joao cutileiro

Upload: alexandre-pomar

Post on 15-Jul-2015

779 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Uma entrevista de 1999 (As flores - Homenagem a Mapplethorpe) e alguns artigos e notas sobre exposições entre 1991 e 2006, passando pelo Monumento ao 25 de Abril

TRANSCRIPT

Joo CutileiroO D. Sebastio de LagosD. Sebastio, 1973-1993 maquetas de esculturas para espaos pblicos, Centro Cultural de Lagos. Expresso/Revista 28 Agosto 1993, pp. 26-27

Vinte anos depoisPara comemorar os 20 anos do monumento a D. Sebastio, que derrubou as regras da estaturia do Estado Novo poucos meses antes do 25 de Abril, o Centro Cultural de Lagos reuniu em exposio as maquetas feitas por Joo Cutileiro para esculturas a instalar em espaos pblicos. O escndalo j foi esquecido, mas a idade no lhe pesa LAGOS celebra o aniversrio do D. Sebastio de Joo Cutileiro que se ergue na Praa Gil Eanes com uma exposio de maquetas de esculturas para espaos pblicos, em companhia de fotograas das obras executadas, quando o foram. Apresenta-se no Centro Cultural da cidade, que, por coincidncia, acolhe tambm uma segunda mostra comemorativa de outros 20 anos, os do Expresso. Para Cutileiro, a simultaneidade das exposies faz algum sentido. No por acaso que nelas se celebram os 20 anos do D. Sebastio e do Expresso - ns somos ambos precursores do 25 de Abril. Eu costumo dizer por graa que o MFA, em 73, veio ter comigo e pediume: 'fazes uma esttua controversa, pes na praa de Lagos e se ao m de seis meses ainda l estiver porque isto j est podre e ns podemos entrar'. Embora seja uma graa, tambm a realidade: tenho a impresso de que, cinco anos antes, aparecia uma grua e aquilo vinha abaixo. Vinte anos depois, o D. Sebastio no s uma esttua duplamente histrica, tambm um exemplo de como a Situao e a Oposio se enfrentavam em todos os domnios da sociedade. E era sob o primado da poltica que se opunham, em torno desse preciso monumento, o modelo institucional da estaturia e a possibilidade da inovao na escultura portuguesa. Estava-se em 1973, em Setembro de 1973, e era a presena de Amrico1

2

Thomaz que devia assinalar, entre a multido sada rua, o centenrio de Lagos. Instalada por iniciativa da Cmara, graas relativa autonomia de decises que o marcelismo permitia, a obra de Cutileiro era um dos melhores monumentos portugueses, por razes plsticas e intelectuais tambm e uma ruptura escandalosa com as regras vigentes, como escrevia Jos-Augusto Frana, aparecido em sua defesa no Dirio de Lisboa e na Colquio-Artes, antes de que se avolumassem as presses apostadas no derrube da esttua irreverente. Tratava-se, de facto, de uma pea realizada margem dos cnones com que a estaturia do Estado Novo trocara as pobres tradies naturalistas vindas de Oitocentos pela procura de uma pretensa austeridade neoclssica, bem representados por um Infante D. Henrique hieraticamente sentado em bronze logo a cerca de 500 metros, com a assinatura de Leopoldo de Almeida e data de 1960. A inovao (e no estilizao decorativa de volumes, essa tolerada) era imediatamente visvel na construo articulada com mrmores de cores diferentes, em vez do talhe de um bloco nico, no corte mecnico deixando vista as marcas dos instrumentos, em lugar do bom acabamento obrigatrio, e na ausncia do pedestal que respeitosamente elevasse a gura acima dos comuns mortais. Mais grave ainda era a gura ambgua de menino com que o rei se retratava miticamente, imberbe e inseguro, entre o sonho e o susto, anti-heri desengonado, com as mo perdidas nos guantes e o elmo desmesurado cado aos ps. Era a representao de um rei, mesmo se de um rei vencido, e a sua presena devia ser autoritria e institucional. No . E tocava-se ento em coisas srias ao revisitar o seu mito. O D. Sebastio era o smbolo da derrota de frica. Essa era uma das razes por que eu mais gostei da ideia de fazer o D. Sebastio. Se fosse outro rei qualquer, tinha de me informar historicamente, de fazer pesquisas... O D. Sebastio era j um mito, era um misto de derrota e de esperana. JOO Cutileiro vivia ento em Lagos, desde 1970 em permanncia (e estivera desde 1959 em 'navette' entre Londres e Portugal, onde descobrira um pequeno paraso na terra). J vinha de longe a ideia de fazer uma escultura para aquele local, e trs maquetas para um Pescador, de 1969, esto na exposio a prov-lo: Pensei que seria uma bonita maneira de ocupar aquele espao, que estava mesmo a pedir esttua, sem ser um Leopoldo de Almeida, ou um monumento ao Tenreiro, ou qualquer coisa do gnero. Aquela praazinha tinha-a debaixo de olho, e ofendia-me que3

fossem l meter o trabalho de outro escultor. Foi ento que surgiu a oportunidade da comemorao dos 400 anos da cidade e o convite do presidente da Cmara, Jos Figueiredo Lus, marcelista e amigo pessoal, para fazer uma medalha. Desta se passou esttua, por insistncia de Cutileiro, que praticamente a ofereceu, pagandose apenas do material e horas de trabalho. Os anos que se seguiram no envolvem ainda o D. Sebastio na imobilidade de algo j visto, integrado pela aceitao reverente do peso da histria. A surpresa pblica mantm-se perante aquele corpo inslito em gura de boneca articulada, talvez parecido, talvez imprprio de um rei ou de uma esttua, que ao mesmo tempo marca sicamente um espao e cumpre-desaa a antiga funo segurizante e sacralizadora associada ideia de monumento - no qual a grandeza da escala faz parte de um mesmo sistema simblico, ligando a imagem e o discurso numa ostensiva relao conceptual com o stio (Rosalind Krauss). Adivinha-se, por outro lado, que para a crtica do tempo, que assistia com uma distncia incomodada consagrao pelos coleccionadores de uma carreira realizada margem das correntes, o enfrentamento poltico ter permitido ultrapassar os conitos tericos que se situavam no seu prprio terreno, a respeito da inveno em escultura ou na arte em geral. Embora J.-A. Frana tivesse admitido a possibilidade de uma nova monumentalidade gurativa, a impresso que hoje se tem de que, em geral, se despejava a criana com a gua do banho. Ou seja, com aquele monumento nico, tratar-se-ia apenas de pr termo ao academismo da estaturia do Estado Novo, sem que se entendesse o renovar da tradio moderna da escultura ou a singularidade de toda uma obra. Cutileiro viria a declarar, por provocao, o seu abandono da criao artstica, passando a identicar-se como produtor de objectos decorativos para a burguesia intelectual. Pesava sobre o entendimento crtico de ento, quando se no falava ainda de ps-modernismos, uma longa sequncia de interditos que constituam a suposta evoluo modernista na escultura: a gurao, o corpo, a semelhana, a verticalidade, a marca do fabrico, a prtica artesanal, a expresso, o objecto construdo, ou simplesmente o escultural, cujo apagamento pode passar por ser o destino decisivo da escultura, numa histria de impossibilidades crescentes. Eram interditos para uma crtica talvez muito intelectual a que eu nunca liguei. Nunca achei que fossem interditos, no os sentia na pele. Para mim,4

havia coisas interditas, por exemplo, em relao estaturia do Estado Novo, pelo lado ideolgico e formal, aquelas formas que se usavam na estaturia. Havia umas pessoas mais benvolas que diziam que o [Francisco] Franco era bom e os outros que eram maus, e que faziam umas hierarquias dentro daquela porcaria toda; mas, para mim, eram todos muito maus, no havia nada de aproveitar. Nem o Martins Correia, nem o Antnio Duarte... Quando jovens, certamente que uns eram mais talentosos do que outros, mas como tinham todos optado por fazer aquele frete... Se a obra de Cutileiro retomava a tradio da estaturia, centrada na representao do corpo, a seu modo prolongando investigaes de Brancusi e de Moore, mas j sem nostalgias de um qualquer passado arcaico de formas ideais ou aspiraes a um classicismo intemporal de serena espiritualidade (Margit Rowell), uma observao mais ideolgica que atenta aos objectos no permitiria reconhecer o que de inovador surgira com os meios mecnicos de corte da pedra. De facto, ao inventar um outro processo de talhe directo, com recurso s serras elctricas, e de construo por montagem de fragmentos, Cutileiro reencontrava-se com toda a problemtica da colagem e da assemblage, transferindo-a para a pedra e para a gurao, ao mesmo tempo que inaugurava um modo de produzir escultura que substitua tcnicas condenadas pelos seus excessivos custos (a passagem do gesso a bronze, o talhe do bloco nico). Assim se viabilizava uma nova prtica da escultura e, desde logo, a sua prpria sobrevivncia como escultor - facto indito, na sua independncia do ensino e da encomenda ocial. E tambm um escndalo perante certas fatalidades portuguesas. A prpria encomenda estava vedada aos artistas. A palavra encomenda j trazia uma conotao chata: era o emprego. As pessoas em Portugal no podem gostar do trabalho de que se ganha dinheiro, faz muito parte da cultura e da mentalidade portuguesa. Ganhar dinheiro era uma chatice, ns devamos ser todos artistas e livres... Mas nunca me fez confuso ganhar dinheiro e gostar dos trabalhos que fazia. ENTRETANTO, a celebrao do aniversrio, promovida por outro escultor, Xana, de novo com o apoio da Cmara, tambm a oportunidade para observar que o D. Sebastio teve escassssima descendncia. Foram muito poucos os monumentos erguidos entretanto por Joo Cutileiro, como se, em questes de gosto ocial e de encomenda de escultura pblica, decorativa e/ou comemorativa, rapidamente se tivesse voltado mesma vontade de5

celebrar o passado com a reverncia do conservadorismo esttico, se impusesse a mesma marcao autoritria de espaos (e o formalismo abstraccionista pode faz-lo diligentemente), ou, pura e simplesmente, como se nada mudasse no que era mais simplesmente a incultura artstica. Como se comprova em Lagos, mesmo que a exposio no seja exaustiva, as encomendas foram raras entre 73 e 93, embora Cutileiro multiplicasse as suas peas monumentais em espaos privados e pblicos. Ofereci aquela, mas no poderia oferecer muitas mais. Eu no me mexo para as encomendas, mas o certo que as esttuas, os monumentos pblicos, aparecem feitos. Se calhar, em todas as sociedades assim; se lermos a autobiograa do Cellini, vemos que na Renascena aqueles meninos se envenenavam uns aos outros para sacar a encomenda. A mim, talvez por uma herana de passado antifascista, como se diz, repugna-me andar a esfregar os ombros com o poder para sacar as esttuas. H pessoas responsveis com quem tenho o maior dos prazeres em lidar, h outras que no, e eu transmito, um pouco como os ces, um cheiro que diz s pessoas que no gosto delas, e eles no me encomendam. De facto, as grandes coisas nunca vm para mim. Em Lagos, so em nmero de 19 as maquetas apresentadas, ou 14 se se descontarem as variantes de um mesmo projecto, mas em apenas oito casos se verica a passagem execuo, documentada em fotograas. E isto apesar da cronologia da exposio comear muito antes do D. Sebastio, logo em 1962, apontando com as peas iniciais duas direces constantes da obra de Cutileiro. A primeira maqueta, ainda em bronze, de uma esttua equestre pensada para o alto do Parque Eduardo VII. Trata-se do exemplo inicial de uma longa srie de cavaleiros, que, como se viu na retrospectiva de 1990, continuaram em cimento fundido e em polyester, primeiro, em mrmore, depois, a partir de 67, e mais insistentemente em 89-90, como foi a seguir mostrado em Almancil, sob o ttulo Homenagem a Paolo Uccello. Na presente antologia, o tema s regressa num Monumento a D. Afonso Henriques, j de 92, mas o certo que a designao maqueta para esttua equestre foi insistentemente usada em pequenas obras com destinos privados, expressando assim a vontade de enfrentrar um dos desaos superiores da estaturia clssica. Com a segunda das obras expostas, uma mulher reclinada, em maqueta de 68 para o Hotel do Alvor, onde o modelo clssico violentamente sujeito s fragmentaes da assemblage, abre-se a via para uma outra longa srie de esculturas desenvolvidas sem necessidade de projecto prvio. O6

mesmo, alis, suceder com os Guerreiros, peas monumentais tambm insistentemente exercitadas, de que no se mostram maquetas em Lagos. DE FACTO, esta exposio conrma que a maqueta, imposta pela encomenda, no faz parte dos processos de trabalho preferidos pelo escultor. As suas peas, na generalidade dos casos, surgem directamente em dimenso monumental sem estudos feitos em miniatura. A manufactura da maqueta uma limitao horrenda. Quando um tipo tem a maqueta aprovada d muito gozo, mas depois sinto-me um mero lacaio de mim prprio. possvel sempre alterar o projecto em andamento, mas Cutileiro entende a soluo como uma quebra de compromisso: Se aqueles senhores exigiram uma maqueta, eu tenho a obrigao moral - no digo artstica, mas moral - de apresentar uma coisa minimamente conforme a maqueta. J me aconteceu, durante a execuo, pensar que talvez outra soluo seja melhor, e ento pro a execuo, fao uma nova maqueta e vou apresent-la. Mas repete-se o problema. Uma vez aprovada, estou to limitado como antes. Outra constatao: a gura histrica s existe na obra de Cutileiro associada encomenda, e por isso rara. Descontando um ou outro retrato, contam-se apenas o D. Sebastio e um Cames de 1980, encomendado para Cascais no tempo de Vasco Pulido Valente, mais um Monumento a D. Sancho, j de 1990, em Torres Novas, e o Monumento a Jos Fontana, do mesmo ano, no jardim do mesmo nome, em Lisboa, onde um retrato gravado marca um feixe de colunas de sugesto vegetal. Em maqueta cou o referido D. Afonso Henriques, de 92, e a exposio termina com uma Ins de Castro j de 93, que outra magnca interpretao de um mito nacional. E tambm um curiosssimo exemplo da transformao que ocorre entre a maqueta e a obra terminada, quando nenhum compromisso prende o escultor: o volume inteiro do corpo ou manto real, onde, na falta de rosto, a coroa vem a assentar directamente na larga gola, acaba por dar lugar a uma assemblage de volumes articulados na pea construda. Pelo caminho esto os projectos para duas fontes monumentais, de 87 e 88, a segunda instalada na sede da Bonana, em Lisboa, obras decorativas e abstractas, tal como o so trs prticos para Macau, de 89, no executados (ttulo: Macau), e tambm o Monumento a Mrtola, de 91, instalado. Pea original e nica um Drago, de 90, previsto para o Jardim do Canal dos Patos, em Macau, uma divertida gura de animal construda em grosseiros blocos encaixados, sobre duas bases desiguais que surgem integradas no movimento da pea. Por mostrar, por agora, cou uma obra pensada para a nova sede da CGD7

sob a forma de um friso decorativo, que viria a ser cancelada em fase de corte oramental no edifcio; em alternativa surgiu a hiptese de uma pea monumental para o exterior do edifcio, mas o desenho prvio no foi aprovado. Cutileiro insistiu em executar o projecto, por sua conta e risco; com os seus 5,5 metros, cou a ser a sua maior pea de sempre. Um escultor gosta de fazer coisas grandes. Como eu ganho muito dinheiro e tenho boas condies de trabalho, posso-me permitir fazer coisas grandes sem ter de estar espera da encomenda. Fao-as e depois vendo-as. Esto prontas, so grandes, so aptas para um lugar pblico, so monumentais, e quando me vm encomendar uma pea eu digo: 'Encomendar para qu? Est aqui esta, que serve perfeitamente'. Vinte anos depois, o novo regime no tornou Cutileiro um escultor institucional.

Jogos de guerra"Recordaes de Guerra", Centro de Arte Moderna, Expresso/Cartaz,20 Abril 1991, pg. 12 e capa (As outras guerras de Joo Cutileiro) Os Guerreiros so 11, um colocado no exterior do CAM e dez no respectivo trio, desprendidamente expostos num cenrio de acaso, em trnsito entre quem passa para o jardim ou o museu - mais que uma exposio uma comitiva que veio acompanhar aquele que car nos jardins da Fundao. Na primeira linha, o rei e a rainha, e a seguir talvez um bispo e os pees, como se de peas de tabuleiro de xadrez se tratasse. Erectos, de armas em riste, tm tambm o ar faanhudo de valetes das cartas de jogar e a sua construo em blocos sobrepostos e articulados aproxima-os, por outro lado ainda, dos jogos de armar infantis. So guras medievais de lana e escudo,Foto Antnio Pedro Ferreira8

armadura, capacete e viseira, e so imagens de guerra e caricatura de guerreiros, desengonados robots de pedra. No se sabe se mais ameaadores ou pardicos, so monumentos que representam todos os heris e aventuras da Histria e tambm o seu reverso pcaro, so annimas esttuas de guerreiros talvez troando de outros dolos com nome e rosto, tal como a estaturia ocial os celebrou. Na retrospectiva que a Fundao apresentou h um ano eram as ltimas peas sadas do atelier de Cutileiro, mistura com pequenos cavaleiros que prometiam esttuas equestres. Chamavam-se eles, ento, Securitas e retomavam, em pedra e com os processos industriais de a modelar (cortar e colar, alis), um tema antigo que esboara em poliester e p de bronze nos anos 60 - e note-se que so de guerreiros quase todos os raros corpos masculinos sados da ocina. Multiplicaram-se entretanto, a par com a actualidade de modernas guerras. Cresceram repetidos e sempre diversos, na sua forma longilnea que homenagem a Giacometti, desdobrando uma pesquisa de assemblages inditas em pedra, ttemes imponentes nos seus equilbrios aparentemente instveis mas sempre, anal, monumentais. A pedra apenas branca, ora exibindo a rugosidade das fracturas, ora expondo-se como polidas engrenagens de srie; s formas macias soma-se a ligeireza geomtrica dos fragmentos imbricados, erguidos por empilhamento e articulados como kits de armar. Numa constante variao de processos, a simetria que consolida algumas guras d lugar, noutras, a um inslito equilbrio feito de diferenas entre cada metade lateral, e outras ainda transportam a lio das formas bdas estabelecida em tantos corpos femininos. Observe-se a correco com que assentam algumas nas suas bases e o modo como outras irrompem directas do cho. Juntos, os guerreiros voltam a lembrar que a escultura em Portugal tem hoje um nome; depois, h discpulos, h promessas. Tal como voltam a mostrar, aos catecismos vrios, que a escultura, a estaturia at, sem capotes ociais e sem rotinas de escola, ainda possvel (mas rarssima!), em objectos feitos com inveno e com gozo partilhvel. Curioso seria, entretanto, avaliar a diversidade das criaes recentes que directamente se vm enfrentando criticamente com a representao da Histria e dos seus mitos portugueses, desde Os Reis de Costa Pinheiro, que com estes guerreiros tm visvel parentesco, passando pelo Dom Sebastio tambm de Cutileiro, por certas imagens de Jos de Guimares, por algumas pinturas de Jlio Pomar, e pouco mais.

9

Memrias,

Galeria Valentim de Carvalho (Ms da Fotograa, Lisboa, 1993), No catlogo geral do Ms publicaram-se dois notveis retratos, um de lvaro Lapa, outro de Maria Cabral e Vasco Pulido Valente.Joo Cutileiro tinha mostrado fotograas na sua 1 exposio, em Novembro de 1961 (que foi a 2, contando uma em Monsaraz e vora aos 15 anos, em 1951), na Sociedade Nacional de Belas Artes: "25 Esculturas / Fotograas / Desenhos de Joo Cutileiro". O folheto que a acompanhou no trazia reprodues (o autor informa que eram praticante todas retratos). Dos "modernos" ou novos desse tempo, tinham mostrado fotograas em exposies individuais de galeria s Fernando Lemos (em 1952-53) e a dupla Victor Palla/Costa Martins (1958). Um segundo passo pblico (publicado, neste caso) foi dado s dez anos depois (1971) com a impresso tardia de algumas imagens de Monsaraz (as mais antigas de 1959 e outras de 63, estas expressamente feitas) no livro do irmo Jos Cutileiro A Portuguese Rural Society (Oxford, Clarendon Press), onde se publicaram tambm outras fotograas do ento desconhecido Grard Castello-Lopes

"lvaro Lapa em casa de Antnio Caldeira", 1958 (cat. Ms da Fotograa)

EXPRESSO/Cartaz, 29 Maio 1993. Memrias, retratos (inditos) de amigos e familiares, 1958-70. As fotos foram-se perdendo pelas gavetas e pelas paredes (serviram at de alvo para setas), amareleceram e comeu-as o bicho. Juntas agora, traam uma galxia de relaes, amizades e amores que veremos ao sabor das identicaes disponveis a cada um: Fernando Mascarenhas (em 65), Jorge Sampaio e Karin Dias, Joo Cid dos Santos, Francisco Keil do Amaral, Ana Viegas, Maria Cabral e Vasco Pulido Valente, Mrio Cesariny (uma parede com seis fotos de 64), Menez (Londres, 63), Reg Butler, Jos Cardoso Pires (60), Ruy Cinatti, Gerard10

Castello Lopes, etc, e um auto-retrato legendado como Paul Newman. Por vezes, as cabeas deixam adivinhar um olhar escultrico, a caminho de outros retratos (Helder Macedo, Azevedo Gomes, Keil do Amaral). Com os retratos de Lemos, to diferentes, estas fotos privadas levantam um vu sobre um passado oculto, aqui apercebido como um tempo feliz. So pequenos grandes nadas. 5 Junho: 100 fotograas que traam um percurso de cumplicidades pessoais, transportando a memria do seu uso (as paredes, os lbuns, ou at o alvo para setas) e um seguro valor de documento sobre os meios intelectuais do seu tempo. Mas tambm a procura do sentido do retrato que nelas se encontra, na diversidade dos enquadramentos e das poses colhidas do natural, ao mesmo tempo que o olhar do escultor se adivinha. Cutileiro mostrara fotograas numa exposio em 1961 e fez parte da gerao dos olhares inquietos (A. Sena) este mais um passo na recuperao de uma indispensvel memria fotogrca.

Paisagens, Galeria Valentim de Carvalho, 05 Junho 1993Um escultor experimenta a paisagem como tema da escultura, o que um desao talvez indito no quadro da arte no abstracta. o Alentejo e so as pedras, material de que se acolhe e revela o seu directo fascnio: a pedra como paisagem. ainda a pulso de J.C. pela multiplicao dos objectos, que o leva a produzir mltiplos acessveis para l do crculo dos coleccionadores (falar em intuitos decorativos aqui abrir a porta a redues de pobre alcance).

A Apresentao da Rainha, Capela do Gandarinha, Cascais, 16 Julho 1994 A esttua de Cames, realizada por J.C. em 1982, passou do interior da Cmara de Cascais para o trio envidraado da Capela da Gandarinha, ganhando uma permanente visibilidade a partir da via pblica. Essa transferncia de lugar ocasio para a apresentao de mais um monumento (destinado ao hall do Hotel das Lgrimas, em Coimbra), a Ins de Castro, que em 1993 se pudera conhecer em maquete, quando em Lagos se comemoraram os 20 anos da esttua de D. Sebastio curioso que Joo Cutileiro s uma vez em cada dcada tenha podido desaar os interditos que pesam sobre a ideia de monumento e sobre o retrato histrico (Rosalind Krauss situa em 1941, com o monumento a Apollinaire, de11

Picasso, a prova da impossibilidade moderna do monumento e do monumental, mas est manifestamente equivocada). A Apresentao da Ranha o ttulo da exposio, encenada com pompa e circunstncia no interior da capela, parcialmente restaurada como local de actividades culturais da autarquia: sobre os degraus centrais do antigo altar est Ins de Castro, num retrato herldico feito de blocos de pedra recortados e aparafusados, representada como rainha depois de morta, presena mtica em desgurao j algo pardica, personagem de fbula, prxima e terrvel. A preced-la um cortejo de outras guras de pedra, Guerreiros, Sentinelas e Cruzados, reis de jogo de xadrez e at um Professor Sada do Palcio, esttuas dessacralizadas. 23 Julho (...) Aqui se volta a demonstrar a possibilidade da estaturia e da representao (no caso, de guras histricas), em resposta aos interditos de algumas interpretaes da modernidade. O uso do fragmento e da assemblage, evidenciado o processo construtivo (numa desconstruo da antiga autoridade do monumental) e a presena de um olhar irnico sobre o mito, reinventando-o criticamente, permitem retomar uma tradio com as armas do presente. 30 Julho (...) mais uma pea essencial numa galeria de guras histricas que inclui D. Sebastio (Lagos), Cames (Cascais, agora no trio exterior da Capela da Gandarinha), D. Sancho (Torres Novas) e D. Afonso Henriques (Versailles).

Metro-arteExpresso/Revista, 25 Agosto 1995, pp. 66-71 AS inauguraes das novas estaes da Rotunda e de Sete Rios tiveram o conveniente aparato poltico e deram conta do crescimento e modernizao da rede do Metro. Convm, no entanto, situar tambm essas inauguraes entre os acontecimentos artsticos do Vero lisboeta, prevenindo que as referidas estaes se devem visitar por si mesmas, independentemente dos acasos da circulao, para descobrir trs notveis criaes de artistas plsticos um escultor, Joo Cutileiro, e dois pintores, Menez e Jlio Resende. So exemplares intervenes decorativas em espaos colectivos, obras raras num tempo em que a arte pblica, sem os constrangimentos de12

outros tempos, tem descido a nveis de indigncia insuspeitvel. Trabalhos de artistas com longas carreiras, elas traduzem, de modos naturalmente diferenciados, situaes de enorme investimento criativo, estabelecem ecazes relaes com os lugares ocupados e impem um muito directo poder comunicativo, condio necessria em lugares de intensa visibilidade. Nenhum deles se limitou autocitao de um estilo, transferncia e ampliao de motivos tomados em obras anteriores; pelo contrrio, todos reagiram s condies da encomenda como um indito desao, fazendo das condies do lugar, da escala e dos materiais de trabalho a rampa de largada para obras de flego. (...) Como j sucedera em outras recentes estaes do Metro, abandonou-se tambm a ideia redutora de que as obras instaladas se destinam apenas a utentes apressados, a quem perturbariam as intervenes artiststicas que no se reduzissem funo de animar lugares de passagem. Quando tal argumento se usou em relao s estaes iniciais de Maria Keil, ele escondia prevenes censrias a respeito das possveis guraes da artista; por outro lado, foram tambm as pesadas restries nanceiras de ento que impuseram os revestimentos padronizados sobre efeitos grcos e pticos, que a artista trabalhou com excepcional talento. Novas liberdades e outros meios nanceiros permitem hoje diferentes atitudes, aceitando os pintores a responsabilidade da decorao sem a entenderem como constrangimento liberdade criativa. de grande decorao que se trata. JOO CUTILEIRO instalou na antiga estao da Rotunda trs guras escultricas do Marqus do Pombal que so uma s imagem emblemtica, repetida com ligeiras variaes de acaso, divertidssima trindade a descobrir sucessivamente no interior dos quatro vos existentes entre as plataformas, diante de quem espera o metro ou nele circula.13

O Marqus um vulto recortado, que se v de ambos os lados da gare igualmente de costas, destacando-se da gura quase plana o volume da larga cabeleira feita de adas de cilindros de pedra. Com a aparncia de um corpo articulado ou boneco de montar, que acentuada por duas peas de encaixe nas costas da casaca, ergue-se sobre pernas-colunas e agarra com rmeza numa das mos um rolo de papel. Nos subterrneos da praa consagrada ao Marqus, o exacto oposto do excesso retrico do monumento que a Repblica lhe quis erguer, e que j seria inaugurado ao tempo de Salazar, quando outro gosto estaturio se comeava a impor, mais modernizado e com outros programas ideolgicos (o concurso para a obra data de 1914 e a concluso tardou at 1934). Sem o leo da esttua de Francisco Santos, smbolo do poderio e da fora, o Marqus de Cutileiro no conserva a pose majesttica nem outros atributos de poder da iconograa tradicional basta-lhe a cabeleira imponente e o decreto na mo fechada. Descido do pedestal, numa imobilidade suspensa, mas enrgica, parece disposto a aceitar o novo transporte para visitar as obras da sua reconstruo de Lisboa. Pea de humor e inteligncia que se entender na sequncia de outras guraes histricas de Cutileiro, um antimonumento contemporneo, desconstrutor de mitos e de formulrios escultricos, que cumpre a evocao do passado com o conveniente distanciamento irnico perante as representaes do poder, como o D. Sebastio de Lagos, o Cames de Cascais, o Afonso Henriques colocado em Versailles, o Sancho I de Torres Novas, a Ins de Castro do Hotel das Lgrimas em Coimbra, e outras guras annimas de guerreiros, cruzados ou sentinelas. Sem a ambio, ou o compromisso, do retrato histrico, que seriam absurdos naquele local, num contexto que a da interveno decorativa num espao subterrneo, o Marqus de Cutileiro parece ter-se apeado do comboio da histria, fantasma despojado de literatura, indiferente s projeces contraditrias que a sua memria tem revestido. Numa das paredes da estao, redesenhada pelos arquitectos Joo e Jos Santa Rita, descobrir-se- ainda a gura recortada, de relevo liso e construda por fragmentos, de mais um Marqus, a de passo apressado, visto tambm de costas com a farta cabeleira, e esta repete-se mais seis vezes, como motivo isolado, a pontuar zonas de passagem e de sada da estao. A interveno do escultor prolonga-se ainda no revestimento das zonas de acesso, em paredes limitadas por duas faixas de pedra no aparelhada, sempre o lioz, a pedra de Estremoz usada na reconstruo de Lisboa aps o terramoto. (...)14

Florbela Espanca, Vrios locais, vora, 10 Dezembro 1995O 1 centenrio do nascimento comemorado, por iniciativa do Grupo Provora, numa exposio que reuniu obras de 19 artistas e se percorre por nove espaos da cidade, associando autores de percurso local a outros de mais larga notoriedade num conjunto por vezes muito desiqulibrado, mas sem que tal contrarie a oportunidade da homenagem. O retrato de Florbela por Joo Cutileiro (que tambm mostra relevos de parede e desenhos pena) a pea central do percurso, recolocando as questes da necessidade da gurao e da semelhana e armando a sua possibilidade actual: aqui o retrato procura instalar-se num difcil intervalo entre a referncia fsica a um modelo j ausente mas prximo e a representao simblica das guras histricas (que deram a J.C. alguns dos seus mais importantes trabalhos).

O quarto de Fernando Pessoa,1996

Casa Fernando Pessoa, 25 Maio

Em mais uma instalao da srie o quarto de Fernando Pessoa, J.C. dispe a moblia pobre e pinta-a de um branco virgem, com a pequena almofada de criana na solido da cama larga. Sobre a cmoda, a garrafa passada a pedra e, ao lado, a esfera irregular da bola de berlim, usada para ensopar o bagao natureza morta emblemtica de um prosaico dia a dia. quanto basta para construir um cenrio habitado pela releitura, sincopada e mecnica, de poemas.

Um lugar na cidadeExpresso/Cartaz, 3 Maio 1997, pp. 18-19 Joo Cutileiro construiu uma fonte no cimo do Parque Eduardo VII. A evocao e homenagem ao 25 de Abril s podia ser um antimonumento

15

JOO CUTILEIRO prepara-se h perto de 40 anos para fazer uma esttua equestre. Uma pequena maquete em bronze, de 1962, pensada precisamente para aquele lugar, foi mostrada em Lagos, quando, a propsito dos 20 anos do D. Sebastio (1973-1993), se puderam rever os seus projectos de esculturas para espaos pblicos. Agora, porm, optou por destruir o plinto que existia no cimo do Parque Eduardo VII, para onde se chegaram a prever, no regime anterior, as figuras de Nuno lvares Pereira ou D. Joo I. O cavaleiro que algum ter ainda de encomendar ao escultor ir para outro lado. Ali, no exacto enfiamento do Marqus de Pombal e do obelisco do Rossio, sobre o panorama da cidade e do Tejo, que tambm um lugar fisicamente marcado pela monumentalidade do regime anterior (nas colunas de directa referncia nazi e, atravs desta, de invocao de uma mitificada ordem clssica recorde-se, por exemplo, o projecto de Albert Speer para as portas de Salzburgo, de 1937, incluindo um plinto-altar vazio), Cutileiro instalou uma fonte que , ao mesmo tempo, monumento evocativo e antimonumento. No se tratava de substituir os emblemas de um regime pelos de outro, mudando apenas de sinal um acto de celebrao do poder (questo ideolgica e tico-artstica essencial), mas de evocar o 25 de Abril no seu sentido mais decisivo de deposio de uma ditadura e de incio de16

um projecto de democracia que ser o que ns quisermos, como diz o escultor. Para Cutileiro, o 25 de Abril anti-monumental por definio, no acto do derrubar um regime imvel e autoritrio (como um monumento) e de recolocar um destino colectivo nas mos de um povo. E a sua interveno de escultor tambm no quis ser um monumento no sentido tradicional de consagrao formal de um momento congelado no tempo, de sacralizao da distncia entre os smbolos de um poder, divino ou herico, e o espao comum da cidade. A sua Evocao do 25 de Abril, ttulo presente na necessria lpide inaugural, bem uma fonte, tipologia construtiva que pe em evidncia quer o significado da permanente agitao da gua em movimento quer a ideia de que a fonte a origem (J.C.). A abordagem dos emblemas formais e dos seus sentidos seria inesgotvel: a fonte e o cravo, o derrubar de uma forma prvia autoritria, a ideia de inacabamento de um processo em construo, a recusa de uma mensagem escrita (mas esto l sinais de trabalho trazidos da pedreira), a instalibilidade da gua, a forma flica presente em qualquer obelisco ou coluna, e que aqui remete para a configurao dos megalitos alentejanos. E teria ainda de prolongar-se com absoluta coerncia no equacionar da problemtica da escala. A opo do escultor foi a de contrapor uma dimenso humana ao gigantismo autoritrio das colunas pr-existentes, transformando um lugar votado representao do poder (com maiscula, tal como em algumas concepes da arte) num espao de uso pblico, de lazer e de prazer. Os degraus que limitam um dos lados do lago so um convite directo a mergulhar os ps na frescura da gua corrente; o arranjo do espao envolvente propcio permanncia, inventando uma praa num lugar previlegiado da cidade mais ainda inspito. s memria romanas que as colunas transportam, com sentido imperial, contrape-se a lembrana das fontes de Roma, mas despidas das suas mitologias de Neptunos e sereias, que tambm no podereiam ter lugar na evocao do 25 de Abril. A interveno de Joo Cutileiro, com o sentido poltico da sua reflexo sobre a data e sobre ideia de monumento, com a ironia prpria de uma modernidade que j no quer ser construtora de mitos (ao contrrio dos modernismos vanguardistas), exercida na inteligncia das formas e tambm dos seus sentidos, est, como sempre, beira do escndalo. Tal como sucedeu com o seu D. Sebastio de Lagos, esttua de menino e equvoco heri nacional, a fonte-evocao do 25 de Abril um monumento controverso. O que tambm significa, se for necessrio diz-lo, que o escultor no se limita a gerir a sua prpria consagrao e que a escultura17

continua a ser inventiva e problemtica, desafiando convenes e expectativas. Vale a pena, como exemplo, considerar uma primeira expresso pblica das resistncias com que a obra de Cutileiro se enfrenta, contida numa crnica de Rben de Carvalho (Capital, 29 de Abril) mas sem de modo algum pr em dvida o seu direito a dar opinio por falta de uma qualquer alegada especializao. O que importa ver como decisiva a questo da escala na vontade expressa de uma monumentalidade formal que, sob a aparncia de uma questo de dimenses, tem a ver com significados, concepes de poder e ideologias. Diz R.C.: O problema do monumento ao 25 de Abril que no tem o tamanho, a envergadura, a proporo, o significado do stio onde est. Antes, porm, considerara que as duas colunas pr-existentes (talvez por efeito de uma contradio entre a encomenda fascista e a autoria democrtica de Keil do Amaral a qual seria essencialmente decisiva, embora sem traduo formal) tm equilbrio, proporo, dignidade, coerncia, ao nosso lado acompanham na sua altura os quilmetros de vista.... Mas esses atributos traduzem ali a imposio de uma ordem que a da autoridade, so as marcas de um poder que se afirma na arrogncia da perfeio e da altura. Noutro passo, atribui ao D. Sebastio, apesar da sua pequena escala, o fascnio e a grandeza de um monumento. So sinais da mesma recusa de entender a condio de anti-monumento com que Cutileiro soube expressar o sentido mais radical da sua ltima obra.

Esterlcias,1998

Galeria Restaurao, Porto, Expresso/Cartaz 31 Dezembro

A exposio j ter encerrado, mas h que no deixar em silncio as Esterlcias de Cutileiro, at porque esta e outras sries de oresesculturas exigem uma apresentao mais vasta que lhes assegure ampla visibilidade. Mostram-se, ou mostraram-se, trs ores em bronze e mrmores (uma apenas em bronze), ao lado de trs ores naturais e secas sobre iguais bases de pedra, das quais, num primeiro momento, no se distinguem. E tambm desenhos sobre papel e gravados em mrmore, com o mesmo tema. Levando ao extremo a ambiguidade entre artifcio e natureza, construo e imitao (mas no cpia), J.C. pe em questo, sobre a vitalidade e a beleza das formas naturais, toda a problemtica da escultura num exerccio de soberana liberdade e de admirvel tenso experimental.18

Flores

Homenagem Dezembro 1999

a Mapplethorpe,

Museu de vora, 11

As flores existem h muito na obra de J.C., mas em 1996 o escultor deixouse impressionar por um pequeno livro de fotografias a cor de Mapplethorpe. O encontro esteve na origem de uma vasta srie de obras que Cutileiro assumiu como homenagem ao fotgrafo e que est agora instalada na sala do Renascimento do Museu, junto ao cenotfio de Afonso de Portugal e em relao ou confronto com as outras peas em exibio permanente. Feitas em mrmore e bronze (os caules), sobre blocos torneados de pedra (vasos, jarras), so quase quatro dezenas de peas - por vezes tambm placas de parede, de mrmores colados -, de pequeno formato e de extrema delicadeza, mesmo quando a pedra rudemente talhada. A celebrao da beleza, presente em geral na sua obra e afirmada com humor como uma competio com o Criador, aqui exponenciada ao tomar por objecto a condio frgil e discreta de pequenas flores. E no indiferente que o escultor tambm as tenha fotografada para o catlogo.

Expresso/Cartaz de 18 Dezembro 1999

De Mapplethorpe a CutileiroDiz Cutileiro que a fotograa a me das artes visuais e so as fotograas de Mapplethorpe que esto na origem das suas novas esculturas de ores SO 38 pequenas ores, apenas ores, refeitas em pedra e bronze pelo escultor. Frgeis, elegantes, discretas, por vezes, se vistas distncia ou fotografadas, quase indiscernveis de ores reais. Como se se tratasse de recomear a escultura a partir de um limiar inicial, distncia da tradio comemorativa que moldou a escultura clssica e tambm a moderna e abstracta (Sim, no tem nada a ver com a escultura comemorativa, concorda Joo Cutileiro). Retorno natureza, experincia sensvel da beleza, ao belo natural, sem metafsica, em objectos de mo humana que exibem no modo de fazer, usando o bronze e o mrmore, o saber fazer e o gosto do artista-artce. Para esse recomeo ou redescoberta foi essencial ao escultor o fascnio sentido pelas ores fotografadas a cores por Mapplethorpe Cutileiro diz19

que a fotograa foi a me das artes visuais. E ele prprio voltou fotograa, fechando o crculo. Mostradas na Sala do Renascimento do Museu de vora, entre outras antigas ores de capitis e brases, as esculturas de Cutileiro colocam questes centrais com a discreta e perturbante energia que pode ter uma or. Elas so belas. As ores esto presentes h muito tempo na sua obra, mas estas aparecem como um trabalho diferente, exterior a essa continuidade. Eu senti-as como tal. Recebi o livrinho do Mapplethorpe no Natal de 95, mandado dos Estados Unidos por uns amigos, e logo que o folheei comeou-me a apetecer fazer estas ores. Quase que consigo dizer quais foram, entre as ores desse perodo, as que foram por uma via Mapplethorpeana e as outras que tinham uma via bastante diferente, mais directamente da natureza. O que foi que o interessou nas fotograas de Mapplethorpe? J conhecia a sua obra, mas nunca tive a oportunidade de o conhecer ao vivo. Tinha ido alguns meses antes aos Estados Unidos e quei encantado com a quantidade de livros dele que encontrei. Estava em casa desses amigos e, quando chegava todos os dias com mais um livro, eles aperceberam-se do meu interesse pelo Mapplethorpe. Depois, se calhar quase por graa, mandaram-me este livrinho minsculo, de 12 por 10 centmetros, que fcil de mandar pelo correio. E fascinou-me. No o Mapplethorpe habitual. No , no... e . Se quisermos olhar com frieza, tambm . A obra melhor conhecida mais clssica, pela elegncia formal, e tambm mais sensual, com uma carga ertica mais forte, que nestas ores no est presente. No to presente..., embora certamente l esteja. Senti que a cor era uma concesso (at posso estar errado, mas pareceu-me...) e no por acaso que decidi ser eu a fotografar as esculturas para o catlogo, a preto e branco. Achei que seria assim que o Mapplethorpe faria, se lhe

20

tivesse pedido para fotografar estas ores. quase inconcebvel que ele chegasse aqui e dissesse: ah no, a cor que ! Mas as esculturas so a cores. So. As esculturas so a cor, mas a maior parte dos grandes fotgrafos trabalham a preto e branco, e a cor uma concesso. Os grandes autores disseram que o trabalho que zeram a cores foi uma gracinha, uma experincia ou uma concesso ao gosto do mercado. O que que o fascina na obra do Mapplethorpe? A imagem. A imagem da luz. So imagens fabulosas, em que me interessa relativamente pouco saber o que so, se um brao hercleo de um negro, um falo, um nu... So as formas que so lindas, a denio e a maneira como ele olhou atravs da objectiva. Fascinaram-me, quase todas. Os artistas actuais confrontam-se com interditos e rejeies: parece haver coisas que j no se fazem ou no se devem fazer. O encontro com as ores fotografadas pelo Mapplethorpe autorizou-o a armar mais arrogantemente as suas ores? No, no. Isso no me passou pela cabea. Eu j as fazia h dcadas. No me veio dizer: anal, pode-se fazer ores. So as que ele fez daquela maneira que me impressionaram e, alm disso, acho que a fotograa a me das artes visuais, embora tivesse sido inventada s h 150 anos. A inteno da criao artstica visual sempre uma forma de fotograa: gravar uma imagem que recebe luz e com ela carmos na posse de uma prova. Essa a origem de todas as artes visuais. Depois, a maneira tcnica de o fazer s foi descoberta em meados do sculo passado. Esta exposio tambm uma homenagem fotograa. Sim, de certa maneira, mas neste caso muito especco uma homenagem ao Mapplethorpe. Quem procurar nestas ores a imagem habitual do Mapplethorpe, a sua armao mais sensual, ter uma surpresa. Sim, e a surpresa deve ser dupla. As pessoas que vm a vora ver uma exposio minha que se chama Flores - Homenagem a Mapplethorpe, vm certamente disparados espera de encontrar o carnal dele e o carnal meu... e encontram salada. Porqu a extrema elegncia ou leveza destas ores, com uma sensualidade to discreta? Talvez as primeiras que eu tenha feito fossem mais carnais e sexuais, mas depois, com os anos, uma pessoa deixa de ter essa necessidade de ser to bvio. A maior parte das ores, sejam elas mais exticas (as que no so de c) ou as que se encontram na Primavera em21

qualquer canteiro, no deixam de ser imagens fascinantes. Uma jarra com ores pode ser uma coisa que nos vem enriquecer; quando se entra numa sala, s vezes elas no se notam, mas esto l e emprestam-nos vrias sensaes. Tornou-se difcil, ao escrever sobre arte, falar de beleza, e estas ores confrontam-nos com essa diculdade, que em geral recalcada. Acho que se recalca de uma maneira estpida. O crtico ou o escritor sobre arte que recalca a palavra beleza est, anal, a real-la num outro gosto. H quem diga que salmo fumado sabe a peixe cru, que presunto carne de porco a saber a fumo... se a gente no gostar. Se gostar, a mesma coisa, mas encontram-se palavras mais agradveis para o dizer. Tenho a impresso que o belo cou de tal maneira associado lata de bolachas que preciso repens-lo, mas reutilizar a palavra. Neg-la que no pode ser, porque se no passamos a dizer que eu gosto do feio, e portanto o feio belo... e no samos da. Estas ores, pela sua escala, pela fragilidade aparente do mrmore e do bronze, levam a um ponto limite uma situao de quase indistino entre as esculturas e as ores reais. E as desfocagens das suas fotograas mantm essa indeterminao sobre se or ou escultura. Faz parte de meu gozo. o gozo do artista. Toda a histria do trompe l'oeil o gozo do artista, o gozo de nos podermos dar ao luxo de fazer as coisas assim. Se calhar no vai ser muito importante, no futuro, mas foi-o na altura em que as z. Como dizia o Pessoa, era ento feliz, no sei, fui-o outrora agora. Foi importante para mim fazer as coisas sucientemente dbias para que a certa distncia no se tenha a certeza se o que eu estou a desenhar ou a ver uma or ou uma escultura. Alis, na exposio com as estrelcias que z no Porto, h um ano, tinha um vaso com duas ores secas que tinham exactamente a mesma cor das estrelcias em bronze e a alguma distncia no se sabia exactamente qual era qual. uma forma de recolocar de uma forma muito crua e forte as questes da imitao e da cpia da natureza, de algum modo tornando claro que a cpia no uma reproduo do que j existe. Os ingleses tm uma palavra (e nunca encontrei nada que a pudesse substituir), que tambm faz parte de uma das teorias da histria da arte do Hellmut Wohl [autor de um dos textos do catlogo]: todos os grandes artistas comearam por ser conhecidos pela sua maneira de to render nature to render, transmitir... dar, mas no copiar a natureza, nem criar uma nova coisa, interpret-la. Se for jantar a casa duns amigos e lhes levar uma or em22

pedra e bronze ela est a cumprir exactamente o mesmo efeito que uma rosa mesmo, com a vantagem de durar, e isso para mim importante, as ores acabam por secar ou apodrecem e as de pedra no. Tm essa vantagem. So mais perfeitas? So mais duradouras. Tm a perfeio da durabilidade. O que no necessariamente uma grande perfeio. No caso destas ores partia de uma natureza j reinterpretada. Quando comecei, tirei algumas fotocpias do livro do Mapplethorpe para ter no atelier para copiar, para partir daquelas ores, mas depois comeou a suceder outra coisa: a Margarida ia pondo numa jarra aqui na sala, frente ao meu stio de desenho, as ores do nosso jardim e algumas compradas, que vieram enriquecer enormemente o patrimnio da exposio. Confesso que muitas vezes no sei dizer agora qual a origem, se o nosso jardim ou o livro do Mapplethorpe. H tambm ores imaginrias, que podem recolocar de outro modo o problema da cpia ou interpretao. Talvez. H algumas imaginrias, mas so menos do que parece. E j me aconteceu n vezes eu fazer uma or que no real e depois encontr-la, igualzinha, j feita, num qualquer canteiro de jardim. De forma que melhor sairmos desse campo. O facto de em geral no terem nome tambm um pouco secundrio. Houve uma certa pressa e eu no podia garantir que no havia erros; o sem ttulo a soluo que os artistas de hoje adoptam e eu estou-lhes muito grato. Ainda continuava a fotografar, ou sentiu agora a necessidade de voltar fotograa? Senti, pela primeira vez desde h muitos anos. Eu fotografo as minhas coisas para arquivo e no tenho qualquer outra preocupao seno a de, daqui a uns anos, olhar para o slide e identicar a escultura. H uns tempos para c recomecei a fotografar o mesmo que sempre gostei de fotografar, que so as pessoas, voltei a fazer retratos, e quando se aproximou esta exposio das ores em homenagem ao Mapplethorpe, apeteceu-me muito ser eu a fazer as fotograas. a pescadinha toda, com o rabo todo na boca. Sei que encarou esta exposio de um modo diferente, que a quis fazer num museu e no est venda. O facto de querer conservar estas obras que cabem todas em cima de uma grande mesa de jantar que tenho em casa, de forma que muito fcil car com elas levou-me a escolher uma23

instituio, que no precisa de vender para justicar o acto de expor. No me apetece vend-las, ...por enquanto, pelo menos. Apetece-me ter um canto da casa onde elas estejam juntas. Esta a exposio mais completa que eu z, completa desde a coerncia das peas, iluminao, ao catlogo, s fotograas, tudo isso uma unidade, uma bola, e da talvez uma das razes porque no me apetea vender. E, no entanto, se algum de fortes poderes econmicos, que no um galerista, me viesse propor a compra da totalidade, para a manter como tal, era j. No tanto a questo de car a viver com elas, mais a garantia de que elas no se separam. Partir da obra de outro artista uma coisa que muitas vezes no se confessa. Com a educao museolgica que tive, lembro-me do Picasso as fazer as Meninas, do Bacon a fazer o Velsquez. Quando se chega a um determinado estatuto, deixa-se de se ter inibies de ir roubar aos outros descaradamente, e um tipo faz o que o outro fez nossa maneira. E d muito gosto assim.

Mundos paralelosMachoFmea, Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, Expresso/Cartaz 29 Abril 2000, pg. 18 O corpo na escultura de Joo Cutileiro. Macho Fmea

NA SEGUNDA exposio de um ciclo denominado Arte do Sculo, inaugurado com Jlio Resende, a Cmara de Aveiro apresenta a escultura de Joo Cutileiro sob uma indita abordagem temtica. Mostram-se os seus Guerreiros mais recentes, uma srie homognea de 27 peas de 1998/99, outros tantos corpos femininos, muito diversicados nos formatos e no tratamento formal, distribudos por vrios anos de trabalho (1993 a 1997, com uma ou duas excepes pontuais), e ainda, isolada, uma escultura de maior vulto, Leda e o Cisne, 1996, de placas de mrmore recortadas, como sucede noutras obras monumentais dos ltimos anos (o Lago das Tgides, por exemplo).

24

Sob o ttulo Macho Fmea, a exposio no exactamente um sumrio antolgico que sistematize a relao da escultura de Cutileiro com a forma humana, at porque se trata apenas da exibio de obras recentes. No entanto, a congurao temtica do projecto, montado em dois espaos autnomos e comparativos, indicativa de algumas das linhas que atravessam a sua obra e, desde logo, de uma diferenciao radical na abordagem dos dois sexos. rara a presena do corpo masculino na escultura de Cutileiro, para alm dos retratos simblicos, como D. Sebastio e Cames, da sua metamorfose na gura compsita do cavaleiro, de alguns torsos escassos e de genitlia avulsa, embora o corpo do homem tambm tenha comparecido como parceiro em algumas situaes mais directamente sexualizadas, guraes de cenas de amor. Explicitamente associada a criao escultrica energia sexual e esta ao prazer, resta constatar a preferncia do alvo feminino. Por outro lado, o homem surge desde muito cedo na sua escultura subordinado ao tema do guerreiro, logo em 1963, em blocos nicos de cimento fundido ou poliester, e tambm muito mais tarde em peas de grande porte, construdas por empilhamento e assemblage de blocos de pedra. No so nunca guras complementares ou simtricas dos corpos femininos, nem so mesmo reconhecveis como formas orgnicas, que so sempre imediatamente sensuais na sua escultura. Emblemas do poder e da autoridade nas suas poses hierticas, tambm nunca so guras hericas e talvez se devam entender apenas como fantoches, espantalhos, bonecos articulados mais patticos que ameaadores, efgies absurdas de uma ordem absurda do mundo. Na sua congurao mecanizada de robots, articializando-se o corpo e a sua energia no invlucro da armadura, esses Guerreiros de desumanizao e violncia que falam. Ao contrrio das peas monumentais mostradas no CAM, em 91 (Recordaes de Guerra), e em Cascais, em 94, na Apresentao da Rainha (D. Leonor, entre Sentinelas, Cruzados e Guerreiros), a nova srie sempre de um aparente pequeno formato, embora essa ilusria aparncia resulte da construo quase liforme e das pequenas dimenses dos fragmentos associados, uma vez que em diversos casos as esculturas se elevem at perto dos dois metros. So agora guerreiros domsticos, uma infantaria arcaizante e pattica de um tempo em que guerras maiores se travam com bombardeamentos areos seguidos pela televiso e outros jogos de guerra se consomem como diverso em ecrs virtuais.25

Torso branco, 199326

Estas guras guerreiras parecem sadas de kits de montar, com os seus mdulos aparentemente idnticos (talvez encontrados, talvez feitos em srie), com os parafusos que lhes articulam o tronco e os membros e os adereos blicos. Os mesmos pequenos cubos de pedra sobrepostos constroem as pernas desmesuradas ou o torso breve, que noutros casos se sustenta em rguas tambm de pedra ou em tubos de lato. Pequenos blocos perfurados (as cabeas ocas e cegas), discos e volumes cilndricos, fragmentos irregulares, possveis desperdcios recortados que tero sobrado de peas ornamentais, articulam-se em formas innitamente variveis, num jogo de colagem ou assemblage que aparentemente ocasional mas, de facto, rigorosamente controlado, como se comprovar sujeitando cada pea a uma observao que a circunde e que atente s suas sombras projectadas. Alis, esse mesmo jogo de sombras, que amplia a escala dos fragmentos, propiciar um diferente olhar sobre as peas articuladas, isolando volumes e destacando neles a sua qualidade formal abstracta. Construes ldicas e experimentais quanto aos processos construtivos, objectos nicos e mltiplos, na aparente variao de um vocabulrio predenido, estes novos Guerreiros so fabricados com uma pedra cinzenta, porosa nas superfcies cortadas ou brilhante e quase negra nas faces polidas, que tem por nome prprio Diorito anbulgico de Sever do Vouga. Figuras esquemticas de frgil verticalidade, de virilidade retrica, desumanizados e vulnerveis na sua arrogncia pattica, eles no so personagens de qualquer guerra de sexos. So vestgios risveis de uma desordem absurda do mundo e dos homens. Se destes machos e fmeas reunidos em Aveiro s as mulheres tm corpo, deve ver-se que tm tambm rosto, quase sempre, e por vezes nome prprio (Filipa, Isabel), desarmadilhando a vigilncia sobre qualquer incorrecta coisicao voyeurista como meros (?) objectos do desejo. No so corpos abstractos nem idealizados, e multiplicam-se individualizando diferenas, identidades e situaes, mesmo quando assumem sentidos alegricos, como a fonte, ou retomam conguraes j experimentadas por Cutileiro, como as guras bdas. Sem serem retratos, povoam um mundo humano, inteiramente terreno e prximo, onde a ambio da arte no a procura das essncias ou dos paradigmas. homogeneidade dos Guerreiros sucede a diversidade de um vocabulrio construtivo que intencionalmente se distancia de uma sntese conclusiva, como que para manter vivo um leque largo de possibilidades ou direces: meninas e mulheres, guras articuladas ou esculpidas de um bloco nico,27

deitadas ou erguidas, torsos e, em muitos casos, ntimas situaes quotidianas, surpreendidas com a agilidade de desenho. Em vez da procura de uma soluo ideal e nalista, eventualmente atravs da reduo de meios ou de formas, ou perseguindo qualquer arqutipo da feminilidade, trata-se sempre de adicionar processos de representao, de multiplicar a criao, e de procurar a frescura de um primeiro achado em cada objecto fabricado, reinventado. A produo quase serial, retomando modelos j experimentados e introduzindo variaes circunstanciais, a dimenso artesanal viabilizada pela adopo de meios tecnolgicos avanados e pela inveno de processos construtivos mais rpidos e econmicos, assumem no trabalho de Cutileiro uma dimenso maior de resistncia extino de um campo que, abandonada a vocao comemorativa e consumida a especulao formalista at ao nada, se interroga sobre as suas condies de continuidade. Mostrada no novo Centro Cultural e de Congressos instalado na antiga fbrica de cermica que ainda ostenta o nome de Jeronymo Pereira Campos e Filhos (1896/1916), a exposio foi comissariada por Fernando Pernes e acompanhada por um lbum (talvez excessivamente luxuoso e, numa primeira tiragem, com decientes reprodues), que inclui textos de Fernando Pernes, Joo L. Pinharanda e Jos-Augusto Frana.

A priso e o vooPssaros,Museu do Traje, Expresso/Cartaz, 3 Agosto 2002 Uma escultura instalada no parque e Pssaros no museu O acontecimento duplo e independente, com inaugurao simultnea e um discreto trao de ligao, talvez ocasional. No Parque do MonteiroMor, a grade de ferro da Janela de Soror Mariana, monumento instalado em permanncia, doado pelo autor para o projectado jardim de esculturas. No museu, o voo dos pssaros, metfora da liberdade que o amor da freira de Beja no podia ter. Rplica exacta da janela gradeada que no Convento de Nossa Senhora da Conceio se aponta como a da cela de Mariana (embora a ala original j28

no exista), recriada com a moldura de pedra, esta priso no se v de fora ou de dentro, no exclui. Aprisiona o observador que livremente a circunda, olhando atravs das grades, porque a liberdade que se limita nos torna a todos menos livres. A evocao da gura histrica torna-se partilhada experincia fsica e prolonga-se num sentido actual. No museu, centenas de aves brancas povoam uma parede de placas de mrmore rectangulares ou quadradas, de diferentes dimenses e irregularmente dispostas, numa instalao inicialmente concebida para o hall de entrada da empresa Navegao Area de Portugal. Sobre o suporte liso brilhante do mrmore (preto, cinzento, terra, verde, raiado de branco), em relevos colados em cada uma das 82 placas, voam os pssaros, solitrios, em pequenos grupos ou em bandos. Construdos com fragmentos toscos de pedra ou minuciosamente recortados, de dimenses muito variveis, por vezes apenas dois ou trs centmetros, deixam adivinhar o gozo de uma paciente laborao manual, quase bordada, numa escala ntima e alternativa dimenso monumental, que se reencontra, paradoxalmente, no efeito de conjunto da parede. De asas abertas, com a elegncia alongada dos corpos em voo, elevam-se nos cus de pedra de cada uma das placas, todos diferentes. O destino decorativo, claramente assumido como uma das razes necessrias da escultura (e mais ainda quando o propsito da evocao ou da homenagem judiciosamente ponderado pelo artista), no limita aqui a inveno de uma soluo escultrica indita nem a intensidade potica das formas, na gura do pssaro e na imagem do voo, em que sempre residem sugestes de liberdade, de evaso, de paz, de elegncia e de graa. com necessidades vitais que lida o trabalho do escultor e tambm com a armao da humildade sbia do seu labor artesanal, alcanada pela maturidade da criao. E ainda com o humor, se lembrarmos que este voo de pssaros deveria dialogar, na sua projectada instalao, com as mquinas da navegao area. Na mesma sala do andar trreo do museu, outros pssaros, certamente mais pombas, esperam o visitante, s aparentemente imobilizados no seu esvoaar de pedra, o corpo torneado que se eleva em voo, as asas j abertas, sobre blocos brutos e irregulares, tambm ascendentes, ou que neles pousa, vigilante, suspendendo por um instante o movimento. Outros pssaros de Cutileiro j tinham assim pousado sobre folhas de piteira, fontes e ores; outros corpos alados, por vezes de pssaros, j tinham explorado a tenso29

entre a forma recortada e polida e o bloco tosco de que parece sair e a sustenta; outros ainda, de mulheres miniaturais, monumentalizavam-se sobre pedras rudemente talhadas e erguidas. Mas so sempre novos cada um destes oito pssaros, reunidos num conjunto nico, construdos por assemblage de blocos de mrmore (branco, rosa ou preto), com os seus corpos esbeltos e as longas caudas, erguendo-se sobre as pedras empilhadas, multiplicados por um escultor que povoa o mundo com as suas criaturas.

Um centro perifricoLagos, Anos 60-80,Julho 2005, pg. 40 Memrias de Cutileiro, Bravo, Lapa e Palolo em Lagos Se os anos 60 foram por toda a parte um tempo de transformaes e rupturas artsticas, cortando com algumas tradies modernas e com memrias das guerras da primeira metade do sculo, Lagos foi um dos seus plos portugueses. Parte decisiva da arte nacional fazia-se na emigrao e outra, em paralelo, com os efeitos duma circulao exterior muito mais intensa, em grande parte permitida pelas bolsas da Gulbenkian. Entretanto, alguns artistas xavam-se no isolamento do Algarve, sem deixarem de disputar a presena pblica nas exposies de Lisboa e sem interromperem uma intensa busca de informao internacional. A estada de Joo Cutileiro, Joaquim Bravo, lvaro Lapa e Palolo em Lagos o tema duma exposio que Joo Pinharanda organizou para o respectivo Centro Cultural, evocando um perodo que, segundo o comissrio, podemos considerar herico na vida cultural-artstica da cidade. Mais do que uma celebrao, oportunamente integrada no programa descentralizado da Capital Cultural de Faro, trata-se de um projecto que visa enquadrar crtica e historicamente um perodo de intensa e signicativa produo na obra de cada um, avaliando tambm o sentido30

Centro Cultural de Lagos, Expresso/Actual 23

colectivo dessa presena em Lagos. Ao propor-se pensar a cidade como centro receptor e difusor de ideias, no perodo especco das dcadas de 60 e 70, Joo Pinharanda no deixa de ter presente que outros artistas foram atrados a Lagos ao longo dos anos 80, em grande medida pela personalidade expansiva de Bravo, e que algumas linhas de continuidade se observam atravs das bienais a organizadas nessa mesma dcada e depois na actividade expositiva do prprio Centro Cultural, que foi inaugurado em 1993 e agora novamente orientado por Xana, xado em Lagos desde 1984. No exactamente de um grupo que se trata, embora entre os traos comuns avulte a origem de todos em vora. Ou ento poder dizer-se que o grupo bicfalo, considerando-se o itinerrio especco de Cutileiro e a evidente associao entre Bravo, Lapa e Palolo. O escultor alugou casa em Lagos em 1959, ano em que termina o curso na Slade School de Londres, comeando a viver em navette entre os dois lugares, por perodos de seis meses - em antigas entrevistas, falava do pequeno paraso na terra que a tinha descoberto, mas dizia precisar do meio ano londrino para carregar baterias. Em 1970 instalou-se em permanncia, e mudou-se para vora em 1985, mais prximo das pedreiras onde procurava os mrmores, j quando o crescimento turstico degradara o paraso. Joaquim Bravo xou-se em Lagos em 1966, dividindo a ambio artstica com outros trabalhos, e foi professor de Ingls no liceu, at morte em 1990. Com uma primeira exposio em 1964, zera entretanto uma frustrada emigrao alem como intrprete numa base norte-americana. Foi ele que atraiu a Lagos lvaro Lapa, que a viveu entre 1966 e 71 e, entre viagens, em 72-73, e tambm Palolo, que fez longas permanncias de Vero, entre 1966 e 74, em casa de Bravo. importante que todos eles tivessem percursos autodidactas (os dois primeiros com aprendizagens com Antnio Charrua, em vora), o que, para alm de caracterizar as suas obras, desde logo os afastava do acesso s bolsas da Gulbenkian, e todos foram igualmente expostos pela Galeria 111 em incio da sua actividade, por iniciativa do escultor Fernando Conduto. S o mais novo, Palolo, teve imediato xito comercial e crtico, identicado com as referncias neogurativas e pop ento armadas.31

Num contexto de intensas circulaes e actualizaes europeias, que ento alargam a Londres e energia dos sixties a mais tradicional formao parisiense, o grupo dos pintores de Lagos diferencia-se por fazer, do interior, uma viragem para a informao norte-americana, num caminho j entretanto aberto por Charrua e Antnio Areal. um acesso quase sempre indirecto e muito acelerado, que concentra o efeito sbito de Pollock, a prolongar automatismos psquicos vindos do surrealismo, com imaginrios beatniks e a admirao por Motherwell, e por via dele com um universo intelectual que inclui John Cage e o budismo Zen, a que se seguiam j as rupturas de Jasper Johns e Rauschenberg, obviamente visveis nas obras expostas de Palolo. Ao associar os trabalhos dos quatro artistas, ao mesmo tempo que se demarcam ncleos prprios de cada um, a exposio opta no caso de Cutileiro por focar em especial a sua produo mais antiga, antes da viragem para o trabalho do mrmore, com a descoberta decisiva das mquinas elctricas de corte e polimento que tornaram a escultura em pedra prossionalmente vivel e permitiram inventar novos caminhos de criao. A primeira dessas peas foi A Menina da Mquina, de 1966, e o D. Sebastio de Lagos de 1973. Antes, o escultor trabalha com o ferro soldado e materiais moldados, cimento fundido e polister com p de bronze, numa gurao que conserva uma dramaticidade de sentidos (corpos sujeitos eroso e runa) at exploso de vida e erotismo dos mrmores. Quanto a Bravo e Lapa, a escolha das obras dirigiu-se para o apontar de algumas relaes gurativas com o real envolvente, em raras peas mais ntimas do primeiro (barcos presentes em colagens) ou na tenso entre a forma identicvel e a abstraco construtiva, apresentando depois um todo coerente de trabalhos de pesquisa formal geometrizante, enquanto do segundo se prope expressamente a identicao do lugar e da representao (a praia, a falsia, a casa, o mar, os pssaros) como elementos determinantes no desencadear e na interpretao das obras, embora sem que em qualquer caso esta oportuna linha de observao

32

aparea a sobrepor-se ao universo das questes literrias e formais presentes nos seus trabalhos.

Pedras na Praa. Arte Pblica de Joo Cutileiro, Castelo deSo Jorge, Sala das Colunas, Expresso/Actual 18 Novembro 2006 MAQUETAS (estudos em pedra de pequeno formato para obras construdas; singulares ou diversos, por exemplo, cinco para o Guerreiro, de 2002, para Almourol, e trs para o Afonso Henriques, 2001, de Guimares; um desenho para o So Joo, 2000, da Ribeira do Porto) e, ao lado, fotograas das peas instaladas, de Nuno Fevereiro. Mais um catlogo com um estudo atento e informativo de Joaquim Oliveira Caetano. A mostra, que inclui o D. Sebastio de Lagos, o D. Sancho I de Torres Novas, a Ins de Castro da Quinta das Lgrimas, Coimbra, o So Sebastio que est tambm em Torres Novas, o Monumento ao 25 de Abril, no Parque Eduardo VII, a Batalha Naval de Macau, etc. (1972-2004), estreou-se no Museu de Silves em 2005 e tem andado em itinerncia. um desmentido ecaz das doutrinas que por a se ensinam sobre a histria do falhano que seria a relao da escultura moderna com o monumento e o monumental, e, tambm segundo Rosalind Krauss, sobre a inevitvel histria da dissoluo do escultural. So as esttuas de Cutileiro que vo car, como magncas raridades, no o academismo que impera nos sales de hoje e afecta as escolas. # JOO CUTILEIRO (1937 - ) Nasceu em Lisboa e iniciou-se muito cedo como escultor. Das Belas-Artes da capital passou Slade de Londres, s regressando denitivamente em 1970, para se instalar em Lagos (em 85 mudou-se para vora). Depois de experimentar materiais diversos, do ferro bra de vidro, revolucionou a escultura em pedra com o emprego de mquinas elctricas de corte e polimento. O corpo feminino (torsos e guras bdas) e a armao do erotismo tm um lugar central no seu trabalho, mas os guerreiros, as maquetes de esttuas equestres, as rvores e ores constituem outros captulos de uma vasta obra consagrada desde os anos 60. O D. Sebastio, de 73, acabou com a estaturia tradicional e o Monumento ao 25 de Abril, de 97, voltou a gerar polmica. (de um dicionrio)33

34