jesus: homem e espírito - saudadeeadeus.com.br · 9.5 a data da crucificaÇÃo de jesus ......
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Jesus: homem e espírito
Elerson Gaetti Jardim Junior
Sérgio Cherci Júnior
Christiane Marie Schweitzer
25/12/2011
ii
Gaetti-Jardim Júnior, Elerson
Cherci Júnior, Sérgio
Schweitzer, Christiane Marie
Jesus: homem e espírito 506p.
ISSN: 544426
Livro 1036 Folha 187.
1. Jesus 2. Espiritismo 3. Reencarnação 4. Mediunidade 5.
Evolução planetária
Jesus: homem e espírito
iii
Leia, divulgue e estude a obra de Chico Xavier e seus
colaboradores do invisível
Cultive a caridade
Plante a fraternidade
Respire liberdade
“Pense e reflita sobre tudo, lembrando que a
verdade a Deus pertence e cabe, a cada um de nós,
buscar a sua própria visão da mesma, através de
caminhos que se abrem continuamente”
iv
Ao mestre Jesus
Subindo as escarpas do calvário e depois pregado na cruz,
deixastes, divino mestre, os ensinamentos que deveriam orientar os
homens;
No simples mandamento "Amai-vos uns aos outros", deixastes a
essência de toda a justiça, o bálsamo para todas as dores, a resignação
para todos os sofrimentos, bem como a esperança radiosa para todas
as descrenças.
Derramai, oh mestre divino, sobre a humanidade, os raios de
luz de vossa misericórdia, plantando no coração empedernido dos
homens o amor e a paz, irmanando-nos no mesmo sentimento de
igualdade.
Texto psicografado por Elza Fernandes Jardim, em 13 de
dezembro de 1997. A médium, falecida no dia 13 de fevereiro de 1999,
vem trabalhando como enfermeira, sua profissão terrena, junto a
necessitados no plano invisível, onde recebe a colaboração de sua mãe,
Maria. Deu-me a honra de ser seu filho; de um antigo inimigo a
admirador; transformou-me em filho amado e deu guarida a meus dois
irmãos. Prova que o amor sincero e franco produz verdadeiras
transformações na alma. O meu muito obrigado.
Jesus: homem e espírito
v
Como disse minha filha Annie, de dois anos, "papai a vovozinha
está na minha casa". Cara filha, sim, ela sempre vem nos visitar, porque
nada separa o que o amor verdadeiro uniu.
vi
Dedicatória
Dedicamos esse trabalho, acima de tudo, ao messias galileu,
nosso guia e companheiro sublime.
Aos nossos amados, que dividem essa experiência na carne e
fazem todas as coisas valerem a pena, em particular os nossos filhos
(em ordem alfabética) Aléxia, Annie, Giulia .....
Aos nossos amados desencarnados, que nos embalaram no colo
e nos dedicam o mais puro amor filial ou fraternal.
Aos nossos guias espirituais, que vencendo as barreiras mais
difíceis se sujeitaram aos imperativos de nossos horários e
compromissos e nos auxiliaram em tantas jornadas .
Á Casa do Caminho "Luz e Esperança" (município de Ilha
Solteira-SP), nossa verdadeira morada, à Comunidade Espírita Cristã
Esperança (município de Fernandópolis-SP), à Seara a Caminho do
Mestre (município de Birigui-SP), ao Centro Espírita "Caminho de
Luz" (Município de Brejo Alegre, SP) e à Fundação Adolpho Fritz
(município de Teresina-PI), sociedades espíritas cristãs que
compartilham objetivos e ideais, de mãos dadas, em laços fraternos.
Uma alma sem fé é uma nave sem bússola, abandonada às
fúrias de um mar tempestuoso. (Elza Fernandes Jardim).
Jesus: homem e espírito
7
Sumário
AO MESTRE JESUS .................................................................................. IV
DEDICATÓRIA.......................................................................................... VI
SUMÁRIO ......................................................................................................7
ALGUNS ESCLARECIMENTOS NECESSÁRIOS ................................ 10
INTRODUÇÃO GERAL AO TEMA ......................................................... 14
BREVES CONSIDERAÇÕES .................................................................... 19
1 COMO ERA O MUNDO DE JESUS ............................................... 25
1.1 COMO ERA O MUNDO ROMANO NA ÉPOCA DE JESUS? ....................... 26
1.2 O JUDAÍSMO NO TEMPO DE JESUS ..................................................... 44
1.3 AS SEITAS JUDAICAS E SUAS PECULIARIDADES. ................................ 61
2 QUAIS SÃO AS FONTES SOBRE JESUS? ................................. 109
2.1 AS FONTES SOBRE JESUS ................................................................ 110
2.2 OS EVANGELHOS CANÔNICOS ......................................................... 114
2.3 FLÁVIO JOSEFO .............................................................................. 126
2.4 TÁCITO. O HISTORIADOR ROMANO E OUTROS ................................ 134
2.5 OUTRAS FONTES JUDAICAS E O ALCORÃO ..................................... 136
2.6 OS EVANGELHOS APÓCRIFOS COMO FONTES................................... 141
2.7 ARQUIVOS ESPIRITUAIS. ................................................................. 151
8
3 O NASCIMENTO DE JESUS E SUA FAMÍLIA ......................... 154
3.1 O NASCIMENTO DE JESUS E SUA FAMÍLIA NUCLEAR ....................... 155
3.2 JESUS ERA DE ASCENDÊNCIA REAL ? .............................................. 189
4 O RELACIONAMENTO DE JESUS COM SEUS FAMILIARES
199
4.1 COMO ERA O RELACIONAMENTO DE JESUS COM SUA FAMÍLIA
TERRENA ? 200
4.2 JESUS ERA SOLTEIRO OU TERIA TIDO UMA FAMÍLIA ? ..................... 206
4.3 QUAL A FORMAÇÃO RELIGIOSA DE JESUS, O JUDEU? ...................... 213
4.4 COMO FOI A EDUCAÇÃO FORMAL DE JESUS, UM JUDEU POBRE DO
SÉCULO I D.C. ? ...................................................................................................... 219
4.5 QUAL A PROFISSÃO DE JESUS E QUAL A CONDIÇÃO SOCIOECONÔMICA
DE SUA FAMÍLIA? ................................................................................................... 225
5 JOÃO, O MESTRE DO MESTRE ................................................. 233
5.1 JOÃO, O BATISTA, MENTOR E MESTRE DE JESUS, O CRISTO. ........... 234
6 OS PRIMEIROS SEGUIDORES DO NAZARENO..................... 252
6.1 MULTIDÕES E DISCÍPULOS ............................................................. 255
6.2 O QUE CARACTERIZAVA UM DISCÍPULO DE JESUS? ......................... 272
6.3 OUTROS SEGUIDORES DESSE LADO E DO OUTRO LADO DO VÉU. ...... 276
6.4 O GRUPO DOS DOZE ....................................................................... 278
6.5 E OS APÓSTOLOS ? .......................................................................... 285
6.6 CONTROVÉRSIAS SOBRE OS APÓSTOLOS ......................................... 302
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9
6.7 QUAL FOI O DESTINO DOS APÓSTOLOS? .......................................... 306
7 A MENSAGEM DE JESUS ............................................................ 308
8 A MEDIUNIDADE E O MESSIAS DE NAZARÉ ........................ 336
8.1 DESOBESSÕES ................................................................................ 338
8.2 OS FENÔMENOS DE CURAS ............................................................. 346
8.3 RESSURREIÇÃO DOS MORTOS ......................................................... 356
8.4 VIDÊNCIA, AUDIÊNCIA E PRESCIÊNCIA .......................................... 363
8.5 FENÔMENOS MEDIÚNICOS SOBRE A NATUREZA E A MATÉRIA ......... 365
9 A CRUCIFICAÇÃO DE JESUS ..................................................... 373
9.1 JESUS, O TEMPLO E O PLEBEUS ...................................................... 396
9.2 A PRISÃO DE JESUS. ........................................................................ 412
9.3 O JULGAMENTO .............................................................................. 421
9.4 A CRUCIFICAÇÃO ........................................................................... 458
9.5 A DATA DA CRUCIFICAÇÃO DE JESUS ............................................. 471
10 A RESSURREIÇÃO DO MESSIAS DE NAZARÉ ...................... 484
10.1 A "RESSURREIÇÃO" ................................................................... 485
11 O PAPEL DE JESUS NO PRESENTE .......................................... 492
12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................... 501
10
Alguns esclarecimentos necessários
Para entender esse texto, precisaríamos retornar aos primeiros
decênios da era comum, quando um homem maravilhoso, chamado
Jesus, foi crucificado. Um dos espíritos que colaborou no presente
estudo esteve presente durante a reunião do pequeno Sinédrio, que
decidiu os destinos do mestre galileu e, encarando-o na cruz, zombou de
sua dor dizendo que "se esse homem fosse o filho do Deus Altíssimo,
não estaria ali. Desça e nos mostre do que tu és capaz".
Esse personagem, que chamaremos de Eleazar, reencarnou
diversas vezes na Terra, voltando ainda como rabino, padre (por
diversas vezes), médico, pesquisador e até mesmo militar. Contudo, o
remorso remoeu suas entranhas por séculos e nada parecia devolver a
paz ao seu coração atormentado, que pedia perdão ao mestre dos
mestres. Foi assim que, depois de diversas existências perdidas na
arrogância dos que se julgam conhecedores das verdades absolutas (que
não estão acessíveis ao nosso entendimento e não sabemos se algum dia
estarão), ele recebeu da espiritualidade amiga a permissão de participar
da redação desse texto.
As palavras desse personagem não representam os fatos
históricos em si, mas a interpretação que esse homem judeu, de classe
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abastada, fez dos mesmos. Repito, mais do que um texto histórico, é um
pedido de perdão ao Deus de todos nós pela participação no evento que
mais marcou a história da humanidade e procura apresentar um "Jesus"
que foi soterrado por dois mil anos de interferências cristãs e anti-
cristãs.
Em um ensaio inicial, sem uma conotação religiosa e
procurando traçar os aspectos mais relevantes da vida de Jesus, o
messias de Nazaré, com maior rigor científico, procuramos manter um
tom sóbrio diante de questões que deixam a comunidade cristã em
polvorosa, ao mesmo tempo em que evitamos adentrar as numerosas
controvérsias a respeito da vida de Jesus. Entretanto, o resultado obtido
nos frustrou imensamente, particularmente ao nosso amigo, Eleazar.
Aquele "Jesus" não parecia com o mestre dos mestres, que um dia
caminhou pela colinas semi-áridas da Palestina, e decidimos dar um
novo rumo ao livro em elaboração.
Com a orientação de nossos guias espirituais e amigos
encarnados e desencarnados, procuramos escrever uma nova versão da
vida do Cristo, utilizando as informações disponíveis na literatura
acadêmica e leiga, associando-a aos livros da codificação de Kardec e
aqueles psicografados por Francisco Cândido Xavier, nosso caro Chico,
pelo cuidado que esses livros clássicos tratam do tema. Evitamos os
12
textos cheios de revelações espiritualistas, mas sem qualquer
fundamentação, que a despeito de serem bem redigidos e de fácil
compreensão, trazem controvérsias e possuem diversas características
dos textos escritos para leitores do grupo místico-esotérico.
Procuramos inserir textos que foram inspirados por nossos
mentores espirituais ou informações psicográficas a partir do nosso
irmão Eleazar. Quando conflitos surgiam entre a informação de uma
fonte espiritual e a literatura acadêmica, optava-se pelo bom senso e
questionamentos adicionais eram feitos aos membros da equipe de
trabalho, encarnados e desencarnados. Quando instransponíveis, essas
dificuldades foram passadas em cores vivas para o papel, sem maiores
tentativas de harmonização, sob pena de não respeitarmos a colaboração
do invisível. Obviamente, muitos detalhes escapam à nossa humilde
compreensão e, como declara Emmanuel, as revelações são dadas
segundo nossa capacidade de compreensão e não segundo a nossa
vontade pessoal.
A despeito de nossa intenção de compreender o "Jesus" que um
dia caminhou sobre solo palestino, sabemos que mais importante do que
questionar os detalhes de sua vida é entender a magnitude e
profundidade de suas palavras de amor e perdão, sendo essa última a
única a nos garantir o direito de angariarmos o perdão divino, que se
Jesus: homem e espírito
13
manifesta como um novo e providencial retorno ao corpo físico, para
que um dia possamos estar diante do Pai Sublime, na condição de filhos
que voltam ao lar cheios de alegria. De qualquer forma, é a mensagem
atual e universal desse homem, se é que podemos chamá-lo assim, sem
ofendê-lo, que tem o caráter de transformação e constitui o verdadeiro e
mais importante milagre por ele realizado.
Devo (EGJJr) admitir que minha conversão ao cristianismo se
deu ao final da redação da primeira versão desse texto e a minha
inserção dentro do movimento espírita ainda demoraria 5 anos, nos
quais a dor de perdas e a experiência no campo mediúnico foram
preponderantes. Mesmo para um cético de cunho cientificista, a história
do mestre e sua importância para a civilização moderna e os direitos
humanos carrega motivos suficientes para vermos as mãos do Mais Alto
na evolução de nosso mundo.
Desculpem nossas falhas e desejamos que encontrem algo nessa
história que começa em uma casa pobre na Galiléia e se estende até o
presente que seja capaz de confortá-los, como aconteceu conosco.
14
Introdução Geral ao Tema
A criação do mundo e do sistema solar remontam há 4,6 bilhões
de anos, a partir de restos de diversas estrelas gigantes, as supernovas,
que explodiram após algum tempo de atividade, enquanto a vida surgiu
logo após a consolidação das condições físicas do orbe em formação,
possivelmente há 4,0 bilhões de anos. Contudo, foi somente há 10.000
anos que passamos a registrar alguma coisa sobre nosso passado.
Obviamente não podemos falar, com segurança, sobre o que existia
antes dos primeiros registros escritos estarem disponíveis, mas podemos
inferir através de provas genéticas, que mostram, com segurança, que
nossa espécie habita esse mundo há 250.000 anos, além de evidências
paleológicas, arqueológicas, lingüísticas, entre outras, traçando o
caminho que a civilização tomou desde então.
Nesse processo, a despeito da maioria dos estudiosos e eruditos
desprezar a influência de uma "Inteligência Não-Corpórea Onipresente-
Onisciente-Onipotente", nosso Deus, na criação e evolução do universo,
principalmente depois que a seleção natural e a genética tomaram conta
do imaginário popular, sem falar no acadêmico, todos nós conhecemos
fatos e ocorrências no dia a dia que escapam à explicação convencional
Jesus: homem e espírito
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de mundo. Os fenômenos mediúnicos sérios fornecem uma porta ampla
para a compreensão de uma realidade maior e de complexidade
inimaginável, que não pode ser entendida em um universo com três
dimensões espaciais e uma dimensão temporal. A fragilidade da vida é
escancarada se ignorarmos a existência do espírito, o que torna inútil
qualquer tentativa de harmonizar o materialismo com uma existência
plena, com objetivos mais nobres e altruístas.
A própria compreensão da estrutura do universo que nos cerca
vem sendo continuamente reavaliada, uma vez que as duas maiores
teorias capazes de explicar os fenômenos do macro e microcosmo, a
teoria da relatividade e a física quântica, parecem incompatíveis entre
si. Entretanto, nas últimas décadas, uma nova teoria se propõe a marcar
um divisor de águas nesse sentido: a teoria das supercordas, que pode
vir a ser a tão sonhada teoria unificada de campo, que inebriava a
brilhante mente de Albert Einstein. Nessa teoria, tudo que existe no
universo é fruto de cordas minúsculas que vibram em diferentes
freqüências e, de acordo com esse fenômeno, acabam por se manifestar
de diferentes formas, como as unidades elementares da matéria e a
energia que compõem o universo. Essa teoria abriga aspectos que
somente fazem sentido se o universo apresentar múltiplas dimensões
espaciais adicionais, paralelas, e que interagem entre si em uma dança
16
cósmica complexa, o que nos traz muitos paralelos com a filosofia
implícita no conceito de que “na casa de meu Pai existem muitas
moradas”, tão propalada pelo messias nazareno.
Na literatura religiosa, a criação do Universo se deu pela
vontade, - o Verbo-, de Deus Todo Poderoso, sendo que os cristãos,
com o tempo, passaram a ver em Jesus o próprio Verbo Encarnado ou
Deus-Filho, preexistente, sem começo ou fim. Obviamente, essa
imagem não está de acordo com o visão espírita sobre Jesus, que seria o
enviado divino, o escolhido de Deus, mensageiro, ou, simplesmente, o
ungido, algo até certo ponto semelhante à visão judaica do messias, o
servo maior do Pai, embora não reconheçam Jesus como o escolhido de
Deus. Até a palavra Cristo ou messias trazem à tona que Jesus
inicialmente era visto como o "homem escolhido por Deus", aquele que
mostrará o caminho.
É inegável o papel desempenhado por Jesus na modificação de
hábitos arraigados na humanidade, fortalecendo a apresentação do Deus
misericordioso e universalista do Novo Testamento, em contraposição
de um Deus tribal e egocêntrico que, por vezes, aparece no Velho
Testamento. Nesse sentido, não que um conjunto de livros seja
antagônico a outro, mas as diferenças entre essas faces da divindade
refletem a evolução da nossa visão sobre o Criador. Jesus também tem
Jesus: homem e espírito
17
o mérito de iniciar e fortalecer esse novo enfoque e trazer o Reino de
Deus até o povo comum.
As últimas décadas têm presenciado uma verdadeira avalanche
de textos sobre Jesus, tratando-o como um sábio, um profeta, mágico,
milagreiro, Ser Divino, revolucionário, peregrino cínico e estóico e até
como médium de outro espírito hierarquicamente mais elevado. Vemos
que no seio das religiões cristãs tradicionais ou literalistas existe uma
ampla gama de textos sobre o mestre galileu qualificando-o como parte
da Divindade, mas a literatura espiritualista sobre o tema é muito pobre
e isso se deve, em grande parte, à dificuldade que os encarnados e
desencarnados têm ao lidar com a figura de Jesus, deixando de lado
conceitos pré-concebidos e posições arraigadas, ao que devemos
acrescentar que nos falta um conhecimento do Jesus da vida real, sem o
qual aceitamos comunicações espirituais destituídas de qualquer sentido
mais profundo e que destoam de todas as evidências científicas. O
próprio espírito do Dr Inácio Ferreira, que tantos livros trouxe ao
mundo pelas mãos hábeis do cirurgião-dentista e médium Carlos
Bacceli, nos alerta que, nos planos espirituais mais próximos da Terra,
os próprios espíritos desconhecem a figura histórica de Jesus e erros de
interpretação também são cometidos.
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Lembremo-nos que Allan Kardec colocava que a razão é o fiel
da balança e que o espírita, como sua fé exige, deve ponderar e, quando
a ciência desmentir seus conceitos, ele deve modificar sua maneira de
pensar. A ciência e a fé andam juntas na religião dos espíritos,
encarnados e desencarnados, mesmo que tenhamos saído de outras
concepções religiosas. Assim, esse ensaio tem o papel de traçar alguns
pontos sobre a vida de Jesus e seus primeiros seguidores, sem procurar
tratar-se de um livro devocional ou acadêmico, sendo obra de
desencarnados abnegados e de encarnados imperfeitos, que estão
procurando colocar diante do público uma visão diferente da observada
pela maioria da comunidade cristã.
A esses espíritos amigos e, principalmente, a Jesus, nosso divino
mestre e guia, nossos mais sinceros agradecimentos.
Jesus: homem e espírito
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Breves Considerações
Nos últimos duzentos anos, aqueles que conseguiram se livrar
das amarras religiosas e empreender uma pesquisa independente sobre o
Jesus da história acabaram por pintar a imagem de um mago, profeta
carismático, exorcista, profeta social, sábio ou mestre com poderes de
cura e profeta escatológico. Muitas dessas imagens não são mutuamente
excludentes e, em conjunto, podem colaborar para a adequada
compreensão do messias de Nazaré.
Infelizmente, é impossível reviver com precisão os caminhos
percorridos por Jesus em função dos milênios que nos separam dele e,
acima de tudo, pela precariedade das fontes disponíveis. Não se pode
esquecer que há 100 anos, no Brasil, o analfabetismo total ou parcial
(também chamado de analfabetismo funcional) atingia a grande maioria
da população e, na antiguidade, o mesmo ocorria com os povos do
Mediterrâneo, de forma que mesmo os muito ricos geralmente tinham
dificuldade em deixar textos escritos para a posteridade e temos que
convir que Jesus não era exatamente um “muito rico”, em termos
financeiros. Portanto, é de espantar que tanta informação tenha sido
escrita sobre ele na época, embora nada tenha saído de suas santas
mãos.
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As análises acadêmicas sobre o mestre passaram por diversas
fases e hoje existe grande concordância de que praticamente nada do
que foi dito sobre ele antes de 1900 merece crédito, posto que, em
função do anti-semitismo da população, Jesus não era analisado no
contexto do seu mundo cultural, puramente ou exclusivamente judaico.
Pode parecer estranho, mas Jesus era judeu praticante e respeitava as
leis que seu povo advogava e isso era indigesto para os padres e
pastores, teólogos e cientistas políticos que estudavam o messias
galileu. E isso teve sérias conseqüências.
Durante o nazismo, o fato de “os judeus” terem matado Jesus foi
utilizado para justificar toda espécie de postura anti-semita vigente e os
carrascos se sentiam quase à vontade nas filas que chegavam aos
campos de extermínio de Treblinka e Auschwtiz-Birkenau. Outra face
desses preconceitos foram os "progroms" e a política que impedia que
judeus viessem a professar a suas crenças em público, além da
famigerada Inquisição e tribunais da Igreja cristã, que levaram muitos
judeus do mediterrâneo europeu a mudar seus nomes e se converterem
em cristãos-novos (a quase totalidade dos nomes como Macieira,
Pereira, Pinheiro e outros fora adotada por judeus obrigados a
abandonar sua fé).
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Nas últimas décadas, o mundo tem presenciado uma nova
revolução no campo dos estudos acerca de Jesus, merecendo destaque
aqueles que trazem até o presente os aspectos sociais, políticos e
culturais que envolveram o mestre desde sua infância até aqueles
associados com o seu martírio na cruz.
Hoje sabemos ser impossível a elaboração de uma biografia
para ele e devemos nos conformar vê-lo através dos olhos dos outros,
seus apóstolos, discípulos e seguidores, além das comunicações
mediúnicas transmitidas por irmãos responsáveis através das mãos de
médiuns de reconhecida dedicação e idoneidade, como Chico Xavier.
Esses depoimentos de espíritos de elevada expressão e de alguns de
seus opositores da época, que conviveram com os diversos personagens
históricos ligados ao messias galileu, podem nos dar algumas
informações, bem como nossos guias e protetores espirituais que, em
árduo trabalho e através de psicografia e inspiração, nos ajudaram a
criar um panorama mais humano para o nosso mestre.
Inicialmente, devemos lembrar que os livros canônicos (os
textos bíblicos) não são retratos históricos e sim devocionais, escritos
de 30-70 anos após a morte de Jesus e quase tudo que incomodava a
igreja romana acabou sendo removido desses textos por copistas
zelosos, que preferiam mudar a “história” do que ter que explicar
22
conceitos que iam contra a sua própria fé, como a reencarnação e a
natureza humana de Jesus, bem como as severas limitações que tolhiam
os apóstolos e a primeira comunidade cristã. Assim, o Jesus que
mostraremos não é o personagem “histórico” e não será equivalente
àquele que um dia caminhou em condições tão humanas e com idéias
acessíveis para uma parcela muito grande da população do século I
d.C., mas apresentaremos uma imagem humana de um espírito dotado
de profundo amor pelo Pai e pelo gênero humano e que sacrificou
milênios cuidando dos destinos coletivos de nosso orbe, como um
irmão zeloso e abnegado.
Outro fator que dificulta a busca por Jesus reside em uma
peculiaridade nada desprezível: ele foi, ou assim acreditam muitos de
seus modernos seguidores, a encarnação da divindade. As igrejas cristãs
primitivas não apenas levaram o homem a Deus, mas também trataram
de trazer Deus até o homem, fechando um ciclo. Pensar em Jesus se
alimentando, confabulando com espíritos de estirpes elevadas, sofrendo
pela densidade espiritual do mundo e apresentando todos os paradigmas
que um ser humano tem que sofrer constitui uma quase heresia para
muitos cristãos e mesmo os cristãos espíritas relutam, às vezes, em
deixar o arcabouço literalista que herdaram de suas igrejas originais,
geralmente dogmáticas.
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A imagem que a maioria das igrejas faz do mestre galileu é
semelhante a de um herói perfeito, Deus encarnado, transcendental,
quase sem sentimentos, que emerge como pessoa perfeita de dentro de
uma sociedade corrompida e legalista que, por não poder suportar sua
natureza mais que transcendente, o leva até a cruz. Nada poderia estar
mais distante do Jesus que viveu entre nós e digo "nós" porque muitos
dos personagens que fazem parte dessa história, em particular os que
agrediram e condenaram o mestre, estão encarnados enquanto essas
linhas são redigidas e outros se alojaram nos planos espirituais ainda
próximos à crosta planetária.
Como o cristianismo, pequena seita judaica que se formou no
final da primeira metade do século I d. C., a fé em Jesus, o escolhido,
logo ultrapassou os limites do mundo judaico de então, atingindo
populações helenizadas e romanizadas e seus muitos deuses,
semideuses e figuras lendárias, muitas das características semíticas
(termo utilizado para descrever os aspectos culturais dos povos de
língua semita, como os judeus e árabes do presente) do mestre galileu
foram sendo perdidas ou moldadas pelos novos pregadores que se
dirigiam a esses povos e acabaram sofrendo modificações tão profundas
que o próprio judeu Jesus teria dificuldade em se reconhecer em “Jesus
Cristo” das igrejas ocidentais, mesmo dentro do espiritismo.
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Assim, as pessoas que aceitam que Deus é universalmente justo
e bom, misericordioso e paciente, não podem conceber que Jesus fora
criado de forma especial, com privilégios, mas sim que ele representou
a perfeição divina oriunda do esforço de um espírito que passou pelos
degraus da evolução e hoje olha por seus irmãos mais novos com olhar
amoroso e terno, o qual pode ser sentido quando o evocamos em nossas
orações.
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1 Como era o mundo de Jesus
“...Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que
procede da boca de Deus” (Mateus 4, 4).
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1.1 Como era o mundo romano na época de Jesus?
Os judeus criaram maravilhosas crônicas sobre à relação entre o
Povo escolhido e Deus, onde os justos e devotos eram abençoados com
uma vida longa e farta, mas poucas tem algum fundamento histórico.
Reis como Davi e Salomão, longe de serem grandes senhores da
Palestina, estavam mais para líderes tribais e regionais do que grandes
soberanos. Os faraós do Egito praticamente os ignoraram e isso, na
antiguidade, significava que não ofereciam maior interesse para um
conquistador poderoso. Não estamos colocando a historicidade bíblica
em cheque, mas apenas lembrando que esse livro enaltece feitos e
personagens que não tiveram a importância que hoje damos a eles. O
principal papel de Moisés, Davi e Salomão, dentre tantos outros
profetas e reis, era o de criar condições para a consolidação do
monoteísmo judeu e lançar as bases para a chegada daquele que
chamaria Deus de Pai, daquele que acreditava que o inferno e o céu,
bem como o Reino de Deus, refletiriam o nosso interior, nos nossos atos
e pensamentos.
Nos séculos que se seguiram ao estabelecimento das diferentes
monarquias de Israel e Judá, a partir de, aproximadamente, 1500 a.C.,
Jesus iniciou o processo de descida vibratória que culminaria com sua
encarnação na Palestina. Durante esse período, o mesmo conselho
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diretor do planeta, por vezes denominado de governo oculto do mundo,
que se reunira outrora para a criação do planeta, há 4,6 bilhões de anos,
estava mais uma vez reunido para estabelecer as condições adequadas
para o nascimento do espírito sublime que mudaria a relação dos
homens com Deus.
No seu processo de adensamento vibratório, o mestre executou
notável papel de peregrino do evangelho em todas as esferas espirituais
que nos envolvem e em outras dimensões do nosso orbe, onde textos
tão ou mais esclarecedores que os evangelhos do nosso cânone
(conjunto de textos bíblicos inspirados) foram redigidos. Ele oferecia, a
cada grupamento espiritual visitado, aquilo que seus habitantes estavam
preparados para receber. O ponto final dessa descida não foi o nosso
plano de vida encarnada, uma vez que ele ainda desceu aos abismos e
trevas subcrostais, após o calvário, de onde ascendeu para as esferas
gloriosas.
Durante esses quase mil e quinhentos anos, a terra de Israel foi
assolada por egípcios, babilônios, assírios, medo-persas, gregos e, por
fim, romanos. Nessa época, uma questão sempre era lembrada quando
os judeus devotos eram submetidos ao domínio estrangeiro: se somos o
povo escolhido por Deus, por que fomos derrotados e ocupados pelo
inimigo pagão?
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Essa questão foi discutida por gerações, ao longo de séculos, e o
resultado foi a idéia de que Deus permitira e derrota de seus escolhidos
e a destruição do primeiro Templo, o Templo de Salomão, em função
dos pecados do povo, devido à sua apostasia e iniquidade. Nos dois
séculos que antecederam o advento do Servo do Senhor, Jesus, surgiram
grupos judaicos que pregavam a observância radical às leis, como os
essênios e qumramitas, que consideravam o judaísmo formal tolerante
demais com a impureza ritual e com os usurpadores do Templo,
sacerdotes que não descendiam da casa de Zadoque (ou Sadoc) e que
não poderiam exercer essas atividades na casa de Deus. Lembre-se que
muitos judeus acreditavam que Deus realmente morava no Templo.
Outros grupos, mais liberais e dispostos a uma postura menos
literalista das leis mosaicas também existiam, sendo que, embora possa
parecer estranho aos ouvidos modernos, os fariseus constituíam o
principal grupo liberal que aceitava discutir a lei e suas nuances,
aceitando como correto as tradições de seus ancestrais. Quando
discutiam com Jesus, geralmente adotavam postura de respeito e de
pessoas interessadas no conhecimento demonstrado pelo galileu.
Contudo, a forma com que os evangelhos os apresentam é fruto de
rivalidades entre fariseus e judeus cristãos da época em que os textos
foram escritos (de 70 d. C. a 95 d. C.) e não a realidade do tempo de
Jesus: homem e espírito
29
Jesus, 60 anos antes. Isso teve sérias consequências para a vida de todos
os judeus europeus nos 1900 anos seguintes, como já citado acima.
A grande maioria da população não se filiava a qualquer grupo
filosófico ou religioso dentro do judaísmo e seguia sua fé de acordo
com as suas possibilidades, em sinagogas locais. A opressão econômica
e a crise judaica, no início da dominação romana, fizeram com que o
povo simples viesse a esperar alguém dos Céus, que intercederia junto a
Deus e restabeleceria a soberania do povo autóctone sobre a terra de
Israel, enquanto outro escolhido divino seria alçado a condição de
Sumo Sacerdote do Templo, a Casa de Deus. Embora minoritários,
também existiam grupos que acreditavam que a profecia de Isaias seria
realizada integralmente, onde o Servo do Senhor seria humilhado e
sacrificado pelos pecados dos homens, constituindo um Messias
sofredor, como Jesus bem personificou durante sua passagem pelo
nosso plano físico.
O ardor dessa fé era diretamente proporcional às provações que
a população mais empobrecida passava e lembre-se que os romanos
criaram uma máquina perfeita para arrecadar tributos e isso pode ser
observado quando encaramos o desprezo com que os judeus se referiam
aos coletores de impostos e a relevância da expressão “dar a Cesar o
que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus”. A dominação romana vinha
30
somada a uma significativa deterioração das condições de vida dos mais
miseráveis e a um sentimento de que algo precisava ocorrer para
restabelecer a soberania do povo escolhido por Deus.
A Palestina romana era parte da província da Síria, de onde o
governador romano enviava suas forças armadas em caso de agitações,
como várias vezes aconteceu entre os séculos I a.C a I d.C. Se hoje a
região parece conturbada, com palestinos árabes e palestinos judeus se
enfrentando, naquela época as agitações eram muito maiores e quando
graves revoltas estouravam, parcela significativa da população perecia
ou era vendida na condição de escravos, como ocorreu entre 66 d. C. e
73 d. C. Nesse mundo, a morte era a rotina e não a exceção. Os
governantes romanos não costumavam lavar as mãos perante decisões
difíceis e, por vezes, se utilizavam de exemplos dramáticos para manter
o povo controlado e submisso, com a colaboração de autoridades
judaicas que lucravam ou eram coniventes com a ocupação do solo
pátrio, não sendo bem vistas pela população em geral.
A administração dos domínios romanos, na Palestina, era
realizada por soberanos fantoches locais, como na Galiléia, ou por
procuradores e prefeitos romanos, como Pôncio Pilatos, na Judéia dos
últimos anos de vida de Jesus. Havia nítida divisão de poderes entre o
poder temporal romano e o poder religioso dos sacerdotes do Templo:
Jesus: homem e espírito
31
aos romanos cabia manter a ordem pública e a cobrança de tributos,
enquanto os assuntos internos dos judeus eram administrados pelo
Sumo Sacerdote, que com frequência exercia seu poder em consonância
com o oficial romano. Os judeus tinham SIM o direito de julgar seus
concidadãos pelos crimes frente à fé ou distúrbios ligados às leis
judaicas.
Esses assuntos judaicos graves eram julgados pelo Sanedrin
(Sinédrio), que era composto por 71 membros, desde anciãos,
sacerdotes saduceus e alguns fariseus e ex-Sumos Sacerdotes. O
principal interesse desse grande Sinédrio era a manutenção das
obrigações e cerimônias religiosas para a comunidade judaica da Judéia
e da Diáspora que acorriam para o Segundo Templo, e o uso da Lei
Mosaica. Nas ocasiões festivas, como a Páscoa, quando muitos milhares
de pessoas com a religiosidade exaltada se encontravam em Jerusalém,
era o momento mais propício para líderes messiânicos tomarem a cena,
de forma que os líderes do Sinédrio e o prefeito romano ficavam de
sobreaviso, eliminando qualquer um que pudesse ser considerado como
perigoso, como ocorreu com Jesus.
A consequência mais palpável desse estado de coisas foi o
antagonismo da população para com tudo que representasse a ocupação
romana, como o Sumo Sacerdote saduceu, a elite econômica, os
32
colaboracionistas e, em última instância, o próprio poder romano
instituído. No início, esses movimentos de resistência tinham uma
conotação mais pacífica e queriam obter condições melhores para que a
população, além da preservação de suas práticas religiosas e culturais,
mas rapidamente evoluíram para movimentos armados, como aquele
representado pelos zelotas e sicários. Em pouco mais de 100 anos,
ocorreram mais de uma dúzia de levantes populares, culminando com a
grande Guerra dos Judeus, também conhecida como a primeira grande
revolta contra Roma, onde aproximadamente 30% da população
palestina perecera e igual número fora convertido em escravos.
Um dos períodos mais pacíficos do século I d.C. se deu durante
o ministério de Jesus, de forma que não devemos pensar que o mesmo
estava tão imerso em movimentos políticos amplos e de grande
repercussão, pelo contrário, o que parecia preocupar mais o mestre
galileu não eram as consequências da ocupação romana, considerada até
tolerante para com os judeus, mas sim o estado de desagregação do
povo judeu naqueles tempos e o estado social degradante.
Se olharmos o período que antecedeu e que sucedeu o ministério
do mestre veremos que Jesus trabalhou em uma das raras brechas de
paz no Mediterrâneo Oriental e isso se deu, pelo que nossos
companheiros espirituais nos passaram, pelo adensamento e
Jesus: homem e espírito
33
estruturação do poder romano na região, o que limitava possibilidades
de revoltas populares sem grande respaldo da massa, e, principalmente,
pelo saneamento parcial das áreas umbralinas e trevosas nas décadas
que antecederam o nascimento do menino Jesus. Esse processo ocorreu
em todos os planos espirituais que nos envolvem e destinava-se a elevar
ligeiramente as condições vibratórias do mundo, para minimizar os
choques que o sublime reencarnante indubitavelmente teria pela frente.
Muitos dos espíritos que foram afastados da convivência terrena e
umbralinas somente voltariam a reencarnar século ou milênios depois e
foram os mesmos responsáveis pela intolerância e guerras de conquistas
e de cunho racial no século XX.
Esse saneamento, para tornar a psicosfera planetária mais
adequada para o nascimento do menino bondade, atingiu 20% da
população de espíritos ligados aos planos mais próximos à Terra, que
foram impedidos de ter contato com a crosta terrena, por períodos que
variaram de décadas a muitos séculos, reduzindo o desconforto do ser
sublime que iria mudar a história humana.
Essa contenção dos espíritos mais trevosos também objetivava
impedir que os mesmos viessem a interferir com o livre arbítrio das
pessoas com as quais o Messias galileu entraria em contato, e não por
representarem perigos para Jesus. Como ninguém desconhece a
34
influência que os espíritos possuem nas nossas vidas e atitudes, a
manutenção desses irmãos dos planos mais densos e abismais fora do
contato direto com a população palestina acabou por reduzir as tensões
sociais que aquele povo experimentava. Assim, nos anos seguintes ao
nascimento do mestre, a Palestina, terra que experimentava as crises
mais viscerais, parecia adormecia com sonhos tristes, mas leve
esperança brilhava nas colinas do Norte, ao redor de um pequeno
povoado perdido entre centenas de vilas com população minúscula, na
Galiléia.
Além dessa contenção, observou-se o reencarne de milhares de
entidades que, prestes de expiar seus erros do passado, vinham buscar a
luz e o amor personificados na figura séria, mas singela, do messias de
Nazaré. Muitos desses espíritos traziam chagas e seriam
providencialmente liberados de seus estigmas físicos, ligados ao
passado, quando entrassem em contato com o mestre. Nos planos
espirituais formaram-se centenas de pequenos grupos de trabalho que
deveriam assessorar Jesus nas curas e trabalhos de natureza mediúnica.
Assim, vê-se nas palavras do mestre, a necessidade do merecimento e
da fé do suplicante para a obtenção da graça pedida. Em um trabalho de
rápida consulta mental, tinha-se exatamente quem era estimulado a se
aproximar dele e quem deveria se abster. Todos esses personagens
Jesus: homem e espírito
35
estavam renascendo para mostrar a amplitude da lei de Ação e Reação e
da misericórdia divina.
Dentre esses irmãos que foram mantidos em contenção, destaca-
se a figura central de Adolf Hitler, uma alma viajante, filha de um
expurgo planetário anterior e que habitava o planeta há milênios, tendo
sido mantida em sono induzido do século II a. C. até fins de século
XVII, quando reencarnou como uma criança completamente
dependente dos pais devido a deformidades e, após o desencarne, se
preparou para sua última vida terrena, que lançaria o mundo na pior de
suas guerras apocalípticas. Hoje esse irmão não está mais no orbe
terreno, tendo sido encaminhado para orbe primitivo, uma espécie de
reformatório sideral para irmãos com pesados carmas negativos.
Para aquela sociedade com forte estratificação social, o Mestre
se manifestava para todos e, em todos os momentos, de forma simbólica
ou explícita, mostrando que o caminho estava na reunificação de todos
aqueles que faziam parte do povo escolhido e a procura constante do
Reino Deus. Esse reino já se fazia presente nas curas e na paz anterior e
o ingresso para adentrá-lo era a reforma íntima (ler o sermão da
montanha, em Mateus 5). Esse é o caminho preconizado por todas as
religiões de cunho cristão, embora com diferentes ênfases.
36
Uma mensagem dessa seria considerada subversiva pelas
autoridades romanas, muito mais do que para o Sinédrio, e poderia ter
sido absorvida pelos embriões dos movimentos de resistência armada
que se infiltravam na população e dariam início á grande revolta judaica
40 anos após a crucificação do mestre galileu. É importante ressaltar
que as palavras de Jesus se somavam a de muitos outros movimentos de
cunho messiânico que pululavam na Palestina, mas em Jesus a
mensagem saía do coração. O carisma do messias nazareno, associado
aos seus inúmeros dons, tornavam-no extremamente perigoso aos olhos
do dominador estrangeiro e do poder religioso constituído.
A sociedade palestina, na época do nascimento de Jesus, se
caracterizava por uma forte tendência à urbanização e consequente
desprezo pelo trabalho manual e pela classe rural, camponesa, severa
estratificação social e econômica, instabilidade política, estados fracos,
rígida segregação sexual, tendência de se apoiar em núcleos familiares,
código de honra e vergonha exacerbados, rivalidade entre os povoados e
uma notável influência de superstições e crendices. A riqueza era
perseguida com a mesma cobiça de uma sociedade capitalista moderna,
mas seguindo o princípio de que tomar ou esmagar era a única via
válida para obtê-la, não havendo o mínimo interesse na produção e no
trabalho, de forma que o método de acúmulo de riqueza da antiguidade
Jesus: homem e espírito
37
passava pela espoliação de outra pessoa, o que ajuda a entender a reação
de Jesus frente a riqueza material
Quanto à expectativa de vida da população, um terço das
crianças que sobreviviam ao parto morriam antes de completar 6 anos
de vida. Chegar à idade adulta era um prêmio para 25% da população e
apenas 3% dos nascidos vivos atingia 60 anos. A população palestina,
ao ver um homem de 33 anos crucificado, encarava a perda de um
sobrevivente da miséria, enquanto para nós isso seria a morte de alguém
muito jovem, no apogeu de suas faculdades intelectuais.
As doenças mais corriqueiras, como abscessos cutâneos e
infecções de toda monta rapidamente se convertiam em condições
potencialmente fatais. Daí o espanto das pessoas comuns diante de um
mestre de sabedoria incomum e com dons de cura tão pronunciados
quanto Jesus; ele foi a única possibilidade de cura física e espiritual
para muita gente. Era o médico do corpo e da alma de muitos. Nessa
época havia o predomínio das reencarnações compulsórias e
pouquíssimos indivíduos retinham detalhes de suas vidas pregressas,
que normalmente eram interpretadas como sonhos ou devaneios vagos,
ou mensagens dos deuses, de forma que a sabedoria e a visão de Jesus
contrastavam com o ambiente espiritualmente pobre que o envolvia. Se
38
as pessoas eram materialmente pobres, espiritualmente eram
paupérrimas e isso mudou muito pouco em 2000 anos.
Os romanos costumavam exportar sua violência, criando, na
periferia de seu vasto império, um estado de instabilidade e de alerta
que parecia unir os povos latinos ao redor de Roma, frente ao
barbarismo da periferia, onde povos marginais e sem leis “deveriam”
viver sob os auspícios “civilizatórios” da metrópole. A coleta dos
impostos pelos oficiais romanos estava muito próxima da perfeição e
tudo era baseado no tamanho da população e na renda gerada pelo
trabalho. Obviamente, para os ocupantes do centro, a paz romana criava
condições únicas de movimentação, domínio e comércio, a despeito do
desprezo com que essa atividade era encarada.
As forças armadas romanas eram extremamente organizadas e se
distribuíam de forma a cobrir rapidamente todo o império em caso de
necessidade. A medida que o poder do império se ampliava, novos
territórios eram incorporados e a fonte de mão de obra escrava não se
esgotava. Pode-se dizer que a guerra permitia a espoliação de riquezas e
garantia a escravidão, indispensáveis nas grandes propriedades
romanas. As fronteiras do império foram estendidas até limites naturais,
como as margens dos rios Reno e Danúbio, Eufrates, Tigre, até as
Jesus: homem e espírito
39
montanhas do sul da Escócia, o que garantia proteção extra em caso de
assalto de bárbaros, como todos os não-romanos eram chamados.
A espiritualidade maior trabalhou para que a paz romana,
cunhada pela força das armas, viesse a imperar, como forma de
conquistar alguma estabilidade política, enquanto o idioma grego e
latino se tornavam (o grego já havia se tornado) línguas francas para
que a missão de Jesus se desenvolvesse satisfatoriamente e permitisse a
ação dos apóstolos após sua morte física. As pregações de Paulo seriam
inviáveis se o império romano não existisse na época e isso está ligado
à tolerância relativa que os romanos manifestavam com as crenças dos
povos conquistados e o sistema bem definido de leis que imperavam
dentro de suas fronteiras imperiais.
Os judeus sempre apresentaram um apego extraordinário às suas
tradições, mas quase sempre se mostraram receptivos às influências
externas, que acabaram moldando seu credo. Foi o contato com a
religião de outros povos, como o zoroastrismo medo-persa e babilônio
(de onde importaram o conceito de que existiria uma oposição entre o
Bem e o Mal), é que conceitos atualmente bastante estabelecidos na
cultura judaico-cristã se desenvolveram, como a noção de Paraíso,
inferno, um juízo final no fim dos tempos e muitos outros elementos
que parcela bastante significativa dos judeus do século I d. C.
40
acreditava. A dominação romana, com seu imperador-deus, criou uma
série de conflitos contra o que os judeus consideravam como o cerne de
sua fé, ou seja, a negação de idolatria e a santidade do Templo,
considerado a casa verdadeira de Deus.
A maior virtude que o povo hebreu fornecia para o projeto
reencarnatório do mestre divino era sua dedicação à imagem de um
Deus único e infinitamente bom e poderoso. Nessa época, para o
nascimento do cristianismo, faltava apenas "tirar" Deus do Santus
Sanctorum, local do Templo onde julgava-se que o Pai residia, e
colocá-lo nas ruas e nas mentes das pessoas, na figura do Pai justo, mas
infinitamente bom e misericordioso, que saía da boca do mestre galileu
em inumeráveis parábolas que não foram registradas no cânone. Faltava
mostrar que o Deus de Abração nunca havia se afastado de seus filhos
terrenos, mas esses últimos sim tinham corrompido, pela sua ignorância
e falta de fé, o contato com o Altíssimo. A população que receberia o
mestre em seu seio apresentava os mesmos problemas que constituem
os maiores grilhões que impedem a nossa ascensão a planos de vida
mais elevados: o orgulho, a cobiça, o egocentrismo, o ódio e a
indiferença, associados a uma ignorância sem tamanho sobre a vida
espiritual (veja como as coisas pouco mudaram!).
Jesus: homem e espírito
41
Foi nesse mundo violento, mas organizado por um poder
externo, que nasceu Jesus. Seu nascimento ocorria na momento do
amadurecimento da mentalidade religiosa judaica, com
questionamentos sobre a validade dos sacrifícios no Templo e a
necessidade de mudanças interiores para a obtenção da salvação
prometida pelo Deus de Abraão. Espíritos angelicais passaram a
acompanhar os pais e avós de Jesus, zelando para que o assédio de
forças das trevas fosse reduzido. Essas forças oriundas dos abismos
sabiam que o futuro messias deveria nascer de algumas das famílias
mais pias de Israel e cabe ressaltar que todos os ancestrais diretos de
Jesus foram alvo de assédio contínuo da perversidade institucionalizada
das legiões que seguiam os dragões da escuridão (nome bíblico dado
aos que as religiões cristãs literalistas denominam de demônios, como
Lúcifer, nome simbólico de um dos principais líderes dessas falanges
renitentes), mas graças à zelosa proteção individual e à postura familiar,
o assédio das sombras não teve qualquer efeito. Não podemos esquecer
que o próprio Jesus teve contato com um emissário das trevas, de forma
que a tradição da tentação no deserto tem fundo real, embora bastante
diferente do que nos é apresentado no evangelho.
A fome, miséria, violência desmedida e preconceitos de todo o
tipo faziam com que a vida fosse um verdadeiro desafio e espíritos
42
especializados nos trabalhos de vampirismo e fascinação grassavam por
todo o império dos césares, sendo esses últimos as principais vítimas e
instrumentos de entidades dos círculos mais perversos que sabiam da
vinda do governante maior do orbe. O nascimento do enviado divino
significava que logo, do ponto de vista da escala temporal divina,
ocorreria novo expurgo planetário e as entidades que não estavam
afinadas com o progresso experimentariam novo degredo, semelhante
ao que haviam sofrido no passado imemorial, quando foram obrigados a
deixar seus mundos originais e convocados a mergulhar na carne dos
primatas e hominídeos do paleolítico terrestre, para assim contribuir
com o desenvolvimento intelectual do homem, enquanto tinham a
possibilidade de expiar seus próprios erros. Aqueles que não aceitaram
o reencarne se mantinham como "príncipes" das falanges trevosas e,
mesmo mantidos em contenção, podiam convocar seguidores em outros
planos para o assédio ao povo e o ataques aos enviados do Alto.
Todavia, é um mistério profundo as condições mais específicas
que reinavam no seio da família que iria abrigar o mestre, mas sabemos
que aqueles que vieram a ser seus pais e irmãos, em função dos nomes
que lhe são atribuídos nos textos bíblicos, eram pessoas bastante
religiosas e tudo na bíblia nos evidencia que eram judeus praticantes e
bastante zelosos com a fé, o que faria com que Jesus fosse conhecido
Jesus: homem e espírito
43
como um "nazareno" (esse termo não tem relação com a vila de
Nazaré). Esse termo caracterizava um grupo de pessoas extremamente
religiosas e que cultivavam o zelo com a lei em sua forma mais
humana.
Cabe ressaltar que a Galiléia havia sido incorporada ao universo
judaico durante o reinado dos reis macabeus, dois séculos antes do
domínio romano, e para lá foram enviadas muitas famílias judias, além
de conversões de muitos dos antigos moradores. Assim, havia um certo
tom de preconceito entre os judeus da Judéia, de Jerusalém em especial,
contra os judeus da Galileia, posto que muitos desses últimos poderiam
não ser descendentes de Abraão, o pai dos judeus, o que não era o caso
de Jesus, um legítimo judeu da linhagem de Davi, com poucas
influências genéticas não semíticas.
Os familiares de Jesus haviam mudado para a Galiléia, vindos
da Judéia e essa mudança, nos anos que antecederam o seu nascimento,
ficou gravada nos anais do cânone nas Narrativas da Infância de Jesus,
onde se coloca erroneamente seu nascimento em Belém, quando o
mesmo ocorrera em Nazaré, embora parentes ainda residissem naquela
cidade da Judéia.
Muitos questionam se Jesus foi de fato o espírito mais evoluído
que já se aproximou da psicosfera terrestre e muitos espíritas defendem
44
ou questionam tenazmente a idéia de Jesus ter sido "apenas" um
médium que trabalhou com um mentor ainda mais sublime do que ele.
Quando encaramos a humildade que brotava das mãos e atos de Jesus,
vemos que isso é irrelevante. Não concordamos com essa idéia, mas
podemos dizer com segurança que ele foi e sempre será o homem que
subiu na pedra do calvário pedindo perdão ao Deus Altíssimo em nome
dos seus pequeninos irmãos, que o estavam desprezando em prol de um
messias guerreiro e dotado de grande poder temporal. Jesus veio para
nos dar as armas da reforma íntima e não derrubar muralhas ou
fortificações.
Jesus nasceu e morreu judeu. Por isso precisamos conhecer um
pouco as diferentes nuances daquela fé do século I. d.C. Vamos?
1.2 O judaísmo no tempo de Jesus
Pode parecer enfadonho para um leitor moderno pensar nos
tempos do nascimento, vida e crucificação de Jesus. Tantos livros e
tantos filmes mostram os romanos e os judeus do Sinédrio; tantos
pontos de vista e a maioria deles é mutuamente excludente.
A quase totalidade dessas obras ou é doutrinária ou apresenta
Jesus como um homem moderno e libertário vivendo entre seres
humanos animalizados. Isso é muito diferente da realidade. Ele de fato
Jesus: homem e espírito
45
era libertário, mas não podemos construir um bloco coeso do restante da
humanidade, como hoje também não podemos fazê-lo e pelos mesmos
motivos.
O judaísmo do período do segundo Templo (515 a.C. a 70 d.C.)
era extremamente rico e variado de forma que muitos preferem chamá-
lo de “judaísmos”.
Os judeus da época, como os cristãos atualmente, apresentavam
grande variedade de crenças, por vezes discordantes entre si, sendo
muito difícil traçar uma linha mestra capaz de unir a todos que se
sentiam ou se denominavam "judeus", tampouco os romanos eram
criaturas sem alma ou que sentiam excepcional prazer em gerar dor
alheia. Os invasores vindos de Roma eram práticos e procuravam
utilizar da menor dosagem eficaz de violência e controle para manter
suas províncias pagando o seu estilo de vida, como fica claro na
maravilhosa obra "Há 2000 Anos", psicografada por Francisco Cândido
Xavier, de autoria espiritual de Emmanuel.
O judaísmo experimentava uma grande mudança de perspectivas
nas décadas que antecederam o nascimento de Jesus. As expectativas
messiânicas, ao longo dos três séculos anteriores, haviam criado uma
sensação de que os momentos finais daquela época haviam chegado.
46
Parecia que Deus Altíssimo tinha se cansado do homem comum e que o
julgamento final seria realizado a qualquer momento. Isso tudo em uma
intensidade muito maior do que nós mesmos, no século XXI, sentimos
Olhe que hoje existem milhares de igrejas que pregam o fim do mundo
a todo momento e isso não era nada comparado com o que havia no
século I d. C.
Esse era o clamor do milenarismo judaico, como hoje existe o
milenarismo cristão nas igrejas mais literalistas, esperando o
arrebatamento dos justos e o julgamento do ímpios, com o retorno de
Jesus em sua Glória de Guerreiro Celestial, com hordas de anjos
espalhando a luz com tambores, lanças e espadas flamejantes.
Ironicamente, Jesus pregava o perdão e a reforma íntima; as espadas
eram simbólicas e representavam a dor que segue à instauração da
ordem; a espada que se volta contra os erros de cada um e que necessita
ser extirpada com o burilamento pessoal.
O mestre de Nazaré, de certa forma, também sentia e refletia
esse estado de espírito apocalíptico, posto que conhecia a urgências das
transformações que a humanidade iria passar. Evitava exasperar as
expectativas milenaristas e apocalípticas daqueles que viam nele a
chegada do prometido, pregando e demonstrando humildade, e, ao invés
de procurar as diferenças entre a igreja nascente (nascia naturalmente,
Jesus: homem e espírito
47
mesmo sem a aparente intenção de Jesus) e os judaísmos de então,
frisava a existência de denominadores comuns em todas essas filosofias,
como a existência de Deus, a ação de forças do bem e do mal sobre a
vida do homem comum, a necessidade de mudanças interiores para
atingir um estado que viesse a permitir ao homem comum entrar em
outro padrão de comunhão com o Criador. Mas mesmo esses elementos
não eram universais em todos os grupos judaicos. Como veremos a
seguir, com exceção da crença no Deus Pai, Único e Soberano, nada
mais existia que unificasse as concepções judaicas, de forma que
podemos dizer que existiam, verdadeiramente, diversos "judaísmos" nos
séculos I a.C. a I. d. C.
Para se compreender o sentido amplo da mensagem de Jesus,
deve-se procurar, inicialmente, entender a história do povo judeu, suas
frustrações e anseios, que levaram ao desenvolvimento de diferentes
expressões do judaísmo até a queda do Segundo Templo, em 70 d. C.
Não se pode esquecer que, em uma sociedade com fortes tendências
teocráticas, quando falamos de grupos religiosos, também nos referimos
a grupos políticos. Para muitos judeus, para termos uma idéia, Deus
morava no interior do próprio Templo, enquanto outros diziam que a
miséria se abatera sobre a nação porque o próprio Senhor se cansara do
48
povo escolhido e havia se retirado, deixando o terreno aberto para os
tiranetes e seus enviados.
Mas o que significava ser judeu no século I d. C?
Essa questão pode parecer mesquinha e muito deslocada no
espaço e no tempo, mas temos que nos libertar de estereótipos
modernos. É claro que quase todos conhecem a imagem do judeu
ortodoxo caminhando com seu solidéu ou sabem de algumas de suas
crenças, como o Deus único, na chegada de um messias e na oposição
que fazem ao cristianismo e suas numerosas ramificações, porém não
podemos nos esquecer que, em nome de Jesus (obviamente sem o
menor consentimento dele) muitos milhões de judeus pereceram em
mãos cristãs. Também não podemos negar que o cristianismo se
desenvolveu dentro do judaísmo, como uma nova maneira de interpretá-
lo e se apropriando de todos os conceitos da religião mãe, mudando-
lhes o enfoque, algo semelhante ao que o espiritismo cristão fez com o
cristianismo literalista do passado.
Durante anos, pensou-se existir um judaísmo helenizado, na
Diáspora, entre os judeus que haviam saído da Palestina e utilizavam a
língua grega, e outro mais palestino e tradicional, na Judéia e Galiléia,
mas essa idéia teve de ser abandonada, visto que mesmo o judaísmo da
Palestina apresentava influências helenizantes, gregas, como a crença,
Jesus: homem e espírito
49
cada vez mais aceita, da imortalidade da alma, ligada aos filósofos
atenienses, os mesmos que propunham a reencarnação, ou palingenesia.
Muitos desses filósofos gregos, como Sócrates e Platão, foram enviados
do Alto e tinham o objetivo de preparar o mundo do inconsciente
Mediterrâneo para o advento do Messias, do Cristo.
Alguns espíritas chegam a acreditar que Sócrates teria sido uma
encarnação prévia do mestre Jesus, enquanto outros o colocam como o
mesmo espírito de Buda e de outros mestres sublimes, o que não tem o
mínimo respaldo na literatura espírita mais tradicional, como a deixada
por Kardec e nosso querido Chico Xavier. Jesus NÃO reencarnou na
Terra, ele apenas encarnou aqui uma vez e foi crucificado pelo que
pregava. Nós, que o crucificamos, ainda não aprendemos o singelo
amor ao próximo que ele tanto solicitava como chave para o paraíso.
O entendimento da diversidade do judaísmo no início da era
comum depende de uma compreensão das mudanças do próprio
conceito de “ser judeu”. Até o século II a.C. o conceito de “ser judeu”
não estava bem estabelecido, sendo, por vezes, empregado para
designar um membro da tribo de Judá e, depois, um habitante da Judéia.
Porém, logo antes da ascensão dos reis macabeus ou hasmoneus, esse
substantivo passou a designar a todos que tinham Yaveh como seu Deus
Único e seguiam os preceitos da lei mosaica.
50
O termo judeu era empregado especialmente pelos gentios, já
que os seguidores de Moisés se autodenominavam de “povo de Israel”.
Com as sucessivas conquistas da Palestina por assírios, babilônios,
medo-persas e macedônios, ocorreu um enfraquecimento do
componente territorial na mentalidade e identidade judaicas e se
fortaleceu o fator cultural e religioso entre os judeus, como podemos
ver até no presente, mesmo com a recriação do Estado de Israel em
1948.
A diversidade cultural dentro do judaísmo no século I d. C. não
é compreendida totalmente nos dias de hoje, mas podemos dizer que a
mesma era muito grande e inimaginável há alguns anos. Vários grupos
religiosos disputavam a interpretação da lei mosaica, baseada no
Pentateuco e nas tradições de seus ancestrais. Havia pesada discussão
entre os judeus para se saber o que era ou não santo e sagrado e muitos
livros judaicos foram considerados inspirados por Deus e depois
abandonados. Em outras palavras, NÃO HAVIA UM CÂNONE
JUDAICO ESTABELECIDO, ou seja, os judeus não se entendiam
sobre o que devia constar ou não daquilo que hoje chamamos de bíblia.
Não existia uma fé judaica normativa tão bem estabelecida e a
maior dificuldade é se determinar com precisão o que era ser judeu
naqueles dias. O próprio livro do Apocalipse, também conhecido como
Jesus: homem e espírito
51
o Apocalipse de João, demorou para ser incluído no cânone cristão
porque muitos acreditavam que esse era um livro essencialmente judeu.
Da mesma forma, como analogia, seria muito interessante nos
questionarmos o que é ser cristão atualmente. Por exemplo, muitos não
consideram, erroneamente na nossa opinião, o espiritismo como parte
do cristianismo.
Não existiam limites muito nítidos da fé judaica logo após o
retorno do exílio na Babilônia, no período do Segundo Templo e
mesmo no início da era rabínica. Existia apenas um conjunto de crenças
reconhecidas como de origem divina. De tempos em tempos, novos
líderes emergiam e redesenhavam os contornos desses judaísmos, de
forma que até a destruição do segundo Templo e o surgimento do
rabinato, a fé judaica era como uma trança formada de muitos fios que
se mantinham mais ou menos unidos pela fé na providência divina e na
existência de um único Deus.
No século I d. C., pelo menos até o concílio de Iabné (Jamnia),
não havia um cânone universalmente aceito pelos judeus, sendo que, até
então, a unanimidade era a aceitação dos livros da Torah (Pentateuco).
Em segundo plano, também considerados pela maioria dos judeus como
de inspiração divina, tinham-se os Profetas (Neviim) e os Escritos
52
(Ketubim), formando com suas iniciais a palavra TNK (TeNaK), o nome
da bíblia em hebraico.
Os judeus reconheciam a existência de um reino divino habitado
por seres divinos, como anjos e arcanjos, e adoravam o Deus único
através de sacrifícios e oferendas de produtos alimentares, sendo que,
como veremos a seguir, esse ritual era realizado no Templo e devia
satisfazer às necessidades individuais e coletivas. O judaísmo era uma
ilha de monoteísmo em meio ao mar politeísta, o que ajuda a entender
os motivos pelos quais se aferravam tanto á sua fé e a Deus.
Além dessa singularidade, a religião de Jesus era a única que
tinha regras de conduta e tradições redigidas e mantidas em um livro, o
qual era aceito, independentemente de qual era o cânone adotado pelos
diferentes grupos judeus, como inspirado pelo próprio Deus. Daí o
papel desempenhado pelas muitas escrituras citadas pelo messias de
Nazaré e a importância que os primeiros judeus cristãos davam aos
livros do Novo Testamento e do Antigo Testamento. Os muçulmanos
consideravam, nos séculos seguintes, os judeus e os cristãos como
sendo os "povos do livro".
Nesse amplo sentido, hoje vemos os cristãos tradicionalistas
aferrados a uma bibliolatria que não permite a livre discussão e
compreensão dos livros do cânone posto que, na opinião desses nossos
Jesus: homem e espírito
53
dedicados irmãos, tudo é sagrado e a interpretação deve ser literalista
sempre que possível. O mundo muda e tudo muda com ele, inclusive o
sentido que a mensagem divina deve traz. Não podemos viver hoje com
os hábitos e costumes do mundo do século X a. C.; Jesus não vivia e
adaptava os antigos costumes ao seu mundo e isso criou muitos
problemas para ele e os primeiros cristãos, no seio da comunidade
judaica mais tradicionalista.
Um dos poucos pontos que separavam um judeu grego, ou da
Diáspora, de um cidadão de língua grega e de origem não judaica era a
negação por parte do primeiro de todo tipo de idolatria. Como a
existência de ídolos e deuses maiores e menores caracterizava toda a
cultura greco-romana, a repulsa por seguir e participar das atividades
sociais, quase sempre dedicadas aos deuses, tornava a comunidade
judaica uma entidade mais separada e fechada, mal quista pelos de fora.
Por essas características, os hábitos judeus eram ridicularizados pelos
romanos e demais povos considerados cultos. Entretanto, no mundo
romano, as tradições ancestrais tinham muito valor e todos reconheciam
que a fé judaica era antiga e seus praticantes eram relativamente
respeitados, o que não ocorria com os primeiros cristãos, que eram
considerados culpados por todo tipo de acidente natural, uma vez que
não ofereciam tributos aos deuses.
54
Para os judeus, o Templo era visto como a morada de Deus, o
que explica porque eles o defendiam com toda a gana e dá uma
conotação teológica muito especial á passagem em que Jesus,
supostamente, faz a expulsão daqueles que, em sua opinião,
profanavam-no. Mesmo as seitas mais sectárias admitiam a importância
do Templo, embora algumas tenham abandonado o contato com o
mesmo por considerarem-no profanado pelas sucessivas linhagens de
Sumos Sacerdotes. Alguns grupos, como as primeiras comunidades de
judeus cristãos, estavam procurando uma alternativa de louvar a Deus
que não envolvesse o sacrifício de animais para a remissão dos pecados,
mas não tiravam o Templo do papel de centro do judaísmo e casa de
Deus. Lembrem-se que, por muitos anos após a crucificação de Jesus,
os apóstolos pregavam aos frequentadores do Templo e o irmão do
mestre, chamado de "Tiago o irmão do Senhor" por Paulo de Tarso,
encontrou ali a morte no ano 62 d.C.
Dentro do complexo Judaísmo-Templo ainda merece destaque o
papel do Sumo Sacerdote judeu, que era a maior autoridade dentro da
comunidade judaica, se relacionando diretamente com as autoridades
romanas. Durante o período romano, com a eliminação da realeza
judaica e o exercício do poder temporal pelo invasor, a figura do
sacerdote por vezes se confundia com a de líder político, principalmente
Jesus: homem e espírito
55
em uma sociedade teocrática que até no presente sente dificuldades de
criar um estado laico. Vejam os noticiários diários sobre a Palestina e
sintam a eterna luta entre o sagrado e o laico-profano naquelas colinas.
A circuncisão e as regras alimentares também eram fatores de
união entre os judeus e apenas aqueles mais helenizados, que
praticamente não se consideravam parte do judaísmo, é que deixaram de
respeitá-las. Biblicamente elas representam os sinal de que o indivíduo
fazia parte do rebanho do Senhor, procurando se manter puro para a
comunhão com Ele. Entre os primeiros cristãos, se é que podemos
chamá-los assim, a obrigatoriedade da circuncisão dos gentios e a
observância das regras de dieta tornou-se um ponto nevrálgico de
discussões e está no centro da narrativa dos Atos dos Apóstolos, que
deveriam ser chamados de "Atos de Paulo", que representou o grupo
vitorioso, pelo menos em termos numéricos, entre os descendentes dos
primeiros cristãos.
Nessas contendas filosóficas, de um lado Paulo, judeu grego e
culto, do outro, os apóstolos rudes e ignorantes de Jesus; de um lado
aqueles que pregavam para os não-judeus, do outro lado Pedro e a
maioria dos apóstolos de Jesus, que acreditavam que, para ser cristão, o
indivíduo deveria ser primeiro judeu e seguir as leis judaicas. O real
motivo para essas discussões se deve ao fato de que entre os primeiros
56
seguidores de Jesus, judeus palestinos, incluindo aí seus próprios
irmãos, havia a vívida noção de que ainda eram judeus e ninguém se
atrevia a dizer que haviam, de fato, criado uma comunidade separada do
judaísmo. Paulo tinha razão ao lembrar o caráter universal e libertário
da mensagem cristã, mas, infelizmente, nada sobrou dos pensamentos
de seus opositores, que, ao contrário de Paulo, haviam caminhado pelas
colinas da Galiléia com Jesus.
O sectarismo judeu no período intertestamental compreendia
uma série de nuances diferentes e muitas seitas surgiam e desapareciam
de uma hora para outra. Aparentemente, o surgimento desses
movimentos de reforma remonta o domínio persa sobre a Palestina e
sua maturidade foi atingida por volta do século II a.C., quando sua
legitimidade no seio da população judaica foi plenamente estabelecida.
Esses movimentos tiveram um fim brusco nos anos que se seguiram à
destruição do Templo de Jerusalém, em 70 d. C.
Esses grupos tinham maior penetração nas populações urbanas,
com pouca influência no campesinato, e acabavam criando polêmicas
contra as instituições sociais, em particular contra o Templo, sacerdotes
e suas práticas religiosas, como a pureza ritual, o sábado, a dieta, o
casamento, de forma que a força motriz desse sectarismo estava contida
na prática religiosa e não na formação teológica da população.
Jesus: homem e espírito
57
O historiador judeus Flávio Josefo descreve as principais
divisões dos judeus como fariseus, saduceus e essênios, mas nos parece
improvável que os judeus palestinos seguissem apenas essas três
orientações espirituais e, até certo ponto, políticas. Muitos outros
grupos foram omitidos ou por falta de representatividade ou por não
terem se mostrado, na opinião de Josefo, relevantes. Talvez menos de
5% da população se afiliavam a alguma dessas escolas religiosas e de
filosofia. Esse historiador judeu do século I d. C., em sua obra intitulada
Antiguidades Judaicas, introduz um quarto grupo, oriundo da Galiléia,
denominado de Quarta Filosofia, com nítidos traços dos sicários, um
grupo ultranacionalista judeu.
O período de transição entre o “cativeiro” na Babilônia e a
reconstrução do Templo pode ter colaborado para exacerbar a
observância das regras ancestrais. Após o turbulento domínio
helenístico, nos séculos III e II a. C., no qual vários governantes
tentaram impor leis, costumes e rituais pagãos aos judeus, chegando a
ponto de proibir a circuncisão, teria ocorrido um renascimento da
identidade, língua e tradições judaicas, que culminaram com a revolta
dos macabeus, liderada, inicialmente, por Judas Macabeus. Durante
alguns anos, os judeus conseguiram até a independência política
temporária, porém, os próprios macabeus, em função de suas divisões
58
internas, acabaram por jogar o país em um estado permanente de guerra
civil, atirando-o no colo do Império Romano, pelas mãos do general
Pompeu, como parte da província romana da Síria.
A revolta macabéia se desenvolveu sob o apoio de um grupo de
judeus denominados de “assideus (ou hassidim, em hebraico)”, que se
caracterizavam pelo apego à Lei e renascimento dos ideais proféticos.
Esperando o surgimento de um estado teocrático puro e que
restabeleceria a pureza do culto, esses assideus apoiaram os Macabeus,
mas logo ficaria patente que os novos soberanos se diferenciavam muito
pouco de seus predecessores estrangeiros e esse grupo religioso se
cindiu em outros, originando os essênios e fariseus mencionados por
Josefo. Contudo, as diferenças na interpretação da lei mosaica e
tradições orais já existiam antes do século II a.C. e apenas se
exacerbaram com as crises que se seguiram.
Na lenta evolução e cristalização das idéias, os hassidim que se
mantiveram politicamente ativos deram origem aos fariseus, enquanto
que um grupo mais radical e isolacionista daria origem aos essênios
que, liderados por um personagem denominado de Mestre da Justiça ou
da Retidão, teriam se estabelecido em diferentes comunidades no
deserto e na Judéia. Esses essênios acabaram absorvendo idéias
estranhas ao judaísmo tradicional, adquirindo conceitos vindos do
Jesus: homem e espírito
59
zoroastrismo e se isolando em locais ermos e comunidades mais
fechadas como reação à penetração da cultura e língua gregas na
Palestina.
As fontes sobre esses grupos “filosóficos” judaicos são
problemáticas, uma vez que praticamente toda a literatura judaica
posterior à destruição do segundo Templo tende a atribuir aos fariseus
toda sorte de pensamentos, ficando os demais grupos quase sem serem
abordados. Também são comuns os textos que tornam o farisaísmo
como sinônimo do judaísmo rabínico, que se desenvolveu após a
revolta de anti-romana de 66-74 d.C., uma vez que após essa data
apenas os fariseus sobreviveram como grupo coeso, talvez por serem
mais numerosos, enquanto os demais foram completamente suprimidos
ou destruídos pelos romanos.
Na grande revolta, a participação de todos os grupos judeus da
Judéia e, em extensão menor, Galiléia, foi significativa. De acordo com
Josefo (Guerra dos Judeus), fariseus e saduceus forneceram alguns
membros que, dentro de uma coalizão mais moderada, governaram os
rebeldes por um tempo, enquanto os essênios, vistos até então como um
grupo que apresentava total aversão ás armas, forneceram um general e
resistiram de forma impressionante, até mesmo irracional, aos romanos,
enquanto os sicários, verdadeiros guerrilheiros nacionalistas da época,
60
participaram de diferentes formas, culminando com a chacina da
fortaleza de Massada nas bordas do sul do Mar Morto, quando o
Segundo Templo já estava em ruínas.
Naquela época, a Galiléia era um ambiente cosmopolita, com
forte influência helenizante nas maiores cidades, uma das quais, Séforis,
ficava a poucos quilômetros de Nazaré, sugerindo que Jesus teria
sofrido influências de filósofos cínicos em sua formação. Em realidade,
essas filosofias tinham grande penetração pela visão mais
espiritualizada que transmitiam às populações urbanas. Nessa região do
mundo, o cinismo e o estoicismo estavam se fundindo com filosofias
populares, levando ao desapego às coisas e o abandono do mundo. O
filósofo Sêneca traduz bem esses pensamentos na frase “Um telhado de
palha costumava cobrir homens livres; sob um telhado de ouro e
mármore há apenas escravidão”. Indubitavelmente Jesus propagava
essa idéia de desapego aos bens materiais e hoje sabemos, no
espiritismo, o quanto o apego material é causa de sofrimento para o
espírito que acaba de deixar o mundo carnal.
A conversão tardia de muitos galileus gentios ao judaísmo, no
período dos Macabeus, fez com que muitos judeus da Judéia
considerassem que os galileus eram apenas superficialmente judeus, daí
alguma desconfiança em relação a Jesus, um judeu pio, praticante, cujas
Jesus: homem e espírito
61
raízes familiares remetiam diretamente ao tempo dos patriarcas. Nesse
sentido, é importante frisar que os judeus não encontraram nada de "não
judeu" em Jesus e isso os incomodava. Sua interpretação peculiar da lei
mosaica gerava discussões variadas e acaloradas, mas estavam dentro
do que a própria lei permitia e aceitava como adequado. Isso também
perturba muitos cristãos modernos que nutrem profundo anti-semitismo.
Essas características fariam do judaísmo galileu, que logo daria
origem ao cristianismo judeu, uma versão que valorizava o
comportamento piedoso e a pureza interior como contraposição aos
estereótipos importados do judaísmo formalista. Além de Jesus, a
Galiléia produziu muitos homens piedosos e carismáticos, como Honi e
Hanina ben Dosa, que possuíam mediunidade de cura e de efeitos
físicos e cujos nomes estão no Talmude. Esses homens, tidos como
santos, eram adorados e respeitados pela população da base da pirâmide
social pela proximidade que pareciam ter com Deus, a despeito de
serem menos literalistas com os códigos de leis, como Jesus também o
fazia.
1.3 As seitas judaicas e suas peculiaridades.
Quando nos referimos às palavras “seitas, sectos ou grupos”
judeus no século I d. C., nos referimos a indivíduos que desenvolviam
62
todos os aspectos de sua vida exclusivamente dentro do seu grupo,
evitando completamente o contato com os demais, algo inimaginável
entre as principais agremiações cristãs do presente. Assim, entidades
como o casamento, festas, comércio, hospitalidade eram, com poucas
exceções, restritas à comunidade religiosa em que o indivíduo e seus
similares mais próximos se inseriam. Quem não fazia parte do grupo,
não fazia parte do mundo judaico; era tão estrangeiro quanto os
romanos.
Do século II a.C. até II d.C. o ambiente palestino esteve
permeado de promessas messiânicas e de líderes carismáticos com
marcada ênfase escatológica (pregavam a iminência do juízo final),
gerando os profetas do final dos tempos ou apocalípticos, como João, o
Batista, para citar apenas aquele que é de conhecimento geral da
comunidade cristã. Vários documentos milenares encontrados, em
1947, no platô de Qumran, mostram uma preocupação com a chegada
eminente do reino de Deus, trazendo expressões que eram consideradas
uma exclusividade dos primeiros autores cristãos.
Para entendermos o cristianismo primitivo e seu messias, nosso
amado mestre Jesus, temos de conhecer o básico das seitas que com
eles partilhavam as mentes da população judaica. A seguir,
Jesus: homem e espírito
63
caracterizaremos brevemente os principais grupos judeus encontrados
na Palestina na época de Jesus.
1.3.1 Os saduceus
Seus integrantes representavam uma parcela significativa dos
principais postos na hierarquia do estado judeu e o mais elevado extrato
sócio-econômico da época, sendo que três dos soberanos macabeus
foram Sumo Sacerdotes saduceus.
Eram os mais ricos e poderosos. Durante grande parte do
reinado da dinastia macabéia, dominaram as atividades do Segundo
Templo e exerciam esse domínio de forma extremamente conservadora.
Foi apenas durante o período da rainha Salomé Alexandra (76-69 a.C.)
que os saduceus não estiveram no controle do poder religioso e político
do estado judeu.
Sabemos que Anás e Caifás (os principais líderes judeus durante
o julgamento de Jesus) eram saduceus, sendo que dos 60 anos de
administração romana direta, em Jerusalém, em 34 deles os saduceus
estiveram no poder e outros tantos anos mais sob a égide dos soberanos
macabeus. Contudo, não existe um único texto escrito que os retrate
com imparcialidade, de forma que temos de ter muito cuidado quando
incorporamos informações sobre esse grupo.
64
Pelas informações que o espírito Eleazar nos passou, ele mesmo
um fariseu (adversário dos saduceus), acreditamos que os integrantes
desse grupo procuravam manter o seu domínio econômico sobre a
população palestina e para tanto utilizavam a imagem de apego à lei
mosaica e nada que pudesse interferir nos seus negócios era aceito ou
permitido. Segundo esse espírito, esses judeus e os essênios
representavam os grupos mais radicais do judaísmo, embora em
extremos diferentes. Uma vez que a riqueza pessoal era bastante
valorizada como símbolo da boa relação do homem com Yaveh, os
saduceus se esforçavam para manter a riqueza em seu grupo familiar e
não se importavam em difundir suas idéias pessoais sobre os tempos
vindouros, o qual não contemplava grandes mudanças, motivo pelo qual
não apoiavam qualquer grupo nacionalista judeu e procuravam
estabelecer boas relações com os dominantes, independente de quem
fossem. Assim, eles teriam muitos motivos para se livrar rapidamente
de Jesus.
A observância das leis alimentares e do sábado parece ter sido
rigorosa entre os saduceus, comparáveis apenas aos essênios. Para os
saduceus, as expectativas escatológicas e apocalípticas eram uma
ameaça e isso ajudou a cristalizar o sentimento que os levaria a eliminar
Jesus, uma ameaça real à sua dominação.
Jesus: homem e espírito
65
Além disso, é sabido que, enquanto Jesus tinha um canal aberto
de discussão com os fariseus, não lhe foi permitido dialogar de forma
aberta e livre com os saduceus, com uma única exceção.
Esse antagonismo logo aparece de maneira clara e fica evidente:
os cristãos eram, de maneira geral, oriundos dos extratos inferiores da
sociedade, enquanto os saduceus eram o topo da pirâmide social; os
cristãos esperavam o reino de Deus, com seu banquete farto e bem
distribuído, enquanto a fartura da vida saducéia era considerada um
presente divino, de forma que esse grupo não tinha necessidade de
esperar um reino de Deus em outro plano. A mesa dos saduceus era
farta, para que então esperar fartura após o desencarne?
Os judeus cristãos tinham numerosas idéias escatológicas
ligadas ao reino da bem aventurança, no final dos tempos, com a
ressurreição dos mortos, enquanto os saduceus sequer pareciam
acreditar na vida após a morte.
A ausência de discussões maiores entre Jesus e saduceus, com
exceção da discussão sobre ressurreição, implica que os dois grupos se
mantiveram separados, se encontrando apenas, talvez, nas Narrativas da
Paixão, quando Jesus seria colocado frente a frente com os membros
saduceus do Sanedrim, ou Sinédrio, onde os principais líderes eram
saduceus.
66
Segundo Josefo, um judeu palestino da “alta sociedade” que
sabia muito bem como sobreviver a crises e ficar sempre do lado do
vencedor, os saduceus não acreditavam que Deus viesse a interferir nas
atividades cotidianas e que o destino de cada um era traçado pelas suas
próprias atitudes. Não aceitavam nenhum texto que estivesse fora do
Pentateuco mosaico (Gêneses, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio), não reconhecendo os profetas e tampouco as tradições
dos ancestrais. Por outro lado, sendo um fariseu, adversário, até certo
ponto, dos saduceus, Josefo pode estar exagerando.
Com isso, podemos entender porque perguntaram a Jesus sobre
ressurreição e o mesmo respondeu não utilizando nenhum dos profetas
(Daniel 12:1 é o único texto do Antigo testamento que inequivocamente
se refere ressurreição dos mortos, enquanto em Isaías e Salmos existem
elementos que a sugerem) e sim Êxodo (3:6), aceito pelos saduceus. Os
grupos mais marginalizados da população judaica, que julgavam a vida
injusta, é que deveriam sonhar com a justiça divina. Como vemos,
tinham muitas semelhanças com aqueles que, atualmente, falam de
Deus desprezando o sofrimento dos menos afortunados, como se Ele
fosse mais pai de uns do que de outros.
Esse grupo judeu parecia não acreditar na existência de seres
angélicos ou na atividades desses no mundo material, além de espíritos,
Jesus: homem e espírito
67
como descrito em Atos dos Apóstolos (23:8), e de algum tipo de vida
após a morte. Para eles, Deus premiava o bom fiel com uma vida longa
e farta, mas não com uma vida futura. Como Josefo situa esse grupo na
elite intelectual e social de Israel, é bem provável que o sonho de uma
vida próspera e sem males não viesse a seduzi-los significativamente,
posto que já a possuíam. Assim, aceitar como verdadeiro um conceito
de que “os últimos serão os primeiros” não estava nos planos saduceus
e se o Pentateuco nada fala sobre o tema, por que não ignorar o restante
da tradição judaica, particularmente os pontos acima, oriundos de
religiões da estrangeiras?
Com a destruição do Templo, em 70 d. C., a estrutura de poder
montada pelos saduceus ruiu. Essa catástrofe associada com sua
intransigência característica acabaram por levar ao fim desse grupo
judaico após a revolta anti-romana. Essa incredulidade em relação à
vida após a morte e a crença na inteira responsabilidade do homem para
com o seu próprio destino fez com que os saduceus não apresentassem
quaisquer anseios escatológicos, salvo alguma alusão a um rei da
linhagem davídica, mas em um nível extremamente elementar, muito
diferente dos demais grupos antes da segunda revolta dos judeus, em
135. d. C., quando o messianismo judeu sofreu um segundo e definitivo
golpe.
68
Os saduceus foram os que mais sofreram com a queda do
Templo e com a visão mais espiritualizada que se desenvolveu no
judaísmo e no cristianismo. A perda das condições materiais e a falta de
fé em um "porvir espiritual" representaram o último e derradeiro golpe.
1.3.2 Os fariseus
O judaísmo farisaico possuía muitos pontos em comum com seu
sucessor, o judaísmo rabínico, desenvolvido a partir do século II d.C. e
que se estende até o presente. Os fariseus advogavam que o destino de
cada um era traçado pelas suas próprias atitudes, semelhante ao
pensamento cristão de “dar a cada um segundo suas obras”, associado
aos desígnios divinos. Além do Pentateuco, reconheciam os profetas e
as tradições de seus ancestrais, que constituíam o halakhot, que foi
incorporado na elaboração da Mishná.
Eles eram afeitos a discutir os aspectos práticos da lei e somente
o faziam com pessoas que consideravam dignas e verdadeiros
adversários de idéias, pessoas de honra, daí alguns estudiosos modernos
terem sugerido que o próprio Jesus tenha sido instruído por um mestre
fariseu ou foi, ele próprio, um deles. Quase todas as vezes que um
fariseu discute com Jesus, ou o está testando ou demonstrando grande
Jesus: homem e espírito
69
apreço pelo seu caráter e conhecimento. Algo muito diferente do
julgamento que fazemos deles.
Os fariseus acabaram por se chocar com os grupos que detinham
o poder sobre as terras férteis e o farisaísmo se desenvolveu à medida
que a urbanização tomou conta da Judéia. Eles se mostravam mais
modernistas do que os demais grupos, acreditando na flexibilização da
Torah, visto que a vida urbana dificultava a aplicação estrita de todas as
Leis do Pentateuco. Hoje seriam considerados modernistas e
progressistas.
Essa forma de interpretar as leis se disseminou rapidamente na
população mais culta das cidades e exacerbou o papel da sinagoga como
espaço de difusão dos pontos de vista farisaicos, particularmente depois
da queda do Templo de Jerusalém, o que culminou com o
desenvolvimento do judaísmo rabínico. O contato de Jesus com esse
judaísmo pode ter se dado na pequena sinagoga de Nazaré e,
indubitavelmente, na bela e portentosa sinagoga de Cafarnaum. Muitos
dos maiores líderes fariseus citados no Novo Testamento sentem apreço
por Jesus e isso parece refletir a verdade.
As regras alimentares e de preparo dos alimentos eram seguidas
à risca, mas os fariseus valorizavam a interpretação mais equilibrada
das escrituras e enalteciam a discussão de idéias com pessoas que
70
julgavam capazes de lhes oferecer algo que julgassem doutrinariamente
valioso, como Jesus, o nazareno. A possível relação de Jesus com os
fariseus é reforçada pelo fato dos fariseus chamarem-no, por vezes, de
mestre ou raboni, demonstrando o tom respeitoso e porque o com o
qual o mestre era tratado. Como Jesus, mas não profundamente quanto
ele, os fariseus criaram uma interpretação mais s tolerante e reformista
das escrituras, a despeito do sentido atualmente atribuído à palavra
“fariseu”, como um fanático irracional.
Nesse tocante, o espírito Eleazar defende que os judeus que
defenderam Jesus no Sinédrio eram fariseus e o faziam por ver nele um
homem sábio e justo, como outros que vinham da Galiléia. A
capacidade de argüição fazia de Jesus alguém com o qual os fariseus se
sentiam tocados a trocar experiências e muitos deles ofereceram auxílio
aos primeiros cristãos e ao próprio mestre nazareno. Lembrem-se de
José de Arimatéia, Nicodemos e mesmo Lázaro, de formação
inicialmente farisaica, além do rico dono da casa em que se deu a última
ceia.
Infelizmente para Eleazar, um rico e fanático religioso fariseu, o
mestre Jesus parecia incorporar algo novo ao judaísmo e, por apego à
idéia de um messias poderoso e guerreiro, se levantou contra o messias
galileu, na reunião do pequeno Sinédrio judaico, na casa do sumo
Jesus: homem e espírito
71
sacerdote, colaborando com a crucificação do mestre. Enquanto suas
comunicações mediúnicas eram colhidas, lágrimas copiosas de
arrependimento caíam freqüentemente da face desse homem que
reencarnou dezenas de vezes depois daqueles dias fatídicos, mas que
ainda carrega o drama íntimo de suas atitudes, necessitando de muito
apoio para a conclusão de seus depoimentos por parte dos que
acompanhavam as reuniões mediúnicas.
Por outro lado, segundo Eleazar, a colaboração de alguns dos
fariseus com o mestre foi o que motivou a reunião do Sinédrio na casa
do Sumo Sacerdote e o objetivo da mesma era determinar até que ponto
as figuras mais relevantes do Sinédrio estavam envolvidas ou podiam
ser incriminadas por colaborar com Jesus, uma vez que o prefeito
romano, Pilatos, o esperava. Com o tempo, nós aumentamos o papel
dos fariseus e demais judeus na crucificação de Jesus e reduzimos a
importância dos romanos no processo e isso é uma grande falha que
somente pode ser explicada pelo fato de que o cristianismo se alastrava
pelo mundo romano, após a grande revolta judaica, e não seria bom
falar da responsabilidade dos romanos na morte do messias,
principalmente para um público romano.
Não se pode esquecer que Tiago, irmão de Jesus, era
considerado o Justo, pelos fariseus, em função de seus conhecimentos
72
da lei mosaica, retidão pessoal e pela fé no Deus único. A morte desse
irmão de Jesus, em 62 d.C., iniciou uma grande revolta entre os fariseus
contra o Sumo Sacerdote Ananias, que o havia condenado ao
apedrejamento, segundo nos conta Josefo. Obviamente essa indignação
dos fariseus e a deposição do judeu mais importante do Império
Romano, pela morte de Tiago, o Justo, somente ocorreram porque o
irmão de Jesus gozava de grande apreço dos fariseus e outros grupos
judaicos. Pela descrição de que os textos dos primeiros pais da Igreja
primeva fazem desse personagem, ele não teria um comportamento
típico dos fariseus, assemelhando-se mais ao dos essênios, com a
exceção de que Tiago freqüentava o Templo de Jerusalém e os essênios
não o faziam.
Na concepção farisaica, após a morte, o indivíduo seria
reconstituído em um novo corpo físico para gozar a vida da boa
aventurança, algo como a ressurreição do corpo. Lembre-se que não
havia um conceito de espírito bem estabelecido naquela época.
Os fariseus eram considerados piedosos e não procuravam se
afastar dos demais judeus. Embora os apóstolos cristãos tivessem uma
posição desfavorável a eles em graus variados, pelos menos relatam que
os fariseus eram vistos nas mesmas sinagogas que os outros judeus,
embora utilizassem adereços que permitiam sua identificação. Os
Jesus: homem e espírito
73
fariseus representavam a ala reformista do judaísmo e até participavam
de refeições com membros de outros grupos, como Jesus. Cabe ressaltar
que o farisaísmo, o "essenismo" e o cristianismo eram seitas judaicas
que valorizavam muito o "partilhar o pão", tão em voga no presente. A
mesa era o centro do mundo desses grupos; dividir o pão era semelhante
ao esperar o reino de fartura que logo viria a todos os judeus pios. Paulo
tratou de espalhar esse conceito para os cristão do mundo greco-
romano.
O tom das discussões entre Jesus e os fariseus, para um leitor
moderno, pode parecer acalorado, mas isso era absolutamente comum
para a época. Assim, a imagem normalmente negativa sobre os fariseus,
nos evangelhos, é motivada principalmente pelo ambiente em que as
duas comunidades conviviam nas vésperas da revolta judaica e nos anos
subseqüentes, e não 40 anos antes, quando Jesus caminhou na Palestina.
Nos primeiros tempos, os textos cristãos descrevem os fariseus de um
prisma menos desfavorável, enquanto os escritos mais posteriores,
como o Evangelho de João, colocam os fariseus em condições
realmente deploráveis, como a encarnação do preconceito entre os
homens.
Jesus via as discussões com os fariseus como oportunidades para
discutir o cerne de sua mensagem: o reino de Deus entre os homens.
74
Nada há em seu comportamento, pelo menos no início do seu
ministério, que evidencie alguma discordância séria com os fariseus.
Ele os criticava por vivenciarem a lei apenas nas palavras e não nas suas
atitudes, colocando que é o que sai da boca do homem que o torna
impuro e não aquilo que por ela entra. Essa crítica se faria muito útil em
qualquer religião moderna, onde criticar os outros é mais fácil do que
vivenciar uma real modificação do seu estado íntimo de espírito, algo
tão freqüentemente discutido nas maravilhosas obras mediúnicas
enviadas ao nosso plano pelos espíritos Emmanuel e André Luiz,
apenas para citar dois dos mais conhecidos do público não espírita. A
reforma íntima é algo que ainda está distante da compreensão humana.
O perdoar para nos habilitar ao perdão divino era algo ainda
inimaginável por aqueles homens, incluindo aí os próprios discípulos do
mestre.
A importância da reforma íntima e a distância de pureza de
aparências em detrimento da pureza de coração era o principal ponto de
fricção entre as palavras de Jesus e os homens da época, fossem ou não
fariseus. Para maiores esclarecimentos sobre o papel da reforma íntima,
recomendamos o livro intitulado "Reforma íntima sem martírio",
psicografado por Wanderley Oliveira e de autoria espiritual de Ermance
Dufaux. Nesse sentido, Jesus provavelmente também criticaria os
Jesus: homem e espírito
75
espíritas modernos em tons tão vívidos quanto aqueles que atingiam os
fariseus, uma vez que ainda temos o mesmo hábitos de ver o cisco nos
olhos dos outros, enquanto esquecemos a trave em nossos próprios.
Como os fariseus se tornaram o único ou, pelo menos, o mais
influente grupo judaico depois da primeira revolta contra os romanos, a
caracterização dos mesmos, pelos primeiros cristãos, com tons
caricaturais e pejorativos somente vem a enfatizar que as duas
comunidades disputavam espaço na mente do povo comum da
Palestina. Essa divergência estava mais ligada aos aspectos de
“propaganda e marketing” do século I e II d. C. e não uma descrição de
fato dos oponentes farisaicos. Algo muito semelhante ao que assistimos
atualmente quando escutamos as caracterizações que as religiões
literalistas fazem do espiritismo ou do movimento umbandista. Os
espíritas são vistos com a personificação do mal e representam o que
existe de pior no espectro religioso disponível, o que não condiz com a
realidade.
Como seria bom se todos os cristãos se conscientizassem das
suas semelhanças, que estão muito acima das suas diferenças, e se
tratassem como irmãos. Imaginem como seria bom se nós espíritas
desenvolvêssemos a capacidade de sorrir e receber os demais em nossas
reuniões como os evangélicos normalmente o fazem? Lembrem-se dos
76
louvores e alegria que eles possuem. Pouco exploramos nesse sentido;
nossas reuniões são, por vezes, enfadonhas e entristecidas aos olhos dos
mais jovens e uma música de boa qualidade e devocional seria uma boa
idéia. Perdemos a oportunidade de crescer quando ficamos presos aos
estereótipos.
Além desse aspecto de competição entre os primeiros judeus
cristãos e os fariseus, tem-se que esse último grupo, ao se tornar a força
preponderante dentro da fé judaica, passou a antagonizar cada vez mais
ativamente a nova fé cristã, judaica no início e cada vez mais porosa e
permeável a idéias greco-romanas, que, com a incorporação de número
cada vez maior de gentios no seio do cristianismo, forçou esse último a
abolir parcial ou totalmente as regras alimentares, circuncisão, bem
como outros aspectos da lei mosaica e adotar conceitos estranhos ao
judaísmo, alguns até antagônicos a esse, como a eucaristia, pelo menos
na forma que essa última chegou até nós. Lembremo-nos que a alusão
ao pão e vinho, como carne e sangue de Jesus, simboliza quase uma
refeição antropofágica e isso era algo inimaginável para um judeu pio
do século I d.C., sendo possível que o ritual tenha se desenvolvido
rapidamente nos primeiros anos após a morte de Jesus, em referência à
Última Ceia (uma refeição de despedida e não uma ceia pascal),
posteriormente incorporada na narrativa desse evento.
Jesus: homem e espírito
77
De qualquer forma, grande parte das descrições pejorativas que
os evangelhos trazem sobre esse grupo é marcada por décadas de ranço
entre as comunidades e não reflete a realidade dos fatos da época de
Jesus, sendo que o papel desempenhado pelos judeus no julgamento e
na crucificação do Mestre galileu se encontra exacerbado pela
necessidade de se culpar os arquirrivais na morte de um homem divino
que havia sido rejeitado pelo “duro” coração fariseu.
Muitos fariseus se aproximavam de Jesus, como José de
Arimatéia e Nicodemos ben Gurion, dois dos mais ricos homens da
Judéia, e apoiaram-no, mas não conseguiam entender como aquele
judeu pobre não ambicionava o poder terreno, além de não aceitarem
completamente o sentido de "dar a Deus o que é de Deus e a César o
que é de César", tampouco conseguiam entender o sentido real do amor
incondicional ao próximo, que ainda nos falta. Esses personagens
mostram claramente que Jesus estabeleceu uma ponte de contato com a
elite do farisaísmo e suas idéias eram muito bem recebidas entre os
homens de mente aberta, independentemente da classe social ou
afiliação política.
Inicialmente, as maiores disputas entre Jesus e esses grupos
judaicos, como narrado nos textos sinópticos, possivelmente não
traziam o nome dos fariseus, referindo-se apenas aos judeus em geral. O
78
termo "fariseu" acabou sendo adicionado a essas disputas em função da
rivalidade que foi se desenvolvendo muito tempo após a crucificação. O
papel "aceita tudo", dizia a vovó...
Com essas inserções nos textos bíblicos, os evangelistas
procuravam mostrar que os cristãos eram muito diferentes dos judeus,
que haviam lutado ferozmente contra os romanos 40 anos após a
crucificação de Jesus. Como sabemos, essa realidade foi distorcida, uma
vez que a paz também estava e está no cerne do judaísmo, mas o
público greco-romano não via com bons olhos um grupo religioso vindo
da periferia do império e que trazia a marca da maior revolta da história
de Roma.
Os cristão utilizaram essas desavenças como forma de se
distanciar dos seus irmãos judeus e utilizaram indevidamente a figura
de Jesus para fazer isso. Criava-se uma atmosfera de antagonismo
apenas para aumentar o contraste entre Jesus, o Puro, o Divino, e o
mundo de então, farisaico ou não. Cometeram um grave erro e seus
efeitos perduraram até o recente episódio do holocausto judaico na
Europa durante a Segunda Grande Guerra mundial. Todos somos
culpados diante disso e mesmo os judeus tivessem errado, um erro não
justifica outro ainda pior.
Jesus: homem e espírito
79
O próprio espírito Eleazar, colaborador desse livro, que teria
assistido e participado da reunião do Sinédrio, pagou um preço bastante
elevado pelo seu complexo de culpa ligado a esse fato: quando pôde
fazer as pazes com seu passado judeu, durante o período nazista na
Alemanha, onde trabalhou como médico militar, não o fez e hoje
trabalha para resgatar essa mancha da sua história pessoal.
Pode parecer estranho, mas é muito difícil encontrar diferenças
significativas entre o farisaísmo e as pregações de Jesus, sendo que os
fariseus eram considerados extremamente virtuosos. O próprio
Gamaliel, um dos fariseus mais cultos de Jerusalém, parecia para ser
simpático ou, como evidenciado em Atos (Atos 5:34-39), tolerante para
com os hassidim galileus, judeus devotos, como os cristãos eram
considerados no começo de seu caminho. Talvez essa tolerância esteja
por trás das palavras de Gamaliel sobre Pedro e os apóstolos diante do
Sanedrim, muito diferente da imagem de hipócritas que os textos
canônicos trazem.
É triste colocar, mas, na prática, se havia um grupo capaz de
aceitar Jesus como o messias, esse grupo seria o grupo farisaico, que já
havia participado de muitas rebeliões contra o poder estabelecido, que
tinha uma mentalidade reformista e que contava com o apoio dos “amei
haaretz”, ou povo comum. Mas a providência divina não queria
80
revoluções exteriores, que culminavam com muitas mortes e a
substituição de um tiranete por outro; a espiritualidade maior queria a
reforma de valores e isso iria se iniciar a partir das sementes de amor
incontestável disseminadas por Jesus em todos os corações palestinos,
judeus ou não.
1.3.3 Os essênios
Quanto aos essênios, muita informação vem sendo
continuamente publicada, em particular devido aos Manuscritos do Mar
Morto, descobertos ao redor das ruínas de Qumran, cuja autoria foi a
eles atribuída em meados da década de 1950.
Entretanto, é cada vez mais difícil aceitar a idéia de que
documentos escritos por centenas de escribas, com centenas de tipos de
caligrafia, abordando os aspectos mais variados do judaísmo, muitos
dos quais conflitantes entre si, poderiam ter sido redigidos por um único
grupo sectário no deserto da Judéia. Assim, evitaremos falar aqui em
informações oriundas dos “essênios de Qumran”, posto que nem
sabemos se aqueles textos provém dessa comunidade, sendo provável
que os textos como um todo reflitam a diversidade do judaísmo dos
séculos I a.C. e I d.C., com alguns documentos saduceus, essênios e de
outras afiliações religiosas.
Jesus: homem e espírito
81
A notoriedade que esse grupo ganhou no imaginário popular e
na imprensa deriva das numerosas semelhanças entre suas crenças e
aquelas professadas pela igreja primitiva, enquanto as semelhanças com
as crenças de Jesus são menores e mais fragmentárias.
Os essênios se viam como o verdadeiro Israel e os únicos a
conhecer a vontade de Deus, como uma reação ao que eles
consideravam como "a decadência da nação". Acreditavam na revelação
e inspiração proféticas vindas diretamente de Deus e se portavam como
se Ele os governasse diretamente. A influência de seres espirituais,
como os anjos e emissários divinos, era bastante reconhecida. Os
integrantes desse grupo acreditavam na completa dependência do
homem em relação a Deus, que ditaria seu destino. Sua observância do
dia do sábado e dos preceitos alimentares era a mais severa de todas as
seitas do judaísmo de então e seus integrantes não eram afeitos às
atividades militares, embora um general essênio tenha participado da
revolta contra o jugo romano, 40 anos após a morte de Jesus.
Os essênios evitavam todo tipo de comércio e partilhavam seus
bens materiais, como também faziam primeiros membros da igreja
cristã nascente. Eles habitavam a maioria das cidades da Palestina, mas
formavam comunidades separadas dos demais judeus e gentios.
82
Aqueles que aspiravam entrar para o grupo passavam por um
período de três anos de severo aprendizado. A maioria preferia o
celibato, por considerar que a verdadeira vida era a espiritual, de forma
que ter filhos seria comparável a aprisionar mais espíritos a corpos
materiais corruptos. Entretanto, alguns essênios casavam e o sexo era
utilizado apenas com a finalidade da procriação. Essa visão do corpo
como uma prisão contrasta com a filosofia espírita onde o corpo é visto
como o presente sublime do Criador, uma benção, prova da
misericórdia divina, onde o pecador recebe, mais uma vez, a
possibilidade de expiar seus delitos anteriores. Comparações como essa,
entre o essenismo e o espiritismo, são comuns e quase sempre geram
muita confusão e criam imagens mentais bastante distorcidas nos
leitores que iniciam os estudos espíritas ou referentes à vida de Jesus.
Infelizmente, existe gente que, na procura por algo que se refira
ao mundo de Jesus entre 12 e 30 anos de idade aceita todo tipo de
informação, que vai desde a internação do mestre em comunidades
essênias, viagens ao Tibet, Índia, Alfa Centauro, Vênus ou às entranhas
da Terra. Devemos ter cuidado com esse tipo de colocação,
principalmente quando vem associada ao espiritismo. As informações
mediúnicas incluídas no presente texto não permitem nenhuma relação
direta entre Jesus e os essênios. A influência foi indireta, como veremos
Jesus: homem e espírito
83
a seguir. Além do que, sempre que a informação mediúnica não
encontra corroboração na literatura especializada, mesmo que
perifericamente, destacamos o fato no texto.
Esses judeus sectários não possuíam residências de natureza
pessoal e viviam em movimento, utilizando os alojamentos comunais
espalhados pela Palestina e seus bens eram compartilhados com a
comunidade, sendo que a recusa em partilhá-los era punida com rigor,
algo muito semelhante ao descrito com os cristãos primitivos (Atos 5:1-
11). Aspectos tolos, como defecar, eram proibidos nos sábados e as
relações dos membros com familiares eram submetidas à permissão do
grupo. Tais aspectos contrastam com a benevolência e tolerância de
Jesus, que nunca foi essênio, embora tenha conhecido pessoas que o
foram e com elas interagiu, como João, o Batista, que abandonou o
essenismo e passou a viver como um pregador da reforma íntima e
profeta do final dos tempos no vale do rio Jordão.
Outro aspecto controvertido é a realização de sacrifícios animais
pelos essênios em seus cultos. Fílon relata que esse procedimento fora
banido e eles procuravam santificar suas mentes como forma de
adoração ao Senhor. Para os essênios, a vida após a morte se articulava
em um mundo imaterial, espiritual, não sendo necessário a
reconstituição de um corpo físico como nós o conhecemos, o que muito
84
se assemelha a algumas crenças modernas e a cultos heréticos
medievais. O relacionamento com o Templo e os demais judeus que o
adotavam como casa de Deus era peculiar: enviavam oferendas, mas
não participavam das adorações, visto que seguiam regras de pureza
diferenciadas, acreditando que o Templo havia sido profanado e os
sacrifícios já não tinham mais valor nessas condições. Dessa forma, os
animais deixaram de ser sacrificados não por um pensamento
benevolente para com as demais espécies, mas por que esses judeus
julgavam que o sacrifício no Templo não chegaria até Deus, que havia
abandonado a sua morada entre os homens.
Os essênios também diferiram das demais seitas judaicas por
acreditarem na ressurreição dos mortos apenas em espírito, como
muitas comunidades religiosas modernas de inclinação espiritualista,
diferindo acentuadamente dos fariseus nesse detalhe. Os apóstolos e
discípulos de Jesus também discutiram a natureza da ressurreição do
mestre, sendo que muitas seitas cristãs acreditavam que Jesus teria
subido aos céus apenas em espírito, sem o corpo físico, enquanto a
corrente principal do cristianismo professa a fé em uma ressurreição de
corpo e alma. As aparições de Jesus durante o período que sucedeu a
sua crucificação apresentam todas as características relativas às
materializações de espíritos, o que, na ausência de um conhecimento
Jesus: homem e espírito
85
espiritual mais desenvolvido, no povo palestino de outrora, incluindo-se
aí até os seus próprios discípulos e apóstolos, criou os elementos
básicos das discórdias e discussões dos séculos seguintes, sendo que
alguns cristãos chegaram a acreditar que o Cristo nunca tivera um corpo
físico.
Os essênios também não aceitavam a autoridade do Sumo
Sacerdote e esse fato remonta ao tempo dos reis Davi e Salomão,
quando o Sumo Sacerdote era escolhido entre a descendência de Sadoc
(talvez daí o nome saduceus). Como no período final do segundo
Templo a escolha do Sumo Sacerdote era feita por motivos puramente
políticos e econômicos, com barganhas de todo tipo, os essênios
consideravam o culto no Templo e os sacrifícios como tendo validade
questionável.
Somente se alimentavam em refeições preparadas por membros
do grupo e não permitiam que outras pessoas fossem admitidas em suas
refeições comunais, uma vez que essas refeições eram a marca principal
da irmandade. Para comparação, embora a mesa fosse o verdadeiro
centro do culto cristão primitivo, na ceia, não existem informações que
mostrem que os primeiros seguidores do nazareno eram tão ortodoxos
na preparação do alimento e, tampouco, limitassem-na a pequenos
grupos de iniciados. Essa é a maior diferença entre Jesus e os essênios:
86
enquanto Jesus pregava a reunião de todos sob a proteção do Pai,
infinitamente misericordioso, os essênios se sentiam os eleitos e se
apartavam daqueles que consideravam impuros. Posturas opostas,
destinos opostos.
Os essênios também utilizavam vestimentas peculiares que
permitiam sua rápida identificação pelos que não faziam parte do grupo
e eram muito mais conservadores do que os fariseus. Os essênios
também não celebravam a Páscoa judaica com os demais judeus, visto
que cultivavam um calendário diferente do empregado pelos demais, de
inspiração selêucida, grega. Eram muito diferentes de Jesus e seus
seguidores.
1.3.4 A comunidade de Qumran
Inicialmente, a comunidade científica esperou que os textos
descobertos no deserto próximo ao Mar Morto, ao redor de Khirbet
Qumran, viessem a se referir a Jesus ou outros personagens presentes
no Novo Testamento, mas o desapontamento foi geral quando se
verificou que as centenas de manuscritos não traziam uma só palavra
aplicável diretamente ao nosso mestre. Contudo, permitiam uma
caracterização ímpar da fé que ele professava e como as comunidades
judaicas interagiam e se influenciavam mutuamente. Talvez o ponto
Jesus: homem e espírito
87
mais coincidente entre os primeiros cristãos e os qumranmitas, essênios
ou não, é que ambos eram movimentos sectários dentro de um
judaísmo multifacetado.
Não se pode afirmar com segurança que o sítio arqueológico de
Khirbet Qumran, em algum momento de sua história, ao longo de 400
anos de ocupação, foi o lar de uma seita judaica ou comunidade
sectária. Assim é extremamente difícil atribuir aos essênios a ampla e
eclética biblioteca encontrada nas cavernas próximas a Qumran.
Possivelmente os textos ali reunidos são oriundos de várias bibliotecas,
do Templo e de Jerusalém, antes e durante o cerco da cidade pelos
romanos, em 70 d.C. A idéia de que esses textos são oriundos da seita
essênia, descrita por Josefo e Plínio como amantes da paz e celibatários,
que viviam no deserto nas margens do Mar Morto, acima da localidade
de En Gedi, se deu pelo fato da localização de Khirbet Qumran
corresponder, a grosso modo, àquela que esses autores haviam relatado.
Deve-se acrescentar, também, que alguns dos pergaminhos descobertos
de fato continham um material de natureza sectária e próximo do que se
esperava dos essênios.
Porém, à medida que novos e importantes manuscritos vieram à
luz e foram traduzidos, ficava cada vez mais claro de que esses textos
reuniam material de muitos escribas e pareciam refletir a grande
88
heterogeneidade do judaísmo do século II a.C. até o final do século I
d.C. Assim, os textos mais sectários encontrados nas cavernas do Mar
Morto devem ser discutidos separadamente dos essênios. Além desse
aspecto, os Manuscritos do Mar Morto não dizem respeito a apenas uma
filosofia judaica. Em muitos aspectos pode-se perceber um tom mais
extremado, típicos dos zelotas, sugerindo que, pelo menos em alguns
momentos, os autores desses manuscritos tiveram uma relação mais
próxima com grupos ou pensamentos nacionalistas.
Pode-se observar que alguns judeus esperavam a vinda de um
Messias Davídico (descendente de Davi) e um Messias Sacerdotal,
também denominado de Mestre da Justiça (ou da Retidão) ou Mestre de
Aarão, que teria primazia sobre o poder temporal do Messias Davídico.
Nesses escritos, o Messias Davídico é o guerreiro de Deus e protegerá
os eleitos em nome do Senhor, principalmente os humildes e piedosos
que o procurarem. Não se pode ignorar que, em 2Tessalonissences 2:8,
a figura que Paulo faz de Jesus é semelhante a desse personagem (“a
quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca e o destruirá
pela manifestação da sua vinda”), enquanto o próprio título “Rei dos
Judeus”, atribuído a Jesus, em tom zombeteiro, pelos romanos, era
compatível com o que o Messias da casa de Davi receberia.
Jesus: homem e espírito
89
A espera do Messias da casa de Davi e do Messias Sacerdotal
ocupa parcela relevante dos textos dessa comunidade e evidencia que
uma parcela da população judaica esperava por uma mudança radical no
mundo, na virada de eras. Na condição presuntiva de descendente de
Davi, Jesus é colocado nos evangelhos sinópticos como Messias
Davídico e, na Epístola dos Hebreus e algumas passagens do Evangelho
de João, é encarado como o Messias Sacerdotal, criando uma situação
embaraçosa para os seus autores, devendo-se salientar também que, em
muitos desses escritos do Novo Testamento, particularmente os mais
tardios, Jesus é tratado como a encarnação da Divindade e não apenas
como messias (o que significa " o escolhido").
De qualquer forma, é bem provável que o messias de Nazaré
fosse visto por muitos como Messias da casa de Davi e, por outros,
como a união do Messias Davídico com o Messias Sacerdotal. O
próprio Jesus alimentava as discussões messiânicas, através de seus
atos, como, por exemplo, a sua entrada em Jerusalém por ocasião de sua
última Páscoa, montado em um jumentinho, fazendo cumprir antigas
profecias amplamente conhecidas pela população judaica, retratando a
pessoa do escolhido de Deus.
Alguns desses documentos mostram que os membros da seita
faziam refeições comunais, oravam em comunhão e tomavam suas
90
decisões em conjunto. Pessoas externas não podiam participar dessas
refeições sob pena de torná-las impuras; também não permitiam que os
membros viessem a se alimentar com não membros, o que os tornaria
impuros, como os essênios também pensavam.
O candidato à comunidade era considerado como membro
quando lhe era permitido se unir aos demais em suas refeições. A
redução das cotas alimentares constituía forma comum de punição para
os transgressores, sendo a expulsão a pior punição possível, porque o
tornava um proscrito aos olhos de seus antigos pares, que não poderiam
mais ajudá-lo, atenuando-lhe a fome, sob pena de também serem
expulsos da comunidade. Infelizmente, muitas seitas cristãs e não-
cristãs possuem essa filosofia no presente.
Esses judeus consideravam o Templo profanado e impuro, não
aceitando a liderança sacerdotal que lá existia e seu isolacionismo era
tão extremado que seus membros eram proibidos de terem quaisquer
relações comerciais ou sociais com forasteiros, a menos que o
pagamento pelas atividades fosse em dinheiro, para não permitir o
estabelecimento de laços mais duradouros com os não-membros. Seus
membros se autodenominavam de "Filhos da Luz", em oposição aos
demais, denominados de "Filhos das Trevas", e se preparavam para uma
guerra final de libertação contra esses últimos.
Jesus: homem e espírito
91
O Documento de Damasco, um dos principais textos
descobertos no vale do Mar Morto, permite o casamento e cria normas
de bom proceder na família, além de aspectos relativos à educação dos
filhos. O líder da comunidade cuidava de seus membros como filhos, o
que levava a uma perda da identidade do pai biológico.
Uma semelhança significativa entre os seguidores de Jesus e os
autores desses textos é a importância dada ao batismo, bem como as
graças que todo sacerdote deveria dar pelo pão e pelo vinho, mas sem o
caráter eucarístico. A presença de um Deus onipotente em todas as
atividades humanas diárias, o enaltecimento de uma vida humilde, a
presença de anjos como interventores junto à humanidade, a proibição
do divórcio, além da vida comunal também mostram semelhanças com
os primeiros cristãos. Contudo, algumas diferenças de ênfase também
são evidentes: se compararmos o conservadorismo dessa seita com o
judaísmo rabínico ortodoxo ou as igrejas cristãs literalistas do presente,
veremos que esses religiosos modernos seriam considerados muito
flexíveis e liberais. O sábado, por exemplo, era guardado com extremo
rigor, enquanto os judeus cristãos guardavam o sábado de forma mais
elástica. Lembrem-se que Jesus sempre teve problemas com a forma
com que o sábado era guardado pelos grupos judeus, a ponto de afirmar
que o sábado fora feito para o homem e não o contrário.
92
Para os qumranmitas, no banquete do final dos tempos (uma
alegoria muito comum também entre as primeiras igrejas cristãs),
estarão presentes muitos da casa de Israel e os Patriarcas ressuscitados,
enquanto todos os gentios e israelitas de fora da comunidade deverão
perecer no final. Alguns textos de Qumran também fazem alusão a
feitos notáveis que o messias seria capaz de realizar, devolvendo a visão
aos cegos e a saúde aos doentes, além de ter um relacionamento
especial com Deus, lembrando o livro de Isaías (61:1), onde, à
semelhança de Jesus, o messias fará prodígios em nome de Deus e em
Seu nome exercerá o poder.
Algumas expressões comuns a judeus cristãos e qumranmitas
são relevantes, como a alusão aos “pobres de espírito”, “os pobres” ,
que herdarão o Reino de Deus. Essas expressões podem ser as únicas
alusões aos qumranmitas, ou talvez essênios, no Novo Testamento,
visto que esses são um dos termos que esses grupos utilizavam para se
autodenominarem. Nos Salmos de Salomão, os pobres representam os
fiéis, mas ninguém se descreve utilizando essa terminologia, com
exceção dos qumranmitas/essênios e, talvez, os primeiros cristãos. O
próprio fundador do grupo sectário era chamado de “o Pobre”,
possivelmente por ter perdido tudo que por direito lhe pertencia, como
bens, posição social e o culto no Templo.
Jesus: homem e espírito
93
O Manuscrito do Templo, texto sectário encontrado em Qumran,
adota a mesma postura de Jesus sobre o divórcio, a qual se mostra mais
rígida do que a empregada pelos demais grupos judeus do século I. d. C.
Os mesmos livros bíblicos são considerados inspirador por cristãos e os
membros desse grupo sectário, bem como algumas idéias sobre o final
dos tempos, como a redenção pelo sofrimento, que apresenta alguma
correlação com a visão espírita atual, mas sem o caráter da Lei de Ação
e Reação em reencarnações futuras.
As influências dos pensamentos sectários se fazem mais
presentes nos evangelhos tardios, como o Evangelho de João, enquanto
as cartas de Paulo, além dos documentos neo-testamentários mais
antigos, como o Evangelho de Marcos, são menos influenciados, o que
sugere que as semelhanças e contatos entre os dois grupos tenham se
tornado maiores na segunda ou terceira gerações de cristãos e menor
entre os cristãos que conheceram Jesus. O mestre galileu cultivava a
simplicidade e o contato com todos os grupos, incluindo os
transgressores, contrastando com a imagem austera do Mestre da
Retidão ou da Justiça, dos sectários. Ele mesmo teria dito que sua vinda
destinava-se, primeiramente, às ovelhas transviadas e aos doentes, que
não eram contemplados por nenhuma seita da época.
94
Os cristãos ebionitas e os cristãos nazarenos são considerados
como possíveis descendentes filosóficos desses grupos judaicos ou,
pelo menos, mais influenciados pelas idéias dos qumranmitas. Esses
grupos chegaram a construir uma comunidade no monte Carmelo e
seguiam códigos de conduta semelhantes aos praticados pelos autores
dos textos de Qumran. Os mandeanos, considerados como seguidores
dos discípulos de João, o Batista, e confundidos pelos líderes
muçulmanos como sendo cristãos, também tinham práticas que fazem
lembrar os textos sectários do Mar Morto e, até recentemente, existia
uma comunidade mandeana que praticava o batismo ritual, no sul do
Iraque.
Poucos livros encontrados em Qumran têm uma terminologia
mais próxima aos cristãos antigos do que o Livro de Enoch, o qual
chegou a ser considerado como parte do cânone cristão ocidental e
ainda considerado canônico (divinamente inspirado) pela Igreja
Ortodoxa Etíope e pela Igreja Ortodoxa da Eritréia, além de leitura
obrigatória para a redação de cartas paulinas e para a epístola de Judas,
deixando marcas no judaísmo inter-testamental. Esse livro foi muito
difundido nos séculos I e II d.C. Expressões, como “Filhos da Luz”
(Lucas 16:8), o papel dos anjos como intermediários entre os homens e
Jesus: homem e espírito
95
Deus, bem como o dualismo “Luz e Trevas” também denotam a
possibilidade de contatos entre os grupos.
1.3.5 Os seguidores de Banus
Esse grupo judaico não chegou a caracterizar um secto, mas foi
descrito pelo historiador judeu Flávio Josefo, que teria feito parte do
mesmo, o qual deve ter sido um entre dezenas ou mais de grupos
itinerantes que ocupavam o vale do rio Jordão e o deserto da Judéia,
como os seguidores de João Batista e os primeiros cristãos.
A descrição de Banus indica que o mesmo era parte de um
movimento extremamente introvertido, uma vez que seu líder vivia
quase como uma criatura silvestre, isolado e fora de uma estrutura de
irmandade. Todos os outros judeus eram tratados como forasteiros e o
contato com os mesmos torná-los-ia impuros, o que implicava em seu
afastamento do mundo. Além de pregar o desapego aos bens materiais,
os seguidores de Banus pareciam hostilizar a riqueza e a convivência
em comunidade, algo bem diferente de Jesus, o galileu, para o qual a
riqueza deveria gerar bem estar a todos e apenas o apego à mesma era
considerado inadequado.
96
1.3.6 Quarta filosofia, Zelotas e Sicários
Embora estejamos discorrendo sobre movimentos religiosos,
não se pode esquecer que, na Palestina, política, religião e interesses
diversos sempre estiveram ligados, mesmo na atualidade. Pobre Oriente
Médio.
Muitos outros grupos político-religiosos podem ser identificados
na periferia do judaísmo palestino, como os movimentos de resistência,
possivelmente pacíficos, de Judas, o galileu, e Sadoc, o fariseu, contra a
taxação de impostos no início do século I d. C., bem como os
movimentos ultranacionalistas associados com os zelotas e sicários,
esses últimos bastante agressivos e violentos. No geral, os movimentos
que se seguiram à conquista do território pelos romanos eram mais
controlados e localizados, se tornando mais agressivos e generalizados
em função da repressão romana.
Os zelotas tinham esse nome em função do zelo com que
observavam as leis judaicas, constituindo um grupo extremamente
importante durante a Primeira Revolta contra a dominação romana, de
66 d. C. a 73 d.C. É possível que a origem desse e de outros grupos
nacionalistas judeus remonte ao reis macabeus, nas regiões do norte da
Galiléia, mas apenas na metade do século I d.C. é que eles passaram a
Jesus: homem e espírito
97
ter atitudes mais violentas, eliminando os romanos e seus
colaboradores.
Para esse grupo, a santidade do Templo deveria ser mantida a
qualquer preço e Deus interviria quando visse que seu povo havia se
rebelado contra o invasor infiel. Os zelotas pareciam acreditar que a
expulsão dos ímpios aceleraria a vinda de seu Messias e a redenção do
povo judeu, disperso pelo mundo romano. Alguns estudiosos acreditam
que entre os discípulos de Jesus haviam zelotas, como Judas de Kerioth
(Judas Iscariotes), o qual acreditava que, ao forçar o mestre galileu a
defender a sua própria vida, nas mãos dos sacerdotes do Templo, daria
início a uma revolta armada contra Roma. Assim, Judas era mais
nacionalista e despreparado do que traidor.
O evangelho apócrifo de Judas sugere que a "traição" de Judas
para com Jesus foi acordada entre esse último e o próprio discípulo, de
forma que alguns cristãos viam nesse ato algo que era indispensável
para que as antigas profecias se concretizassem na vida e, nesse caso,
morte de Jesus.
É possível que os sicários constituíssem um grupo dentro dos
zelotas ou análogo a eles, sendo que seu nome deriva do uso que faziam
de um punhal chamado “sicar” para assassinar seus adversários,
98
constituindo o grupo nacionalista mais aguerrido dentre tantos que
proliferavam na Palestina nas décadas seguintes à crucificação.
1.3.7 Os helenistas
Esses judeus, embora não constituíssem um grupo religioso
“senso estrito”, apresentavam grande influência em todos os grupos
religiosos, particularmente os mais liberais, e eram detentores de grande
poder econômico e político, em comparação aos demais judeus
palestinos.
Por esse nome são denominados os judeus da Diáspora que
empregavam o grego como primeira língua e, talvez, única língua,
tendo retornado tardiamente ao solo palestino. Traziam consigo
elementos de filosofia grega, como a oposição entre o bem e o mal, e se
diferenciavam dos judeus de língua semítica (aramaica e hebraica),
como evidenciado em Atos dos Apóstolos. Estevão, primeiro mártir
cristão, foi um judeu helenista e suas atitudes contrariavam muito as
oficialmente aceitas no Templo.
A filosofia cristã fez muitos convertidos dentro desse grupo,
mais permeável às filosofias atenienses, que também haviam
influenciado a mensagem de Jesus, particularmente sobre a
Jesus: homem e espírito
99
reencarnação-ressurreição dos mortos e a existência de uma vida após a
morte.
1.3.8 Os samaritanos
Embora seja um erro associar os samaritanos aos judeus, uma
vez que constituem grupos separados, ambos têm origem comum e
aceitam o Pentateuco. Pode-se dizer que o samaritanismo e o judaísmo
são duas vertentes de uma única fé original que se dividiu
profundamente ao longo de cinco séculos, no período de invasões
estrangeiras que assolou a Palestina antes da chegada do persas.
Não se sabe exatamente quando judeus e samaritanos passaram
a se considerar como grupos distintos, porém pode-se perceber a origem
do problema na separação dos estados de Judá e Israel, logo após a
morte de Salomão. Enquanto o reino do sul ficara com o Templo e a
cidade santa (Jerusalém), o reino do norte tinha os profetas Elias e
Eliseu, abandonando o Templo e passando a se dirigir a Deus no monte
Garizim (ou Gerezim). A oposição aos samaritanos, no seio da
comunidade judaica, era óbvia, com os dois grupos mantendo relações
relativamente tensas. Essa oposição entre judeus e samaritanos fica
100
clara na parábola do bom samaritano, contada pelo mestre galileu
(Lucas 10:25-37).
Os samaritanos também praticavam a circuncisão, o respeito ao
sábado e as festas típicas dos judeus. Enquanto alguns grupos judeus
esperavam o messias de Davi e o de Aarão (Messias Sacerdotal), os
samaritanos esperavam o Taheb, uma espécie de novo Moisés, que
traria a paz a colocaria tudo em seu devido lugar. Em muitos aspectos,
os samaritanos não eram muito diferentes dos saduceus.
1.3.9 Judeus cristãos
Poderíamos acrescentar entre os grupos judaicos do século I d.C.
os judeus cristãos, visto que a transição do judaísmo-cristão para o
cristianismo judeu e, finalmente, cristianismo greco-romano não
ocorreu como um passe de mágica e possivelmente se deu como
conseqüência da disseminação dos conceitos cristãos para o seio do
mundo greco-romano.
Para os primeiros seguidores de Jesus, a igreja de Jerusalém (a
igreja mãe de fato, precedendo a igreja de Roma) era parte do judaísmo
e as discussões de Paulo com os demais líderes dessa igreja sempre se
voltavam para a necessidade ou não de conversão dos gentios (como
Jesus: homem e espírito
101
eram chamados os não judeus) ao judaísmo para que os mesmos se
tornassem cristãos.
Alguns pesquisadores modernos consideram que os essênios,
zadoquitas, zelotes, nazoreus, nazarenos e os primeiros cristãos judeus
eram, na prática, um único grupo com várias matizes, mostrando
profunda divergência religiosa frente ao culto dominante. Esse
movimento purista era intransigente com a corrupção da classe
sacerdotal e com a presença de uma dinastia indigna no trono, a dinastia
de Herodes. Contudo, o próprio Jesus não dava grande importância aos
donos do poder terreno e sua mensagem libertadora tinha um tom
voltado para o Reino de Deus e isso desagradou a muitos que viam nele
a imagem de um líder rebelde profundamente carismático.
Os cristãos, podiam comungar com os demais grupos judeus
muitos pontos de sua fé, mas em função dos ensinamentos do mestre de
Cafarnaum e Nazaré, adotaram uma postura mais receptiva para os
novos convertidos, rapidamente permitindo que não judeus se
convertessem, não sem antes discutir o que era ser cristão e os
requisitos mínimos para uma convivência harmoniosa com os judeus
cristãos.
Muitos judeus cristãos dos primeiros tempos se espantariam se
lhes disséssemos que, em nossa época, Jesus é tido como a encarnação
102
do Deus-Filho por aproximadamente dois bilhões de pessoas e que os
seus seguidores não são mais judeus. Assim, é difícil separar textos
escritos por judeus cristãos daqueles elaborados pela corrente principal
do judaísmo de então. Muitos hinos cristãos da época eram ser entoados
dentro de uma sinagoga judaica. A Epístola de Tiago (escrita pelos
seguidores do irmão de Jesus) e o Apocalipse de João possuem tantos
elementos judaicos que talvez nem devessem ser considerados
“cristãos” de fato e essa situação se manteve por muitas décadas na
Palestina, após a morte do mestre.
Jesus, durante seu ministério, não teria fundado a igreja cristã e
nada em seu comportamento sugeria que ele desejava um rompimento
total com as práticas judaicas. Ele pregava a humanização do homem
(isso não é pleonasmo ou redundância, mas sim uma enorme carência
que temos até hoje). Sob esse ponto de vista, ele poderia ser
caracterizado com um hassidim galileu bastante diferenciado.
Entretanto, os que o seguiram acabaram criando um grupo
separado, mas ainda DENTRO do judaísmo, mas era questão de tempo
para que a fé cristã desaparecesse se continuasse restrita ao povo de
Moisés, daí a espiritualidade ter escolhido Paulo, o judeu helenista,
herodiano, para trabalhar junto aos gentios, mesmo que isso significasse
a perda de parte da pureza da doutrina cristã, em função da falta de
Jesus: homem e espírito
103
arcabouço cultural de suporte fora do mundo judaico de então. Essa
transformação de judaísmo-cristão em cristianismo judeu e greco-
romano se operou principalmente fora da Palestina, visto que os
seguidores judeus de Jesus continuaram judeus e possivelmente pouco
contato tiveram com a teologia cristã que se desenvolvia no mundo
mais helenizado. Provavelmente nada sabiam sobre a figura da
Trindade Cristã e seus aspectos dogmáticos.
Até a destruição do Templo essas duas comunidades, judeus e
judeus cristãos, eram pouco distinguíveis e não se viam como grupos
rivais na Palestina. Em Atos dos Apóstolos temos muitos exemplos que
evidenciam que a comunidade cristã de origem judia, que residia em
Jerusalém, tinha reservas aos ensinamentos paulinos, que hoje dominam
o cristianismo, sendo que Paulo pôde manter sua atividade missionária
entre os gentios apenas em função da proteção especial que lhe
dedicavam Tiago, o irmão de Jesus, e Pedro.
Os judeus cristãos conhecidos como ebionitas (ebionim, "os
pobres", em hebraico) abominavam a obra do apóstolo Paulo e sequer o
reconheciam como cristão, enquanto os nazarenos eram menos radicais
e, embora discordassem de alguns ensinamentos desse apóstolo, como
os que hoje norteiam as igrejas evangélicas (como a salvação pela fé e a
natureza quase divina de Jesus), pelo menos reconheciam seus esforços,
104
bem intencionados, de disseminar a palavra do Deus único entre os
pagãos.
No tocante ao apóstolo Paulo, um grande e imprescindível
propagador da mensagem cristã, ainda estavam encravados na sua alma
o poder que tivera outrora, em encarnação no tempo dos grandes reis de
Israel e a arrogância de seus primeiros dias na Palestina. Paulo não teve
participação no drama de Jesus, mas suas atividades contra a igreja
primitiva lhe renderam muitos inimigos entre os primeiros cristãos.
Ironicamente, Estevão, o primeiro mártir cristão, atacado por Paulo e
seus colaboradores, foi um dos seus primeiros mentores espirituais e um
dos responsáveis pela sua profunda mudança de atitude.
Alguns teólogos atribuem a Paulo a divinização da figura do
messias judeu, tornando-o uma pessoa muito diferente daquela pessoa
que havia caminhado pela Galiléia e Judéia. Contudo, essa
transformação da imagem do Cristo não foi intenção de Paulo, mas uma
consequência natural do universo de fé que ele encontrou entre os
gregos, com seus muitos deuses, semi-deuses e heróis lendários. Assim,
não podemos esquecer que estamos aptos a receber apenas o que
conseguimos compreender e ele mostrou a validade dos ensinamentos
de Jesus e foi o mais importante apóstolo de seu tempo. Infelizmente
Jesus: homem e espírito
105
ele não pode evitar o fenômeno de desenvolvimento da figura da
Trindade que se esboçava.
Essa divinização de Jesus era considerada inevitável até pelo
grupo de entidades angelicais que havia acompanhado a reencarnação
do messias. A motivação por trás desse fenômeno residia na
superioridade moral e espiritual de Jesus sobre todos os que o
cercavam, principalmente em um mundo onde deuses com
características e defeitos humanos abundavam, isso sem falar nos semi-
deuses (filhos de deuses ou deusas com seres humanos comuns, como
Perseu ou Hércules). Esse processo de divinização obrigou os
evangelistas a criar as Narrativas da Infância, que eles não conheciam,
de forma que a história do nascimento do messias teve de ser recontada,
criando-se elementos lendários que não poderiam mais ser contestados,
pois todos que haviam vivido no período próximo ao nascimento de
Jesus já haviam desencarnado, ao mesmo tempo em que a mensagem de
Jesus ficava para um segundo plano, ressaltando-se o caráter do
cordeiro que era entregue, pelos lobos, para o sacrifício. O místico
falava mais alto para aquelas pessoas simples, que ainda não estavam
preparadas para o domínio da razão.
Um aspecto que diferenciava Jesus de todos os demais grupos
judaicos da época era a sua tolerância e a aceitação de todos os
106
pecadores no Reino de Deus, que já se fazia presente, em alguma
extensão, na vida das pessoas. Isso era impensável para os demais
grupos, que acreditavam que apenas aos virtuosos e puros teriam o
direito de ter contato com o Altíssimo. Para Jesus, Deus era o Pai,
amoroso e justo, de todos, que estava esperando o retorno de seus filhos
pródigos.
O messias se sentia na obrigação de assegurar que esse reino
divino era para todos e nem mesmo a igreja primitiva entendeu esse
aspecto de sua mensagem. Para exemplificar isso, será que você
acreditaria que Jesus consideraria lícito que dois de seus seguidores,
marido e mulher, Ananias e Saphira, (Atos dos Apóstolos 5:1-11), que
não compartilharam totalmente seus bens com os demais membros do
grupo, merecessem a morte, como relatam os Atos dos Apóstolos? E
isso tudo poucos anos após a morte do mestre. Nesse caso,
possivelmente os dois, marido e mulher, tenham sido tomados por
intenso drama de consciência e sofreram de morte súbita, mergulhados
que estavam em uma comunidade que, a despeito dos trabalhos de
apoio do Plano mais Alto, ainda se sentia acéfala e muito apegada a
aspectos triviais da fé (como todos os grupos religiosos periféricos que
perdem seu líder em um mundo extremamente cruel e violento).
Contudo, o mais provável é que essa história seja simbólica e apenas
Jesus: homem e espírito
107
objetivava mostrar como o remorso e a punição por força da
consciência culpada podiam matar.
Essa história foi tomada como exemplo pela igreja para exercer
seu poder sobre os fiéis (particularmente sobre o bolso dos mesmos).
Todavia, graças ao trabalho deixado por Paulo de Tarso, que tentou
dourar a pílula e torná-la palatável ao mundo, reconduzindo o grupo ao
caminho aceitável deixado pelo mestre galileu, a mensagem cristã não
perdeu totalmente seu papel de guia ou mapa em direção ao reino do
Pai.
Outro aspecto que diferenciava Jesus de todos os grupos
religiosos do século I era o tratamento dado às mulheres. Enquanto o
mestre galileu as acolhia e permitia que exercessem suas atividades,
acompanhando-o, elas eram tratadas quase como párias pelos demais
judeus da época, incluindo-se aí os primeiros cristãos. A maior
deferência às mulheres pode ser comprovada pelo fato das primeiras
testemunhas da ressurreição serem mulheres e isso era motivo de
sarcasmo pelos outros grupos judaicos, do tipo "Vocês não tem nem um
cão como testemunha da ressurreição do seu messias? Só mulheres?".
Esse fato é freqüentemente utilizado pelos estudiosos para ilustrar o
papel de Maria de Magdala (Maria Madalena) como discípula de Jesus.
108
Jesus não parecia temê-las. Lamentavelmente nem a própria
igreja cristã seguiu os ensinamentos de tolerância do mestre que se
abstinha de sexo, mas considerava-o bendito e colocava a mulher como
filha do mesmo Pai, em pé de igualdade com o homem. Por fim, muitos
estudiosos atribuem a raiz do Evangelho de João ao um grupo de
mulheres que acompanhava Jesus e cuja relevância teve de ser ofuscada
em função da ortodoxia cristã que amadurecia. Na igreja que se
desenvolvia após a morte de Jesus, as mulheres tinham (e têm) um
papel secundário. Quantas papisas vocês conhecem ou são reconhecidas
pela Igreja de Roma?
Jesus: homem e espírito
109
2 Quais são as fontes sobre Jesus?
“...Bem-aventurados vós que sois pobres, por que vosso é o reino de Deus...”
(Lucas 6, 20)
110
2.1 As Fontes sobre Jesus
Quando se deseja escrever sobre algo ou alguém, o primeiro
passo é procurar as possíveis fontes de informação, a bibliografia.
Embora espíritas, somos contra a postura de aceitarmos tudo o que vêm
dos planos invisíveis como a mais absoluta expressão da verdade,
postura essa criticada pelo próprio movimento espírita brasileiro e
claramente detalhada na obra magistral de Kardec.
Devemos escutar a razão. Temos de recorrer à fé racionalizada,
como coloca Kardec, para determinarmos o que tem ou não sentido, o
que provém ou não de uma fonte segura e digna de nota. Alegar que as
informações vieram de arquivos siderais não pode ser motivo para que a
informação fornecida seja considerada de uma fonte superior, sob pena
de nos tornarmos instrumentos de espíritos pseudo-sábios e acabarmos
perdendo a credibilidade que o movimento angariou junto à população.
Nesse sentido, quando as informações recebidas por nossos
guias e mentores se chocavam com os dados presentes na literatura
disponível, optava-se por reiniciar uma discussão e argumentação, sob o
princípio de que todos, encarnados e desencarnados, estamos em
aprendizado e a verdade plena somente está disponível a Ele, nosso
Jesus: homem e espírito
111
Deus. Se após as discussões, as idéias não apresentavam uma harmonia
satisfatória, o tópico era retirado do texto ou a autoria da informação era
destacada, para que cada um viesse a se posicionar livremente sobre o
tema em questão. Em todos os casos, demos prioridade para a
informação científica disponível.
Jesus não deixou nada escrito e mesmo as fontes canônicas
(bíblicas) disponíveis refletem mais as opiniões dos evangelistas mais
do que do próprio mestre. Todavia, o que chegou até nós evidencia o
mais sublime código de moral do judaísmo, portador de uma
originalidade e uma clareza na arte das parábolas que não encontram
rivais. O pouco que temos de Jesus o torna um dos judeus mais
conhecidos do século I d.C., talvez apenas superado pelo que
conhecemos de Josefo, Filon e Paulo, três aristocratas da elite
intelectual e política, sendo que o conhecimento sobre o último somente
sobreviveu em função de suas atividades religiosas ligadas a..........
Jesus.
Como fontes sobre o messias de Nazaré destacam-se as fontes
cristãs canônicas, os evangelhos sinópticos (que permitem uma analogia
entre si), o quarto evangelho (João), as cartas e epístolas do Novo
Testamento, de autoria conhecida ou não, quer pela antiguidade, quer
por terem sido redigidos por prováveis testemunhas dos fatos ou, pelo
112
menos, por indivíduos que travaram contatos com possíveis
testemunhas. Entretanto, não podemos nos debruçar nos textos
canônicos, ou quaisquer outros, sem a centelha do senso crítico visto
que a adoração à Bíblia constitui idolatria, uma bibliolatria e deve ser
evitada e desestimulada por todos, em especial os religiosos e isso não
tem sido feito.
Além desses textos, ainda temos os documentos cristãos não
canônicos, também denominados apócrifos, documentos dos primeiros
pais da igreja (século II d. C.), documentos históricos de Roma, de
cidadãos romanos ou lá residentes, documentos e tradições judias e
islâmicas. O maior problema em lidar com esse material está na
dificuldade na separação de material lendário, teologia cristã posterior,
censura e, obviamente, opinião pessoal do relator ou reações ou a
própria expansão da fé cristã entre os judeus e outros não-cristãos.
Mesmo os evangelhos sinópticos, escritos logo depois das cartas
de Paulo, sofrem com a influência paulina nas suas idéias, embora
tragam uma quantidade apreciável de material sobre o homem Jesus.
Esses textos se rendem, em maior ou menor grau, ao culto do messias
místico, mas ainda podemos subtrair, o que provavelmente foi inserido
nas tradições mais antigas. Essas características místicas estão mais
presentes no evangelho de João, que exacerba o misticismo presente nas
Jesus: homem e espírito
113
primeiras comunidades cristãs, bastante influenciadas por Paulo, que
devido a pressões culturais do mundo romano e pela elevação espiritual
de Jesus se mostra seduzida pela imagem do Jesus-Deus, possuindo
pouco material útil do ponto de vista histórico. Nesse evangelho,
podemos evidenciar um material de melhor qualidade sobre a Narrativa
da Paixão, como veremos posteriormente.
Existem numerosas e veementes críticas aos evangelhos como
possíveis fontes de material histórico sobre Jesus, mas não devemos
descartá-los sem um estudo prévio, uma vez que muitos elementos
historiográficos podem ser obtidos por trás da teologia cristã que serve
de estrutura á narrativa. Não se pode esquecer que os evangelhos não
pretendiam ser fontes de informação histórica sobre Jesus, mas apenas
“proclamar e reforçar a fé em Jesus como Filho de Deus, Senhor e
Messias”, como assevera o brilhante autor J. P. Meier, padre católico
romano.
Contudo, não podemos nos esquecer que muitos profetas
orientavam os seus seguidores a terem em mente, nas tradições orais,
textos inteiros do Alcorão ou da Torah e não seria de se surpreender se
os seguidores de Jesus tivessem memorizado, por décadas, algumas
características básicas das principais parábolas, recontando-as e
recompilando-as segundo seus interesses de momento. Essas pessoas
114
que assistiram ao mestre galileu possivelmente estavam no cerne das
primeiras comunidades cristãs e acabaram por delinear seus contornos e
tradições.
Muitos de nós conseguem manter, na memória, diálogos que
tivemos com entes queridos que vieram a falecer, com poucas
modificações ao longo de décadas, imaginem o quanto essas
comunidades deveriam zelar pelas memórias referentes a um homem
que todos julgavam santos e muitos consideravam como o escolhido de
Deus.
Assim conhecemos o passado pela imagem que nos foram
legadas sobre ele e algumas evidências físicas. Infelizmente os textos
canônicos foram submetidos a numerosas alterações, acidentais e
intencionais, que refletiam os momentos pelos quais passava a igreja no
momento em que o manuscrito era redigido, e as tendências de
harmonizar os evangelhos está por toda parte nos textos e eliminou
muito material que poderia ser útil em nossas discussões.
2.2 Os evangelhos canônicos
Os documentos cristãos, canônicos ou não, que trazem
informações sobre a figura de Jesus evoluíram na forma de extratos que
acabaram, por vezes, se sobrepondo. Ao primeiro extrato, elaborado de
Jesus: homem e espírito
115
30 a 60 d. C., pertenceriam as quatro cartas de autoria confirmada de
Paulo, o Proto-evangelho de Tomé, o Evangelho de Egerton, a fonte Q,
da qual falaremos mais a seguir, e os Evangelhos da Cruz e dos
Hebreus. Os demais textos, canônicos ou não, seriam oriundos do
segundo (60-80 d. C.), terceiro (80-120 d. C.) e quarto extratos ( 120-
150 d. C.). A historicidade desses textos evangelhos é muito discutida,
mas podemos crer que, pelo menos parcialmente, podemos empregá-
los.
Os textos canônicos e muitos textos apócrifos foram obtidos
através da mediunidade de seres humanos privilegiados pela honra de
servir na seara cristã em desenvolvimento, mas da mesma forma que
temos problemas com médiuns modernos, envaidecidos de suas
próprias faculdades, problemas ocorreram com as influências pessoais
desses evangelistas. De uma forma geral, os Planos de Vida Superiores
mantinham enviados de elevada hierarquia junto a esses irmãos
encarnados, provendo a liga, a cola, que utilizavam para dar sentido às
tradições que coletavam junto das pessoas que conviveram com Jesus.
Assim, mesmo com as peripécias das igrejas cristãs em descaracterizar
o texto, ele mantém grande parte da beleza da mensagem de Jesus, mas
grande parte dos dados históricos se perdeu.
116
Essa igreja cristã primeva era rica em histórias sobre o messias,
o mestre de Nazaré, que circulavam pela comunidade do Caminho,
como os primeiros seguidores de Jesus se auto denominavam (Atos dos
Apóstolos, 10:36-40). Assim, mesmo os acréscimos redacionais podem
conter informações relevantes e espiritualizantes, de forma que não
devemos descartá-las sem uma leitura mais crítica.
O evangelho mais antigo, o texto de Marcos, teria sido escrito
em Roma ao redor do ano 60 a 70 d. C., enquanto Mateus remontaria ao
ano 85 d.C. e a cidade de Antioquia, datando Lucas no ano 80-85 d. C.,
na cidade de Corinto. As imagens elaboradas que o evangelho de João
faz de Jesus, bem como o avançado processo de divinização do Cristo,
tirando ele do papel de messias judeu e colocando-o em pé de igualdade
com Deus, mostram que o texto joanino deve ter sido redigido no final
da segunda geração de cristãos, mas traz tradições bastante antigas que,
em muitos casos, remontam ao ministério público de Jesus. Além disso,
a presença de uma Narrativa da Paixão mais coerente do que os
sinópticos evidenciam que a fonte da tradição gravada no texto joanino
pode ter sido próxima de Jesus, embora sua autoria realmente constitua
um mistério e sua narrativa parte sempre do teológico e vai para o
mundo real, como assevera Meier.
Jesus: homem e espírito
117
Existem autores que acreditam que a história narrada nos
evangelhos seja meramente uma ficção idealizada, copiando os passos
de iniciação dos cultos pagãos da antigüidade, possuindo muitos erros e
incoerências. Contudo, no interior de cada um desses textos existe um
substrato que subsiste e uma história de uma comunidade cristã e pode
ser aproveitado. Contudo, alguns pontos devem ser discutidos. A
autoria dos evangelhos merece algum crédito ou indivíduos alheios ao
meio ambiente da igreja primitiva foram seus verdadeiros autores?
Existem cópias de manuscritos antigos dos evangelhos canônicos que
nos permitem verificar a integridade de suas redações?
Embora Marcos, Mateus, Lucas e João tenham sido personagens
reais, os escritos que carregam seus nomes não foram por eles, de fato,
redigidos, mas circulavam livremente, sem autoria conhecida, até o
século II d. C., quando foram atribuídos, direta ou indiretamente, aos
indivíduos mais importantes dos círculos apostólicos, conferindo a
esses documentos e legitimidade de que necessitavam para serem
utilizados pelas comunidades que patrocinaram sua confecção e
distribuição. A autoria dos evangelhos canônicos necessita ser
relativizada, posto que dependemos totalmente da opinião de autores
cristãos antigos para atribuir essa autoria.
118
Papias, escrevendo por volta de 125 d. C., afirmou que Marcos
registrou de maneira cuidadosa o que Pedro testemunhara pessoalmente,
evidenciando também que Mateus guardava escritos sobre Jesus. Irineu,
por volta de 180 d. C., sustenta que Marcos, Mateus, Lucas e João,
escrevendo de Éfeso, são os autores de textos sobre o messias de Nazaré
e sua missão. É muito pouco provável que João e Pedro tenham escrito
alguma coisa, posto que foram retratados como os mais rudes e
iletrados personagens entre os apóstolos (Atos 4:13), como a quase
totalidade dos cristãos até séculos atrás, mas esses apóstolos eram
dotados de pulsante mediunidade de psicofonia, cura e efeitos físicos,
tendo passado o conteúdo dos textos que levam seus nomes (com
exceção do Evangelho de João, que foi escrito por diversas mãos) aos
homens mais letrados que os acompanhavam, embora tais documentos
tenham sofrido diversas modificações posteriores, dando-lhes maior
beleza estética e fluidez lingüística, mas perdendo um pouco as
características originais.
Esses relatos obviamente não podem ser empregados como
indicação precisa da autoria dos evangelhos, mas pelo menos
estabelecem que desde os primórdios da igreja existia uma tradição que
associava esses personagens a esses textos.
Jesus: homem e espírito
119
Dos evangelhos, o de João é o que apresenta as maiores
dificuldades para a comprovação da autoria, visto que a cristologia ali
apresentada é claramente muito posterior às cartas paulinas, sendo
sugerido que o quarto evangelho seria o fruto de muitos autores. Vários
traços desse evangelho sugerem a preeminência do discípulo que Jesus
amava e não existe qualquer evidência de que o mesmo era o apóstolo
João. Alguns estudiosos modernos acreditam que a fonte inicial do
material ali contido derivaria de uma comunidade liderada ou integrada
principalmente por mulheres, como Maria de Magdala, sendo que as
características originais foram se perdendo à medida que novos extratos
da tradição foram se fazendo sentir sobre o texto. Esses mesmos autores
sugerem que o papel das mulheres que seguiam Jesus reflete o papel de
importância desempenhado pelas mesmas nessa comunidade. A
hostilidade a Pedro possivelmente está associada á pressão da
comunidade cristã em expansão sobre esse grupo, o qual se dividiu e o
segmento que retornou à influência dos seguidores de Pedro teria dado
origem ao evangelho, escrito por volta de 90. d.C., escondendo a
verdadeira identidade do "discípulo que Jesus amava".
Os autores principais dos evangelhos de Mateus e João foram
decididamente judeus, colaborando para isso o conhecimento que
parecem ter da mentalidade semita e, no caso de João, o ranço contra os
120
judeus e a sinagoga somente pode ter sido adquirido quando os cristãos
foram expulsos desse ambiente, o que denota uma proximidade muito
grande desse autor com o universo bíblico judeu.
A tradição da igreja primitiva localiza o autor do Evangelho de
Lucas como sendo um companheiro gentio de Paulo, mas seu
conhecimento da Septuaginta (o Velho Testamento traduzido para o
grego e disponível para os judeus da Diáspora, principalmente) e a data
de redação sugerem como autor um judeu helenista, uma vez que nunca
emprega os semitismos que são comuns nas demais redações dos
evangelhos sinópticos. Quanto a Marcos, ou “marcoses”, a tradição da
igreja lhe atribui uma identidade gentia, mas muitos pesquisadores, a
quase totalidade, estão inclinados a aceita-lo como judeu, mas com
pouco conhecimento ou interesse pelas minúcias da Palestina. Esse
evangelho apresenta o "Jesus" mais próximo da tradição dos seguidores
de Yaveh na TeNaK, ou Antigo Testamento hebraico.
Existem mais de 5000 manuscritos dos evangelhos, alguns como
fragmentos remanescentes, outros como cópias quase completas. Os
mais importantes papiros descobertos são os de Chester Beatty,
encontrados por volta de 1930. O papiro de número 1 apresenta partes
dos quatro evangelhos e do livro Atos dos Apóstolos, do século III d. C.
O número 2 contém grandes trechos das cartas de Paulo, além de
Jesus: homem e espírito
121
trechos de Hebreus escritos por volta de 200 d.C. O número 3 possui
grandes fragmentos do Apocalipse de João, datando do século III d. C.
Ainda pode-se citar os manuscritos do bibliógrafo suíço, Martin
Bodmer, do século III d. C., sendo que o mais antigo deles é de
aproximadamente 200 d.C., que contém dois terços do evangelho de
João, enquanto outros da mesma época contém partes significativas dos
evangelhos de Lucas e João.
O fragmento mais antigo do Novo Testamento que temos hoje é
parte do livro de João, mais precisamente, capítulo 18, podendo-se ver
5 versículos ao todo, três de um lado e dois do outro. Foi comprado no
Egito em 1920 e datado como sendo de 100 a 150 d. C., podendo
remontar até ao período do imperador Adriano (117-138 d. C.) ou
mesmo do imperador Trajano (98-117 d. C). Tem-se ainda uma grande
abundância de manuscritos representando toda a evolução da fé cristã,
muitos dos quais remontando ao século III d. C. e a grande maioria do
material evidencia que os evangelhos chegaram até nós com o sentido
inicial relativamente preservado.
Contudo, não se pode negar que numerosos enxertos,
principalmente nas Narrativas da Paixão e Ressurreição, foram feitos
(por exemplo, nas versões mais antigas do Evangelho de Marcos, o
texto termina em Mc 16:8, com o sepulcro vazio, nada relatando sobre a
122
ressurreição, e esse texto foi utilizado como base por todos os demais
evangelistas para a redação das suas Narrativas da Ressurreição).
Dos quatro evangelhos canônicos, considera-se que o mais
antigo é de Marcos, escrito por volta de 70 d.C, representando uma
tentativa de fazer a compilação de tradições orais e, provavelmente,
escritas referentes a Jesus de acordo com assuntos e palavras-chaves.
Acredita-se que o trabalho de Marcos fora precedido por um esboço
escrito, possivelmente em aramaico, que resumia os ensinamentos e
atos de Jesus. Os demais sinópticos, Lucas e Mateus, teriam se baseado
em Marcos e em fontes próprias (conhecidas como M e L), sendo que
esses dois últimos poderiam ainda conter uma quantidade variável de
material referente a uma tradição denominada de Q (“Quelle” que em
alemão significa “fonte”), que trazia uma narrativa de frases e ditos de
Jesus e teria sido utilizada para compor os trechos comuns ou próximos
dos dois evangelhos, que teriam sido redigidos por entre 80 e 90 d. C.
Alguns estudiosos acreditam que, ao mesmo tempo que textos
sobre os ditos de Jesus eram redigidos na Palestina, antes de 50 d. C.,
um outro evangelho, abordando apenas os feitos mediúnicos de cura e
desobsessões praticados por Jesus, era redigido. Esse texto se perdeu,
mas parte do seu conteúdo foi incorporado ao material dos evangelhos
canônicos. Alusão a esse texto pode ser lida nos últimos versículos do
Jesus: homem e espírito
123
Evangelho de João. A própria igreja cristã acabou eliminando parte dos
fenômenos mediúnicos que acompanharam a tradição oral e escrita,
visto que os mesmos podiam ser fonte de constrangimento para os
cristãos em populações não judias, para onde a fé se disseminava.
Outro aspecto relevante do estudo dos evangelhos é a
determinação de uma ordem cronológica dos eventos narrados. A não
ser os pontos mais relevantes, como o batismo de Jesus por João, no rio
Jordão, e as etapas finais de sua jornada em Jerusalém, por ocasião da
Páscoa judaica, não se pode estabelecer um quadro histórico ordenado
da vida do Cristo, de forma que tentar harmonizar os textos canônicos,
produzindo um quadro coerente e compreensível, é pura fantasia e os
resultados, quase sempre, traduzem mais as concepções pessoais do
estudioso do que uma seqüência real de fatos.
Dentre todas as fontes sobre Jesus, a mais enigmática é a fonte
"Q", que teria sido redigida em extratos progressivos, englobando
dizeres de sabedoria, passando para dizeres apocalipsistas e, finalmente,
discursos relativos à “figura histórica” de Jesus, possivelmente retratado
como um mestre de sabedoria, sendo que essa imagem pode ter sido
compartilhada por parcela significativa dos primeiros cristãos,
conhecidos como ebionitas e nazarenos, os quais mantiveram tantos
laços com o judaísmo original que foram consideradas seitas heréticas
124
no século IV e acabaram retornando para o seio da religião judia
original. Acredita-se que muitos desses cristãos acabaram sendo
expelidos dos impérios romano e bizantino, indo se alojar em Medina,
na atual Arábia Saudita, e influenciariam Maomé na elaboração do
Alcorão, norteando a visão que os muçulmanos têm de Jesus.
Fora dos evangelhos, o Novo Testamento é pobre em citações
capazes de colaborar com um estudo sobre a vida física do Cristo, quase
sempre se limitando a discutir aspectos centrais da fé cristã, como o
papel de Jesus na salvação, sua condição como Filho de Deus, eventos
após a crucificação e a condição que imperava nas novas comunidades
cristãs. Entretanto, algumas citações, como de Paulo sobre os apóstolos
e Tiago, “ o irmão do Senhor segundo a carne”, bem como a existência
de antigos credos cristãos (Didaque) podem corroborar para
compreendermos os demais textos canônicos.
Como aproximadamente um terço do Novo Testamento foi
redigido por Paulo ou por seus discípulos, os quais são considerados
como os verdadeiros fundadores do cristianismo helenizado, é
frustrante a falta de citações de valor histórico nesses textos. Paulo
escreveu muito mais cartas do que as que lhe são habitualmente
atribuídas no Novo Testamento, mas a Epístola aos Hebreus, 1 e 2
Timóteo, Tito, Colossenses e Efésios são consideradas obras de seus
Jesus: homem e espírito
125
discípulos ou imitadores posteriores, mas todas trazem a marca que as
caracteriza: o Jesus da Galiléia não é importante, apenas nasceu para
que o Cristo viesse a emergir da fé, trazendo muitos aspectos lendários
e místicos. Em poucas palavras, Paulo pouco ou nada sabia de Jesus.
Nas cartas de Paulo, por exemplo, a preocupação central do
autor é morte e ressurreição de Jesus, de forma que os atos do mestre
simplesmente carecem de importância, a não ser quando Paulo defende
pontos polêmicos de sua teologia e necessita de alguma citação daquele
que estava muito acima para justificar suas palavras, como acontece
com a questão do divórcio, onde Jesus o proíbe com veemência e Paulo
utiliza esse material (1Coríntios 7:10-11). Paulo se afasta o máximo
possível da figura do Jesus da história, primeiramente por que não o
conhecera em vida e esse era seu calcanhar de Aquiles.
Além desse aspecto, o conhecimento que ele relata de Jesus vem
mais de seus mentores espirituais do que de pessoas com as quais ele
travou contato na Palestina, uma vez que nunca foi aceito entre os
judeus cristãos e sempre foi visto como alguém de fora e que tinha
tentado sepultar a nova fé; sempre foi visto como um vira-casaca, um
traidor que poderia se voltar contra os cristãos novamente. Como Paulo
não conseguia explicar suas visões de Jesus em espírito e ele atribuía o
seu conhecimento do mestre à figura do “Senhor Ressurreto”. A
126
complexidade de um mundo espiritual, vidas sucessivas e
responsabilidade individual foram lentamente ganhando corpo na mente
dos apóstolos e muitos reentraram nos planos espirituais sem uma
compreensão maior; o próprio Jesus previra isso; Paulo não tinha
compreensão real do que ocorria ao seu redor, mas claramente passou a
perceber que um mundo diferente se descortinava diante de seus olhos
espirituais.
Como a historia das igrejas cristãs nos conta, a maioria dos
primeiros pregadores cristãos teria sido martirizada, tendo encontrado a
morte nas condições mais nefastas e, como coloca Pascal, “Acredito
com mais facilidade nas histórias cujas testemunhas se deixaram
martirizar em comprovação de seu testemunho”. Esse talvez seja um
dos mais convincentes argumentos a favor de uma historicidade de
fundo para os eventos narrados nos evangelhos.
2.3 Flávio Josefo
Poucas são as citações de autores não cristãos, em fins do século
I e início do século II d.C, que podem nos trazer alguma informação
sobre Jesus, o que revela que muito pouco interesse foi dedicado pelo
público greco-romano ou judaico sobre o novo movimento, pelo menos
inicialmente. A grande maioria das citações a Jesus se relaciona a
Jesus: homem e espírito
127
autores que direta ou indiretamente tiveram contato com cristãos, mas
não com o fundador do movimento e se acham envoltas em numerosos
problemas de autenticidade e interpretação.
Dentre todos os autores que nos remetem aos primeiros tempos
do cristianismo, merece destaque o historiador judeu José, filho de
Matias, ou Flávio Josefo (37/38 d.C.-100 d. C.). Esse personagem deve
seu nome aos seus protetores e benfeitores, os imperadores flavianos
(Vespasiano e seus filhos, Tito e Domiciano), para os quais passou a
trabalhar depois dos eventos dramáticos da rebelião judaica de 66 d. C.,
que culminou com a destruição de Jerusalém e, em última instância,
com o judaísmo que existia até então. Como autor redigiu duas grandes
obras, “A guerra dos judeus”, escrita logo antes da queda de Jerusalém,
e “Antiguidades Judaicas” em 93-94 d. C. Essas obras possuem
algumas citações a Jesus, mas é crível supor que, pelo menos
parcialmente, essas citações seriam fruto de algum escriba cristão
posterior, o que coloca em cheque a credibilidade de todo o texto como
fonte de material histórico.
Dentre essas citações, a mais controvertida é uma citação
encontrada apenas em alguns manuscritos russos, ou eslavônicos, de A
guerra dos Judeus, na qual o autor faz uma longa descrição sobre o
Cristo, onde aparecem numerosos elementos típicos dos evangelhos
128
apócrifos dos séculos II e III d. C., de forma que esse texto vem sendo
veemente classificado como falso. Entretanto, Flávio Josefo ainda faz
outras citações cuja autenticidade é de difícil comprovação. Como
coloca J. P. Meier, a mais curta e menos discutida se dá numa tentativa
de explicar os eventos que ocorreram após a morte do procurador
romano Festo e sua sucessão por Albino, o que teria ocorrido em 62
d.C. Quando Albino ainda estava a caminho da Palestina, o Sumo
Sacerdote Hananias, o Jovem, convoca o Sanedrim ( Sinédrio) sem o
conhecimento do procurador e condena à morte alguns inimigos seus.
O trecho fundamental, segundo J. P. Meier, diz: “Sendo portanto
esse tipo de pessoa (um saduceu desalmado), Hananias, pensando ter
uma oportunidade favorável, pois que Festo havia morrido e Albino
ainda estava a caminho, convocou uma assembléia de juízes e colocou
diante dela o irmão de Jesus que-é-cognominado-Messias, de nome
Tiago, e alguns outros. Acusou-os de terem transgredido a lei e os
entregou para serem apedrejados.”
Aparentemente a morte desse Tiago, irmão de Jesus, que-é-
cognominado-Messias, levou à deposição de Hananias, o judeu mais
importante da Judéia e de toda a comunidade judaica na Palestina e da
Diáspora. Esse irmão de Jesus também é citado por outros autores,
como veremos posteriormente e era muito respeitado pela comunidade
Jesus: homem e espírito
129
farisaica, a qual se revoltou e conseguiu a deposição do Sumo Sacerdote
(repare o relacionamento favorável entre um membro da família de
Jesus e os fariseus antes da revolta contra Roma; isso não é condizente
com a forma com que os fariseus são retratados nos evangelhos, que são
mais tardios).
Essa passagem é bastante interessante posto que não está
carregada de teologia cristã e pode ser facilmente aceita como autêntica,
uma vez que o único papel de Jesus no texto é facilitar a identificação
de outro indivíduo denominado Tiago, nome muito comum entre os
judeus da Diáspora e mesmo em Israel naqueles dias, de maneira a não
nos sentimos inclinados a pensar que um copista cristão iria se referir a
Jesus dessa forma. Essa citação é encontrada, também, na principal
tradução do texto em grego, sem alterações significantes, e também
pode ser confirmada por Eusébio, um historiador da igreja, no século
IV, que cita Josefo em sua História Eclesiástica. A expressão “irmão do
Senhor” tornou a ser empregada por Paulo, que não morria de amores
por Tiago, em Gálatas (1:19). Hegesipo ainda menciona “um primo do
Senhor”, “irmão de sangue (do Senhor)” e “os irmãos do Senhor”, o que
vai contra a expressão “irmão de Jesus” empregada por Josefo.
130
Outra menção de Flávio Josefo a Jesus pode ser encontrada no
Testimonium Flavianum. A versão apresentada foi retirada da extensa e
completa obra acadêmica de J. P. Meier, como se segue:
“Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio, se na
verdade podemos chamá-lo de homem. Pois ele foi o autor de feitos
surpreendentes , um mestre de pessoas que recebem a verdade com
prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como entre
muitos de origem grega. Ele era o Messias. E quando Pilatos, por
causa de uma acusação feitas por nossos homens mais proeminentes ,
condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de
ama-lo. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia, novamente vivo,
exatamente como os profetas divinos haviam falado desde e de
incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele. E até hoje a tribo dos
cristãos, que deve este nome a ele, não desapareceu.”
Não precisamos de muita erudição para perceber que uma série
de enxertos no texto destoam em estilo e conteúdo. Atualmente a
grande maioria dos estudiosos não mais considera esse fragmento como
sendo a expressão inicial de autor, mas sim um amálgama do texto
original sob a vontade de um copista cristão muito zeloso de sua fé.
Expressões como “se na verdade podemos chamá-lo de homem” (e os
demais negritos do texto), visa atribuir a Jesus uma natureza sobre
Jesus: homem e espírito
131
humana, o que obviamente não condiz com a visão que um judeu
praticante, como Josefo, teria do mestre e parece, indubitavelmente,
uma inserção cristã posterior. A sentença “Ele era o Messias” pode
dispensar comentários adicionais, visto que se trata de uma cabal
manifestação de fé em Jesus e reflete uma teologia muito claramente
evidenciada em Lucas (23:35), João (7:26), Atos dos Apóstolos (9:22) e
está fora de posição no contexto.
Porém, a parte mais impregnada de teologia cristã posterior
refere-se a “Pois ele lhes apareceu no terceiro dia, novamente vivo,
exatamente como os profetas divinos haviam falado desde e de
incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele”, que aparece nos mais
antigos credos cristãos datando da mesma época em que Paulo escrevia
suas cartas.
Assim, como mostra Meier, se retirarmos os enxertos acima
mencionados, o texto de Josefo adquire uma grande fluidez de idéias e
perde uma massa que parece deteriorá-lo:
“Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Pois ele foi o
autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a
verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos
judeus, como entre muitos de origem grega. E quando Pilatos, por
causa de uma acusação feitas por nossos homens mais proeminentes,
132
condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de
amá-lo. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve este nome a ele, não
desapareceu”.
Ao analisarmos o remanescente, podemos observar que, a
despeito de um tom de respeito, não existe absolutamente nada que
possa ser considerado como oriundo de um cristão e nos parece mais
ligado ao estilo de Josefo e ao tipo de observação que um judeu do
mundo greco-romano faria. A linguagem passa a se distinguir
ativamente daquela observada no Novo Testamento. Essa passagem
também possui a vantagem de ser encontrada em todos os manuscritos
de origem grega e latina, o que dificultaria a sua maior deturpação.
Pode-se ainda questionar se este trecho não serviria para
confirmar a época e condições da morte de Jesus, bem como a
participação de alguns autores desse pesado drama, como o Sanedrim e
Pilatos, além de mostrar que os seguidores de Jesus logo se espalharam
no seio da comunidade judaica e gentia. Entretanto, como muito bem
observado por Meier, a descrição da participação dos judeus na
condenação de Jesus, no texto acima, não corresponde ao comumente
observado nos evangelhos, de forma a confirmar a idéia de que, pelo
menos uma parte do texto, constitui uma fonte de confirmação de dados
a respeito de Jesus.
Jesus: homem e espírito
133
Nesse texto, a responsabilidade dos judeus na crucificação fica
restrita á denuncia contra o homem sábio, enquanto nos evangelhos, em
particular João, a condenação do Cristo se deu por uma conjunção de
fatores religiosos (as heresias cometidas por um galileu que pregava que
nada deveria separar o filho de seu Pai e o amor fraterno, a necessidade
de arrependimento, a iminência da chegada do Reino de Deus, o
domínio sobre a morte, como ocorreu em Lázaro, causa que João atribui
à crucificação) e políticos (o conceito de que aquele homem poderia
reclamar qualquer relação com uma linhagem davídica e seu peso
messiânico).
As fontes de Josefo permanecem obscuras, sendo que talvez o
historiador tenha entrado em contato com alguns cristãos em Roma, ou
com o próprio Lucas, mas Josefo parece saber mais sobre Jesus do que
sobre os cristãos. É possível que, na condição de protegido dos
imperadores flavianos, Josefo tivesse acesso aos relatórios dos
administradores provinciais do império em Roma. Muitos têm
perguntado porque Josefo não teria se aprofundado mais sobre uma
figura tão importante do século I d C., mas ele estava mais interessado
em questões políticas e na luta contra Roma, assim o próprio João
Batista merecia mais atenção, visto que muitos consideravam-no uma
ameaça política maior que Jesus.
134
2.4 Tácito. O historiador romano e outros
Tácito deixou a mais importante referência de Jesus fora do
Novo Testamento, visto que a citação aos cristãos está carregada de
preconceitos e mostra-se claramente em oposição a esse grupo, como se
nota abaixo , conforme texto de Edwin Yamauchi:
“...para acabar com os rumores, (Nero) acusou falsamente as
pessoas comumente chamadas de cristãs, que eram odiadas por suas
atrocidades, e as puniu com as mais terríveis torturas. Christus, o que
deu origem ao nome cristão, foi condenado á morte por Pôncio Pilatos,
durante reinado de Tibério; mas reprimida por algum tempo, a
superstição perniciosa irrompeu novamente, não apenas em toda a
Judéia, onde o problema teve início, mas também por toda a cidade de
Roma.”
Embora o nome de Jesus não seja explicitamente citado, Tácito
revela numerosas informações sobre ele e sobre o movimento cristão
nos seus primeiros momentos. Não devemos nos esquecer que, para um
romano dessa época, não havia fato mais abominável do que elevar à
condição de um quase-deus (ou mesmo deus) um homem crucificado.
Esse método de condenar alguém à morte somente era praticado contra
Jesus: homem e espírito
135
a escória do império e trazia a imagem do abominável mundo que
caracterizava a periferia dos domínios romanos.
Tácito (56/57-118 d. C.) escreveu os “Anais” como sua última
grande obra, onde pretendia narrar toda a história de Roma de 14 d.C. a
68 d. C. A despeito da perda de extensos fragmentos dos livros
(lamentavelmente os que retratavam o período de 29 d. C. a 32 d. C.
também foram perdidos), ainda podemos utilizá-lo para uma
caracterização do Império Romano no século I d. C. Hoje acredita-se
que essa passagem é, de fato, genuína. Primeiramente, podemos reparar
o tom anti-cristão adotado pelo autor, o que por si só já invalidaria a
hipótese de que mãos cristãs teriam produzido o texto. Tácito citara
apenas o que era do conhecimento geral a respeito dos cristãos, em
meados do século II d. C. e, na condição de governador da província da
Ásia (atual Turquia), teve contato com numerosos grupos cristãos.
Apenas os evangelhos, epístolas e cartas do Novo Testamento,
Josefo e Tácito fazem relatos independentes de Jesus, enquanto
Suetônio, Plínio (o Jovem) e Luciano descrevem atividades de
comunidades cristãs primitivas e não podemos extrair muitos elementos
para caracterizar o galileu que dividiu a história do mundo.
Suetônio fala da expulsão dos judeus de Roma (...”como os
judeus estavam constantemente causando distúrbios por instigação de
136
Cresto, ele os expulsou de Roma”), provavelmente sugerindo que os
judeus cristãos estavam propagando a sua fé nas sinagogas romanas
(Meier) por volta da quarta e quinta décadas do século I d. C. Já Plínio,
o Jovem, descreve como os romanos lidavam com os cristãos durante
suas atividades como procônsul da Bitínia, evidenciando que Jesus era
cultuado como a um deus, sendo que esse texto teria sido escrito por
volta de 111 d. C., enquanto Luciano de Samosata (150-200 d. C.,
aproximadamente) escreve sobre as atividades dos cristãos nesse
período, ironizando-os com escárnio.
Referindo-se à morte de Jesus e suas implicações, Justino, o
Mártir, no século II d. C. diz “Que essas coisas realmente aconteceram
podes averiguar nos Atos de Pôncio Pilatos”, um texto apócrifo. Os
milagres de Jesus também parecem ter sido registrados nesses “Atos”,
uma vez que o mártir relata “Que ele fez essas coisas, podes saber dos
Atos de Pôncio Pilatos”. Esse texto de Pilatos, se algum dia existiu, não
existe mais, mas pelo menos Justino acreditava na sua existência.
2.5 Outras Fontes Judaicas e o Alcorão
Poucas fontes judaicas estão disponíveis para a pesquisa que
agora se apresenta. Poderíamos abordar os primeiros escritos rabínicos
desenvolvidos a partir do século II d. C. e os manuscritos descobertos
Jesus: homem e espírito
137
nas imediações do Mar Morto a partir de 1947, os manuscritos do Mar
Morto, já mencionados quando falamos dos grupos religiosos dentro do
judaísmo palestino do século I. d. C.
Os manuscritos do Mar Morto permitiram uma excepcional
caracterização dos diferentes nichos e feições do judaísmo no século I
d. C., possuindo numerosos paralelos com filosofias e posturas
consideradas, até então, tipicamente cristãs. Um profundo pensamento
apocalíptico e sapiencial, gnóstico, dominava a Palestina, sendo
numerosos os paralelos com os evangelhos sinópticos, Epístolas de
Paulo, Epístola aos Hebreus e o Apocalipse de João. Mas esses textos
possuem uma origem bastante discutível e parecem não terem sido
escritos apenas por uma seita sectária judia, tampouco permitem uma
análise segura da época em que foram redigidos (do século III a. C ao
século I d. C). Nesses escritos aparecem personagens interessantes
como o Sacerdote Ímpio e o Mestre da Justiça ou Retidão, mas nada nos
permite supor que uma dessas figuras possa ter alguma relação com
Jesus (embora alguns autores mais imaginosos tenham sugerido que
Jesus ou seu irmão Tiago sejam o Mestre da Retidão). Em poucas
palavras: Jesus não existe para os textos de Qumran.
Poucas citações de qualidade podem ser encontradas em outros
textos judaicos, merecendo destaque a Mishná, do século II d. C e III d.
138
C. A maioria das informações presentes não reflete um pensamento
refinado a respeito do mestre galileu, mas apenas uma reação tardia à
propagação do cristianismo. Jesus é caracterizado como um mago que
realizou feitos notáveis de bruxaria e levou Israel para o caminho da
apostasia. Reparem que tais textos não tentam eliminar o fato de que ele
fez coisas maravilhosas, mas apenas atribuem a fonte do poder de Jesus
a forças maléficas. Nesse caso, como se trata de um texto de resposta à
expansão cristã, é de se admirar que os judeus não tenham tentado
eliminar as histórias de “milagres” e isso provavelmente se deu porque
essas histórias eram do conhecimento mais ou menos geral e não
poderiam ser negadas.
As referências ao galileu presentes no Talmude são, como
coloca o estudioso judeu Joseph Klausner, de pouco valor, posto que
são tardias e reacionais, como as apresentadas na Mishná. O próprio
Talmude (Palestino e Babilônico) não apresenta nenhum mestre judeu
do século I d. C., enquanto que o conteúdo do século II. d. C. se refere
mais a calúnias contra o cristianismo. Como sugere Meier , ”o resultado
final é tão pobre, que seu único valor prático é comprovar a existência
de Jesus”. Os autores judeus parecem utilizar os evangelhos canônicos
para criar as versões para difamar Jesus.
Jesus: homem e espírito
139
Muitos dos textos que ateus empregam para desqualificar a
origem de Jesus se baseiam em alguns trechos do Talmude que sugerem
que o “rabino” galileu era fruto de um relacionamento de uma jovem
judia com um soldado romano denominado de Panthera. Nesse sentido,
os nazistas, querendo evidenciar que Jesus era merecedor do sublime
título de “homem ariano”, segundo as leis raciais de Nuremberg, de
1936, se basearam nessa história para sustentar a hipótese de que seu
pai era um legionário romano de origem gaulesa, européia portanto.
Orígenes (185-254 d. C.) relata ter ouvido essa história de um judeu,
evidenciando uma reação aos textos evangélicos de Mateus e Lucas,
com sua descrição do nascimento virginal, que por si só traz muitos
aspectos do mundo da mitologia e das lendas dos povos da antigüidade.
Entretanto, existe uma citação talmúdica a um tal Yeshu (Jesus) que foi
enforcado na véspera da Páscoa judia depois de ter desencaminhado a
nação.
O Alcorão, escrito séculos após a morte de Jesus, não nos traz
nada de significativo sobre o mestre galileu, mas, pelo contrário,
incorpora toda uma série de lendas e contos sobre esse que os
muçulmanos acreditam ser um dos pilares santos da revelação de Deus
aos homens. Essas tradições possivelmente chegaram até Maomé
através de rotas comerciais na península Arábica e podem ter relação
140
com antigos grupos de cristãos nazarenos e ebionitas que haviam sido
expulsos do mundo romano com a ascensão do cristianismo latino.
Assim, por exemplo, traz que Jesus não teria morrido na cruz,
tendo sobrevivido ao martírio. Essa história pode ter se originado entre
120 e 130 d. C., com um herege denominado de Basilides, que teria
escrito, em Alexandria, que a morte de Jesus na cruz teria sido uma
farsa e que Simão de Cyrene o substituíra na hora derradeira. A imagem
do messias de Nazaré que emerge do Alcorão é respeitosa, mas
tipicamente medieval, totalmente destituída dos traços culturais do
século I d. C. Muitos milagres são narrados, sendo que os mesmos
foram realizados por Deus para validar as “pregações do seu enviado”.
Nesses textos, Jesus não é tratado como o Filho de Deus, mas como um
grande servo de Allah, é um messias, um espírito enviado por Deus.
As palavras do Alcorão separam totalmente as palavras do
mestre galileu das ansiedades do povo judeu do século I d. C., trazendo
estórias que eram freqüentemente contadas no final do primeiro milênio
da era comum. Com esses elementos, fica claro que os muçulmanos não
aceitam a figura da Trindade Cristã, criada pelos missionários cristãos
que falavam grego e que não haviam convivido com Jesus. Ele, nosso
mestre, era sublime, mas sempre se reportou ao Pai como se fosse mais
um filho do “Senhor dos muitos mundos e moradas”.
Jesus: homem e espírito
141
Muito interessante é a observação do papel atribuído a Maria no
olhar muçulmano, onde a mesma é considerada como um sinal, tendo
sido escolhida dentre todas as mulheres em função de toda sua fé e
pureza. Deus a teria poupado de toda sorte de impurezas, existindo
fortes indícios no texto de que a mesma teria se mantido virgem, casta,
por toda sua vida, algo muito propagado pelas igrejas cristãs naquela
época, particularmente na Síria, onde o culto à Maria foi
excepcionalmente intenso. No século II d. C., o Protoevangelium de
Tiago (um evangelho apócrifo) introduz a imagem de José, pai de Jesus,
como sendo um viúvo, idoso, aparentemente pouco inteligente,
causando problemas para seu filho adotivo, Jesus, e essa imagem foi
transferida para o Alcorão. Nada mais incongruente e inverídico, uma
vez que José era um homem prático, simples e extremamente
inteligente.
2.6 Os evangelhos apócrifos como fontes
Muitos livros outrora populares em diversas comunidades
cristãs, como o Apocalipse de Pedro, o Evangelho de Tomé e o Pastor
de Hermas, foram considerados “não inspirados”, ou apócrifos, na
medida que o “Jesus” que deles emergia era diferente daquele
reverenciado pela ortodoxia que se tornava dominante na igreja, mas
142
realmente algumas dessas obras são exercícios de ficção muito mal
elaborados, enquanto outros mostram um Jesus bastante semita, judeu,
muito próximo de antigas tradições e merecem mais atenção. Outros
textos sobre a comunidade judaico-cristã primitiva existem somente em
pequenos fragmentos ou foram perdidos, como os Atos de Tomé, Atos
de Paulo e Atos de Pedro, segundo o erudito J. P. Meier.
A grande maioria desses textos traz a marca da falsificação ou
de um sensacionalismo que beira o absurdo. Modificações de ditos e
passagens dos evangelhos canônicos, bem como lendas e histórias de
feitos pagãos recheados de pseudo cristianismo podem ser encontrados
em praticamente todos eles. Outro aspecto que merece consideração é o
período em que esses ensaios foram produzidos, por volta do século II
ao século VI d. C., o que os torna muito tardios para terem um valor
histórico como fonte de evidências com um mínimo de credibilidade.
Os poucos que chegaram até os nossos dias relativamente
intactos foram o Protevangelium Jacobi (Protoevangelho de Tiago) e o
Evangelho da Infância de Tomé, apresentando Jesus como uma criança
que beira as raias da delinqüência, totalmente dominada por fúria
colérica e desejos mundanos. Outras obras, como os evangelhos judeus-
cristãos (evangelho dos Egípcios, dos Nazarenos, dos Ebionitas ou dos
Hebreus), chegaram apenas na forma de fragmentos esparsos ou
Jesus: homem e espírito
143
citações de integrantes da igreja greco-romana e essa perda foi grande,
posto que, ao que tudo indica, traziam um Jesus judeu que, a despeito
de feitos extraordinários, era um mestre de sabedoria. Nesses textos, o
conteúdo gnóstico era parte de sua estrutura e a salvação era obtida com
o conhecimento da realidade interior e a fé.
O Evangelho dos Egípcios sobreviveu apenas na forma de
citações de autores antigos e é independente dos evangelhos canônicos,
tendo sido redigido por volta de 60 d. C., trazendo ditos de Jesus
redigidos e organizados de forma mais estruturada do que o Evangelho
de Tomé, devendo ser posterior a esse. O Evangelho dos Nazarenos
segue a linha dos trabalhos referentes ao Evangelho de Mateus,
podendo representar uma versão do mesmo para o aramaico, além de
uma construção moralizadora e que incorpora um certo toque lendário.
Nesse evangelho do início do século II d. C., Jesus se nega a procurar
João Batista para ser batizado, alegando não ter pecado. O Evangelho
dos Ebionitas reflete a visão que esse grupo de judeu-cristãos possuía e
foi redigido com o conhecimento prévio dos evangelhos sinópticos,
enquanto o Evangelho dos Hebreus, em seus sete fragmentos restantes,
realça a figura de Tiago, o irmão de Jesus, e se destina aos judeus da
Diáspora que falavam grego e assume um tom mitológico e gnóstico,
144
encarando Jesus como sendo a encarnação da sabedoria divina e deve
ter sido redigido até a data de 50 d. C., o que o torna bastante antigo.
O Evangelho de Barnabé, muito popular, é aparentemente uma
falsificação grosseira de um convertido ao islamismo na Idade Média,
com 222 capítulos, narra que Jesus não morreu na cruz e foi Judas quem
o substituiu no martírio, enquanto Jesus anuncia a vinda daquele que
iria concluir sua obra, Maomé. Reparem como o papel aceita tudo que o
seu proprietário assim o deseja. Para detalhes, recomendo a obra de Bart
Ehrman, intitulada “O que Jesus disse ou não disse e porque”.
O Evangelho de Judas foi citado no final do século II d. C., por
volta de 180 d.C., por Irineu, que o critica por mostrar Judas com uma
imagem totalmente diferente da apresentada pelos evangelhos
canônicos. A cópia existente, redigida entre 220 e 340 d. C., evidencia
que a traição de Judas teria sido arquitetada pelo próprio Jesus e pinta
uma imagem desse apóstolo como sendo um dos preferidos do mestre
galileu e o único que o teria compreendido e sentido a necessidade do
martírio do seu amado mestre, alem de ter sido o único a reconhecer a
origem divina de Jesus. Importante por trazer informações sobre a
pluralidade de crenças cristãs dos primeiros séculos, esse evangelho
apresenta dados característicos de textos gnósticos mais tardios e não
apresenta elementos que possam ser utilizados para a pesquisa séria do
Jesus: homem e espírito
145
Jesus que um dia caminhou pela Palestina. A teologia nele contida,
como a divinização de Jesus, permite datá-lo como uma obra do século
II d. C., por volta de 120-150 anos após a crucificação do mestre.
No século XIX, veio à “vida”, novamente, porções do
Evangelho de Maria, que embora não traga a identidade dessa “Maria”,
supõe-se que se trate de Maria de Magdala (Maria Madalena), a qual é
retratada como tendo sido iluminada e teria recebido conhecimentos
secretos diretamente de Jesus, passando a atuar como um guia para os
apóstolos. Pedro, seu duro opositor dentro do grupo mais íntimo de
Jesus, é retratado como um conservador recalcitrante que não aceita a
importância daquela mulher. Os fragmentos remanescentes desse texto
evidenciam uma redação tardia e bastante influenciada pelo
gnosticismo, mas permite avaliar que, pelo menos em algumas
comunidades cristãs, as mulheres apresentavam um “status quo”
elevado e semelhante ao homens, como o próprio Jesus parecia desejar
que tivessem.
As informações descritas nesse texto são, em parte, verdadeiras,
uma vez que Maria de Magdala era uma médium extraordinária, não
apenas vidente, como mostram as Narrativas da Ressurreição, mas
também de cura e efeitos físicos. Sua sensibilidade e amabilidade,
adquiridas após a desobsessão promovida por Jesus e modificação
146
profunda na sua maneira de agir e pensar (por favor, lembrem-se que
ela NUNCA foi uma prostituta arrependida, como tentaram caracterizá-
la nos últimos 1500 anos), fizeram-na a melhor intérprete de Jesus na
primeira geração de cristãos e a afinidade dela com o mestre acabou
gerando todo tipo de história depreciativa nos últimos 2000 anos. Maria
de Magdala foi um dos esteios da primeira geração de cristãos,
estabelecendo sólido apoio à figura feminina nos textos evangélicos,
juntamente com Maria, de Nazaré, a nossa eterna mãe.
Os poucos fragmentos disponíveis do Evangelho de Pedro,
descobertos em fins do século XIX, em Akhmim, alto Egito,
apresentam aspectos de antiguidade e conhecimentos bastante
peculiares, podendo-se observar as marcas de um outro texto mais
antigo denominado Evangelho da Cruz, em seu interior, o qual seria tão
antigo que foi tomado como única fonte de informações pelos autores
dos textos sinópticos sobre o drama da paixão, segundo Crossan. Esse
Evangelho da Cruz foi escrito em meados do século I d. C. e tomado
por Marcos como única fonte para sua Narrativa da Paixão, a qual teria
sido empregada como base pelos outros escritos canônicos, que também
tinham conhecimento do Evangelho da Cruz.
No Evangelho de Pedro, o Jesus ressurreto não teria um corpo
físico, mas apenas uma aparência física e teria aparecido para centuriões
Jesus: homem e espírito
147
romanos e autoridades judias, que teriam admitido a culpa na
crucificação do Justo, algo muito pouco provável para meados do
século I. d. C. Entretanto, é bastante elucidativo que a ressurreição
física do mestre galileu não fosse universalmente aceita nas
comunidades cristãs, existindo aquelas que descreviam as aparições de
Jesus como materializações de uma entidade não corpórea; uma
ressurreição em espírito, como prova da vitória sobre a morte.
Tem-se ainda o Egerton Papyrus 2, representado por 4 pequenos
fragmentos, escritos baseando-se no quarto evangelho (João). Outros
trechos dos fragmentos denotam conhecimento de Marcos. Várias
considerações nos levam a ponderar sobre o valor do texto como fonte
de material sobre o Jesus da história: os termos empregados (mestre
Jesus, por exemplo) não refletem a linguagem dos judeus do início do
século I d. C., somente se popularizando a partir da destruição do
Segundo Templo. Expressões como “Rabi X”, somente poderiam ser
empregadas quando essa forma de falar já estivesse consagrada nos
meios cristãos, obviamente após a composição do Evangelho de
Marcos. Contudo, alguns acadêmicos acreditam que embora o texto
encontrado date do século II ou III, algumas de suas características
podem remontar à década de 50 a. C., um verdadeiro tesouro.
148
John Dominic Crossan sugere que tanto os evangelhos
sinópticos quanto João também se basearam em um evangelho apócrifo
denominado de Evangelho Secreto de Marcos, cujo fragmento teria sido
descoberto por Morton Smith, da Universidade Columbia, em 1958, em
cópia de cartas do século XVIII, em um mosteiro ortodoxo. Entretanto
os fragmentos descobertos ainda não foram examinados
detalhadamente, de forma que a possibilidade de fraudes não pode ser
totalmente descartada (pode até ser provável, visto que o texto teria sido
examinado apenas pelo referido professor e nada pode comprovar, até o
momento, sua autenticidade). Clemente de Alexandria, entre 150 e 215
d. C aproximadamente, teria relatado a existência desse evangelho.
Clemente relata que Marcos teria escrito um evangelho público
a partir dos relatos de Pedro, no período em que esse último teria estado
em Roma e, após o martírio de Pedro, teria se deslocado para
Alexandria com material desse apóstolo e suas próprias anotações,
redigindo um evangelho mais espiritualista para os que perseguiam o
caminho da perfeição. Esse seria o Evangelho Secreto.
De todos os textos apócrifos nenhum mereceu maior atenção do
que os descobertos em Nag Hammadi, no Egito Superior, em 1945. De
nosso interesse merece destaque o Evangelho de Tomé, Evangelho da
Verdade e o de Felipe.
Jesus: homem e espírito
149
O Evangelho da Verdade trata-se, na realidade, de um texto que
contém um verdadeiro tratado teológico e nada tem a ver com os textos
do cânone. Ele realça o papel de Jesus na salvação da humanidade e
deve ter sido redigido entre 140-180 d. C. No caso do Evangelho de
Felipe, o texto realmente contém palavras e atos de Jesus, com ou sem
equivalentes no cânone, em meio a uma redação desconexa e
tipicamente fantasiosa dos textos mais tardios. Esse texto sugere que
Maria de Magdala era a companheira carnal de Jesus, com o qual
trocava beijos (embora não cite em que região anatômica os beijos eram
trocados). O nome do seu autor é desconhecido e nós o conhecemos
com a denominação supra mencionada por que Felipe é o único
apóstolo nomeado no texto.
Entretanto, nenhuma discussão sobre a importância dos textos
apócrifos e sua datação se compara com o que estamos presenciando
com o Evangelho de Tomé, o qual é uma coleção de 114 dizeres de
Jesus praticamente destituídos de uma base de narrativa. A maioria
desses ditos não perece estar ligada ao restante da obra de forma coesa,
apenas associada por palavras-chave ou motivos-chave. A versão
disponível em grego parece remontar a 200 d. C., enquanto a versão em
copta é de 340 d. C.
150
Além dos achados de Nag Hammadi, fragmentos desse
evangelho foram encontrados em uma forma mais original junto á
antiga cidade egípcia de Oxirinco e os mais antigos fragmentos
remontam ao século II d.C., enquanto a obra teria ganhado a
composição final por volta do ano 200 d. C. Nem todos sugerem que o
Evangelho de Tomé represente uma coleção tardia. Crossan e outros
acreditam que sua redação foi realizada por extratos, sendo que o
primeiro data de, aproximadamente, 50 d. C e teria Tiago, irmão de
Jesus, como seu “editor”, e um segundo extrato, redigido na Síria, em
Edessa, que teria sido compilado por Tomé. Nesse evangelho não existe
qualquer narrativa da paixão e Jesus é caracterizado como um grande
mestre sapiencial e não é denominado de “Cristo” ou “Mestre”,
denotando também uma postura mais próxima do que seria de se
esperar da igreja nos primeiros anos após a crucificação, sem a
roupagem teológica que esses textos ganharam. Contudo, poucos
aspectos da vida do Jesus histórico vêm à tona nesse evangelho.
As parábolas que permeiam o Evangelho de Tomé se
assemelham admiravelmente com as reconstruções “mais originais” dos
sinópticos criadas no início do século XX, sendo que suas palavras
podem ser facilmente revertidas para o aramaico e têm o ritmo e a
retórica que os exegetas atribuem às palavras autênticas de Jesus,
Jesus: homem e espírito
151
sugerindo uma influência do suposto documento “Q”, característica
única entre os documentos apócrifos. Possivelmente, o Evangelho de
Tomé representa uma tradição autêntica e independente de Jesus e
acrescenta elementos de estudo que permitem uma reconstrução mais
acurada das palavras do rabi galileu, o qual emerge do texto como um
judeu pio e justo.
2.7 Arquivos espirituais.
Muitas fontes espíritas ou espiritualistas fazem menções à
existência de arquivos universais que conteriam todas as informações
pertinentes aos eventos, maiores ou menores, que tiveram o mundo
como palco, desde sua criação. São denominados de diferentes
maneiras, como por exemplo “arquivos siderais”, “arquivos akásicos”
etc.
A literatura espírita que recebeu a honra de vir à tona pelas mãos
do querido médium mineiro Chico Xavier, embora apresente pequenas
incorreções periféricas, é de enorme valia para todos os diferentes
aspectos que caracterizam o espiritismo moderno e esses textos, aliados
aos de médiuns como Carlos Baccelli e outros, fica bastante claro que,
nos planos espirituais que bordejam o plano físico em que vivemos, as
informações sobre Jesus e seus apóstolos não diferem
152
significativamente daquela que está disponível em nosso próprio
mundo, destacando-se o fato de que, mesmo lá, nossa formação
religiosa ainda interfere sobremaneira na interpretação dada às palavras
evangélicas e isso está de acordo com o conceito de que a morte
representa uma passagem de estado, não uma transformação real. Lá, do
outro lado desse véu, continuamos a ser o que aqui cultivamos e somos.
Devemos ter muito cuidado com citações a respeito desses
arquivos e, como bem colocou Kardec, o estudioso do espiritismo deve
utilizar-se de todos os elementos da racionalidade para evitar devaneios
sem rumo, que acabam prejudicando toda a credibilidade da mensagem
espirita. Assim, não utilizamos esses arquivos siderais ou akásicos para
a redação desse texto, não porque duvidamos de sua existência, mas
porque entidades com a nossa evolução espiritual sequer conseguiriam
ter acesso a eles, que estão em toda parte. Seria algo semelhante a
procurar Deus nos céus, quando sabemos que Ele habita em nossos
próprios corações.
Da mesma forma que, em nosso plano, as academias estudam a
vida e mensagem de Jesus, nos demais planos da vida, mais ou menos
adiantados no processo de reconhecimento da verdade, estudos
similares também se fazem presentes, mostrando realidades mais ou
menos próximas àquelas que aqui colocamos, mas não nos eximimos do
Jesus: homem e espírito
153
fato de que apresentamos aquilo que, à nossa razão, se mostra mais
razoável e menos fantasioso.
Agora que fizemos uma pequena viagem sobre o universo de
fontes históricas que abordam o messias de Nazaré, podemos começar
nossa jornada em direção ao seu ambiente familiar e nascimento.
154
3 O nascimento de Jesus e sua família
“...Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas...”
(Lucas 3, 4)
Jesus: homem e espírito
155
3.1 O nascimento de Jesus e sua família nuclear
As poucas fontes que se referem ao nascimento de Jesus estão
repletas de elementos lendários e são incompatíveis entre si. Desse fato
não podemos fugir e todas as tentativas de harmonizar as histórias de
Mateus e Lucas são apenas isso, tentativas, geralmente absurdas. Os
autores dos textos não tinham conhecimento sobre o fato narrado e
tentaram harmonizar a história que possuíam com as antigas profecias
sobre a vinda do messias, daí tantas incoerências terem aparecido.
Muitos espíritas também fazem o mesmo e se esquecem que a
majestade de Jesus não vinha de uma ascendência real, da casa de Davi,
mas sim de uma evolução e bondade infinitas.
Os cristãos ficavam incomodados com as ironias que se faziam
ao seu messias quando o assunto do seu nascimento era colocado em
pauta, no mundo greco-romano, e esse aspecto era agravado pelo fato
de Jesus não tocar no assunto durante a sua estada terrena, até porque
não havia motivos para comentar ou discutir a infância normal que o
menino teve, fora as frequentes manifestações do seu brilhantismo
intelectual e sua força moral. Ele foi mantido em preparação constante
e, ao mesmo tempo, distante das turbulências que cercavam o seu
pequeno lar na fértil Galiléia.
156
A espiritualidade procurou, de todas as formas, evitar que o
local de nascimento do escolhido fosse conhecido das forças das trevas,
o mesmo ocorrendo com a identidade da família que o receberia. Isso se
manteve por todo o período secular que acompanhou a descida
vibratória de Jesus e objetivava evitar o assédio das forças contrárias ao
crescimento moral e intelectual da humanidade, ao mesmo tempo que
permitia que as principais lideranças das trevas fossem parcialmente
confinadas em seus redutos vibratórios.
A humildade de Jesus e de sua família, ao mesmo tempo que
desperta a admiração no presente, era vista como algo não muito digno
de um rei ou escolhido do Deus único e os evangelistas viveram uma
grande crise, decidindo entre colocar o que as tradições populares
diziam, mostrando uma vida real, pobre, mas não miserável, de um
menino e sua família, ou estilizar todos esses elementos em uma
narrativa digna de um grande rei do mundo de então.
Para resolver esses inconvenientes, cada comunidade cristã
passou a cultivar alguns aspectos lendários relativos à infância de Jesus
e ao seu nascimento, que acabaram incorporados aos textos dos
evangelhos de Mateus e Lucas, enquanto que o apóstolo Paulo, os
evangelistas que escreveram o Evangelho de Marcos, bem como os
autores dos demais livros do Novo Testamento não citam a primeira
Jesus: homem e espírito
157
fase da vida de Jesus, exatamente porque ela não era relevante do ponto
de vista da mensagem do Cristo e poucas informações estavam
disponíveis quando os textos foram escritos. Para se ter uma idéia, as
cartas de Paulo (que nunca viu Jesus encarnado), os mais antigos
documentos do Novo Testamento, foram escritas 50-60 anos após o
nascimento do mestre e 30-35 anos após a crucificação, quando as
pessoas que haviam visto Jesus criança já haviam retornado para o
mundo maior e apenas lendas e boatos circulavam.
Dentre esses elementos lendários típicos de contos de fadas ou
histórias de semi-deuses gregos ou egípcios, temos o nascimento
virginal, anunciação por anjos, palavras a respeito do futuro grandioso
daquele que nasce, bem como atitudes muito precoces do rebento que
vem ao mundo, presentes sobretudo nos evangelhos denominados
apócrifos e nas comunidades egípcias que dizem ter recebido a sagrada
família durante seu curto exílio. Contudo, não podemos ignorar que tais
fatos ocorreram, em função da mediunidade de José e Maria, além da
poderosa sensação que o rebento era único e de inteligência vibrante,
como de fato se mostrou, mas a forma com que a informação é colocada
nos dá a impressão que os autores do texto procuravam contrabalançar a
vida singela do menino Jesus com a descrição de lendas gregas e dos
158
demais povos gentios que passavam a receber a mensagem cristã de
amor ao próximo.
Quando os evangelhos foram escritos, o que ocorreu por
camadas ou extratos, entre 50 e 100 d. C., muitos ou todos os que
teriam informações sobre o menino Jesus já deveriam estar mortos, o
que provavelmente não ocorreu com as narrativas do seu ministério. A
única exceção a essas considerações era Maria, sua mãe, que o
acompanhou até o final de sua vida pública. Obviamente as Narrativas
da Infância poderiam ter nela sua inspiração maior, particularmente em
Lucas, uma vez que Mateus se concentra em José. Contudo, Maria não
informa nada a respeito do seu filho e tudo que transparece nos
evangelhos evidencia uma relação mãe-filho primogênito tradicional, de
forma que ela nunca é denominada de virgem e os irmãos de Jesus estão
presentes em toda a história da vida do messias galileu. Ela só se tornou
novamente virgem quando a igreja cristã decidiu valorizar a vida
familiar e a virgindade da mulher como forma de contrabalançar a
derrocada moral da civilização clássica.
Esses nobres irmãos cristãos não poderiam imaginar que
estavam cometendo um atentado com a mensagem do Cristo, uma vez
que no mundo judeu palestino, ter filhos era um dos mais importantes
chamamentos da lei divina e o sexo não era visto como algo impuro ou
Jesus: homem e espírito
159
reprovável. Isso demonstra que os textos da infância foram redigidos
fora do ambiente palestino tradicional.
No antigo mundo mediterrâneo, a família constituía a única rede
de segurança social que o indivíduo possuía, assim o fato de Jesus ter
cortado os seus principais vínculos familiares no início do seu
ministério, teria um significado muito relevante, quase radical, como
colocam Meier e Crossan. Contudo, os membros da família nuclear de
Jesus, em particular seus irmãos, desempenhariam um sólido papel na
igreja primitiva e acabariam sendo removidos ou retratados de forma
pejorativa nos textos canônicos para agradar as lideranças locais das
igrejas cristãs que se formavam. Era a vaidade que falava mais alto,
mesmo entre encarnados que tinham grande suporte do Alto para sua
missão.
A família nuclear de Jesus foi escolhida em função do papel que
teria de desempenhar na vida do menino. Tanto o pai quanto a mãe de
Jesus, José e Maria, eram entidades da mais elevada expressão
hierárquica, dotados de elevada sensibilidade mediúnica, mas que não
haviam atingido a evolução espiritual de Jesus. José era mais velho do
que Maria, mas longe de imaginarmos barbas brancas para o pai de
Jesus, com forte personalidade e características enérgicas, deveria
conferir proteção física e uma profissão humana para o mensageiro de
160
Deus, o que seria temperado pelo coração sempre receptivo e a
emotividade exacerbada de Maria. José, prático e tendo perdido grande
parte das ilusões da vida, não dava muita importância às numerosas
visões em que seu pequeno filho parecia envolto em luz e anjos
pareciam escoltá-lo e protegê-lo; a vida dura e a necessidade de garantir
o sustento de uma família que crescia rapidamente tomavam todas as
atenções do homem.
A vida dura que norteou a passagem de José pelo mundo físico
fazia com que ele, mesmo que carinhoso com o menino, acabasse tendo
um tom demasiadamente sóbrio. A possibilidade de ter seus dias
encurtados pela morte nas mãos da miséria física e na espada romana
tiravam qualquer encanto adicional que esse homem de meia idade
pudesse vislumbrar na criança. Esse fora um dos motivos pelos quais
José evitava o contato com o mundo greco-romano que os envolvia em
Nazaré, uma vez que a capital regional era a bela Séforis, distante
poucos quilômetros dali.
Tanto José quanto Maria tinham uma religiosidade extremada
mas não literalista. Essa característica pode ser observada até nos nomes
dos familiares de Jesus, que refletem o zelo emanado de uma família
judaica praticante: o nome de seu pai, José, é o mesmo de um dos filhos
de Jacó e pai de duas das 12 tribos de Israel, Efraim e Manassés; sua
Jesus: homem e espírito
161
mãe, Maria (derivado de Miriam), possuía o nome da irmã de Moisés,
seus quatro irmãos, Tiago (Jacó), Simão, José e Judas, homenageavam
o patriarca bíblico que gerou as tribos de Israel e três dos seus doze
filhos.
O apego à lei mosaica na família de Jesus é expresso até nos
poucos adjetivos que são atribuídos a José, merecendo destaque Mateus
(1:19), que o qualifica de justo, ou seja, aquele que segue a lei. Tiago,
irmão de Jesus, também recebe esses adjetivos dos pais da igreja e
numerosas citações posteriores confirmam o tom respeitoso devotado à
família de Jesus. Essas pessoas simples, mas dotadas do básico em
termos de educação formal, poderiam passar para o messias de Nazaré
as ferramentas para que ele viesse a ter contato com as escrituras e
tomasse suas próprias conclusões. Não se esperava, tampouco se
desejava, uma participação mais ativa ou interferências na missão do
eleito, de forma que o mesmo era cuidadosamente assistido pelos
planos superiores como forma de possibilitar um rápido desabrochar de
suas potencialidades mediúnicas e intelectuais. Entretanto, cabe
ressaltar aqui que todos os irmãos e irmãs do mestre também
apresentavam as faculdades medianímicas, mas não em condição tão
natural e plena quanto observada em Jesus, tampouco possuíam o
caráter angelical que Jesus envergava em seus menores atos.
162
Quando Jesus foi concebido, Maria contava com a pouco mais
de 13 anos e isso era uma ocorrência normal, até desejável, entre as
meninas judias. O casamento precoce significava menos peso sobre os
avós maternos e menor exposição ao mundo. Durante a infância de
José, os afazeres de um aprendiz de carpinteiro (em realidade José
trabalhava com construção, em madeira e pedra, não apenas com as
atividades de um moderno carpinteiro) não permitiam muito tempo para
pensamentos mais abstratos. Ele era um homem de atitudes, prático, de
poucas palavras, mas extremamente correto e cônscio de suas
obrigações perante Deus e sua família. Nunca passou pela sua cabeça
que seria pai de um espírito como Jesus. Aliás, nesse sentido, José
acreditava em um Deus que interferia na vida dos justos e os esperava
para a ressurreição final dos mortos, mas não podemos atribuir a ele
qualquer conhecimento da existência de planos de vida superiores.
Independentemente da profissão ou atividade a ser desenvolvida por
seus filhos no futuro, José lhes daria as mais sinceras provas de
honestidade e respeito, típicas dos códigos de honra e conduta do
Mediterrâneo Oriental.
Durante a infância, José foi acompanhado por espíritos sublimes
que o levavam à presença de todos os que, com ele, iriam atuar na trama
de vida de Jesus. Sua presença nos planos mais elevados produzia
Jesus: homem e espírito
163
profundas impressões, o que se refletia na sua ansiedade e angústia
quanto ao porvir; a grande dedicação com relação ao menino e, acima
de tudo, a confiança no seu papel de pai. Em grande parte de forma
inconsciente, sua postura grave e responsável refletia a necessidade de
prover o ambiente adequado para o nascimento do Messias judeu.
Os anos passaram e as atividades diárias, bem como a
necessidade de prover o básico para a família, acabaram por transformar
os sonhos vívidos do jovem em recordações turvas na mente do velho,
que tudo interpretava como fruto de uma mente juvenil que desconhecia
a verdadeira realidade do império romano; todas as visões foram
convertidas à categoria dos sonhos e dele José se distanciou. Entretanto,
vemos reminiscências desses sonhos até na escolha do nome que seria
dado ao messias galileu: o nome “Jesus” deriva de Yesu, ou melhor,
Yesua, presente na Bíblia hebraica, sendo uma abreviação de Yehosua,
ou Josué.
Esse nome (Yehosua) foi simplificado, após o exílio na
Babilônia, para Yesua e, por fim, para Yesu. Até o século II d. C., o
nome “Jesus era muito comum entre os judeus”, obviamente
desaparecendo com a propagação do cristianismo, ao mesmo tempo em
que o nome retornava à sua estrutura original. O significado inicial de
Josué/Yehosua seria algo próximo a “Jeová ajuda”, “Que Jeová ajude’
164
ou, mais simplesmente, “Jeová salva”. Esse significado ganha realce no
sonho de José (Mateus 1:21), onde o anjo teria dito “e lhe porás o nome
de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles”.
O jovem José e sua família, bem como os demais judeus de
Nazaré, se mantinham separados de toda a agitação do mundo ao seu
redor, como a construção da cidade de Séforis, uma grande e helenística
cidade erguida pelos governantes herodianos sob a proteção romana.
Ele deveria prover a Jesus o senso humano, o dever comum, o sentido
de honra de uma sociedade em ebulição, não devendo tolher o jovem
que logo adquiriria seus próprios caminhos.
José foi esquecido totalmente nos tempos modernos e a
paternidade de Jesus é atribuída ao próprio Deus. Essa transformação se
deu no mundo gentio, que via em Jesus uma contrapartida aos semi-
deuses gregos. Assim, criaram a figura de anjos que anunciavam a
vinda eminente de um enviado de Deus, seu filho único, profecias de
feitos que seriam realizados e sobre o papel do menino na história da
humanização do homem. Contudo, nesse último caso, somos forçados a
crer que essas histórias refletem os muitos chamamentos que José e
Maria, a jovem, receberam dos planos mais elevados da espiritualidade,
que foram paulatinamente sendo incorporados às tradições cristãs.
Jesus: homem e espírito
165
Mas não podemos nos furtar de colocar que, com a paternidade
de Jesus, o menino, o homem, o escolhido, sendo transferida ao Espírito
Santo, sua família terrena e ele próprio foram vítimas de todo tipo de
ironia e escárnio, que se prolongaram por séculos. Era o efeito colateral
da teologia que se imiscuía na história.
Maria, por seu turno, era bela adolescente (verdadeiramente
linda, segundo a espiritualidade, como o retrato falado transmitido por
Chico Xavier, que nos legou a imagem mais viva da nossa mãezinha
espiritual) quando foi entregue a seu futuro marido, José, que além
disso era seu parente próximo e possuía diversos laços em comum.
Emotiva e extremamente afável, Maria era o oposto do rigoroso José e
isso acabava por temperar o lar com o equilíbrio que o menino Jesus
necessitaria para o seu nascimento.
Esse caráter maternal extremado poderia ser prejudicial à missão
que seria desempenhada pelo seu primogênito e todos os cuidados
foram tomados pelo Alto para que seus braços maternais não
prendessem demasiadamente aquele que seria cognominado “o Cristo”.
Sua mediunidade ostensiva lhe permitia ver a beleza espiritual do
maravilhoso espírito abrigaria no ventre e, por vezes, era encontrada no
"choro de mansidão" acariciando, em pensamento, aquele que sentia ser
a sua luz maior. Ela carregou esses pensamentos até seu desencarne em
166
Jerusalém, aproximadamente 20 anos após a crucificação do seu
primogênito. Em profunda comunhão mental com Jesus, Maria nunca
conseguiu evitar a dor da incompreensão que seguiu seu filho durante a
sua curta jornada terrena.
Para evitar que a presença do Jesus no seu ventre se convertesse
em uma explosão de sensibilidade, com os consequentes efeitos
colaterais para seu corpo físico e perispiritual, a equipe invisível
encarregada de acompanhar o reencarne do mestre atuava de forma a
impedir o assédio de outros espíritos à casa da família, mas logo ficou
patente que as energias que se irradiavam daquele ambiente produziam
um modificação paulatina na pequena e pobre vila de Nazaré.
Muitos irmãos espirituais, de todas as esferas evolutivas
superiores, acorriam às proximidades da casa em que a criança estava
sendo gerada. As emanações eram fortes demais para serem contidas e
os trabalhos nos planos superiores zelavam para manter as influências
dessas pessoas dentro de um universo de harmonia. É certo que
ninguém, encarnado ou desencarnado, que acorria à casa de Maria,
podia imaginar o que se daria nas décadas seguintes, mas todos se
sentiam em uma paz profunda, dessas que não nos esquecemos
facilmente.
Jesus: homem e espírito
167
Ao contrário dos espíritos ordinários, comuns, profundamente
endividados com a lei divina, que sofrem as reencarnações
compulsórias, Jesus não teve seu perispírito ligado ao corpo físico em
formação senão pouco tempo antes do parto, o que permitia ao mestre a
liberdade espiritual plena, que não normalmente não cabe a um espírito
encarnado.
A contínua conexão com os espíritos que a protegiam e
acompanhavam a família ficou gravada na mente de Maria, traduzindo-
se como a visita de anjos que vinham lhe anunciar a chegada do
prometido e essas lembranças estiveram presentes ao longo de toda a
sua vida, mesmo nos momentos mais duros do calvário e nos anos
seguintes, quando as dores da separação e, principalmente, da
incompreensão lhe eram tão fortes. Mesmo a presença dos outros filhos
e filhas ao seu redor não atenuou a dor que ela sentiu com a
crucificação. Não é por menos que, na cultura popular moderna, ela seja
reconhecida como a mulher que encarnava as virtudes perfeitas de mãe;
ela, de fato, representava esse papel e não apenas para seus filhos,
cultivando o sentimento materno por todos que a procuravam, mesmo
nos anos finais de sua existência terrena.
Poucos aspectos são mais controversos do que o nascimento
virginal de Jesus, o que de fato não ocorreu. Essa transformação se deve
168
ao fato de que o texto original do profeta Isaías alude ao fato de que o
messias nasceria de uma virgem, em idade de vir a conceber, não
colocando a necessidade dela "estar" virgem no parto. A igreja acabou
convertendo Maria em um ser assexuado, ao longo do tempo, e isso não
condiz com a visão judaica de mundo, onde a mulher e o homem
deveriam ter filhos e essa era a beleza da lei. Nada mais sublime e puro
para uma mulher judia do que ser mãe. A abstinência voluntária de sexo
era conhecida, mas não tinha um papel maior na sociedade palestina,
sendo que, com o domínio romano e as opulentas orgias que tomaram
corpo no império, a virgindade passou a ser valorizada; Maria foi
convertida no modelo perfeito de mulher, a virgem.
Assim, como forma de valorizar a postura submissa da mulher e
as virtudes da nova fé, até Maria de Magdala, sofrendo de sérios
desequilíbrios em função de obsessores perversos e sensibilidade
mediúnica aflorada, foi convertida, de forma irresponsável, pelo
papado, em exemplo de prostituta arrependida. Nada mais incoerente. A
relação da igreja cristã com as mulheres somente não foi conturbada em
seu nascedouro, na Casa do Caminho; pelos 2000 anos seguintes, elas
sofreriam toda sorte de humilhações, de pichações de bruxas a cargos
de submissão aos homens do movimento e somente agora as igrejas
mais literalistas despertam para esse fato.
Jesus: homem e espírito
169
A concepção virginal de Jesus está descrita apenas em Mateus
(1:18-25) e Lucas (1:26-38) e nada mais é dito sobre isso. Nas cartas
paulinas, os mais antigos documentos do Novo Testamento, seus
autores, Paulo e possivelmente alguns de seus seguidores, desconhecem
os pais de Jesus e, segundo Gálatas 4:4 ("vindo, porém, a plenitude do
tempo, Deus enviou seu filho, nascido de mulher, nascido sob a lei"),
Paulo deixa claro como água que o nascimento do messias galileu teria
ocorrido de forma normal. Nada de nascimento miraculoso; o
verdadeiro milagre consistia no amor que aquele espírito puro,
iluminado e infinitamente sábio e poderoso, parecia sentir por homens
tão primitivos e toscos. Eis o verdadeiro aspecto miraculoso do
nascimento de Jesus.
De todas as qualidades de um grande legislador, a maior é a de
seguir suas próprias leis. Existem leis que regem o reencarne de
espíritos em nosso plano, Jesus, representante do Legislador Supremo,
nosso Pai de Misericórdia e Bondade, teria de seguir as leis criadas pelo
próprio Deus. De que valeria o seu nascimento se ele fosse um
privilegiado? Como pregar a igualdade entre os filhos de Deus se ele
mesmo seria uma exceção à regra? Dessa forma, acreditamos que o
nascimento de Jesus veio coroar um amplo trabalho espiritual voltado
para a escolha de uma família, um conjunto de genes que viessem a
170
permitir a concretização da missão divina atribuída ao mestre galileu e
que, acima de tudo, criasse condições favoráveis para que o Cristo, na
condição de homem, falasse para outros homens como um igual e não
apenas um espírito materializado ou um agênere. Eis o outro aspecto
miraculoso do mestre: ele abdicou de tudo quanto havia conquistado na
sua trajetória evolutiva e se fez um de nós.
Assim, nosso Deus não enviaria à Terra um filho sublime e
devotado, Jesus, burlando as leis eternas, de forma que a concepção de
Jesus e a gravidez de Maria foram eventos absolutamente normais, com
exceção da coroa de luz que os envolveu em todo o processo
divinamente planejado. Durante a gravidez de Maria se acentuaram as
influências do sublime espírito de Jesus sobre a estrutura corporal de
sua mãe, que parecia cada dia mais bela e feliz aos olhos do mundo. A
aversão á violência, matanças e a crise social eram deixados para o
segundo plano.
Pode-se pensar também que, se os irmãos de Jesus, ou pelo
menos aqueles assim denominados nos textos do Novo Testamento,
tivessem conhecimento de tal fato miraculoso (o nascimento virginal),
certamente iriam crer nele com mais facilidade e não é isso que os
escritos bíblicos revelam. A origem do nascimento virginal também
deriva da necessidade cristã de supor que, da mesma forma que o poder
Jesus: homem e espírito
171
do Espírito Santo teria ressuscitado Jesus dentre os mortos, talvez o
mesmo poder deveria tê-lo concebido, com tantos paralelos na
mitologia greco-romana.
Aspecto relevante associado à concepção virginal é o seu
oposto, a ilegitimidade de Jesus. Isso parece herético aos ouvidos de um
cristão moderno, e provoca desconforto até nos autores desse estudo,
encarnados e desencarnados, mas essa consideração chegou a ser feita
pelos judeus nos primeiros séculos da era cristã, sendo gravíssima em
uma sociedade preconceituosa e fechada como aquela, mas
provavelmente se originou como uma reação à expansão da fé no
homem crucificado.
A própria narrativa da infância, como apresentada nos
evangelhos de Mateus e de Lucas, permite uma série de discussões
quanto à ilegitimidade de Jesus. Segundo Mateus, o mestre foi
concebido entre a promessa formal de casamento e a condução oficial
da noiva até sua futura residência, o que dá munição aos céticos para
formular teorias referentes à prática de relações sexuais entre José e
Maria nesse período, o que não configuraria adultério tampouco
fornicação, uma vez que os noivos já seriam considerados casados.
Muitos acreditam que a origem desse discurso se deva ao
escritor pagão do século II, Celso, que teria escrito o seu famoso “O
172
Verdadeiro Discurso”, em 178 d.C., tendo motivado uma importante
resposta por Orígenes, um líder cristão, por volta de 248 d.C. Segundo
Celso, Maria teria cometido adultério com um soldado romano
denominado Panthera e teria sido repelida por José, o carpinteiro que a
tinha como prometida em casamento. Sem marido e dinheiro, deu á luz
a seu filho em segredo, o qual foi morar no Egito, onde tornou-se um
mágico e operário para depois reivindicar o título de “deus”. Isso é de
arrepiar os cabelos, mesmo para aqueles que olham para Jesus e o tem
como um mestre de grande sabedoria, mas não um Deus-Filho.
Obviamente esse texto remonta à reação judaica contra a
propagação do cristianismo, possuindo todos os preconceitos de que a
própria vida de Jesus viria a suscitar. Em debates anteriores entre judeus
e cristãos, como o debate entre Justino, o mártir, e Trifo, o judeu, sobre
a concepção virginal, essa história não havia circulado e, obviamente,
isso não se deu porque enquanto as testemunhas da vida de Jesus ou
seus descendentes diretos estavam vivos, não havia espaço para esse
tipo de consideração. Essas testemunhas oculares conheciam a família
do mestre e nada permitia que tais considerações pudessem vir à tona,
mas o tempo tudo apaga e permitiu que toda sorte de coisas fosse
deixada na trilha da sagrada família.
Jesus: homem e espírito
173
Podemos concluir que as reações às narrativas da infância são
óbvias e isso se torna mais importante quando percebemos que essa
colocação dos judeus se iniciou entre aqueles que viviam na diáspora e
não na Palestina, uma vez que os judeus palestinos conheciam Maria,
seu marido e filhos, não tendo espaço para esse tipo de conversa. Todos
conheciam Maria e José seus numerosos filhos e filhas; uma típica,
fervorosa e grande família.
Quanto ao nascimento propriamente dito, júbilo tomou conta da
pequena comunidade em que Jesus veio ao mundo, pela expressão do
menino e pela aura maravilhosa que se irradiava do humilde suporte que
o recebera no mundo, revestido com tecidos simples e peles para que a
jovem viesse a dar a luz com um mínimo de conforto, como acontecia
com freqüência com as meninas-mães judias. A popular cena do
nascimento do menino Jesus em uma manjedoura apresenta traços
comuns ao deus oriental Mitra, enquanto a visita dos reis magos
constitui mais um artifício teológico que permite ter a realeza de Jesus
reconhecida por outros reis, partindo do princípio de que os pares se
reconhecem mutuamente, logo no início da vida do menino. A própria
cidade de Belém acaba sendo acrescida à história para concretização de
antigas profecias que atribuíam àquela cidade a honra de receber o
174
messias. Não podemos esquecer que Belém apresenta relação direta
com a casa real de Davi, de onde se esperava que o messias viesse.
Todo o processo gestacional foi plenamente coroado de êxito, de
forma que uma das melhores linhagens genéticas da casa de Israel era
morada do menino. Sua elevada hierarquia e condição moral logo
modificaram as características do corpo físico em formação, permitindo
que se desenvolvesse uma estrutura capaz de sustentar sua soberba
inteligência, ao mesmo tempo que lhe provia o vigor necessário para
um futuro pregador itinerante do século I. d. C. Para que a gestação em
Maria fosse o mais confortável e tranqüila possível, influências
magnéticas eram continuamente dedicadas aos pais e ao embrião em
desenvolvimento, posto que a diferença vibratória entre eles e o mundo
que os cercava era dramática. Deve-se ressaltar, também, que a
segurança da família já somava décadas quando o pequeno rebento
nasceu.
Essa condição espiritual também criava um problema adicional
para o grupo de espíritos sublimes que cuidavam da gestação de Maria.
Enquanto no plano físico terreno, as visitas de familiares à menina
grávida e seu marido eram uma característica comum às famílias judias
do Mediterrâneo, o assédio espiritual era severo e teve de ser contido. A
luz emanada da mãe e, quando próximo do parto, do próprio
Jesus: homem e espírito
175
reencarnante era tão significativa que muitos espíritos necessitados
costumavam acompanhar a bela família onde quer que fossem, como
aliás ocorreu com Jesus ao longo de toda a sua vida. Nesses casos, os
espíritos que cuidavam do processo de reencarne trabalhavam para
mantê-los a uma certa distância, embora não representassem risco
significativo. Muitos homens santos foram enviados ao mundo na
mesma época, como forma de reduzir as pressões vibratórias sobre o
menino em gestação, particularmente na Galiléia, que tinha fama de ser
terra de muitos judeus zelosos.
Por outro lado, muitas entidades das trevas e dos abismos logo
perceberam que algo estava ocorrendo, como a limitação da
movimentação de seus maiores líderes e falanges, desaparecimento de
legiões inteiras de espíritos trevosos que simplesmente não eram
localizados pelos seus comparsas, ao mesmo tempo que algumas
regiões do império Romano, como a Palestina, apresentavam uma
melhora nas condições sociais e relativa pacificação, em comparação
com a época de desorganização do reino dos macabeus e na guerra civil
romana. Não estamos dizendo que o nascimento de Jesus foi o que
motivou a melhora do panorama regional e global, mas
indubitavelmente teve uma influência significativa.
176
Assim, Jesus nasceu e viveu seus primeiros anos na pequena
Nazaré, uma das centenas de vilas na rota de comércio que ligava o
crescente fértil ao Egito, Jerusalém e Transjordânia. Os próprios
evangelhos proclamam a insignificância do povoado, como coloca o
Evangelho de João, quando Natanael diz “De Nazaré pode sair alguma
coisa boa?” (João, 1:45) referindo-se à origem de Jesus. Obviamente
em um local tão modesto, parcela significativa da população
apresentava variados graus de consangüinidade com Jesus, sendo que
seus primos e primas, muito numerosos, brincavam tranquilamente nos
quintais comunitários que existiam ao redor das residências simples,
hoje descobertas pela arqueologia e disponíveis para visitação pública.
Essa ligação do mestre com sua terra e povoado natal deixaria marcas
notáveis no Novo Testamento, traduzindo-se na grande quantidade de
parábolas e citações sobre camponeses e a vida rural.
Não podemos ignorar os vários pontos nos evangelhos nos quais
Jesus é citado como um galileu de Nazaré, para onde retorna de suas
andanças, mas alguns aspectos interessantes a respeito do nome
Nazareno merecem considerações rápidas. O nome hebraico dedicado
aos cristãos inicialmente era “notzrim” , o qual já era empregado para
designar um movimento surgido 150 anos antes de Jesus, dentro do
judaísmo, significando “aqueles que se mantém afastados”, mostrando a
Jesus: homem e espírito
177
natureza ascética desse movimento, nada relacionado com a cidade de
nascimento do mestre. A cidade de Nazaré era chamada, em hebraico,
de Natzrat, sendo seus moradores conhecidos como natzratii, sem
relação com nazareno.
Os presentes dos reis magos, que os textos canônicos dizem que
Jesus recebeu, não condizem com a realidade pobre de uma família de
artesãos na Galiléia e essa parte das Narrativas da Infância apresenta
caráter lendário. O reconhecimento da realeza, da importância do
menino, foi jogado pelos evangelistas para o próprio momento do seu
nascimento. Nesse sentido, lendas corriam nas décadas após a
crucificação sobre como teriam sido os primeiros dias de Jesus.
No plano espiritual pode-se dizer que a luz que dele emanava
era um bálsamo para amainar as dores de toda uma população sofrida,
que viam nele uma criança de rara beleza e com um tom ao mesmo
tempo terno e grave, que se manteve ao longo de sua existência terrena.
Contudo, à medida que ele crescia e desenvolvia sua capacidade de
interagir com o mundo ao redor, o belo sorriso que lhe estampava os
lábios sumiu. A fisionomia grave e o olhar distante passaram a
caracterizá-lo e o acompanharam até o calvário. Para aquele espírito
liberto de todas as dores da existência física, o que mais doía na alma
era a indiferença com a qual os seres humanos se relacionavam; a cruz
178
foi um presente de liberdade que lhe deram e, no fundo, todos nós
participamos disso.
Jesus teve muito amor de seus pais e seus colaboradores
espirituais, mas fora isso, sua vida material era bastante precária. A vida
simples, com dieta essencialmente vegetariana, em função do custo de
proteínas animais e da pouca tolerância que todos os membros da
família experimentavam em relação à carnes, era coroada com um
relacionamento apaixonado e próximo que todos comungavam, mesmo
quando os irmãos menores vieram.
Embora seja muito difícil determinar, com segurança, a data do
nascimento de Jesus, independentemente dos planos de vida em que
vivemos, podemos ter a certeza que a data de 25 de dezembro, festa do
solstício de inverno, foi incorporada pela igreja romana, que não
conseguia acabar com a festa pagã ao deus Mitra e suas características
pouco salutares. Naquela época, era um momento para se refestelar com
a fartura da colheita que terminara e ainda fazemos isso 2000 anos
depois, onde poucos se lembram do aniversariante simbólico.
Pela descrição bíblica e pelas informações espirituais
disponíveis na nossa esfera de atuação, Jesus teria nascido em março ou
abril do ano 6 a. C., quando os pastos já davam bom suporte aos
animais domésticos da família e dos demais habitantes do povoado.
Jesus: homem e espírito
179
E a ordem de mandar matar as crianças dada pelo rei Herodes, o
Grande? Embora a antiguidade esteja repleta de tiranos e sádicos de
todos os tipos, o rei fantoche estava mais preocupado com a sua
sucessão do que com crianças que viessem a reclamar seu trono 30 anos
depois. Ele não estaria vivo para ter esse desprazer e parecia pouco se
importar com a turba que ele mesmo trouxera do outro lado do véu, na
forma de filhos medíocres e obsessores sanguinários. A ordem de matar
as crianças é uma reminiscência histórica do fato de que Herodes, o
Grande, mandara matar parte de seus herdeiros, seus próprios filhos.
Vejam o ambiente que marcaria o nascimento de Jesus e sua primeira
infância.
Acreditamos que esse episódio narrado no evangelho possa ter
ocorrido de forma simbólica em planos paralelos, onde entidades
trevosas, cientes que o nascimento do santo menino representava uma
encruzilhada para a história do planeta e que eles logo não teriam mais
o domínio quase total exercido até então, passaram a assediar os
possíveis candidatos a messias, até que o Altíssimo mostrasse a todos
quem seria o enviado, o mensageiro prometido, e isso se deu somente
no batismo de Jesus. As perseguições aos pretensos “escolhidos” se
mantiveram por anos e, mesmo no presente, o nascimento de figuras
que são caras aos planos do Alto acabam suscitando perseguições de
180
toda monta, na tentativa de retardar o inevitável, que é a própria
evolução moral da humanidade.
E a estrela de Belém?
A tradição judaica aponta para a presença de uma estrela no
nascimento de Abraão, Isaac e Moisés. A explicação mais racional para
a existência da estrela de Belém, contudo, não parte da astronomia e
sim da análise do Antigo Testamento (Números 24:17), onde uma
profecia (a profecia da estrela, bastante em voga entre o judeus
messiânicos do séculos II a.C a II d. C.) colocava que da Palestina sairia
o governante do mundo, coisa que os cristãos logo identificaram com o
messias de Nazaré, pelo menos na sua parusia, e que o historiador judeu
Josefo, para escapar da morte, usou para convencer Vespasiano de seu
destino como futuro imperador romano, o que de fato ocorreu.
A importância dessa profecia da estrela era tamanha que o líder
da segunda revolta contra os romanos (132-135 d. C.), Simão bar
Kosiba, mudou seu nome para “bar Kochba”, significando “filho da
estrela”, assumindo deliberadamente sua natureza messiânica. Para
marcar o retorno da glória de um estado judeu soberano, ele cunhou
moedas em que uma estrela pode ser vista entre as colunas do Segundo
Templo, que os judeus esperavam reconstruir e isso pode ser visto
facilmente através de imagens na rede de computadores; tente, vale a
Jesus: homem e espírito
181
pena (http://en.wikipedia.org/wiki/Simon_bar_Kokhba). Nas
catacumbas de Roma e outras localidades de antigas comunidades
cristãs, os seguidores do mestre galileu pintavam uma estrela e um
homem ao seu lado, indicando o povo do Caminho, primeira designação
que os cristãos cunharam para si mesmos.
E os irmãos e irmãs de Jesus?
Aqui a fé, dogmas e a crítica se misturam de forma profunda e
por vezes produzem inflamadas discussões na facetas mais literalistas
das agremiações cristãs.
Hegesipo, no século II d. C., descreveu os círculos familiares de
Jesus, incluindo irmãos, irmãs, tios, primos, mencionando-os.
Entretanto, como ele acreditava no nascimento virginal de Jesus,
atribuía a esses irmãos a condição de "filhos de José" e não de Maria,
fruto de um casamento anterior. Na igreja ocidental, esses irmãos de
Jesus foram confundidos, erroneamente, com primos, filhos de um
casamento entre um personagem chamado Cleofas e outra Maria,
posição que não tem o menor amparo.
Entretanto, o evangelho de Mateus (13:55-56), deixa claro que
os irmãos de Jesus são de fato legítimos, ainda mais pela distinção que
o evangelista faz entre José e Maria no texto. Esse texto bíblico deixa
claro o que já dissemos: Jesus estava inserido em um sólido grupo
182
familiar com fortes laços de sangue e profundamente religioso. Essa
interpretação é reforçada pelos demais textos canônicos, cabendo a
Paulo mencionar a proeminência de um dos irmãos de Jesus, Tiago, na
igreja primitiva, onde seria o mentor do grupo, ou aquele que
equilibrava as tensões naturais de uma entidade dessa natureza.
Contudo, aqueles que atribuíam a Pedro a liderança da igreja não
podiam aceitar que o próprio Jesus teria deixado esse irmão em posição
de destaque na igreja, como o próprio Atos dos Apóstolos parece
confirmar a contragosto; seria melhor eliminar, dos textos, a família do
Cristo e isso foi feito.
A idéia de que Jesus possuía irmãos e irmãs de sangue era
amplamente disseminada nos primeiros momentos da igreja cristã e
somente foi perdendo força em consequência da veemência com a
igreja romana, tão distante da Palestina em todos os sentidos, defendia a
da virgindade perpétua de Maria, que foi se impondo e desalojando o
que havia de mais semítico e genuinamente galileu no relacionamento
da nova fé com Deus. Lembre-se que gerar filhos era uma das maiores
obrigações do judeu.
Dentre esses primeiros defensores da teoria segundo a qual Jesus
teria tido irmãos verdadeiros está Hegesipo, que, ao descrever o
martírio de Tiago, o irmão do Senhor, em 62d. C, cita a existência de
Jesus: homem e espírito
183
parentes do mestre, citando a existência de Judas, “o irmão do
Salvador” segundo a carne. Irineu (130-200 d. C.) e Tertuliano (160-
220 d. C) consideravam os irmãos de Jesus como verdadeiros e esta
posição tem muita relevância uma vez que este último valorizava
ardentemente a virgindade.
Os irmãos de Jesus, Tiago, Judas, Simão e José, e irmãs, Maria e
Salomé, traziam elevados créditos espirituais, merecendo numerosas e
profundos elogios do mestre galileu, principalmente Tiago, que o
sucedeu na liderança da igreja nascente. Entretanto, estavam longe da
condição angelical de seus pais e do seu irmão, tendo que arrastar seus
dramas pessoais ao longo da vida que gozaram na Terra. Dentre os
irmãos citados na Bíblia, Judas teria sido martirizado poucos anos após
a crucificação de Jesus, mas seus netos, Zacarias e Tiago, estariam
vivos no começo do segundo século da era cristã, o mesmo ocorrendo
com muitos outros sobrinhos e sobrinhos netos de Jesus, cujos nomes se
perderam no tempo. Tiago, seu irmão mais próximo e querido, teria
sido morto, por apedrejamento, pela ação do Sumo Sacerdote em 62 d.
C. e Josefo considera que esse personagem era dotado de grande
carisma e afeto do povo, mesmo entre os fariseus, que acabaram por
depor o líder judeu que havia determinado a morte do irmão de Jesus,
algo que não seria inimaginável se esses fariseus não admirassem a
184
postura de alguns dos líderes judeu-cristãos (ver discussão sobre
fariseus na primeira parte do texto, abordando o mundo de Jesus).
Para Tiago, a figura do irmão mais velho sempre marcou seus
pensamentos e, dentro de suas limitações, procurou seguir o messias
judeu da melhor maneira. Sua influência na igreja primitiva, nas
décadas seguintes à morte de Jesus, era muito superior à de Pedro e os
outros apóstolos. Tiago era visto como o braço direito do irmão e sua
imagem no Novo Testamento é deturpada pelos interesses pessoais que
cada apóstolo e evangelista possuía, como donos da verdade cristã.
Porém, Paulo, o mais brilhante de todos os que envergaram o título de
homem apostólico, o chamava de “irmão do Senhor” e passa a depender
muito da colaboração de Tiago para não ser excluído da igreja
primitiva, recebendo desse último a autorização de pregar para os não
judeus. Se dependesse dos demais apóstolos, Paulo deveria se calar e
não proferir as blasfêmias que a ele eram imputadas, destacando-se a
salvação pela fé (embora Paulo também tenha dito que a fé sem
caridade é uma fé sem coerência e valor), a possibilidade de ser cristão
sem ser judeu, o dividir o pão com pagãos e a falta de respeito às leis
alimentares e à circuncisão.
No século I. d. C. os membros da igreja nascente foram alvo de
diversos e sistemáticos ataques de entidades trevosas. Da mesma forma
Jesus: homem e espírito
185
que, simbolicamente, Jesus teria sido tentado por forças dessa natureza,
mas mostrado o valor da retidão e amor ao próximo, muitos dos
apóstolos e discípulos, mesmos os mais próximos, acabaram falhando
em função de influências menos nobres, oriundas deles mesmos e de
forças que os assediavam. Esses nossos irmãos que tiveram a honra de
conhecer e conviver com o messias, muitas vezes se deixaram levar
pela cólera e ira, abrindo portas que deveriam ser fechadas, de onde as
influências pouco salutares de seus desafetos se fazia sentir.
Ao tentar defender a figura de Jesus crucificado contra
insinuações desagradáveis, como a ilegitimidade do mestre e o fato dele
ser filho de um modesto trabalhador braçal, por vezes foram contra a
verdade que conheciam e acabaram por criar uma imagem que se
aproximava dos semi-deuses e deuses daqueles povos que zombavam
do nazareno. A inveja da postura justa e centrada de Tiago, Pedro e
João, bem como o papel central que toda a família do mestre exercia na
nova fé, nos anos que se seguiram à cruz, fez com que o espírito da
inveja atrapalhasse alguns dos muitos evangelistas que se dedicaram ao
trabalho nos textos que viriam a fazer parte do cânone e em muitos
outros documentos apócrifos.
Contudo, não se pode esquecer que o Espírito de Verdade, que
em sua última encarnação recebeu o nome de João, o Batista, e sua
186
falange de trabalhadores incansáveis se mantiveram atentos para evitar
que modificações maiores fossem introduzidas nos versículos
evangélicos que tratavam da mensagem de Jesus. Os evangelhos foram
redigidos inicialmente, sob forte inspiração espiritual, psicográfica, e
adquiriram camadas adicionais que acabaram por mesclar e deturpar
pontos periféricos do texto, mas a mensagem central foi preservada,
como era o desejo dos irmãos superiores que planejaram sua
compilação.
Nas décadas que se seguiram à morte de Jesus, seus familiares
foram os principais responsáveis pela manutenção da mensagem viva da
caridade cristã, que pode ser observada em toda a sua profundidade na
Carta de Tiago, a qual esclarece a importância de “receber segundo
suas obras” e não apenas a salvação espiritual pela fé, a qual sem
caridade seria falha e incompleta. Esse texto, embora não tendo sido
escrito por Tiago, em função do grego fluente e elegante, não
condizente com um rude trabalhador galileu, traduz algumas das
principais posições dos familiares de Jesus e dos seus apóstolos mais
próximos, que eram e continuaram sendo judeus. Entretanto, o papel
redentor de Jesus somente foi realmente compreendido pelos seus
familiares e demais seguidores após as materializações do seu espírito,
nas semanas que se passaram após a crucificação, quando ficou claro
Jesus: homem e espírito
187
que o corpo físico do mestre não era mais que uma simples roupagem
que fora utilizada no curto período em que o mesmo esteve entre nós. A
transformação maior em seus parentes próximos teve aí seu epicentro,
embora Tiago, seu irmão, já o acompanhasse nas jornadas desde cedo.
Muitos se perguntam porque José praticamente não é mais
citado no Novo Testamento, salvo alusões aos membros da família de
Jesus, mas isso está ligado ao fato de ter desencanado muito cedo, na
casa dos 40-50 anos, quando Jesus adolescente assumiu o papel central
na casa. Na adolescência de Jesus, tendo José ensinado sua profissão e
seu rígido código de conduta moral, seu desencarne representou uma
maior liberdade para que seu filho mais velho viesse a assumir o papel
que lhe cabia, bem como permitiu a o amadurecimento das
características mais pungentes de Jesus. José havia cumprido sua
missão de criar as condições familiares e materiais para receber o
homem que transmitiria a palavra de Deus como ninguém o fizera até
então.
Caros amigos, Jesus era um espírito pronto, em profunda
comunhão com os planos mais altos, de onde nunca deixou de estar e
comandar, mesmo estando encarnado. Sua grandeza espiritual era tanta
que em sua presença a fome desaparecia e as pessoas sentiam uma
alegria salutar, inesquecível. Ele, como a própria igreja latina propôs,
188
limitava o seu próprio conhecimento das coisas e mistérios de Deus
para poder conviver entre nós. Jesus não foi ao Tibet, não viajou para a
Cachemira e tampouco ficou anos na Índia; ele trabalhava para ganhar o
sustento de um grupo de irmãos menores e colaborar no amparo de
tantos quantos lhe batiam à porta em busca do que comer. Ele não se
utilizou dos seus muitos dons mediúnicos até que o momento se fez
adequado e, acima de tudo, aceitava tranquilamente as muitas
limitações que o seu corpo físico lhe impunha.
Isso explica os chamados “anos ausentes” do mestre, que se
deram em função do jovem trabalhar no ofício aprendido do seu pai
terreno, no sustento de uma família extensa, na qual, como filho mais
velho, tinha uma responsabilidade adicional. Tal postura do mestre
ajuda a entendermos os motivos que levavam sua família a questionar o
papel que, cada vez mais, ele se sentia depositário e que,
indubitavelmente, todos sabiam que o levaria a ter problemas com as
autoridades de Jerusalém e de Roma.
A visão do amado filho na cruz nunca saiu da mente de Maria e
isso foi motivo de muitas conversas entre eles, mãe e filho. Embora
tardio, o Evangelho de Judas reforça a idéia de que o próprio Jesus teria
conhecimento e planejado o seu desenlace. Não se esqueçam que a
postura de Jesus diante de Pilatos evidencia que o mestre reconhecia o
Jesus: homem e espírito
189
poder desse último, que era permitido pelo Pai, para que se cumprisse
as antigas escrituras e para mostrar às gerações futuras que um exemplo
vale mais que mil discursos de paz. O poder de Pilatos era exercido
daquela forma unicamente por que assim Deus o desejava; Deus é
infinitamente bom e sábio e nos permite exemplos como esse.
3.2 Jesus era de ascendência real ?
Esse é um tema polêmico que muitos pensadores cheios do
iluminismo científico tentaram resolver nos últimos 200 anos.
A tendência geral era considerar que Jesus precisava de uma
ascendência real para cumprir as profecias messiânicas sobre a origem
real do Salvador de Israel e pela a devoção que lhe era atribuída pelos
primeiros cristãos, de forma que essa particularidade teria sido resolvida
pelos evangelistas rapidamente. Algumas linhas e citações e tudo estava
como deveria ficar, mas esse não parece ter sido o que ocorreu.
Será que os contemporâneos de Jesus e seus discípulos o viam
como descendente da casa real de Davi, mesmo naqueles momentos
menos tensos em que o mundo do dia a dia emerge da tradição? A
genealogia de Jesus, como nos trazem os textos de Mateus e Lucas,
merece algum crédito?
190
Como mencionado anteriormente, o corpo físico de Jesus
sempre foi uma preocupação do grupo de espíritos angelicais, que
estavam incumbidos de criar as condições necessárias para o trabalho
edificante do mestre galileu. Ao mesmo tempo que o organismo teria de
suportar grandes pressões do ambiente, teria de fornecer os requisitos
somáticos que dessem suporte para a vibrante vontade e a incomparável
inteligência do espírito de Jesus. Há séculos essa seleção vinha
ocorrendo e era claro, entre os encarregados do processo reencarnatório,
que a Casa de Davi decididamente reunia as características de liderança
e capacidade intelectual que seriam extremamente necessárias para
receber o espírito sublime do mestre de Nazaré. Não se pode deixar de
frisar que nenhum corpo humano podia corresponder ao que Jesus fazia
jus, em condições naturais, daí a sensação que ele se diminuía para estar
entre nós. De fato, o que Jesus aparentava em termos de capacidade
intelectual ou mediúnica representa 1% do potencial que ele mesmo
sabia possuir e nenhum corpo físico da nossa espécie (Homo sapiens)
seria capaz de corresponder ao ele possuía em espírito. Assim, a
divinização de Jesus decorre dessa enorme diferença entre ele e os
demais humanos que com ele entrariam em contato.
Embora o corpo físico não seja a sede imortal da inteligência do
espírito, ele representa o instrumento de manifestação dessa última e
Jesus: homem e espírito
191
Jesus recebeu o que havia de mais adequado entre as diferentes
linhagens da casa de Israel. Não podemos deixar de frisar que as
condições especiais que brotavam nas células físicas, que se adaptavam
às formas e funções de suas equivalentes espirituais no reencarne quase
automático, sem a colaboração mais profunda de equipes especializadas
no processo, eram um reflexo pálido do que o mestre galileu trazia em
seu cerne.
Para justificar o que dizemos, quanto ao enorme potencial do
Cristo Terreno, antes do reencarne, chamamos a atenção para o fato de
que o poder mental de Jesus havia atuado com plenitude durante a
criação do orbe terrestre, como descrito por Emmanuel, em livro
intitulado "A Caminho da Luz", psicografado por Francisco Candido
Xavier. Esse fenômeno ocorrera 4,6 bilhões de anos antes de seu
reencarne no planeta, mostrando que a entidade a quem denominamos
de "Jesus, o nazareno", pode ter se originado e evoluído até a perfeição
que lhe é reconhecida antes da existência do próprio universo atual,
como o conhecemos, o que necessitaria de muitos estudos adicionais e
isso foge completamente das intenções desse modesto ensaio.
Colocamos essa questão posto que muitas são as evidências
científicas que mostram que nosso universo teve início em algum
momento do passado há 13,7 bilhões de anos, mas esse começo
192
representa apenas uma etapa indispensável no nosso campo de eventos,
como que se estivéssemos presos em um buraco negro, onde toda uma
infinidade de eventos ocorreria do lado de fora e nada nos fosse dado a
conhecer. Cabe ressaltar que esse universo físico também nos veta o
conhecimento do período anterior ao “Big Bang”, ou grande explosão,
de forma que apenas conjecturas podem ser feitas. Assim, muitos
universos separados por distâncias absolutamente indescritíveis ou
situados em dimensões paralelas podem existir, tendo se originado
mesmo antes do nosso cosmo e, como depreendemos de toda a
literatura espiritual que temos contato, podemos divisar a ocorrência de
verdadeiras migrações planetárias e, possivelmente, entre universos
paralelos, governados por leis que sequer podemos imaginar.
Pela natureza excelsa de nosso mestre Jesus, sua evolução
espiritual, desde as formas mais simples até a condição em que se fez
presente na Terra, demandaria bilhões de anos e possivelmente teria se
processado antes que a estrutura de nosso próprio universo tivesse
adquirido as configurações atuais. Em função desse ponto de vista, a
questão da existência ou não de uma genealogia nobre para Jesus perde
completamente a importância inicial, mas não nos furtemos ao
questionamento: ele realmente tinha em Davi um ancestral distante, da
época em que os judeus das montanhas e planaltos da Palestina eram
Jesus: homem e espírito
193
grupos semi-nômades que mantinham pouca coesão nacional. Muito
diferente do quadro de um grande reino governado por um rei poderoso
e sábio, características que passaram à Bíblia com a intenção de exaltar
a força dos antigos reis e reinos do povo de Israel em uma época em que
os judeus eram servos de povos muito mais fortes.
Os evangelistas não sabiam o que fazer com as características
especiais de Jesus e, para ressaltar sua nobreza, criaram genealogias,
como descritas por Lucas e Mateus, que apresentam discrepâncias
insuperáveis e irreconciliáveis. Alguns atribuem o enfoque de Mateus,
na genealogia de Jesus, à sua árvores genética paterna, embora a
paternidade de Jesus nesse evangelho deva ser creditada, como em
Lucas também, ao Espírito Santo, enquanto Lucas teria enfocado a
genealogia através de Maria, mas não existe qualquer elemento que nos
permita concordar com essa hipótese, tratando-se de uma afirmação
gratuita, ainda mais em uma sociedade que retirava da mulher quase
todos os seus direitos, existindo relatos de rabinos que preferiam jogar
os livros da lei aos animais do que ensiná-los a elas. Esse era o mundo
de Jesus.
Em momento algum o Novo Testamento discute a genealogia de
Maria ou tampouco, sua linhagem. A única observação direta sobre esse
tópico se dá quando Maria vai visitar sua prima Isabel, que era
194
considerada como “filha de Aarão”, que pertencia à linhagem
sacerdotal. Essa ascendência não pode ser considerada muito confiável
e, para não ficarmos apenas no campo nebuloso das conjecturas, melhor
dizer que pouco ou nada sabemos sobre a linhagem de Maria. Talvez o
único objetivo de entrecruzar as vidas de Maria e Isabel, mãe de João
Batista, seria para inter-relacionar João e Jesus, filho de Maria, ou como
uma forma de atribuir alguma linhagem levítica, sacerdotal, ao messias
galileu, Jesus.
Os judeus da Antigüidade davam grande relevância à sua
própria ascendência, sendo que famílias sacerdotais apresentavam suas
genealogia, por vezes muito bem conservadas, em arquivos públicos,
para evitar que seus membros viessem a se misturar com estirpes “não
tão nobres”.
A genealogia de Jesus, atribuída a Mateus, apresenta apelos
teológicos mais evidentes do que a apresentada por Lucas, segundo
Meier, a qual seria mais confiável. Mesmo essa última evidencia
problemas, como a presença dos nomes José, Judá e Simeão, que não
eram usados antes do exílio judaico na Babilônia. Segundo Júlio, o
Africano, no século III d.C., essas genealogias foram confeccionadas
com informações colhidas no seio da família de José. Ainda segundo
esse autor cristão, Herodes destruiu os arquivos genealógicos das
Jesus: homem e espírito
195
famílias mais prestigiosas, provavelmente para apagar os registros
daqueles que já haviam possuído o poder político e religioso.
A família de José teria reconstruído alguns elementos dessa
genealogia a partir do conhecimento oral que possuíam, mas esses
elementos parecem apenas evidenciar que os cristãos primitivos tinham
problemas para justificar a genealogia do seu Cristo, sendo muitíssimo
pouco provável que a família de Jesus, um filho de “carpinteiro”, tenha
possuído, de fato, uma breve sinopse escrita de sua genealogia em
algum lugar. Lembrem-se que, na época, apenas 10% da população de
Atenas, a cidade mais cosmopolita e educada do mundo, tinham alguns
rudimentos de leitura.
A existência de uma linhagem davídica para Jesus está
totalmente ausente do Quarto Evangelho, que aliás coloca o local de
nascimento de Jesus como sendo a Galiléia e não Belém, a cidade do rei
Davi. Os adeptos do texto de João eram frontalmente anti-judeus e
procuravam, sempre que podiam, eliminar qualquer ligação entre Jesus
e seu povo, não interessando a eles qualquer menção a uma casa real de
Israel. Para eles bastava, como Jesus mesmo havia dito, saber que o
“reino do mestre não era desse mundo”.
Para esses irmãos nossos, da comunidade que redigiu o Quarto
Evangelho, Jesus era rei pela sua ascensão moral e pelo seu
196
relacionamento com o Pai celestial e não por qualquer direito a trono
terreno. Nesse aspecto, embora Jesus enfaticamente não reconhecesse
qualquer relação com os reinos "desse mundo", não se pode deixar de
dizer que muitos dos seus seguidores achavam que o homem humilde,
mas de infinita bondade e justiça, iria restabelecer o poder da casa de
Davi, dentre eles Judas Iscariotes, ou de Kerioth, cidade da Judéia. Em
suma, o povo acreditava que entre seus ancestrais estava o rei Davi e até
o apóstolo Paulo, ou, mais provavelmente, um de seus seguidores mais
próximos, cita esse fato em 2Timóteo 2:8 (“Jesus Cristo, ressuscitado
de entre os mortos, descendente de Davi, segundo o meu evangelho").
Alguns grupos judeus não esperavam um único messias, mas
dois. O trabalho messiânico seria dividido por dois personagens
diferentes, como já citado, o Messias da Casa de Davi, que deveria criar
condições políticas para que o reino de Israel fosse restabelecido em
toda sua plenitude e conforme os mandamentos divinos, e o Messias da
Casa de Levi, ou Sacerdotal, que faria imperar entre os judeus um
estado teocrático. Embora Jesus não pertencesse à condição sacerdotal,
muitos o consideravam um rabi e Paulo atribuía o caráter sacerdotal a
Jesus como conseqüência da ressurreição.
A ascendência real do mestre pode ser inferida em múltiplos
fragmentos dos evangelhos sinópticos (Marcos 10:47; 12:35-37; Mateus
Jesus: homem e espírito
197
9:27; 12:23; 15:22; 20:30; 21:9; 21:15; 22:42-45; Lucas 3:31, 18:38-39;
20:41-44) e mesmo nos Atos dos Apóstolos (2:25-31, 13:22-23) e na
Epístola aos Hebreus (7:14). A despeito das inúmeras inserções e
adulterações que o Novo Testamento sofreu para se adaptar aos desejos
de religiosos e soberanos, pode-se dizer que pelo menos parte desse
material era proveniente de tradições muito antigas e que,
assumidamente, tratavam de um Jesus terreno com ancestrais reais,
vindos de Davi.
Por outro lado, se a natureza davídica de Jesus ajudou na
consolidação de sua imagem como messias, por outro contribuiu
decididamente para sua crucificação, uma vez que os romanos nunca
aceitariam a existência de qualquer um que fosse considerado rei,
mesmo de reino que não fosse desse mundo. A proclamação da natureza
real de Jesus parece cumprir a promessa divina a Davi, em 2Samuel
7:12-14 (“Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais,
então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de
ti, e estabelecerei o teu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e
eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai,
e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de
homens e com açoites de filhos de homens”).
198
Não se deve pensar, porém, que a ascendência real seja
simplesmente uma criação da igreja primitiva, visto que essa idéia
poderia ser rapidamente contestada por todos os que conheceram Jesus,
particularmente os judeus, e ainda estavam vivos quando as cartas de
Paulo foram redigidas. Se não o fizeram era porque essa ascendência
era considerada verdadeira por muitos, se não por todos.
Em meados do século I d. C., a família de Jesus acreditava, de
boa fé, descender do rei Davi e esse fato não parecia provocar
incredulidade na população palestina. De outros planos da vida no orbe,
sabemos que estavam certos; Jesus era descendente da casa de Davi.
Jesus: homem e espírito
199
4 O relacionamento de Jesus com seus
familiares
“...Levanta-te, e vai para o sul, em direção do caminho ... Filipe levantou-se
e partiu...”
(Atos dos Apóstolos 8, 26-27)
200
4.1 Como era o relacionamento de Jesus com sua família
terrena ?
Como citado anteriormente, poucos os que viam Jesus, na
infância pobre e sofrida, na região rural da Galiléia, podiam imaginar
que o mesmo seria futuramente reconhecido como messias ou o
escolhido de Deus.
Aquela região era famosa pelos seus homens santos e
pregadores itinerantes, como Honi e Hanina ben Dosa, mas poucos
poderiam supor que o jovem filho do carpinteiro teria um destino tão
impar. Sabemos que o próprio Jesus evitava falar de si mesmo e as
longas descrições do mestre atribuindo a si mesmo importantes papéis
na estruturação dos planos de Deus são adições tardias redigidas por
evangelistas que pretendiam realçar o papel singular de Jesus para os
não judeus, no final do século I d. C. e meados do século II d. C. e esses
discursos estão confinados principalmente no texto de João.
Para entender melhor o messias Galileu, no tocante à sua
mensagem, devemos dar prioridade ao Evangelho de Marcos, onde o
pregador que seduzia as multidões evitava falar de si e, quando
questionado sobre o seu papel na arquitetura divina para o mundo,
simplesmente dava uma resposta cuja interpretação dependia mais de
Jesus: homem e espírito
201
quem escutava do que das palavras proferidas. Por esse motivo existem
tantas interpretações sobre suas falas e feitos.
Os evangelhos nos levam a crer que a família de Jesus duvidava
da sua missão junto aos seres humanos e possivelmente teria
perguntado “Quem ele pensa que é?. Curando, fazendo milagres,
pregando. Um profeta? O messias?”
Possivelmente nem mesmo a família do mestre sabia a resposta
exata para essa pergunta, porque Jesus era relutante em assumir uma
posição frente a essa questão. Nesse caso, se eles não percebiam
naturalmente o papel do Cristo, por que ele deveria lhes confidenciar
isso? Com exceção do Quarto Evangelho, no qual Jesus fala muito de si
mesmo e vai adquirindo uma posição cada vez mais divina, nenhum
texto deixa claro o papel que Jesus desempenhava na comunidade
judaica na qual ele se inseria, grupo que se autodenominava de “o
Caminho”. Esse papel vai amadurecendo e ganhando os contornos de
um messias sapiencial e médium de grande expressão; um canal para
Deus, por vezes erroneamente interpretado.
Outro ponto de discórdia entre o mestre galileu e seus familiares
diz respeito ao momento mais adequado para que o mesmo viesse a
iniciar seu ministério e havia discordância também entre o papel que a
família de Jesus esperava que ele desempenhasse e o que ele esperava
202
executar. Entretanto, parece que após a crucificação, a própria família
de Jesus passou a organizar e supervisionar as regras que regiam “o
Caminho”, as quais se mostraram muito mais conservadoras do que
haviam sido durante o ministério público de Jesus, pelo menos quanto
ao papel exercido pelas mulheres dentro da comunidade, que acabaram
por perder gradualmente a importância que sempre tiveram enquanto o
mestre esteve entre nós.
Através das informações que nos chegam do plano espiritual,
através de psicografia e psicofonia, e pela literatura espírita disponível,
Maria havia sido escolhida como mãe pelo seu perfil amoroso e, ao
mesmo tempo, libertário, não procurando manter seus filhos junto de si
contra a vontade deles. Contudo, muitas foram as dores e angustias que,
misturadas com as notícias de milagres e feitos do filho mais velho,
faziam com que ela acreditasse em um final dramático para seu
ministério terreno, tendo conversado diversas vezes com Jesus sobre
esse ponto. Nessa mesma linha, os demais irmãos de Jesus viam como
um suicídio toda a agitação popular que se formava ao seu redor,
principalmente durante as visitas às cidades ao redor do Mar da Galiléia
e, por fim, na Páscoa fatídica.
Fora os receios familiares em relação ao futuro do pregador,
havia harmonia e simpatia no ambiente familiar, principalmente entre
Jesus: homem e espírito
203
Jesus e seu irmão Tiago, verdadeiro depositário de todas as credenciais
missionárias após a crucificação. Essa afinidade deu origem a inveja e
vaidade da parte daqueles que seguiam Jesus e muitas considerações
elogiosas do mestre galileu a seus familiares foram apagadas das
mentes humanas, o que seria seguido pela paulatina eliminação de seus
familiares dos próprios textos canônicos. Assim, a separação entre Jesus
e sua família era mais aparente do que real e os evangelhos não devem
ser tomados de forma “literalista”, uma vez que, propositalmente,
muitos familiares de Jesus foram colocados para escanteio, refletindo a
disputa de influência e relevância entre os apóstolos do mestre e a igreja
mãe, em Jerusalém.
As fantasiosas desavenças entre Jesus e seus parentes próximos
era uma forma de reduzir e ofuscar o papel que a família do galileu
exercia na direção da igreja Enquanto os textos canônicos traçam uma
relação tempestuosa entre o mestre e seus familiares, onde seus irmãos
não o compreendem, as tradições das primeiras igrejas evidenciam um
relacionamento muito diferente, onde Tiago, seu irmão, seria o
comandante da Igreja-Mãe de Jerusalém até 62 d. C., quando foi morto
por ordem de um Sumo Sacerdote; Judas seu outro irmão teria sido
martirizado durante um missão da igreja, por volta de 35 d. C., de 2 a 5
anos após a crucificação de Jesus.
204
Após a morte de Tiago, Simão, seu único irmão vivo, seguiu à
frente da igreja de Jerusalém até 97 d. C., quando também foi
crucificado. O filho e neto de Judas, irmão de Jesus, seguiram à frente
da igreja palestina por algum tempo, até meados do século II d. C. Do
ponto de vista espiritual, nenhum dos familiares de Jesus havia atingido
a elevação do divino mestre e embora houvesse alguma incompreensão
em relação a ele, Jesus era visto como a personificação da justiça e da
bondade divina, sendo sua a última palavra sobre quase tudo, após a
morte de José.
No cinema e na televisão, Jesus é sempre retratado como um
nórdico de feições delicadas e compleição física de um intelectual, mas
isso não condiz com a realidade. Como um judeu da região norte da
Palestina, sob forte influência de numerosos exércitos invasores da Ásia
Menor (atual Turquia) e da Europa, nos séculos que se foram, o jovem
Jesus aparentava os traços típicos das diferentes correntes migratórias
que influíram na formação daquele povo. Seus olhos claros eram
motivo de observações mais detidas da parte dos que o seguiam, mas
seu inimaginável magnetismo pessoal, reforçado pela postura e
compleição física, faziam-no uma pessoa que despertava facilmente a
atenção. Seus traços faciais semitas se misturavam com a compleição
física mais avantajada para a época e os traços mais europeizados, no
Jesus: homem e espírito
205
que tange aos olhos e a cor da pele, de um bronzeado adquirido no
trabalho incessante e árduo.
Era comum que, a um olhar do mestre, as pessoas desviassem os
olhos para esconder a própria culpa ou seus segredos mais íntimos; era
impossível não ser tocado pelo magnetismo do seu olhar ou pela
profundidade de suas palavras. Sua fisionomia era quase sempre grave,
mas não depressiva e dele sempre surgiam palavras de conforto. O amor
ao Pai a aos seus irmãos terrenos se manifestava pelo interesse que
sentia pela dor de seus pares e, quando percebia uma mudança íntima
entre os seus, respondia com um leve sorriso de satisfação. Era um dos
raros momentos de descontração. Nesse aspecto, nenhum de seus
irmãos possuía o carisma do primogênito de Maria e não aceitavam
comparações com Jesus, não por vaidade, mas por considerarem-no
ímpar, como evidenciado na Carta de Tiago, presente na Bíblia cristã
ocidental.
Mesmo após a morte física de todos os seus irmãos, segundo a
carne, histórias continuavam sendo contadas pelos seus sobrinhos e
sobrinhas nas décadas seguintes. Em meados do século II d. C., esses
personagens já estavam em franco processo de esquecimento, posto que
a nova fé estava se transformando em um misto de judaísmo renovado e
paganismo greco-romano. A renovação protestante iria nos libertar de
206
parte dos acréscimos doutrinários perniciosos à verdade, mas foi apenas
com o advento do espiritismo que o cristianismo pôde respirar novos
ares e recuperar um pouco da liberdade que lhe havia sido subtraída.
4.2 Jesus era solteiro ou teria tido uma família ?
Por favor, não queremos falar mais de teorias de conspiração
nem de livros de ficção (ou de atrição religiosa), como o “Código Da
Vinci”, mas essa é uma questão real. Jesus era solteiro ou algo de
concreto sugere outra possibilidade ?
Pode parecer herético falar em um Jesus casado e com filhos,
mas pouco sabemos sobre sua vida pessoal, pelos textos do Novo
Testamento. Essa ausência de dados e as tentativas de eliminar tudo que
de humano havia em Jesus, acabou dando munição para teorias
conspiratórias e ficções bem estruturadas, como o livro citado acima.
Essa questão torna-se mais relevante quando lembramos que os judeus
valorizavam profundamente o matrimônio de seus líderes e mestres. Ter
filhos era visto como um dever e não um direito das mulheres e homens
pios.
A lei judaica recomendava que os homens e mulheres deveriam
constituir famílias e ter filhos, fato que três dos irmãos e as duas irmãs
de Jesus aceitaram. Como primogênito, o messias galileu era cobrado e,
Jesus: homem e espírito
207
de forma categórica, deixava claro que não havia tempo para esses
momentos familiares, posto que sabia que a jornada que o esperava
conduziria diretamente a um condição da qual não poderia voltar,
eliminando a possibilidade de ter uma família. Foi nessa área em que se
deram as poucas discussões entre Jesus e seus familiares, que adotaram
posições opostas sobre o tema “família”. Essas posições, entretanto,
foram apagadas com a crucificação e as materializações do seu espírito
na presença de dezenas de pessoas.
O próprio Moisés era casado e essa condição não era vista como
um fator limitante para o exercício de sua vida religiosa, o mesmo
sendo válido para o apóstolo Pedro. Devido a essas lacunas é que livros
de ficção, como o “Código Da Vinci”, acabam vendendo milhões de
exemplares e enchem (de fato) o imaginário popular (isso sem falar na
nossa paciência) com suas teorias conspiratórias. Nos textos hebraicos e
aramaicos, o casamento era visto como uma benção do Deus criador, de
forma que um rabino celibatário seria impensável para a maioria. Para
alguns rabinos, como Eleazar (Lázaro) ben Hircano (século I d. C), a
negação à obrigação de ter um filho, para um judeu, era comparável a
um assassinato.
Entretanto, Jesus não foi casado e tampouco teve tempo de
pensar em uma companheira. Sua vida, desde a mais tenra idade, fora
208
tomada pelas preocupações relativas ao seu povo e á humanidade em
geral, onde tanta dor e desconforto espiritual e físico reinavam. Além
desses aspectos, os textos do Novo Testamento não se calam sobre os
vínculos familiares de Jesus, descrevendo-os com freqüência, de forma
que o silêncio dos mesmos a respeito do seu estado civil indica
claramente que ele não tinha uma esposa ou filhos, sendo que esses
mesmos textos são pródigos em relatar a presença de muitas mulheres
ao seu redor, sendo que Jesus chegou a admitir algumas em seu círculo
mais íntimo de seguidores, como Maria de Magdala e as irmãs de
Lázaro, o que as igrejas literalistas não aceitam com facilidade. Como
os próprios apóstolos possuíam filhos e esposas e isso não trazia
nenhuma vergonha ou constrangimento aos evangelistas, o silêncio
sobre esse aspecto da vida de Jesus confirma que não havia nada para
ser relatado sobre esposa e filhos de Jesus.
Muitos grupos religiosos da época de Jesus advogavam o
celibato como forma de não trazer mais ninguém para a prisão do corpo
físico ou para consagrar o próprio corpo a Deus, destacando-se entre
eles os “terapeutas” do Egito, semelhantes aos essênios do deserto da
Judéia e da maioria das grandes cidades da Palestina. Embora esses
grupos possuíssem celibatários em seus quadros, o sexo com a
finalidade da reprodução era aceito e tido como divino.
Jesus: homem e espírito
209
Josefo e Fílon, ambos judeus, e Plínio descrevem os essênios
como uma comunidade sectária de judeus vivendo uma vida
predominantemente celibatária, dedicada à oração e adoração do Deus
único. Segundo Plínio, os essênios eram um grupo dentro do judaísmo
que renunciara a todo prazer sexual e procriação. De fato, vários
documentos entre os “manuscritos do Mar Morto” consideram que o
pecado constitui uma verdadeira prisão e isto estava associado ao corpo
físico, que atuaria limitando o homem e dificultando o estabelecimento
de toda sua plenitude, de forma que não ter filhos antes que o
julgamento de Deus fosse realizado seria uma maneira de não aprisionar
mais ninguém na carne. Contudo, a autoria desses textos sectários não
pode ser atribuída aos essênios com segurança, como discutido
previamente.
O cânone ainda apresenta uns poucos exemplos de celibatários,
como o profeta Jeremias, que encarava o próprio celibato como um
trágico estigma pessoal. João, o Batista, era celibatário e isso é
particularmente relevante desde que ele foi contemporâneo de Jesus e
seu mestre dos primeiros caminhos, influenciando sua visão messiânica
(em realidade, João era um enviado do Alto e não apenas um precursor
do Cristo). Embora nenhum texto do Novo Testamento evidencie essa
condição do Batista, seu estilo de vida itinerante, no vale do Jordão e no
210
deserto, comendo o que encontrava na natureza, seria incompatível com
a existência de uma família. Lucas (1:80; 3:2) mostra que João teria se
recusado a seguir a tradição familiar de seu pai como sacerdote levita e
teria se esquivado de perpetuar a linhagem sacerdotal através do
casamento e descendência. Em Mateus (14:1-12), são os discípulos que
vão buscar o corpo de João, após a morte, o que era obrigação de sua
família, se ele tivesse uma.
Moisés, quando passou a se apresentar aos planos espirituais
mais altos, também desenvolveu um comportamento celibatário,
mantendo com a esposa um relacionamento fraterno. O próprio rabino
Simeão ben Azai, embora celibatário, ou, como preferia dizer, casado
com a Torah (a bíblia judaica), recomendava o casamento e a
procriação. Assim podemos concluir que embora a escolha pelo celibato
tivesse um caráter de contestação, por vezes incômodo para a
sociedade, pode-se dizer que essa era uma opção reconhecida, embora
não comum, no mundo mediterrâneo do século I d. C. O celibato de
Jesus pode ser pensado como uma parábola viva que obrigava todos a
uma reflexão e permitia a ele a possibilidade de se deslocar e se dedicar
totalmente à sua missão de vida.
A frase “Porque há eunucos de nascença; há outros a quem os
homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos se fizeram eunucos
Jesus: homem e espírito
211
por causa do reino dos céus” (Mateus 19:12), bem como a posição
celibatária de alguns de primeiros membros da igreja, revela o
conhecimento geral do modo de vida celibatário do messias galileu.
Podemos colocar um ponto final, seguro, nessa discussão, uma vez
existem elementos suficientes para dizer que Jesus foi celibatário e esse
modo de vida possuía todos os ingredientes que um pregador itinerante
do século I d. C. necessitava, além de ser uma postura que afrontava a
classe sacerdotal da época.
Esse questionamento sobre a relação entre Jesus e as mulheres é
importante. Primeiramente porque constitui dogma religioso e por
ajudar a moldar a relação homem-mulher em muitas igrejas cristãs de
cunho mais literalista. Casos existem em que a freqüência à igreja é a
única oportunidade para que os dois gêneros da espécie humana possam
interagir socialmente.
Ao lado de uma verdadeira revolução social representada pela
ascensão da mulher a todas as atividades da ciência, tecnologia,
religião, cultura e lazer, ainda existem mentes que procuram escravizá-
las utilizando a vida de Jesus como exemplo de posição secundária a ser
adotada por todas as mulheres, o que não condiz de forma alguma com
o que encontramos na Bíblia, onde elas caminhavam lado a lado com o
mestre e seus discípulos, e, acima de tudo, com o que nos é
212
freqüentemente revelado da espiritualidade maior, onde Maria de
Nazaré reina em toda sua bondade de mãe piedosa e estremece, com a
oração a ela dedicada, o coração endurecido de tantos obsessores.
As mulheres que acompanhavam o mestre com mais
assiduidade, como Maria de Magdala, eram responsáveis pela
importante missão de recolher e manter os proventos que garantiam o
deslocamento do grupo. Essas mulheres, muitas das quais senhoras,
eram as "mães e irmãs" de todos e acabaram por despertar muito ciúmes
nos corações ainda empedernidos de alguns apóstolos, notadamente
Pedro, que se sentia diminuído pela importância que elas adquiriam na
comunidade de seguidores.
Prova bastante ímpar dessa relevância descansa junto ao
calvário, onde Maria de Magdala foi a primeira testemunha da ausência
do corpo de Jesus no sepulcro. Tendo-se em vista que uma mulher
raramente era aceita como testemunha de algo, na sociedade judaica da
época, podemos ter certeza que o fato ocorreu, posto que causava
constrangimento aos evangelistas citar que a primeira testemunha da
pretensa ressurreição era uma mulher, ilustrando, por outro lado, a
importância dessa personagem para o grupo de seguidores do mestre e
acrescenta cores novas ao afeto que a unia ao Cristo que a havia
libertado de severa obsessão no inicio de seu ministério público.
Jesus: homem e espírito
213
4.3 Qual a formação religiosa de Jesus, o judeu?
Mais uma vez, nos vemos diante de uma indagação sobre a vida
de Jesus que, à primeira vista, parece ser facilmente respondida, mas
essa condição é enganosa. Como o maior de todos os pregadores
poderia ter sido um leigo destituído de uma formação sacerdotal?
Mas isso é o que realmente aconteceu. Jesus era um pregador
leigo. Um leigo de uma província marginal do Império Romano e,
portanto, visto com desconfiança pelos sacerdotes do culto estabelecido.
Por isso, talvez, Jesus tenha entrado em constantes choques com
escribas, fariseus e mestres de sinagogas locais, mas por vezes esses
confrontos mostram lados positivos nos questionadores e sempre as
portas do diálogo estão abertas, o que não acontece com os sacerdotes
do Templo e com os detentores do poder religioso da época. Na única
situação em que a classe sacerdotal se coloca em contato com Jesus, em
discussão, o faz de forma extremamente agressiva, tentando
ridiculariza-lo e o antagonismo entre ambos é insuperável.
O profundo conhecimento de Jesus sobre as leis judaicas deriva
essencialmente do seu precoce contato com as escrituras mais
relevantes, muitas das quais não fazem mais parte do cânone cristão ou
judaico atuais, como o Livro de Enoch, na pequena sinagoga de Nazaré,
214
que não era nada além de um pequeno salão, e nas poucas visitas da
família ao Templo de Jerusalém. Jesus ficava impressionado com o
amor de Deus para com os homens e pela facilidade com que esses
últimos estabeleciam barganhas com o Criador (fazemos isso até hoje....
do tipo “pagar promessa”) e a forma literalista com que as pessoas, em
particular as detentoras do poder religioso e temporal, liam os textos
sagrados. A inteligência e desenvoltura do menino fizeram-no rodeado
de pessoas mais velhas, que se perguntavam de onde vinha tamanho
poder. Como que tomadas por seu indescritível magnetismo, as pessoas,
incluindo os sacerdotes locais, viam-no como um prodígio; um perigo;
delicioso perigo teológico e intelectual.
Mas Jesus teve alguma educação religiosa formal?
Pode parecer estranho, mas a resposta é.....Não. Ele era um
espírito pleno, puro e pronto para o papel divino que vinha
desempenhando há eras geológicas, após ter sofrido todos os percalços
dos caminhos evolutivos. O que lhe faltava de conhecimento formal,
adquirido em escolas e sinagogas, sobrava em termos de intuição e
conhecimento natural, inerente a ele.
Seu conhecimento transcendia o que a humanidade poderia ter
oferecido na época, e mesmo hoje. Muitos dizem que a filosofia cristã
incorporou muitos elementos dos filósofos gregos, como Aristóteles,
Jesus: homem e espírito
215
Sócrates e Platão, mas esses últimos foram enviados do próprio Cristo
para remover parte dos muitos grilhões que prendiam a humanidade,
preparando seu ingresso em nosso mundo físico. Nada mais natural do
que isso, semelhantes refletem semelhanças.
Obviamente a mente brilhante de Jesus precisava ser nutrida
com informações que viessem a frutificar, mas o que havia à sua
disposição era muito parco. Muito do conhecimento que ele professava
vinha da interpretação dos textos disponíveis e pregações de homens
santos, verdadeiros andarilhos com cultura oral. Além desse aspecto, o
menino vivia mais tempo nos planos paralelos da vida, onde trocava
informações com a coorte angélica que o acompanhava e que eram
relembradas diariamente. Muitos pensavam que Jesus era louco, em
função desses “sonhos vívidos”, mas ele tinha plena consciência do que
se tratava e, mesmo na mais tenra idade, parecia administrar muito bem
esse fenômeno.
Quando lemos o Novo Testamento fica claro que os problemas
que Jesus passou a ter dizem mais respeito ao desafio que ele
representava ao poder temporal e à elite sacerdotal, do que questões de
natureza religiosa. Obviamente, como ele questionava a exclusividade
dos sacerdotes, sua postura representava uma reação ao poder existente
e isso envolvia os romanos. Logo cedo se esboçava o destino que teria
216
Jesus e a cruz sempre esteve no horizonte a contemplá-lo em toda sua
macabra silhueta e extensão.
Essa abordagem ganha mais significado quando acreditamos no
que Jesus representava ao plano espiritual do orbe; não existe
necessidade de títulos de santidade ou formação religiosa para entrar em
contato com o Pai Divino. Essa posição de o "reino de Deus" acessível
aos homens reflete também a inexistência de educação religiosa formal
de Jesus e isso apavorava todos aqueles que se sentiam donos do
intercâmbio com a divindade e utilizavam essas prerrogativas para a
obtenção de vultosos lucros e vantagens pessoais, o que tornava a
posição de sacerdote do Templo, especialmente o Sumo Sacerdote,
bastante atrativa e freqüentemente era objeto de negociatas pouco
transparentes entre o poder religioso judeu e seus superiores temporais
romanos. Por esse mesmo motivo, nós espíritas NÃO devemos,
independentemente do papel desempenhado em nossas casas de
caridade e oração, adotar a figura de sacerdotes, o que de fato não
somos e jamais seremos, se tivermos juízo, claro.
Parte da razão entre o antagonismo entre os primeiros cristãos e
a classe sacerdotal deriva da época em que os evangelhos foram
escritos, entre 70 e 95 d. C. (com exceção de algumas composições,
como o Evangelho de Tomé, O Evangelho da Cruz e o documento Q,
Jesus: homem e espírito
217
cuja redação pode ter se iniciado antes de 50 d.C.), quando a revolta
contra os romanos teria sido sufocada e a classe sacerdotal havia sido
banida. Com a destruição do Templo de Jerusalém e, sendo o judaísmo
rabínico o descendente direto do farisaísmo, os evangelistas teriam sido
mais benévolos com os fariseus na maioria de suas abordagens, o que
não ocorreria com a classe sacerdotal, agora expulsa de seus mais
íntimos redutos e despojada de seu antigo e dominante poder.
Por baixo dessa condição, o que se verificava nos contatos do
galileu com a classe sacerdotal é um profundo incômodo gerado por um
leigo que parecia dominar com maestria a lei mosaica e conseguia
subverter a ordem religiosa, a qual criava um abismo entre o homem e
Deus. Criar uma ponte sobre esse abismo era função dos sacerdotes do
Templo, mas eliminar esse abismo parecia ser a principal mensagem de
Jesus.
Essa filosofia acabou definindo, nas mentes cristãs, que Jesus
representava, para a Nova Aliança com Deus, aquilo que o Templo
representava para o povo judeu. Múltiplas evidências dessa associação
estão disponíveis nos textos bíblicos, onde os cristãos parecem mostrar,
aos judeus, que o verdadeiro Templo era representado pelo espírito e
corpo de Jesus, que havia se levantado do túmulo após 3 dias, enquanto
o Templo de pedras, dos seguidores da Lei Mosaica, ainda jazia
218
destruído no solo, depois da destruição pelos romanos no dia 29 ou 30
de julho do ano 70 d. C. Entretanto, essa comparação não fora feita pelo
próprio Jesus, que aceitava a existência do Templo, mas não
concordava com todo o tipo de negociatas que se davam ao seu redor e
que constituíam a base da relação do homem com o divino.
Os cristãos primitivos tiveram numerosos problemas com a
classe religiosa judaica, visto que seu líder afrontava as autoridades,
mas sua própria autoridade vinha apenas do domínio que tinha do
pensamento mediterrâneo e judeu, em particular, temperado por uma
inteligência aguda e um profundo, mas curioso, para a época, senso de
justiça. Jesus não tinha base formal para sua autoridade. Falava apenas
por si mesmo e, utilizando lógica aguçada e comparações elaboradas,
afrontava o mundo miserável e cheio de relações de honra e preconceito
que o envolvia.
Não podia invocar títulos terrenos, tampouco autoridade formal
sobre os textos sagrados da Torah, a “Bíblia Hebraica”, mas trazia
impresso na alma um conhecimento que parecia vir do Mais Alto,
adquirindo a postura de Sumo Sacerdote dos homens,
independentemente de sua condição social e sexo, junto ao Pai.
Como coloca o brilhante J. P. Meier, alguns cristãos sentiam que
Jesus era “o verdadeiro e onipotente Sumo Sacerdote sentado à direita
Jesus: homem e espírito
219
do Pai”, conforme a Epístola aos Hebreus. Somente nesse texto o
mestre galileu é chamado de sacerdote e Sumo Sacerdote. Para o
apóstolo Paulo, a condição de sacerdote exaltado de Deus, atribuída a
Jesus, deriva de sua ressurreição dos mortos, após a expiação na cruz.
Essa visão se generalizou e hoje está no seio da grande maioria das
igrejas cristãs pelo globo.
4.4 Como foi a educação formal de Jesus, um judeu
pobre do século I d.C. ?
A região onde a sagrada família residia também constituía uma
área de grande agitação cultural, principalmente no que concerne às
fortes influências helenísticas, persas e mesopotâmicas. A proximidade
com a cosmopolita Séforis ajudava a compor o mundo mental do
menino Jesus, insuflando-lhe o ponto de vista de uma sociedade mais
pluralista, embora tudo isso estivesse no seu “Eu” adormecido. Pelo
intelecto e sublime coração, o menino Jesus representaria um desafio
para muitos professores modernos, muitas vezes não preparados ou
acostumados e questionamentos.
A presença de Séforis a poucos quilômetros de Nazaré sugere
que conhecimentos de grego devem ter sido passados para Jesus, uma
vez que era a língua franca no Mediterrâneo oriental e na administração
220
romana. Com isso, mesmo na forma mais rudimentar, o mestre galileu
poderia ter conversado com os guardas e soldados romanos nos
momentos que antecederam a crucificação, tornando-se plausível uma
conversa em grego entre Pilatos, o prefeito da Judéia, e o pregador
independente considerado por muitos como o Filho de Davi e enviado
do Deus Altíssimo. Esse conhecimento de grego também abriria as
portas da própria filosofia grega.
Os evangelhos trazem numerosas evidências de Jesus lendo,
escrevendo ou debatendo as escrituras (João 7:15; João 8:6; Lucas 4:16-
30). A habilidade de ler não era pré-requisito para o sucesso no mundo
greco-romano, muito menos para os habitantes da Galiléia, periferia do
império.
A fidelidade dessas passagens bíblicas é bastante questionável,
sendo que João 8:6 não fazia parte do Quarto Evangelho, como
demonstram as cópias mais antigas, sendo considerada como fruto da
teologia da igreja do século II d. C. Contudo, essa passagem reflete uma
tradição verdadeira a respeito de Jesus. Nesse versículo, Jesus escrevia
na terra com o dedo e a grande maioria dos estudiosos acredita que o
verbo “escrever”, em realidade, encobre o fato de que Jesus,
provavelmente, apenas desenhava, demonstrando sua “falta de
interesse” ou desagrado pelo excessivo “zelo aparente” daquele grupo
Jesus: homem e espírito
221
judeu. O mestre galileu, evidenciando profunda misericórdia para com a
pecadora, teria escrito os pecados mais comuns daqueles que
ameaçavam apedrejá-la, mas como o texto joanino omite o que estava
sendo escrito, favorece a idéia de que “os escritos” não passavam de
linhas e desenhos.
Em João 7:15, os judeus se perguntam como alguém como
Jesus, sem uma educação formal com os grandes mestres das lei, como
Gamaliel e outros, poderia ler e discutir as escrituras, como ele o fazia e
com muita propriedade. A crítica, portanto, não recai na ausência dos
estudos básicos em Jesus, mas na precariedade de seus estudos na lei
mosaica e acaba até por mostrar que ele apresentava genialidade na
argüição e discussão dessas leis e isso somente se daria se Jesus
conseguisse lê-las, como ele de fato o fazia.
Para compreender as escrituras, muitas em hebraico, língua que
poucos falavam na época de Jesus, o divino mestre não podia ser
possuidor apenas de conhecimentos básicos de leitura, ou dominar
apenas os textos em aramaico, língua que ele falava em casa. Nesse
sentido, ele, na sinagoga de Nazaré, lê Isaías (61:1-2) e, ao final, dirige-
se aos seus ouvintes e conclama que naquele momento, enquanto ele lia
o texto profético, o mesmo se cumpria (Lucas 4:16-30). Seria análogo a
dizer “o messias hoje se apresenta a vocês!”. A historicidade dessa
222
passagem é discutível, mas tem sido atribuída à tradição que permeia os
textos de Lucas e é uma das poucas ocasiões em que Jesus fala de si
mesmo fora do evangelho de João, o que sugere sua autenticidade. A
reação dos judeus deixa claro que existe uma oposição a esse mandato
messiânico e nem todos estão preparados para um messias que vem da
porção inferior da camada social.......eles se esquecem dos requisitos
divinos, comparando-os apenas aos aspectos mundanos de um messias
guerreiro e vencedor esperado pelo povo como o futuro rei judeu.
No início do século I d. C., ou mesmo antes, a maioria das
crianças judias recebia alguma educação formal em escolas, objetivando
a leitura das escrituras e tais escolas eram mantidas pela própria
comunidade, que as denominava de “casa do livro”. Pôde-se observar
sua existência em praticamente todas as cidades da Palestina, como
conseqüência do trabalho de Simeão ben Shetah, no século I a.C., e do
Sumo Sacerdote Josué ben Gamala, que exerceu o sumo sacerdócio de
63 a 65 d.C.
As fontes dessas informações são as tradições incorporadas na
Mishná, textos escritos por volta de 200 anos após a crucificação.
Assim, talvez os textos exortando a existência dessas escolas venham a
refletir mais os desejos de seus idealizadores do que sua ocorrência real.
Porém, tais “casas do livro” se tornaram uma instituição bem
Jesus: homem e espírito
223
estabelecida nos séculos seguintes e, mesmo quando havia alguma
instrução, a mesma se resumia na capacidade de ler as escrituras e de
preencher as necessidades do indivíduo quanto aos aspectos mais
práticos da vida. A literatura era um bem reservado para um público
mais abastado e não para os habitantes das vilas.
Jesus teve acesso precário a essa educação formal e seu
profundo domínio das tradições e leis do povo vieram como
conseqüência de sua gana em saber e pesquisar, mesmo com
ferramentas tão limitadas. Seus primeiros mestres na casa do livro se
impressionavam com a capacidade de aprendizado e logo tiveram
dificuldade para conciliar as necessidades daquele menino pobre com as
necessidades das demais crianças, de famílias tão ou mais carentes do
que Jesus. Não era fácil ensinar alguém que, no seu espírito, trazia o
conhecimento da plenitude do cosmo, apenas adormecido
temporariamente pelas exigências e limitações do corpo físico, bem
como para o bem daqueles que o cercavam na época.
Como a vida religiosa de Jesus bem evidencia, ele costumava
discutir as escrituras e as tradições com eruditos e, por vezes, é flagrado
em discussões com esses “doutores da lei”, além de pregar em
sinagogas, o que requer muito mais do que um simples conhecimento
básico das letras. Esse fato torna sua situação ainda mais singular,
224
particularmente quando os oponentes ressaltam que ele era um rabi ou
mestre sem que tivesse tido formação, no sentido formal, para tanto.
Pode-se suspeitar que a formação de Jesus no seio de sua família foi
intensa e incluiu a leitura de textos em aramaico e hebraico, como as
escrituras do Pentateuco. Essa capacidade de ler e discutir textos
religiosos antigos denota um conhecimento que vai muito além do que
se supõe como padrão para um habitante do mundo greco-romano de
então e pode ser comparada a educação de escriba. Nesse ponto,
acreditamos que a fé intensa do pai de Jesus e de seus demais familiares
tenha levado José a ensiná-lo a ler os textos sagrados precocemente.
A condição do aprendizado de Jesus com certeza foi facilitada
por ser primogênito, de forma que os recursos familiares poderiam ser
empregados com mais tranquilidade em sua formação. A sinagoga de
Nazaré também contribuiu para a formação intelectual do menino e
imaginem o significado do seu retorno adulto para pregar entre seus
iguais e o sentido da incredulidade dos mesmos, exemplificada pela
famosa expressão “Não é este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de
Tiago.....”. Muitos dos que proferiam essas palavras eram seus parentes
próximos e que viam o rumo que o jovem pregador tomava em sua
empreitada, que nada tinha de pessoal.
Jesus: homem e espírito
225
4.5 Qual a profissão de Jesus e qual a condição
socioeconômica de sua família?
Para um habitante do século XXI, essas perguntas constituiriam
dois assuntos diferentes, uma vez que nem sempre a condição social
está tão diretamente ligada à profissão exercida. Em uma sociedade com
um mínimo de mobilidade social, como a nossa, vemos pessoas com
renda familiar satisfatória, independentemente da formação dos seus
membros. Hoje, o próprio indivíduo pode escolher a sua profissão; no
século I d.C. a profissão era parte da herança familiar.
Durante dois mil anos de história temos acreditado na imagem
de um Jesus desprovido de bens materiais, pregando a igualdade social
e desprezando a riqueza. Isso é muito diferente de alguém que não saiu
exatamente da base da pirâmide social, mas pregava o desapego aos
bens terrenos. Entretanto, a discussão que sempre existiu, no tocante ao
messias galileu e a riqueza terrena, dizia mais a respeito da riqueza da
própria igreja romana e da forma com que as pessoas e as nações eram
espoliadas de tudo que possuíam de mais valioso. Temos de deixar
claro que não estamos nos referindo à igreja quando perguntamos sobre
qual era o padrão de vida da família de Jesus e sabemos que esse ponto
é bastante relevante, uma vez que determina como o mestre via a
riqueza, como encarava a fome e a escravidão que vicejava nas
226
entranhas do império romano e, por fim, como ele acreditava que
deveria ser o relacionamento entre os homens no compartilhamento do
fruto do trabalho.
É lugar comum entre os especialistas de que Jesus foi um
carpinteiro pertencente ao que atualmente denominamos de “classe
média baixa” e que sua profissão foi adquirida no dia a dia de convívio
com seu pai, José. Tal proposição pode, entretanto, ser enganosa.
Embora Jesus seja continuamente considerado um camponês nos
evangelhos, ele nunca é visto lavrando a terra, de forma que a palavra
“camponês” deve receber um novo significado. A ciência da agricultura
devia ser praticada por grande parte da população dos férteis vales da
baixa Galiléia, como forma de adquirir o seu próprio sustento ou para
fornecer parte das necessidades da família, cuja renda principal vinha
do trabalho urbano de autônomo dedicado a trabalhos em superfícies
sólidas, como outrora faziam os carpinteiros.
Esse passado familiar mais conservador pode ter influenciado de
tal forma a família de Jesus que, décadas após a crucificação, seu irmão
Tiago exigia uma certa observância da lei mosaica pelos novos
convertidos ao cristianismo, como descrito nos Atos dos Apóstolos.
Além desse aspecto, para esses indivíduos oriundos de minúsculas
comunidades na Galiléia, os grupos religiosos urbanos, particularmente
Jesus: homem e espírito
227
os fariseus e a classe sacerdotal dominante, deveriam ser encarados com
alguma desconfiança.
No caso da família de Jesus, seu pai, mãe, ele próprio e seus
irmãos homens costumavam exercer atividade econômica nas
proximidades da vila de Nazaré, o que explica a familiaridade do mestre
com a terminologia dos agricultores e nos auxilia a entender as
numerosas comparações com a vida rural presente nas parábolas. Deve-
se reconhecer, assim, que a família de Jesus, embora vivendo em uma
pequena vila e atuando como mão de obra com alguma qualificação,
também cultivava pequena extensão de terra para seu sustento. Nessa
atividade, o jovem Jesus se destacava pelo capricho e bons resultados
obtidos, o que nos ajuda a entender as reticências que a família tinha à
sua missão de pregador, abandonando a atividade profissional,
acarretando perdas significativas para as condições socioeconômicas da
família.
Cabe ressaltar aqui que a capacidade do mestre em obter o maior
rendimento dos cultivos e criações a que se propunha derivava do fato
de que ele espalhava energias nobres, que propiciavam mais harmonia e
permitiam maior desenvolvimento de animais e vegetais ao seu redor. A
vila de Nazaré era abençoada com sua presença, mesmo que não
soubesse ou, pior, valorizasse.
228
Ainda nos primeiros anos do século II d. C., como nos conta
Hegesipo, através da obra de Eusébio intitulada "História Eclesiástica",
o imperador romano Domiciano, na tentativa de se livrar de problemas
com o nacionalismo judeu, teria interrogado os netos de Judas, irmão de
Jesus, sobre sua ascendência real e possíveis pretensões ao poder
terreno e tendências messiânicas. Esses sobrinhos-netos do messias de
Nazaré teriam dito que possuíam uma pequena extensão de terra que
lavravam com as próprias mãos, como também fizeram seus tios-avós e
demais familiares.
O único versículo que fala da profissão de Jesus já foi discutido
acima (Marcos 6:3 e suas versões equivalentes em Mateus e Lucas) e
refletiria uma sucessão natural de pai para filho, tão comum na
antiguidade. Cabe colocar que Jesus atuava de fato como um
marceneiro moderno e não um carpinteiro, como se popularizou, uma
vez que o termo grego empregado para descrever sua atividade
profissional é “tekton”, que deveria ser traduzido pelo que hoje
conhecemos por marceneiro, o qual deveria ser capaz de trabalhar, além
da madeira para móveis, madeiramentos para construção de casas,
pedras e outras estruturas sólidas como chifres e marfim, como
apresentado nas igrejas orientais, como as igrejas coptas e siríacas.
Jesus: homem e espírito
229
Dessa forma, o ser quase esquálido e com expressão de doente
que vemos retratada na maioria das pinturas medievais e modernas, bem
como filmes, não teria muito futuro na profissão; Jesus tinha uma
robusta compleição física em função da genética familiar e pela
atividade física vigorosa que exercia como pequeno lavrador e
marceneiro. Isso pode ser inferido pela freqüência com que ele é visto
pregando para multidões e se desloca continuamente pela Palestina,
mostrando seu vigor físico.
A família de Jesus dependia do trabalho para sobreviver e,
assim, era considerada como parte do extrato inferior da sociedade, mas
não fazia parte da base da pirâmide social, tampouco era mais pobre do
que qualquer camponês da época. Lembre-se que lemas como “o
trabalho enobrece o homem” e “o trabalho liberta” não faziam parte da
filosofia do Mediterrâneo do século I. d. C. Na época, somente os que
tinham escravos ou podiam viver do trabalho alheio constituíam a elite
ou nobreza.
A pobreza da família do mestre não era opressiva e degradante
como a apresentada por aqueles que vislumbravam a pirâmide social
olhando a partir de sua base. Junto a ele estariam os pequenos
lavradores, profissionais liberais e pequenos comerciantes das vilas e
povoados, lutando, no dia a dia, pela sobrevivência, sem a garantia
230
moderna que a classe média possui, mas longe da base dessa pirâmide
social. Os extratos inferiores incluíam os servos, lavradores sem terra,
trabalhadores diaristas, ambulantes e, por fim, os escravos. Dessa
forma, durante o exercício do seu ministério público, a sua renúncia aos
poucos bens que lhe eram facultados dava-lhe a aparência de uma
pessoa portadora da mais profunda miséria, o que lhe facilitava
aprofundar sua mensagem para grande parte da população de excluídos
e não lhe fechava as portas para o movimentação na condição de divino
peregrino. Como Jesus não vinha da base da pirâmide social, sua
renúncia aos bens materiais e sua profissão, no início de seu ministério,
teriam uma conotação ainda mais forte, firme, radical. Quando ele
ensinava a renúncia, mostrava o que ele mesmo teria feito no passado.
Algumas estudiosos advogam que Jesus discutia a lei com
pessoas ricas, como Nicodemos (possivelmente o personagem
conhecido como Nicodemus ben Gurion, citado no Talmude) e isso era
incomum para o pobres, de forma que enxergam um Jesus mais rico nas
escrituras, o que lhe teria permitido uma melhor formação intelectual.
Mas quase todos os aspectos da vida do mestre depõem contra essa
posição.
A Galiléia de Herodes Antipas (4 a. C a 39 d. C.) era uma ilha
de relativa calma e certa prosperidade cercada por outras províncias
Jesus: homem e espírito
231
romanas, em particular a Judéia, onde o clamor revolucionário era
sentido associado a um forte sabor nacionalista e religioso que se
intensificava continuamente. Muitas construções estavam em
andamento e a força da civilização greco-romana mudava as paisagens
da Galiléia. Assim, embora muitos acreditem que Jesus tenha
trabalhado com seu pai em cidades helenizadas ao redor de Nazaré,
como a bela Séforis, distante apenas uma hora de caminhada, onde
poderia ter entrado em contato com a cultura e civilização gregas, nada
nos evangelhos permite esse tipo de extrapolação sem uma série de
reservas. Merece destaque o fato de que Jesus evitava essas cidades
helenizadas, mantendo-se apenas nas vilas e cidades de nítida maioria
judaica. Nesse particular, nada no modo de vida das comunidades
helenizadas chamava a atenção de Jesus, que nasceu, viveu e morreu
como um judeu pio, praticante.
A palavra aramaica “naggara” que teria sido traduzida por
tekton, para o grego, significa, também, mestre ou artista e,
empregando-se passagens posteriores do Talmude, coloca que esses
profissionais eram reconhecidos pelos seus conhecimentos das
escrituras hebraicas, porém não podemos determinar com precisão se
isso era válido para a época de Cristo, séculos antes. Contudo, a
sabedoria que o mestre dos mestres mostrou ao longo da sua vida vinha
232
da sua indescritível condição espiritual e não de escolas do mundo; nem
a prisão da carne foi capaz de separá-lo do seu imenso cabedal de
conhecimentos anteriores. Como ele mesmo disse (João 3:5-6), "Em
verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito
não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e
o que é nascido do Espírito é Espírito."
Jesus: homem e espírito
233
5 João, o mestre do Mestre
“...Em verdade, em verdade vos digo...
Eu sou o pão de vida: aquele que vem a mim, não terá fome,
e aquele que crê em mim jamais terá sede....”
(João 6, 32-35)
234
5.1 João, o Batista, mentor e mestre de Jesus, o Cristo.
Poucos pontos da vida de Jesus estão claramente definidos nos
evangelhos, destacando-se o seu batismo por um pregador itinerante do
vale do rio Jordão, chamado João, e sua crucificação durante o governo
do prefeito romano Pôncio Pilatos. Todos os cristãos parecem conhecer
a história do batismo de Jesus e sabem que o mestre galileu teria
reunido seus primeiros discípulos e admiradores entre os seguidores do
Batista, como iremos chamá-lo a partir desse ponto.
Da mesma forma, quando todos os critérios de historicidade são
aplicados à associação entre Jesus e o Batista, aparece uma relação de
discípulo e mestre. Nesse particular, décadas após a crucificação, a
comunidade cristã começou a sentir algum desconforto com o fato de
que seu messias, homem e Deus- Filho, e dono de tantos outros títulos
que lhe eram atribuídos sem o seu consentimento (mesmo contra a
vontade de Jesus, ele passou a receber as mais lisonjeiras denominações
dos pobres e miseráveis do caminho), teria sido batizado por um
homem santo do deserto. O processo de divinização de Jesus,
promovido pelos seus seguidores tornava esse situação incômoda.
Assim, nos evangelhos mais antigos, o batismo de Jesus pelo Batista é
retratado em cores mais reais, que são modificadas nos textos de
Jesus: homem e espírito
235
Mateus e Lucas, até ser quase negado no Quarto Evangelho, como
veremos a seguir.
Esse fato teve de ser trabalhado por décadas até assumir as cores
que vemos hoje nos evangelhos, “pasteurizando” a relação entre os dois
pregadores do século I d. C. Contudo, não se pode deixar de reconhecer
que o Batista era um enviado do Pai para os desesperados e miseráveis
que procuravam algum alívio para as muitas dores que sentiam na alma.
A miséria econômica aliada à intolerância de uma sociedade
patriarcal e teocrática acabava por criar condições para que os
desesperados dessem início a movimentos religiosos radicais, cada qual
trazendo uma mensagem escatológica sobre o juízo final. o Batista, ao
contrário de muitos que o precederam, não se sentia como o enviado de
Deus Altíssimo, aquele que deveria mudar o rumo da história, mas se
via como o homem que prepararia os corações e mentes para o advento
do messias. Para ele, sua missão era a de revelar a iminência dos planos
do Senhor. Apenas isso.
As evidências históricas da existência de João, o Batista, são
bastante significativas, principalmente no que se refere a citações por
não-cristãos. Além desse aspecto, os cristãos não iriam inventar um
personagem que teria batizado o seu messias, algo que parecia
constrangedor aos olhos dos novos adeptos; lembrem-se que Jesus
236
estava sendo transformado nas mentes de muitos judeu-cristãos
helenizados, romanos e gregos em Filho Único de Deus ou Deus-Filho,
figura da controvertida Santíssima Trindade da igreja latina e isso não
permitia que descrições que mostrassem a humanidade do mestre
viessem à tona, como ocorre com o seu batismo por João.
Pela ampla cobertura que Flávio Josefo dá as atividades de João,
muito mais extensa do que a cobertura dada ao ministério de Jesus,
pressupõe-se que João, ao contrário, era muito mais indigesto e
subversivo ao poder romano, representado pelos seus reis fantoches
herodianos e pelo governo romano direto, tendo sido condenado a
morte por Herodes Antipas.
Tanto os evangelhos cristãos como Josefo falam que o Batista
era muito popular no vale do rio Jordão e sua mensagem estava ligada
ao julgamento do final dos tempos, que seria presidido por alguém que
viria depois dele e pelo próprio Senhor de Israel, o Deus de Abraão.
Segundo João, a salvação somente seria alcançada pelos judeus
pecadores que se arrependessem dos pecados cometidos e se
submetessem a um ritual de batismo, que consistia de um banho de
purificação especial e único, que dividiria a vida da pessoa duas fases,
antes e após o arrependimento dos pecados cometidos.
Jesus: homem e espírito
237
Ao contrário de Jesus, que aceitava o Templo, mesmo que o
considerasse aviltado em sua pureza inicial, o Batista renegava qualquer
importância ao santuário judeu e isso era de grande relevância
teológica, visto que ele era filho de um sacerdote judeu e teria a
obrigação e honra de seguir o destino de seu pai, um levita. Hoje vemos
esses termos sendo aplicado de forma bastante honrosa, mas sem
critério em várias igrejas literalistas, mas na época do Primeiro e do
Segundo Templo, ser um levita era algo que vinha com o sangue e não
questão de "quero ser levita". Contudo, o Batista se afasta do Templo e
de todo o judaísmo formal a ele associado, uma vez que, na pregação
desse judeu palestino, o homem podia ter contato direto com Deus, sem
a intervenção de intermediários e credos tolos e a salvação dependia,
acima de tudo, de uma mudança de postura íntima diante da vida.
Muitas semelhanças podem ser traçadas com o cristianismo palestino
nessas breves linhas.
O ministério do Batista teria se dado entre 28 d. C. a 33 d. C.,
segundo Meier, refletindo o mesmo período básico de pregação de
Jesus e teria ocorrido junto ao curso inferior do rio Jordão, ao norte do
Mar Morto. Vivia como um profeta do Antigo Testamento e, embora
não possamos confiar muito nas descrições que os evangelhos
canônicos fazem dele, comia o que a natureza fornecia e se vestia como
238
um miserável do deserto, com roupa de pelos de camelo. Esse perfil
lembra o de outros pregadores solitários e escatológicos no séculos I
a.C. a I d. C., considerados homens santos pelo povo comum, não
mantinham filiação com qualquer das principais filosofias do judaísmo
de então.
A própria descrição do Batista, como um homem que vivia do
que conseguia obter na natureza, como mel e gafanhotos, além de usar
peles de animais como vestimenta (Marcos 1:6; Mateus 3:4), nos faz
lembrar a postura dos sectários de Qumran, mas esses últimos eram os
mais aferrados a regras de pureza e somente se afastaram dos sacrifícios
de animais e demais atividades no Templo por considerarem-no impuro
e não por discordarem da corrente principal do judaísmo, ou por
considerar que o sacrifício dos animais representava algo cruel ou
primitivo. João, por outro lado, mostrava que apenas a postura
individual do pecador e o arrependimento da vida pregressa poderia ter
algum efeito sobre o seu destino, uma vez que os viventes, mesmo os
judeus, faziam parte de uma raça de “víboras".
A purificação através da água e banhos rituais era uma prática
bastante freqüente na antiguidade inter-testamental, sendo conhecida
entre os vários sectos judaicos, e outras regiões, como na Pérsia.
Entretanto, apenas entre os qumranmitas, os essênios e os seguidores de
Jesus: homem e espírito
239
João, o Batista, incluindo-se aí os primeiros cristãos, associavam o
arrependimento dos pecados ao processo, sem o qual o banho ritual não
teria valor. Por outro lado, para diferenciar o batismo cristão daquele
executado pelo Batista, os evangelistas colocam que, enquanto esse
último batizava com água, Jesus e seus apóstolos batizavam com o
Espírito Santo, sendo que Mateus textualmente considera que a
remissão dos pecados viria com o sangue do Cordeiro, derramado na
cruz e lembrado na Eucaristia. Essas passagens são anexos tardios,
acrescidos aos textos canônicos por uma população cristã incomodada
com o fato de que nada de significativo diferenciava o batismo
praticado pelos seguidores de Jesus e os do Batista.
Uma questão bastante relevante vem à tona quando pensamos no
batizado de Jesus por João, o Batista. Se o batismo era destinado ao
perdão dos pecados, porque Jesus foi batizado? Ele se considerava um
pecador?
Embora possa parecer herético, essa é uma questão prática e
central na discussão. Hoje, sabemos que o mestre da Galiléia se
submeteu a um procedimento para a remissão dos pecados, o que
implica que ele se considerava pecador. Mas antes que você tenha
vontade de atirar fora esse texto, temos de ver que aquilo que hoje
consideramos como pecado (as pequenas ou grandes faltas pessoais)
240
não era o objeto de atenção dos judeus do século I d. C. Para eles,
pecado era o afastamento deliberado da comunhão com Deus e a
expiação dos pecados era COLETIVA, onde o indivíduo lembrava da
misericórdia de Deus e pedia para que o mesmo perdoasse os pecados
coletivos do povo de Israel. Sendo Jesus um israelita em todos os
sentidos, ele se sentia com os pecados do seu povo. Exemplos de
expiação coletiva dos pecados pode ser observada em outros pontos do
cânone (Esdras 9:6-15; Neemias 9:6-37) e mesmo na literatura referente
aos Manuscritos do Mar Morto.
Se a ocorrência do batismo de Jesus é quase certa, tanto pelo
critério de múltiplas fontes e do constrangimento a ele associado, nada
podemos falar sobre a descrição do mesmo, conforme está no cânone. E
por que isso ocorre?
Como o batismo de Jesus gerava constrangimento entre seus
primeiros seguidores, visto que esses sabiam o significado daquele
procedimento, os evangelistas tiveram de criar um ambiente que
tornasse o fato teologicamente menos nocivo, de forma que
aproveitaram-no para descrever o momento em que Deus revela o seu
escolhido, Jesus, confirmando várias profecias antigas e com profundo
significado simbólico. Assim, temos analogias com a voz divina que
vem do alto e proclama Jesus como Filho de Deus, indicando também
Jesus: homem e espírito
241
que esse Filho de Deus seria o messias davídico; o uso da palavra
“amado” pode fazer alusão também ao “filho amado de Abraão”, da
mesma forma que a expressão “em ti me comprazo” pode aludir ao
servo de Deus presente com grande intensidade nas profecias de Isaías
(Isaías 42:1), mostrando “eis o meu servo.....em que tenho prazer, sobre
quem pus o meu espírito”. Nesse último particular, cabe ressaltar que a
vida de Jesus foi muito semelhante à descrita para o profecia do servo
sofredor de Deus nesse mesmo livro do Antigo Testamento. Quando os
evangelistas fazem referência ao céu se abrindo no batismo, podem
estar associando com Isaías, enquanto o ambiente físico que assistia ao
batismo se assemelha ao descrito pelo profeta Ezequiel, na Babilônia
(Ezequiel 1:1).
Vejam que toda a descrição foi cuidadosamente montada para
ser o clímax de uma série de passagens bíblicas e daria a legitimidade
que Jesus precisava, na mente pobre e obtusa dos primeiros cristãos,
para pregar aos incrédulos.
Seria surpreendente que esses fatos tivessem ficado na mente de
alguns seguidores de Jesus, o que não é impossível, mas o mais
provável é que os autores tenham recorrido ao Antigo Testamento para
escrever o texto, criando a descrição do batismo conforme a
necessidade da igreja em formação e de acordo com os exemplos
242
bíblicos existentes. De qualquer forma, o batismo despertou algo em
Jesus e seu ministério logo teria início. Aquele momento, mais do que
qualquer outro, abria as portas para a última fase da vida terrena do
espírito excelso que nos mostrou o caminho do Pai. Chegara o momento
e o Plano Mais Alto se fez sentir; o messias da Galiléia agora tinha
plenas condições de assumir publicamente o seu papel, para maior
compreensão do significado de sua vida entre nós.
Infelizmente para as mentes limitadas daqueles que
acompanharam o mestre ao longo de três anos de peregrinação pela
Palestina e daqueles que ficaram décadas esperando o seu retorno, que
traria a glória divina ao reino dos homens, a tão anunciada parusia, as
descrições bíblicas do batismo são pálidas em relação ao que ocorria
aos olhos daqueles que, dotados de vidência, podiam contemplar a
majestade de seres iluminados que, com profunda emoção, uniam sua
luz à do mestre divino naquele momento. João, o Batista, sentiu-se
tomado de força inesperada e não sabia exatamente como proceder,
embora não ficasse titubeando ou discursando para a pequena multidão
de seguidores nas margens do rio. Ele, o pregador do deserto, sentia que
algo muito poderoso estava no homem que se postava em sua frente e o
Batista nunca teve, em vida, a noção verdadeira da grandiosidade da
Jesus: homem e espírito
243
mensagem e da missão de Jesus, com seu significado para o mundo em
evolução.
Ali, naquele momento, o governante espiritual do mundo se
colocava como humilde servo de Deus diante daquele que 1800 anos
depois se apresentaria, para Kardec, como o Espírito de Verdade, o
verdadeiro mentor por traz da codificação espírita. Todos sentiam o
coração acelerado, como que a tentar “pular para fora do peito”, e uma
paz profunda a todos tocou. As aflições e angústias sumiram e a
natureza se curvava diante da bondade do homem de Nazaré. João se
sentiu pequeno, como de fato era, perto de Jesus e, como almas
fraternas, se reconheceram. Profundo respeito seria demonstrado por
Jesus sempre que o nome do Batista era mencionado e assim seguiria
nos poucos anos vindouros. Indubitavelmente essa foi a mais
importante demonstração de humildade por parte de Jesus e que ela
sirva a todos nós.
A importância de João para o seu tempo foi tamanha que alguns
consideravam, na época, que a derrota do exército de Herodes Antipas
(que havia matado João) frente ao exército do rei Aretas IV da Arábia,
como uma penalidade infligida por Deus pela morte do Batista. Nesse
contexto, os evangelistas tiveram que resolver como apresentá-lo sem
diminuir a importância de Jesus. Dessa forma, o evangelho de Marcos,
244
o texto mais antigo, o Batista não consegue perceber claramente a
importância de Jesus (1:2-3; 1:4-8; 1:9-11), no momento do batismo,
enquanto Mateus apresenta João como aquele que reconhece sua
inferioridade diante do messias galileu (3:13-15). Lucas coloca Jesus
como primo do Batista e a vida dos dois é apresentada como um
entrelaçamento de fatos, sendo que, nesse evangelho, a prisão do Batista
é dada antes do batismo de Jesus, de forma que não sabemos quem o
batizou de fato (3:19-21). No Quarto Evangelho, o Batista nem parece
estar ligado ao batismo de Jesus, de forma que o título Batista não lhe é
aplicado e ele apenas aparece como uma escada ou caminho para a
apresentação de considerações sobre Jesus, que é mostrado como sendo
a luz (1:7), o Cordeiro de Deus (1:34), o Senhor (1:23), o esposo da
igreja e, por fim, o Verbo Divino que se fez carne (1:15). Nesse último
evangelho, João é utilizado pelo evangelista(s) como sendo o primeiro a
reconhecer a verdadeira natureza divina de Jesus. Era a credibilidade do
Batista atestando o que os cristãos desejavam naquele momento.
Fora essas considerações, qual foi o relacionamento entre Jesus
e o Batista?
Uma vez tendo sido batizado, Jesus se tornou, por poucas
semanas, um discípulo do Batista. Mais uma vez, o que os evangelhos
calam fala mais do que os próprios textos trazem. De fato, Marcos e,
Jesus: homem e espírito
245
indiretamente, João, são as únicas fontes sobre essa possibilidade e
Marcos tenta eliminar o tempo que existiu entre o batismo e a saída de
Jesus do grupo, mas como ele cita que o mestre Galileu levou consigo
alguns de seus primeiros seguidores a partir do grupo que seguia o
Batista, é claro que algum tempo deve ter se passado para que esses
seguidores viessem a preferir Jesus.
No Quarto Evangelho (Jo 1,:27), os autores se quer falam do
batismo, mas dão a entender que esse fato existiu e que a convivência
entre os dois pregadores foi maior do que um encontro casual no vale
do rio Jordão. Embora Jesus tenha feito parte do grupo que seguia o
Batista, não é possível discutir com muita propriedade a relação entre os
dois e o que significava para João o discipulado. Contudo, é seguro
afirmar que os seguidores de Jesus tiveram problemas com os
seguidores do Batista e que os dois grupos exerciam alguma
concorrência pela conversão dos infiéis (Atos dos Apóstolos 19:1-7).
Sabemos que Jesus nutria grande afeição e admiração por João,
considerando-o o encarnado com maior evolução espiritual que já havia
passado pelo nosso orbe e isso foi dito quase que de forma literal. O
mestre passou semanas com o Batista, aprendendo sobre a visão que
esse nutria sobre o reino de Deus e sobre o final dos tempos, com o
juízo final, mostrando as profundas divisões que se assenhoreavam na
246
casa de Abraão. Entretanto, Jesus diferia muito do Batista no tom
otimista que adotava, mostrando que o Reino do Pai, da mesma forma
que o próprio Pai, estava ao alcance de todos. Sua mensagem de
perseverança e otimismo mostrava que o céu e o inferno começam
dentro de nós mesmos.
Infelizmente nada foi deixado sobre o que o Batista acreditava e
pregava, com exceção da ênfase escatológica da sua pregação de
arrependimento, mas podemos dizer com segurança que esse papel foi
acrescido, na figura de Jesus, a exorcista e fazedor de milagres. O
mestre de Nazaré levou as palavras do Batista até o calvário, de onde os
dois se encontraram em espírito novamente.
Poucos pontos são tão obscuros no Novo Testamento quanto as
condições que levaram à morte de João, o Batista. Todas as crianças
que passaram pelo catecismo católico ou protestante poderão lembrar da
jovem que pede ao rei, Herodes Antipas, a cabeça de João em uma
bandeja, como descrito no evangelho de Marcos. Entretanto, além de
graves erros de conhecimento histórico e geográfico, esse evangelista
não tem a intenção de transmitir um fato em si, mas de posicionar a
morte de João como um preâmbulo do que ocorreria com Jesus. Dessa
forma, apenas podemos dizer que as únicas referências disponíveis
sobre a morte do Batista, os evangelhos sinópticos (baseados no texto
Jesus: homem e espírito
247
de Marcos) e Flávio Josefo, concordam apenas que a morte foi obra de
Herodes Antipas e que o problemático casamento desse rei com a
esposa de um meio-irmão pode ter algum envolvimento no processo.
Tentar harmonizar esses dois textos, atualmente, é perda de
tempo. Alguns acreditam que as disputas territoriais de Herodes Antipas
com o rei Aretas IV, pai de Herodíades, a infame esposa de Herodes,
podem ter se somado ao discurso inflamado e moralista de João,
causando um mal estar na corte de Herodes, que decidiu resolver o
problema da forma mais rápida conhecida.
Quais os pontos em que Jesus e João, o Batista, mais se
aproximam? Qual foi a influência desse pregador no judaísmo de Jesus?
Indubitavelmente Jesus não foi uma cópia de João, mas foi por
ele muito influenciado ao longo de seu curto período de pregação na
Galiléia e Judéia. Ambos foram profetas escatológicos, embora o
caráter de revelação seja infinitamente mais nítido no que temos a
respeito da mensagem de Jesus. Esses dois homens acreditavam que as
histórias de Israel e seu povo estavam definitivamente para mudar, em
função do julgamento que seria realizado pelo Senhor, onde muitos
pereceriam, visto que tinham se entregado à apostasia e se desviado do
caminho divino. Cabe ressaltar que Jesus via João como o grande
248
profeta dos tempos finais, mas não aceitou a idéia do “final dos tempos
eminente”, tão característico de João.
Ao invés de intimidar os pecadores e admoestá-los ao
arrependimento, como fazia João, Jesus pregava que o Reino de Deus
estava dentro e ao redor dos homens, sendo necessário a reforma íntima
para que pudéssemos vê-lo e senti-lo. Ao contrário de João, Jesus
realizou inúmeros feitos “milagrosos” (atestados até mesmo por seus
futuros rivais, nos textos judaicos escritos décadas ou séculos depois),
executou exorcismos e tinha uma abordagem muito mais universalista
da salvação, levando o cristianismo, que logo nasceria com a
crucificação, a uma posição vantajosa na doutrinação das mentes dos
judeus pobres do século I d. C.
É provável que esse papel de Jesus como “fazedor” de milagres
e expulsando “demônios”, associado à mensagem universalista de
Paulo, tenham, afinal, colaborado para a vitória do cristianismo no seio
do mundo greco-romano. Esses fatores traziam conforto, o que as
religiões dos deuses antropomórficos e irascíveis não oferecia.
Ambos os pregadores se dirigiram apenas aos judeus durante seu
tempo de vida terrena e, embora existam diversas histórias de curas e
desobsessões envolvendo gentios, a grande maioria delas é criação da
igreja primitiva para justificar a disseminação da fé cristã e o trabalho
Jesus: homem e espírito
249
missionário para fora de Israel e seu povo; como João, Jesus sabia da
responsabilidade de reunir as ovelhas da casa de Abraão em primeiro
lugar, deixando-se as demais ovelhas de Deus para que seus seguidores
o fizessem. Não era um preconceito de cunho étnico-religioso, mas a
simples constatação de que o tempo de vida de um homem não seria
suficiente para alicerçar a idéia de um Deus único que se porta como
Pai misericordioso. Tudo vem em etapas.
Jesus e João nunca se viram como competidores. João tampouco
pode ser visto como um simples personagem preparatório. Ele foi o
sinal que despertou o “peregrino” o que havia em Jesus; ele foi o
portador da palavra do Pai Altíssimo, que se fazendo entre nós nos
baixios do Jordão, fez com que o adulto chamado Yeshua viesse a se
sentir em condições de dar início ao seu derradeiro destino entre nós.
João anteviu, em segundos, diante do galileu, os anos de dor que viriam
à frente; em uma troca de olhares, entre eles, talvez tenha passado
perguntas e imagens que não se calaram nos últimos dois mil anos.
Foram esses dois personagens, o mestre e o discípulo que o
superaria, que cristalizaram a forma com hoje entendemos a relação
entre o homem e seu Pai eterno. Naquele momento, a pergunta de João
"És tu aquele que há de vir?", foi respondida pela mais profunda
sensação de paz que aquele pregador itinerante jamais havia sentido e as
250
palavras do Plano Mais Alto tomaram-lhe a mente na mais clara das
comunicações mediúnicas até então, embora ele não tivesse condições
plenas de antever claramente o papel de divisor da história da
humanidade que Jesus desempenharia. Muitos outros ao redor também
puderam perceber o que ocorria e escutaram a mensagem que brotava
do interior. Naquele momento, Jesus, filho de José, assumia sua
condição de mensageiro do Pai de todos nós.
O Batista foi o instrumento que o Plano Mais Alto utilizou para
catalisar, preparar e despertar os sentimentos populares que
desabrocharam ao redor de Jesus; como pregador preparou a alma do
povo para o ápice da mensagem de redenção que seria encarnada em
Jesus. João sabia da necessidade de mudar o rumo tomado pelos seres
humanos, caso esses últimos de fato aspirassem se unir a Deus em um
mundo muito diferente, mas foi Jesus que pavimentou o caminho que
deveria ser seguido. O mestre eterno, que da Galiléia até o calvário nos
prometeu a presença de um consolador, que, no presente, se faz sentir
pela voz de nossos próprios irmãos, que clamam do outro lado do véu
da morte.
Ao contrário de João, que aparentemente nunca teve uma visão
muito clara de como trazer o reino de Deus até os seus conterrâneo,
Jesus viria apresentar esse reino e o próprio Deus Eterno ao nosso
Jesus: homem e espírito
251
alcance e sempre recebemos sua luz. Para tanto, basta estar em sintonia
com a paz, para sentirmos essas influências e o fluxo do próprio
universo que nos envolve.
Nosso mestre sempre falou que o Pai nunca abandona os seus
filhos e, no Seu mundo, os títulos terrenos não abriam as portas, as
quais eram estreitas e somente permitiam a entrada dos humildes de
coração, ou seja aqueles que se libertavam das sintonias inferiores e se
sentiam plenos ao entrar em contato com energias que até o presente
nem imaginamos sua natureza e sequer suspeitamos a sua existência.
252
6 Os primeiros seguidores do nazareno
“...Não buscamos glórias humanas nem de vós, nem de outros...,
...desejávamos comunicar-vos o Evangelho de Deus...”
(Tessalonicenses 2, 6)
Jesus: homem e espírito
253
Jesus, desde o seu nascimento, foi cercado por todo o tipo de
gente. Sua mãe e pai se preocupavam muito com sua enorme
capacidade de interagir com as pessoas e todas as criaturas da natureza.
Contudo, nada permitia supor, pela vida que ele passou na infância e
adolescência, que seu destino seria decidido por pessoas que viviam
uma vida faustosa e se banqueteavam com as força de ocupação
romanas. A morte dolorosa foi algo que sempre esteve esperando o
menino, mesmo com a profunda assessoria de numerosos seres
angelicais que evitavam que tais perspectivas viessem a atormentá-lo.
Contudo, desde a mais tenra idade Jesus tinha uma incomum
capacidade de atrair a atenção das pessoas, despertando o sentido de
mudança e sua inteligência aguda, associada com magnetismo pessoal
incomparável, logo fizeram com as palavras mansas destinadas a um
grupo pequeno de pessoas simples, logo se transformassem em
verdadeiros eventos. Assim, desde discípulos e apóstolos mais
próximos, até multidões acompanhavam o mestre-messias galileu.
Na vila de Nazaré, muitas vezes ele fora considerado como que
tendo acordo com as forças do mal, posto que as pessoas não
conseguiam entender de onde vinha tamanha sabedoria e o poder que o
menino parecia ter sobre as criaturas vivas do seu entorno. É errôneo
acreditar que o pequeno Jesus vivia uma vida típica de um menino
254
normal. Isso não ocorria. Antes que as multidões de encarnados
estivessem ao seu lado, multidões de espíritos escutavam suas palavras,
em pensamento, em atitude de sublime aceitação, em todos os planos da
vida. A proteção bastante especial que a criança recebia impedia o
assédio constante em seu ambiente doméstico, mas o grande espírito
que habitava aquele corpo ainda franzino nunca descansou; suas
atividades continuaram em ritmo frenético e os afazeres diários, na luz
do dia, representavam momentos de descanso.
Quando a noite sucedia ao dia e o corpo repousava na pobreza
da vila, o excelso espírito do mestre imediatamente se dirigia às esferas
crísticas onde os destinos do orbe ainda requeriam a sua atenção. Hoje
nos perguntamos como esses eventos repercutiam na mente do menino
luz e não podemos nos esquecer que, embora pleno de capacidades e
sabedoria, era um menino. De certa forma, isso se mostrava no tom
grave que adquiria quando frequentava a sinagoga e na alegria do
contato com a natureza agreste que o envolvia na pequena vila de
Nazaré.
Adulto, os textos bíblicos dizem que, após o batismo, Jesus
reuniu um grupo de discípulos que, com o tempo, daria origem ao grupo
dos doze apóstolos. Em suas peregrinações, multidões os seguiam e
muitos dos que receberam a cura de seus males do espírito e da alma
Jesus: homem e espírito
255
acabaram de se tornar membros do seu círculo mais íntimo de
relacionamentos, como Maria de Magdala e Eleazar, nosso querido
Lázaro (não confundir com o espírito Eleazar, um dos colaboradores
espirituais do presente ensaio). Possivelmente esses círculos não eram
tão firmes, estanques, e permitiam que elementos entrassem e saíssem
dos mesmos, com exceção, talvez do círculo mais íntimo, que
permaneceu mais ou menos constante ao longo do ministério terreno do
mestre.
Discutiremos brevemente os círculos concêntricos de pessoas
que gravitavam ao redor de Jesus. Para uma visão mais técnica desse
problema, recomendamos a leitura das obras de Jonh Dominic Crossan
e J. P. Meier, que são bastante esclarecedoras, embora não tenham
qualquer interesse de cunho espiritual sobre o tema.
6.1 Multidões e Discípulos
Quando divisamos a jornada de Jesus durante suas atividades
pela Palestina de 28 a 30 d.C. ou 33 d. C., nos damos conta de que o
mesmo sempre estava cercado por pessoas de todos os tipos, desde
curiosos e pedintes a enfermos, discípulos e apóstolos, refletindo uma
mensagem destinada a todo o povo de Israel, sendo que os gentios
seriam contemplados quando o povo de Israel viesse a aceitar os novos
256
ensinamentos. De cobradores de impostos, mulheres pecadoras, fariseus
e populares simples, todos pareciam se interessar pelas palavras daquele
homem desprovido de bens materiais, com exceção da túnica que
envergava sobre o corpo e as sandálias que agasalhavam seus pés.
O nazareno tinha traços especiais que o distinguiam da maioria
(se não de todos) dos pregadores e senhores da lei de seu tempo: ele
escolhia seus discípulos e alunos diretamente das comunidades ou
grupos visitados.
Entre os demais pregadores itinerantes, os discípulos eram
aqueles que tinham interesse em se instruir quanto aos meandros do
judaísmo de então, não havendo um chamado ou convite vindo do
mestre, como ocorria com o messias galileu, o qual reservava para si
mesmo a prerrogativa da escolha e cada uma delas era realizada para
simbolizar o resgate de Israel e a iminência da chegada do Reino de
Deus. Em Jesus, tudo era previamente pensado e calculado para atender
à sublime missão e mensagem que era proferida em diferentes tons, em
cada vila pelo caminho, e para cada grupo de miseráveis que chagava
pedindo misericórdia pelas doenças do corpo e da alma.
O grupo dos apóstolos e discípulos mais próximos representava
a nação judaica como um todo, de todas as tribos e mesmo os oriundos
da diáspora. Jesus sabia dessa simbologia e cada ato seu representava o
Jesus: homem e espírito
257
conceito de que Deus não abandona a ninguém, até mesmo nas furnas
infernais e abismos insondáveis que nos envolvem, que estão repletos
de dores e purgação, onde o Pai misericordioso se faz presente e zela
por todos os seus filhos amados. A misericórdia divina também nos traz
para a carne e o que fazemos com essa oportunidade irá ditar o destino
que damos a nós mesmos, após o sono ilusório da morte física.
Como Jesus estava muito a frente de seu tempo, nenhum dos
seus seguidores imediatos tinha a estatura intelectual e moral que
permitisse a eles compreender integralmente o mestre, de forma que o
maior sofrimento desse último não deve ter sido a cruz do calvário, mas
a solidão (entre os encarnados, por que a comunhão com os
desencarnados fora constante e intensa) e incompreensão que fora alvo
durante toda sua vida pública e, talvez, até no seio de sua comunidade.
Quando se coloca que Jesus atraía multidões para suas
pregações, devemos ter reservas com os números que acompanham os
evangelhos, como aliás ocorre em toda a literatura da antigüidade, até
por que, na época, não se via a necessidade desse tipo de precisão e os
textos bíblicos são relatos devocionais e não descrições acuradas da
realidade. Por vezes a mesma história é contada de diferentes formas
nos evangelhos, relacionando diferentes dimensões para essas
multidões.
258
Contudo, todas as fontes dos evangelhos trazem uma verdade: o
mestre estava sempre cercado de grupos maiores ou menores ao longo
de seu curto ministério e até mesmo Josefo, na obra intitulada
Antiguidades Judaicas, assinala que Jesus conseguiu angariar
seguidores entre muitos de origem judia e gentios.
Essa capacidade de atrair a população, algo tão natural e simples
para ele, foi o combustível de sua crucificação, visto que provocava
temor na elite sacerdotal e política judaica, quanto às suas possíveis
intenções revolucionárias, com as quais os romanos eram bastante
intolerantes e sumários, principalmente no período da Páscoa, época em
que centenas de milhares de judeus palestinos e da diáspora acorriam a
Jerusalém para celebrar a libertação do cativeiro do Egito. Páscoa
traduz liberdade e nenhum exército de ocupação deve se sentir bem em
festas que celebram-na. Nesses dias, o clamor escatológico, messiânico
e nacionalista ecoava pesadamente nas multidões e, naquele ano
fatídico (possivelmente 30 d. C. ou 33 d. C.) os romanos julgavam ter
eliminado apenas mais um carismático e enigmático messias “caipira”,
como os evangelhos bem atestam (Marcos 12:12; 14:2; João 11:45-54;
Lucas 23:5). O próprio Josefo cita as intervenções romanas e judias
frente a líderes religiosos ou profetas no século I d. C., quase sempre
Jesus: homem e espírito
259
resultando na morte desses últimos, mas sempre a motivação era
eminentemente política e não religiosa.
Muitos querem dividir o ministério de Jesus em duas fases: na
primeira fase ele teria considerável habilidade em atrair multidões,
seguida por uma segunda etapa marcada como um fracasso de público,
com o abandono de discípulos e obrigando o mestre galileu a se dirigir
à Jerusalém, buscando um novo público, criando condições para um
desfecho violento para sua vida. Essa visão carece de maior suporte e se
baseia quase que unicamente em Jo 6:66, que reflete muito mais os
conflitos internos da comunidade joanina, recém saída do judaísmo, no
século I d. C., e não se relaciona a fato reais do ministério do Cristo.
Nessa comunidade, a igreja perdia membros para outras cédulas cristãs,
além daqueles que retornavam ao judaísmo, por isso os judeus são tão
veementemente atacados nesse evangelho. Assim, os autores
procuravam mostrar que tudo que ocorria ao seu redor já teria ocorrido
com Jesus, mas nada atesta que eles estavam certos. Jesus nunca teve
momentos só seus, em função dos muitos que acorriam para lhe pedir
auxilio e seus discípulos mais próximos nunca se afastavam dele.
Esse versículo é um acréscimo cheio de teologia da Igreja, para
a própria Igreja. Lembremo-nos que a comunidade que deu origem ao
Evangelho de João tinha um núcleo constituído de homens e mulheres
260
que se viam em pé de igualdade e, à medida que pessoas de fora
afluíam, a condição dessas últimas ficava insustentável. Para a época
era impensável tal condição igualitária no mundo Mediterrâneo, cheios
de códigos de conduta, honra e vergonha. Considere em seu coração,
por apenas alguns minutos, a condição das mulheres no Oriente Médio
no presente e imagine como era há dois mil anos...
Após décadas de dissensões internas, o papel das pessoas que
fundaram a comunidade foi sendo apagado e o grupo retornou à
corrente principal da vida cristã, deixando perdidas muitas tradições
verdadeiras sobre a maneira especial de Jesus de encarar as diferenças
através do realce das semelhanças. Sem esse texto, inexistem quaisquer
outros elementos que evidenciem uma diminuição da capacidade de
Jesus em reunir a população em suas pregações. O contrário, entretanto,
é mostrado em todos os evangelhos que abordam as atividades de Jesus
por ocasião de sua última Páscoa, o qual aparece cada vez mais cercado
de seguidores até o fatídico e carismático final de sua vida terrena.
Não se pode negar, contudo, que muitos que passaram a segui-lo
nos últimos dias de sua vida terrena estivessem mais interessados na
possibilidade de utilizar o carisma de Jesus em um possível movimento
de resistência à ocupação romana. Destacando-se, entre aqueles que
acreditavam que o messias de Nazaré iria dar início a uma revolta, a
Jesus: homem e espírito
261
figura de Judas Iscariotes, oriundo da cidade de Kerioth. Essa
expectativa se cristalizou principalmente depois dos graves embates que
ocorreram no Templo de Jerusalém, quando Jesus se insurgiu com a
prática absolutamente legal, mas imoral, dos cambistas nas adjacências
da sagrada construção.
Essas pessoas que acompanhavam o Messias judeu eram
basicamente pobres ou miseráveis, desprovidas do básico, mas não
podemos nos esquecer de que os textos canônicos apresentam
numerosos exemplos de pessoas abastadas que o seguiam pela Galiléia
e colaboravam com o sustento do grupo. Outros indivíduos ricos, como
Nicodemus ben Gurion, o famoso fariseu que debatia com Jesus sobre
como o homem poderia atingir o Reino de Deus, e José de Arimatéia,
que cedeu o túmulo para o mestre, são exemplos de pessoas abastadas
que tinham satisfação em dialogar com Jesus, mesmo que não possam
ser considerados seus seguidores, segundo os textos canônicos.
De fato, o relacionamento de Jesus com esses personagens era
muito mais amplo do que podemos supor, mostrando que, mesmo
dentro do farisaísmo, ramo mais modernizante do judaísmo de então,
muitos estavam descontentes com a religião formal praticada e viam em
Jesus uma corrente de grande inspiração. Esse ponto de vista é
reforçado pela posição do lendário rabino Gamaliel, que anos depois da
262
crucificação, iria libertar os apóstolos e sugere que, se a nova fé se
espalhasse, era sinal de que ela tinha o apoio divino e, dessa forma,
nada deveria ser feito contra ela. Não nos esqueçamos que todos os
homens dotados de cultura ou posses que se interessaram por Jesus
eram fariseus. O grupo farisaico era o mais preparado para entender a
mensagem messiânica do mestre e muitos o fizeram; não se esqueçam
que os fariseus admiravam profundamente o irmão de Jesus, Tiago, o
qual seria morto de forma violenta, 30 anos após a crucificação de Jesus
e foram os fariseus que exigiram justiça para a autoridade romana; algo
impensável se utilizarmos apenas as fontes canônicas em nosso estudo.
Obviamente a Palestina era constituída basicamente de pobres,
mas o próprio Simão Pedro, André, seu irmão, João e Tiago, todos
próximos de Jesus, eram pequenos empresários da pesca, contratavam
empregados e esse era um ramo muito próspero no Mar da Galiléia.
Temos ainda Levi/Mateus, coletor de impostos, Zaqueu, um funcionário
real de Herodes Antipas, Eleazar (Lázaro) e suas irmãs, bem como o
dono dos aposentos que recebeu Jesus para a Última Ceia, e a mulher
anônima, mas rica o suficiente para comprar, para Jesus, perfume
equivalente a um ano de salário de um trabalhador diarista, entre outros
personagens que desconhecemos a identidade.
Jesus: homem e espírito
263
O mestre não parecia excluir ninguém de seu círculo, de forma
que devemos ter cuidado com movimentos que, em nome dele, pregam
a miséria ou lutam contra o “estado” de riqueza. A riqueza em si não
configura crime em nenhuma crença religiosa, mas sim o apego à
mesma e o inadequado uso que dela fazemos; como tudo na vida, existe
uma responsabilidade em tudo que recebemos de Deus. Somos fiéis
depositários dos bens divinos, apenas isso, e a Ele prestamos contas do
que fizemos com a prosperidade que recebemos.
Muitos autores modernos impregnam de postura leninista-
marxista a mensagem de Jesus; uma mensagem que se destacava porque
não vinha para dividir, mas somar: o rico e pobre na mesma mesa,
mesmo que Jesus advogasse a libertação da dependência de riquezas
pessoais. Ele pregava que a riqueza deveria ser colocada a serviço do
homem e não o oposto.
A literatura judaica posterior, como a Mishná, redigida por volta
de 200 d. C., descreve multidões desse tipo como sendo constituídas de
judeus comuns que não pareciam cumprir as regras de pureza ritual ou
não praticavam, com rigor, a lei mosaica da forma com que as
autoridades rabínicas desejariam, mas o texto procura, de certa forma,
diminuir a penetração da mensagem messiânica entre as classe mais
cultas da sociedade e está cheio de preconceitos.
264
Nos evangelhos, o que mais movimenta essas multidões é a
realização de milagres e muitos parecem estar dispostos a assumir que
Jesus é o profeta ou messias enviado por Deus, provocando temor nas
autoridades judaicas. O Evangelho de João utiliza essas multidões como
uma caixa de ressonância para sua própria teologia, dificultando uma
caracterização mais detalhada desses populares, mas pode-se inferir
pelas descrições do cânone e, em particular, nas Narrativas da Paixão,
que a maioria dessas pessoas era mais movida por necessidades de
momento e curiosidade e nunca cruzou o divisor que separa o curioso
do crente; ao menor distúrbio poderiam ter debandado para qualquer
direção, embora alguns tivessem um comprometimento maior com o
movimento e seriam a semente do judaísmo cristão que, posteriormente,
se transformou em cristianismo judaico e cristianismo greco-romano
(que hoje é o único disponível nas formas mais literalistas da fé).
Exemplos do comportamento das massas que seguiam Jesus
pode ser visto em todo e qualquer lugar no presente. Enquanto o
conteúdo de uma pregação exige medidas periféricas para a obtenção de
uma graça divina, todos aplaudem, mas quando, para tanto, se exige
mudança íntima e se fala de responsabilidade pessoal, as idéias ferem e
as pessoas abandonam o teatro original e se voltam para cultos e
atitudes mais estereotipadas. Reparem nas sessões de desobsessão,
Jesus: homem e espírito
265
enquanto os irmãos desencarnados enfermos são afastados, suas
pretensas vítimas respiram aliviadas e dizem “aleluias” aos quatro
cantos, mas quando retornam, atraídas pelos pensamentos dos antigos
obsediados, esses últimos renegam a doutrina espírita, acusando-a de
ser fraca e não libertar os homens. Jesus disse que a verdade liberta e a
verdade é que somos iguais aos nossos inimigos, motivo pelos quais
eles não nos abandonam. No fundo, podemos dizer que eles apenas nos
deixam, quando deixamos de ser o que somos, em um lento e difícil
processo de renovação (para ver detalhes, leiam “Diálogo com as
sombras”, de Hermínio C. Miranda, o melhor livro sobre o tema da
obsessão, na nossa modesta opinião, e “Reforma íntima sem martírios”,
de autoria espiritual de Ermance Dufaux).
Além disso, enquanto Jesus era visto como um possível líder
que entrava em Jerusalém, quase 30% da população da cidade o
aclamava como o rei que havia de chegar. Aos gritos que traduziam
mensagens como "viva o Filho de Davi", "santo, santo, santo é o Deus
de Abraão que o enviou", e "Glória", eles recebiam um “Jesus”
triunfante, mas, para decepção de muitos, pacífico e não guerreiro.
Quando ele foi preso e despertou a máquina romana, a mais eficiente
que o mundo divisara até então, quase todos sumiram e se acovardaram.
Todos nós estamos prontos para os sacrifícios da boca para fora. Muitos
266
de nós, espíritas de carteirinha, estavam lá e, se nos for dada a
permissão divina, poderemos nos lembrar desses fatos e mesmo assim
poderemos sentir que o mestre dos mestres manteve a serenidade
interior, diante das mais absolutas e profundas traições daqueles que,
como nós, diziam amá-lo.
O espírito Eleazar nos colocou que os líderes do Sinédrio
receavam não apenas o volume de apoio que Jesus recebia do mundo
judaico em Jerusalém, mas principalmente a participação de membros
influentes do Grande Sinédrio, de origem farisaica, que eram vistos se
referindo elogiosamente a Jesus. Se os romanos descobrissem o
envolvimento de muitos ali, no Sinédrio, com o movimento daqueles
quase miseráveis que vinham do norte, a própria autoridade judaica
corria o risco de ser eliminada. Assim, fica coerente a idéia de uma
prisão às escuras e uma entrevista com um grupo de eminentes
saduceus e fariseus durante a noite, em clima de triagem, nas Narrativas
da Paixão. Ali, todos tinham algo a perder com a revolta e a expressão
“rabo preso” se aplicava a tantos quantos ali se encontravam, com
exceção de Jesus, que via a realização de suas visões de criança.
Esses homens, no umbral e abismos subcrostais, seriam
acusados pelas próprias consciências dos mais odiosos crimes contra a
evolução do planeta e retornariam à Terra na condição de religiosos e
Jesus: homem e espírito
267
muitos sofreram martírios nas mãos dos imperadores de Roma. Apenas
alguns ainda se mantém aferrados às suas concepções antigas e servem
a falanges tenebrosas. A lei pode demorar, mas é inexorável e nossas
atitudes ditam a forma com que ela é aplicada.
A igreja cristã primitiva, ainda parte do judaísmo maior, recebia
alguma simpatia do ambiente judaico adjacente durante a primeira ou
segunda gerações de cristãos, antes da revolta judaica de 66-73 d. C., o
que permitiu alguma convivência entre essas comunidades. Os cristãos
judeus eram vistos como simples "judeus" pelos demais seguidores de
Yaveh, o nosso Deus também. Eram tidos como justos e honrados,
seguidores de homens que amavam a verdade e reverenciavam as leis
mosaicas e mantinham suas obrigações junto ao judaísmo mais amplo,
como sugere o próprio historiador Josefo. As descrições de Tiago, o
irmão de Jesus, evidenciam satisfatoriamente essa relação. Em alguns
casos, os fariseus continuaram escutando os líderes do movimento
cristão, como o próprio Tiago, a quem denominavam de O Justo, e cuja
morte foi o centro de uma revolta contra o sumo sacerdote, que acabou
sendo destituído pelo poder de ocupação, para evitar tumultos.
As boas relações com os judeus acabaram no longo epílogo que
se deu nas mãos dos soldados romanos, o que não ficou registrado no
cânone, até porque, depois da revolta contra a ocupação romana, os
268
cristãos queriam se afastar da imagem que Roma tinham dos judeus. É
bem possível que os muitos judeus que viam Jesus como o messias
tenham retornado para o judaísmo tradicional, uma que não aceitavam a
visão do mestre galileu sendo divinizado, como o Deus Filho, como
ocorria com as comunidades greco-romanas, tão acostumadas com a
figura de homens-deuses ou semi-deuses, ou se transformaram em
algum dos muitos grupos cristãos marginais, que mantinham um
vínculo com o judaísmo e não aceitavam Santíssima Trindade, à
semelhança do espiritismo moderno, que vê a figura de Jesus como o
escolhido, o mensageiro de Deus, bem como o seu representante maior
entre nós, para zelar pelos destinos do mundo e elo de ligação com toda
a trama da criação, em um fenômeno de co-criação, o que explica
porque o evangelho diz que Jesus era o Verbo Divino que se fez
presente entre nós, na forma humana.
Entre as pessoas que seguiam Jesus merecem destaque aquelas
que foram chamadas a fazê-lo e aquelas que passaram a conviver com
ele tornando-se parte de um grupo mais íntimo conhecido como “os
discípulos”. A primeira questão que deve ser levantada se refere à real
existência de um círculo íntimo de discípulos, uma vez que nos
evangelhos esse termo aparece dezenas de vezes (72 vezes no texto de
Mateus, 37 em Lucas, 46 em Marcos e 78 em João, 28 vezes em Atos),
Jesus: homem e espírito
269
não sendo encontrado no restante do Novo Testamento. Existem
evidências de que o termo “discípulos” não era a forma dos cristãos
falarem sobre si mesmos e sua utilização parece, em Atos dos
Apóstolos, uma forma de construir uma ligação entre o ministério
público do mestre galileu com o período inicial da igreja.
Essa ligação era necessária para os continuadores de Jesus, que
precisavam legitimar a sua pregação, os seus pontos de vista e isso não
era muito fácil, visto que, em Jesus, a superioridade moral era tamanha
que as oposições se revestiam de agressividade irracional, motivada
pela ação de forças oriundas das numerosas falanges das trevas que
tentavam minar-lhe o caminho, em sintonia com as limitações
espirituais das pessoas que se rebelavam contra as palavras justas, mas
por vezes severas, do galileu. Muitas vezes a oposição se baseava na
falta de pretensos títulos da parte de Jesus, um modesto homem que
vivia de forma simples e que possuía apenas o básico para sobreviver.
Segundo Meier, a versão grega do Antigo Testamento, a
Septuaginta, não traz os termos “mathetes ou mathetai” (discípulo, no
singular e plural, em grego), com exceção de 1Crônicas 25:8, quando
aborda a existência de um músico aprendiz. Mesmo na literatura de
Qumran essa terminologia não é encontrada. Fílon de Alexandria, um
escritor judeu do período inter-testamental (25 a.C. a 50 d. C), emprega
270
esses termos, mesmo que muito raramente, dando-lhe a conotação de
estudante-aprendiz ou uma concepção mística de alguém sem defeitos
que recebe ensinamentos diretamente de Deus. Também Josefo, com
extensa produção literária, raramente emprega essa palavra grega, onde
atribui extensa gama de sentidos, desde a um aprendiz de algum ofício
até a clássica visão do par mestre-seguidor/aprendiz.
Acredita-se que o uso do termo “discípulo(s)” tenha se originado
com a influência grega que se fazia presente na Palestina, mesmo no
interior dos círculos mais judaizantes e não era muito empregado em
meados do século I d. C., tendo se disseminado nos séculos seguintes.
Essa expressão praticamente não existe no judaísmo do Antigo
Testamento e do período inter-testamental, com exceção do mundo de
Jesus e do Batista, embora nesse último caso não saibamos o tipo de
relacionamento mestre-discípulo que se configurava. Outro aspecto que
corrobora com a historicidade da existência dos discípulos de Jesus
reside no fato de que ele próprio é descrito como tendo pertencido ao
círculo do Batista, de onde passou a batizar e a pregar, além de criar um
círculo de discipulado próprio.
A relação mestre-discípulo de Jesus e seus seguidores se mostra
muito semelhante à observada ente os rabinos dos séculos seguintes e
apresenta nuances dos filósofos cínico-estóicos do mundo
Jesus: homem e espírito
271
Mediterrâneo, onde as pessoas comiam, andavam, dormiam e viajavam
em grupo, a unidade básica. Com efeito, juntar-se a um círculo de
discípulos era como entrar em uma nova família (Mc 3:32-35; 10:29-31
e seus equivalentes no texto de Lucas e Mateus). Como uma força
especial que unia ainda mais o grupo, tem-se que Jesus não era apenas
professor, como aqueles que o sucederam, mas também um profeta que
curava, se assemelhando e suplantando o par Elias-Eliseu do Antigo
Testamento, mas sem igual em lugar algum, antes e depois na história
humana.
À medida que o tempo passava, no círculo mais íntimo do
mestre, ficava claro que ele representava a personificação do próprio
Reino de Deus, em todos os seus matizes e nuances, e sua vida parecia
exemplificar o caminho que ele queria para seus discípulos; o
desprendimento, a abnegação, o amor ao próximo e, acima de tudo, ao
Pai Eterno. Dessa forma, a proximidade acolhedora que Jesus oferecia
era tipicamente motivada pela necessidade de prover aos seus
continuadores o máximo de formação e instrução dentro de um contexto
turbulento que, quase sempre, se fazia presente. Jesus era cercado por
todo tipo de carência espiritual, mais do que material, onde quer que
fosse, e nesse pântano de relações humanas infernais e purgatoriais, ele
escolheu e lapidou diamantes.
272
6.2 O que caracterizava um discípulo de Jesus?
Sabemos que uma característica ímpar do mestre galileu era que
ele tomava a iniciativa de chamar o futuro discípulo, enquanto o normal
era exatamente o inverso. Esse chamado nem sempre era atendido,
como no caso do homem rico (Marcos 10:17-22). Também merece
destaque o tom urgente do chamamento, não dando tempo para o
candidato olhar para trás (“Deixa que os mortos enterrem seus
mortos”).
A despeito de Jesus possuir a postura de um moderno instrutor e
mestre, não havia um programa ou período de estudos após o qual o
discípulo retornaria para seu lar e família. Seguir Jesus significava
deixar tudo para trás - casa, família, profissão-, literalmente TUDO e
desistir de segui-lo era como se mostrar inapto ao reino de Deus, que
logo chegaria, algo semelhante a uma deserção (Marcos 10:17-22), pelo
menos era assim considerado pelos seus seguidores mais próximos.
O próprio Jesus alertou seus discípulos da possibilidade de dias
turbulentos durante seu ministério e existem múltiplas confirmações de
fontes sobre esse aspecto. Ele começou o próprio ministério público
sabendo quais eram o riscos e quais seriam as conseqüências que se
desenrolariam no mundo nos séculos vindouros, alertando, a todos, das
Jesus: homem e espírito
273
dores e padecimentos que teriam, a despeito de todo o conforto que o
Pai lhes reservava. Porém, algumas das advertências de Jesus nos textos
canônicos não provém dele, mas da igreja primitiva que estava
passando por sérias crises internas e frente ao poder romano
estabelecido.
Sabemos que muitas mulheres seguiam o mestre Jesus e, no
entanto, apesar de possuírem as características de verdadeiros
discípulos, não são assim chamadas nos evangelhos. Muitas explicações
vêm sendo formuladas para aclarar esse aparente disparate, visto que o
próprio Jesus não as tratava com qualquer preconceito, ao contrário do
mundo Mediterrâneo de então.
Teria a igreja primitiva, sofrendo da influência do ambiente que
a cercava, suprimido o papel dessas mulheres que, dentre outras
atribuições, proviam o alimento para Jesus e para os outros?
É possível, para não dizer provável, que isto tenha ocorrido em
parte, mas mesmo assim teríamos que concordar que o termo
“discípulos” nunca foi aplicado a elas, independentemente do papel que
um dia tiveram na comunidade.
Por outro lado, o termo “discípulos”, em grego, poderia incluir
as discípulas também. Se assim fosse, porque os evangelistas não
empregam o termo mathetria, singular de “discípulas” para descrever
274
alguma delas em particular, embora o uso de mathetes, o equivalente
singular masculino é tão comum? A resposta pode estar associada à
língua grega, uma vez que essa palavra mathetria é relativamente rara
no grego da época; no cânone, apenas Lucas a emprega e isso não se dá
em seu evangelho e sim em Atos dos Apóstolos (Atos dos Apóstolos 9:
36), possivelmente por não ter se sentido á vontade para introduzir essa
inovação, que não existia nas línguas semitas da palestina.
Estudiosos como J. P. Meier advogam que, uma vez que os
evangelistas não conheciam histórias específicas de chamamentos de
Jesus a essas mulheres, acharam por bem omitir a denominação a que
elas de fato faziam jus.
As mulheres, como Maria de Magdala, curadas por Jesus, viam
nessas curas o equivalente ao chamamento e passaram a seguir o grupo
do mestre, sendo que essa história tem ressonâncias na cura do cego
Bartimeu (Marcos 10:46-52), onde a cura leva ao discipulado. Além
desse aspecto, no mundo machista da época, é pouco provável que às
mulheres, por vezes casadas, fosse permitido seguir um profeta
itinerante na companhia de homens sem a anuência dos seus
companheiros e do líder do grupo, corroborando para que nós
venhamos a considerá-las verdadeiras discípulas do messias de Nazaré.
Por fim, deve-se ressaltar que as palavras “discípulos e discípulo”, em
Jesus: homem e espírito
275
hebraico e aramaico, somente existiam nas suas formas masculinas,
sendo que, desta forma, embora essas mulheres fossem, de fato,
discípulas, não existia um substantivo que pudesse ser utilizado de
maneira satisfatória para denominá-las na língua de Jesus.
Infelizmente, mais uma vez, a exclusão das mulheres de papéis
centrais de quase todas as igrejas cristãs no presente não encontra eco
nas pegadas de Jesus e somente se estabeleceu como conseqüência de
nossa própria inferioridade e preconceito. Essas mulheres, em particular
a controvertida Maria de Magdala, por vezes transformada em atriz de
filmes e livros de gosto exótico, presenciaram a crucificação,
perambularam com os demais discípulos, eram responsáveis, em parte,
pelo sustento e aporte financeiro do movimento, foram testemunhas do
sumiço do corpo físico de Jesus e foram as primeiras testemunhas da
imortalidade de seus excelso espírito (a ressurreição), pregavam (o que
era totalmente inovador para o judaísmo da época) e discutiam com o
mestre, sendo que muitas das memórias históricas que atestam a missão
desempenhada por elas podem ser lidas em Lucas 8,1-3. Tudo evidencia
que Jesus as considerava e as via como discípulas e das mais queridas e
respeitadas por ele, a ponto de provocarem crises de ciúmes nos
discípulos do gênero masculino.
276
6.3 Outros seguidores desse lado e do outro lado do véu.
Além dos homens e mulheres que acompanhavam Jesus por seus
deslocamentos pela Galiléia e, posteriormente, Judéia, temos a presença
de pessoas amadas pelo mestre e que com ele tinham
comprometimento, mas sem a necessidade de deixar seus lares e segui-
lo em seus deslocamentos. Entre esses personagens destaca-se Zaqueu
(Lucas 19:1-10), Eleazar/Lázaro e suas irmãs (João 12:1-2), o anfitrião
anônimo da Última Ceia (Marcos 14:13-15), o leproso Simão (Marcos
14:3), dentre possíveis outros. Embora não lhes seja atribuído o
substantivo “discípulo”, é claro que essas pessoas desfrutam de um grau
especial de intimidade com o Cristo.
A maioria desses personagens que emergem das sombras para se
tornarem adeptos de Jesus, dando-lhe abrigo e alimentação, provem dos
círculos de pessoas que receberam “milagres” e foram curadas de
enfermidades ou submetidas a desobsessões. Muitos desses espíritos
conseguiram a graça de encontrar com Jesus no plano terreno para dar
testemunho do Reino de Deus, como etapa indispensável da lei de causa
e efeito, ação e reação, alçando planos muito mais altos de evolução
como conseqüência de sua própria elevação espiritual.
Essas pessoas, com suas limitações e doenças, tinham a
oportunidade de mostrar a misericórdia divina e se desvencilhavam dos
Jesus: homem e espírito
277
últimos liames que as mantinham presas ao mundo de então. No
presente, muitos desses nossos irmãos são responsáveis por colônias de
desencarnados, instituições de trabalho e edificação espiritual e outras
nobres atividades, não esquecendo jamais, como também nos fala o
nosso querido Emmanuel, hoje já encarnado, os minutos em que
tiveram contato com o mestre dos mestres. Quem fitava os olhos de
Jesus, via o glorioso planejamento divino para nosso mundo e o amor
incomensurável que Ele, nosso Pai, desvelava para todos os que O
encontravam através de seu escolhido, o ungido, o messias.
Embora essas considerações possam fugir dos objetivos desse
estudo, não podemos nos furtar de dizer que Jesus tinha a companhia de
multidões de espíritos desencarnados de todos os matizes, que envoltos
pela impressionante energia emitida pelo mestre, acompanhavam-no a
fim de obter, em suas palavras, as mesmas dádivas que os encarnados
buscavam. Não foi apenas a cegueira, as paralisia e as letargias físicas
que o Cristo curou; curas muito mais proeminentes eram realizadas pela
sua vontade em todos os planos que nos envolvem. Multidões muito
maiores se mantinham ao seu lado, em outras esferas, somente visíveis
a ele e poucos dos seus eleitos, de forma que a vida de Jesus foi coroada
como um duplo ministério. Em diversas ocasiões, ele se ausentou do
278
corpo físico e, em desdobramento, ministrava a palavra divina até nos
ambientes mais densos junto à crosta e áreas abissais.
Essas passagens foram omitidas dos textos neo-testamentários
apenas porque os evangelistas não conseguiam entender a extensão da
missão de Jesus, procurando dar sentido apenas aquilo que
compreendiam. Apenas no texto joanino, escrito em uma comunidade
cristã na Ásia Menor ou na Síria, as demais atividades do mestre galileu
estão implícitas na própria estrutura narrativa. Nesse evangelho, com
fortes inclinações espiritualistas, mais esclarecedoras do que as
passagens narradas são as informações que brotam das entrelinhas.
6.4 O Grupo dos Doze
Não se deve confundir o grupo denominado de “os Doze” ou os
“Doze Apóstolos” com o grupo de discípulos de Jesus, visto que nem
todos os discípulos acabaram se convertendo em apóstolos e muitos
questionam a existência desse grupo mais íntimo de Jesus. Alguns
personagens denominados de discípulos, como Levi, o coletor de
impostos, não parecem ter pertencido ao grupo mais íntimo dos Doze.
O termo “apóstolo”, em aramaico e hebraico, era empregado
para designar aqueles enviados em missão, mensageiros. Nos
evangelhos de Marcos e Mateus, essa palavra apenas é empregada
Jesus: homem e espírito
279
quando esses enviados retornam ao seio dos seguidores de Jesus. É esse
retorno de uma missão que faz do discípulo, um apóstolo. Na igreja
primitiva o termo “apóstolo” passou a ser usado de forma fixa para se
referir a um grupo específico de discípulos, modificando o sentido
original, mais amplo. Contudo, isso não significa que um grupo mais
próximo de Jesus, composto por 12 discípulos, não existisse durante seu
ministério público.
Jesus acreditava na redenção de Israel para o advento do Reino
de Deus e isso passava pela reunião das doze tribos originais, dispersas
pela diáspora ao longo de 1000 anos. Daí a importância do número
doze, onde o mestre simbolizava que, dentro de seu grupo, havia uma
mensagem de salvação para toda a nação hebraica e, posteriormente,
para todo o gênero humano. Somente o evangelho de Marcos traz 10
menções ao grupo dos Doze, quase sempre com conotação negativa,
sem considerarmos a título de múltipla confirmação, os demais
evangelhos.
O grupo dos apóstolos ainda é citado por Paulo (1Cor 15, 3-7).
Contudo, Paulo também cita Andrônico e Júnia como apóstolos e eles,
obviamente, não faziam parte do grupo de discípulos conhecido como
“os Doze”, mas eram emissários de igrejas locais. Aparentemente,
deve-se a Lucas a identificação de “apóstolos” com o grupo dos
280
“Doze”, que acabou sendo convertido em “os Doze Apóstolos”, embora
em Atos dos Apóstolos ele também inclua Barnabé e Paulo como
apóstolos.
Algumas menções aos apóstolos mostram tradições anteriores à
observadas nos evangelhos (Marcos 3:6-19; 14:43). Contudo, a maioria
dos críticos se apega às diferenças entre as listas de apóstolos
encontradas nos evangelhos sinópticos, para desacreditar a existência
desse grupo. O que essas diferenças evidenciam é a existência de duas
tradições diferentes, uma ligada a Marcos e outra da fonte L, sobre a
composição do grupo dos Doze. A própria citação de Judas Iscariotes,
"o traidor", como um dos Doze, teria sido omitida se ela apenas
remontasse ao interesse redacional das comunidades que deram origem
aos evangelhos, o que nos leva a deduzir que a presença de Judas como
um dos principais apóstolos já estava arraigada na primeira geração de
cristãos, tornando complicada sua supressão da lista de apóstolos. Era
uma vergonha para a igreja primitiva colocar que o messias havia sido
traído por um dos seus mais íntimos seguidores, de forma que a daquele
nome nas citações dos apóstolos é prova de que esse personagem
realmente existiu e comprova a existência do grupo dos Doze.
No quadro abaixo, os nomes dos apóstolos são apresentados
como citados nos evangelhos. Apenas o nome “Tadeu” e “Judas de
Jesus: homem e espírito
281
Tiago” representam problemas mais sérios. Nesse sentido, não se deve
ceder à tentação de sugerir que esses dois nomes representem a mesma
pessoa (Judas Tadeu), visto que nada sugere essa harmonização. De
fato, eram duas pessoas diferentes, que se afastaram do grupo mais
íntimo do mestre, em função das severas exigências a que esses
abnegados missionários eram submetidos na época. Nos casos bastante
raros de desistência da provação, com a saída de um de seus membros,
ocorria sua substituição por outro discípulo.
282
Tabela 1 - Lista dos apóstolos segundo avaliação de Robert Eisenman e John
P. Meier.
Texto canônico utilizado
Marcos 3:16-19 Mateus 10:2-4 Lucas 6:14-16 Atos dos
apóstolos 1,13
Simão Pedro Simão Pedro Simão Pedro Pedro
Tiago, filho de Zebedeu
Tiago, filho de Zebedeu
Tiago Tiago
João, irmão de Tiago
João, irmão de Tiago
João João
André André, irmão de
Pedro André, irmão de
Pedro André
Filipe Filipe Filipe Filipe
Bartolomeu Bartolomeu Bartolomeu Bartolomeu
Mateus Mateus, o publicano
Mateus Mateus
Tomé Tomé Tomé Tomé
Tiago, filho de Alfeu
Tiago, filho de Alfeu
Tiago de Alfeu Tiago de Alfeu
Tadeu Tadeu - -
Simão, o cananeu Simão, o cananeu Simão, o zelote Simão, o zelote
Judas Iscariotes Judas Iscariotes Judas Iscariotes -
- - Judas de Tiago Judas de Tiago
Jesus: homem e espírito
283
As discrepâncias nas listas dos Doze podem refletir a tradição
oral que se manteve por uma ou duas gerações na igreja primitiva e,
depois de décadas, foram incorporadas aos textos canônicos.
O professor Eisenman, com alguns argumentos bastante
coerentes, enxergam nessas incongruências da lista de apóstolos, uma
tentativa de confundir deliberadamente as novas comunidades cristãs
em formação, quanto á verdadeira origem dos apóstolos de Jesus e seu
vínculo com o mestre. Essas tentativas de fato existiram posto que a
família de Jesus era o centro de referência da igreja na Palestina e isso
era indigesto para as comunidades que se formavam no mundo greco-
romano, mas não podemos ver nessa realidade as mãos dos seguidores
diretos de Jesus, mas sim daqueles que os sucederam nas décadas
seguintes, já separados de todo vínculo físico com o mundo do mestre e
já sofrendo a influência do ambiente gentio que os cercava.
A presença do complemento “publicano” a “Mateus”, presente
na lista de apóstolos do Evangelho de Mateus pode ser uma tentativa de
harmonizar o texto com Marcos, que mostra o chamado de Jesus a um
publicano denominado “Levi”. A presença de um segundo Judas, como
aponta a lista do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos, pode ser
confirmada pelo Evangelho de João (14:22), que narra uma pergunta
feita a Jesus por esse personagem.
284
A segurança dessas fontes históricas sobre a existência do grupo
do Doze é significativa, mesmo durante o ministério público de Jesus.
As controvérsias sobre seu papel e características básicas evidenciam
que, logo após a crucificação, tiveram seu brilho eclipsado por novas
lideranças da igreja que nascia e acabaram por desaparecer do
cristianismo. As histórias que associam esses personagens à conversão
dos gentios, como o papel de Tiago, na Espanha, nada mais são do que
lendas sem conexão com a realidade. Dos 12 apóstolos, apenas Pedro
parece ter executado viagens missionárias (à Samaria, à Antioquia e,
talvez, Corinto).
A maioria dos apóstolos estava longe de entender a palavra do
divino mestre e muitos ainda retornaram ao nosso plano físico para dar
continuidade à programação reencarnatória pretérita, que deixou de ser
concluída satisfatoriamente, como ocorreu com Judas, de Kerioth, que
sofreu dores conscienciais cruciantes nos séculos que se seguiram ao
calvário e somente depois de reencarnações penosas nas lidas medievais
e meados da idade moderna, encontrou a paz que Jesus havia prometido
a todos que carregassem a sua própria cruz na senda da redenção.
Jesus não foi único ao criar um grupo de doze seguidores mais
próximos, uma vez que os qumranmitas, possivelmente essênios,
também possuíam essa estrutura, a qual era liderada por três sacerdotes,
Jesus: homem e espírito
285
sendo que os serviços no Templo do final dos tempos deveria ser
executado por doze sacerdotes principais e doze levitas. Não se pode
esquecer que, na igreja primitiva, em Jerusalém, também existiam três
líderes principais, os “pilares” denominados por Paulo (Tiago, irmão de
Jesus e líder maior, Pedro e João).
6.5 E os apóstolos ?
Segundo o padre católico, J. P. Meier, pouco podemos falar com
certeza sobre esses personagens. A maioria das considerações sobre os
apóstolos é constituída de invencionices que objetivavam preencher o
vazio sobre vida de grande parte daqueles que seguiram o ministério do
mestre Jesus. As principais observações desse erudito são apresentadas
a seguir.
1. Bartolomeu: praticamente nada. Seu nome significa, muito
provavelmente, “filho de Tolmai” ou “filho de Tolomeu”. A partir
do século IX, esse personagem passa a ser associado com Natanael,
presente no Evangelho de João como um apóstolo;
2. Judas de Tiago e Tadeu: o primeiro aparece apenas na lista de
Lucas e Atos dos Apóstolos e seu nome possivelmente reflete o
nome de seu progenitor. Talvez seja o “Judas, não o Iscariotes”
citado por João. Numa tentativa de harmonizar esse “Judas” com o
286
“Tadeu”, que aparece nas listas de Marcos e Mateus, a cristandade
logo o transformou, sem nenhuma base racional, em Judas Tadeu, o
santo das causas impossíveis. Essa associação de nomes (Judas
Tadeu) é artificial e não deve ser empregada.
Também existe confusão associando esse personagem com
“Judas, irmão de Jesus”, sendo que possivelmente seria esse último
o autor de parte da epístola que leva seu nome, ou pelo menos a
origem do centro da mensagem presente na epístola escrita
provavelmente por um discípulo de Judas, filho de José e irmão de
Jesus e Tiago (ele se denomina de “Judas, servo de Jesus e irmão de
Tiago”), possivelmente o mesmo Judas, o zeloso, da tradição greco-
siríaca. Esse personagem acabou sendo fundido na imaginação
cristã posterior com outros notáveis, como Tomé e Simão,
possivelmente também irmãos do mestre galileu. Percebam o papel
da família do mestre após a crucificação!
Essa proeminência da família de Jesus na igreja primeva
criava inconvenientes para a igreja romana, que ascendia ao poder e,
como coloca Emmanuel em seu brilhante livro "A Caminho da Luz",
psicografado por Francisco Cândido Xavier, logo se perderia das
tradições verdadeiramente cristãs para poder absorver o poder
Jesus: homem e espírito
287
temporal que o império romano em decadência transferia ao bispo
local;
3. Tiago de Alfeu: possivelmente filho de alguém denominado “Alfeu”
e erroneamente conhecido, na tradição cristã, como Tiago Menor.
Alguns autores eruditos consideram possível, mas não provável, que
esse Tiago seja irmão de Levi, o publicano chamado para o
discipulado, mas não para o grupo mais íntimo dos apóstolos.
4. Mateus: talvez corresponda ao publicano Levi, mas Marcos e Lucas
o diferenciam desse discípulo, sendo que apenas o Evangelho de
Mateus faz essa associação. Deve-se ter cuidado quando se atribui a
autoria desse evangelho a esse personagem, como discutido
anteriormente;
5. Filipe: é apenas um nome na lista dos apóstolos presentes nos
evangelhos sinópticos, enquanto passa a ter um papel de relevância
no texto joanino, quase sempre acompanhado de André e, como
esse último, teria saído do círculo de discípulos do Batista.
Da mesma forma que o nome André, o nome Filipe também
é de origem grega e o Evangelho de João atribui à Betsaida, cidade
de André e de Pedro, a terra natal desse apóstolo. Aparece como um
interlocutor entre os peregrinos de origem grega, que o procuram
288
para um encontro com Jesus. Ele não deve ser identificado com o
chefe do grupo de cristãos helenistas em Atos dos Apóstolos.
Recentemente, uma equipe de arqueólogos descobriu a
pretensa tumba desse apóstolo na atual Turquia, corroborando com
a participação desse apóstolo em atividades missionárias junto aos
gentios de língua grega, como apresentado acima.
6. André: irmão de Pedro e com ele chamado por Jesus para serem
“pescadores de homens”. Apenas um nome na lista de apóstolos.
7. Tomé: adquire maior importância no Evangelho de João e, mesmo
aí, sua imagem parece refletir a visão dos teólogos da igreja de João,
sendo utilizado para declarações revelatórias de Jesus. Quase
sempre é tratado em tom pejorativo. Esse nome deriva do aramaico
e significa “o gêmeo”, enquanto seu equivalente grego é “didymos”,
daí a denominação de Dídimo Tomé em textos cristãos. Contudo,
não existem evidências de quem teria seu irmão gêmeo no círculo
dos seguidores do mestre galileu. Assim, conhecemos apenas o seu
“apelido” ou segundo nome.
8. Simão, o zelote: por vezes esse segundo nome é utilizado pelos
críticos para evidenciar que Jesus tinha relações com grupos
nacionalistas judeus, zelosos com a lei mosaica, em meados do
século I d. C., mas não se pode esquecer que esse grupo apenas se
Jesus: homem e espírito
289
tornou um movimento organizado 30 anos após a crucificação, na
primeira revolta judaica. Provavelmente é a mesma pessoa
conhecida por “Simão, o cananeu”, visto que os termos “cioso e
zeloso”, de onde deriva seu nome, corresponde ao aramaico
qa`ana`, incorretamente traduzido como uma referência á sua
origem (um cananeu). Eisenman acredita que esse Simão, o zelote,
seria, na realidade, Simão, irmão de Jesus, o qual, de fato vinha de
família extremamente religiosa e não apresentava qualquer
movimentação de cunho nacionalista, seguindo a filosofia do “dar a
César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Outros personagens judaicos são conhecidos pelo adjetivo
“zelote”, como Finéias, Paulo de Tarso, que se diz zelote com a lei e
muitos moradores de Jerusalém (Atos dos Apóstolos 21:20). Essa
denominação era utilizada para qualquer judeu devoto que se
opunha, de todas as formas, à invasão da cultura helenista e contra
os que não praticavam com rigor a lei mosaica.
O chamamento de Simão, o zelota, por Jesus, ao discipulado
e ao grupo dos Doze deve ser entendido como a necessidade de uma
mudança básica de posição das pessoas em direção à tolerância,
visto que o mestre confraternizava com todos, indistintamente.
290
9. Judas Iscariotes: praticamente tudo que podia ser dito ou imaginado
sobre esse personagem já o foi. Sabe-se apenas, e com
controvérsias, que ele pertencia ao círculo dos Doze e acabou por
trair e entregar o próprio mestre às autoridades.
Quase tudo que se encontra nos evangelhos sobre esse
personagem representa uma expansão fantasiosa da tradição. Assim,
Marcos, o texto mais antigo e confiável das Narrativas da Paixão,
não existe um motivo para a traição de Judas, sendo que
posteriormente Mateus pinta esse personagem como avarento,
enquanto João o coloca como um ladrão ganancioso que exercia a
função de tesoureiro no grupo de seguidores de Jesus. Lucas atribui
a traição de Judas como tendo origem demoníaca e não apenas
material. O nome “Iscariotes”, era empregado para diferenciá-lo de
outros personagens com o nome Judas, como Judas de Tiago e
Judas, irmão de Jesus.
O nome “Iscariotes” é uma referência à cidade de Kerioth,
na Judéia, o que faria desse apóstolo o único seguramente não
originário da Galiléia, um estranho no ninho. Embora não exista
uma segurança arqueológica de que essa cidade tenha de fato
existido, as informações disponíveis na literatura espírita atribuem o
nome de Judas a essa vila judaica.
Jesus: homem e espírito
291
Como o Evangelho de João (6:71; 13:2) assinala, o pai de
Judas era chamado de Simão Iscariotes, sugerindo que esse termo de
fato indica a cidade de origem de ambos. Alguns atribuíram,
erroneamente, ao fato de que Judas faria parte do grupo dos sicários,
que matava suas vítimas no meio da multidão utilizando uma adaga
conhecida como sicarii, o que é improvável, posto que esse grupo
ainda não existia na década de 30 d. C., enquanto outros estudiosos
lembram que essa palavra evoca uma raiz semita que traduz a
imagem de mentiroso ou “ser falso”, mas Judas não mentiu, foi um
traidor.
Outras interpretações bastante criativas sugerem que a raiz
semita do termo “Iscariotes” significa “aquele que entrega”, mas,
mais uma vez estamos forçando uma conclusão aceitável, enquanto
outros traçam a possibilidade de vínculo com a cor vermelha
sugerindo que o mesmo fosse uma espécie de tintureiro, trabalhasse
com frutas vermelhas, fosse ruivo ou tivesse a pele avermelhada, o
que não diz nada.
Além desses personagens, ainda temos Pedro, Tiago e João,
o núcleo mais íntimo e, segundo Marcos, que recebera segredos
messiânicos de Jesus, tendo sido convidados a permanecer em
oração no Getsêmane com o mestre. A existência desse grupo mais
292
íntimo somente é atestada nos evangelhos sinópticos, não
aparecendo em nenhum outro ponto do Novo Testamento.
10. Tiago: poucos personagens do Novo Testamento suscitaram tanta
discussão. Nos textos canônicos, Tiago e João aparecem como
irmãos, filhos de Zebedeu. Sempre que seu nome aparece, eles estão
juntos.
Foi martirizado por Herodes Agripa em 44 d. C. (Atos dos
Apóstolos 12:1-2) e pode ter sido o primeiro dos apóstolos a ser
penalizado com a morte, decapitado, em função de sua crença.
Nesse sentido, ele é o único cujo martírio é narrado no cânone,
embora João 21:18-19 possa conter uma referência ao martírio de
Pedro. Esse “Tiago”, a partir de meados da Idade Média, passou a
ser, absurdamente, associado ao trabalho missionário na Espanha.
11. João: pelo menos 5 indivíduos no Novo Testamento são ligados
direta ou indiretamente a esse nome, sendo que a tradição cristã
tratou de fundi-los em um único personagem, obviamente sem
muita base na realidade:
• João, filho de Zebedeu;
• o “discípulo que Jesus amava”, que está anônimo no
Quarto Evangelho (e assim deveríamos ter deixado,
Jesus: homem e espírito
293
tendo sido identificado por modernos estudiosos
como sendo Lázaro ou mesmo outros, como Maria
de Magdala);
• o anônimo autor do Quarto Evangelho;
• o anônimo autor de 3 epístolas que levam esse nome;
• o autor do Livro do Apocalipse.
Hoje sabemos que as obras literárias citadas acima não
foram escritas por um mesmo autor, muito menos que o mesmo era
João, filho de Zebedeu. O livro do Apocalipse teria sido escrito
através da transmissão oral do conteúdo das visões do apóstolo
João a um cristão de língua grega. As epístolas foram escritas por
seus seguidores, procurando repassar aquilo que acreditavam que
consistia a visão teológica do ancião.
O Quarto Evangelho, embora leve seu nome, não foi obra
literária do apóstolo e foi o mais tardio dos evangelhos canônicos,
porque demorou a harmonizar as diferentes correntes de tradição,
algumas oriundas, de fato, de João, mas a maioria do texto era
característico da outros personagens da comunidade joanina, em
particular de um grupo de mulheres que seguia o mestre Jesus.
294
Marcos coloca João como sendo um próspero
microempresário que trabalhava com seu pai no mar da Galiléia,
enquanto Lucas estabelece que João e Tiago eram sócios de Simão
Pedro em uma pequena empresa de pesca. De qualquer forma,
pescador ou alguém que lida com pescado. Sua condição financeira
não é retratada como desesperadamente pobre, sendo que seu ramo
de atividade era muito rentável no mar de Tiberíades (ou da
Galiléia).
Segundo o Evangelho de Marcos, os irmãos Tiago e João
são denominados de “Boanerges” por Jesus, sendo que esse termo é
traduzido como “filhos do trovão”, possivelmente significando que
eram impetuosos, de pavio curto, ou mesmo zelotes, ou zelosos.
Muitos acreditam que essa denominação remonta ao próprio Jesus,
possivelmente significando um estímulo do mestre para que os
irmãos logo se tornassem grandes porta-vozes do advento do Reino
de Deus, dado o potencial que possuíam.
João, em algumas circunstâncias era tido como um porta-
voz dos demais apóstolos, mas isso pode ser apenas uma criação da
igreja primitiva. Em Atos dos Apóstolos fica explícito que João
teve um papel proeminente na igreja nascente logo depois da
Páscoa fatídica, juntamente com Tiago, irmão de Jesus, e Pedro,
Jesus: homem e espírito
295
tendo sido ligado de forma muito estreita a esse último. Não
existem quaisquer evidências nos textos canônicos ou entre os
autores do século II d. C. de que esse apóstolo teria sofrido
qualquer perseguição.
Em tempos recentes, alguns pesquisadores passaram a
considerar plausível a associação entre o “discípulo que Jesus
amava” e a figura de Maria de Magdala, sendo que o anonimato
desse discípulo no texto joanino e a sua inexistência nos demais
evangelhos sugere que o mesmo se originou na comunidade joanina
e possivelmente se destinou a proteger a identidade do personagem
que, naquela comunidade, era de conhecimento de todos. Em
realidade, o texto joanino carrega as experiências primitivas de uma
comunidade liderada por uma mulher ou na qual mulheres eram
proeminentes, com forte influência na redação do texto. Assim,
quando aquela comunidade passou a ser obrigada a se inclinar em
direção ao cristianismo da corrente principal, o papel dessas
sacerdotisas teve de ser apagado e Maria de Magdala passou a ser
apenas o discípulo que Jesus amava, segundo essa interpretação.
Acreditamos que esse enfoque é bastante coerente.
Do ponto de vista espiritual, sabe-se que Maria de
Magdala era portadora de grande sensibilidade mediúnica, a qual,
296
associada a descontroles e desequilíbrios pessoais acabaram por
jogá-la na senda de perigosos obsessores que somente se afastaram
com a presença do mestre de Nazaré e sua mensagem de renovação
e reforma íntima, o que também abriu as portas de um mundo novo,
que ela abraçou com toda a força da sua alma em conflito, obtendo
a paz no trabalho edificante que passou a desenvolver. Assim, a
leveza e a sensibilidade no trato com as pessoas, que tanto
abundavam em Maria, logo produziram frutos amargos na inveja de
outros discípulos de Jesus, que não consideravam as mulheres
suficientemente preparadas para receber ensinamentos diretamente
do mestre. Obviamente esses pensamentos vulgares, oriundos de
pessoas que ainda apresentavam-se apegadas ao mundo
preconceituoso do século I. d. C., foram se moldando com o tempo
e deram origem a histórias absurdas sobre o relacionamento que ela
teria com seu mestre e mentor. A devoção a Deus e a luz que dela
emanavam e a impeliam em direção aos necessitados, permitiram
que, ao redor dela, crescesse um movimento cristão mais igualitário
e livre, também ligado a Maria de Nazaré e seus outros filhos,
Simão, Tiago e Judas.
Podemos, também, questionar o fato de que em várias
situações o texto joanino apresenta o discípulo que Jesus amava
Jesus: homem e espírito
297
junto de Maria de Magdala ou das demais mulheres que
acompanhavam Jesus, o que impediria que esses dois personagens
tivessem a mesma identidade, mas não se pode crer piamente
nesses textos da forma que estão redigidos. É possível que a
colocação desse discípulo exatamente ao lado dessa Maria tivesse a
função exatamente de esconder a identidade da mesma como sendo
a líder daquela comunidade, que apresentava uma terrível divisão
interna. Com essa apresentação, os membros da comunidade ainda
preservariam o papel desempenhado por algumas mulheres no
grupo. Por fim, o apóstolo João até participou da redação desse
evangelho, mas poucos duvidam que os extratos mais primitivos se
originaram do grupo de mulheres que acompanhava Jesus ou, mais
especificamente, de Maria de Magdala.
Outra possibilidade quanto à identidade do discípulo que
Jesus amava, seria Lázaro, que interagiu de forma tão particular
com Jesus, de forma que seu corpo, inerte, letárgico ou cataléptico,
voltasse, aos olhos daquelas pessoas simples, a ter vida. Na acepção
tradicional, Lázaro estava morto e sua "ressurreição" teria sido um
fenômeno impar, enquanto na codificação de Kardec, uma doença
letárgica atingia o pobre homem. O ponto de vista de que Lázaro
era o discípulo amado é muito questionável e os evangelhos
298
sinópticos sequer citam Lázaro de Betânia, algo pouco provável se
eles tivessem, de fato, conhecimento do "milagre da ressurreição"
ou da afetividade que unia o mestre galileu a Lázaro e suas irmãs,
como descrito no Quarto Evangelho.
12. Pedro: é o apóstolo mais citado, controverso e proeminente nos
textos canônicos. Simão, seu nome aramaico, deve ter sido o padrão
de judeu galileu pescador com esposa e família, residente em
Cafarnaum. Pode ter conhecido Jesus nas margens do mar da
Galiléia ou no círculo de discípulos do Batista, como traz o Quarto
Evangelho, mas foi apenas quando Jesus passou a ter um
movimento autônomo é que Pedro teria sido convidado a ser um
pescador de homens e de almas, termo que a maioria dos
pesquisadores atribui ao Jesus histórico.
Kepa' (transliterado no grego para Kephas e traduzido para
essa língua como Petros, pedra). Possivelmente teve algum papel
nos momentos que levaram à prisão e execução de Jesus, tendo sido
relatada a sua covardia diante de indivíduos que questionavam sua
relação com o prisioneiro Jesus e sua participação nos momentos
dramáticos do Getsêmane. Provavelmente após problemas com as
autoridades de Jerusalém, teria se dirigido à Síria (Gálatas 2:11-14)
e Corinto (1Coríntios 1:12; 3:22), possivelmente acompanhado de
Jesus: homem e espírito
299
sua esposa, sendo que João 21:18-19 insinua que teve morte
violenta como mártir. Textos dos primeiros séculos da era comum,
como a carta 1Clemente e a carta de Inácio aos romanos, localizam
seu martírio nas colinas do Vaticano, sendo que escavações
realizadas nas décadas de 1940-50 sob a basílica de São Pedro
evidenciaram a existência dessa necrópole, o que, para alguns, é um
indicativo de que Pedro poderia estar lá enterrado.
Contudo, até mesmo os mais conservadores pesquisadores
acreditam que as chaves do céu que Jesus, simbolicamente, entrega a
Pedro, sugerindo que ele e seus sucessores poderiam abrir e fechar seus
portões para toda a eternidade, representa redação primitiva da igreja e
NUNCA teria se originado do Jesus histórico. Esses textos (Mateus
16:19; João 20:23) parecem mostrar como agir diante de problemas
internos na igreja, sem uma relação com um discurso real do mestre
Jesus. Assim, Pedro como pedra angular da igreja de Jesus constitui
uma fala artificial que foi colocada na boca do messias de Nazaré por
pessoas envolvidas em querelas religiosas, nos 50 anos após a
crucificação. Porém, dessas falas deriva todo o poder do papado, com
todas as suas conseqüências.
Um aspecto bastante questionável desse apóstolo se deve à sua
negação de Jesus nos momentos finais da vida do mestre galileu. Esse
300
episódio apresenta traços históricos, visto que sua criação pela igreja
primeva seria equivalente a desautorizar um de seus principais
membros, criando um constrangimento desnecessário e mesmo
prejudicial. Jesus conhecia a natureza de seus seguidores, de forma que
não deve ter sido um espanto para ele e os apóstolos a negação de
Pedro. Eram espíritos em crescimento e foram escolhidos porque
representavam as características mais marcantes da própria
humanidade, de forma que a negação de Pedro fazia parte desse triste
quadro.
Independentemente de quem foram os apóstolos, podemos dizer
que a grande maioria deles acabou por desaparecer dos textos canônicos
ou apócrifos, de forma que a instituição dos Doze foi efêmera e não se
manteve coesa por muito tempo. Praticamente nada sabemos do destino
que esses personagens passaram a desempenhar e devemos acreditar
que a maioria acabou sendo suplantada pelos novos convertidos de
cultura helênica, o que não deve ter sido difícil já que a maioria dos
seguidores de Jesus era composta por pessoas aparentemente sem
instrução formal. Associado a esse fato, a liderança de membros da
família de Jesus sobre a igreja nascente sugere que o grupo dos Doze
logo perdeu importância para o grupo familiar ou que, de alguma forma,
esse último grupo fazia parte daqueles que seguiram Jesus e tiveram seu
Jesus: homem e espírito
301
papel ofuscado pelos evangelistas, sendo que muitos elementos
apontam nessa direção, como veremos a seguir.
Nos Planos Espirituais, muitos dos personagens que tiveram a
graça de conviver algum tempo com Jesus, como a família de Lázaro,
em Betânia, onde nosso eterno mestre encontrou uma segunda família,
por afinidade, passaram a integrar as falanges do espírito Verdade e
trabalham ativamente na consolidação do evangelho redivivo
representado pela codificação espírita e pela fé inabalável de que Deus
nunca abandona seus filhos, nem mesmo nas mais profundas furnas das
trevas.
Existem boas evidências que Pedro, Tiago e João, os líderes
mais proeminentes da igreja cristã de Jerusalém eram médiuns de
efeitos físicos e de cura, como possivelmente Maria de Magdala. Eles
estavam sempre presentes quando materializações e muitas curas
ocorriam e, como nos disse o próprio mestre Jesus, desde que
acreditássemos poderíamos realizar verdadeiras proezas. Na opinião do
mestre, seus seguidores precisavam de mais fé e não de exemplos novos
que viessem a confirmar o que todos viam: Deus já se fazia presente e
era infinitamente justo, bom e misericordioso. Temos, então, o cerne da
mensagem de esperança e fé do messias galileu.
302
6.6 Controvérsias sobre os apóstolos
Embora tenhamos discutido brevemente alguns aspectos da
identidade dos apóstolos, achamos por bem não incluir na discussão os
pontos mais controversos. Muitas são as evidências de que o
cristianismo gentio fez de tudo para eliminar os traços e os rastros da
família de Jesus de todos os textos que vieram a ser considerados
canônicos, mesmo quando as tradições mais antigas da própria Igreja
mostravam o contrário, evidenciando que os sucessores de Jesus, na
liderança do movimento de renovação dentro do judaísmo eram, quase
todos, seus parentes próximos.
A família passa a ser retratada até com uma certa leviandade
pelos autores do Evangelho de Marcos e com indiferença pelos demais
“evangelistas”. Isso contrasta com a realidade, exposta inúmeras vezes
pelos pais da igreja cristã, nos séculos I e II d. C., que colocaram que a
família de Jesus, seus pais e numerosos irmãos e irmãs eram
extremamente zelosos para com a lei mosaica e adotavam um estilo
nazirita ou nazareno, muito semelhante aos preceitos que Josefo e
Plínio atribuem aos essênios e próximo das descrições que alguns textos
encontrados nas cavernas ao redor do Mar Morto trazem.
Muitas confusões e alterações dos evangelhos foram realizadas
para encobrir a importância e a identidade dos sucessores de Jesus, que
Jesus: homem e espírito
303
aparentemente seguiam a mesma inclinação do califado dinástico da
sucessão de Alid entre os muçulmanos xiitas ou a sucessão dos reis
hasmoneus/macabeus. A forma com que a mãe, irmãos e irmãs de Jesus
são tratados nos evangelhos é muito dependente da relação de poder que
o evangelista traçou com os membros da família e da liderança da
crença nascente.
Outro aspecto relevante se refere às diferentes listas de
apóstolos, nos quatro evangelhos, além das modificações e duplicação
de nomes de integrantes da família de Jesus, como a criação de uma
irmã de Maria, mãe de Jesus, também chamada Maria, para ser a mãe
de Tiago, José, Judas e Simão, tornando-os primos e não irmãos
verdadeiros do mestre, quando da disseminação do conceito da
virgindade perpétua de Maria, até hoje defendida por muitos.
Os três pilares iniciais da igreja primitiva, segundo os
evangelhos sinópticos, são Pedro, João, filho de Zebedeu, e Tiago,
irmão de João. Em Gálatas, os pilares são Pedro, João, filho de
Zebedeu, e Tiago, irmão de Jesus. Seriam esses dois “Tiagos” um só?
Se a resposta for positiva, por que foram separados em duas pessoas
diferentes ? O professor Robert Eisenman acredita que esses dois
personagens eram inicialmente um só, Tiago, o irmão de Jesus, e que
facções internas no movimento cristão trataram de dividi-lo em dois
304
personagens diferentes como forma de diminuir sua importância e dos
demais sucessores de Jesus em prol de uma supremacia dos apóstolos.
Nascia, então, Tiago, o Justo (irmão de Jesus), de um lado, e, de outro,
Tiago, o irmão de João.
Outra tentativa de diminuir o papel de Tiago, o Justo, na igreja
primitiva foi relacioná-lo com Tiago, filho de Alfeu, sendo que,
segundo Papias, um dos pais da própria igreja gentia, esse último nome
era o mesmo que Cleofas, pai de Simão, bispo sucessor de Tiago na
igreja de Jerusalém e também seu irmão (e de Jesus por extensão).
Mesmo entre os discípulos, Tiago, filho de Alfeu, e Tiago, filho de
Zebedeu, tomam, por vezes, o lugar de Tiago, o Justo, enquanto Tomé
se transforma em Judas de Tiago, Tadeu, Teudas (Tadeu+Judas) e
Lebeus. Simão, o zelota, se transforma em Simão bar Cleofas.
A importância de Tiago para a igreja primeva foi incomparável.
Segundo Orígenes, um importante escritor e estudioso cristão que teria
vivido por volta de 150 anos após a crucificação de Jesus e considerado
um dos principais teólogos do seu tempo, a revolta e a queda de
Jerusalém foram reflexos do martírio de Tiago, o qual era considerado
uma verdadeira muralha defensiva e sua morte precipitou o pior, a
condenação da cidade através de um julgamento da Providência Divina,
tendo o exército romano como executor dos desígnios do Deus Todo
Jesus: homem e espírito
305
Poderoso, segundo o que ele diz ter lido nos textos do historiador judeu
Flávio Josefo. É uma posição bastante original e indigesta para a igreja
cristã, visto que os cristãos literalistas atribuem a queda de Jerusalém e
seu Templo à crucificação de Jesus, ocorrida 30-33 anos antes, o que é
pouco provável.
Assim, muitos dos nomes dos apóstolos eram, em verdade,
pseudônimos ou verdadeiras substituições para os nomes dos irmãos de
Jesus. Embora isso possa chocar, parece explicar o porquê do círculo
dos Doze ser tão indistinto.
Devemos ter muito cuidado com essas considerações, mas não
se pode esquecer que Papias e Eusébio colocam dúvidas sobre a
precisão dos autores dos evangelhos, sendo que trazem a informação de
que Marcos nunca vira Jesus, tendo sido auxiliar de Pedro,
possivelmente em Roma, enquanto Mateus teve inúmeras dificuldades
com o hebraico, tendo recorrido a oráculos, sendo que cada um dava a
interpretação que lhe parecia mais adequada e segura. Essas
informações deveriam ser colocadas à disposição daqueles que se
sentem compelidos a estudar os textos bíblicos de forma literalista.
306
6.7 Qual foi o destino dos apóstolos?
Independentemente da identidade verdadeira da maioria dos
seguidores mais próximos de Jesus, não se pode negar que quase todos,
em maior ou menor grau, submergiram na trama construída no século I
d. C. Embora bem intencionados e cheios de vontade de compartilhar a
mensagem divina com a população palestina, eram pessoas com
limitadas condições financeiras, muitos ainda estavam ligados a
deficiências e desarmonias íntimas, como inveja, ira, preconceitos de
natureza variada para com a população não-judaica e contra a
participação de mulheres no movimento, deixando que a direção da
igreja nascente migrasse definitivamente para a família de Jesus, com a
qual permaneceu até fins do século I. d. C. Contudo, a pequena igreja
palestina não podia fazer frente à poderosa força que emanava de
Roma, de forma que o cristianismo foi perdendo os seus traços semitas,
galileus, adquirindo feições de religião de mistérios e dogmas
literalistas nos séculos seguintes. A lei do espírito foi perdendo força
para o espírito da lei e a característica que Jesus mais criticou no
judaísmo de seu tempo, a fé das aparências e a inobservância da
verdadeira lei, o amor ao próximo e a Deus, passaram a imperar no
cristianismo também. A caminhada para o poder temporal fora lançada.
Jesus: homem e espírito
307
Nesse processo, perdeu-se o contato com as histórias de vida da
maioria dos apóstolos, que viveram por décadas após a crucificação, em
terras Palestinas, curando e pregando em pequenas assembléias nas
vilas da Galiléia e Judéia. Como citado acima, o mundo greco-romano
era um desafio que Jesus nunca exigiu que eles encarassem. Por outro
lado, alguns de seus discípulos e apóstolos mais próximos foram, de
fato, martirizados, como Pedro, crucificado de cabeça para baixo no ano
64, em Roma, ou Tiago, filho de Zebedeu, o primeiro dos apóstolos a
encontrar a morte, no ano 44, através da decapitação. Outros que
receberam a crucificação, de acordo com antigas tradições, destacam-se
André, irmão de Pedro, Felipe e Simão, o zelota. Embora pouco
provável, existem tradições que apontam para a morte de Bartolomeu
por decapitação, junto ao Mar Cáspio, após ter sido esfolado, Mateus,
morto pela ação de uma machado, Tomé, mortalmente ferido com uma
lança, em solo indiano, no ano 72. Até mesmo Matias, que substituíra a
Judas Iscariotes, no grupo dos Doze, teria encontrado a morte no
apedrejamento, decapitação ou na fogueira. Apenas João teria vivido
longos anos (94 anos ao todo) e, através de sua lúcida mediunidade,
legado ao mundo as instruções sobre o destino do homem e do orbe
terrestre, por meio do seu livro de revelações (apocalipse, em grego,
ditado a um discípulo fluente nessa língua do tronco indo-europeu).
308
7 A mensagem de Jesus
“...caríssimos, ..., esforçai-vos em ser por ele achados sem mácula e
irrepreensíveis na paz...”
(II Pedro 3,14)
Jesus: homem e espírito
309
Para uma consulta mais ampla sobre a mensagem de Jesus,
recomendamos o livro intitulado “A mensagem do Cristo e o
Espiritismo”, de autoria de Elerson Gaetti-Jardim Júnior e Christiane
Marie Schweitzer.
A disseminação do poder romano, por todo o Mediterrâneo
oriental, associada à dispersão dos valores culturais gregos na Palestina,
desde o século III a. C., fez com que uma base cultural despontasse.
Nessas condições, a mensagem de um grupo circunscrito de
judeus zelosos tinha plenas condições de se difundir, pelo menos no
meio daqueles que comungavam alguns de seus princípios e laços
culturais. O cristianismo estava fadado a continuar a ser uma seita do
judaísmo, tanto entre os judeus da diáspora, quanto na própria Palestina.
Entretanto, os "poderes" altamente curativos da filosofia de amor a
Deus e ao próximo, proclamada por Jesus, como forma de criar um
círculo universal de respeito e afeto, acabou por inundar as classes
menos favorecidas do império, convertendo-se, por força de sua leveza
e, infelizmente, interesses não tão nobres de alguns líderes da cúpula
romana, na herdeira temporal dos césares. Assim, quando falamos de
mensagem do messias galileu, temos que tentar separar aquilo que era,
de fato, objetivo e cerne da pregação de Jesus, daquilo que passou por
muitas alterações redacionais no Novo Testamento, como forma de
310
legitimar o poder usufruído por grupos e pessoas nem sempre bem
intencionados.
Indubitavelmente, o mestre Jesus colocava no centro de sua
mensagem a proeminência do amor ao Pai e a presença Dele em tudo
que ocorria na superfície do nosso orbe terrestre. A importância do
Reino de Deus ganha cores próprias de cada apóstolo e evangelista, o
que mostra, através da múltipla confirmação das fontes, o quanto ele,
independentemente do local e das condições, falava dos destinos
individuais e coletivos e da misericórdia divina na vida de todos nós.
Tudo isso com vista à obtenção do “bilhete premiado” representado
pela permissão de ingresso nos "céus", ou, como freqüentemente
utilizado em outras religiões cristãs, a inscrição no “Livro da Vida”.
Algumas das discussões mais emblemáticas sobre esse ingresso
podem ter ficado preservadas nas palavras de Jesus em João (3:1-13),
onde coloca-se a importância de “nascer de novo”, em carne e espírito,
simbolizados pela água e Espírito. Não existem dúvidas que o centro da
pregação de Jesus consistia na sistemática proclamação do Reino de
Deus e todo o sentido da sua mensagem aí reside. Por “reino de Deus”
também incluímos as denominações de “Reino de Meu Pai” e “Reino
dos Céus”, totalizando dezenas de citações diferentes em diversos
contextos.
Jesus: homem e espírito
311
Essa característica de chamar o mundo espiritual e seus planos
superiores de "Reino de Deus", embora não seja uma peculiaridade de
Jesus, ganha muita força com ele, o que o distingue dos rabinos e dos
autores dos textos do Antigo Testamento e qumranmitas, que usam
muito raramente essa expressão. Essa forma de mostrar que Deus,
inteligência maior e criadora do cosmo, estava ao alcance de todos era
bastante marcada em Jesus. Isso era uma forma de mostrar que o Senhor
reinava sobre sua criação. Para um judeu praticante do século I d. C., o
reino divino tinha uma nítida vertente escatológica, de final dos tempos.
A seleção dos eleitos, com a separação dos justos e ímpios, era uma
característica dos judaísmos da virada de eras; Jesus não era uma
exceção nesse sentido. A diferença é que ele dizia que, a despeito da
justiça de Deus ser rigorosa, ela era exercida com misericórdia e
nenhuma ovelha do rebanho se perderia.
A importância do Reino de Deus, ao mesmo tempo futuro, mas
iminente, é tão grande, na mensagem de Jesus, que permeia até a oração
do Pai Nosso, quando coloca que "venha o Teu reino" (Mateus, 6:9-13;
Lucas 11:2-4). Naquela época, a chegada do reino divino seria
acompanhada por banquetes de fartura e profunda significação social,
com a reunião das antigas tribos perdidas da Casa de Israel, com o
gentios sendo convidados a partilhar da glória divina, em uma
312
Jerusalém restaurada e plena da glória do Senhor. Esse conteúdo
filosófico ainda permeia a mentalidade cristã, principalmente nos cultos
mais literalistas, com muitos grupos sectários esperando o retorno de
um messias divino para o estabelecimento de um governo teocrático no
mundo judaico-cristão. Ainda hoje as estruturas de pedra ainda têm
proeminência sobre as fortalezas da alma.
A leveza e beleza da oração do Pai Nosso evidenciam que essa
última, em aramaico, é bastante antiga e seu sentido, embora pouco
compreendido pelos seguidores do mestre Jesus, remete exatamente a
ele. Foi feita para ser memorizada e passada a diante e traduz todo o
ensinamento básico das pessoas que tomavam as pegadas do jovem
galileu como o caminho a ser seguido; eram as palavras do povo da casa
do caminho.
A versão aramaica da oração ainda traz impregnada em sua alma
o sentido do perdão das dívidas, como sinônimo do pecado, individual e
coletivo, que a oração perde nas línguas indo-européias. A invocação de
Deus, chamado de Abba, com o sentido de "meu Pai amado", pelo seu
filho Jesus, remete diretamente às palavras de nosso divino peregrino,
não deixando de estar em sua boca nem nos momentos que antecederam
o martírio no calvário.
Jesus: homem e espírito
313
Nessa bela e pura oração, o crente faz uma série de petições
curtas e diretas, mostrando que ninguém necessitava de templos de
pedra ou intermediários para conversar com Ele; para entrar no Reino
do Pai, cuja porta, embora estreita, poderia ser cruzada pelo exercício
da caridade, que nivelava a todos na condição de filhos do mesmo Pai
eterno; o ingresso trazia a palavra humildade, a mesma humildade que
não avilta o respeito daqueles que recebem o fruto da nossa caridade.
A paternidade divina humanidade nos colocava em pé de
igualdade perante Deus, de forma que as diferenças que ostentávamos
no mundo eram apenas superficiais e dispensáveis. Não havia o porquê
de separarmos as pessoas em "pecadoras" ou "puras", posto que nesse
mundo de dor e provas, rico em césares e reis de todos os tipos, ainda
tínhamos um longo caminho a percorrer até Ele. É dessa forma que
devemos entender os motivos que faziam Jesus interagir com todos os
tipos de pessoas, não dando absolutamente importância para as
aparências e convenções sociais.
Para aquele judeu pobre que vinha do norte, as regras de pureza
não se aplicavam ao relacionamento Pai-filhos e, dessa forma, todos os
filhos do Deus Misericordioso deveriam receber a mensagem de paz e
esperanças que ele mesmo trazia nos lábios. Isso era frontalmente
contra todos os preceitos das demais seitas e filosofias judaicas do
314
século I d. C. Essa diferença nítida de Jesus em relação aos seus
contemporâneos cria muitas dificuldades, mesmo entre os espíritas
modernos, que vêem os essênios e outros sectos judaicos da época
como a encarnação da vida em comunhão e politicamente correta.
Essa visão é distorcida por 300 anos de iluminismo cultural e
um anseio quase angustiante de ligar o mestre galileu a alguma escola
cuja antiguidade remontaria aos primórdios da humanidade. Contudo,
se algumas características de Jesus lembram os demais movimentos
judaicos, isso se deve ao meio cultural comum e também ao fato de que
nada ocorre por acaso e sua encarnação se deu exatamente quando o
mundo apresentava um mínimo de maturidade para escutar as suas
palavras que, se praticadas, trariam a paz que sonhamos até hoje. Sua
mensagem é o mais belo código de ética já registrado pelo homem.
Nas palavras de Jesus há o pedido para que o Rei, nosso Deus,
não apenas um reino, se faça presente. Nessa súplica poderosa, pedimos
que Ele nos salve de nós mesmos. Assim, Deus é o rei que reina em
todos os lugares e o coração do homem é um trono para que nosso Pai
Eterno reine com toda a sua glória, basta que venhamos a nos tornar
dignos de Sua presença integral. Assim, Jesus via Deus como Pai e
como Rei, que traria a paz que todos aguardavam; traria o equilíbrio e
estabeleceria uma aliança que era impensável antes da vinda do messias
Jesus: homem e espírito
315
judeu, em função do fato da humanidade se encontrar em uma infância
evolutiva bastante desconfortável para ela mesma.
Não podemos deixar de frisar que o uso do termo abba,
empregado por Jesus para se referir a Deus, é único e era utilizado de
forma bastante respeitosa para se referir ao próprio pai terreno, nos
mostrando que o mestre encarava, de fato, a figura divina como sendo o
Pai de todos os homens, uma imagem que acostumamos aceitar, mas
que era única para sua época. Não se falava em “papai do céu” para as
crianças e até nessa maneira carinhosa de ensinarmos nossas filhas e
filhos em suas primeiras orações temos a mãe de Jesus, o escolhido.
A chegada iminente do Reino de Deus permeia a oração o Pai
Nosso. Nesse sentido, devemos entender o "pão nosso de cada dia",
não apenas como o alimento que nos tira a fome, mas também o maná
do deserto que alimenta a nossa alma nos momentos mais difíceis desse
mundo, da mesma forma que o "perdoa-nos as nossas dívidas assim
como nós temos perdoado a nossos devedores" tem em vista o pedido
especial para que o Pai nos torne merecedores de Seu sublime perdão,
por conta de um julgamento universal que se daria em determinado
momento do processo evolutivo da sociedade terrena. Pode-se verificar
que, quanto a julgamento futuro, todas as denominações cristãs são
316
concordes em admitir sua existência e sua urgência diante das
turbulências pelas quais a sociedade vem passando nos últimos séculos.
Ao "perdoar os devedores", nos habilitamos a receber o perdão
divino, manifestado em novas oportunidades de crescimento em um
novo corpo físico ou através de estudos e trabalho mesmo nas diferentes
esferas espirituais. O perdão implicitamente transforma contentores em
parceiros em seus destinos individuais, uma vez que diferentes tipos de
vínculos se estabelecem entre as pessoas ao longo do curso de suas
vidas terrenas e durante a permanência na erraticidade, para utilizar uma
terminologia do Livro dos Espíritos de Kardec. Aqueles que hoje são
nossos obsessores, seriam, com a vontade do par "vítima-agressor",
convertidos em nossos irmãos mais próximos e nos nossos maiores
companheiros de jornada. Sabemos, através do conhecimento adquirido
na literatura espírita e por meio da experiência com as reuniões de
desobsessão, que esse fenômeno de fato ocorre, embora possa demorar
séculos.
A urgência do julgamento futuro e a influência dos elos
múltiplos de vidas e dívidas contraídas faz com que Jesus peça "e não
nos deixes cair em tentação; mas livra-nos de todo o mal", uma vez que
o mal somente pode gerar o mal. Esse mal, que, segundo o próprio
mestre, se origina em nós mesmos, a partir de nossas próprias
Jesus: homem e espírito
317
imperfeições, acaba por criar, em função de leis de causa e efeito, ou
ação e reação, condições de perpetuação. Uma encarnação
comprometendo a seguinte em um círculo vicioso que somente poderia
ser quebrado pelo perdão e quem perdoa tem condições morais de
solicitar o que oferece de coração aberto.
Dessa forma, é extremamente reveladora a ênfase de Jesus em
pedir a reconciliação dos inimigos e "o dar o rosto" para o agressor.
Nesse caso, estaríamos negando aos nossos inimigos a lenha para
manter a fogueira do ódio acesa ao nosso redor. Cabe-nos ressaltar que
a tentação maior a que Jesus, na oração cristã, se referia às atitudes que
viessem, no final dos tempos, impedir o nosso acesso à mesa do
banquete celestial (utilizando uma linguagem comum naquela época) na
qual os filhos poderiam entrar em comunhão com o Pai, em linguagem
bastante figurada, apocalíptica, escatológica, típica da igreja primitiva.
A chegada desse reino divino, que já se fazia parcialmente
presente através dos fenômenos de curas, da boa nova, da esperança que
inundava a mente de todos os despossuídos que cruzavam os caminhos
do messias galileu, era esperada para logo; muito pouco tempo separava
as palavras de Jesus e a concretização do ideal divino. Contudo, não
podemos esquecer que o tempo de Deus não é o mesmo nosso. Quanto
318
mais sutilizado é o plano espiritual, mais o tempo rende, ao mesmo
tempo em que ele fui muito rapidamente.
Para os espíritos angelicais que acompanham Jesus, os 2000
anos que nos separam do calvário renderam o trabalho de 2.000.000 de
anos de nossa sociedade terrena, mas a sensação de sua passagem se dá
como se apenas 2 anos tivessem escoado. Por isso, as alusões temporais
devem ser sempre relativizadas na bíblia e não podemos esquecer que
nossa evolução é lenta e 2000 anos representam uma piscada de olhos
em nosso comportamento pessoal, o que ajuda a explicar a urgência que
Jesus transmitia quando exortava a população a modificar seu
comportamento. Para auxiliar essa transformação, veja todos como
irmãos e isso, como dissemos (EGJJr e SCJr) para nossa irmã Inalda, da
Fundação Adolpho Fritz, Teresina-PI, já representaria um enorme
progresso.
Várias passagens bíblicas, como Marcos 14:25 sugerem essa
urgência, onde Jesus coloca que "Em verdade vos digo que jamais
beberei do fruto da videira, até aquele dia em que hei de beber, novo,
no reino de Deus". Essa referência temporal está presente em todas as
narrativas do Novo Testamento, incluindo-se aí as cartas paulinas.
Muitos elementos da vida da igreja primitiva nos fazem supor que a
chegada do fim daquela era estava sendo esperada para os anos
Jesus: homem e espírito
319
seguintes à crucificação, como a divisão comunal dos bens e recursos
na igreja primeva. Hoje acreditamos que as palavras de Jesus, quanto ao
aspecto temporal, devem ser entendidas em um horizonte mais amplo e
espiritualizado e nenhuma dessas expressões temporais se originou das
palavras de Jesus e sim da igreja primitiva, desejosa do retorno do
mestre amado.
A urgência, que carregava a necessidade de mudança íntima,
também nos traz a impressão de que a humanidade constituía um grupo
recalcitrante de indivíduos avessos a mudar hábitos e posturas;
estávamos atrasados em relação ao que deveríamos estar e ainda nos
encontramos com o rosto colado ao solo, no lodo moral que criamos
para nós mesmos ao longo de milhares de anos de escravidão,
destruição ambiental e violência desmedida. Embora nossa espécie
tenha passado por grandes transformações e imprimido uma
modificação bastante significativa do panorama mundial, pelo menos
no que diz respeito ao conceito hoje generalizado de que constituímos
uma grande família, ainda vemos o outro como alguém com quem
devemos ter cuidado e que, se possível, deve permanecer como "outro",
para não trazer suas misérias pessoais para dentro de nossos quase
sagrados lares. A fome e a miséria material e espiritual são aceitáveis,
desde que não apareçam na televisão ou atrapalhem a vida geral nas
320
ruas. Como a Dra Inalda coloca: “Mudamos muito, mas muito
mesmo.......muito pouco”, pelo menos no âmbito do nosso padrão de
pensamento.
Esse panorama moral, horrível no presente e ainda mais
tenebroso e carregado na época de Jesus, fazia com que o mestre galileu
viesse a desejar a mais acelerada modificação íntima nos homens de seu
tempo; a adoção de uma postura mais universalista, onde a fome do
próximo também seria nossa, da mesma forma que a alegria que o
atingisse nos contagiaria, em um círculo de reações que elevaria a
condição da psicosfera do próprio planeta.
Para tanto, era indispensável para que os filhos do Pai se
reconhecessem como irmãos e, a partir daí, viessem a entender o
relacionamento com o Altíssimo. Um belo exemplo de revelação
progressiva, passo a passo, onde os conceitos seriam aprimorados à
medida em que fizessem parte de nosso cotidiano, como o próprio
Kardec postulou.
As provas mais cabais da determinação de Jesus de reconduzir
todas as ovelhas de Israel aos cuidados do Pai Santíssimo residem no
carinho especial que ele dedicava para os proscritos da fé, como os
cobradores de impostos, que tiravam do povo pobre e passavam ao
poder de ocupação romano, as pecadoras e pecadores, impuros e
Jesus: homem e espírito
321
pessoas simples do povo. Essas pessoas não eram normalmente
contempladas pelos demais movimentos mais elitizados e constituíam o
rebanho mais importante de Jesus, o qual não impedia a entrada do rico
ou do poderoso nos céus, mas todos que eram chamados ao reino de
Deus deviam primar pela reforma íntima, de forma que a riqueza em si
mesma não era considerada boa ou má, mas o uso que dela fazia seu
possuidor poderia originar obras do bem ou do mal, sempre dentro do
livre arbítrio e da máxima através do qual “a cada um será dado
segundo suas obras”.
Nada mais belo do que a visão de que o retorno do pecador à
seara do Senhor aceleraria a redenção do mundo, como a volta de um
filho pródigo. Trazer o sofredor e o pecador para a casa de Deus era a
mais sublime demonstração de que o reino de Deus estava no meio dos
homens e era a mensagem mais marcante de Jesus (Marcos 2:13-17;
Lucas 15:1-32), uma vez que os sadios, que são raros entre nós, não
precisam do médico.
A despeito de Jesus proclamar o chamamento de nosso Deus
infinitamente bom, ele também deixava claro que o Pai era
infinitamente justo. No reencontro do indivíduo que conseguira mudar
sua maneira íntima de agir e pensar com Deus, haveria um banquete
celestial, em linguagem figurada, ao lado dos patriarcas de Israel,
322
representados por Abraão, Isaac e Jacó, enquanto para aqueles que
ficassem ao largo dessa comunhão, teríamos dor e ranger de dentes
(Mateus 8:11-12; Lucas 13:28-29). A mensagem de estímulo à
renovação íntima é muito poderosa nessa passagem, evidenciando, com
a presença dos patriarcas, que a morte não existia de fato e que o júbilo
de deixar para trás as dores e dificuldades do mundo vinha com a auto-
elevação e a adesão ao bem e à mensagem de luz que Deus enviava aos
seus, enquanto que a dor da exclusão seria significativa aos demais e
iria gerar um mar de dores purgatoriais, seguindo a filosofia de que as
luzes e as trevas nascem em nós mesmos. Como Chico Xavier sempre
colocou, o umbral começa dentro de nós mesmos.
Essa consideração está plenamente de acordo com os conceitos
espíritas, de que os pensamentos e atos de um indivíduo criam as
condições do ambiente que o cerca, de forma que nos tornamos refém
das nossas imperfeições, as quais escravizam a nossa consciência,
dando início aos remorsos e dramas purgatoriais, conduzindo-nos aos
labirintos dos dramas umbralinos. Apenas quando o desencarnado está
propenso a modificações que lhe são facultadas é que o ciclo de
padecimentos dará origem a uma nova fase na sua existência.
Obviamente não se esquece da máxima de que a cada um é dado
segundo suas obras e que as cobranças são maiores quanto maiores
Jesus: homem e espírito
323
forem as possibilidades da pessoa envolvida, o que dá um grande
destaque ao papel exercido pela nossa própria consciência no processo.
Nas passagens bíblicas citadas acima, Jesus sugere que os
gentios estarão sentados junto com os patriarcas do povo judeu no final
dos tempos, mostrando uma versão universalista da mensagem cristã,
enquanto muitos judeus estariam do lado de fora do banquete celestial.
Essas palavras nos fazem questionar se Jesus via alguma distinção entre
o público judeu, palestino ou da diáspora, e o público gentio. Pode-se
dizer com segurança que a grande maioria das passagens em que Jesus é
visto interagindo com não-judeus não constitui evento histórico, mas
criação da igreja para justificar a disseminação da fé aos gentios; ele
veio para reunir os filhos e filhas da casa de Israel e, só depois, espalhar
a pregação para o público pagão. Possivelmente essa postura deriva do
fato de que a mensagem de Jesus não era compreensível fora do
universo do monoteísmo judeu e apenas quando alguns judeus de língua
grega ou com domínio de grego se converteram ao cristianismo
nascente, como Paulo, é que passaram a existir intérpretes eficientes
capazes de levar a palavra divina aos demais povos.
Como muitos aspectos da vida do mestre, essa questão desafia o
sentido lógico e o leigo rapidamente falaria que "Jesus falou para o
mundo e mandou seus discípulos para o mundo todo". Entretanto, isso
324
não condiz com a realidade. Jesus pregou para os judeus, somente para
eles, posto que a diferença cultural e a realidade do mundo greco-
romano eram impeditivas para um judeu galileu. Não podemos nos
esquecer que as pessoas falavam de lendas da mitologia, como Perseu e
Hércules, como se fossem histórias de criaturas reais, que haviam
habitado o mundo algum dia.
Contudo, à medida que a boa nova e o conhecimento do Deus
único se disseminava além das fronteiras culturais do judaísmo, os
gentios seriam tocados pela palavra divina e passariam a ter direito de
se sentar ao lado do povo escolhido no banquete de confraternização.
Esse ponto de vista é reforçado pelo fato de que restam poucas dúvidas
de que a maioria das raras citações bíblicas em que Jesus é visto
curando ou falando com não judeus é fruto das atividades redacionais
das diferentes igrejas cristãs, que se erguiam nas áreas de língua grega
no Mediterrâneo oriental; esses passagens, em sua grande maioria, não
ocorreram de fato na vida do mestre. Por que foram inventadas pela
igreja embrionária? Pensava-se que, mostrando o mestre interagindo
com não-judeus, atribuía-se maior legitimidade ao cristianismo greco-
romano, que foi se tornando mais importante à medida em que os
judeus cristãos, palestinos em geral, tiveram sua participação na
comunidade cristã cada vez mais reduzida em função do grande número
Jesus: homem e espírito
325
de conversões de não judeus, bem como com a destruição da vida
judaica por ocasião da primeira grande revolta contra Roma, onde quase
um milhão de judeus pereceram, muitos dos quais judeus cristãos.
Para Jesus, o tempo era relevante e sua curta passagem terrena
teria de ser proveitosa para a humanidade e apenas os judeus reuniam as
mínimas condições para entender o plano divino destinado às
populações espalhadas pelo mundo. Porém, á medida em que essa
mensagem se disseminasse, nos últimos dias antes do final dos tempos,
junto ao público gentio, Deus não faria imperar a primazia do povo de
Israel e todos os que tivessem se preparado seriam conduzidos às
dádivas da misericórdia divina e à bem-aventurança, posto que o Pai é
único. Sabemos que essas palavras parecem saídas de um texto de igreja
mais literalista, mas essa era a linguagem dos séculos I d. C. e II d. C. e
temos de procurar entender sua mensagem.
E as bem aventuranças e as portas do Reino de Deus?
No sermão da montanha, Jesus vendo-se diante de um público
bastante significativo teria dito:
"Bem-aventurados os humildes (pobres) de espírito, porque
deles é o reino dos céus."
"Bem-aventurados os que choram porque serão consolados."
"Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra."
326
"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque
serão fartos."
"Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão a
misericórdia."
"Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus."
"Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados de
filhos de Deus."
"Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque
deles é o reino dos céus."
"Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos
injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra
vós."
Essas bem-aventuranças apresentam dois pontos principais:
a) preparam as comunidades cristãs iniciais para possíveis
retaliações do poder temporal, romano, contra elas, bem
como de autoridades judaicas tradicionais, como os
sacerdotes do Templo de Jerusalém;
b) também mostram, com todas as letras possíveis, as enormes
diferenças que os mansos de coração e justos encontrarão no
Jesus: homem e espírito
327
Reino de Deus, reforçando a necessidade de adotarmos uma
vida plena de caridade e humildade.
Existem evidências, nessas passagens, de que traços redacionais
da igreja primitiva foram inseridos. Essas igrejas cristãs estavam sendo
convidadas a se retirar das sinagogas, por volta das décadas de 70-90 d.
C. e criaram algumas dessas bem-aventuranças, principalmente quando
advertem contra as calúnias e as injustiças cometidas contra as
comunidades cristãs, mas o cerne do texto vem diretamente de Jesus,
particularmente aquelas linhas que lançam luzes na caracterização dos
escolhidos do Deus Altíssimo.
Alguns dos mais sectários grupos dentro do judaísmo de então,
os qumranmitas, se autodenominavam "os pobres", como também o
faziam os cristãos ebionitas, de onde deriva o seu nome. Por séculos,
essa proeminência dada aos humildes e aos pobres fez com que a
riqueza fosse demonizada, ao mesmo tempo em que o clero cristão
passou a acumular verdadeiras fortunas terrenas, distanciando-se das
máximas pregadas pelo messias de Nazaré. Contudo, não podemos
acusar apenas o clero romano, posto que a venda de indulgências e
perdões atingiu a todas as denominações cristãs em algum momento da
sua história, com nomes diferentes, gerando a igreja da prosperidade,
ainda muito viva entre nós.
328
Também podemos entender que, partindo-se do princípio de que
os semelhantes se atraem, a permissão para entrar no reino de Deus é
universal, mas apenas os espíritos, encarnados ou não, que
apresentarem as características descritas nas bem-aventuranças irão
perceber a presença de Deus e receberão a dádiva da consciência plena,
limpa, condição indispensável para se manter nos planos espirituais
mais elevados. Quem procura Deus no espaço sideral nunca irá
encontra-lo, uma vez que Ele habita em cada um de nós.
O reino de Deus na Terra, em suas variadas descrições por
Jesus, reflete de forma bastante precisa e satisfatória a transformação da
Terra em um orbe de regeneração, deixando a categoria de expiação e
provas. O livro de Isaías e a resposta de Jesus à pergunta do Batista
sobre se ele seria o "que está para vir" (Mateus 11:2-6) dão uma idéia
desse reino, onde as doenças são curadas, o espírito se liberta da morte,
que passa a ser vista como uma mudança de fase e não algo absoluto,
definitivo. A tentação das forças do mal, simbolizadas pelo dragão, tão
presente no livro do Apocalipse (Apocalipse 12:3; 12:9; 12:13) e na
literatura espírita moderna (ver os brilhantes textos de Wanderley
Oliveira e Robson Pinheiro, além da tão consagrada obra de André
Luiz, pelas mãos do saudoso Chico Xavier) ainda se fariam sentir, mas
principalmente em função das nossas próprias limitações. Nesse mundo,
Jesus: homem e espírito
329
a grande maioria das entidades que se afinam com o mal instituído
serão transferidas para outros orbes do universo, em condições
vibratórias que satisfaçam a lei de afinidades e permitem a esses nossos
irmãos, talvez nós mesmos, reiniciar a caminhada a caminho da luz
divina, em alusão ao passado do nosso mundo como descrito pelo nosso
caro amigo Emmanuel (“A caminho da Luz”, psicografado por Chico
Xavier).
A importância da expiação do mal, que penetrava a tudo e todos,
no planeta, é enorme. Indubitavelmente a maior extensão dos
fenômenos mediúnicos descritos na Bíblia, envolvendo o messias de
Nazaré, se refere a casos de desobsessões que demandaram
intervenções suas. Assim, é de se esperar que uma nova humanidade
gere para si um ambiente mais saneado e adequado aos propósitos do
Pai Eterno, configurando as modificações que o próprio espiritismo
vem apregoando em associação com as demais igrejas cristãs e mesmo
não cristãs. Como todas as mudanças de posição, essa transformação
seria acompanhada de dores e destruição, criando o caminho para novos
valores e reconstrução.
Para quando Jesus e os primeiros cristãos esperavam a
concretização da chegada plena do Reino de Deus e o julgamento dos
homens, com a separação do joio e do trigo?
330
Existem diversas passagens no evangelhos que sugerem que a
chegada do Reino de Deus, em sua plenitude, era esperada com muita
ansiedade e seria iminente, deixando-se bastante claro que expressões
capazes de traduzir um tempo determinado, preciso, sempre foram
evitadas, a ponto de Jesus ter afirmado, com ênfase, que apenas o
Senhor Altíssimo era conhecedor do exato momento em que o
fenômeno se daria. Isso se deve ao fato de que Jesus tinha
conhecimento de como funcionava a mentalidade da população
sofredora que o seguia (em diversos planos da vida) e o peso da
opressão com os contornos da ocupação militar ou nas mãos de
tiranetes fantoches.
Entre os mais pobres e marginalizados, o estabelecimento de
prazos, que podem se estender por séculos e milênios, motivaria uma
atitude de quase desleixo para com a própria vida pessoal, em vista das
recompensas vindouras; uma vez que papel do mestre era exatamente o
oposto, fazer com que as pessoas se sentissem amparadas na profunda
modificação que teriam de imprimir no seu "eu" espiritual, eterno, para
que pudessem atingir outros planos de vida e consciência, necessários
na extensa caminhada em direção ao Pai, os prazos seriam um
contrassenso. Essa forma de pensar e agir visava evitar o
comportamento típico da nossa espécie e temos visto muitos exemplos
Jesus: homem e espírito
331
até nos dias de hoje, onde um líder carismático e messiânico propõe
uma data para o “julgamento final” e as pessoas abandonam o seu modo
de vida e se entregam a cantorias que apenas as entorpecem, deixando o
mundo e as infinitas atividades que nos preparariam para o advento de
um novo homem, paradas.
Contudo, não se pode deixar de considerar que acreditava-se em
uma vinda próxima do Pai. Pode-se ver isso em Mateus 10:23
("Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra;
porque em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades
de Israel, até que venha o Filho do Homem"), Marcos 13, 30 ("Em
verdade vos digo que não passará essa geração sem que tudo isso
aconteça"); 9:1 ("....dos que aqui se encontram, alguns há que, de
maneira alguma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com
poder o reino de Deus); Apocalipse 22:20 ("Certamente venho sem
demora. Amém! Vem Senhor Jesus"), mas esses textos provém da igreja
primitiva e não de Jesus, de forma que tinham o objetivo de manter o
espírito de coesão do grupo e de estimular uma atitude proativa frente à
crescente oposição das autoridades romanas e judaicas, no fim do
século I d. C.
Essa mesma igreja ainda esperava tanto a segunda vinda de
Jesus e do reino de Deus que se perguntavam o que ocorreria com
332
aqueles que estavam idosos, uma vez que esperavam, pela sua
simplicidade e desconhecimento do mundo espiritual, que seus corpos
fossem revitalizados com a chegada do reino (1Tessalonicenses 4:15-
17; 1Coríntios 15:51-53). Pena que as pessoas da época não tinham
condições para atentar que as palavras de Paulo ("Porque é preciso que
este corpo incorruptível se revista da incorruptibilidade, e que o corpo
mortal se revista da imortalidade") faziam clara alusão ao espírito e
suas propriedades básicas, como descrito 1800 anos depois na obra de
Kardec.
Foi graças a essas expressões que a igreja manteve alguma união
nas décadas que se seguiram à crucificação, quando vários discípulos de
Jesus já haviam passado para o outro lado do véu e o reino de Deus
ainda não havia chegado em sua plenitude, destinando-se essas palavras
a atuar como um lenitivo para o vale de sofrimento e dor que constituía
a base da vida no mundo do século II d. C, principalmente para um
judeu cristão, que estava sendo rejeitado pelo judaísmo corrente e pelo
cristianismo gentio, que logo transformaria Jesus na figura do Deus
Filho, criando a Trindade Divina, o que seria inconcebível para um
judeu praticante, como o próprio Jesus, Tiago, Pedro, João, Judas, filho
de José e irmão de Jesus, além dos demais discípulos e apóstolos
judeus.
Jesus: homem e espírito
333
Algo muito semelhante acontece com os cristãos modernos que,
ao desencarnar, esperam encontrar Jesus e Deus de braços abertos,
literalmente, esperando por eles. A enorme frustração quando não
podem volitar, na maioria dos casos, claro, quando sentem sede e fome,
frio e dor, bem como a angustia do tempo perdido sem trabalhos
dignificantes, impele o irmão a solicitar uma nova oportunidade de vida
no plano mais físico. Todas as vezes que desencarnamos, passamos por
uma análise de currículo, uma prévia desse juízo final e por isso
devemos parar de perder tempo pensando no que fomos no passado e
aproveitar tudo isso para determinar o que queremos ser no futuro.
Algumas expressões demonstram que o próprio Jesus não podia
e não queria falar com exatidão quando a transição planetária se daria,
descrevendo apenas as condições domundo na época do evento
esperado, como em Marcos 13:9-13, com os cristãos sendo delatados,
presos, açoitados e traídos pelas autoridades. Sabemos hoje que esse
texto também provém da igreja cristã após a revolta judaica, onde as
autoridades romanas e o povo comum entraram em choque e mais de
30% da população morreram e outro grupo bastante significativo foi
escravizado, com funestas conseqüências para o judaísmo, mudando a
cara do cristianismo nascente. Nesse texto, entretanto, o retorno do
mestre à frente do reino de Deus somente se daria quando a mensagem
334
de esperança do messias de Nazaré tivesse sido pregada a todas as
nações do mundo, o que seguramente não havia ocorrido no século II d.
C., o que é absolutamente condizente com a maravilhosa fala de Jesus,
quando coloca que "Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém
sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai. Estai de
sobreaviso, vigiai [e orai]; porque não sabes quando será o tempo".
Embora dotado de sublime evolução espiritual e de faculdades
mediúnicas impensáveis para nossos padrões atuais, o que levou seus
discípulos a divinizá-lo, Jesus sabia da importância do livre arbítrio e
essa peculiaridade incidia profundamente na Lei de Ação e Reação,
segundo a qual colhemos o que plantamos e nossas atitudes para com as
pessoas e para com o mundo hoje irão ditar como seremos tratados nos
múltiplos planos vibracionais que constituem o orbe terrestre. Dessa
forma, o tempo, ou seja o “quando”, seria determinado pela capacidade
da humanidade em livrar-se de suas mazelas e imperfeições grosseiras,
que fazem com que a psicosfera planetária se comporte de forma tão
densa e carregada, típica de um mundo de expiações e provas dolorosas.
Mas algo pode ser dito: o tempo se escoava rapidamente e pouco a
pouco a sociedade teria de encarar o seu destino através de eventos
apocalípticos, como ocorreu ao longo de todo o século XX e se mantém
enquanto essas linhas são redigidas. A própria intensidade do fenômeno
Jesus: homem e espírito
335
estaria condicionada ao trabalho de expiação que está em curso há
milênios.
336
8 A Mediunidade e o Messias de Nazaré
“...Senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada.
Dizei uma só palavra e serei curado...”
(Mateus 8, 8)
Jesus: homem e espírito
337
Ao contrário de seu mestre, João, o Batista, Jesus pontilhou o
seu ministério terreno com a realização de notáveis fenômenos
mediúnicos, que, por falta de compreensão maior por parte da
população, acabaram sendo considerados como eventos que rompiam a
lei de Deus e verdadeiros milagres realizados em prol de pessoas que,
naquele momento, ali se colocavam para recebê-los. Contudo, tudo o
que Jesus fez em vida está de pleno acordo com a lei de ação e reação,
tendo sido planejado com grande antecedência. Diversos fenômenos de
materialização, cura, vidência, audiência e, principalmente, desobsessão
(exorcismos) pontilharam o ministério público do messias de Nazaré.
Ele era um médium pleno, que, em função do seu domínio da
física do processo mediúnico, conseguia se comunicar com os diversos
planos da vida com a mesma facilidade com que falava aos seus
seguidores mais próximos, comandando, com a mente, a própria
estrutura do cosmo ao seu redor. A projeção de sua consciência fazia
com que Jesus entrasse em sintonia com outros espíritos crísticos
presentes em outros pontos do universo, de uma forma que as leis da
física não conseguem supor ou entender. A própria palavra
mediunidade precisaria ser repensada para incluir os diversos dons que
encontravam em Jesus sua máxima expressão.
338
8.1 Desobessões
Ao contrário dos pregadores da antiguidade, o Cristo utilizava o
"exorcismo", palavra aqui empregada apenas como referência ao
sentido que tinha no século I d. C., como uma aula e além de expulsar e
doutrinar o espírito obsessor, acabava exemplificando as relações entre
os diversos planos da vida. Embora os termos empregados na bíblia
indiquem a palavra exorcismo para descrever a atividade de doutrinação
de Jesus frente aos "demônios" que atormentavam a vida de diversas
pessoas, somos da opinião de que deveríamos utilizar o termo
"desobsessão", em função de que não aceitamos o conceito clássico de
"demônios", seres infinitamente maus e incapazes de seguir para o
caminho do bem.
Desde a civilização suméria e acadiana existem ritos de
exorcismo, registrados em todas as línguas da antiguidade. Esses
procedimentos eram muito comuns na Palestina inter-testamental e um
surto de obsessões parecia assolar o mundo de Jesus nessa época.
Outros exemplos de exorcismos remontam a Salomão e a literatura de
Qumran, onde diversos manuscritos do Mar Morto falam desses
fenômenos. Além disso, o próprio Jesus enviava seus discípulos para
exorcizar (Marcos 6:7; 9:38-40; Mateus 10:1-7; Lucas 9:1) e Paulo
também praticava a desobsessão e doutrinação de entidades umbralinas
Jesus: homem e espírito
339
(Atos dos Apóstolos 16:16-18; 19:12). Isoladamente constituem a maior
categoria de "fenômenos mediúnicos" ou "milagres" no Novo
Testamento.
No procedimento, Jesus não invocava Deus ou tinha palavras
prontas e atitudes estereotipadas, diferindo dos antigos magos, que,
proferindo nomes de deuses e termos incompreensíveis, procuravam
expulsar as "forças do mal". No caso do Cristo, sua superioridade moral
e espiritual eram suficientes para provocar a renúncia dos obsessores e a
cura das pessoas, as quais tinham de se comprometer com uma
mudança íntima se desejassem de fato impedir o retorno das entidades
que as atormentavam. Além disso, Jesus tinha a excepcional capacidade
de associar o papel de médium doutrinador (ou exorcista), mestre
sapiencial, profeta, médium de efeitos físicos e médium de cura. No
todo, ele era único.
Seu domínio sobre as entidades das trevas era tão significativo
que alguns de seus inimigos alegavam que ele expulsava os demônios
pela força dos próprios demônios, em um acordo particular, o que é um
absurdo. A defesa do mestre utiliza as passagens bíblicas nas quais os
magos do faraó, não conseguindo reproduzir as pragas lançadas por
Deus contra o povo do Egito, acabam por aceitar que o poder de Moisés
deriva de Deus também. Como ninguém conseguia reproduzir o poder
340
pessoal de Jesus, deveriam aceitar a origem divina do seu poder de
submeter o mal e expulsá-lo.
Para Jesus, os qumranmitas, Paulo e João, segundo J. P. Meier,
os seres humanos representavam o campo de batalha verdadeiro entre o
bem e o mal. Assim, se após um exorcismo o indivíduo voluntariamente
se recusasse a seguir o caminho do bem, acabava abrindo as portas para
o outro lado, o que mostra uma profunda semelhança com a visão
espírita, na qual os semelhantes se atraem. Não havia real neutralidade e
isso Jesus nos disse claramente quando comentou que "quem não é por
mim é contra mim". Assim, o exorcismo significava também uma
renúncia para a vida pregressa do indivíduo e uma transferência da
pessoa para a influência divina, mas essa transferência respeita o livre
arbítrio, como tantos textos espíritas também advogam no presente.
Outra peculiaridade é que os discípulos começaram a praticar o
exorcismo em nome de Jesus (Atos dos Apóstolos 16:18; 19:13), algo
que reflete todo o valor que seus seguidores lhe atribuíam. Outros
pregadores independentes também passaram a fazê-lo, mesmo sem
terem conhecido o mestre galileu.
Exemplos de encontros de desobsessão ("exorcismos") e a
probabilidade de terem de fato acontecido na vida de Jesus (segundo J.
P. Meier):
Jesus: homem e espírito
341
- o endemoninhado da sinagoga de Cafarnaum (Marcos 1:23-
28; Lucas 4:33-37): o demônio conhece a verdadeira identidade de
Jesus e é repreendido. Desobsessão provável;
- endemoninhado geraseno (Marcos 5:1-20): esse antigo
fenômeno de desobsessão deve ter de fato ocorrido, mas é difícil
separar o que há de acréscimo teológico na descrição. A história real foi
tão modificada por motivos teológicos que o texto se tornou de difícil
entendimento.
Primeiro problema: a cidade é pagã (Gerasa), em território
pagão, sendo o único exemplo real de exorcismo em cidade pagã. A
leitura do texto sugere que os versículos 11 a 13, onde os demônios
"entram" nos porcos e se atiram no mar da Galiléia, são acréscimos
tardios e não fazem parte da tradição original. Isso é uma clara
impossibilidade pelo pouco que sabemos da doutrina espírita, onde o
espírito não perde os atributos adquiridos, não podendo ir “habitar
porcos”, o que seria exemplo da metempsicose, combatida no século
XIX entre os espíritas.
As descrições originais desse exorcismo são mais adequadas,
uma vez que localiza o fenômeno na terra dos gerasenos, gadarenos,
gergesenos, gergesinos ou gersistenos, sem que se saiba onde isso fica.
Além desse aspecto, Gerasa fica a 56 km do mar e a descrição de porcos
342
se atirando ao mar perde completamente a coerência. Outras cidades da
Decápolis, como Gadara e Gergesa ficam junto das margens do lago e
seriam palcos mais prováveis para esse fenômeno. Possivelmente o
diálogo entre Jesus e os demônios que se auto-intitulavam "Legião" é de
autoria da igreja primitiva, mas mostram que eventos dessa natureza
ocorreram no seu ministério.
Dentro dos pontos teológicos quentes desse milagre, destaca-se
que os demônios conheciam a verdadeira identidade do Filho do
Homem, a qual não deveria vir à tona antes do momento crucial, na
cruz. Além disso, os porcos simbolizavam animais impuros e tal alusão
pode significar que o mal fora atirado fora e habitado na impureza das
criaturas que cercavam o novo homem.
-o menino possuído (Marcos 9:14-29): descrição extensa e
desconexa. Os discípulos não conseguem fazer o exorcismo. O
intermediário entre Jesus e o “demônio” não é o possuído, mas sim o
pai do menino. Jesus identifica, na fé do crente, a capacidade de realizar
o exorcismo, sendo que o endemoninhado possui toda a sintomatologia
dos portadores de epilepsia. Os semitismos presentes na fala do pai do
menino e a ausência de títulos para Jesus dão suporte à autenticidade
dessa passagem, caracterizando um evento provavelmente histórico;
Jesus: homem e espírito
343
- o endemoninhado mudo (e cego?) (Mateus, 12:22-23; Lucas
11:14): é a única narrativa de um exorcismo oriundo da fonte Q
(Quelle). Provavelmente a versão de Lucas é mais próxima da original;
- o endemoninhado mudo (Mateus 9:32-33): possivelmente é
uma história criada por Mateus para suas apresentações de milagres em
blocos de trincas, criando uma imagem semelhante à da discussão com
Belzebu no capítulo 12;
- exorcismo de Maria de Magdala (Lucas 8:2-3): Lucas relata
que haviam sido retirados sete demônios de Maria de Magdala. O
critério do constrangimento fala em favor da autenticidade do
exorcismo de Maria, uma vez que ela foi a primeira a comprovar que o
corpo de Jesus não estava no sepulcro e se mostrou bastante importante
para a igreja primitiva, após a crucificação do mestre. Reparem que
alguns ex-obsediados se tornaram seguidores do mestre. Nesse ponto,
vemos semelhanças com os centros espíritas modernos, onde antigos
obsessores se convertem em amigos da casa espírita a muitos
obsediados passam a trabalhar rotineiramente no atendimento fraterno;
- o exorcismo da filha da mulher siro-fenícia (Marcos 7:24-30;
Mateus 15,21-28): se assemelha ao caso do endemoninhado geraseno,
posto que se trata de uma mulher gentia, em território gentio. Existe a
magia de um judeu curar o gentio, de alto conteúdo teológico. A
344
linguagem áspera de Jesus, até certo ponto grosseira, bem como a
cristologia do fenômeno são tão patentes que a história é claramente
uma adição da igreja primitiva e não tem relação com o messias de
Nazaré. Cabe ressaltar que os diferentes aspectos dessa história se
destacam do texto, mostrando um “Jesus” muito diferente daquele que
emerge das demais tradições de exorcismos.
De uma perspectiva bastante conhecida pela família espírita,
Jesus dispunha, a seu favor, de toda a autoridade que sua elevação
espiritual conferia. Não precisava estabelecer amplos diálogos ou
discussões com as entidades obsessoras, que normalmente se
identificavam com o nome de demônios ou de forma semelhante aos
relatos de demônio da antiguidade.
A aproximação de Jesus já provocava uma comoção ao redor
dos indivíduos sob jugo das trevas; seu amor incondicional pelo Pai e
pelos seus irmãos terrenos fazia com que as entidades umbralinas se
afastassem em cólera ou reconhecem a própria condição lastimável em
que se encontravam e vertiam copioso pranto, sendo encaminhadas para
recuperação. Nos evangelhos, ficaram apenas registrados os casos mais
emblemáticos, que não encontraram a solução nas mãos dos apóstolos
ou que apresentavam peculiaridades teologicamente importantes.
Lembrem-se que o messias de Nazaré utilizava essas desobsessões para
Jesus: homem e espírito
345
doutrinar os encarnados também, mostrando que a retirada do
"demônio" seria temporária se não fosse seguida por uma modificação
significativa do ânimo e postura de vida da propalada vítima. Ao lado
do mestre havia extensa gama de espíritos de condição angelical que
também atuavam em tais circunstâncias, o que ajuda a explicar porque
esses casos de desobsessão eram prontamente resolvidos.
Hoje sabemos que a relação dos encarnados com os
desencarnados tomou boa parte do ministério de Jesus, mesmo que
inicialmente não tivéssemos consciência disso. Quando o mestre nos
solicitava a calma e a humildade, pedindo para que os encolerizados e
pecadores viessem a perdoar seus inimigos, desfazendo o círculo
vicioso que a lei do olho por olho e dente por dente acabava gerando
(pena de talião, inserida no Código de Leis de Hamurábi, depois de
mais de 1800 anos sendo praticada de forma generalizada), ele queria
dar um basta a esse estado de coisas. Desarmadas as mãos, dávamos um
passo para desarmar os corações voltados contra nós mesmos. A
solução: vá e te reconcilia com teu inimigo; dê a outra face; amor a
Deus em primeiro lugar e ao próximo como a ti mesmo. São inúmeras
as citações pedindo o perdão, imortalizadas na própria oração do Pai
nosso, onde as palavras “dívidas” e “devedores” traduzem o que ainda
impera no relacionamento entre os humanos, encarnados ou não.
346
8.2 Os fenômenos de curas
Embora saibamos que as doenças do espírito se manifestem no
corpo, de forma que os casos de obsessão com freqüência se convertem
em quadros de doenças no organismo físico, enfermidades
psicossomáticas também podem deixar marcas indeléveis no perispírito.
Entretanto, não incluímos as doutrinações de obsessores como
exemplos de procedimento de cura, embora no século I d. C. as doenças
do corpo eram consideradas como conseqüência de doenças do espírito
e, mais abertamente, da condição pecadora do homem, com muita
razão. Imagem semelhante hoje é professada por aqueles que acreditam
no efeito da lei de ação e reação nas entidades reencarnantes e
desencarnadas.
O poder de cura de Jesus não encontrou limites nem quando foi
colocado a serviço de seus "inimigos de momento". Em diversas
ocasiões de sua vida terrena ele é visto curando e pregando a mensagem
de Deus aos que se encontravam sem esperanças, pelo caminho. Essa
postura foi relatada por todos os evangelistas, embora segundo a
intenção de cada um.
Diversas foram as ocasiões em que Jesus, ainda menino, em
função do seu magnetismo peculiar, modificava o padrão das condições
Jesus: homem e espírito
347
vibratórias do local em que se encontrava, alterando, por conseguinte,
as enfermidades de toda monta que se faziam presentes, afetando até
mesmo o processo cicatricial, o que era providencial em um mundo em
que antibióticos e a maioria dos anti-sépticos eram desconhecidos.
Entretanto, a espiritualidade orientava Jesus a não dar início a
atividades ostensivas de curas e fenômenos mediúnicos públicos até que
as condições previamente traçadas se fizessem presentes e estas curas
não foram registradas no cânone e poucos se lembravam delas quando o
jovem Jesus saiu de Nazaré, para seguir a João, o Batista.
Aqui trataremos das curas físico-espirituais tradicionais, tais
como as doenças infecciosas, a hanseníase (lepra) em particular,
distúrbios de movimento, limitações motoras e, por fim, dos casos de
alegada ressurreição dos mortos descritos no Novo Testamento.
Em muitos desse eventos, como na cura do paralítico em Marcos
2:1-12, o fenômeno é precedido ou sucedido pela expressão de "os
pecados foram perdoados". Deve-se salientar que na passagem citada
acima Jesus também consegue sentir os pensamentos dos escribas que
assistiram ao fenômeno, na reunião em Cafarnaum. Esses escribas
diziam que apenas Deus teria o poder de perdoar os pecados. O mestre
assume toda a responsabilidade pelo fenômeno de cura e o associa com
o perdão divino dos pecados do paralítico. Nesse caso, tendo
348
restabelecido as suas contas com a lei de ação e reação, o paralítico
podia ser libertado de sua enfermidade e estava ali exatamente porque
assim havia sido detalhadamente planejado pelo Alto, cuja equipe
assessória estava sempre em comunhão profunda de pensamentos com
Jesus, transmitindo-lhe as informações que se apresentassem
necessárias nos fenômenos mediúnicos em questão.
Apesar do fenômeno das “dívidas pregressas” ou “carma
negativo” das pessoas que recebiam as curas, não se pode esquecer que
Jesus era possuidor de uma infinita capacidade de intercessão junto aos
poderes do Alto, permitindo assim que os resgates fossem rearranjados
de forma a permitir o alívio para os que sofriam. Uma vez que as
enfermidades eram encaradas como fruto dos problemas do homem
para com Deus, a cura, na prática, era interpretada como um perdão
explícito dos pecados do sofredor. Esse fenômeno de cura acima citado
ficou gravado nas mentes das pessoas que acompanhavam o mestre, não
só pela beleza plástica da cena, mas também pelas circunstâncias
especiais que levaram "o paralítico" para o centro das discussões sobre
o pecado e o papel do mestre de Nazaré.
Muitos estudiosos acreditam que uma outra versão dessa cura
tenha sido utilizada na redação da cura de um paralítico na piscina de
Bethesda, em Jerusalém, como narrado por João 5:1-9, sendo que, nesse
Jesus: homem e espírito
349
evento, os judeus discutem se seria lícito realizá-lo no sábado, dia
sagrado. Posteriormente, Jesus encontra no Templo o enfermo curado e
pede que o mesmo não peque mais, para que algo pior não recaia sobre
o mesmo. Essa piscina era, até recentemente, desconhecida das
autoridades da arqueologia de Israel e o fenômeno narrado apresenta
todos os elementos descritos sobre o drama de expiação de débitos
passados e, acima de tudo, sobre a oposição a Jesus, que crescia entre as
camadas do topo da pirâmide social judaica.
Essa polêmica sobre trabalhar no sábado ainda é descrita na cura
da mão atrofiada de um homem (Marcos 3:1-6), em que Jesus utiliza-se
de sua autoridade moral para, ao curá-lo, questionar também o que seria
lícito de ser fazer no dia santo, concluindo que o bem deve ser praticado
sempre, independentemente do momento. Mais uma vez, ele determina,
com suas palavras, que a cura se faça e isso ocorre. A descrição simples
e coerente com a quase totalidade das curas relatadas pelos evangelistas
é tocante e corrobora para que acreditemos na historicidade do fato
narrado.
Semelhante, em termos de estrutura, destaca-se a cura da mulher
encurvada (Lucas 13:10-17), repetindo-se a crítica de Jesus à proibição
de curas ao sábado, bem como a oposição entre o bem, representado
pela cura e por aquele que a realizou, e a doença, serva do mal. Esses
350
fenômenos de cura mostram muitos acréscimos de redação na bíblia,
mas a tradição que carregam mostra que faziam parte do universo das
pessoas que acreditavam em jesus e não são fantasias para tentar
converter gentios ou judeus. Crossan acredita que as descrições de curas
pela fé realizadas por Jesus foram sendo paulatinamente apagadas do
cânone porque os cristãos não conseguiam explicá-las, o que provocava
certo desconforto; apenas os casos mais conhecidos acabaram
recebendo uma posição nos evangelhos canônicos.
A cura de doenças à distância, como a lepra da filha do senador
romano Publius Lentulus Cornelius, como descrito no livro "Há 2000
anos", de autoria de Emmanuel e psicografado pelo médium Francisco
Candido Xavier, bem como a paralisia ou doença grave do filho do
centurião romano (Mateus, 8:5-13; Lucas 7:1-10) e do filho do oficial
real (João 4:46-54), fazia parte do universo mediúnico de Jesus e
evidencia as potencialidades que esse tipo de mediunidade possui “nas
mãos” de um espírito de grande envergadura moral e espiritual. Em
todos esses casos, o mestre não precisava sequer ter o contato visual
com a pessoa que vai receber a cura, ele parece apenas ponderar sobre a
situação e procede a realização do fenômeno.
Embora muitos estudiosos julguem que esses três procedimentos
descritos no cânone dizem respeito a um único caso real, que foi
Jesus: homem e espírito
351
ganhando cores diferentes à medida em que a história se disseminava,
estamos inclinados a considerar que a descrição de João e a de
Mateus/Lucas dizem respeito a eventos diferentes, mas ligados entre si
pela grande capacidade de cura de Jesus, que, a julgar pelas mensagens
espíritas e descrições cristãs de variada afiliação, transcendia a tudo
conhecido até então, bem como pela sua forma simples de atuar, sem
mistérios ou passes de mágica.
Dentro dessa fenomenologia merece destaque o papel das curas
envolvendo cegos, como narrado em Marcos (8:22-26; 10:46-52).
Nesse evangelho, a cegueira física do homem encontra a cegueira
espiritual em paralelo e, a despeito da forma elaborada em que o
fenômeno de cura é narrado, incluindo-se o fato de Jesus ter utilizado de
procedimentos que eram comuns para médicos e mesmo mágicos do
mundo antigo, como o emprego de saliva na cura, corroboram para que
acreditemos em um fenômeno verdadeiro, mesclado com teologia da
igreja primitiva.
Deve-se salientar que a cura da cegueira em Betsaida ocorreu
em dois procedimentos diferentes, sendo que Jesus questiona se o
suplicante conseguia enxergar ao seu redor. Esse questionamento foge
da imagem que os defensores de Jesus como um Deus Filho fariam,
mostrando que sua origem reside em tradição muito antiga, antes da
352
divinização do messias de Nazaré pelo público greco-romano e mesmo
palestino. Pode-se ver em todo o texto as marcas que a cegueira da
inferioridade espiritual humana traduz. A pior cegueira é aquela de
quem não quer ver.
A presença de outras histórias de curas de pessoas com
deficiência visual, como o cego de nascença em João 9:1-7, parecem ter
base histórica real e, nesse texto, Jesus utiliza de sua saliva para
preparar uma mistura com terra, de forma que o indivíduo a ser curado
se lavasse na piscina de Siloé. Nesse fato existe um velado
questionamento sobre a reencarnação, quando os apóstolos perguntam,
ao messias de Nazaré, se a condição de cegueira ostentada desde o
nascimento pelo personagem da história se devia a um pecado de seus
pais ou dele mesmo. Como a doença era congênita, somente faria
sentido a pergunta se alguns considerassem plausível o fenômeno das
reencarnações e o problema de débitos para com a lei divina delas
decorrente, uma vez que se o próprio indivíduo teria a doença de
nascença, seu pecado teria que ter ocorrido antes do nascimento, ou
seja, em uma encarnação anterior. Estudos mostram que, a despeito de
modificações redacionais que enalteciam o papel de Jesus com filho de
Deus, existe uma história verdadeira de cura sob o texto bíblico. A
piscina de Siloé também era palco de importantes atividades religiosas
Jesus: homem e espírito
353
por ocasião da festa dos Tabernáculos, quando essa cura físico-
espiritual teria ocorrido.
Jesus ainda é visto curando a sogra de Pedro, que possuía febre e
estava acamada, possivelmente portadora de alguma doença infecciosa
(Marcos 1:29-31; Mateus 8:14-15; Lucas 4:38-39), uma mulher
portadora de hemorragia (Marcos 5:25-34; Mateus 9:20-22; Lucas 8:43-
48), possivelmente de natureza ginecológica, um surdo-gago (Marcos
7:31-37), um homem hidrópico (Lucas 14:1-6), que mais uma vez
origina uma discussão sobre cura no dia do sábado.
O episódio da mulher com hemorragia, que possivelmente
possuía uma enfermidade ginecológica que a impossibilitava de seguir
as regras de pureza ritual, bem como a cura surdo-gago, apresentam
nuances de magia, mas possivelmente esses apelos redacionais refletem
o universo de Marcos e não os procedimentos de cura realizados por
Jesus. No caso do surdo-gago, o autor ainda procura, citando regiões
habitadas por gentios, mostrar que a mensagem divina e as curas a elas
associadas poderiam estar à disposição de não-judeus. No caso do
surdo-gago, Jesus assume uma postura de oração ao Pai Eterno e aí
concede a cura ao enfermo.
Dentre as curas mais difundidas nas tradições populares merece
destaque, pelo seu teor e apelo poéticos, a cura dos leprosos, como
354
descrito por Marcos (1:40-45), com suas variáveis nos evangelhos de
Mateus e Lucas, e a cura dos dez leprosos (Lucas 17:11-19).
Poucas doenças na antiguidade representavam melhor o estigma
do pecado do que a hanseníase (lepra). A forma lepromatosa dessa
enfermidade está associada à destruição das extremidades do corpo,
além do profundo comprometimento sistêmico. Nesses pacientes, a
destruição tecidual se avoluma de forma significativa, sem o tratamento
medicamentoso adequado, universalmente disponível em nosso tempo,
mas desconhecido no século I. d. C. Assim, entende-se a preocupação
descrita por Emmanuel no livro "Há 2000 anos", onde, na condição de
senador romano, apresentava uma filha pequena portadora dessa doença
infecciosa (no livro “As vidas de Chico Xavier”, o jornalista Marcel
Souto Maior afirma que essa menina, filha do referido senador, seria
uma encarnação anterior de Chico Xavier, mas não descreve como a
informação lhe fora passada). Contudo, a doença presentemente
denominada de hanseníase ou lepra pode não corresponder ao texto
grego dos evangelhos, que sugerem a existência de uma doença de pele
persistente e mutilante, mas não necessariamente hanseníase.
Deve-se também destacar que a discussão sobre a cura, presente
no evangelho de Lucas, provavelmente reflete a intenção do autor de
mostrar a universalidade da mensagem cristã, com os gentios e
Jesus: homem e espírito
355
samaritanos aceitando a mensagem do mestre de Nazaré enquanto
muitos judeus não o faziam. Sabemos que a ocorrência de afecções
cutâneas graves ou persistentes era e é bastante comum na Palestina,
principalmente na época de Jesus, e, em função do seu estigma, os
portadores eram mantidos à margem da vida social, de forma que o
número de casos de hanseníase e doenças cutâneas curadas por Jesus foi
significativamente maior do que o relatado pelo cânone, mas esses
procedimentos de cura ocorreram durante seus diversos deslocamentos
pelo norte da Palestina e/ou no caminho de Jerusalém, quando esses
portadores podiam ser observados fora das vilas e povoados e as curas
acabaram não sendo conhecidas do público que redigiu os textos
canônicos.
Existem, entretanto, algumas citações de curas que são oriundas
da igreja primitiva, sem forte vínculo com a história real de Jesus, como
a cura do ferimento de espada na orelha do servo do Sumo Sacerdote,
que havia sido decepada, conforme descrito em Lucas (22:49-51) e
Mateus (26:51-52). Uma análise mais acurada do texto, sugere que a
cura do servo seria criação dos evangelistas e não uma cura real. Nesse
ponto, os evangelistas procuraram mostrar que até na derradeira hora de
sua vida, quando os inimigos trabalhavam ativamente e para prender e
crucificar o messias, Jesus ainda pensava amorosamente nos seus
356
oponentes como irmãos (e isso era único e bastante marcante na
personalidade do mestre).
8.3 Ressurreição dos mortos
De todos os fenômenos que seguem a vida de Jesus até o
calvário, a ressurreição de três pessoas diferentes constitui e o ponto
mais desconcertante, por diversos aspectos. Em primeiro lugar, essa
atitude, se confirmada, subverteria a ordem da estrutura das
comunidades e da vida em si. Como diz o ditado popular, "de certo
apenas a morte" e com a ressurreição dos mortos cria-se uma pedra
angular que precisa ser analisada cuidadosamente.
Os espíritos desencarnados que buscam a luz evangélica
possuem os mesmos mecanismos de pesquisa e estudo que nós,
encarnados, e são movidos pelas mesmas forças e desejos de verdade e
justiça. Temos que ter o cuidado de, encarnados e desencarnados,
admitir que estamos diante de uma condição na qual podemos apenas
dizer se o fenômeno de ressurreição dos mortos fazia parte das atitudes
que a população palestina do século I d. C. atribuía a Jesus e a forma
com que encaravam esse fenômeno. Obviamente que não temos
condições de julgar se um indivíduo que "morreu" no ano 29 d. C.
estava morto de fato ou sofria de catalepsia ou letargia, ou estava em
Jesus: homem e espírito
357
estado comatoso, de forma que temos que ter muito cuidado com essas
considerações. Se, para o homem moderno, essas histórias aparecem
risíveis, o mesmo não ocorria no século I d. C. e, decididamente, não
podemos rotular de tolos e ignorantes a todos que presenciaram os
referidos fenômenos narrados no cânone.
Outro aspecto que dificulta uma análise mais aprofundada desse
fenômeno reside no fato de que as histórias de ressurreição foram
escritas décadas após os eventos narrados, como, aliás, todo o cânone.
Contudo, se falamos da cura de um paciente cego temos uma boa noção
da descrição da sua condição, a qual pode ser mais sucinta. Nesse
ponto, o mesmo não ocorre com as ressurreições bíblicas, visto que
essas necessitam descrever no texto algo que, de fato ateste a condição
de "morto” do personagem, sendo nesse ponto que as controvérsias
esbarram. Não podemos esquecer que pacientes portadores de
condições como "coma profundo", catalepsia ou próximos da morte
física podem ter sido considerados clinicamente mortos sem o estarem
de fato, lembrando-se que, em função de aspectos religiosos, os corpos
eram precocemente recolhidos ao túmulo.
Uma vez que as histórias são remotas, como confiar na
descrição que é feita do fenômeno? Sobre isso discutiremos,
rapidamente, a seguir.
358
Três histórias de ressurreição dos mortos estão diretamente
ligadas a Jesus:
- a ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5:21-43; Mateus
9:18-26; Lucas 8:40-56). A versão de Marcos é a forma mais original e
foi abreviada por Mateus e reestruturada por Lucas. Nesse caso, a
menina muito doente acaba "morrendo" e o pedido de cura feito por
Jairo se converte na necessidade de um fenômeno ainda maior, a
ressurreição da morta.
Alguns estudiosos enxergam uma história bastante diferente nas
entrelinhas do texto bíblico, onde Jesus cura uma enferma terminal, mas
ainda viva, daí a ênfase em afirmar que ela não estava morta, mas
"apenas dormia". Nesse caso teríamos uma história de cura que foi
convertida em outro fenômeno absolutamente radical, embora não
existam elementos suficientes para darmos essa interpretação como
segura e certa. O que mais chama a atenção é que, se essa
transformação ocorreu, ela se deu perto ou no período de vida de Jesus,
uma vez que a história apresenta notável arcabouço aramaico por trás
do texto grego presentemente encontrado nos evangelhos, remontando a
uma tradição bastante antiga;
- a ressurreição do filho da viúva de Naim (Lucas 7:11-17).
Nesse texto percebe-se uma característica bastante relevante nos
Jesus: homem e espírito
359
fenômenos descritos como casos de ressurreição: Jesus é aceito pelos
mais humildes enquanto existe descrença entre os mais poderosos, os
quais apenas se curvam às evidências após a realização da cura-
fenômeno.
O texto de Lucas faz jus à teologia do evangelista, que considera
o mestre de Nazaré o verdadeiro senhor da vida e da morte, para o qual
uma palavra basta para levantar um defunto de seu esquife.
Aqui temos maiores dificuldades de simplesmente atribuir à uma
doença terminal a condição do morto, que se encontrava a caminho do
campo de paz. Acompanhado pelos seus, Jesus ordena-lhe que se
levante, no que o "ex-defunto" atende. Por outro lado, não descreve as
circunstancias da morte do jovem e também não elimina a possibilidade
de uma condição letárgica ou cataléptica.
- a ressurreição de Eleazar/Lázaro (João 11:1-46). Esse evento
é considerado, pelo evangelista, como o motivo principal que teria
levado à crucificação de Jesus, o que não corresponde à verdade, até
onde sabemos.
Nesse evangelho, a ressurreição de Lázaro, com algumas das
linhas mais belas de todo o cânone cristão, é o ponto alto do ministério
de Jesus e, por isso mesmo, considerado como o protótipo de discussão
entre os espíritas e os seguidores das demais religiões cristãs.
360
Antes de discutirmos esse ponto, gostaríamos de deixar claro
que a revelação da verdade se faz apenas de acordo com o merecimento
e a compreensão daqueles que a buscam e não temos qualquer interesse
na polêmica inútil e estéril que, quase sempre, acompanha a discussão
da fenomenologia da ressurreição de Lázaro. O objetivo maior do
espiritismo é prover condições necessárias para a reforma íntima e,
nesse aspecto, não precisamos de crer em reencarnação ou qualquer
outro fenômeno, uma vez que a cada um será dado de acordo com suas
obras e não segundo suas crenças. Crer em algo e não praticar é falta
não apenas de inteligência, mas também de coerência. Muitos
seguidores de religiões literalistas estarão em planos mais elevados do
que o nosso por terem praticado o bem e a caridade, enquanto outros, de
ambos os lados da vida, continuarão em discussões inúteis sobre a
ressurreição dos mortos.
De todos os fenômenos denominados de "milagres" pelas igrejas
cristãs, a ressurreição de Lázaro possivelmente é o que apresenta maior
reformulação teológica dos acontecimentos, de tal forma que determinar
como era a história original é praticamente impossível, embora a quase
totalidade dos eruditos seja uniforme em concordar que o evangelista
não criou a história, como assevera Meier. Esse brilhante pesquisador
católico acredita que as passagens 11:2; 11:7-8; 11:9-10; 11:1-16 e
Jesus: homem e espírito
361
11:33-38 e 11:40 são acréscimos dos evangelistas ligados ao
desenvolvimento do evangelho de João.
Na história original, retirando-se grande parte dos acréscimos
posteriores, Maria e não Marta tem proeminência no desenrolar da
trama. Marta é sempre uma carta na manga do evangelista, que a utiliza
para os discursos teológicos que o caracterizam, daí a necessidade dela
ter maior relevância na história. Nesse texto, Jesus afirma que Lázaro
dorme e, sendo questionado pelos discípulos sobre o sono de seu amigo,
o mestre de Nazaré declara que seria o sono da morte. Essa passagem
ambígua precisou ser "arrumada" através de acréscimos posteriores para
mostrar que Lázaro, ou melhor Eleazar, estava de fato morto. Assim,
discutir detalhes sobre o texto joanino é perda de tempo. O que se pode
falar é que algum evento bastante relevante foi considerado como um
exemplo de ressurreição dos mortos e assim foi sendo passado para as
gerações seguintes, onde a história foi ganhando os contornos típicos do
Quarto Evangelho.
A doutrina espírita, até onde o nosso Pai Misericordioso nos
permitiu ir, nesses 160 anos, vem mostrando a impossibilidade de
mudar a Lei divina, de forma que a morte do invólucro carnal
representaria evento irrevogável para a romagem do espírito. A
deterioração das estruturas celulares e a dissolução dos liames que
362
mantinham os corpos espirituais ligados ao corpo caracterizariam
evento que, uma vez concretizado, não seria revertido. Tomamos todo o
cuidado na discussão acima em função das susceptibilidades pessoais e
pelo fato de que as reais potencialidades da lei divina ainda constituem
campo de estudos. Acredita-se que Lázaro tenha apresentado um quadro
cataléptico ou letárgico, do qual foi retirado em função do chamado de
Jesus e seu inigualável magnetismo, como a obra de Kardec evidencia.
Alguns comparam a ressurreição de Eleazar/Lázaro e demais
personagens descritos acima e a presumível ressurreição do messias de
Nazaré. Enquanto a primeira é vista como um evento transitório, no
qual o beneficiário voltaria provisoriamente à vida, a segunda, para os
irmãos que seguem igrejas mais literalistas, representa a vitória de Jesus
sobre a morte física, de forma que todos aqueles que nele crêem
também passarão por fenômeno semelhante, sendo que essa imagem
dominou o cristianismo nos tempos do apóstolo Paulo. Contudo, sob a
luz da doutrina espírita e da razão moderna, acredita-se que a
ressurreição de Jesus representaria um fenômeno de materialização
espiritual, enquanto que a vitória definitiva sobre a morte seria
representada pelo conhecimento que devemos nutrir de uma vida além
dessa vida, onde o caminhar torna-se mais ou menos áspero em função
Jesus: homem e espírito
363
das nossas atitudes e livre-arbítrio. O espírito é imortal, mesmo que ele
próprio, quando encarnado, não acredite nisso.
Dessa forma, acreditamos com segurança que os casos de
ressurreição dos mortos são exemplos claros de cura de doenças ou
estados de quase morte nos quais uma grande força motriz teológica
acabou transformando em uma vitória contra a morte física. O principal
motivo que nos leva a crer nessa assertiva recai sobre a falta de sentido
prático nesse fenômeno, posto que morte está de acordo com lei divina
para seres imperfeitos como nós, que estamos nos primeiros passos da
escola da vida; revogá-la seria um contra-senso.
A mesma vitória sobre a morte poderia ser obtida acreditando-se
na continuidade da vida após a morte física, em uma corpo mais ou
menos liberto das paixões e animosidades de nossa esfera de atuação.
Devolver a vida apenas para mostrar um "poder divino" não está de
acordo com a imagem que o próprio mestre de Nazaré cultivou: a do
mensageiro da vontade divina e o farol que guiaria o espírito humano
em direção a novos padrões de comportamento e atitudes.
8.4 Vidência, Audiência e Presciência
O cânone está repleto de feitos e passagens nas quais o mestre
de Nazaré toma conhecimento de fatos e fenômenos em locais e tempos
364
distantes dele. Nos casos conhecidos de "ressurreição dos mortos",
Jesus parece ter ciência da condição do personagem alvo, o mesmo
ocorrendo com a grande maioria dos fenômenos de cura relatados nos
evangelhos.
Nas Narrativas da Paixão, Jesus previu seu destino junto ao
madeiro e a traição de um dos seus apóstolos, além da própria negação
de Pedro, o que causou um grande mal estar entre os membros das
primeiras comunidades cristãs na Palestina e reflete um fato real,
histórico. Em diversas situações o messias de Nazaré parece saber
detalhes sobre o que havia de ocorrer ao adentrarem uma dada
comunidade. Visões sobre problemas que atormentariam a igreja são
relativamente frequentes, embora a maioria deles tenham sido redigidos
pela própria igreja, na época em que os problemas aconteciam, e
devemos ignorar algumas dessas passagens, uma vez que não provém
do mestre.
São clássicas as previsões de Jesus sobre o destino de Jerusalém,
tendo se comovido com a imagem de desolação e destruição que
tomariam conta da cidade 30 anos após sua morte na cruz. Nesse
particular, alguns estudiosos racionalistas advogam que essas previsões
constituem um claro de exemplo de profecia ou previsão que se torna
pública após a ocorrência do fenômeno previsto. Assim, as previsões
Jesus: homem e espírito
365
sobre a queda de Jerusalém teriam sido registradas nos anos 70 a 90 d.
C., quando a cidade já teria sido destruída. Fenômeno semelhante
ocorre em todo o livro de Daniel. Contudo, embora tenham sido
registradas após a ocorrência do fato previsto, acreditamos que a
previsão ficou na memória da população que acompanhava Jesus e, em
função de suas implicações teológicas, seria transferida para o texto
final daqueles evangelhos, uma vez que a previsão se confirmara. Nessa
condição, a previsão fora preservada na memória em função de ter se
concretizado como um todo. Muitos espíritas e outros cristãos possuem
previsões que ficam na memória por décadas até que os fatos previstos
venham a acontecer.
8.5 Fenômenos mediúnicos sobre a natureza e a matéria
Os fenômenos mediúnicos associados à manipulação da matéria
constituem uma outra grande categoria de eventos impressionantes
associados a Jesus e seu ministério, significando o domínio da mente do
espírito sobre a estrutura molecular e atômica do universo.
Bastante raros, esses fenômenos são frequentemente
desacreditados, considerados embustes e fraudes. Contudo, foram muito
mais numerosos do que imaginamos e sua execução depende de um
conhecimento mais profundo da própria estrutura da matéria e das
366
dimensões espaço-temporais que caracterizam nosso cosmo. Assim, a
discussão fenomenológica não será abordada, visto que foge aos
objetivos iniciais desse nosso pequeno ensaio, mas deverá ser abordada
oportunamente em estudo futuro. Iremos nos ater à historicidade das
descrições evangélicas.
Essa categoria de fenômenos mediúnicos é bastante complexa e
heterogênea e foi incorporada aos evangelhos canônicos em um período
de afirmação da fé cristã, quando grandes discussões eram travadas na
igreja primitiva, como o respeito às tradições judias ao Templo, bem
como a comparação entre Jesus e Yaveh, Deus Pai, como forma de
afirmar a existência da “Santíssima Trindade”.
Temos informações de que a força mental, produzida pelos
espíritos encarnados e desencarnados, é capaz de interferir na estrutura
da matéria convencional e muito mais na estrutura da matéria espiritual
(nome esse impreciso mas que, por falta de terminologia mais
adequada, será aqui empregado). Contudo, tais fenômenos físicos são
bastante incomuns e sua explicação e comprovação científicas
necessitam de muita atenção. Jesus em diversos momentos teria
manipulado o ambiente físico ao seu redor, mas pouca coisa confiável
ficou registrada nos evangelhos, os quais tentam exemplificar esses
fenômenos e acabam por criar passagens que não remetem a ele.
Jesus: homem e espírito
367
É bastante difícil estabelecer com segurança se algum evento
narrado nos evangelhos apresenta clara correlação com o mestre galileu,
mas poucas passagens são tão dissociadas dele quanto a morte da
figueira estéril após uma maldição proferida contra ela (Marcos 11:12-
14; 11:20-21; Mateus 21:8-20). O texto é desconexo e, em verdade,
procura comparar uma árvore que não dá fruto e deveria ser cortada ou
eliminada, com os seres humanos que são estéreis de coração, que
seriam penalizados no final dos tempos, em pleno julgamento divino da
humanidade. Essa comparação é o que motivou a criação dessa
passagem que vai contra tudo aquilo que seguramente se originou do
mestre Jesus.
Além desse aspecto básico, não podemos nos esquecer que a
figueira não tinha frutos porque não era época de figos e Deus nunca
cobraria atitudes de seus filhos fora do tempo, em uma época na qual
eles ainda não tivessem o preparo para tê-las. Incoerente se tivesse
vindo do mestre, mas perfeitamente compreensível em uma discussão
entre membros da igreja, décadas depois, sobre o juízo final e o reino de
Deus. Pode ser considerada uma exortação das pessoas ao
arrependimento e oração e NÃO provém de Jesus ou de seus primeiros
seguidores.
368
Outro exemplo de extrapolação da igreja incluído no ministério
terreno de Jesus diz respeito à pescaria do peixe com a moeda na boca,
para o pagamento do imposto do Templo, para Jesus e Pedro (Mateus,
17:24-27), na qual toda a redação é montada apenas para mostrar que
Pedro era o preferido do mestre de Nazaré. Essa passagem é
considerada uma clara interpolação da igreja primitiva, que julgava
legitimar o poder de seus líderes sobre os líderes de outros grupos
cristãos concorrentes.
A pesca, em uma região de pescadores e pessoas simples,
sempre exerceu fascínio nos discípulos de Jesus e outro de seus
pretensos "milagres" teria levado a uma pesca extremamente abundante
no mar da Galiléia ou de Tiberíades, de fato uma das regiões mais
piscosas do mundo antes que a administração de Israel passasse a
desviar quase toda a água do rio Jordão, que o alimenta, para o cultivo
irrigado. As duas descrições desse fenômeno (Lucas 5:1-11; João 21:1-
14; 21:15-19) se referem a uma única tradição original, a despeito das
diferenças significativas entre os textos, como atestado por J. P. Meier.
Podemos dizer, com alguma segurança, que a versão joanina é
mais próxima da história original, que teria ocorrido após a
crucificação, com Jesus na condição de espírito materializado, e não no
começo do ministério público, como coloca Lucas, para o qual a
Jesus: homem e espírito
369
história serve de base para a introdução de Pedro, seu mestre, e o
convite para os primeiros discípulos pescadores, conforme descrito por
Marcos (1:16-20) e Mateus (4:18-22).
Essa história representa um de muitos fenômenos que ocorreram
após o desencarne do mestre e que foram transferidos para o seu
período de vida terreno, como forma de realçar alguma característica ou
teologia do evangelista. Isso explicaria a natureza quase impessoal de
Jesus, o qual não foi imediatamente reconhecido pelos discípulos. Essas
aparições do mestre de Nazaré, materializado, após a crucificação,
deixam perceber o papel dos médiuns Pedro, Tiago e João, sempre
presentes quando fenômenos de materialização e efeitos físicos podem
ser divisados.
Essa tendência de transferir as aparições de Jesus pós-
crucificação para o ministério público pode ter originado o "caminhar
sobre as águas". Em todos os fenômenos mediúnicos comprovadamente
ligados ao mestre de Nazaré, o fato narrado é realizado em benefício de
alguém e, muitas vezes, para transmitir alguma informação nova e
relevante. Porém essa tendência se desfaz no texto de Marcos (6:45-52),
Mateus (14:22-33) e João (6:16-21), onde ventos fortes assolavam o
lago ou mar da Galiléia, mas sem representar risco para os discípulos,
que estavam tentando atingir a outra costa. Ainda caberia salientar que a
370
descrição dos fatos sugere que o fenômeno teria ocorrido na madrugada
(entre 3:00 e 6:00 horas) e os próprios discípulos não reconheceram
imediatamente o messias de Nazaré, amedrontando-se com a aparição
fantasmagórica, algo que seria bastante plausível se não esperassem
Jesus por ali e ele estivesse aparecendo em condições físicas incomuns.
Essa descrição tenta mostrar o total controle que Jesus tinha sobre os
elementos da natureza, como o vento, que cessa assim que o mestre
entra no barco, preenchendo os requisitos típicos de Yaveh, o Deus
Justo e, por vezes, Cruel, do Velho Testamento.
Algo semelhante e muito mais evidente é narrado por Marcos
(4:35-41), uma vez que Mateus (8:23-27) e Lucas (8:22-25) apenas se
utilizam da tradição marciana. O messias de Nazaré utiliza-se do
imperativo e ordena que a tempestade seja aplacada. Toda a cristologia
e a discussão sobre o papel de Jesus após o fenômeno mostram
claramente que a história é engendrada para criar o mesmo clima de
domínio sobre a natureza incontrolável que Yaveh apresenta nos textos
do Antigo Testamento, constituindo criação da igreja primeva.
Podemos divisar o mesmo fenômeno de criação da igreja
primitiva ou de um evangelista nas bodas de Caná (João 2:1-11), onde
Jesus é chamado por sua mãe para transformar água em vinho. Nessas
passagens fica claro que os autores utilizam-se de toda a narrativa para
Jesus: homem e espírito
371
simbolizar a fartura da ceia do Senhor, no fim dos tempos, bem como o
encontro da noiva, a igreja cristã, com o seu noivo, Jesus, em uma
condição espiritual. Mesmo que o casamento em Caná fosse um fato
real e não um evento simbólico, como o encontro do messias e seus
seguidores, ele cria as condições adequadas para que o evangelista
traduza suas intenções e venha a converter a descrição do evento em
uma plataforma para propalar aos quatro ventos a mensagem do(s)
seu(s) autor(es). Sem as características tipicamente joaninas, a história
perde sua coerência e mostra a falta de um substrato histórico confiável,
como atesta Meier.
De todos os fenômenos com possíveis bases mediúnicas
descritos no Novo Testamento, ligados a Jesus, destacam-se os
fenômenos de alimentação de multidões. Dois diferentes episódios são
descritos em Marcos (6:30-44; 8:1-10), Mateus (15:32-39), mas apenas
um em Lucas (9:10 -17) e João (6,1-14). Acredita-se que inicialmente
havia apenas uma tradição de multiplicação dos pães e peixes, que foi
incorporada de forma independente na tradição do Quarto Evangelho e
no texto de Marcos, o qual, como vimos anteriormente, é a base dos três
evangelhos sinópticos.
A corrente acadêmica mais proeminente tem muitos motivos
para supor que esses eventos são fruto da igreja primitiva, não
372
procedendo de Jesus, particularmente por se assemelhar a eventos
miraculosos relatados no Antigo Testamento e, quando isso ocorre,
quase sempre os evangelistas estão tentando fazer um paralelo ou
comparação entre as características de Yaveh e dos homens santos da
Palestina com o messias de Nazaré, como discutido acima. Entretanto,
alguns círculos espíritas supõe que o fenômeno da "multiplicação dos
pães e peixes" tenha de fato ocorrido, mesmo que sua descrição bíblica
esteja carregada de teologia cristã que se desenvolveu posteriormente.
Somos dessa opinião. Nesse caso, o que poderia ter de fato ocorrido?
Enquanto alguns espíritos se afinam com a idéia da
materialização direta dos pães e peixes, outros, como Emmanuel,
colocam que o alimento oferecido à multidão, pelos discípulos de Jesus,
provocou saciedade não pela multiplicação da quantidade disponível,
mas porque estavam carregados dos fluídos do mestre nazareno, os
quais atuaram sobre os centros de força das pessoas envolvidas e
induziram a condição de satisfação alimentar, uma vez que sabemos da
importância de sentimentos e energias para a fisiologia não apenas do
corpo espiritual, mas também do próprio corpo físico, seguindo a
filosofia de que "nem só de pão vive o homem" e isso é narrado em
diversos livros de André Luiz.
Jesus: homem e espírito
373
9 A crucificação de Jesus
“...Levaram então consigo Jesus. Ele próprio carregava a sua
cruz...”
(João 19, 17)
374
O cristianismo literalista é extremamente dependente, do ponto
de vista histórico, do processo que foi armado contra Jesus e também do
fenômeno que culminou com sua crucificação, dando início ao ponto
teológico clímax do evangelho que foi a ressurreição. Contudo, ao
longo dos anos, os textos canônicos foram sendo reexaminados por
profissionais que conheciam os direitos romano e judaico, de forma que
numerosas incoerências passaram a aflorar da redação.
Para outras vertentes cristãs, o ponto clímax da vida terrena de
Jesus consistiu de sua pregação de 2-3 anos, nos quais passou a
defender a igualdade e a importância da humildade como ingresso para
o reino divino. Sua morte, para essas vertentes não literalistas, encerra
muitas lições, destacando-se a fé de Jesus na vitória do homem frente a
suas próprias limitações, o valor da humildade e da devoção total ao
Pai, sem qualquer alusão a sacrifício de um cordeiro de Deus, em alusão
ao rito sacrificial no Templo, praticado pelos judeus do século I d. C.
Por anos, os estudiosos cristãos se debateram sobre as narrativas
da paixão de Cristo procurando elementos que confirmassem ou
negassem sua historicidade. Por um lado, tem-se aqueles que aceitam as
narrativas como sendo “história relembrada”, com os defeitos, expurgos
e interpolações que esse tipo de texto logicamente traz, ou “profecia
Jesus: homem e espírito
375
historicizada”. As diferenças entre essas correntes são fundamentais e
interferem na forma com que encaramos as narrativas.
Por “história relembrada” tem-se que as narrativas da paixão são
basicamente históricas, acrescidas de elementos exógenos que servem
para afirmar e reafirmar a fé na providência divina e no Cristo que logo
ressuscitará.
Por profecia historicizada, tem-se que essas narrativas trazem
pouquíssimos fatos reais e são, em sua maior parte, versões atualizadas
de profecias do Antigo Testamento, que deveriam se cumprir com a
chegada do messias e, como acreditavam que Jesus era esse messias,
transferiram para sua morte todo o simbolismo do messias vindicado do
Antigo Testamento, do servo sofredor de Deus.
A forma com que os cristãos leram essas narrativas está no cerne
de seu anti-judaísmo agressivo, que logo se converteu em anti-
semitismo pulsante e milhões de judeus mortos para vingar o Cristo
supliciado e crucificado, esquecendo-se de que, para o cristianismo
greco-romano, em voga até hoje, a ressurreição deveria apagar
quaisquer impurezas na relação judaico-cristã e deixar essas mazelas da
história em uma passado enterrado. Holocaustos, como o ocorrido na
Segunda Grande Guerra, mostram o quanto ainda precisamos avançar
nessa linha para chegarmos a uma convivência harmônica com os
376
demais cultos monoteístas. Isso se agrava quando começamos a
perceber que o papel dos judeus na paixão de Jesus pode ser muito
diferente daquele narrado pelos evangelistas e discutido nos cultos em
igrejas espalhadas pelo mundo.
Como espíritas, ainda devemos pensar, antes de acusar algum
povo da participação na crucificação, que muitos dos atuais moradores
encarnados do planeta, com pele, cabelos e olhos indicando as mais
variadas origens genéticas, possivelmente participaram do processo de
prisão, julgamento e crucificação de Jesus e muitos outros ainda teriam
as mesmas atitudes no presente, caso o Cristo viesse ao mundo
novamente.
Hoje já não se acredita que os evangelistas tenham tido contato
com testemunhas reais, oculares, da prisão, julgamento e crucificação
de Jesus. Apenas toques lendários, mais ou menos coesos, da tradição
oral sobreviveram e foram enxertados de material próprio de cada
evangelista, para completar uma narrativa de profundo significado
teológico, uma vez que deveria se prestar ao testemunho da fé e à
pregação. Infelizmente, os apóstolos se acovardaram, fugiram, e pouco
sabiam sobre a crucificação.
Jesus: homem e espírito
377
Para compreendermos um exemplo de “profecia historicizada”
da paixão, vejamos, como exemplo, o texto escolhido por J. D. Crossan.
Corresponde a Amós 8:9-10:
"Sucederá que naquele dia, diz o Senhor Deus,
farei que o sol se ponha ao meio dia
e entenebrecerei a terra em dia claro.
Converterei as vossas festas em luto
e todos os vossos cânticos em lamentações;
porei pano de saco sobre todos os lombos
e calva sobre toda cabeça;
e farei que isso seja como luto por filho único,
luto cujo fim será como dia de amarguras"
Não podemos deixar de reparar nas semelhanças que existem
entre essa passagem e a descrição dos fenômenos que se deram por
conta da crucificação e morte de Jesus. Assim, esses fatos foram
narrados na paixão apenas para dar cumprimento às profecias e não
porque, de fato, ocorreram. Um ponto que esse autor cita em favor da
teoria da “profecia historicizada” reside na existência de epístolas,
como a de Barnabé, que demonstram muito interesse sobre a
simbologia da Paixão e Ressurreição, mas nada sabem sobre elas, sendo
378
que esse texto teria sido escrito por volta de 96 a 98 d. C. O próprio
Evangelho de Tomé nada traz sobre a crucificação.
Existem referências no Evangelho de Lucas à existência de
possíveis testemunhas desses eventos, mas não sabemos como seu
testemunho foi obtido e o seu valor de fato. Por anos pensou-se que
Pedro pudesse ter assistido aos fatos descritos, mas o problema de sua
negação ao Cristo, nos momentos mais cruciais do processo reduzem
muito a possibilidade dessa coragem súbita e de última hora. Os
evangelhos evidenciam que apenas as mulheres e, talvez, João,
estiveram ao pé da cruz, enquanto os demais estavam tomados pelo
pânico.
José de Arimatéia e Nicodemos, membros do Sanedrim
(Sinédrio) e simpáticos ao mestre de Nazaré, teriam sido as testemunhas
tão necessárias, mas atualmente ninguém pode atribuir muita
credibilidade a essa idéia. Muito pouco do processo de julgamento-
crucificação foi preservado, mas mesmo assim é possível avaliar se a
descrição evangélica é fruto de imaginação fértil ou constitui evento
possível ou, até mesmo, provável.
Sabemos que os romanos se livravam sumariamente daqueles
que incomodavam e nunca levariam, ao seu comandante mais poderoso,
um indivíduo, como Jesus, que lhes era um ninguém. Contudo...
Jesus: homem e espírito
379
Todo aquele que teve o prazer de se aproximar de Chico Xavier,
durante sua maravilhosa e exemplar vida produtiva, colocada à serviço
do Cristo e do espiritismo, sentia uma transformação pessoal de tal
monta que o fato não passava despercebido. Há pessoas, em nossa
própria família nuclear, que relatam a sensação de profunda paz que as
invadiam, bem como uma impressão de que um universo de
reencarnações nos separava daquele espírito. E isso era em relação ao
Chico Xavier. Imaginem a sensação de ficar frente e frente com Jesus.
Emmanuel descreve, em seu livro "Há 2000 anos", esse fenômeno.
Colocamos essas palavras aqui porque muitos encontraram Jesus
ao longo de sua jornada na Galiléia e Judéia e pela forma com que ele
passou a ser recebido nas vilas, cidades e, em particular, Jerusalém, na
condição de um líder ou messias, creio que teria despertado o interesse
romano e se Chico Xavier conseguia nos deixar absolutamente ligados a
ele, imaginem os efeitos da presença de Jesus sobre as autoridades
romanas. Assim, podemos crer que muito do que lemos nas Narrativas
da Paixão são acréscimos posteriores e parte desse material se origina
da própria influencia espiritual sobre os seus autores encarnados e
tradições que se mantiveram na comunidade cristã. Temos um núcleo
de material histórico e inspirado para trabalhar. Pautemos pela
coerência.
380
De maneira geral, os textos canônicos transmitem a maior parte
da responsabilidade pela morte de Jesus aos judeus, em particular sua
elite, diminuindo a importância e a responsabilidade romana nesses
eventos. Em muitos manuscritos dos evangelhos, mesmo as falas em
que Jesus pede o perdão divino para aqueles que o agridem foram
retiradas (como Lucas 23:33-34), visto que o copista achava que os
judeus não mereciam perdão algum, culpados que eram de “deicídio”,
ou seja, culpados de matar o “Deus Filho”, como muitos cristãos
literalistas passavam a ver o messias de Nazaré.
Em algumas cópias do Evangelho de Mateus, os copistas fazem
Pilatos entregar Jesus para os judeus crucificarem-no, não bastando ter
se livrado do problema proferindo a célebre frase “Eu sou inocente do
sangue desse homem! A responsabilidade é vossa!”. Até o vinho
associado a mirra que lhe é oferecido em Mateus 27:34 é alterado em
alguns manuscritos para vinagre para fazer cumprir o Salmo 69:21 e
porque Jesus teria dito, na Última Ceia, que não beberia vinho até
chegar no Reino do Pai. Tudo tinha que se encaixar, mesmo que
precisasse de algum auxílio redacional para que isso viesse a ocorrer.
Todos esses fenômenos foram exacerbados gentilização da
igreja cristã: a presença improvável de um centurião romano
proclamando a natureza divina do Cristo aos pés da cruz; o papel de
Jesus: homem e espírito
381
Paulo, cidadão romano, na frente da igreja não judaica; a imagem dos
judeus e romanos na crucificação e na descrição da "ressurreição".
Assim, os documentos escritos refletem mais as décadas de 70-100 d.
C. do que a realidade histórica do mundo romano de 20-30 d. C., no
ministério de Jesus. Pode-se perceber que a Narrativa da Paixão foi
confeccionada na fornalha das batalhas espirituais e físicas que
tomaram conta da Palestina judaica no final do século I d. C. e refletem
essa problemática.
Por exemplo, a responsabilidade dos judeus provavelmente
advinha da necessidade da pequena comunidade cristã de ganhar uma
identidade própria, separada do judaísmo, sendo que não era uma boa
política, no final do primeiro século, atribuir a responsabilidade da
morte do messias ao exército de ocupação romano, ainda mais porque o
cristianismo crescia rapidamente em tamanho e importância em Roma.
Seria mais adequado escrever o que o público pagão gostaria de ler,
repudiando e incriminando, ao mesmo tempo, a parcela do judaísmo
que não aceitou Jesus como seu guia prometido.
Para os romanos, já era abominável ter de suportar os judeus e
suas mazelas religiosas e sua insistência em não aceitar a divindade do
imperador, imaginem adorar um condenado que foi morto de forma
abominável e ao qual se atribuía uma importância acima de qualquer
382
criatura vivente? Nada mais “justo” tornar a nova fé mais palatável ao
público pagão. Dirigir críticas mais severas ao poder imperial, através
do qual Pilatos condenou Jesus por crime de natureza subversiva não
era uma política que garantiria a sobrevivência dos minúsculos grupos
cristãos. Os cristão precisavam provar que a fé em Cristo, não mais
apenas Jesus, era absolutamente compatível com a lealdade à Roma e
ao imperador, seguindo a política do "dai a César o que é de César e a
Deus o que é de Deus".
Segundo Haim Cohn, os cristãos teriam sido muito prejudicados
se tivessem relatado que Jesus havia sido julgado e condenado por um
tribunal romano pelo crime de lesa-majestade, ou seja, traição ao
imperador e ao império, subversão. Ele parte do princípio que a visão
dos evangelhos evidencia que existia muita semelhança entre as crenças
judaicas tradicionais, particularmente farisaicas, e os ensinamentos
atribuídos a Jesus, e isso é real. Assim, as colocações pejorativas dadas
aos judeus seriam uma consequência da época em que os evangelhos
estavam sendo redigidos, 40 ou mais anos após a crucificação, quando
judeus e cristãos disputavam espaço dentro da comunidade e existia
uma iminente rebelião no ar ( ou mesmo logo após a guerra dos judeus
de 66d. C.-73 d. C., quando os cristãos pareciam desejar uma separação
mais ampla do judaísmo perante os pagãos).
Jesus: homem e espírito
383
Depois da destruição de Jerusalém, em 70 d. C., os escribas,
sacerdotes, rabinos e anciãos caíram em desgraça e foram assim
retratados naqueles tempos. A crucificação já ia longe e a absoluta
certeza do que tinha de fato ocorrido não poderia ser obtida. Utilizando
a imaginação e a inspiração como cola e a existência de uma história
oral, os evangelistas criaram uma história de profundo significado
teológico que, se não fossem as inúmeras perseguições e holocaustos
afligidos aos judeus em nome de vingar a morte do salvador, não
necessitaria de maiores correções.
Também não se pode esquecer que as Narrativas da Paixão são o
ápice dos evangelhos canônicos e, por vezes, são utilizadas para as
maiores encenações teológicas dos evangelhos. Por exemplo, no
Evangelho de João, Jesus é o senhor de tudo e está ciente de todos os
fatos que logo se desenvolverão, não é ele que é julgado por Pilatos,
mas o inverso. Pilatos se torna presa da superioridade infinita do
acusado judeu. Nos demais evangelhos, Jesus é descrito desde a
condição de alguém que padece e se angustia pela dor e sofrimento
futuro, até aquele que aceita o inevitável destino como homem. Nos
evangelhos sinópticos, não é a imagem do Deus-Filho que vai para
cruz, mas o profeta-messias Jesus, o homem.
384
As informações disponíveis na literatura espiritualista e espírita
em particular mostram que a crucificação sempre esteve na frente de
Jesus, em termos metafóricos. O messias de Nazaré sabia das
consequências das associações que as pessoas faziam entre ele e a casa
de Davi, que colocavam uma interrogação sobre as pretensões políticas
do mestre na cabeça das pessoas. Não adiantava falar o contrário. Por
mais que ele ensinasse que seu reino, o reino de seu Pai, não era desse
mundo, na mente das pessoas comuns, tanto no passado como
atualmente, não havia espaço para mensagens figuradas e teologia.
Precisavam resolver o agora, o que tornava Jesus perigoso aos olhos do
estado romano.
Que crime teria cometido Jesus para ser crucificado?
Pena bárbara somente aplicável para escravos e pessoas
consideradas absolutamente desprezíveis e nefastas, da qual um cidadão
romano deveria se manter distante. Segundo os evangelhos sinópticos,
os tumultos ocorridos no Templo foram os grandes responsáveis pela
crucificação de Jesus e temos excelentes motivos para acreditar nessa
visão, mas por motivos que nada tem a ver com a religião judaica.
Contudo, João atribui a crucificação de Jesus à ressurreição de
Eleazar/Lázaro, de forma a opor a vida dada à Lazaro àquela tirada de
Jesus: homem e espírito
385
Jesus e devolvida pela ressurreição do Messias, criando um clímax na
sua teologia.
Quando analisamos a mensagem de Jesus aos judeus, percebe-se
um judeu justo pregando a transformação e reforma moral de seu povo.
As pessoas podiam não gostar do que ele dizia, por ser a verdade, mas
nada podiam fazer para impedi-lo legalmente. Em verdade, o povo o
admirava e muitos passaram a segui-lo, não apenas pelos seus
ensinamentos, mas pelo seu poder de cura e por seu relacionamento
peculiar com Deus. Embora a hipocrisia de qualquer sociedade pudesse
ser tocada por suas críticas e parábolas, o judaísmo se renovava e
revivia nele. Ele parecia dar um sentido novo à lei mosaica, cumprindo-
a integralmente.
Não temos porque acreditar que Jesus fosse tão lesivo aos
interesses dos judeus em geral para condená-lo á morte, uma vez que
muitos outros pregadores não pereceram naquela época e os que
tiveram esse destino sofreram devido a problemas de natureza política,
com os governantes romanos ou seus reis fantoches. Dessa forma, o
motivo maior para a crucificação de Jesus deve ser encontrado
principalmente na fortaleza que recebia o prefeito romano em Jerusalém
quando da realização das festividades pascais. Os romanos tinham
386
muito a perder com a fala de Jesus e os judeus do Sanedrim também
tinham, como veremos a seguir.
Um pregador judeu que pedia ao povo para dar a Deus o que a
Ele pertencia e sua pregação que mostrava a possibilidade de
estabelecer um relacionamento com o Pai sem intermediários, acabou
por interferir com os interesses da elite sacerdotal, o que somado à
aversão que os romanos tinham de qualquer um que pudesse se
converter em uma liderança, temos os ingredientes básicos que
justificariam a crucificação de Jesus. Ele não cometeu nenhum crime
que viesse a merecer a condenação capital dentro judaísmo, mas foi
tratado como criminoso. Ainda nessa linha, a reação judia á difusão do
cristianismo criou uma aversão tão grande e radical ao movimento
cristão e tantas calúnias e inverdades foram ditas de lado a lado que
hoje é muito difícil determinar com segurança as responsabilidades das
partes envolvidas e modificar o conceito passado para a população
pelos inúmeros pontífices, filmes hollywoodianos e livros.
A realidade do mundo judeu em 70 d. C. era totalmente
diferente daquele panorama presente em 30 d. C., quando os cristãos
pareciam se comportar como uma seita reformista dentro do judaísmo.
Depois da destruição do Templo, o ranço dos judeus para com a cruz se
tornou mais forte, particularmente por que os cristãos atribuíam a
Jesus: homem e espírito
387
destruição de Jerusalém e seu Templo à maneira com que os judeus
haviam tratado Jesus e sua refratariedade aos ensinamentos cristãos.
Nessa época, a fuga dos cristãos, narrada nos Atos dos
Apóstolos, no meio de uma guerra com os romanos, constituiu uma
mudança radical, posto que abandonaram os judeus à sua própria sorte.
Foram esses cristãos expulsos da sinagoga e os judeus que os
expulsaram que ficaram imortalizados no cânone e não aqueles que
viveram com Jesus, em uma época de animosidades muito menores. A
maioria das pessoas tem dificuldade de entender esse ponto, mas ele é
bastante plausível.
Para entendermos as circunstâncias em que Jesus foi crucificado
devemos tentar responder algumas pequenas questões sobre a
dominação romana sobre a Palestina.
I. Quais as consequências da ocupação romana? como os
romanos eram encarados pelos judeus e como lidavam
com seus inimigos?
O poder romano estabelecido criava ótimas condições de
comércio, com grande circulação de moeda e produtos, com aumento
muito grande da renda das classes mais favorecidas, enquanto que o
campesinato era mantido em condições de mera sobrevivência, com
388
endividamento crescente e tensões sociais. Jesus, se verdadeiramente
era ou não era um camponês, pelo menos pregava para eles e como um
deles era visto pela elite sacerdotal e isso incomodava, posto que podia
mexer na fonte de riqueza de muitos. Isso era agravado pelo fato de que
Roma era uma cidade parasitária e vivia da cobrança de tributos, que
depois moviam sua economia.
Toda e qualquer agitação popular era esmagada com uma
brutalidade sem igual, com o intuito de mostrar, para a população local,
a fonte de onde emanava o poder. A Judéia, em particular, era uma terra
que exigia grande atenção, pois seu povo parecia sempre pronto a se
ofender com aspectos religiosos, embora apresentasse uma grande
tolerância com a sistemática romana de exploração de seus recursos
naturais e da economia em geral. Os romanos estabeleceram alianças
com a nobreza local e com as classes economicamente mais
privilegiadas, com elas desenvolvendo uma verdadeira relação de
simbiose. O comportamento dos saduceus, em particular, é típico de
pessoas que teriam tudo a perder, como perderam, com uma rebelião
violenta contra o poder romano.
O mundo pagão representava tudo que um judeu praticante
queria longe de si. Talvez, como coloca o Evangelho de João, os judeus
tenham evitado entrar no pretório romano onde os eventos do
Jesus: homem e espírito
389
julgamento de Jesus aconteceram, para não se contaminar, uma vez que
os ambientes pagãos lhes eram vetados, mesmo os domicílios. Como
era próximo da Páscoa, talvez não tivessem tempo para o ritual de
preparação para a festa se estivessem impuros.
Uma passagem de Atos dos Apóstolos ilustra bem essa aversão,
onde Pedro tem de se explicar como ousou compartilhar do ambiente de
um soldado romano, mesmo sendo, esse romano, homem de bom
caráter. Os romanos eram vistos como a encarnação da idolatria e
depravação, um repúdio aos desígnios de Deus, de seu povo, que
migrava periodicamente para a cidade santa de Jerusalém, onde estava a
casa do Deus Criador. Segundo o romano Tácito, “para os judeus são
profanas todas as coisas que temos como sagradas”, assim um judeu
sequer apertaria a mão de um romano.
Os governantes romanos locais viam com desprezo esse
sentimento de superioridade que os judeus sentiam, independentemente
do povo que os subjugava, e reagiam de forma extremamente agressiva
á maneira insultuosa desses semitas. Pouco sabemos a respeito de
Poncio Pilatos, mas esse “pouco” nos informa que o mesmo seria o
protótipo do governante romano eficiente e cirúrgico, nutrindo grande
antipatia e desprezo pela população local, muito diferente do homem
fraco e cheio de piedade que os evangelhos retratam.
390
Pilatos é visto tendo problemas com os galileus, provavelmente
zelotas, ordenando a morte desses, por ocasião da construção de um
aqueduto para a cidade com riquezas confiscadas do Templo e, por fim,
com os samaritanos, o que levou á sua substituição pelo poder central
em Roma. Em todos os momentos, Pilatos mostra-se forte e firme, não
permitindo que a iniciativa parta para a população que o cercava. O que
teria acontecido com ele naquele dia, no dia em que dizem ter lavado as
mãos da responsabilidade do sangue de Jesus? Será que as descrições
bíblicas podem ser consideradas com um mínimo de coerência?
Discutiremos logo a seguir.
Pilatos tinha também uma aversão especial pelos príncipes e
reis herodianos, os quais tinham acesso direto a Roma. O próprio
Herodes Antipas esteve em contato com o imperador Tibério em
diversas ocasiões e isso podia incomodar profundamente Pilatos. A
indicação de Pilatos para a Judéia parece ter sido fruto do trabalho de
Sejano, ministro de César, que odiava toda a raça judia, esperando que o
novo indicado trabalhasse para manter a Palestina sob a mais rígida
dominação possível. Fílon, judeu helenista, descreve Pilatos como
sendo inflexível e implacável, cometendo atos de corrupção, insulto,
rapina e assassinatos com selvageria. Parecia sentir prazer em negar
tudo o que os judeus pediam e não pensava duas vezes em eliminar
Jesus: homem e espírito
391
qualquer um que ofuscasse sua lealdade ao imperador. A intolerância
que hoje sabemos caracterizar esse prefeito romano talvez tenha sido
fruto dos anos de permanência na conturbada Judéia, onde uma mistura
explosiva de ideais religiosos, agitação política e ação de bandoleiros
tornavam a vida dos enviados de Roma particularmente desconfortável.
Pilatos foi uma figura muito poderosa e central na crucificação
de Jesus, associado a elementos da elite judaica. Enquanto os
evangelhos tentam mostrar que a condenação de Jesus se deu por
motivos direta ou indiretamente religiosos, não se deve esquecer que,
no mundo romano, religião era política e política era religião. As
sinagogas acabavam sendo um local propício para o surgimento de reis
e de líderes messiânicos, embora Jesus apresentasse essas intenções.
A despeito dessas colocações, em pelo menos em uma situação,
Pilatos demonstrou capacidade de negociar com a população local. Isso
teria se dado quando uma legião romana, com estandartes do imperador
Tibério, marchou para Jerusalém, contrariando a população local que
não admitia a presença dos estandartes em sua cidade santa. As
manifestações dos judeus, contra o que eles consideravam um grave
insulto a Deus, se sucederam diariamente até que no sexto dia Pilatos
teria ordenado que fossem todos mortos. Como os indignados se
deitaram no solo sem a mínima reação e com disposição de se
392
submeterem ao sacrifício, Pilatos, admirado com a determinação desse
povo, ordenou a retirada dos estandartes, mostrando-se, naquele
momento, mais tolerante e passível de oferecer uma chance ao réu.
Os romanos não se importavam com as religiões de seus
domínios e permitiam que os cultos lícitos fossem seguidos livremente,
mas parece que Tibério não tinha grandes afeições pelo culto judeu,
obrigando vários de seus seguidores a queimar suas vestes religiosas e
outros acessórios, além de procurar abolir o culto. Existem relatos de
deslocamentos forçados de comunidades judias inteiras para regiões
pouco salubres. O imperador não hesitava em condenar seus súditos
pelo crime de lesa-majestade e isso atingiu tamanha dimensão que
falava-se que qualquer crime poderia ser assim julgado se César o
desejasse e a pena era a morte.
II. Quais eram as prerrogativas do Sumo Sacerdote e qual a
sua relação com os grupos judaicos que detinham o
poder político?
O Sumo Sacerdote tinha algumas prerrogativas, como julgar os
crimes cometidos por judeus e que interferiam com o culto, entrar no
Santo dos Santos, onde Deus residia, ter contato com Deus no Templo,
Jesus: homem e espírito
393
bem como comandar a polícia do mesmo, a única força militar nativa
tolerada pelo império, nos limites da província romana.
Era tido como um fantoche pelos romanos e acabava por
representar os judeus perante o poder ocupante, uma situação bastante
incômoda para o povo, que dependia de um indivíduo tido como traidor
como representante. É muito provável que o Sumo Sacerdote também
tivesse autonomia para reunir o Sanedrim judaico, mas não existem
quaisquer evidências de um Sumo Sacerdote que tenha pedido ajuda de
uma força militar romana ou de autoridades romanas para exercer seu
papel, uma vez que se o fizesse estaria assumindo a própria
incapacidade de exercer o domínio sobre a população nativa, ao
contrário do que sugerem os evangelhos.
O poder sobre a população judaica, pelo menos ao que se refere
aos seus assuntos domésticos, emanava do Grande Sinédrio dos Setenta
e Um, que teria se reunido para julgar Jesus, segundo os evangelhos. A
maioria dos eruditos que compunha o Sinédrio era farisaica, enquanto a
categoria dos sacerdotes era composta principalmente por saduceus,
como o próprio Sumo Sacerdote. Em função de sua influência sobre a
população judia, os saduceus, com pouca penetração na população
geral, seguiam os votos dos fariseus, segundo Josefo, que eram muito
mais numerosos.
394
O comportamento dos fariseus, segundo os poucos relatos que
nos chegaram em nossas mãos, sugere que os mesmos, de maneira
geral, eram prudentes e tomavam decisões apenas após refletirem,
sendo que eram piedosos e extremamente fiéis à crença em um Deus
misericordioso, que recompensaria os justos com uma vida cheia de
alegrias após a morte. Os fariseus possuíam profunda penetração na
mente da população urbana, que os acolhia com simpatia. Qualquer
rebelião futura teria de passar, em alguma de suas múltiplas fases, pela
adesão desse grupo. Muitos eruditos fariseus acreditavam que o
domínio romano sobre a Terra Santa representava um ultraje e uma
mácula, não podendo ser suportado.
Assim, é provável que, na medida que o poder romano se
tornava mais opressor, crescia a idéia de que os fariseus representavam
o patriotismo do verdadeiro povo de Israel e os saduceus passavam a
depender deles para manter a ordem que lhes interessava.
O Sanedrim e o Sumo Sacerdote quase sempre seguiam a
corrente principal de idéias, dependendo de votações, sendo que o
grupo romanófilo por vezes se aliava aos fariseus, que gozavam do
apreço popular. A citação do evangelho de João (18:31) que diz “ a nós
não nos é lícito matar ninguém” não é verdadeira e o Grande Sinédrio
de fato tinha como imputar ao criminoso a pena capital de acordo com a
Jesus: homem e espírito
395
lei, a qual era executada, segundo a tradição, por apedrejamento, como
aconteceu com Estevão, um judeu-cristão helenista. Eles podiam matar
sim, enquanto tudo isso foi omitido dos textos canônicos para evitar que
os romanos fossem os grandes incriminados com a morte de Jesus.
Politicamente seria interessante culpar os judeus e isso foi feito.
Sem a pena capital, nos tempos antigos, teria sido um verdadeiro
heroísmo controlar a população local. Entretanto, o Grande Sinédrio
somente se reunia em situações especiais, quando, por exemplo, um
sacerdote era indiciado por algum crime. Em outras circunstâncias,
reunia-se o Pequeno Sinédrio, constituído por 23 membros que
exerciam de fato toda autoridade civil, penal, administrativa e
consultiva, em todas as principais cidades da Judéia e Galiléia, segundo
Josefo, reservando ao Grande Sinédrio um papel mais legislativo.
Com advento do poder romano na Palestina estabeleceu-se,
acima do direito judaico, o direito romano, exercido pelas autoridades
de ocupação. Os governantes, como Poncio Pilatos, representavam o
poder do próprio imperador e provavelmente nunca entregariam um
criminoso que estivesse sob seu domínio para um tribunal judeu, visto
que os romanos adoravam mostrar quem, de fato, detinha o poder nas
mãos. Um preso que tivesse cometido delitos contra as leis romanas e
judias dependeria da ação do governante romano para saber quem o
396
julgaria, uma vez que dependia desse último a determinação, na prática,
da ação dos tribunais judeus. Os romanos dificilmente abririam mão do
seu direito de julgamento. Porém, para os judeus, crimes como o
desprezo pelo imperador ou o não cumprimento de obrigações para com
Roma não seriam vistos como crime pela população e direitos judaicos,
merecendo até, certo ponto, alguma admiração.
9.1 Jesus, o Templo e o Plebeus
A mais importante questão que nos salta aos olhos sobre a morte
do messias de Nazaré se refere ao motivo através do qual foi julgado e
condenado. Faltam om porquês de toda a trama...
Será que ele insultou a visão judaica de Deus, ou seu
igualitarismo de “sentar à mesa e pregar o reino do Pai” seria tão
afrontoso para o judaísmo que os escribas, sacerdotes e fariseus teriam
se unido e pedido sua cabeça às autoridades romanas? Os evangelhos
caminham nessa direção, acrescentando, no evangelho atribuído à João,
o medo dos milagres, em particular seu domínio sobre a morte, embora
tenhamos visto que o fenômeno denominado de "ressurreição dos
mortos" deve ser reexaminado.
No fundo, Jesus foi indiciado por crime de lesa-majestade, pelo
poder romano, o qual foi decididamente estimulado a fazê-lo pela elite
Jesus: homem e espírito
397
judaica, temerosa de perder seus muitos privilégios, mas esses judeus
tentaram descobrir até que ponto havia envolvimento de membros do
sinédrio com o movimento de Jesus.
Outros líderes messiânicos existiram naqueles tempos e
terminaram de forma muito semelhante a Jesus. João, o Batista, por
exemplo, reencenava a conquista da terra santa pelo vale do Jordão,
além de profunda reforma moral na sociedade judaica da época,
reunindo multidões em seus sermões, o que alarmou as autoridades,
como Herodes, que o matou. João Batista passou a representar uma
poderosa alternativa ao Templo de Jerusalém; representante de um Deus
misericordioso que perdoava os pecados através de um ritual acessível a
todos.
Segundo Crossan, os batizados se convertiam em bombas-
relógios individuais, esperando o advento de algo que era difícil de se
qualificar e poderia mudar a estrutura do poder local. Os romanos e
sacerdotes tinham receio do desconhecido e não se podia prever qual
seria, a médio e longo prazos, o fruto de todo esse messianismo judeu.
A mensagem de Jesus estava na categoria de escatologia
sapiencial, onde Deus espera que nós ajamos. Suas interpretações sobre
o Reino de Deus podem ter feito a população divagar sobre como seria
o mundo se Deus estivesse sentado no trono de César, lançando nuvens
398
sobre a paz romana. Esse mundo igualitário, sem qualquer tipo de
discriminação, era totalmente contra a exploração e a hierarquia
sufocante sobre a população que mais sofria com a opressão colonial.
Algo relevante nessa visão é de que ninguém, nem mesmo Jesus, tem o
monopólio desse reino; todos podem buscá-lo. Ele trazia a liberdade
plena.
Em seu governo como imperador, Gaio (Calígula),
inconformado com a resistência ao culto de sua pessoa como deus-
imperador, pelos judeus, enviou Petrônio e metade das forças romanas
do leste para instalar uma águia imperial no interior do Templo.
Contudo, milhares de camponeses e seus familiares se dirigiram até
Ptolomaida, no litoral, para fazer com que o enviado do imperador
sentisse a dor que essa profanação causaria na população em geral.
Temendo que os judeus destruíssem as colheitas, o comandante romano
ameaçou matar a todos, mas diante da multidão que preferia morrer a
ter o seu Templo profanado, preferiu escrever a Roma pedindo que
Calígula reconsiderasse. O imperador mandou Petrônio cometer
suicídio e isso só não ocorreu por que a notícia da morte do imperador
chegou antes da carta desse último, mas ilustra a postura de camponeses
e romanos a respeito do Templo.
Jesus: homem e espírito
399
Durante as festividades da Páscoa, milhares acorriam a
Jerusalém de todos os cantos do Império Romano, onde toda a base da
sociedade agro-pastoril se reunia para celebrar a conquista da liberdade
e a fuga do Egito. É fácil imaginar o estado de ânimo da população
reunida quando verificava-se que havia um novo poder imperial
opressor, soldados gentios montando guarda por todo lado e líderes
messiânicos vindos do interior. O próprio Arquelau e o procurador
romano Cumano tiveram problemas com a população mais despossuída
durante a Páscoa e muito sangue foi derramado em ambas as ocasiões
(4 a. C. e entre 48-52 d. C., respectivamente). Dessa forma, era durante
esse festival que as autoridades romanas mais se esforçavam para conter
o espírito popular de sublevação.
Um outro Jesus, filho de Ananias, em 62 d.C., falava contra o
Templo durante a festa dos Tabernáculos e foi preso, espancado pelas
autoridades judias, entregue aos romanos que o açoitaram e libertaram.
A descrição de Josefo sobre esse evento apresenta notórias semelhanças
com as descrições as Narrativas da Paixão, sendo que o filho de
Ananias teve sofrimento semelhante, embora privado da crucificação, e
não pronunciou quaisquer palavras em sua defesa, sendo, então, levado
à autoridade imperial. Como foi considerado louco, acabou mantendo a
vida. Jesus, filho de José, considerado o messias de Nazaré, não foi
400
considerado louco e sim perigoso demais para ser deixado livre; morreu
na cruz.
Jesus cometeu algum delito grave que merecesse a pena de
morte no judaísmo? Como sua postura era vista pelos judeus e
romanos? Será que sua postura e liderança inspiravam maiores cuidados
pelos romanos e a elite sacerdotal?
Para o poder romano, qualquer agitador que mexesse com as
estruturas vigentes era considerado perigoso e, sem muito trabalho,
eliminado, sem preocupações com o que povo pensava ou não do ato.
Na época em que os príncipes herodianos tinham domínio sobre a
Judéia o mesmo acontecia. Herodes, o Grande, logo antes de morrer,
ordenara a morte de dois professores e seus alunos, posto que haviam
tentado retirar uma águia imperial romana da entrada do Templo.
Contudo, nada fez contra os loucos que vociferavam palavras de ordem
contra as estruturas da sociedade judaica. Quem não tinha credibilidade,
não despertava interesse, podia falar à vontade.
Jesus era muito popular, inteligente, sério, dotado de faculdades
mediúnicas que estavam muito além do que havia sido descrito para os
profetas que o precederam e, acima de tudo, considerado o enviado de
Deus para uma grande mudança na vida da Casa de Israel. Os pobres o
adoravam; os fariseus o admiravam e ainda estavam divididos quanto
Jesus: homem e espírito
401
ao seu papel nos eventos que se dariam na Páscoa judaica. Em
diferentes momentos, ele é visto discutindo com os fariseus, o que
demonstrava o respeito desses, sendo que em diferentes circunstâncias
não se registraram a respostas dos judeus às posições de Jesus,
sugerindo que os mesmos concordavam ou, pelo menos, viam mérito
em sua posição.
A posição de Jesus em relação ao jejum, dizendo que seus
discípulos não jejuavam pois eram como convidados de um casamento
simbólico, em que ele próprio parece representar o noivo, e todos
estavam felizes e em júbilo, mostra uma adaptação da norma farisaica
que proíbe jejum em dias festivos. Como se fosse um fariseu, Jesus
respondia aos fariseus. Sua convivência desde a infância com os
fariseus fez com que muitos tenham atribuído a ele alguma formação
farisaica ou ligada a grupos de sábios judeus, conhecedores da Lei
(Lucas 2:46; 5:17).
Quanto ao sábado, Jesus parecia humanizar a regras que os
próprios fariseus aceitavam, dizendo que se era lícito salvar um animal
nesse dia, que diria Deus se salvássemos a vida de um outro ser
humano, seu irmão? Quando Jesus cura no sábado e responde aos
fariseus as razões que o motivara a faze-lo naquele dia, os fariseus mais
uma vez nada respondem, o que é tomado pelos atuais leitores da bíblia
402
como sendo a prova da derrota dos fariseus perante a astúcia do mestre
galileu, o que eles ignoram é que a resposta de Jesus não foi discutida
por que encontrava eco nas tradições farisaicas. Os fariseus aceitaram
esse ponto de vista.
A colheita de espigas no sábado, criticada pelos fariseus, é
respondida por Jesus não dizendo que os discípulos estavam corretos,
apenas cita um episódio envolvendo o rei Davi e a condição de fome,
justificando perante os seus interlocutores a atitude criticada, dizendo
que fome e necessidades atuariam modificando as características e
objetivos desse santo dia. Complementa “o sábado foi estabelecido por
causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2: 27).
Essa era a interpretação farisaica do delito de Davi, onde ele, Jesus,
clamava por indulgência para seus seguidores.
Existe ainda a passagem da reclamação dos fariseus de que os
discípulos (Marcos 7:2; Mateus 15:1-2) ou o próprio Jesus (Lucas
11:33-35) não lavavam as mãos antes de se alimentarem, uma tradição
dessa seita judaica. Sabe-se hoje que lavar as mãos se tornou parte da
tradição judaica e norma legal por Eleazar (Lázaro) ben Arakh, cinco
décadas depois de Jesus e contemporâneo dos evangelhos. É pouco
provável que Jesus, tendo sido convidado por um fariseu a dividir uma
refeição, uma honra considerável, tivesse respondido de forma tão
Jesus: homem e espírito
403
agressiva como descrita nos evangelhos. Aliás, sua educação e
profundidade nas suas colocações mostram que esse texto foi criado
pela igreja primitiva para mostrar mais um ponto de choque entre Jesus
e os judeus.
Talvez o questionamento do fariseu estivesse mais ligado a uma
curiosidade sobre os motivos que levavam aquele sábio popular a
desconsiderar a tradição e não se lavar segundo a tradição ritual, do que
uma crítica verdadeira, posto que a lei ainda não existia e a pergunta no
seu sentido original não apresenta uma verdadeira crítica. Conclui-se,
portanto, que esse incidente foi criado ou modificado pela igreja
primitiva para permitir colocar nos lábios de Jesus as duras
considerações sobre os fariseus, chamados de víboras, serpentes e tolos.
Os evangelistas davam as suas próprias opiniões nesse momento, as
quais não refletiam o ambiente judaico de 40 anos antes, quando esses
eventos teriam ocorrido.
Assim, os choques entre Jesus e os fariseus ganharam as
dimensões que lemos nos evangelhos como forma dos evangelistas
continuarem disputando essas contendas nos 40-60 anos seguintes e
passaram a ter um caráter mais teológico e ideológico do que real. Tudo
que temos sobre os fariseus é muito semelhante ao que Jesus sempre
pregou, embora esse último tenha tornado a fé judaica mais humana e
404
espontânea. Por vezes, quando Jesus parece se referir a escribas e
fariseus, ele o faz procurando se dirigir ao povo em geral, ao qual ele
propunha uma mudança radical de atitudes. Existe uma tendência, entre
os evangelistas, de atribuir as críticas de Jesus aos fariseus, sendo que,
em várias versões dos manuscritos bíblicos, tais palavras são dirigidas à
multidão ou população em geral.
As palavras de Jesus sobre o final do Templo de Jerusalém
foram usadas pelos primeiros estudiosos como indicativas de que Jesus
teria sido condenado por blasfêmia pelos judeus, em função dessas
palavras proferidas por ocasião da limpeza do Templo. Entretanto,
predizer o final dessas instituições parece alertar o povo para as
consequências do pecado e instigá-lo a construir, dentro de si mesmo,
uma casa para Deus que não ruísse com as forças externas; era um
chamamento à reforma íntima, tão em voga no presente. Não existe
blasfêmia nas palavras de Jesus, sendo que o próprio profeta Jeremias
era portador da mesma mensagem, embora estivesse ele destituído do
título de messias que rondava os ombros do mestre de Nazaré e essa
diferença acabaria provocando o calvário para o Cristo.
A atitude de Jesus na limpeza do Templo era bem do gosto da
audiência judaica, a qual era tocada por atitudes e gestos dramáticos,
que chamavam a atenção para o ponto central da pregação do homem
Jesus: homem e espírito
405
santo. A própria entrada de Jesus em Jerusalém, por ocasião dessa
última Páscoa, montando um jumento, trazendo às mentes populares a
imagem da chegada do messias, mostrando o quanto Jesus sabia
aproveitar e utilizar o modo de pensar do povo a quem ele se dirigia.
Embora, para os modernos cristãos, montar um jumentinho pareça um
sinal de humildade, para o povo palestino da época, era sinal de que o
escolhido se fazia presente na cidade.
A limpeza do Templo é considerada, por muitos, como o
momento em que as elites judaicas perceberam que a mensagem do
mestre galileu poderia ser usada de forma explosiva pela população.
Desde que as atividades do Templo eram lícitas, a purificação que Jesus
imprimiu ao Templo era na realidade uma destruição simbólica do
modo com que as pessoas se relacionavam com Deus. Embora
convivesse com aquele edifício, o mesmo era algo muito diferente do
que a teologia cristã em formação e o próprio Jesus sempre pregaram.
Com o ataque ritual, simbólico, contra o Templo, Jesus agia pela
primeira vez de acordo com sua própria idéia de programa para o povo.
Deus não habitava casas de pedra e seu Espírito podia imprimir a
vontade do Pai em qualquer um e não apenas naqueles que tinham
condições de oferecer sacrifício. Temos aqui a primeira bomba de efeito
retardado, a qual explodiria no calvário.
406
Os evangelhos apresentam a atitude de Jesus como um ataque ao
Templo, mas deve-se considerar esse aspecto do ponto de vista
simbólico e não militar, visto que a presença de soldados romanos na
Fortaleza Antônia e a própria estrutura do Templo eliminam a
possibilidade de um evento mais literal e Jesus era firme quando devia
sê-lo, mas era contra toda e qualquer forma de violência. Nesse sentido,
o emprego da palavra espada em Mateus 10:34 por vezes é interpretada
como sendo o sinal de agitações mais belicosas e guerreiras no seio do
grupo cristão primitivo, mas não se esqueçam que o próprio mestre
dizia que aquele que vive pela espada, pela espada perece. Ele sabia das
severas implicações que suas palavras teriam e não se pode deixar de
considerar que, de fato, até o presente, as palavras e orientações de
Jesus representam “espadas” apontadas contra o “coração” de
numerosos pontos de vista que temos do mundo, frutos da nossa
mesquinhez. Como tudo, muitos ainda fazem uma interpretação literal
dessa fala e se apegam à visão guerreira de Yaveh, tão bem
representada no novo testamento.
Se a aristocracia sacerdotal visse pecado ou blasfêmia nos atos
de Jesus no Templo, por que a mesma não o prendeu no mesmo
momento? Poder para isso ela tinha e contava com o apoio romano para
tanto.
Jesus: homem e espírito
407
A venda de animais de sacrifício e a atividade dos cambistas não
eram ilícitas e o Templo dependia das mesmas. Assim, a retirada
daqueles que manchavam o Templo somente pode ter se dado caso
alguns desses mercadores estivessem atuando fora da área que lhes era
destinada, tornando a atitude de Jesus compreensível e até louvável. O
texto contado pelos evangelistas está repleto de incongruências, mas
possui grande força emocional.
O jurista Haim Cohn, da Suprema Corte de Israel supõe que
talvez os cambistas e comerciantes, que trabalhavam diariamente nas
adjacências do Templo, tenham sido surpreendidos por Jesus em algum
dos átrios do mesmo, o que configurava ofensa séria, visto não ser
permitida a entrada com bengalas, sapatos e até pés empoeirados. A
explosão colérica de Jesus traduz as palavras do profeta Jeremias (7:11),
as quais deviam ser de amplo conhecimento para aqueles que ali se
encontravam. O que esse autor não considera é que a própria natureza
do culto em um santuário profanado por sacerdotes corruptos estava
sendo considerada nas atitudes de Jesus.
Eles estavam tendo sua autoridade questionada pelo mestre da
Galiléia e a versão do jurista vai muito além da realidade. Jesus se
cansara de aparências e sua mensagem de libertação chegava a uma
encruzilhada que acabaria explodindo no Templo. Impossível não ir
408
contra uma estrutura que se interpunha entre os fiéis e seu Pai. Olhem a
oração do Pai Nosso e vejam que todos esses elementos estão por lá,
esperando para frutificar na vida de cada um. Naquela época, apenas a
elite sacerdotal detinha o monopólio do contato com Deus.
Por menos que gostemos de dar razão aos religiosos formais que
herdaram a igreja em formação, a mensagem do mestre iria, mais cedo
ou mais tarde, se chocar com a simbologia do edifício que representava
o centro do universo judaico, da mesma forma que, no presente, se
choca frontalmente contra sacerdotes e igrejas de fachada, de todas as
correntes do cristianismo, até mesmo as nossas casas espíritas (que não
são exatamente igrejas, da mesma forma que não existem sacerdotes
espíritas).
A limpeza do Templo provavelmente foi feita pela multidão
ensandecida e liderada por Jesus, mas mesmo assim o mestre galileu
parece ter gozado de prestígio por parte dos judeus, visto que pregava
no Templo todos os dias sem que a polícia viesse a prende-lo por
distúrbio. Nosso companheiro Eleazar nos coloca que, a cada dia mais
gente se reunia ao redor daquele grupo exótico de pregadores do norte,
esperando pelos milagres que se falava e um sinal para começar algum
movimento de libertação. O ar estava cheio de furor religioso e
patriótico, o que não era desconhecido dos romanos. No evangelho de
Jesus: homem e espírito
409
Marcos (11,18), fica claro que os principais sacerdotes temiam Jesus em
função do apoio popular que esse possuía.
Jesus não queria nada disso e tampouco tencionava se tornar um
mártir ou líder rebelde. Porém a história tinha chegado a um daqueles
raros momentos que não podem ser avaliados com precisão pelos
estudiosos e, em parte, isso se deve ao fato de que os planos paralelos
de vida, chamados de planos espirituais, estavam trabalhando
ativamente naquele momento tenso da história global. Cada corrente era
forçada para um sentido diferente. Jesus estava sofrendo todo tipo de
assédio e, como homem, mesmo que divinamente preparado, sentia que
devia passar por tudo que ele mesmo profetizara para seus irmãos
menores. Sua dor era real e sua angustia não tinha relação com o seu
próprio destino, mas principalmente pelo ambiente que reinaria após
sua partida e a dor de tantos que morreriam nas décadas e séculos
seguintes. Essa sensação chega ai clímax na cruz, quando ele pede
perdão ao Pai em nome daqueles que o agrediam.
O mestre galileu não tinha autoridade sacerdotal para tomar para
si a responsabilidade pela limpeza que produzia no santuário e é de se
admirar que, embora Jesus não fosse um sacerdote, ele falava com tal e
pregava com autoridade sacerdotal, sem tê-la, é claro. Muitos eruditos
sugerem que Jesus empreendeu a limpeza do Templo através da
410
autoridade messiânica conferida por Deus e demonstrada continuamente
através de numerosos debates. Quando os fariseus pediam que os céus
revelassem um sinal divino que evidenciasse que aquele homem do
norte representava a vontade do Criador, nada mais se faziam do que
dar referência a uma crença que muitos judeus começavam a se inclinar
em função da força da palavra do mestre galileu.
O pretenso ódio dos fariseus para com Jesus se mostra ainda
mais incompreensível quando lembramos que Herodes tinha receio que
o fenômeno chamado “Jesus” se convertesse em problemas, como
outrora ocorrera com João, o Batista, e acabou por tentar se apoderar do
mestre galileu e só não o conseguiu porque Jesus foi avisado por alguns
fariseus dos intentos do rei e conseguiu fugir com um barco para um
lugar ermo e seguro. Ainda não havia chegado momento para sua
prisão, mas os dias se passaram e agora estamos nos três últimos dias da
vida de Jesus sobre a Terra.
Mas por que Herodes tinha cuidados para cuidar do problema
chamado Jesus? Por que ele não mandou matar o messias da mesma
forma que o fizera com João? Porque o povo ridicularizava Herodes e
adorava Jesus, que não parecia ligar para política. A população parecia
sentir prazer quando lembrava que Herodes Antipas teve seu exército
derrotado pelo pai de Herodias, ex-esposa abandonada de seu meio
Jesus: homem e espírito
411
irmão, rei Felipe. Sob os brados desafiadores de João Batista, o rei
passou por situações desagradáveis e ele com certeza não queria que o
mesmo se repetisse com Jesus, que também reunia grandes multidões
em torno de sua mensagem. O domínio pleno que Jesus tinha das
multidões logo foi notado pelos romanos e tal ascensão popular poderia
significar problemas. Pôncio Pilatos logo viria a exercer seu papel no
drama.
Com esses elementos podemos dizer, com segurança, que as
implicações da fé nesse Pai misericordioso e avesso a manifestações
estereotipadas de amor, conforme transmitido por Jesus, logo iriam se
chocar com a religião formal, por mais que o mestre frisasse que seu
reino nada tinha a ver com o reino dos homens. Lembremo-nos que a
brutalidade que caracterizava o mundo de então fazia toda beleza da
mensagem cristã e de outros espíritos libertos da miséria do formalismo
religioso submergir nas arenas de gladiadores e nos holocaustos diários
ao longo do império. Além desse aspecto, o medo de uma rebelião
liderada por um líder carismático e contestador acrescentou o
ingrediente que faltava para a caminhada final do messias galileu para o
reencontro com o Pai que o aguardava.
412
9.2 A prisão de Jesus.
Este evento é um dos poucos no Novo Testamento e, em
particular na descrição dos últimos dias de Jesus, que não corresponde a
uma sequência de profecias historicizadas, mas a um fato real que teve
trágicas consequências para nosso mestre e, nos 2000 anos seguintes,
para toda a comunidade judaica e cristã, onde quer que elas se
encontrassem.
Os detalhes destoantes entre os textos canônicos refletem apenas
as diferenças teológicas entre os sinópticos e o evangelho joanino. Em
Marcos, a versão inicial, Jesus está quase que tomado pela angustia e
sofre de conflitos internos significativos, enquanto que João, o
evangelho que diviniza o mestre, tudo acontece de acordo com a
vontade do próprio Jesus, que está acima de tudo que acontece ao seu
redor. Pode parecer estranho, mas as duas versões traduzem dois
enfoques diferentes: Marcos descreve as condições físicas e emocionais
de Jesus, colocando que essa angústia teria relação iminente com sua
prisão e o desfecho da caminhada terrena de Jesus, enquanto João,
falando a partir de pessoas que viviam em grande proximidade com o
Cristo, evidencia que tudo ocorria segundo um plano divino e, para
harmonizar essa idéia com uma visão divinizada de Jesus, acaba por
criar toda uma atmosfera de teologia vibrante, em que Jesus é o senhor
Jesus: homem e espírito
413
de sua própria prisão. Em poucas palavras, a dor que Jesus sentia vinha
da atmosfera espiritual que o cercava, era um amálgama de trevas, ódio
e miséria que se aproximava com os oficiais da polícia do Templo e
seus aliados romanos, que os esperavam. Tudo aquilo fazia com que a
história da humanidade, com todos os seus massacres e déspotas,
passasse como um filme de fundo e, mesmo nesses momentos, ele pedia
perdão a Deus em nome de seus inimigos e misericórdia para proteger
das trevas aqueles que iriam ataca-lo em instantes.
Embora os evangelhos sinópticos tragam que somente judeus
tomaram parte na prisão de Jesus, já plenamente reconhecido como o
Cristo, e o evangelho de João evidencie a presença de soldados romanos
entre eles, hoje sabemos que a força armada enviada para prender o
mestre judeu era uma coorte romana ou pelo menos parte de uma,
acrescida de alguns policiais judeus, que garantiriam a informação da
prisão em primeira mão para o Pequeno Sinédrio, que, como veremos a
seguir, teria sido chamado para inquerir Jesus a respeito de sua
mensagem e possível envolvimento de membros da elite com seu grupo
de galileus.
A presença de judeus entre esses romanos parece ficar clara
quando se verifica que o mestre galileu foi logo transferido para
custódia do Sumo Sacerdote ou, como coloca João, do sogro deste e
414
isso somente aconteceria se membros da polícia do Templo estivessem
com a coorte romana e tivessem ordens expressas de agir dessa forma.
Lucas também menciona a presença dos capitães do Templo e os
“principais sacerdotes” entre aqueles que prenderam Jesus. Esses
“seganin” estavam logo abaixo dos sacerdotes oficiantes e acima dos
oficiais militares da polícia do Templo e parece que correspondem bem
ao que Lucas denomina como sendo os sacerdotes principais. João
também corrobora com essa informação sobre a presença de “enviados
dos judeus” e dos principais sacerdotes.
Os textos de Marcos e Mateus sugerem que uma multidão de
gente da cidade fora recrutada para ajudar a prender Jesus, o que não
ocorreu de fato, visto que o mestre estava cercado por um grupo
pequeno de seguidores e era o período das festas pascais, o que tornaria
qualquer tumulto envolvendo a participação de populares em algo capaz
de inflamar os ânimos e dar origem aos tumultos que os próprios
romanos e sacerdotes queriam evitar com a prisão noturna. Seria algo
bastante amador incluir populares na prisão e os romanos era
profissionais, os melhores que o mundo havia presenciado. Em caso de
luta os populares, sem qualquer experiência militar, o povo apenas
colaboraria para criar confusão e facilitar a fuga do pequeno grupo de
Jesus: homem e espírito
415
seguidores de Jesus e dele próprio. Uma população civil era tudo que
uma coorte romana menos desejaria encontrar no momento da prisão.
As descrições da prisão de Jesus nos evangelhos muito se
assemelham ao estado em que o rei Davi se encontrava quando da
traição de Aitofel. Tanto Jesus quanto Davi passam pelo monte das
Oliveiras, ambos suplicavam a Deus e tem um fiel escudeiro, Etai, para
Davi, e Pedro, para Jesus, que lhes jura fidelidade. Fica difícil não
perceber o paralelismo que existe entre 2Samuel (capítulos 16 e 17) e os
textos da paixão. A própria multidão descrita nos evangelhos, indo
prender Jesus, pode ser uma forma de paralelo com o exército armado
de Aitofel contra Davi. Esses arroubos poéticos dos evangelistas tinham
intenções teológicas e não ocorreram de fato.
Outro aspecto controverso ligado à prisão de Jesus reside na
traição de Judas, relatada nos quatro evangelhos. Caso fosse uma
invenção da igreja, poderíamos dizer que não teria sido uma das mais
felizes, visto que Jesus teria sido entregue por um discípulo nas mãos
dos inimigos, não constituindo bom exemplo de fidelidade ou lealdade,
tanto naqueles tempos quanto como no presente, e reforça a idéia que a
prisão do mestre galileu estava muito mais ligada aos próprios romanos,
visto que os judeus o conheciam, uma vez que Jesus pregava
diariamente no Templo e, como reiteradamente colocamos, havia sido
416
recebido como líder por uma multidão exaltada, em função dos apelos
típicos da Páscoa judaica. Os sacerdotes não precisariam de Judas para
prender Jesus, mas pagaram-no para não terem as mãos enlameadas
com o fato.
Jesus sempre soube de como seriam seus derradeiros momentos
entre nós. Ele que se fez humano, sofria com a densidade da vida na
Terra, com a psicosfera doentia e com a incompreensão geral. Não era a
expectativa de morte física que o atormentava. Judas sempre fez parte
do plano divino; não porque Jesus assim decidiu pela traição de seu
discípulo, mas porque ele sabia das fraquezas de seus seguidores e das
expectativas frustradas de Judas, que esperava ver o início da grande
revolta.
A descoberta do Evangelho de Judas, uma obra apócrifa do
século II d. C., mostra que essa traição era vista, por alguns círculos
cristãos, como tendo sido arquitetada pelo próprio Jesus, para fazer
cumprir as profecias e encontra respaldo entre alguns estudiosos, que
veem na traição uma relação entre o mestre galileu e possíveis
movimentos de resistência, onde Judas seria o portador de orientações
do messias, mas essas últimas colocações nos parecem extremamente
especulativas e improváveis. Por outro lado, acreditamos que Judas, de
Kerioth, acreditava de forma vívida que o mestre não se entregaria e
Jesus: homem e espírito
417
daria início a uma verdadeira revolução divinamente inspirada; Judas
não entendera que a revolução de Jesus se processava no interior
daqueles que o seguiam e, como aquele homem de Kerioth não tinha
experimentado essa renovação, apenas via, com a esperança das
crianças em espírito, o seu mestre como um revolucionário a ser
despertado do sono. A silhueta da cruz poderia fazer o que ele, Judas,
em muitas conversas pessoais não conseguira, despertar o guerreiro de
Deus que tira o pecado literalmente pela espada. Quanto incompreensão
sofreu Jesus; quão rudes e pequeninos em compreensão eram o seus
seguidores, mesmo os mais próximos. E isso se mantém no presente.
Acrescenta-se, também, que esse desequilíbrio emocional em
Judas tornou-o bastante susceptível a influências nefastas, a ponto dele
ter sido considerado um obsediado pelos demais apóstolos, que
literalmente diziam, nos últimos dias antes da prisão de Jesus, que o
“demônio” havia se apossado daquele homem. Esse desequilíbrio ficou
evidente quando o traidor viu que seu mestre não iria reagir. A
simbologia do cordeiro que não emite lamento quando supliciado se fez
bastante coerente e presente, invocando toda a tradição do Antigo
Testamento, bastante cultuada nas igrejas cristãs mais literalistas.
Numerosas entidades trevosas do maior quilate ainda livres (fora
dos campos de contenção e do sono espiritual, facilmente confundíveis
418
com os antigos “demônios” do mundo pagão e judaico-cristão),
trabalhavam dia após dia na mente debilitada e dividida entre a visão
universalista da pregação de Jesus e o nacionalismo extremado com o
qual ele, Judas, inicialmente se afinava. Além disso, escutando todo tipo
de influência nefasta, Judas comete suicídio, acrescentando algo
extremo a essa história macabra.
Entretanto, porque o Plano Mais Alto e o próprio Jesus, que
sabiam desse fatos não se precaveram e evitaram esses dolorosos
suplícios?
Para isso devemos crer piamente que Judas representava,
naquele momento, a própria natureza humana. Seus defeitos e
limitações somente refletiam um fenômeno comum. Nós somos “Judas”
hoje, enquanto ele, espírito que sofreu horrores indescritíveis associados
com o remorso e a ação da trevas, readquiriu a luz que tanto ansiava e
trabalhou séculos nos diversos planos da vida para sanar a consciência e
ascender novamente para os planos superiores. A história de Judas não
é diferente de muitos que foram curados por Jesus; uma vez libertos da
dor e da doença, retornaram para suas vidas normais com os mesmos
hábitos e com as mesmas limitações, voltando a comprometer a sua
existência.
Jesus: homem e espírito
419
Quantos foram alvo de desobsessões realizadas por Jesus e
retornaram à condição de obsediados semanas ou dias depois, em
função da ausência de uma reforma íntima? Quantos viram-no orar dia e
noite pelo bem daqueles que encontrava pelo caminho e somente
pensavam em si mesmos? Quantos viram-no curar os enfermos e
acharam que tal fenômeno feria as leis de pureza ritual ou sacralidade
do sábado? Quanto encontraram Jesus sentado junto a pecadores e
excluídos e se esqueceram que aquela atitude simbolizava que, no reino
do Pai, não existia a exclusão, a menos que a própria pessoa, dotada de
seu livre-arbítrio, não desejasse participar? Muitos de nós estaríamos
em alguma dessas categorias ainda hoje. Judas representa o povo e sua
atitude fazia parte do que o próprio Jesus esperava encontrar; não era
uma surpresa e trazia tamanho significado simbólico que provavelmente
fosse inevitável de ocorrer.
Para Crossan, a palavra “Judas” ressoa, em hebraico, como
“judeu” e representaria o próprio anti-judaísmo presente nas
comunidades cristãs greco-romanas em expansão. Contudo ele acredita
que alguma traição tenha, de fato, existido. Talvez, nas horas seguintes
aos tumultos no Templo, os romanos ou a força policial judaica
tivessem capturado alguns integrantes do movimento de Jesus e
extraído de forma pouco humana a localização dos demais, levando à
420
prisão e execução de Jesus. Por mais pragmática e imaginativa que essa
hipótese possa parecer, ela não se compara com a liberdade criadora dos
evangelistas. Segundo esse pesquisador, Marcos e sua comunidade
sofreram severas perdas humanas no período ao redor da grande revolta
judaica e sabiam o que significava traição ("Um irmão entregará à
morte outro irmão, e o pai, ao filho; filhos haverá que se levantarão
contra os progenitores e os matarão". Marcos 13:12), assim,
utilizaram-se do recurso didático de que "se você foi traído por alguém
muito próximo, Jesus também o foi". Contudo, se detalhes da traição de
Judas são acréscimos redacionais ao evento histórico, não merecendo
muitos créditos a idéia do beijo na face, por outro lado a participação
ativa e voluntária de um dos apóstolos teria de fato ocorrido.
Deve-se lembrar que na sociedade de códigos de “honra e
vergonha” do Mediterrâneo, trair depois de um beijo no rosto era
abominável, mas trair com tal beijo era uma infâmia, como coloca
Crossan. Desta forma procurava-se dar a Judas as cores mais terríveis,
caracterizando-o como um ser abominável, o que se completa com a
descrição do destino do seu corpo após seu suicídio. A morte de Judas,
descrita em Mateus, apresenta paralelos com Jeremias 32:9 e Zacarias
11:12-13 e se assemelha á morte de Aitofel, em 2Samuel 17:23, de
forma que não podemos ter segurança em afirmar se a descrição dos
Jesus: homem e espírito
421
evangelhos é real, ou apenas reflete a composição desses textos, para
dar mais dramaticidade ao fato narrado. Em Atos dos Apóstolos (1:18-
20), o próprio Judas compra um campo e seu corpo é arrebentado ao
meio, daí o nome de "Campo de Sangue".
Sendo o mestre galileu um homem popular e considerado, por
grande parcela da população, como o messias da casa de Davi ou, pelo
menos, um homem santo que, com sua pureza de coração e feitos
miraculosos, deixava os sacerdotes embaraçados, não se pode deixar de
pensar que um assassinato desses exatamente no momento em que a
população festejava a libertação de um cativeiro poderia levar a surtos
ou uma grande revolta de cunho nacionalista. Talvez teria sido melhor
para a cúpula sacerdotal tentar tornar esse homem mais próximo dos
seus interesses ou leva-lo a ser executado pelos romanos, mesmo que
isso viesse a implicar a possibilidade de criação de um mártir. Foi o que
ocorreu.
9.3 O julgamento
Para Crossan, um dos mais polêmicos e questionadores
estudiosos do Jesus histórico, o julgamento de Jesus foi redigido pelos
evangelistas para ocupar o espaço vazio deixado pela ausência de
memórias reais sobre o que ocorreu de fato. Assim, dois julgamentos
422
seriam criados, um judeu e outro romano, para opor os cristãos aos
ocupantes do poder na Palestina do século I. d. C. Contudo, existem
alguns pontos do processo que se não forem históricos, remontam à
forma com que as primeiras comunidades cristãs entendiam o
julgamento de Jesus e sua execução e possuem, pelo menos
parcialmente, vínculos com o que de fato ocorreu na Palestina.
Embora muito tenha sido dito sobre a subordinação de um
tribunal judeu à autoridade romana, hoje se sabe que os romanos nunca
se prestariam a fazer para os judeus o trabalho sujo de prender um
"bárbaro", como eles viam um não-romano, que havia cometido crimes
contra a fé de seu povo, o que decididamente ele não cometeu, muito
menos participar de uma prisão ilegal e sem razão, o que não era do
desejo de nenhum governante romano, como Poncio Pilatos, um dos
que mais tempo exerceu o poder romano sobre a Judéia.
Assim, a presença romana na prisão de Jesus significa que o
crime cometido feria diretamente o poder romano e, provavelmente, foi
visto como de grande importância, visto que uma coorte, com seus 300
a 400 homens , no mínimo, foi enviada para a prisão. Agora, Jesus era
prisioneiro romano, acima de qualquer coisa. Contudo essa descrição da
prisão de Jesus é exagerada, visto que as forças que cuidavam de
Jerusalém naquela época não eram muito maiores do que isto. Essa
Jesus: homem e espírito
423
descrição se dá porque Marcos a descreve como PODERIA ter sido,
enquanto João a imagina como ela DEVERIA ter sido: um rei deveria
ser preso assim. Do coração dos fiéis do século I d. C. saíram os demais
arroubos da descrição da prisão de Jesus.
O fato de Pilatos ter se encontrado com Jesus na manhã seguinte
já significava que ele o estava esperando, como se já soubesse da prisão
e do crime cometido, o que reforça a idéia de que a prisão foi, em sua
natureza e origem, romana. A presença judia, na captura do mestre
galileu, foi resolvida por uns como sendo fruto de um mandato de
prisão prévio emitido pelo Sanedrim, reforçando um segundo mandato,
agora romano. Contudo, tal atitude teria sido um disparate diante de um
tribunal romano, que nada tinha com os crimes judeus que não
interferiam com a manutenção da paz romana. Se romanos estavam
presentes, o mandato de prisão era essencialmente romano ou apenas
romano.
Também deve-se salientar que o pedido do Sanedrim de apoio
romano na prisão de Jesus somente aumentaria ainda mais a aversão da
população em geral para essa instituição, que vinha tendo diversas
dificuldades para se legitimar perante a população. Os próprios romanos
poderiam ver nessa solicitação um sinal de fraqueza e desfazer uma
instituição que não era capaz de se livrar de um carpinteiro. Então, se
424
uma força romana foi enviada para prender o mestre, o que lá faziam os
enviados da polícia do Templo, já que a mesma deveria estar
extremamente sobrecarregada com os problemas oriundos da
proximidade da Páscoa, quando centenas de milhares de pessoas de
todo o império acorriam a Jerusalém?
A presença dos judeus ali se deu por solicitação sacerdotal e
como os romanos tinham postos de detenção em Jerusalém e, mesmo
assim, entregaram Jesus aos judeus, naquela noite, só nos resta imaginar
que o prisioneiro foi entregue à polícia do Templo como consequência
de uma solicitação de seu capitão ou de um oficial da elite sacerdotal.
Na manhã seguinte, bastaria devolve-lo ás autoridades que efetuaram a
prisão. Talvez a polícia judia estivesse ali no monte para conseguir a
custódia de Jesus por aquela noite. Alguém ou grupo muito importante
queria ter momentos a sós com Jesus e, como sugere o espírito de
Eleazar, dinheiro teria sido oferecido para importantes autoridades
romanas, talvez o próprio Pilatos, que não era dos mais honestos e sabia
que a Palestina era o inferno na Terra para os mandatários de Roma. Os
apóstolos não teriam como saber disso e nada ficou registrado.
Reparem que, embora Jesus tenha sido preso pelos romanos, não
foi levado para qualquer tipo de cárcere e sim á casa do Sumo Sacerdote
ou do sogro do mesmo, que também já havia exercido esse posto.
Jesus: homem e espírito
425
Assim, o pedido de custódia de Jesus deve ter sido feito diretamente
pelo próprio sacerdote e em seu nome cumprido. O Sumo Sacerdote
tinha conhecimento prévio do mandato de prisão contra Jesus e
destacou uma força da polícia do Templo para acompanhar o ato e
trazer o prisioneiro para uma discussão urgente. O próprio sacerdote
deve ter informado o poder romano sobre a possibilidade de tumultos e
sobre a volatilidade da situação que envolvia o mestre de Nazaré.
Embora João cite que Jesus foi agredido durante sua condução
até a casa de Anás e, depois, a Caifás, os demais evangelhos se calam
sobre isso, perdendo uma ótima oportunidade de incriminar ainda mais
os judeus. De fato, Jesus chegaria fisicamente bastante ferido, com
escoriações por todo o corpo, o que não era exceção na época em que
esses fatos se deram, seguindo a filosofia do “se ele não for culpado
dessa vez, pelo menos aprende e não se envolve em outros problemas
no futuro”.
Levado para a presença da elite sacerdotal judia, nada foi feito
para mantê-lo prisioneiro e nada lhe foi dito sobre sua condição de
prisioneiro. Ao invés de ser mantido em uma masmorra, foi levado
provavelmente ao interior de um cômodo da residência do Sumo
Sacerdote onde todos os conselheiros do Pequeno Sinédrio poderiam se
reunir. Segundo Lucas, Jesus passou a noite sendo agredido e zombado,
426
sendo que a reunião com os membros do Sinédrio somente teria
ocorrido na manhã seguinte. A narrativa joanina sugere que Jesus foi
mantido em contato, inicialmente, com apenas poucos dirigentes judeus
na presença de Anás e só então enviado ao Sinédrio, de forma que a
entrevista noturna era apenas uma prévia do que se passaria no dia
seguinte na presença de Pilatos. Eleazar concorda com João.
Alguns estudiosos judeus acabaram criando a versão segundo a
qual Jesus teria uma entrevista na casa do Sumo Sacerdote, antes da
apresentação a Pilatos, com a intenção de livrá-lo da pena capital que
certamente lhe seria conferida. Acreditamos que a conversa entre Jesus
e alguns dos principais sacerdotes tenha, de fato, ocorrido e que os
sacerdotes tinham motivos para realizar esse encontro a portas fechadas,
posto que não deveria aparecer ao grande público. Qual seria o motivo
desse silencio? O que procuravam descobrir ou encobrir?
A palavra que pode responder isso tudo é......“fariseus”. Eles
foram os responsáveis pela conversa. Os sacerdotes sabiam que Jesus
seria condenado a alguma pena severa pelos romanos, possivelmente a
morte na cruz, ou provavelmente açoite intenso que o deixaria
desfigurado. A questão maior é de que o mestre galileu era visto com
alguns dos homens mais ricos da Judéia, grande comerciantes, que
poderiam financiar movimentos de resistência ou manter um grupo
Jesus: homem e espírito
427
religioso dissidente e atuante. Esses homens eram fariseus e mantinham
extensas conexões no Grande Sinédrio. Quais seriam as ramificações do
movimento de Jesus dentro do farisaísmo? Como o galileu pobre e
carismático encarava seu papel naquele momento da história? Até que
ponto o Sanedrim poderia ser responsabilizado pelos romanos, caso o
galileu fosse condenado? Se ele fosse condenado, entregaria seus
simpatizantes do Sanedrim? Essas questões teriam de ser feitas e
respondidas. Depois disso, poderiam fazer o que bem entendessem com
aquele homem, se possível, o melhor seria calá-lo para sempre, através
da cruz.
Tudo corrobora com essa posição do espírito Eleazar. Por
exemplo, se os fariseus não eram os crápulas pintados pelos
evangelistas, como já discutimos, será que tiveram algum envolvimento
com o movimento de Jesus? Sim, e foi significativo, com muitos
expoentes do judaísmo farisaico se tornando simpáticos ao judaísmo
redivivo, representado por Jesus. Muitos fariseus pareciam admirar o
movimento cristão por sua natureza eminentemente judaica-palestina e
todos sabiam que alguns seguidores do mestre eram bastante reticentes
quando se tratava de travar contato com as forças de ocupação romanas
e tinham uma postura bastante crítica quanto à presença de romanos em
428
seu solo sagrado. Lembre-se que assim o é até no presente; triste
Palestina.
Alguns desses judeus de origem farisaica, que tinham
confraternizado com os seguidores do caminho, como Zaqueu, José de
Arimatéia e, principalmente, Nicodemos ben Gurion, o homem mais
rico da Jerusalém na primeira metade do século I. d. C., eram
simpáticos também a algumas aspirações messiânicas, embora não
soubessem claramente o caminho a tomar. Eram condescendentes com
os primeiros movimentos nacionalistas que estavam surgindo e Jesus
poderia vir a ser bastante útil como o líder carismático que iria unir a
população em torno de uma grande e nobre causa. Em função das
conexões econômicas, muitos dos membros do grande e do pequeno
sinédrios acabavam tendo negócios com esses personagens e o próprio
poder judeu constituído não sabia, ao certo, qual era o envolvimento e a
participação desses homens abastados na estrutura do grupo liderado
por Jesus.
Dessa forma, acreditamos que essa entrevista prévia destinava-
se a determinar com segurança a participação de outros personagens no
drama que se desenvolveria ao longo do dia seguinte, na presença de
Pilatos, bem como determinar se Jesus seria capaz de se incriminar
sozinho ou de incriminar gente importante, o que ele nunca faria,
Jesus: homem e espírito
429
segundo a filosofia de que cada um deve carregar a sua própria cruz. Se
pessoas importante do Sanedrim fossem incriminadas como cúmplices
de Jesus, o próprio Sanedrim e o Sumo Sacerdotes corriam o risco de
serem eliminados da face da Terra por Roma, acabando com a modesta
liberdade deixada nas mãos dos judeus.
Todos ali reunidos ficariam bastante satisfeitos se o messias de
Nazaré fornecesse os elementos capazes de incriminá-lo em um tribunal
romano, uma vez que não foi submetido a julgamento pelos judeus,
como veremos a seguir.
O Sinédrio, ou Sanedrim, tinha o direito de impor a pena de
morte a culpados do crime capital, pela lei judaica, mas a execução da
pena implicava em apedrejar, queimar ou chacinar o culpado, não
podendo a pena ser substituída por uma execução por métodos
estrangeiros como a crucificação, desenvolvidas pelos persas e
particularmente bem executada pelos romanos. O julgamento judeu, tão
popularizado desde o início da cristandade, supõe que Jesus foi
condenado à morte por blasfêmia, tendo ele confessado tal crime. Essa
teoria é absolutamente incoerente em função de numerosos elementos,
listados abaixo:
430
1. o Sinédrio não poderia se reunir e julgar fora do Templo,
lembre-se que tudo se passou na casa do Sumo Sacerdote
ou do seu sogro;
2. o Sinédrio não poderia julgar durante o período noturno;
3. ninguém poderia ser julgado por crime nos dias festivos
ou na véspera de um festival (estávamos na véspera da
Páscoa);
4. ninguém podia ser considerado culpado por força de sua
própria confissão e sim pelo testemunho de duas
testemunhas oculares adequadamente qualificadas, que
no caso de Jesus não foram encontradas;
5. ninguém podia ser considerado culpado do crime capital
sem ter sido avisado por duas testemunhas oculares
adequadamente qualificadas que tenham verificado que o
acusado fora advertido sobre a ilegalidade do ato e as
consequências do mesmo;
6. o crime capital diz respeito do pronunciamento do nome
sagrado de Deus, não importando que outras calúnias são
ditas sem que o santo nome seja pronunciado.
Jesus: homem e espírito
431
Nada disso ocorreu, o que tornaria ilícito o ato de condená-lo e
poderia dar início a uma revolta, uma vez que todos ali sabiam como o
mestre galileu era amado pelo povo comum.
Aqueles que acreditam no julgamento judeu alegam que essas
observações provam apenas que o julgamento foi ilegal e que os judeus
estavam desejosos de se livrar de Jesus. Para eliminar a possibilidade de
que o julgamento tenha se dado na véspera da Páscoa, alguns estudiosos
preferem rever a data em que o mesmo teve início, criando a cronologia
dos três dias, como previamente discutido aqui, seguindo a cronologia
de João, o que de fato ocorreu, mas os demais pontos da lista acima
continuam sem solução. Outra forma de resolver o problema reside em
atribuir uma natureza saducéia ao julgamento e, já que não sabemos
quais eram os preceitos do direito saduceu, qualquer peculiaridade
poderia ser atribuída a um julgamento assim; isso é “forçar a barra”.
Porém, não podemos nos esquecer que os saduceus observavam
estritamente os mandamentos do Pentateuco, ignorando tudo que
representasse acréscimos posteriores e tradições, de forma que temos
que procurar aspectos desses livros que podem ter sido contrariados
pelo julgamento de Jesus.
Nesse caso, os julgamentos em vésperas de festivais e dias de
festas seriam lícitos, mas existem boas evidências de que um
432
julgamento noturno estava fora de qualquer cogitação dentro da lei
judaica, saducéia ou não, visto que em Números (25:4) o texto bíblico
exige que o julgamento e a punição dos criminosos sejam realizados
enquanto o sol brilha. A lei judaica em Deuteronômio (19:15) exige que
a condenação por pena capital seja feita apenas com a colaboração do
testemunho de duas ou três testemunhas fidedignas e todas as
testemunhas que se apresentaram no julgamento de Jesus foram
recusadas por serem incoerentes e o mestre teria sido condenado pelas
suas próprias palavras, o que contraria as escrituras. Um julgamento
saduceu parece tão improvável quanto um julgamento fariseu.
Existe também a idéia de que o Sinédrio teria atribuído ao
julgamento e à situação ligada a ele um caráter emergencial, que
permitiria passar por sobre todos os aspectos da lei judaica e constituir
algo próximo de um rito sumário. Um precedente que poderia ser
empregado para justificar essa crença reside na experiência de Simon
ben Shetah, presidente do Sinédrio, no século II a. C., que teria
ordenado o enforcamento de 80 feiticeiras em Ascalon depois de pedir
para si poderes emergenciais, mas essa ocorrência é uma exceção e não
regra, além do que, no caso das feiticeiras, não existiu, por parte do
presidente do Sinédrio, a mínima intenção de instituir um processo
Jesus: homem e espírito
433
formal como aquele descrito pelos evangelhos, os quais tentam deixar
claro que os sacerdotes procuraram seguir um procedimento padrão.
Os fariseus eram legalistas, procurando observar os preceitos da
lei da forma mais completa possível, mesmo que esse formalismo
pudesse ter atenuantes na vida diária, mas não na aplicação do rito de
um julgamento por um crime capital, o que sugere que poucos fariseus
estavam presentes nesse julgamento, realizado já de antemão para
avaliar a culpabilidade de Jesus seus seguidores. Porém, se a reunião
noturna na casa do Sumo Sacerdote não se tratou de um julgamento,
todos esses elementos podem ser retirados e as incoerências tendem a
desaparecer. Se a reunião noturna fosse uma sessão investigatória
preliminar com intenções de analisar uma situação, então seria lícito a
reunião do Sinédrio na forma de um conselho, sumboulion em grego,
como utilizado nos evangelhos, enquanto que o Sinédrio como órgão de
julgamento ou tribunal seria denominado de krima.
A reunião desses conselhos podia ser realizada nas casas dos
seus membros, à noite. Assim, se tal reunião existiu, não foi o Sinédrio
como um todo que se reunira e, tampouco, nessas condições, poderia
emitir a sentença capital. A reunião de um conselho está implícita no
texto joanino e vai contra a descrição dos sinópticos, que seriam fruto
434
de interpolações cristãs. João concorda, implicitamente, com os pontos
listados acima, como destaca Haim Cohn.
O julgamento de Paulo perante o Sinédrio, décadas depois,
mostra como seria um julgamento judaico, que não teria sido
interrompido, como foi, se Paulo não fosse cidadão romano e tivesse
alertado as autoridades romanas. Os judeus, por mais colaboradores que
alguns indivíduos pareciam ser para com os romanos, nunca utilizaram
o Sinédrio como auxiliar de um tribunal romano, mas assumiriam
prontamente a jurisdição sobre um judeu preso por romanos que tivesse
cometido um delito frente à lei judaica, desde que o mesmo não tivesse
cometido um crime frente ao poder romano. Nunca entregariam um
judeu aos romanos, como sugere a leitura dos evangelhos, a menos que
o crime fosse frente a lei romana. Esse era o caso de Jesus.
Pelo direito romano, a autoridade imperial não podia pedir ao
Sinédrio, ou a quem quer que fosse, para proceder a um inquérito
preliminar, mesmo para penas capitais. Cabia ao acusador o ônus de
encontrar as testemunhas que corroborassem com a acusação. Se o
Sinédrio fosse o acusador ele teria de encontrar testemunhas e parece
que foi isso que ele fez, mas o acusador teria de ser pessoa física e não
um grupo de indivíduos e caso o réu fosse alvo de calúnia o acusador
sofreria a perda de seus direitos civis, ou mesmo sofrer a pena para o
Jesus: homem e espírito
435
crime que tentara incriminar o réu, inclusive a morte. Tendo o Sinédrio
considerado as testemunhas, contra Jesus, como incoerentes, ninguém
teria a coragem de chegar a acusar o galileu perante a autoridade
romana. Seria loucura e eles não era loucos, eram astutos.
Os judeus acusavam Jesus de subverter o povo, vedando o
pagamento de impostos ao imperador (Lucas 23:2), perverter a nação (
Lucas 23:14), de ser malfeitor (João 18:30), de se fazer rei (João 18:33-
34), não acusando-o de blasfêmia. Se durante o interrogatório noturno o
pseudo Sinédrio apenas buscou delitos contra o direito judaico, por que
teria feito uma acusação baseada no direito romano, sendo que, por
vezes, os judeus mais nacionalistas eram mais ou menos acobertados
pela classe dirigente, principalmente se essa mesma classe pudesse
tentar obter seu apoio em caso de insurreição, como aconteceria na
revolta judaica de 66-73d. C.?
A classe sacerdotal encontrava-se em uma situação delicada e
provavelmente queria se livrar de Jesus com o menor derramamento de
sangue possível, não por misericórdia ao povo, mas para não interferir
nos seus lucros com a Páscoa. Com sua legitimidade no Sinédrio sendo
contestada de forma surda pela população, lutar para salvar da morte
um jovem líder carismático que não tinha cometido nenhum delito
capital perante a lei mosaica poderia contribuir para deteriorar ainda
436
mais a sua imagem perante a população, particularmente perante os
fariseus, mais nacionalistas e dominantes no Sinédrio. Assim, seria
ótimo se os romanos pudessem fazer o trabalho desagradável e eles, os
invasores, não se incomodavam muito com isso.
Jesus, para ser inocentado, teria de proferir palavras que
mostrassem boa vontade frente ao poder romano, o que significava não
ter qualquer inclinação messiânica ou ligação com profecias sobre a
chegada de um rei da casa de Davi ou de qualquer tradição nacionalista
judaica. Mas nosso mestre, quando perguntado pelo Sumo Sacerdote se
era o rei, filho do Deus Bendito, respondeu que era o Cristo, Filho do
Altíssimo, e que logo estaria do lado direito do Pai Todo Poderoso. Essa
resposta de Jesus evidenciou, ao Sumo Sacerdote, que os romanos não
teriam motivo para deixá-lo livre e, encolerizado, embora apenas
aparentemente, em um drama para que os demais assistissem, rasga
suas vestes, um ato bem ao sabor da época, para expressar aflição ou
indignação.
Muitos consideram que Jesus apenas assumiu seu caráter
messiânico nesse momento, declarando-se o escolhido (em realidade o
título de “Filho de Deus” lhe seria conferido posteriormente pela igreja
que se aproveitou desse momento para fazer mais um forte discurso em
favor da divinização de Jesus), mas isso não configurava blasfêmia
Jesus: homem e espírito
437
perante o Sinédrio. A reação de rasgar as vestes significava que a sorte
do messias galileu estava selada. Os demais membros do conselho em
reunião também reagiram de diferentes maneiras frente às declarações
de Jesus, cuspindo e esbofeteando-o, segundo o texto joanino, sendo
que em seu interior aqueles homens sorriam, como coloca Eleazar, um
desses indivíduos, pois se livrariam do problema “Jesus” facilmente,
visto que o galileu assumiria seu papel de messias divino e acabaria na
cruz, calando-se a respeito de tudo quanto temiam os membros do
referido conselho.
O título “Filho do Homem”, por vezes utilizado por Jesus, pode
ter muitos significados, desde “ben Adam’, do hebraico “filho de um
homem’, ou literalmente “filho de Adão”, evidenciando um sentido
totalmente oposto ao pretendido por aqueles que o acusavam de se fazer
passar por um quase “deus”. A humildade de Jesus não permitiria isso e
os orofetas também receberam esse título, algo como “querido ou
enviado de Deus”, e também existe o “Filho do Homem” de Daniel, que
uma vez enviado através das nuvens, faria o poder de Deus presente em
todo o mundo e traria a redenção da casa de Israel. Nesse caso, o termo
trazia uma forte inclinação messiânica.
No sentido bíblico utilizado por Jesus, parece claro que o termo
não é uma alusão á divindade do mestre de Nazaré, mas destaca seu
438
lado humano e essa interpretação foi seguida por muitos dos pais e
estudiosos da igreja, como Inácio, Irineu, Orígenes, Eusébio, Atanásio,
Gregório de Nisa, Gregório Nazianzo, Cirilo, Crisóstomo, Tertuliano,
Ambrósio, Cipriano e Agostinho. Quando Jesus fala de si como o Filho
do Homem parece discorrer na maravilha que Deus fez ao se fazer
representar na carne de um homem “comum”, para transformar os
corações de seus pares. Um homem imbuído do saber e autoridade
plenas, falando em nome do Pai, mas um homem. Isso não constituía
crime perante a lei judia, mas trazia implicações perante o poder
romano e à classe sacerdotal, como a existência de um poder paralelo e
um reino passível de ser atingido por todos, inclusive o imperador, com
a condição que se entregassem a esse Senhor Deus.
Se Jesus tivesse falado do seu poder sobre elementos, doenças e
destinos dos homens, sem invocar a força da piedade divina e sua
infinita glória, talvez tivesse despertado reações muito acaloradas, mas
em todos os momentos ele atribui seu poder unicamente à vontade do
Pai, que está acima de todos e de tudo. Isso seria algo até certo ponto
elogioso, para muitos membros do Sinédrio. Vários galileus
considerados santos, como Honi ou Hanina ben Dosa, se apresentavam
como servos de Deus e não tiveram problemas com o Sanedrim. No
julgamento dos discípulos de Jesus, anos depois, palavras muito mais
Jesus: homem e espírito
439
provocadoras foram proferidas e os judeus, encabeçados por Gamaliel,
um sábio fariseu muito respeitado, acabaram fazendo cumprir uma pena
muito menor do que a pena capital.
A admissão de ser o messias feita por Jesus, diante o Sinédrio,
equivalia a obrigar os sacerdotes judeus a aceitarem como certa sua
reivindicação, colocando-se sob suas pretensões messiânicas, o que
seria impensável para os sacerdotes, além de correrem o risco de serem
vistos como cúmplices do galileu, segundo a mentalidade romana.
Aceitar Jesus como messias, mesmo que alguns o fizessem, como os
evangelhos sugerem sobre Nicodemos e José de Arimatéia o fizeram,
significava cair em desgraça frente ao poder romano e uma confirmação
do que as autoridades romanas suspeitavam quanto á natureza da
pregação de Jesus e das atividades de alguns membros do próprio
Sinédrio.
Apenas no evangelho de Marcos, Jesus é condenado à morte
(14:64), enquanto em Mateus (26:66) se lê que o galileu era “réu de
morte”, enquanto em Lucas nem essas palavras são proferidas. Mesmo
que esse julgamento tivesse sido realizado, nada foi proferido sobre isso
a Pilatos, o que seria muito estranho. Contudo, diante das palavras de
Jesus, é possível, se não provável, que palavras duras tenham sido
proferidas por membros do Sinédrio, revelando que o réu logo seria
440
condenado diante dos romanos. Durante a condução ao palácio onde
Jesus seria julgado por Pilatos, o mestre galileu foi agredido como se
fosse um prisioneiro comum, mas essa agressão, na melhor das
hipóteses, não foi intensa, pelo menos nada perto do que ele sofreria nas
mãos das autoridades romanas.
Jesus foi levado á presença de Pilatos, que já o esperava, e foi
acusado por todo o conselho, anciões e sacerdotes diante da autoridade
romana. Manietado pela polícia do Templo, Jesus era uma presa nas
mãos romanas. Seu fim como encarnado se aproximava. Tudo de
acordo com a redação dos evangelhos. Mesmo sem uma acusação
prévia por parte dos judeus, a história se movimenta. A própria
admissão de Jesus no pretório seria vedada, se não houvesse uma
acusação formal contra ele, mas uma vez que Pilatos já estava pronto
para o julgamento, é óbvio que ele já sabia qual era a acusação, então
essa devia ser romana.
Existe um sério problema em ter os judeus assistindo ao
julgamento de Jesus: ele teria sido realizado, como manda a tradição “in
câmera” , ou seja, em ambiente fechado e sem a presenças desses
inoportunos cidadãos. Apenas os apparitones, auxiliares, eram
admitidos no tribunal e nada indica que, no caso desse julgamento
particular, algo tenha acorrido que fugisse á regra. O evangelho de João,
Jesus: homem e espírito
441
mais uma vez, parece correto quando afirma que os judeus não puderam
entrar no praetorium onde se dava o julgamento, sendo que muitos
alegaram razões de pureza ritual para esse impedimento ou, mais
provavelmente, por terem sido barrados pela autoridade imperial
exercida pela figura de Poncio Pilatos.
Pilatos era cirúrgico, efetivo e violento. Não sentia a mínima
compaixão pelos seus semelhantes e se divertia, como aliás quase todos
os romanos, com o apego religioso da população local, com a diferença
de que ele odiava os judeus, principalmente porque esses ainda se
consideravam superiores aos romanos. Naquele dia fatídico, o prefeito
da Judéia iria encarar, face a face, o mestre de Nazaré e o resultado
pode bem ser lido no romance de Emmanuel, "Há 2000 anos". Contudo,
sabemos dos apelos poéticos de um livro romanceado, onde o clímax de
uma situação por vezes somente é atingido com algumas licenças de
historicidade. Sabemos que, de início, os judeus insistem que Jesus
deve ser responsabilizado pelo crime de lesa-majestade, atividades
subversivas contra Roma, em poucas palavras. Pilatos parece não
aceitar essa acusação.
A apresentação de Jesus a Herodes foi motivada também por
uma espécie de curiosidade que o prefeito romano passou a sentir em
função do comentários populares, que diziam que o mestre galileu era
442
um homem de profunda sabedoria, embora não tivesse estudo, além de
ser portador, na "língua do povo", de estranhos poderes. Inicialmente
inclinado e acabar logo com o murmúrio sobre o nazareno, presente
mesmo entre seus soldados, assim que viu o messias judeu pela frente,
sentiu fortes dores no peito e alma parecia que queria explodir no seu
interior.
Pela primeira vez na sua vida ele se via diante de uma sensação
que não conseguia dominar. Era como se o filme de suas muitas vidas
estivesse passando em sua mente, tal qual lembranças de um tempo de
criança. Ao mesmo tempo em que desejava acabar com a situação, ele
desejava saber mais do galileu. Ao contrário dos textos canônicos, o
poder romano não precisava de mais um motivo para liquidar a vida
física de Jesus, quem, naquele momento, pretendia manter a discussão
era o líder romano e por motivos puramente pessoais. Os judeus não
tomaram parte no ocorrido porque sequer podiam entrar no recinto.
O relato joanino ainda evidencia que embora o julgamento tenha
sido realizado “in câmera”, o anuncio da sentença foi público, como
uma maneira de informar os que desconheciam a natureza do processo,
as razões que levaram ou não a uma condenação do réu, sem o qual, o
julgamento como um todo poderia ser considerado tirânico e um
simples assassinato.
Jesus: homem e espírito
443
A inteligência de Jesus e a forma com que ele respondia as
questões não eram tão relevantes para Pilatos, quanto o impressionante
magnetismo do Cristo. A conversa curta foi o suficiente para que o
mandatário romano se demovesse de matar Jesus. Tal mudança brusca
de posição era fruto nas das palavras ouvidas, mas do efeito que a
simples presença desse homem santo tinha sobre as pessoas. Todas as
vezes que isso é descrito no cânone, os estudiosos atribuem a redação
do texto a algum cristão que tentava declarar seu amor ao Cristo e o
texto é descartado. Contudo, sabemos de pessoas com uma capacidade
enorme de envolver os outros e modificar, apenas com seu magnetismo
e carisma pessoais, as intenções de terceiros. O messias galileu era uma
dessas pessoas.
As palavras ditas em grego truncado pelo sotaque semita de um
lado e latino de outro eram irrelevantes naquela conversa. O prefeito
sentiu como se estivesse sendo julgado e toda a angústia e o ódio que
sentia, no seu interior, desapareceram como que milagrosamente. Por
momentos, ele se esqueceu de suas responsabilidades e do fardo de
estar naquela terra de fanáticos religiosos. Ele chegou mesmo a
considerar que o que diziam de Jesus, quanto a ele ser um mensageiro
dos deuses, poderia ser real, pena que era judeu, posto que se fosse
romano, seria logo aclamado como um grande filósofo.
444
O próprio Pilatos sabia que o judeu Jesus não representava,
naquele momento, risco de insurreição, mas temia que alguma
associação futura entre ele e algum dos muitos grupos de insatisfeitos
acabasse ocorrendo. A hesitação do líder romano era fruto da
convergência de diversos elementos, notadamente a sua obrigação em
crucificar Jesus e a sua vontade pessoal de fugir dali e se retirar em
algum local ermo onde pudesse ter paz e deixar de escutar as palavras
que perturbavam a sua mente. o Peso era de fato enorme. Com o tempo,
toda essa batalha foi transferida para os atores que eram visíveis aos
evangelistas, o poder romano e os líderes saduceus.
A elite sacerdotal não esperava que o galileu viesse a sobreviver
a esse episódio e diversos grupos foram chamados, à custa de recursos
pessoais dos principais líderes saduceus, para se fazerem presentes.
Emissários dos sacerdotes estavam à espera de notícias sobre o messias
galileu e isso explica porque os judeus presentes sempre são descritos
de forma tão genérica. A redação dos evangelhos provavelmente reflete
a necessidade de colocar os arquiinimigos de Jesus no julgamento por
razões teológicas e políticas.
Nas aparições de Pilatos no pátio onde as multidões judias se
encontravam, o romano se manifestava repetidamente absolvendo Jesus
de todas as acusações, o que, como veremos adiante não pode ter
Jesus: homem e espírito
445
acontecido, visto que perante o poder imperial Jesus, de fato, havia
cometido o mais grave dos crimes e seria merecedor da pena capital: ele
era o rei de um reino que não era desse mundo, mas no mundo romano,
isso era o mesmo que desafiar a figura do imperador. Os judeus não
fizeram nenhuma acusação mais fundamentada, dizendo apenas que
Jesus era malfeitor. Ora, se queriam e estavam há muito planejando
matá-lo, já deveriam ter preparado uma acusação mais substanciada do
que a que apresentaram nos textos canônicos. Estavam todos perdidos e
a crucificação foi considerada como medida padrão preventiva, menor.
Foi sugerido que, ao ver a postura passiva de Jesus diante de
Pilatos, a população teria se indignado e entendido que ele de fato não
podia ser o messias divino que era esperado para restaurar o estado de
Israel e criar uma teocracia e assim teriam pedido a cabeça do impostor.
Não devemos levar a sério esse comentário, visto que o julgamento,
tendo ocorrido no pretório, sem permissão para entrada de pessoas
estranhas ao processo, não poderia ser acompanhado pela multidão,
desqualificando qualquer idéia que se baseie no acompanhamento do
julgamento em tempo real pelos judeus.
Nada mais errôneo. Jesus foi mutilado como forma de aplacar a
sua própria indecisão de Pilatos, como se esse último dissesse para si
mesmo "fiz meu papel e ele sabe que não pode ser rei de um reino que
446
não existe" ou "a imagem romana foi restaurada e esse aí não vai mais
aparecer". Temos consciência da dificuldade de aceitar essas
ponderações, mas o pouco que conseguimos captar de Jesus nos mostra
que ninguém ficava livre de sua benévola influência e Pilatos estava
nela envolto agora. Os sacerdotes sabiam das mazelas e erros de Pilatos
e seus representantes, fazendo-se presentes na entrada do pretório, eram
uma lembrança de que o Sumo Sacerdote era parceiro do poder romano
e pedia de forma "leve e sutil" que o galileu fosse eliminado.
O poder romano também se via tolhido para concretizar a
crucificação em função da época do ano em que isso se daria, a Páscoa,
onde centenas de milhares de judeus palestinos e gregos acorriam para
Jerusalém. Se o galileu tivesse um apoio popular significativo, os 3000
soldados à disposição dele não seriam suficientes para acalmar os
ânimos e uma rebelião poderia, de fato, ocorrer. Dentro desse contexto
podemos entender as consultas de Pilatos aos representantes dos
principais grupos judeus. Quando questionada sobre o galileu, a
população ali representava apenas os sócios do poder romano e não a
população comum, que vinha recebendo as dádivas divinas pelas mãos
e mensagem de Jesus. Os romanos não julgavam levar em consideração
a vox populi, sendo que uma lei dizia que “Vanae voces populi non
sunt audiendae”, ou "as vozes vãs do povo não devem ser ouvidas",
Jesus: homem e espírito
447
segundo Cohn. Se alguma consulta foi feita por Pilatos, ao povo, a
mesma teria a intenção de medir o apoio popular do futuro condenado,
particularmente no período da Páscoa, quando todos os ânimos estavam
tão exaltados, e não para decidir o futuro do réu.
Nenhum episódio da paixão de Cristo é tão controverso quanto o
que se refere á escolha do prisioneiro judeu a ser solto por ocasião da
Páscoa, o episódio de Barrabás. Esse indivíduo era um insurreto e
nunca seria solto pela autoridade romana, que deveria tê-lo eliminado
precocemente.
É muito mais provável que essa passagem também tenha sido
escrita com finalidades teológicas, uma vez que manuscritos mais
antigos evidenciam que o primeiro nome de Barrabás também seria
"Jesus", de forma que a escolha pelos judeus seria entre Jesus Barrabás
(Jesus, Filho do Pai) e Jesus, o messias, rei dos judeus. Embora presente
no texto de Emmanuel ("Há 2000 anos"), não temos uma opinião
formada sobre o caso em análise, enquanto a comunidade acadêmica,
em peso, argumenta contra a historicidade desse acontecimento descrito
nos evangelhos.
A figura desse "Barrabás" é relevante no sentido de que o
mesmo representava um movimento de resistência contra a dominação
romana e, desde que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a introduzi-
448
lo, nas Narrativas da Paixão, deve tê-lo feito para harmonizar sua
teologia. Como esse evangelho foi escrito logo depois da destruição do
Templo e da revolta judaica, na qual os movimentos de resistência
armada, como os zelotas e sicários, levaram o país ao caos e ruína, o
evangelista mostra que se o povo tivesse escolhido a opção de Jesus, do
amor ao próximo e do perdão, em vez da revolta e seus revoltosos,
representados por Barrabás, Israel poderia continuar existindo e o
derramamento de sangue teria sido evitado. A própria perseguição de
Jesus, por Herodes Antipas, em Marcos, provavelmente representa a
perseguição que esse governante e seus sucessores promoveram contra
a comunidade desse evangelista.
O jurista Haim Cohn enumera muitas incoerências na história de
Barrabás, tirando-lhe toda historicidade:
1. Se existia essa escolha na Páscoa, por que ela foi
limitada a esses dois personagens da história?;
2. Soltar um zelota culpado de assassinatos contra o
império, mesmo com os pedidos populares, seria algo
que ele nunca poderia ser explicado em relatório a
Tibério, o imperador, então por que teria ele feito isso?;
3. Vendo que o povo parecia em duvida sobre a quem
perdoar, por que Pilatos teria fugido completamente de
Jesus: homem e espírito
449
suas responsabilidades ao deixar os sacerdotes
influenciarem a vontade popular?;
4. Como os sacerdotes poderiam influenciar o mesmo povo
que os culpava de serem colaboradores dos romanos?
5. Fora dos evangelhos não se ouviu falar ou se tem registro
desse privilégio no tempo da Páscoa, tanto entre judeus
quanto entre romanos. Nem mesmo Josefo o registra;
6. Quem concedia o perdão era o próprio imperador e não
Pilatos. Se Pilatos tivesse perdoado Barrabás, ele teria
incorrido contra a Lex Julia, algo como abuso de poder.
Os acadêmicos se inclinam para a imagem de que o episódio de
Barrabás estaria destinado a servir na catequese de gentios, não tendo
quaisquer aspectos dignos de historicidade. Ninguém soltaria um
homem assim, um agitador nacionalista, principalmente na Páscoa.
Seria o equivalente a soltar um reconhecido criminoso ou um provável
agitador, como se inflamando uma tocha em meio a um enorme barril
de pólvora. Isso seria, no mínimo, incoerente.
Outros pontos indicam que a possibilidade de escolha de um dos
dois teria sido apenas teórica, do tipo "ou esse ou esse", mas cuja
pergunta à população não teria sido formulada. Seria uma colocação
imaginária de Pilatos para com seus auxiliares e demais oficiais
450
romanos que, por ventura, teriam recebido do prefeito a permissão de se
manter no recinto.
Da forma reservada em que o julgamento estava sendo
realizado, inclusive com a presença de outras autoridades romanas,
como sugere Emmanuel, a possibilidade de mostrar a extensão do poder
romano sobre os prisioneiros em questão pode até deve ter sido
considerada, até porque Barrabás era um criminoso aparentemente
conhecido, mas nunca seria concretizada em termos práticos. Também
não faz sentido uma consulta popular naquele momento, uma vez estava
claro que todos os "populares" ali reunidos haviam sido arregimentados
pelos sacerdotes saduceus e pelo Sumo Sacerdote e isso Pilatos sabia.
Existem textos que evidenciam que prisioneiros podiam ser
soltos, para ter o privilégio de festejar a Páscoa com os seus familiares,
mas essa normativa surgiu apenas no século IV, quando os evangelhos
se disseminavam pelo mundo romano e o imperador, por não encontrar
qualquer base legal para a lei enunciada no cânone, acaba sancionando-
a , o que se deu em 367 d. C., mais de 330 anos após a crucificação.
Vemos aqui um exemplo no qual os evangelhos criaram a realidade que
eles pareciam apenas descrever.
Mas mesmo assim, os prisioneiros acusados de sacrilégios
contra o imperador, assassinos, feiticeiros, mágicos, adúlteros, crimes
Jesus: homem e espírito
451
contra os mortos, estupradores e homicidas deveriam continuar presos.
Jesus era acusado de lesa majestade, como veremos a seguir, enquanto
Barrabás era assassino e também um terrorista de seu tempo, em ambos
os casos temos crimes que, aos olhos de Roma e seus governantes, eram
bárbaros. Você acredita que um eficiente funcionário do império iria
libertar alguém com essas credenciais?
O julgamento de Jesus diante de Pilatos começou com a questão
“És tu o rei dos judeus ?”, essa foi a acusação formal que foi feita
contra ele: se Jesus dissesse ter direito ao trono da casa de Davi, se
dissesse ser o escolhido de Deus para reinar, como o messias devia
fazê-lo, constituía crime de lesa-majestade, alta traição perante o poder
romano. Como Jesus não fora reconhecido pelo imperador como tal, seu
reconhecimento como rei significava que alguém usurpava os poderes
do imperador e criava um estado paralelo, mesmo com a afirmação de
que esse reino que não era desse mundo. Sabemos que os romanos, por
força da lei, deveriam colocar o crime a que o réu havia sido
condenado, na cruz, e, no caso de Jesus, escrevam "Jesus o nazareno rei
dos judeus". Se Pilatos não o matasse, e ele não era homem de muitos
pudores, seria culpado também de alta traição.
A resposta de Jesus a Pilatos, “vós o dizeis”, quando
questionado sobre sua ascendência real, parece mais uma negação de
452
que uma afirmação, porém seu sentido é dúbio. Pilatos repete a questão
e, pela resposta, verifica que essa tinha uma conotação afirmativa, a
qual foi acompanhada da explicação de que o reino era de natureza
metafísica, o que Pilatos certamente não entendeu, uma vez que, para os
romanos, rei era rei e não havia distinção entre o reino espiritual ou
divino e o mundo real, secular. A admissão de um título divino ou de
qualquer privilégio perante Deus, por uma alma vivente, no império, era
algo que feria profundamente a imagem do próprio imperador, que se
fazia deus encarnado.
Esse rei, Jesus, era muito mais perigoso que os reis terrenos,
visto que todo aquele que desejasse a verdade a ouviria de sua boca,
como o próprio Jesus afirmou. Um rei que não precisava de servos ou
exército, que parecia fazer do imperador um homem poderoso, mas
apenas um homem, perante a magnânima posição do Deus verdadeiro;
esse rei cujo reino não era desse mundo constituía um perigo
demasiadamente grande para ser ignorado e precisava ser eliminado
antes que muitos dessem crédito às suas palavras. Pilatos teria de fazê-
lo, mesmo com todas as células do seu corpo físico e seu guia espiritual
pedindo para que o prefeito romano não viesse a eliminar o estranho
que diante dele se colocava. Seria um peso enorme que aquele espírito
carregaria pelos séculos seguintes, como de fato ocorreu.
Jesus: homem e espírito
453
O episódio da mulher de Pilatos, revelando seu sonho
premonitório sobre o que fazer no processo contra Jesus foi considerado
como destituído de historicidade pelos estudiosos e incluído nos textos
dos evangelhos para torná-los mais adequados aos gostos romanos, que
davam grande atenção aos mesmos, aos sonhos. Entretanto, a família e
a alma de Pilatos estavam sobre forte comoção espiritual, se é que
podemos denominar assim. O dever de um lado e o medo do outro;
aquele galileu parecia ter um conhecimento e uma força que ele, Pilatos,
na sua meia idade, sequer podia imaginar e isso ficava patente, por isso
o prefeito romano parecia tão diferente do habitual. A insignificância
dilacerava o íntimo do "poderoso", mas não gerava ódio, produzia
apenas uma enorme consternação, uma angústia sem limites. "O que
fazer? Como posso passar por isso?", questões como essas martirizavam
o coração do eficaz servo do imperador.
É dentro desse contexto que se deu o "lavar as mãos", que
também constitui outro sério problema para os textos canônicos, o qual
foi realizado por Pilatos para selar a paz com os deuses, que tinham leis
próprias e não precisavam prestar contas perante o imperador romano,
livrando-se do peso do sangue de um justo. Agradaria a todos; matando
o traidor agradaria ao poder imperial, se livrando da culpa agradaria os
deuses. Tudo se daria de acordo com a vontade dos deuses, como de
454
fato ocorreu, aliás, nada se dá sem a anuência do Criador,
independentemente do nome que lhe conferimos.
Os procedimentos perante Herodes, relatados por Lucas, são
muitas vezes considerados incorretos e, talvez, fantasiosos, até porque
não havia tempo suficiente para que tudo isso se desse daquela forma.
Os evangelhos ainda relataram que Pilatos e Herodes não se davam
bem, talvez pelos privilégios que os príncipes herodianos pareciam ter
na corte imperial, com contato direto com o imperador, tornando pouco
provável essa delegação de poderes (Pilatos envia Jesus para Herodes),
particularmente quanto ao direito do prefeito romano em executar seus
prisioneiros culpados de alta traição.
Como Herodes era amigo de César, seria pouco recomendável
tornar claro essa hesitação a um inimigo político próximo do imperador.
Assim, parece que Lucas quis colocar que todos os poderes da terra se
voltaram contra o enviado dos céus. A teologia ditou a história narrada.
Herodes Antipas sentiu o ressentimento popular contra morte de João, o
Batista, de forma que não valeria a pena o risco de ter um
descontentamento popular ainda maior com a morte do profeta e
messias galileu, o que explicaria porque Jesus não fora eliminado na
Galiléia. Herodes Antipas não tinha a energia e a inteligência de Pilatos,
sendo pouco mais que um parasita que era mantido em um cargo por
Jesus: homem e espírito
455
vontade de Roma. Não merecia nada além daquilo que o imperador já
lhe concedia e aos seus irmãos também.
A postura ambígua de Pilatos acabaria dando origem às
lendárias intercessões dos sacerdotes contra Jesus, criando uma imagem
de homem quase santo para o comandante romano, além de acentuar
para posteridade a fama de insanos para os judeus, com trágicas
conseqüências para esses últimos ao longo de 2000 anos. Convertido
pelo imaginário popular em um quase santo, Pilatos se tornaria, no
imaginário apenas, até amigo dos que se afeiçoavam a Jesus e seus
ensinamentos, tendo sido escrito um evangelho em nome dele, chamado
de "Atos de Pilatos", texto apócrifo e tardio que objetivava mostrar a
santidade de Jesus e incriminar os judeus em todo o processo de
julgamento. obviamente esse livro é bastante tardio e foi escrito por
algum cidadão ou comunidade romana que queria se livrar de qualquer
elemento histórico que apontasse para a responsabilidade do império na
morte de Jesus.
Embora a mente e a alma de Pilatos pedissem para que ele
julgasse o mestre galileu um demente ou idiota, o que permitiria sua
soltura, o apego à ordem e ao senso de responsabilidade, além do
assédio de entidades trevosas, acabaram por determinar a crucificação
do mestre galileu. Assim, após momentos de ansiedade e hesitação, ele
456
determinou que o ritual da crucificação fosse consumado, o que os
emissários do Sumo Sacerdote e de alguns membros do Sanedrim
desejavam. Para os sacerdotes, a morte de Jesus também representava
um tipo de queima de arquivo, pelo envolvimento de fariseus ricos do
Sanedrim no grupo de simpatizantes do mestre.
A flagelação nunca seria instituída para substituir a crucificação
ou para aplacar o desejo circense da população, ainda mais sobre um
homem inocente. Era parte de um política de intimidação, colocada em
prática em todo o império, para evitar insurreições e fazia parte do
próprio procedimento de crucificação, nunca um procedimento
independente. A cena fica ainda mais improvável com Pilatos vendo-o
coroado com sua tiara de espinhos e as vestes púrpuras de um “rei”,
dizendo que não havia nele delito.
Se Pilatos tivesse achado que Jesus era um tolo destituído de
qualquer nexo, poderia tê-lo, de fato, açoitado e flagelado como forma
de impedir futuras manifestações messiânicas de pessoas menos loucas,
na população, como ocorreu em outras ocasiões. Um exemplo claro se
deu 30 anos após a crucificação do mestre galileu, quando um tal Jesus
parece ter tido esse destino: falava da queda iminente de Jerusalém, o
que incomodava os habitantes da cidade e foi lavado até o governante
romano, o qual mandou açoita-lo até não agüentar mais e a vítima nada
Jesus: homem e espírito
457
proferiu em sua defesa, continuando seus lamentos quando libertado,
fazendo com que Albino o considerasse um louco e o soltasse. A
postura romana evidencia que considerara a ameaça irrisória e esse
“Jesus” foi tido como louco.
Pelo contrário, com o mestre galileu, Pilatos reitera
repetidamente a pergunta que reconhece Jesus como rei, e ele
sabidamente o confirma, atribuindo a ao mestre uma postura "de rei
ainda sem um reino", na mente dos romanos. Não se podia (ou pode)
deixar de ver crime aqui e a opção de Pilatos, de que o povo deveria se
contentar com uma pena mais leve, é uma absurdo legal e
demasiadamente elaborada para ser verdadeira.
O evangelho de João sugere que Pilatos manda açoitar Jesus
como forma dele negar sua afirmação sobre suas pretensões reais, sendo
que essa afirmação encontra eco nos evangelhos sinópticos. A renúncia
de Jesus não veio e ele foi entregue para ser crucificado. Essa poderia
ser a explicação mais real para a flagelação, visto que encontra
paralelos na própria lei romana e no proceder das autoridades romanas,
como Plínio fazia durante seu governo sobre a Bitínia. Essa flagelação
era muito rigorosa e, se comparada com a que sempre ocorria antes da
crucificação, cruel, muito mais severa e intensa, capaz de desfigurar.
458
A flagelação seguida da crucificação era apenas uma
demonstração de escárnio e desprezo, enquanto a primeira podia ser
estendida até que obtivesse os resultados esperados, mas, naquele caso,
Pilatos ainda tentou evitar que o pior viesse a ocorrer, por influência
dos seus mentores do invisível.
9.4 A crucificação
Após sua condenação, Jesus foi levado para um local chamado
Golgota, e crucificado em meio a dois indivíduos denominados lestai
(bandidos ou salteadores) ou kakourgoi (malfeitores e criminosos),
tendo sido sugerido que ambos eram zelotas condenados em função de
uma pequena insurreição que ocorrera em Jerusalém.
Crucificação não era a maneira com a qual os judeus exerciam a
pena capital, embora, como afirma Josefo, o rei Alexandre Janeu
crucificava suas vítimas e sentia notável prazer ao vê-las sofrer nos seus
estertores (esse era o mundo de Jesus, mas não era mais cruel do que os
gulags de Josef Stalin na União Soviética ou os campos de trabalhos
forçados ou de extermínio dos nazistas no Terceiro Reich). Desde que a
pena capital judaica era concretizada através de apedrejamento ou
estrangulamento, a tese de que Jesus teve sua execução na cruz
realizada a pedido de autoridades judaicas ou que as mesmas realizaram
Jesus: homem e espírito
459
a crucificação não possui suporte. Ele foi julgado por crime contra
Roma e executado com uma pena romana.
A “arte” da crucificação chegou ao auge com os romanos, que
em 4 a. C, sob ordens de Varo, crucificaram 2000 rebeldes nas
montanhas ao redor de Jerusalém. Félix ordenou, que 3600 judeus
fossem crucificados ou mortos no caminho da cruz, sendo que o general
Tito, futuro imperador, crucificou mais de 500 judeus sitiados em
Jerusalém todos os dias até o final do cerco à cidade na Grande Revolta
Judaica de 66-70 d. C. (na qual morreram de 600.000 a 1.300.000
pessoas e outros tantos foram vendidos como escravos para todo o
mundo romano). Acredita-se que até 60.000 foram crucificados ao redor
da cidade sagrada e faltaram árvores e locais vazios para novas
crucificações, ao redor, para que a crueldade continuasse, no final do
cerco ao Jerusalém, no ano 70 d. C. O cheiro pútrido de carne em
decomposição e a presença de aves carniceiras compunham a cena
mórbida, no meio de uma floresta de cruzes tortas ou retorcidas.
A morte na cruz advinha de insuficiência cárdio-respiratória, por
falta de retorno venoso, e não raramente por dilacerações produzidas
por aves de rapina e feras.
Era tradição que, aos condenados judeus, fosse oferecido, pelas
lamentadoras, vinho associado a incenso, para que o condenado não
460
sofresse mais nos seus estertores. Tal associação apresentava atividade
analgésica e levemente entorpecente, reduzindo um pouco a dor
lancinante que advinha da falta de suprimento sanguíneo, além do
próprio trauma mecânico. A descrição dos evangelhos, com pequenas
variações, aceita que esse costume se deu na crucificação de Jesus, o
qual teria recusado o favor, permanecendo bem desperto as seis horas
em que passou na cruz. O vinagre dado a Jesus provavelmente reflete a
necessidade do evangelista de fazer cumprir o Salmo (69:21), onde traz
“e na minha sede, me deram a beber vinagre”.
Pouco sabemos como o corpo de Jesus foi fixado na cruz, por
meio de cordas – como quase sempre se dava – ou por meios de pregos,
mas, pelo evangelho de João (20:25), sugere-se que pregos foram
utilizados, ajudando a exacerbar a perda de sangue e acelerar a morte,
que ocorreu em tempo considerado curto pelos próprios romanos. Em
1968, em Israel, encontraram-se restos de um cravo metálico utilizado
para crucificação transfixando os osso do calcanhar de um homem de
aproximadamente 30 anos, evidenciando que o mesmo havia sido
crucificado com as pernas abertas, separadas pela trave vertical da cruz.
As representações artísticas da crucificação evidenciam um “Jesus
preso por três cravos”, mas isso de deve apenas ao fato de que Helena,
mãe do imperador Constantino, disse ter encontrado os 3 pregos que
Jesus: homem e espírito
461
foram utilizados na crucificação, criando, na mente dos religiosos e
artistas, a necessidade de que os pés tivessem sido pregados
sobrepostos. Os pregos também foram utilizados nos pulsos e não nas
mãos propriamente ditas, mas, na antiguidade, os pulsos faziam parte
das mãos, nas descrições e podemos dizer com segurança que foi
exatamente isso que ocorreu.
Os maus tratos sofridos por Jesus no caminho da cruz, conforme
descrito nos textos canônicos, foram severos e refletiam o desprezo com
que os soldados romanos tratavam os criminosos judeus. Lembrem-se
que os judeus consideravam-se superiores aos romanos, o povo
escolhido por Deus, o que aumentava ainda mais a reação da soldadesca
romana quando um dos líderes locais ou um criminoso qualquer era
condenado.
A descrição desses flagelos também pode refletir o sofrimento
dos cristãos ou judeus crucificados e perseguidos em Roma, onde a
população tornava o ato um verdadeiro circo. O evangelho de João não
traz as zombarias típicas que os sinópticos conferem a Jesus pelos
escribas e fariseus, provavelmente porque esses elementos nunca foram
proferidos, tendo sido acrescentados aos sinópticos apenas para fazer
cumprir o Salmo 22:7-8. Esse ponto pode ser de relevância, uma vez
que João foi o único apóstolo que esteve presente na crucificação e foi
462
testemunha ocular dos eventos narrados. Nosso companheiro Eleazar
coloca que, enquanto alguns proferiam impropérios a Jesus, do tipo
“saia daí se puder”, ou “rei dos judeus, veja se consegue se libertar
agora”, ou “onde está o poder que se dizias possuidor”, a maioria da
população se calava, em um misto de passividade em face da violência
extrema, um tipo de torpor, mas havia também vontade de reagir frente
à brutalidade, o que geraria uma carnificina ali. Mas, na presença de
tantos soldados e das lideranças judias, melhor seria fechar os olhos e
seguir a vida, que já era tenebrosa para os mais pobres.
Nos evangelhos, existem claras menções ao hábito dos romanos
de quebrar as pernas dos crucificados, para acelerar sua agonia e morte.
Na crucificação de Jesus, os próprios judeus pediram pelo ato de
misericórdia, não por compaixão, mas porque se aproximava a Páscoa e
o sábado, que naquele ano caíram no mesmo dia, um dia muitíssimo
especial, e os corpos não poderiam ficar pendentes na cruz, ao
anoitecer. Havia muito apreço por Jesus entre esses judeus (fariseus em
verdade) que reclamaram o corpo para Pilatos, visto que aceitaram se
contaminar com um enterro na véspera da Páscoa judaica, o que não era
pouca coisa naquela cultura. Aqueles homens sentiam uma dor
indescritível e, se não fosse a mensagem de amor que Jesus havia
plantado naquelas mentes, muita destruição teria ocorrido. Enquanto os
Jesus: homem e espírito
463
discípulos, muitas vezes rudes e sem conhecimento formal, se
digladiavam em disputas sobre quem recaía o amor do mestre querido,
alguns fariseus, como Nicodemos e José de Arimatéia, dois dos mais
ricos homens do século I d.C., em Jerusalém, entenderam a extensão
espiritual da mensagem de Jesus e procuraram dar ao galileu, que
dividiu a história da humanidade, um enterro.
O ato de transpassar Jesus com a espada foi inserido para fazer
cumprir a profecia de Zacarias (12:10), mas tal fato ocorreu de fato e
aquele soldado romano sentiu, após a morte, anos depois, a dor do
remorso bateu poderosamente em sua alma agoniada. Após sua morte,
em função de tudo que realizara ao longo de sua vida, fora acolhido por
irmãos ainda distantes da luz divina, que o agrediram e escravizaram
por séculos, até que foi resgatado das furnas sub-crostais por
companheiros mais esclarecidos e encaminhado para reencarnação, na
Idade Média.
O enterro de Jesus também esbarra em aspectos legais, visto que
os crucificados não mereciam enterro pela lei romana e eram devorados
pelas feras e abutres. Contudo em 1968, o corpo de um crucificado,
provavelmente vítima do cerco de Jerusalém em 70 d. C. foi encontrado
em uma cova, permitindo supor que o enterro podia, em algumas
situações especiais, ser realizado, mas apenas o imperador ou seu
464
representante provincial poderiam autorizá-lo e foi o que o perturbado
Pilatos fez. A presença de guardas junto á cruz impedia que parentes e
amigos viessem retirar o corpo inerte da cruz. Se o corpo de Jesus não
fosse retirado, seria, indubitavelmente atirado em uma vale comum e
consumido pelos abutres, como mandava a tradição.
Os condenados á morte por uma tribunal judeu deveriam ser
enterrados, quando permitido pelas autoridades imperiais, em um
cemitério separado e reservado para esse fim, sendo que Jesus foi
depositado em uma cova recentemente escavada na rocha, reservada
para uma personalidade de elevada posição social, atestando que o
mesmo não recebera quaisquer condenações judaicas. Os mortos
condenados pelos romanos podiam, desde que a autoridade imperial o
permitisse, receber o tratamento dispensado aos que padeceram de
morte por motivos naturais e ter mulheres pranteando ao seu redor.
Se pudéssemos observar com os olhos do espírito o que estava
ocorrendo ao mestre Jesus durante todo o processo de flagelação e
crucificação diríamos que, a despeito da ruína do seu corpo físico, o
mesmo tipo de agressão verbal era proferido por uma enorme falange de
desencarnados. A dor física não era nada perto do que vinha do outro
lado. O escárnio era duplo, simultâneo, mas centenas de entidades de
luz, angelicais, mantinham as trevas afastadas do agonizante. Sabemos
Jesus: homem e espírito
465
que a própria evolução espiritual do mestre conferia as prerrogativas
que o protegiam de qualquer tipo de assédio, mas as falanges que
conspiravam contra sua missão terrena ainda tentavam escarnecê-lo e
ridicularizá-lo, utilizando uma linguagem que era bastante fluente nas
regiões de trevas no globo.
Em meio a um temporal de primavera que se avizinhava em
Jerusalém, tendo ao longe o Getsêmane, o espírito excelso que nos guia
até o presente se libertou do peso da matéria densa e, como previra
inúmeras vezes, inclusive para os outros condenados ao martírio da
cruz, iria se reunir com os anjos naquele mesmo dia.
Não foram observados tremores de terra ou outros fenômenos
miraculosos descritos nos evangelhos, mas como nunca antes, uma
tristeza se apoderava da população reunida em Jerusalém. As trevas
sorriram sobre a cidade e muita angústia foi sentida em todos, como se
toda a felicidade do mundo tivesse sido retirada e o peso que recaiu
sobre todos foi tremendo.
Pobre cidade, que mata ou insulta seus homens santos, como
ocorreria com Judas e Tiago, irmãos de Jesus, e com Estevão, o
primeiro mártir cujo nome passou para o cânone. Logo a lei de ação e
reação iria transformá-la em ruínas e sua história somente seria reescrita
com a criação do Estado de Israel em 1948, sendo que até hoje os
466
árabes e os judeus, cada qual com seus justos argumentos, disputam a
soberania sobre a cidade das lágrimas.
Após a morte de Jesus, diversos fenômenos ocorreram nas vilas
próximas a Jerusalém, como visões de espíritos de todos os tipos e
freqüências vibratórias e, em função dos eventos espirituais em curso,
fenômenos de materializações, voz direta e escrita direta também
puderam ser percebidos, o que deixou os principais líderes judeus e o
próprio Pilatos, apavorado. Será que aquele homem tinha um
relacionamento especial com Deus? Essa pergunta era frequentemente
pronunciada em ambientes reservados. A resposta não vinha, porque,
afinal, já havia sido dada durante quase dois anos e meio de pregações e
curas de todos os tipos. Quem tiver olhos para ver e ouvidos para
escutar...
Para os principais líderes das falanges do mal, que não eram
poucas e fracas, a morte de Jesus era um grande prêmio, posto que
“ele”, o mestre, se calaria por algum tempo, e como seus discípulos
eram fracos e rudes, ainda pequeninos na sua longa caminhada
espiritual, existia a possibilidade de toda a mensagem de Jesus se
perder. Entretanto, não podiam divisar a premissa que Deus nunca
abandona as suas ovelhas e o exemplo de Jesus iria atuar como uma
caixa de ressonância em prol do perdão e da caridade, uma vez que até
Jesus: homem e espírito
467
o último minuto de vida ele teria orado ao Pai pedindo proteção aos
seus ignorantes irmãos, que não eram responsáveis pelas atitudes que
tinham perante a vida.
Os primeiros locais visitados pelo magnífico espírito de Jesus
foram exatamente os campos magnéticos de contenção colocados ao
redor dos recantos mais profundos das trevas. Naquele momento, em
sua luz plena e magnânima, Jesus emitiu seu apelo pela renovação até
aos próprios dragões do mal, espíritos mais antigos que a própria
humanidade, conclamando o retorno à seara do Pai. Muitos espíritos
enfermos, aos milhões, que viviam em regime de servidão junto aos
dragões, foram levados para tratamento em regiões mais elevadas e isso
fazia parte da missão do mestre, que a todos servia. Parte dessa tradição
foi preservada nos relatos referentes ao Evangelho da Cruz e o
Evangelho de Pedro, que se perderam quase completamente e apenas
fragmentos podem ser vislumbrados a partir de relatos posteriores.
Depois da morte de Jesus, os discípulos parecem ter sofrido uma
profunda crise de identidade e numerosas tendências teológicas
surgiram para explicar o que havia ocorrido. Se Jesus era o messias, por
que morrera? Será que a salvação divina depende da morte? Ele fez
realmente tudo que vimos e ouvimos, ou será que fomos enganados?
Foi nesse clima de desânimo, justificável apesar de tudo, que as visões
468
do espírito de Jesus, materializado se deram e marcaram profundamente
a alma daqueles personagens tão rudes e simples.
Com esses fenômenos mediúnicos eles encontraram um
caminho e continuaram a pregação. Infelizmente, muitos aspectos da
doutrina de Jesus foram corrompidos e alterados, criando a figura de um
deus-homem, mas o apelo à reforma íntima e a mensagem de ética
universal do mestre estavam preservados.
Os líderes judeus do Sanedrim devem ter achado que a nova
mensagem era ainda mais herética do que a propalada por Jesus, pois
agora o mestre galileu era elevado à condição de Deus-Filho, não
apenas um semi-deus grego ou o messias, enviado do Deus Único. Para
os cristãos greco-romanos e seus congêneres judeu-cristãos, a
crucificação do Cristo teria sido acompanhada por uma ressurreição,
que simbolizava a vitória sobre a morte e a remição dos pecados pelo
cordeiro que havia sido sacrificado naquela Páscoa judaica. Para os
espíritas modernos, a interpretação é bastante diversa, mas conserva o
sentido de renúncia de Jesus.
Obviamente, á medida em que essa heresia judaica se espalhava,
o Sinédrio começou a se movimentar para conter sua influência sobre a
população. Pedro e os apóstolos foram presos e julgados, sendo apenas
condenados à pena de açoitamento. Não foram condenados por
Jesus: homem e espírito
469
blasfêmia e percebam, meus caros amigos, que o conteúdo de sua
pregação era muito mais explosiva do que aquela que o mestre galileu
popularizava de forma tão equilibrada. Jesus estava modificando
padrões de comportamento dentro do judaísmo, seus discípulos
ameaçavam explodir a fé de Abraão, o que de fato aconteceu com o
apóstolo Paulo (em verdade, Paulo nunca foi apóstolo, não tendo sido
discípulo de Jesus, mas assim era reconhecido por parte dos judeus-
cristãos de língua grega em Jerusalém e na Ásia Menor).
O próprio Gamaliel, sábio fariseu do século I d. C., alegava que
perseguir esses homens (os apóstolos de Jesus) era perda de tempo,
visto que, se seus ensinamentos provinham ou estavam de acordo com o
Criador, nada adiantaria e seria perigoso se colocar contra a vontade de
Deus, mas se aquela fé provinha de mentes puramente humanas, então
logo estaria condenada ao esquecimento. Os apóstolos acusaram o
Sanedrim de ter matado Jesus (“o Deus de nossos pais ressuscitou Jesus
a quem vós matastes, pendurando-o no madeiro”) e, quando os judeus
ouviram isso, ficaram furiosos, talvez por terem sido acusados de forma
caluniosa. Quem matara Jesus ou o condenara à crucificação foram os
romanos.
Embora condenados por minar a autoridade do Sanedrim e de
inventar calunias e heresias, os apóstolos não foram condenados à pena
470
máxima, visto que aqui também ela não se aplicava, apenas flagelados e
liberados em seguida com a recomendação de que não pregassem mais
em nome do crucificado. Por que tratariam os apóstolos diferentemente
do seu mestre? Possivelmente o tratamento foi semelhante, mas
retratado de formas diferentes nos evangelhos e Atos dos Apóstolos.
Pena que milhões de judeus nascidos em todas as eras desde então
tenham pagado com a própria via o que havia sido erroneamente
inserido no cânone.
O símbolo da cruz, abominado por cristãos e pagãos no império
romano como um símbolo "maldito", logo se converteu no emblema
que a cristandade passou a adotar para se identificar. Foi Anselmo,
arcebispo de Canterbury entre 1093-1109, quem passou a estimular,
através de textos devocionais, a utilização da imagem de um homem
frágil, na cruz, para representar a essência da cristandade. Assim, o
crucifixo, como símbolo dos seguidores do messias de Nazaré, é criação
medieval, mostrando o quanto o cristianismo se modificou até os
tempos modernos. Nessa linha, ganhou destaque a imagem do ladrão
arrependido e último converso do mestre Jesus.
Jesus: homem e espírito
471
9.5 A data da crucificação de Jesus
Mesmo sem considerar que morte propriamente dita não existe,
não se pode falar que Jesus pereceu ou morreu na Cruz. Sua forma de
pensar mudou o mundo nos últimos 2000 anos e não se falou, estudou e
publicou tanto a respeito dele como no final do século XX e nesse
início de século XXI.
Entretanto, temos de tentar localizar no tempo, com a maior
precisão possível, os pontos mais importantes da vida do Ungido e as
poucas fontes de informação são de extremo valor. Ao contrário das
narrativas da infância, tomadas por toques lendários e muita teologia, as
Narrativas da Paixão possuem muitos elementos que nos permitem
detalhar com alguma segurança a época em que os fatos se deram e em
que condições ocorreram, bem como o que foi eliminado ou
acrescentado propositadamente no correr de 2000 anos.
Os textos canônicos e os historiadores estão de acordo que a
crucificação deve ter ocorrido na época em que Pôncio Pilatos, com o
título romano de Prefeito, teria governado a Judéia, de 26 a 36 d. C.
Muitos acreditam que isso teria se dado no final da década de 20 d. C.
ou início da década de 30 d. C. Os textos de Josefo e Lucas (3:1)
evidenciam que todo o período de pregação de Jesus teria se dado
472
durante o governo de Pilatos. Merece grande consideração o texto de
Lucas (3:1-2), que diz:
“No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo
Poncio Pilatos governador da Judéia, Herodes, tetrarca da Galiléia,
seu irmão Felipe, tetrarca da Ituréia e Traconides, e Lisânias tetrarca
da Abilene, sendo sumo sacerdotes Anás e Caifás, veio a palavra de
Deus a João, filho de Zacarias, no deserto.”
Da mesma forma que 3 pontos no espaço acabam dando a
posição exata de um indivíduo, como ocorre atualmente com o uso do
GPS (“global positioning system”), Lucas tenta dar a posição temporal
da crucificação de Jesus, por múltiplas referências temporais passíveis
de confirmação. A menção a Pilatos como governante na época em que
João, o Batista, assumiu seu caminho de pregação sugere que Jesus teria
entrado em ação logo depois; a menção a Felipe, o tetrarca da Iduméia,
morto em 33 ou 34 d.C., sugere que o ministério de Jesus não teria
começado no final do governo de Pilatos. O ponto chave do texto
depende da determinação de quando se deu o décimo quinto ano do
governo de Tibério, mas existem várias maneiras de se determinar essa
data, como assevera J. P. Meier.
Desde 12 d. C. Tibério colaborava com Augusto na
administração romana, tornando-se imperador em 14 d.C. e, levando-se
Jesus: homem e espírito
473
em conta os calendários Juliano, sírio-macedônio, egípcio e judaico, o
décimo quinto ano do governo de Tibério poderia ter se dado em
qualquer ano entre 26 d. C. e 29 d. C. Atualmente os acadêmicos se
inclinam em contar o seu governo a partir de 14 d. C. Como Lucas era
um cristão culto, tendo escrito o evangelho que leva seu nome na
Grécia, Ásia Menor ou, provavelmente, Roma, só faria sentido escrever
o texto para o público greco-romano empregando o calendário Juliano
ou o sírio-macedônio.
Algumas possibilidades se abrem para a determinação da data
do 15o ano de Tibério em Lucas, como magistralmente descrito por J. P.
Meier:
1. o autor usou o calendário Juliano e contou o primeiro
ano de Tibério como sendo de 19/08/14 a 18/08/15 e
continuou a adotar esse sistema daí por diante, de forma
que o 15o ano se daria de 19/08/28 a 18/08/29;
2. o autor usou o calendário Juliano e contou o primeiro
ano de Tibério como sendo de 19/08/14 a 31/12/15 e
passou a contar daí para frente os anos do governo de
Tibério como sendo de 01/01 a 31/12, caindo o 15o ano
de 01/01/28 a 31/12/28;
474
3. o autor usou o calendário Juliano e não contou o
primeiro ano de Tibério como sendo de 19/08/14 a
18/08/15 e sim os anos redondos a partir de janeiro do
ano 15, caindo o 15o ano de governo de 01/01/29 a
31/12/29;
4. o autor usou o calendário sírio-macedônio e pelo método
de exclusão do ano de ascensão o 15o ano daria de
01/10/27 a 30/09/28 e incluindo-se o ano de ascensão, de
01/10/28 a 30/09/29.
Meier sugere o início do ministério público de Jesus em 28 d.
C., mas admite que a margem de erro poderia levar essa data para 27 ou
29 d. C. Temos dificuldade também para determinar a duração do
ministério de Jesus, o qual pode ter variado de um a vários anos. Uma
leitura rápida dos evangelhos sinópticos sugere que o ministério foi de
um ano, com pregações pela Galiléia e uma viagem que culminaria com
sua crucificação na Judéia. Contudo, o Evangelho de João sugere um
período maior de tempo, algo em torno de 3 anos ou mais, o que de fato
ocorreu.
Todos os aspectos da pregação de Jesus poderiam ter ocorrido
em apenas um ano, mas não OBRIGATORIAMENTE em um ano.
Numerosos pontos dos ensinamentos de Jesus parecem sofrer um
Jesus: homem e espírito
475
amadurecimento ao longo do tempo e isso somente teria ocorrido se o
ministério tivesse uma duração mínima de alguns anos. No Evangelho
de João, as sucessões de datas e festas religiosas, as viagens de Jesus,
bem como a descrição das passagens das estações do ano sugerem um
ministério mais longo, de forma que podemos colocar que a
crucificação teria se dado, mais provavelmente, de 28 d. C. a 33 d.C.
Em João 2:20, a discussão entre Jesus e os judeus teria se dado
quando o processo de reconstrução do Templo teria completado 46 anos
e o apóstolo situa esse fato no início do ministério de Jesus. Entretanto
mesmo essa passagem não está livre de problemas. Josefo coloca que a
reconstrução do Templo teria se iniciado em 20-19 a. C., mas não se
pode falar com segurança se o apóstolo se referia ao Templo como um
todo ou apenas o complexo santo, onde se realizavam as cerimônias.
Essa diferenciação é importante, porque algumas partes do complexo do
Templo continuaram em obras até pouco antes de sua queda em meados
da década de 70 d. C. Assim, 46 anos após o início da reconstrução do
Templo daria em 29 d. C. ou, mais provavelmente, em 30 d. C., pouco
antes da crucificação.
Esses eventos narrados por João se dão no início do ministério
público, na limpeza do Templo empreendida por Jesus. Porém essa
narrativa, nos sinópticos, se dá no período imediatamente anterior à
476
crucificação. Essa posição da Limpeza do Templo, no começo do texto
de João, e não no final, como nos sinópticos, possivelmente reflete a
tentativa do Quarto Evangelho de trazer todo o ministério de Jesus sob a
sombra da crucificação, bem como para responsabilizar a ressurreição
de Lázaro como provável causa da crucificação. Assim , essa descrição
de João, associada a um ministério de 2-3 anos, sugere um ministério
terreno exercido de 27 d. C. a 30 d. C.
Os sinópticos têm por base o evangelho de Marcos com
acréscimos, quase sempre de ordem estilística, de Mateus e Lucas.
Todos os textos sugerem que a crucificação, morte e sepultamento de
Jesus teriam ocorrido em uma sexta-feira e que a última ceia teria se
dado em uma noite de quinta-feira, mas existem diferenças muito
importantes entre o texto de João e dos sinópticos que não podem ser
ignoradas e não podem (e nem devem) ser harmonizadas.
Enquanto os sinópticos abordam a última ceia como uma ceia de
Páscoa, João não o faz. Para entendermos a importância que esse fato
possui, devemos retomar o próprio ritual judeu da Páscoa. Segundo o
Pentateuco, o sacrifício do cordeiro pascal se dava no 14o dia do mês
de Nissan (abril/maio), sendo que, no século I d. C., o sacrifício teria se
dado entre 3:00 e 5:00 horas da tarde. O problema que temos em mãos é
Jesus: homem e espírito
477
saber se aquela ceia na quinta-feira que antecedeu a crucificação caiu no
14o dia de Nissan.
Os evangelhos sinópticos relatam que a última ceia transcorreu
como uma ceia pascal, particularmente no que diz respeito aos
preparativos. Assim, no anoitecer daquela quinta-feira seria o 15o dia do
Nissan, o dia da celebração da Páscoa, quando Jesus seria preso,
julgado, condenado e crucificado. Essa ordem de fatos é tão improvável
que os críticos dos evangelhos não tiveram muito trabalho para
desacreditar todo o texto das Narrativas da Paixão, visto que a Páscoa
era o momento especial do judaísmo e esses eventos não poderiam ter
ocorrido em um dia de celebração pascal. Entretanto se levarmos o
Evangelho de João em consideração teremos um quadro mais adequado
ao judaísmo da época e uma seqüência mais natural dos fatos.
Para o Quarto Evangelho (João), a última ceia teria ocorrido na
quinta-feira, como os sinópticos, mas não estaria associada á Páscoa
judaica, sendo provavelmente fruto da situação tensa em que se
encontravam os seguidores de Jesus. Assim, o próprio mestre de
Nazaré, sabendo o que logo ocorreria, tratou de reunir seus discípulos
mais próximos para as últimas considerações. Seria uma ceia de
despedida e não de Páscoa. Jesus quis dizer “até breve” e orientar seus
478
discípulos mais íntimos antes dos tumultos que ocorreriam no dia
seguinte.
Outra controvérsia sobre a Última Ceia diz respeito à Eucaristia.
Essa interação com o corpo e sangue de uma pessoa, na concepção de
um judeu praticante, seria equivalente aos pecados mais sérios, como
comer o corpo e beber o sangue de alguém morto, o que possivelmente
torna a Eucaristia uma criação da própria igreja que associou as
refeições comunais de Jesus com o simbolismo característico do
cristianismo greco-romano. Entretanto, a presença da Eucaristia nas
Igrejas primitivas é assunto para discussões mais extensas e não cabem
dentro dos objetivos limitados desse texto.
Na concepção joanina, a última ceia teria se dado no 13o dia do
Nissan, tendo Jesus sido preso logo no início da sexta-feira, 14o dia de
Nissan, sido julgado, condenado e crucificado na véspera da Páscoa,
que naquele ano se daria em um sábado, um dia realmente muito
especial, como o próprio evangelho traduz (João 19:31). Por isso, toda a
pressa para retirar o corpo da cruz antes do por do sol da sexta feira,
quando começava a Páscoa e o próprio sábado. No Evangelho de João,
as pessoas se apressaram para retirar os corpos dos crucificados uma
que teriam de se preparar para a ceia de Páscoa, que ainda não teria
ocorrido. Uma visão muito mais coerente dos acontecimentos narrados
Jesus: homem e espírito
479
do que os sinópticos. Na cronologia de João, o julgamento e a
condenação não teriam se dado de forma tão sumária, facilitando
compreensão do incidente envolvendo um homem chamado Barrabás,
ou melhor, Jesus bar Abbas (Jesus Filho do Pai, no aramaico).
Nesse sentido, qual teria sido a vantagem de libertar um
prisioneiro judeu na Páscoa, se a mesma já tivesse acontecido ou
estivesse acontecendo? O incidente de Barrabás apóia a cronologia de
João em detrimento dos sinópticos. A própria casa em que a Santa Ceia
ocorre pode colaborar com o esquema cronológico de João e interfere
com toda a compreensão do desenrolar de eventos que culminam com a
crucificação: se a última ceia se tratasse de uma refeição pascal, Jesus
deveria estar como hóspede de um homem muito rico, visto que o
proprietário daqueles aposentos também deveria estar celebrando a
Páscoa, o que indica uma residência muito grande para permitir dois
eventos dessa importância simultaneamente. Essa objeção desaparece
quando pensamos na última ceia como sendo uma celebração realizada
na véspera da Páscoa, quando o benemérito anfitrião de Jesus poderia
ceder-lhe sua casa sem maiores problemas, como sugerido por J. P.
Meier.
Uma vez que todos os sinópticos usam o texto de Marcos,
embora acrescentem elementos próprios em passagens menores, é fácil
480
de entender a homogeneidade dos fatos e cronologia descritas. Se
eliminamos de Marcos os acréscimos posteriores de redação vemos que
nada, no texto original, vem a sugerir que Jesus morreu no dia da
Páscoa ou que a última ceia se tratava de uma refeição pascal. A
passagens do texto de Marcos que fazem a associação com a Páscoa são
14:1 e 14:12-16, sem as quais a instituição da eucaristia e a profecia da
traição, bem como a profecia relativa à negação de Pedro não teriam
sido tão associadas à essa celebração.
Também é acréscimo redacional posterior, o texto de Lucas
(22:15-16) em que Jesus teria dito “Tenho desejado ansiosamente
comer convosco essa Páscoa, antes do meu sofrimento. Pois vos digo
que nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus”,
constituindo uma expansão e reformulação de Lucas a partir do texto de
Marcos, evidenciando principalmente aspectos teológicos que
objetivavam manter a coletividade unida diante das tormentas do século
I d. C.
Nada na tradição sugere a natureza pascal daquela fatídica ceia,
a não ser os acréscimos posteriores. Meier vai mais além, sugerindo
que, “sentindo ou suspeitando que seus inimigos estavam fechando o
cerco para um ataque final iminente e, em razão disso, considerando
que talvez não tivesse oportunidade de celebrar a próxima ceia pascal
Jesus: homem e espírito
481
com seus discípulos, Jesus então organizou uma solene refeição de
despedida com seu círculo mais íntimo, exatamente antes da Páscoa”.
Assim, embora a última ceia não tenha sido uma ceia pascal e sim de
confraternização e despedida, foi realizada em substituição a essa, no
dia anterior à festa pascal.
Assim, pode-se supor que bastaria encontrar um ano entre 29 e
34 d. C. em que o 14o dia do Nissan teria caído em uma sexta-feira para
termos o ano e o dia da crucificação de Jesus. A determinação do
começo do mês dependia, no calendário lunar judaico, da observação da
presença da luz da primeira lua nova após o vigésimo dia do mês
anterior. Assim temos uma “observação humana de um fato” e não “um
fato por si só”. Deve-se acrescentar que anos bissextos eram inseridos
todas as vezes que as autoridades julgavam necessário, geralmente com
preocupações relativas ao plantio e colheitas. Complicado não?
O notável pesquisador Joachim Jeremias, avaliando as
possibilidades de ocorrência de anos em que o 14o dia de Nissan caía
em uma sexta-feira, concluiu que entre 29 e 34 d. C. apenas os dias
07/04/30 e 03/04/33 d.C. reuniram essa peculiaridade, sendo que para
Meier, a data de 07/04/30 d. C. é mais provável por que assim o
ministério de Jesus teria a duração que melhor se adapta ao conteúdo
dos evangelhos canônicos. Um ministério público de, no mínimo, dois
482
anos e um ou dois meses. Jesus teria algo em torno de 33-34 anos de
idade quando iniciou sua missão e 36 quando de sua crucificação.
Contudo, segundo. No entanto, o Novo Testamento diz que
Jesus morreu no dia após a primeira noite de lua cheia após o equinócio
de Verão.
De acordo com dois cientistas do Instituto Astronômico da
Romênia, Jesus teria morrido às 3 da tarde de sexta-feira de 3 de abril
de 33 d. C. (http://port.pravda.ru/news/mundo/18-05-2003/2057-0/ ).
Essa data surge pelo fato de que entre os anos 26 e 35 d. C. a lua cheia
teria ocorrido imediatamente após o equinócio em apenas por duas
ocasiões nesse período: uma sexta-feira a 07 de abril de 30 d.C. e outra
a 03 de abril de 33d.C, concordando com Joachim Jeremias. Segundo
esses autores, se levarmos em consideração os textos bíblicos, que
mencionam um eclipse solar, a data de 33 d.C. deveria ser a mais
adequada, uma vez que nessa ocasião ocorreu um eclipse parcial do sol.
Entretanto, as muitas ocorrências de fenômenos que acompanharam a
morte do corpo físico de Jesus se referem a eventos que tiveram o
mundo espiritual como palco e poucas evidências poderiam ser
divisadas pelos encarnados, de forma que o escurecimento do céu não
deve ser tomado isoladamente para determinar a data precisa da
crucificação do mestre, além desse aspecto, em 33 d. C. Jesus já estaria
Jesus: homem e espírito
483
se aproximando dos 40 anos de idade, o que foge dos dados aqui
apresentados.
484
10 A Ressurreição do Messias de
Nazaré
“...Mulher, por que choras? Quem procuras?...”
(João 19, 15)
Jesus: homem e espírito
485
10.1 A "Ressurreição"
Os evangelhos, como discutido anteriormente, não são
biografias de Jesus, o nazareno, mas peças teológicas embasadas em
alguns aspectos reais outros lendários, de forma o texto fora redigido
para mostrar para uma dada comunidade a certeza (do relator do texto)
de que Jesus desempenhou o papel X ou Y. São documentos de fé e não
possuem a isenção que uma biografia sobre o tema demandaria. Essas
narrativas são o pano de fundo para o clímax dos evangelhos, a
ressurreição de Jesus, sua vitória sobre a morte e a esperança de uma
vida eterna. As pessoas acreditavam nessas palavras e a interpretação
costumava ser bastante literal.
Falar no fenômeno da ressurreição, mesmo no presente, é algo
que incomoda a todos, posto que não acreditar na mesma, ou pelo
menos na forma com que a mesma é apresentada nas igrejas e nos
textos canônicos praticamente te exclui da cristandade tradicional ou
literalista. Contudo, como já discutimos, possivelmente essas narrativas
não constituem, pelo menos no que concerne ao tópico "ressurreição",
descrições históricas e estão mais para a realização de antigas profecias
(profecias historicizadas), refletindo os desejos daqueles que seguiam o
messias que vinha da Galiléia.
486
Em todas as composições dos evangelhos, existia a dualidade
entre os opostos, do sofrimento ao triunfo, e a ressurreição é o elemento
que se contrapõe à morte inglória na Cruz. Não se pode deixar de
reparar que alguns pontos dessa narrativa estão recheados de simbologia
judaica, como o 3 negações de Pedro e o canto do galo, o terceiro dia,
presentes no texto, o que constitui peculiaridade dos textos poéticos
judeus, como assevera J. D. Crossan.
As Narrativas da Ressurreição mostram as mesmas
inconsistências que as Narrativas da Paixão, sendo acrescidas de
numerosos pontos e aspectos místicos, na medida que o tempo entre a
redação do evangelho se distanciava dos eventos narrados. Nesse
sentido, o Evangelho de Marcos coloca apenas, nas suas versões mais
antigas, que o sepulcro fora encontrado vazio e o corpo de Jesus nele
não repousava, terminando em Marcos16:8. Ou seja, nos textos mais
antigos ninguém sabe o que aconteceu com o corpo físico de Jesus.
Até esse ponto parece que os evangelistas seguiram o texto
marciano e, a partir dali, colocaram suas narrativas em rumos
diferentes, até o ponto que algum escriba decidiu, muitas décadas
depois, concluir o texto de Marcos de forma a torná-lo mais próximo
dos demais evangelistas, mas atraente ao gosto dos novos convertidos
ao cristianismo.
Jesus: homem e espírito
487
O texto de Marcos mostra que Maria de Magdala, Maria, mãe de
Tiago (possivelmente a mãe de Jesus) e Salomé receberam, de um
homem jovem, a informação de que Jesus não estava mais no sepulcro,
onde elas encontraram o tecido que havia envolvido o corpo e ficaram
aterrorizadas. Em Mateus, o homem jovem é transformado em anjo e
depois de os apóstolos terem sido acusados por descrentes de trem
roubado o corpo do mestre galileu, Jesus faz uma aparição aos
apóstolos e institui a igreja cristã. Lucas introduz a aparição aos homens
no caminho a Emmaus, sendo que os dois indivíduos não o reconhecem
inicialmente, o que se dá quando “Jesus” se despede; esses dois
indivíduos eram, provavelmente, irmãos do mestre.
No texto joanino, como não poderia deixar de ser, as histórias
ligadas à ressurreição são mais vívidas e dramáticas, como o par de
anjos guardando o sepulcro vazio diante de Maria de Magdala e a
incredulidade inicial de Tomé, mas mesmo nesse texto a identificação
inicial de Jesus não é facilmente reconhecida. O ápice da narrativa está
na promessa do Jesus redivivo em enviar o Espírito Santo para toda a
sua igreja, porém a carga teológica e a motivação política por trás dessa
descrição nos parecem óbvias demais, de forma que possivelmente todo
esse texto deve ter sido produzido para legitimar doutrinas e lideranças
da igreja joanina na virada dos séculos I d. C. e II d. C. Infelizmente,
488
não temos uma única descrição da ressurreição que não padeça dos
problemas descritos acima. Nesse particular, os textos mais antigos
disponíveis trazem que Jesus enviaria UM espírito santo para consolar o
povo e essa mudança de enfoque, com a troca do artigo definido "O"
pelo artigo indefinido "UM" faz toda a diferença do ponto de vista
teológico, visto que fere o princípio da Trindade Divina.
De qualquer forma, o final original de Marcos é abrupto
(sepulcro vazio e NADA mais) e as mulheres não viram Jesus, apenas o
sepulcro vazio e receberam a notícia de outra pessoa ali presente.
Sem visões, aparições e outras características das Narrativas da
Ressurreição presentes nos demais evangelhos, que se basearam em
Marcos até aquele ponto, nada teríamos para comentar, a não ser a
possível materialização do espírito sublime de Jesus, com todas as
peculiaridades das materializações, como a dificuldade de identificar
prontamente a pessoa que ali se apresentava materializada.
O final que encontramos nas versões modernas de Marcos é o
fruto de um copista escandalizado com um final tão frustrante e
decidido a dar um fim mais a gosto da fé que crescia, com as cores
modernas. A maioria dos pesquisadores, como assinalado pelo teólogo
e especialista em literatura bíblica, Bart D. Ehrman (O que Jesus disse?
O que Jesus não disse? Quem mudou a Bíblia e por quê), suspeita que o
Jesus: homem e espírito
489
próprio autor deixou em suspenso o final como uma forma de
indagação no ar e está de acordo com a teologia e as idéias do
evangelista, enquanto uma minoria acredita que o final que
encontramos nos manuscritos modernos reflete um final que fora
perdido e reescrito baseado em tradições orais, o que é muito pouco
provável.
Assim, se todas as Narrativas da Paixão soam como ecos do
texto de Marcos, o que dizer das Narrativas da Ressurreição, uma vez
que Marcos praticamente desconhece o que, de fato, ocorrera ali? A
maioria dos autores concorda que essas histórias representam a
expansão mais tardia dos evangelhos que incorporavam tradições
conflitantes e pouco reais.
Pode-se dizer que, além dos textos canônicos e apócrifos
disponíveis, muitos outros, como os Evangelhos da Cruz e de Pedro,
que outrora existiram, foram redigidos sobre esse tema, que
possivelmente marcou as primeiras comunidades cristãs, mas em todos
eles Jesus aparece para todos os personagens que interessam aos autores
dos textos e vale a pena ressaltar que a razão dessas aparições é
puramente teológica ou política. Não deixamos de crer que algo
realmente fora de nossa compreensão, na época, tenha ocorrido,
motivado ou não por mentes decepcionadas ou perturbadas. Contudo,
490
com as evidências que temos nos evangelhos não podemos julgar a
historicidade dessas visões.
A conseqüência mais clara desse arrazoado é inutilidade de
discutirmos as diferentes posições da igreja cristã, independentemente
do nome da agremiação, sob pena de apresentarmos comportamento
irracional e bibliólatra, o qual é tão desanimador quanto contra-
producente. As últimas falas do “Jesus ressurreto” deixam claro as
intenções dos autores que as escreveram: transferir o poder e as
responsabilidades de Jesus para seus discípulos e continuadores. O
poder, o poder, sempre o poder.
Nessas descrições, Jesus atribui responsabilidades e estabelece
uma estrutura chamada igreja, assim essas aparições também podem ter
sido criadas para concluir o que o mestre não havia feito antes da morte
na cruz; elas legitimariam a hierarquia da igreja na época em que os
textos foram escritos (e não a ordem ou importância dos fatos ocorridos
no início da década de 30 da era cristã).
Pode-se perguntar o que está por trás das aparições de Jesus. Ele
realmente apareceu aos seus? Falou, andou e até se alimentou na
presença de seus discípulos, depois da crucificação?
Sim, muitas vezes. Ele apresentava características tão materiais
e físicas que muitos não perceberam que se tratava da materialização de
Jesus: homem e espírito
491
seu espírito excelso. Muitas indicações sugerem isso, como a forma
inesperada com que aparece em um determinado local, a dificuldade
dos apóstolos e demais discípulos em reconhecê-lo prontamente, a
forma relativamente impessoal que caracteriza essas aparições, dentre
outros elementos.
Cabe ressaltar que algumas versões dos evangelhos apócrifos
mostram que, após o desencarne, Jesus teria penetrado nos círculos
mais tenebrosos dos planos umbralinos e subcrostais, espalhando sua
luz em todas essas regiões, permitindo que muitos irmãos em condições
infelizes fossem resgatados e encaminhados para atendimento. Essa
visão do Cristo nas regiões mais densas foi abordada no início desse
livro e apresenta algumas confirmações da literatura espírita, podendo
ajudar a explicar a observação de muitos homens "ressuscitados" na
cidade de Jerusalém nos dias seguintes ao calvário, exemplos vivos da
mediunidade ao longo das eras.
492
11 O Papel de Jesus no Presente
“...Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações...”
(Romanos, 5, 5)
Jesus: homem e espírito
493
A extensa literatura espírita disponível, em particular o livro " A
Caminho da Luz", de autoria de Emmanuel e psicografado pelo médium
Francisco Candido Xavier, nos mostra que desde a mais remota
antiguidade, quando do estabelecimento do orbe terrestre, o espírito a
que denominamos de Jesus já era o grande responsável pelo
desenvolvimento da nossa sociedade e co-autor da evolução em nosso
mundo.
Sabemos plenamente que essas considerações são bastante
criticadas dentro das religiões cristãs que, erroneamente, excluem o
espiritismo do rol de crenças oriundas da mensagem de Jesus. Não
viemos para polemizar e não o faremos agora. A verdade se impõe por
ela mesma e se o que dissemos e acreditamos não for uma expressão
dessa verdade maior, que caia no esquecimento e pedimos perdão ao
divino mestre pela nossa insignificância e ignorância.
Contudo, Jesus não morreu na cruz e não dizemos isso porque
acreditamos que ele montou em um camelo ou jumento e rumou para a
Ìndia, Tibet, Egito ou para as colinas de Hollywood, mas simplesmente
porque a morte é apenas uma ilusão dos nossos sentido materiais. A
morte da carne significou uma intensificação das suas atividades de
494
trabalho junto ao globo terrestre. Não ficou à direita do Pai, escutando
sons melodiosos que se originavam da milhares de orquestras
angelicais. Não falamos essas palavras com tom irônico, pelo contrário,
queremos apenas mostrar que muitos foram os enviados de Deus,
mandados diretamente pelo mestre que nasceu em Nazaré, que atuaram
em nosso meio. O próprio Jesus acompanhou o processo de renovação
da fé cristã na Europa e o surgimento de outras religiões monoteístas no
mundo.
Sabemos que, quanto mais evoluímos nessa jornada, maior é a
nossa responsabilidade e a necessidade de trabalho. Se isso é verdade
para nós, pequenos ciscos na criação divina, imaginem o quanto o
mestre vem sendo envolvido no trabalho incessante ligado ao mundo
em que vivemos.
Tempos duros se abateram sobre o mundo ao longo dos últimos
dois mil anos, mas indubitavelmente crescemos e as dores que agora
sentimos são dores que mostram a transição da infância espiritual da
humanidade para a fase adulta, de regeneração, e essa transição também
vem ocorrendo sob os auspícios do Cristo, do escolhido de Deus. Quem
tem acompanhado a literatura espírita e os movimentos religiosos pode
estar presenciando a maior vitória do espírito cristão nos último séculos:
o reconhecimento de que o Pai é um só e somos, em consequência
Jesus: homem e espírito
495
disso, irmãos. Isso torna muito mais fácil a lei do "amar ao próximo
como a ti mesmo".
Todos os enviados das trevas, que espalharam a guerra ao longo
dos séculos XIX e XX (infelizmente elas ainda vicejam no século XXI),
acabaram destruindo o mundo provinciano e preconceituoso, abrindo as
portas para um cristianismo prático, que não se prende a rótulos. O
amar ao próximo hoje se inicia de forma tímida em todos os cantos do
globo, com o reconhecimento de que fazemos parte dessa família,
independentemente da cor, credo e filosofia. Sabemos que o caminho é
muito longo, mas desanimar não é opção depois de tudo que se passou
nos anais da história.
O Reino de Deus já se faz presente na vida das pessoas, através
do pastor inspirado, que transborda de cultura evangélica para seus
fiéis, através do padre amoroso (como tantos que conheci, EGJJr) que
orienta crianças na escola salesiana (ou de outras agremiações), pelas
mãos do médium espírita, naquela vila pequena junto ao rio Tietê,
Paraná ou Parnaíba, bem como em mesquitas e sinagogas, onde
esperamos que os moderados vençam as intransigências e estimulem
que todos venham a reconhecer primeiro as semelhanças que nos unem
e deixem para trás as diferenças que ainda nos separam. Nosso Deus é
um só, Yaveh ou Alá, sempre Ele e somente Ele, nosso Abba, Pai. Pai
496
divino que nos mantém vivos e atuantes. A Ele devemos a tolerância
que caracterizava a palavra de Jesus, seu maior enviado e nosso líder
planetário.
Podemos observar que o Alto tem procurado desmistificar a
figura de Jesus, aproximando-o das pessoas mais simples e tem
trabalhado incessantemente para que as diversas religiões readquiram o
espiritualismo, em contrapartida ao materialismo, que foi perdido
quando se aproximaram do poder temporal, mundano, humano. Isso
ocorreu com todas as crenças; o dinheiro e o poder são doenças do
homem e todos somos passíveis de sucumbir em suas mãos.
No presente, o mundo vem experimentando profundas
modificações em todos os níveis: ascensão de novas potencias
econômicas, desenvolvimento de novos métodos de produção,
ampliação exponencial do conhecimento cientifico disponível,
enfraquecimento das crenças religiosas tradicionais, aumento
vertiginoso do consumo de drogas e da violência a elas associadas,
redução do número de filhos e envelhecimento da população,
esgotamento dos recursos naturais, dentre tantos outros pontos que nos
parecem bastante cruciais. Nesse quadro, poucas são as notícias boas,
como uma significativa redução das posições de xenofobia e outras
Jesus: homem e espírito
497
fobias, como a homofobia. Nasce a compreensão de que a humanidade
é uma grande família e de que o mundo é pequeno e bastante frágil.
Poucos duvidam que estamos em um momento bastante
complexo e importante da história do globo, onde teremos de encarar as
nossas mazelas e tirar das gavetas antigas reformas, proteladas por
séculos. O tempo urge e, como o próprio Cristo nos preveniu, a
sociedade será contemplada, coletivamente, pelas suas obras e as nossas
ainda denunciam uma espécie belicosa e infantil, incapaz de gerir seus
próprios recursos. Guerras avassaladoras, muitas das quais praticadas
em nome de Deus, marcam o nosso currículo.
Bilhões de seres humanos ainda vegetam em condições
lastimáveis na superfície do planeta, sem o acesso a condições mínimas
de dignidade e ainda dizemos que foi o Pai eterno que fez o mundo
como o conhecemos. De forma alguma, os recursos naturais constituem
o presente divino, mas o que fazemos com eles diz respeito apenas à
humanidade terrena. Ele tem mostrado uma paciência infinita com essa
espécie recalcitrante, mas claramente não poderemos mais manter
nossos padrões de consumo e desperdício de outrora. Seremos os
autores maiores do nosso próprio Armagedom, do nosso próprio
Apocalipse.
498
Pela lei de afinidades, a humanidade vem se cercando da pior
influencia possível. Os umbrais estão repletos de gente, mais de 20
bilhões, segundo a própria literatura espírita, e muitos desses nossos
irmãos estão vindo para o nosso plano continuamente, mostrando que a
qualificação moral e espiritual da humanidade continua a apresentar um
quadro bastante sofrido e triste, de forma que todas as características da
psicosfera terrena nos lembram da necessidade de saneamento urgente.
Para tanto, os espíritos superiores, fazendo eco ao que Jesus
dizia aos seu seguidores e às multidões pelo caminho, têm enviado
missionários, como Gandhi, Madre Tereza da Calcutá, Chico Xavier e
outros, para nos lembrar do reino de Deus, que irá substituir o caos.
Esse reino irá brotar do interior de cada um e se tornará o padrão de
relacionamento interpessoal, norteando o próximo ciclo de
desenvolvimento do planeta, agora elevado à condição de mundo em
regeneração.
Obviamente, a seleção daqueles que deverão aqui permanecer e
daqueles que serão convidados, pelo Mestre Divino, a se deslocar para
um outro bastião de vida, no universo, se dará em função do fenômeno
de sintonia vibratória e, dessa forma, ninguém poderá dizer que
injustiças foram cometidas, afinal estaremos onde nossos corações
disserem que deveríamos estar. É a justiça divina, que chega, como
Jesus: homem e espírito
499
colocou o mestre galileu, insidiosamente, durante a noite, para permitir
um belo raiar do dia, de uma nova civilização.
O processo como um todo já começou e seu ritmo está se
acentuando vertiginosamente, o que nos faz lembrar que as
reencarnações que hoje tomam corpo no planeta se revestem de um
chamamento pessoal em caráter de urgência, para que todos promovam
a reforma íntima necessária e trabalhem na seara do mestre, de forma a
se habilitar para a permanência em nosso planeta e para um novo
recomeço coletivo. Embora o Apocalipse de João venha despertar
aversões pelas imagens fortes que ele utiliza, o que é normal, se
considerarmos a época em que ele foi escrito e os fenômenos que ele
tenta descrever, temos de concordar que o mundo que vemos hoje
corresponde, claramente, à descrição do médium que acompanhou
Jesus.
A luz da doutrina espírita e a penetração dos conceitos básicos
do amor ao próximo em todas as crenças, particularmente na seara
cristã, constituem uma esperança de conforto para todos no futuro
atribulado que nos espera, mas devemos lembrar que o Pai não
abandona os seus filhos e tem assistido o desenrolar dos atos dessa
história surreal que vem a ser a nossa humanidade. O Governo
Espiritual do Mundo, constituído de seres angelicais, muitos dos quais
500
interagiam com Jesus durante seu ministério terreno, liderados pelo
Cristo Terreno, nosso amado Jesus, nos faz crer que estamos muito bem
acompanhados e amparados nessa jornada e o mestre que amou a ama
profundamente nossa pobre humanidade não nos deixará ao acaso, qual
nave sem rumo em um oceano tempestuoso.
Como um dia disse a querida progenitora de um dos autores
(EGJJr):
"Filho, lembre-se, nada separa o que o amor verdadeiro uniu".
Ela, um ser imperfeito como nós, falava como mãe, mas em diversas
ocasiões pudemos perceber que essa filosofia norteia a estrutura do
próprio universo; o amor divino é como as forças nucleares que mantém
a estrutura atômica. Que Deus, nosso Pai, tenha misericórdia de nós.
Jesus: homem e espírito
501
12 Referências Bibliográficas
502
1. Andrews, Richard. Sangue sobre a Montanha. Imago Editora, Rio
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