica americana dos anos 70 aos 90. Coppola no investiu somente nos filmes sobre personagens da mfia, ele tambm dirigiu, roteirizou e produziu Do fundo do corao (1982), sobre a vida de um casal em uma Las Vegas idlica. Esse filme foi o primeiro a usar tcnicas de vdeo, em sua produo, e tcnicas de edio digital, em sua ps-produo. Alm das inovaes tcnicas, o filme marcou os anos 80 por certo resgate ao tema da fantasia no cinema americano,

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porm um tipo de fantasia menos ingnua do que aquela encontrada em filmes dos anos 50, segundo Couto (1991, p. 66):Ao recuperar e elevar a um nvel superior a equao fantasia-realidade, sua importncia comparvel dos raros filmes que conseguem, de quando em quando, resumir criticamente toda a cinematografia que lhes anterior e ainda apontar para novos caminhos.

Em meio a este ncleo do cinema autoral e poltico dos anos 1970, vrias obras e realizadores merecem destaque. Filmes polticos eram realizados em diversos lugares do mundo, mas surpreendentemente Hollywood tambm demonstrava grande interesse neste tipo de produto algo que habitualmente era deixado de lado em prol da diverso. Pode-se destacar, entre os principais filmes que se utilizaram dessa viso, alm do supracitado Taxi Driver, de Martin Scorsese, a comdia satrica M.A.S.H. (1970), de Robert Altman e Apocalypse Now (1979), de Coppola, que retrata a loucura da guerra do Vietn. No entanto, em meio a esse cinema autoral e poltico, Hollywood no poderia deixar de gerar cineastas que produzissem um cinema considerado de entretenimento, mas que nem por isso deixavam de imprimir sua personalidade, como o caso de Steven Spielberg e George Lucas, os mais bem sucedidos nessa seara. A seu modo, Spielberg e Lucas viriam a transformar novamente o cinema, colocando-o em um status necessariamente paradoxal quele encontrado nos primeiros anos da dcada de 70: o de simples entretenimento, sem qualquer inteno intelectual, e despretensioso no tocante utilizao do cinema como alimentador de idias e reflexes. Tubaro (1975), de Spielberg, e, principalmente, Guerra nas Estrelas (1977), de George Lucas, so os melhores exemplos de um retorno de Hollywood ao cinema de entretenimento. Dentro dessa diversidade, preciso registrar uma trilogia realizada pelo norteamericano Godfrey Reggio, chamada de Trilogia Qatsi, composta pelos filmes Koyaanisqatsi (1983), Powaqqatsi (1988) e Naqoyqatsi (2002), ttulos incomuns que, na linguagem indgena hopi, significam respectivamente vida fora de balano, vida em transformao e vida como uma guerra. Os trs filmes procuram retratar a influncia, tanto no aspecto positivo quanto no negativo, que o homem tem causado em seu planeta e, para tanto, no utilizam personagens ou qualquer tipo de narrao, somente imagens que vo sendo apresentadas ao espectador, procurando envolv-lo para refletir sobre tais imagens. Koyaanisqatsi, o primeiro filme da trilogia, ser tema de anlise mais aprofundada no terceiro captulo deste trabalho.

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Nos anos 1990, a linguagem cinematogrfica receberia um novo componente, a produo de filmes em suporte digital, vinda de um movimento oriundo de um pas at ento sem grandes tradies cinematogrficas, a Dinamarca. Foi nesse pas europeu que surgiu o movimento batizado de DOGMA 95, que como no poderia deixar de ser, causou polmica com seus filmes e manifesto e vem aos poucos influenciando a linguagem do cinema do incio do sculo XXI.

5. DOGMA 95 e o Cinema digital Criado por um grupo de cineastas dinamarqueses, o DOGMA 95 consistia em um grupo de 10 Leis a serem seguidas por seus integrantes, dentre essas leis, o que chamava a ateno era a busca por uma forma de linguagem cinematogrfica mais natural, privilegiava a fora da narrativa e a interpretao dos atores, deixando-se de lado certos artifcios cinematogrficos, como trilha sonora, efeitos especiais e iluminao artificial. O manifesto escrito pelos fundadores do movimento destacava:

Como diretor prometo prescindir do gosto pessoal. J no sou um artista. De hora em diante prometo no criar uma obra, j que considero o instante e a hora como mais importantes que o conjunto. Minha meta absoluta tirar a verdade dos meus personagens e de meus cenrios. Prometo faz-lo por todos os meios disponveis dentro de minhas possibilidades, custa do bom gosto e de toda considerao esttica Kelley, (2001) Apud Silva (2006, p. 21).

Os cineastas partidrios do movimento desejavam utilizar a novidade tecnolgica da cmera digital mini DV para questionar o tipo de filme que se fazia no momento, principalmente em Hollywood. Esse questionamento do modo de produo

cinematogrfico lembrava os movimentos cinematogrficos europeus do ps II Guerra como o Neo-realismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. A inteno era questionar os limites entre fico e realidade, procurando produzir filmes que sim, eram ficcionais, mas que contivessem o maior nmero possvel de elementos do mundo que chamamos de real. Por isso a adoo de locaes, a inteno de se usar o mnimo de equipamentos de iluminao, ou seja, ir na contramo do real simulado pela indstria cinematogrfica em direo ao que, de acordo com os criadores do movimento, seria a realidade da vida captada por suas lentes.

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Os primeiros filmes a seguirem as regras do DOGMA 95 foram Festa de famlia (1998), de Thomas Vintenberg, e Os idiotas (1998), de Lars von Trier. Ao ser apresentado no Festival de Cannes de 1998, Festa de famlia causou sensao, pois foi o primeiro filme a concorrer em um festival internacional de prestgio a ter sido totalmente rodado com uma cmera digital. O filme narra o encontro de uma famlia em um hotel, para celebrar o aniversrio do patriarca, porm o que se assiste uma sucesso de revelaes dos segredos que todos os membros escondem uns dos outros. Os idiotas apresenta a histria de um grupo de amigos que forma uma comunidade alternativa e passam a agir como deficientes mentais, com inteno de criticar a sociedade contempornea. Aqui a cmera tambm segue os personagens de maneira prxima, sem muito cuidado com enquadramentos e angulaes. Outra questo na linguagem de Os idiotas trabalhar com um tipo de depoimento direto dos personagens, para a cmera, como se fosse um documentrio, buscando um hibridismo entre o que o espectador julga como fico e o que julga como realidade; tenta fazer do suporte digital o ponto de encontro de todas as formas de representao do audiovisual contemporneo. Segundo Santos (2003) Apud Silva (2006, p. 19):

A radicalidade de Trier reside no fato de ousar dizer que sim. Quando todos acreditavam no ser mais possvel fazer arte revolucionria, o cineasta prope um cinema utpico, eminentemente poltico, de combate, justamente no terreno que o capitalismo de ponta mais deseja controlar: a esfera da tecnologia digital. Subvertendo eletronicamente as ntimas relaes que o trabalho na sociedade capitalista estabeleceu com os meios de produo hollywoodianos, rompendo a monotonia da cadncia, curto-circuitando as projees do establishment cinematogrfico, Trier mostrou que ainda h esperana.

DOGMA 95 mostrou que possvel se usar o suporte digital na produo total de um filme, pois durante longo tempo ele foi usado no cinema apenas para a criao de efeitos especiais e para alguns recursos de finalizao. Porm, aps Festa de famlia, Os idiotas e outros filmes que se seguiram, alm do constante avano tecnolgico dos equipamentos digitais em que possvel se obter uma boa qualidade de imagem, ainda que inferior da pelcula cinematogrfica, diversos cineastas ao redor do mundo passaram a produzir seus filmes neste suporte, tanto por razes estticas quanto econmicas. No que diz respeito definio, a imagem de vdeo digital aproxima-se mais da imagem de cinema do que da imagem de vdeo. Muitos filmes so agora captados em vdeo digital e depois convertidos em pelcula, a chamada kinescopagem, processo que,

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sem dvida, afeta a qualidade de definio da imagem, porm, em menor escala do que se uma imagem de vdeo fosse convertida em pelcula. A imagem de vdeo digital, no entanto, conserva outras caractersticas da imagem d