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Jesus: homem e espírito Elerson Gaetti Jardim Junior Sérgio Cherci Júnior Christiane Marie Schweitzer 25/12/2011

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Jesus: homem e espírito

Elerson Gaetti Jardim Junior

Sérgio Cherci Júnior

Christiane Marie Schweitzer

25/12/2011

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Gaetti-Jardim Júnior, Elerson

Cherci Júnior, Sérgio

Schweitzer, Christiane Marie

Jesus: homem e espírito 506p.

ISSN: 544426

Livro 1036 Folha 187.

1. Jesus 2. Espiritismo 3. Reencarnação 4. Mediunidade 5.

Evolução planetária

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iii

Leia, divulgue e estude a obra de Chico Xavier e seus

colaboradores do invisível

Cultive a caridade

Plante a fraternidade

Respire liberdade

“Pense e reflita sobre tudo, lembrando que a

verdade a Deus pertence e cabe, a cada um de nós,

buscar a sua própria visão da mesma, através de

caminhos que se abrem continuamente”

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iv

Ao mestre Jesus

Subindo as escarpas do calvário e depois pregado na cruz,

deixastes, divino mestre, os ensinamentos que deveriam orientar os

homens;

No simples mandamento "Amai-vos uns aos outros", deixastes a

essência de toda a justiça, o bálsamo para todas as dores, a resignação

para todos os sofrimentos, bem como a esperança radiosa para todas

as descrenças.

Derramai, oh mestre divino, sobre a humanidade, os raios de

luz de vossa misericórdia, plantando no coração empedernido dos

homens o amor e a paz, irmanando-nos no mesmo sentimento de

igualdade.

Texto psicografado por Elza Fernandes Jardim, em 13 de

dezembro de 1997. A médium, falecida no dia 13 de fevereiro de 1999,

vem trabalhando como enfermeira, sua profissão terrena, junto a

necessitados no plano invisível, onde recebe a colaboração de sua mãe,

Maria. Deu-me a honra de ser seu filho; de um antigo inimigo a

admirador; transformou-me em filho amado e deu guarida a meus dois

irmãos. Prova que o amor sincero e franco produz verdadeiras

transformações na alma. O meu muito obrigado.

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Como disse minha filha Annie, de dois anos, "papai a vovozinha

está na minha casa". Cara filha, sim, ela sempre vem nos visitar, porque

nada separa o que o amor verdadeiro uniu.

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Dedicatória

Dedicamos esse trabalho, acima de tudo, ao messias galileu,

nosso guia e companheiro sublime.

Aos nossos amados, que dividem essa experiência na carne e

fazem todas as coisas valerem a pena, em particular os nossos filhos

(em ordem alfabética) Aléxia, Annie, Giulia .....

Aos nossos amados desencarnados, que nos embalaram no colo

e nos dedicam o mais puro amor filial ou fraternal.

Aos nossos guias espirituais, que vencendo as barreiras mais

difíceis se sujeitaram aos imperativos de nossos horários e

compromissos e nos auxiliaram em tantas jornadas .

Á Casa do Caminho "Luz e Esperança" (município de Ilha

Solteira-SP), nossa verdadeira morada, à Comunidade Espírita Cristã

Esperança (município de Fernandópolis-SP), à Seara a Caminho do

Mestre (município de Birigui-SP), ao Centro Espírita "Caminho de

Luz" (Município de Brejo Alegre, SP) e à Fundação Adolpho Fritz

(município de Teresina-PI), sociedades espíritas cristãs que

compartilham objetivos e ideais, de mãos dadas, em laços fraternos.

Uma alma sem fé é uma nave sem bússola, abandonada às

fúrias de um mar tempestuoso. (Elza Fernandes Jardim).

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Sumário

AO MESTRE JESUS .................................................................................. IV

DEDICATÓRIA.......................................................................................... VI

SUMÁRIO ......................................................................................................7

ALGUNS ESCLARECIMENTOS NECESSÁRIOS ................................ 10

INTRODUÇÃO GERAL AO TEMA ......................................................... 14

BREVES CONSIDERAÇÕES .................................................................... 19

1 COMO ERA O MUNDO DE JESUS ............................................... 25

1.1 COMO ERA O MUNDO ROMANO NA ÉPOCA DE JESUS? ....................... 26

1.2 O JUDAÍSMO NO TEMPO DE JESUS ..................................................... 44

1.3 AS SEITAS JUDAICAS E SUAS PECULIARIDADES. ................................ 61

2 QUAIS SÃO AS FONTES SOBRE JESUS? ................................. 109

2.1 AS FONTES SOBRE JESUS ................................................................ 110

2.2 OS EVANGELHOS CANÔNICOS ......................................................... 114

2.3 FLÁVIO JOSEFO .............................................................................. 126

2.4 TÁCITO. O HISTORIADOR ROMANO E OUTROS ................................ 134

2.5 OUTRAS FONTES JUDAICAS E O ALCORÃO ..................................... 136

2.6 OS EVANGELHOS APÓCRIFOS COMO FONTES................................... 141

2.7 ARQUIVOS ESPIRITUAIS. ................................................................. 151

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3 O NASCIMENTO DE JESUS E SUA FAMÍLIA ......................... 154

3.1 O NASCIMENTO DE JESUS E SUA FAMÍLIA NUCLEAR ....................... 155

3.2 JESUS ERA DE ASCENDÊNCIA REAL ? .............................................. 189

4 O RELACIONAMENTO DE JESUS COM SEUS FAMILIARES

199

4.1 COMO ERA O RELACIONAMENTO DE JESUS COM SUA FAMÍLIA

TERRENA ? 200

4.2 JESUS ERA SOLTEIRO OU TERIA TIDO UMA FAMÍLIA ? ..................... 206

4.3 QUAL A FORMAÇÃO RELIGIOSA DE JESUS, O JUDEU? ...................... 213

4.4 COMO FOI A EDUCAÇÃO FORMAL DE JESUS, UM JUDEU POBRE DO

SÉCULO I D.C. ? ...................................................................................................... 219

4.5 QUAL A PROFISSÃO DE JESUS E QUAL A CONDIÇÃO SOCIOECONÔMICA

DE SUA FAMÍLIA? ................................................................................................... 225

5 JOÃO, O MESTRE DO MESTRE ................................................. 233

5.1 JOÃO, O BATISTA, MENTOR E MESTRE DE JESUS, O CRISTO. ........... 234

6 OS PRIMEIROS SEGUIDORES DO NAZARENO..................... 252

6.1 MULTIDÕES E DISCÍPULOS ............................................................. 255

6.2 O QUE CARACTERIZAVA UM DISCÍPULO DE JESUS? ......................... 272

6.3 OUTROS SEGUIDORES DESSE LADO E DO OUTRO LADO DO VÉU. ...... 276

6.4 O GRUPO DOS DOZE ....................................................................... 278

6.5 E OS APÓSTOLOS ? .......................................................................... 285

6.6 CONTROVÉRSIAS SOBRE OS APÓSTOLOS ......................................... 302

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6.7 QUAL FOI O DESTINO DOS APÓSTOLOS? .......................................... 306

7 A MENSAGEM DE JESUS ............................................................ 308

8 A MEDIUNIDADE E O MESSIAS DE NAZARÉ ........................ 336

8.1 DESOBESSÕES ................................................................................ 338

8.2 OS FENÔMENOS DE CURAS ............................................................. 346

8.3 RESSURREIÇÃO DOS MORTOS ......................................................... 356

8.4 VIDÊNCIA, AUDIÊNCIA E PRESCIÊNCIA .......................................... 363

8.5 FENÔMENOS MEDIÚNICOS SOBRE A NATUREZA E A MATÉRIA ......... 365

9 A CRUCIFICAÇÃO DE JESUS ..................................................... 373

9.1 JESUS, O TEMPLO E O PLEBEUS ...................................................... 396

9.2 A PRISÃO DE JESUS. ........................................................................ 412

9.3 O JULGAMENTO .............................................................................. 421

9.4 A CRUCIFICAÇÃO ........................................................................... 458

9.5 A DATA DA CRUCIFICAÇÃO DE JESUS ............................................. 471

10 A RESSURREIÇÃO DO MESSIAS DE NAZARÉ ...................... 484

10.1 A "RESSURREIÇÃO" ................................................................... 485

11 O PAPEL DE JESUS NO PRESENTE .......................................... 492

12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................... 501

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Alguns esclarecimentos necessários

Para entender esse texto, precisaríamos retornar aos primeiros

decênios da era comum, quando um homem maravilhoso, chamado

Jesus, foi crucificado. Um dos espíritos que colaborou no presente

estudo esteve presente durante a reunião do pequeno Sinédrio, que

decidiu os destinos do mestre galileu e, encarando-o na cruz, zombou de

sua dor dizendo que "se esse homem fosse o filho do Deus Altíssimo,

não estaria ali. Desça e nos mostre do que tu és capaz".

Esse personagem, que chamaremos de Eleazar, reencarnou

diversas vezes na Terra, voltando ainda como rabino, padre (por

diversas vezes), médico, pesquisador e até mesmo militar. Contudo, o

remorso remoeu suas entranhas por séculos e nada parecia devolver a

paz ao seu coração atormentado, que pedia perdão ao mestre dos

mestres. Foi assim que, depois de diversas existências perdidas na

arrogância dos que se julgam conhecedores das verdades absolutas (que

não estão acessíveis ao nosso entendimento e não sabemos se algum dia

estarão), ele recebeu da espiritualidade amiga a permissão de participar

da redação desse texto.

As palavras desse personagem não representam os fatos

históricos em si, mas a interpretação que esse homem judeu, de classe

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abastada, fez dos mesmos. Repito, mais do que um texto histórico, é um

pedido de perdão ao Deus de todos nós pela participação no evento que

mais marcou a história da humanidade e procura apresentar um "Jesus"

que foi soterrado por dois mil anos de interferências cristãs e anti-

cristãs.

Em um ensaio inicial, sem uma conotação religiosa e

procurando traçar os aspectos mais relevantes da vida de Jesus, o

messias de Nazaré, com maior rigor científico, procuramos manter um

tom sóbrio diante de questões que deixam a comunidade cristã em

polvorosa, ao mesmo tempo em que evitamos adentrar as numerosas

controvérsias a respeito da vida de Jesus. Entretanto, o resultado obtido

nos frustrou imensamente, particularmente ao nosso amigo, Eleazar.

Aquele "Jesus" não parecia com o mestre dos mestres, que um dia

caminhou pela colinas semi-áridas da Palestina, e decidimos dar um

novo rumo ao livro em elaboração.

Com a orientação de nossos guias espirituais e amigos

encarnados e desencarnados, procuramos escrever uma nova versão da

vida do Cristo, utilizando as informações disponíveis na literatura

acadêmica e leiga, associando-a aos livros da codificação de Kardec e

aqueles psicografados por Francisco Cândido Xavier, nosso caro Chico,

pelo cuidado que esses livros clássicos tratam do tema. Evitamos os

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textos cheios de revelações espiritualistas, mas sem qualquer

fundamentação, que a despeito de serem bem redigidos e de fácil

compreensão, trazem controvérsias e possuem diversas características

dos textos escritos para leitores do grupo místico-esotérico.

Procuramos inserir textos que foram inspirados por nossos

mentores espirituais ou informações psicográficas a partir do nosso

irmão Eleazar. Quando conflitos surgiam entre a informação de uma

fonte espiritual e a literatura acadêmica, optava-se pelo bom senso e

questionamentos adicionais eram feitos aos membros da equipe de

trabalho, encarnados e desencarnados. Quando instransponíveis, essas

dificuldades foram passadas em cores vivas para o papel, sem maiores

tentativas de harmonização, sob pena de não respeitarmos a colaboração

do invisível. Obviamente, muitos detalhes escapam à nossa humilde

compreensão e, como declara Emmanuel, as revelações são dadas

segundo nossa capacidade de compreensão e não segundo a nossa

vontade pessoal.

A despeito de nossa intenção de compreender o "Jesus" que um

dia caminhou sobre solo palestino, sabemos que mais importante do que

questionar os detalhes de sua vida é entender a magnitude e

profundidade de suas palavras de amor e perdão, sendo essa última a

única a nos garantir o direito de angariarmos o perdão divino, que se

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manifesta como um novo e providencial retorno ao corpo físico, para

que um dia possamos estar diante do Pai Sublime, na condição de filhos

que voltam ao lar cheios de alegria. De qualquer forma, é a mensagem

atual e universal desse homem, se é que podemos chamá-lo assim, sem

ofendê-lo, que tem o caráter de transformação e constitui o verdadeiro e

mais importante milagre por ele realizado.

Devo (EGJJr) admitir que minha conversão ao cristianismo se

deu ao final da redação da primeira versão desse texto e a minha

inserção dentro do movimento espírita ainda demoraria 5 anos, nos

quais a dor de perdas e a experiência no campo mediúnico foram

preponderantes. Mesmo para um cético de cunho cientificista, a história

do mestre e sua importância para a civilização moderna e os direitos

humanos carrega motivos suficientes para vermos as mãos do Mais Alto

na evolução de nosso mundo.

Desculpem nossas falhas e desejamos que encontrem algo nessa

história que começa em uma casa pobre na Galiléia e se estende até o

presente que seja capaz de confortá-los, como aconteceu conosco.

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Introdução Geral ao Tema

A criação do mundo e do sistema solar remontam há 4,6 bilhões

de anos, a partir de restos de diversas estrelas gigantes, as supernovas,

que explodiram após algum tempo de atividade, enquanto a vida surgiu

logo após a consolidação das condições físicas do orbe em formação,

possivelmente há 4,0 bilhões de anos. Contudo, foi somente há 10.000

anos que passamos a registrar alguma coisa sobre nosso passado.

Obviamente não podemos falar, com segurança, sobre o que existia

antes dos primeiros registros escritos estarem disponíveis, mas podemos

inferir através de provas genéticas, que mostram, com segurança, que

nossa espécie habita esse mundo há 250.000 anos, além de evidências

paleológicas, arqueológicas, lingüísticas, entre outras, traçando o

caminho que a civilização tomou desde então.

Nesse processo, a despeito da maioria dos estudiosos e eruditos

desprezar a influência de uma "Inteligência Não-Corpórea Onipresente-

Onisciente-Onipotente", nosso Deus, na criação e evolução do universo,

principalmente depois que a seleção natural e a genética tomaram conta

do imaginário popular, sem falar no acadêmico, todos nós conhecemos

fatos e ocorrências no dia a dia que escapam à explicação convencional

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de mundo. Os fenômenos mediúnicos sérios fornecem uma porta ampla

para a compreensão de uma realidade maior e de complexidade

inimaginável, que não pode ser entendida em um universo com três

dimensões espaciais e uma dimensão temporal. A fragilidade da vida é

escancarada se ignorarmos a existência do espírito, o que torna inútil

qualquer tentativa de harmonizar o materialismo com uma existência

plena, com objetivos mais nobres e altruístas.

A própria compreensão da estrutura do universo que nos cerca

vem sendo continuamente reavaliada, uma vez que as duas maiores

teorias capazes de explicar os fenômenos do macro e microcosmo, a

teoria da relatividade e a física quântica, parecem incompatíveis entre

si. Entretanto, nas últimas décadas, uma nova teoria se propõe a marcar

um divisor de águas nesse sentido: a teoria das supercordas, que pode

vir a ser a tão sonhada teoria unificada de campo, que inebriava a

brilhante mente de Albert Einstein. Nessa teoria, tudo que existe no

universo é fruto de cordas minúsculas que vibram em diferentes

freqüências e, de acordo com esse fenômeno, acabam por se manifestar

de diferentes formas, como as unidades elementares da matéria e a

energia que compõem o universo. Essa teoria abriga aspectos que

somente fazem sentido se o universo apresentar múltiplas dimensões

espaciais adicionais, paralelas, e que interagem entre si em uma dança

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cósmica complexa, o que nos traz muitos paralelos com a filosofia

implícita no conceito de que “na casa de meu Pai existem muitas

moradas”, tão propalada pelo messias nazareno.

Na literatura religiosa, a criação do Universo se deu pela

vontade, - o Verbo-, de Deus Todo Poderoso, sendo que os cristãos,

com o tempo, passaram a ver em Jesus o próprio Verbo Encarnado ou

Deus-Filho, preexistente, sem começo ou fim. Obviamente, essa

imagem não está de acordo com o visão espírita sobre Jesus, que seria o

enviado divino, o escolhido de Deus, mensageiro, ou, simplesmente, o

ungido, algo até certo ponto semelhante à visão judaica do messias, o

servo maior do Pai, embora não reconheçam Jesus como o escolhido de

Deus. Até a palavra Cristo ou messias trazem à tona que Jesus

inicialmente era visto como o "homem escolhido por Deus", aquele que

mostrará o caminho.

É inegável o papel desempenhado por Jesus na modificação de

hábitos arraigados na humanidade, fortalecendo a apresentação do Deus

misericordioso e universalista do Novo Testamento, em contraposição

de um Deus tribal e egocêntrico que, por vezes, aparece no Velho

Testamento. Nesse sentido, não que um conjunto de livros seja

antagônico a outro, mas as diferenças entre essas faces da divindade

refletem a evolução da nossa visão sobre o Criador. Jesus também tem

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o mérito de iniciar e fortalecer esse novo enfoque e trazer o Reino de

Deus até o povo comum.

As últimas décadas têm presenciado uma verdadeira avalanche

de textos sobre Jesus, tratando-o como um sábio, um profeta, mágico,

milagreiro, Ser Divino, revolucionário, peregrino cínico e estóico e até

como médium de outro espírito hierarquicamente mais elevado. Vemos

que no seio das religiões cristãs tradicionais ou literalistas existe uma

ampla gama de textos sobre o mestre galileu qualificando-o como parte

da Divindade, mas a literatura espiritualista sobre o tema é muito pobre

e isso se deve, em grande parte, à dificuldade que os encarnados e

desencarnados têm ao lidar com a figura de Jesus, deixando de lado

conceitos pré-concebidos e posições arraigadas, ao que devemos

acrescentar que nos falta um conhecimento do Jesus da vida real, sem o

qual aceitamos comunicações espirituais destituídas de qualquer sentido

mais profundo e que destoam de todas as evidências científicas. O

próprio espírito do Dr Inácio Ferreira, que tantos livros trouxe ao

mundo pelas mãos hábeis do cirurgião-dentista e médium Carlos

Bacceli, nos alerta que, nos planos espirituais mais próximos da Terra,

os próprios espíritos desconhecem a figura histórica de Jesus e erros de

interpretação também são cometidos.

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Lembremo-nos que Allan Kardec colocava que a razão é o fiel

da balança e que o espírita, como sua fé exige, deve ponderar e, quando

a ciência desmentir seus conceitos, ele deve modificar sua maneira de

pensar. A ciência e a fé andam juntas na religião dos espíritos,

encarnados e desencarnados, mesmo que tenhamos saído de outras

concepções religiosas. Assim, esse ensaio tem o papel de traçar alguns

pontos sobre a vida de Jesus e seus primeiros seguidores, sem procurar

tratar-se de um livro devocional ou acadêmico, sendo obra de

desencarnados abnegados e de encarnados imperfeitos, que estão

procurando colocar diante do público uma visão diferente da observada

pela maioria da comunidade cristã.

A esses espíritos amigos e, principalmente, a Jesus, nosso divino

mestre e guia, nossos mais sinceros agradecimentos.

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Breves Considerações

Nos últimos duzentos anos, aqueles que conseguiram se livrar

das amarras religiosas e empreender uma pesquisa independente sobre o

Jesus da história acabaram por pintar a imagem de um mago, profeta

carismático, exorcista, profeta social, sábio ou mestre com poderes de

cura e profeta escatológico. Muitas dessas imagens não são mutuamente

excludentes e, em conjunto, podem colaborar para a adequada

compreensão do messias de Nazaré.

Infelizmente, é impossível reviver com precisão os caminhos

percorridos por Jesus em função dos milênios que nos separam dele e,

acima de tudo, pela precariedade das fontes disponíveis. Não se pode

esquecer que há 100 anos, no Brasil, o analfabetismo total ou parcial

(também chamado de analfabetismo funcional) atingia a grande maioria

da população e, na antiguidade, o mesmo ocorria com os povos do

Mediterrâneo, de forma que mesmo os muito ricos geralmente tinham

dificuldade em deixar textos escritos para a posteridade e temos que

convir que Jesus não era exatamente um “muito rico”, em termos

financeiros. Portanto, é de espantar que tanta informação tenha sido

escrita sobre ele na época, embora nada tenha saído de suas santas

mãos.

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As análises acadêmicas sobre o mestre passaram por diversas

fases e hoje existe grande concordância de que praticamente nada do

que foi dito sobre ele antes de 1900 merece crédito, posto que, em

função do anti-semitismo da população, Jesus não era analisado no

contexto do seu mundo cultural, puramente ou exclusivamente judaico.

Pode parecer estranho, mas Jesus era judeu praticante e respeitava as

leis que seu povo advogava e isso era indigesto para os padres e

pastores, teólogos e cientistas políticos que estudavam o messias

galileu. E isso teve sérias conseqüências.

Durante o nazismo, o fato de “os judeus” terem matado Jesus foi

utilizado para justificar toda espécie de postura anti-semita vigente e os

carrascos se sentiam quase à vontade nas filas que chegavam aos

campos de extermínio de Treblinka e Auschwtiz-Birkenau. Outra face

desses preconceitos foram os "progroms" e a política que impedia que

judeus viessem a professar a suas crenças em público, além da

famigerada Inquisição e tribunais da Igreja cristã, que levaram muitos

judeus do mediterrâneo europeu a mudar seus nomes e se converterem

em cristãos-novos (a quase totalidade dos nomes como Macieira,

Pereira, Pinheiro e outros fora adotada por judeus obrigados a

abandonar sua fé).

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Nas últimas décadas, o mundo tem presenciado uma nova

revolução no campo dos estudos acerca de Jesus, merecendo destaque

aqueles que trazem até o presente os aspectos sociais, políticos e

culturais que envolveram o mestre desde sua infância até aqueles

associados com o seu martírio na cruz.

Hoje sabemos ser impossível a elaboração de uma biografia

para ele e devemos nos conformar vê-lo através dos olhos dos outros,

seus apóstolos, discípulos e seguidores, além das comunicações

mediúnicas transmitidas por irmãos responsáveis através das mãos de

médiuns de reconhecida dedicação e idoneidade, como Chico Xavier.

Esses depoimentos de espíritos de elevada expressão e de alguns de

seus opositores da época, que conviveram com os diversos personagens

históricos ligados ao messias galileu, podem nos dar algumas

informações, bem como nossos guias e protetores espirituais que, em

árduo trabalho e através de psicografia e inspiração, nos ajudaram a

criar um panorama mais humano para o nosso mestre.

Inicialmente, devemos lembrar que os livros canônicos (os

textos bíblicos) não são retratos históricos e sim devocionais, escritos

de 30-70 anos após a morte de Jesus e quase tudo que incomodava a

igreja romana acabou sendo removido desses textos por copistas

zelosos, que preferiam mudar a “história” do que ter que explicar

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conceitos que iam contra a sua própria fé, como a reencarnação e a

natureza humana de Jesus, bem como as severas limitações que tolhiam

os apóstolos e a primeira comunidade cristã. Assim, o Jesus que

mostraremos não é o personagem “histórico” e não será equivalente

àquele que um dia caminhou em condições tão humanas e com idéias

acessíveis para uma parcela muito grande da população do século I

d.C., mas apresentaremos uma imagem humana de um espírito dotado

de profundo amor pelo Pai e pelo gênero humano e que sacrificou

milênios cuidando dos destinos coletivos de nosso orbe, como um

irmão zeloso e abnegado.

Outro fator que dificulta a busca por Jesus reside em uma

peculiaridade nada desprezível: ele foi, ou assim acreditam muitos de

seus modernos seguidores, a encarnação da divindade. As igrejas cristãs

primitivas não apenas levaram o homem a Deus, mas também trataram

de trazer Deus até o homem, fechando um ciclo. Pensar em Jesus se

alimentando, confabulando com espíritos de estirpes elevadas, sofrendo

pela densidade espiritual do mundo e apresentando todos os paradigmas

que um ser humano tem que sofrer constitui uma quase heresia para

muitos cristãos e mesmo os cristãos espíritas relutam, às vezes, em

deixar o arcabouço literalista que herdaram de suas igrejas originais,

geralmente dogmáticas.

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A imagem que a maioria das igrejas faz do mestre galileu é

semelhante a de um herói perfeito, Deus encarnado, transcendental,

quase sem sentimentos, que emerge como pessoa perfeita de dentro de

uma sociedade corrompida e legalista que, por não poder suportar sua

natureza mais que transcendente, o leva até a cruz. Nada poderia estar

mais distante do Jesus que viveu entre nós e digo "nós" porque muitos

dos personagens que fazem parte dessa história, em particular os que

agrediram e condenaram o mestre, estão encarnados enquanto essas

linhas são redigidas e outros se alojaram nos planos espirituais ainda

próximos à crosta planetária.

Como o cristianismo, pequena seita judaica que se formou no

final da primeira metade do século I d. C., a fé em Jesus, o escolhido,

logo ultrapassou os limites do mundo judaico de então, atingindo

populações helenizadas e romanizadas e seus muitos deuses,

semideuses e figuras lendárias, muitas das características semíticas

(termo utilizado para descrever os aspectos culturais dos povos de

língua semita, como os judeus e árabes do presente) do mestre galileu

foram sendo perdidas ou moldadas pelos novos pregadores que se

dirigiam a esses povos e acabaram sofrendo modificações tão profundas

que o próprio judeu Jesus teria dificuldade em se reconhecer em “Jesus

Cristo” das igrejas ocidentais, mesmo dentro do espiritismo.

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Assim, as pessoas que aceitam que Deus é universalmente justo

e bom, misericordioso e paciente, não podem conceber que Jesus fora

criado de forma especial, com privilégios, mas sim que ele representou

a perfeição divina oriunda do esforço de um espírito que passou pelos

degraus da evolução e hoje olha por seus irmãos mais novos com olhar

amoroso e terno, o qual pode ser sentido quando o evocamos em nossas

orações.

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Jesus: homem e espírito

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1 Como era o mundo de Jesus

“...Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que

procede da boca de Deus” (Mateus 4, 4).

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1.1 Como era o mundo romano na época de Jesus?

Os judeus criaram maravilhosas crônicas sobre à relação entre o

Povo escolhido e Deus, onde os justos e devotos eram abençoados com

uma vida longa e farta, mas poucas tem algum fundamento histórico.

Reis como Davi e Salomão, longe de serem grandes senhores da

Palestina, estavam mais para líderes tribais e regionais do que grandes

soberanos. Os faraós do Egito praticamente os ignoraram e isso, na

antiguidade, significava que não ofereciam maior interesse para um

conquistador poderoso. Não estamos colocando a historicidade bíblica

em cheque, mas apenas lembrando que esse livro enaltece feitos e

personagens que não tiveram a importância que hoje damos a eles. O

principal papel de Moisés, Davi e Salomão, dentre tantos outros

profetas e reis, era o de criar condições para a consolidação do

monoteísmo judeu e lançar as bases para a chegada daquele que

chamaria Deus de Pai, daquele que acreditava que o inferno e o céu,

bem como o Reino de Deus, refletiriam o nosso interior, nos nossos atos

e pensamentos.

Nos séculos que se seguiram ao estabelecimento das diferentes

monarquias de Israel e Judá, a partir de, aproximadamente, 1500 a.C.,

Jesus iniciou o processo de descida vibratória que culminaria com sua

encarnação na Palestina. Durante esse período, o mesmo conselho

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Jesus: homem e espírito

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diretor do planeta, por vezes denominado de governo oculto do mundo,

que se reunira outrora para a criação do planeta, há 4,6 bilhões de anos,

estava mais uma vez reunido para estabelecer as condições adequadas

para o nascimento do espírito sublime que mudaria a relação dos

homens com Deus.

No seu processo de adensamento vibratório, o mestre executou

notável papel de peregrino do evangelho em todas as esferas espirituais

que nos envolvem e em outras dimensões do nosso orbe, onde textos

tão ou mais esclarecedores que os evangelhos do nosso cânone

(conjunto de textos bíblicos inspirados) foram redigidos. Ele oferecia, a

cada grupamento espiritual visitado, aquilo que seus habitantes estavam

preparados para receber. O ponto final dessa descida não foi o nosso

plano de vida encarnada, uma vez que ele ainda desceu aos abismos e

trevas subcrostais, após o calvário, de onde ascendeu para as esferas

gloriosas.

Durante esses quase mil e quinhentos anos, a terra de Israel foi

assolada por egípcios, babilônios, assírios, medo-persas, gregos e, por

fim, romanos. Nessa época, uma questão sempre era lembrada quando

os judeus devotos eram submetidos ao domínio estrangeiro: se somos o

povo escolhido por Deus, por que fomos derrotados e ocupados pelo

inimigo pagão?

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Essa questão foi discutida por gerações, ao longo de séculos, e o

resultado foi a idéia de que Deus permitira e derrota de seus escolhidos

e a destruição do primeiro Templo, o Templo de Salomão, em função

dos pecados do povo, devido à sua apostasia e iniquidade. Nos dois

séculos que antecederam o advento do Servo do Senhor, Jesus, surgiram

grupos judaicos que pregavam a observância radical às leis, como os

essênios e qumramitas, que consideravam o judaísmo formal tolerante

demais com a impureza ritual e com os usurpadores do Templo,

sacerdotes que não descendiam da casa de Zadoque (ou Sadoc) e que

não poderiam exercer essas atividades na casa de Deus. Lembre-se que

muitos judeus acreditavam que Deus realmente morava no Templo.

Outros grupos, mais liberais e dispostos a uma postura menos

literalista das leis mosaicas também existiam, sendo que, embora possa

parecer estranho aos ouvidos modernos, os fariseus constituíam o

principal grupo liberal que aceitava discutir a lei e suas nuances,

aceitando como correto as tradições de seus ancestrais. Quando

discutiam com Jesus, geralmente adotavam postura de respeito e de

pessoas interessadas no conhecimento demonstrado pelo galileu.

Contudo, a forma com que os evangelhos os apresentam é fruto de

rivalidades entre fariseus e judeus cristãos da época em que os textos

foram escritos (de 70 d. C. a 95 d. C.) e não a realidade do tempo de

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Jesus, 60 anos antes. Isso teve sérias consequências para a vida de todos

os judeus europeus nos 1900 anos seguintes, como já citado acima.

A grande maioria da população não se filiava a qualquer grupo

filosófico ou religioso dentro do judaísmo e seguia sua fé de acordo

com as suas possibilidades, em sinagogas locais. A opressão econômica

e a crise judaica, no início da dominação romana, fizeram com que o

povo simples viesse a esperar alguém dos Céus, que intercederia junto a

Deus e restabeleceria a soberania do povo autóctone sobre a terra de

Israel, enquanto outro escolhido divino seria alçado a condição de

Sumo Sacerdote do Templo, a Casa de Deus. Embora minoritários,

também existiam grupos que acreditavam que a profecia de Isaias seria

realizada integralmente, onde o Servo do Senhor seria humilhado e

sacrificado pelos pecados dos homens, constituindo um Messias

sofredor, como Jesus bem personificou durante sua passagem pelo

nosso plano físico.

O ardor dessa fé era diretamente proporcional às provações que

a população mais empobrecida passava e lembre-se que os romanos

criaram uma máquina perfeita para arrecadar tributos e isso pode ser

observado quando encaramos o desprezo com que os judeus se referiam

aos coletores de impostos e a relevância da expressão “dar a Cesar o

que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus”. A dominação romana vinha

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somada a uma significativa deterioração das condições de vida dos mais

miseráveis e a um sentimento de que algo precisava ocorrer para

restabelecer a soberania do povo escolhido por Deus.

A Palestina romana era parte da província da Síria, de onde o

governador romano enviava suas forças armadas em caso de agitações,

como várias vezes aconteceu entre os séculos I a.C a I d.C. Se hoje a

região parece conturbada, com palestinos árabes e palestinos judeus se

enfrentando, naquela época as agitações eram muito maiores e quando

graves revoltas estouravam, parcela significativa da população perecia

ou era vendida na condição de escravos, como ocorreu entre 66 d. C. e

73 d. C. Nesse mundo, a morte era a rotina e não a exceção. Os

governantes romanos não costumavam lavar as mãos perante decisões

difíceis e, por vezes, se utilizavam de exemplos dramáticos para manter

o povo controlado e submisso, com a colaboração de autoridades

judaicas que lucravam ou eram coniventes com a ocupação do solo

pátrio, não sendo bem vistas pela população em geral.

A administração dos domínios romanos, na Palestina, era

realizada por soberanos fantoches locais, como na Galiléia, ou por

procuradores e prefeitos romanos, como Pôncio Pilatos, na Judéia dos

últimos anos de vida de Jesus. Havia nítida divisão de poderes entre o

poder temporal romano e o poder religioso dos sacerdotes do Templo:

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aos romanos cabia manter a ordem pública e a cobrança de tributos,

enquanto os assuntos internos dos judeus eram administrados pelo

Sumo Sacerdote, que com frequência exercia seu poder em consonância

com o oficial romano. Os judeus tinham SIM o direito de julgar seus

concidadãos pelos crimes frente à fé ou distúrbios ligados às leis

judaicas.

Esses assuntos judaicos graves eram julgados pelo Sanedrin

(Sinédrio), que era composto por 71 membros, desde anciãos,

sacerdotes saduceus e alguns fariseus e ex-Sumos Sacerdotes. O

principal interesse desse grande Sinédrio era a manutenção das

obrigações e cerimônias religiosas para a comunidade judaica da Judéia

e da Diáspora que acorriam para o Segundo Templo, e o uso da Lei

Mosaica. Nas ocasiões festivas, como a Páscoa, quando muitos milhares

de pessoas com a religiosidade exaltada se encontravam em Jerusalém,

era o momento mais propício para líderes messiânicos tomarem a cena,

de forma que os líderes do Sinédrio e o prefeito romano ficavam de

sobreaviso, eliminando qualquer um que pudesse ser considerado como

perigoso, como ocorreu com Jesus.

A consequência mais palpável desse estado de coisas foi o

antagonismo da população para com tudo que representasse a ocupação

romana, como o Sumo Sacerdote saduceu, a elite econômica, os

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colaboracionistas e, em última instância, o próprio poder romano

instituído. No início, esses movimentos de resistência tinham uma

conotação mais pacífica e queriam obter condições melhores para que a

população, além da preservação de suas práticas religiosas e culturais,

mas rapidamente evoluíram para movimentos armados, como aquele

representado pelos zelotas e sicários. Em pouco mais de 100 anos,

ocorreram mais de uma dúzia de levantes populares, culminando com a

grande Guerra dos Judeus, também conhecida como a primeira grande

revolta contra Roma, onde aproximadamente 30% da população

palestina perecera e igual número fora convertido em escravos.

Um dos períodos mais pacíficos do século I d.C. se deu durante

o ministério de Jesus, de forma que não devemos pensar que o mesmo

estava tão imerso em movimentos políticos amplos e de grande

repercussão, pelo contrário, o que parecia preocupar mais o mestre

galileu não eram as consequências da ocupação romana, considerada até

tolerante para com os judeus, mas sim o estado de desagregação do

povo judeu naqueles tempos e o estado social degradante.

Se olharmos o período que antecedeu e que sucedeu o ministério

do mestre veremos que Jesus trabalhou em uma das raras brechas de

paz no Mediterrâneo Oriental e isso se deu, pelo que nossos

companheiros espirituais nos passaram, pelo adensamento e

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estruturação do poder romano na região, o que limitava possibilidades

de revoltas populares sem grande respaldo da massa, e, principalmente,

pelo saneamento parcial das áreas umbralinas e trevosas nas décadas

que antecederam o nascimento do menino Jesus. Esse processo ocorreu

em todos os planos espirituais que nos envolvem e destinava-se a elevar

ligeiramente as condições vibratórias do mundo, para minimizar os

choques que o sublime reencarnante indubitavelmente teria pela frente.

Muitos dos espíritos que foram afastados da convivência terrena e

umbralinas somente voltariam a reencarnar século ou milênios depois e

foram os mesmos responsáveis pela intolerância e guerras de conquistas

e de cunho racial no século XX.

Esse saneamento, para tornar a psicosfera planetária mais

adequada para o nascimento do menino bondade, atingiu 20% da

população de espíritos ligados aos planos mais próximos à Terra, que

foram impedidos de ter contato com a crosta terrena, por períodos que

variaram de décadas a muitos séculos, reduzindo o desconforto do ser

sublime que iria mudar a história humana.

Essa contenção dos espíritos mais trevosos também objetivava

impedir que os mesmos viessem a interferir com o livre arbítrio das

pessoas com as quais o Messias galileu entraria em contato, e não por

representarem perigos para Jesus. Como ninguém desconhece a

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influência que os espíritos possuem nas nossas vidas e atitudes, a

manutenção desses irmãos dos planos mais densos e abismais fora do

contato direto com a população palestina acabou por reduzir as tensões

sociais que aquele povo experimentava. Assim, nos anos seguintes ao

nascimento do mestre, a Palestina, terra que experimentava as crises

mais viscerais, parecia adormecia com sonhos tristes, mas leve

esperança brilhava nas colinas do Norte, ao redor de um pequeno

povoado perdido entre centenas de vilas com população minúscula, na

Galiléia.

Além dessa contenção, observou-se o reencarne de milhares de

entidades que, prestes de expiar seus erros do passado, vinham buscar a

luz e o amor personificados na figura séria, mas singela, do messias de

Nazaré. Muitos desses espíritos traziam chagas e seriam

providencialmente liberados de seus estigmas físicos, ligados ao

passado, quando entrassem em contato com o mestre. Nos planos

espirituais formaram-se centenas de pequenos grupos de trabalho que

deveriam assessorar Jesus nas curas e trabalhos de natureza mediúnica.

Assim, vê-se nas palavras do mestre, a necessidade do merecimento e

da fé do suplicante para a obtenção da graça pedida. Em um trabalho de

rápida consulta mental, tinha-se exatamente quem era estimulado a se

aproximar dele e quem deveria se abster. Todos esses personagens

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estavam renascendo para mostrar a amplitude da lei de Ação e Reação e

da misericórdia divina.

Dentre esses irmãos que foram mantidos em contenção, destaca-

se a figura central de Adolf Hitler, uma alma viajante, filha de um

expurgo planetário anterior e que habitava o planeta há milênios, tendo

sido mantida em sono induzido do século II a. C. até fins de século

XVII, quando reencarnou como uma criança completamente

dependente dos pais devido a deformidades e, após o desencarne, se

preparou para sua última vida terrena, que lançaria o mundo na pior de

suas guerras apocalípticas. Hoje esse irmão não está mais no orbe

terreno, tendo sido encaminhado para orbe primitivo, uma espécie de

reformatório sideral para irmãos com pesados carmas negativos.

Para aquela sociedade com forte estratificação social, o Mestre

se manifestava para todos e, em todos os momentos, de forma simbólica

ou explícita, mostrando que o caminho estava na reunificação de todos

aqueles que faziam parte do povo escolhido e a procura constante do

Reino Deus. Esse reino já se fazia presente nas curas e na paz anterior e

o ingresso para adentrá-lo era a reforma íntima (ler o sermão da

montanha, em Mateus 5). Esse é o caminho preconizado por todas as

religiões de cunho cristão, embora com diferentes ênfases.

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Uma mensagem dessa seria considerada subversiva pelas

autoridades romanas, muito mais do que para o Sinédrio, e poderia ter

sido absorvida pelos embriões dos movimentos de resistência armada

que se infiltravam na população e dariam início á grande revolta judaica

40 anos após a crucificação do mestre galileu. É importante ressaltar

que as palavras de Jesus se somavam a de muitos outros movimentos de

cunho messiânico que pululavam na Palestina, mas em Jesus a

mensagem saía do coração. O carisma do messias nazareno, associado

aos seus inúmeros dons, tornavam-no extremamente perigoso aos olhos

do dominador estrangeiro e do poder religioso constituído.

A sociedade palestina, na época do nascimento de Jesus, se

caracterizava por uma forte tendência à urbanização e consequente

desprezo pelo trabalho manual e pela classe rural, camponesa, severa

estratificação social e econômica, instabilidade política, estados fracos,

rígida segregação sexual, tendência de se apoiar em núcleos familiares,

código de honra e vergonha exacerbados, rivalidade entre os povoados e

uma notável influência de superstições e crendices. A riqueza era

perseguida com a mesma cobiça de uma sociedade capitalista moderna,

mas seguindo o princípio de que tomar ou esmagar era a única via

válida para obtê-la, não havendo o mínimo interesse na produção e no

trabalho, de forma que o método de acúmulo de riqueza da antiguidade

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passava pela espoliação de outra pessoa, o que ajuda a entender a reação

de Jesus frente a riqueza material

Quanto à expectativa de vida da população, um terço das

crianças que sobreviviam ao parto morriam antes de completar 6 anos

de vida. Chegar à idade adulta era um prêmio para 25% da população e

apenas 3% dos nascidos vivos atingia 60 anos. A população palestina,

ao ver um homem de 33 anos crucificado, encarava a perda de um

sobrevivente da miséria, enquanto para nós isso seria a morte de alguém

muito jovem, no apogeu de suas faculdades intelectuais.

As doenças mais corriqueiras, como abscessos cutâneos e

infecções de toda monta rapidamente se convertiam em condições

potencialmente fatais. Daí o espanto das pessoas comuns diante de um

mestre de sabedoria incomum e com dons de cura tão pronunciados

quanto Jesus; ele foi a única possibilidade de cura física e espiritual

para muita gente. Era o médico do corpo e da alma de muitos. Nessa

época havia o predomínio das reencarnações compulsórias e

pouquíssimos indivíduos retinham detalhes de suas vidas pregressas,

que normalmente eram interpretadas como sonhos ou devaneios vagos,

ou mensagens dos deuses, de forma que a sabedoria e a visão de Jesus

contrastavam com o ambiente espiritualmente pobre que o envolvia. Se

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as pessoas eram materialmente pobres, espiritualmente eram

paupérrimas e isso mudou muito pouco em 2000 anos.

Os romanos costumavam exportar sua violência, criando, na

periferia de seu vasto império, um estado de instabilidade e de alerta

que parecia unir os povos latinos ao redor de Roma, frente ao

barbarismo da periferia, onde povos marginais e sem leis “deveriam”

viver sob os auspícios “civilizatórios” da metrópole. A coleta dos

impostos pelos oficiais romanos estava muito próxima da perfeição e

tudo era baseado no tamanho da população e na renda gerada pelo

trabalho. Obviamente, para os ocupantes do centro, a paz romana criava

condições únicas de movimentação, domínio e comércio, a despeito do

desprezo com que essa atividade era encarada.

As forças armadas romanas eram extremamente organizadas e se

distribuíam de forma a cobrir rapidamente todo o império em caso de

necessidade. A medida que o poder do império se ampliava, novos

territórios eram incorporados e a fonte de mão de obra escrava não se

esgotava. Pode-se dizer que a guerra permitia a espoliação de riquezas e

garantia a escravidão, indispensáveis nas grandes propriedades

romanas. As fronteiras do império foram estendidas até limites naturais,

como as margens dos rios Reno e Danúbio, Eufrates, Tigre, até as

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montanhas do sul da Escócia, o que garantia proteção extra em caso de

assalto de bárbaros, como todos os não-romanos eram chamados.

A espiritualidade maior trabalhou para que a paz romana,

cunhada pela força das armas, viesse a imperar, como forma de

conquistar alguma estabilidade política, enquanto o idioma grego e

latino se tornavam (o grego já havia se tornado) línguas francas para

que a missão de Jesus se desenvolvesse satisfatoriamente e permitisse a

ação dos apóstolos após sua morte física. As pregações de Paulo seriam

inviáveis se o império romano não existisse na época e isso está ligado

à tolerância relativa que os romanos manifestavam com as crenças dos

povos conquistados e o sistema bem definido de leis que imperavam

dentro de suas fronteiras imperiais.

Os judeus sempre apresentaram um apego extraordinário às suas

tradições, mas quase sempre se mostraram receptivos às influências

externas, que acabaram moldando seu credo. Foi o contato com a

religião de outros povos, como o zoroastrismo medo-persa e babilônio

(de onde importaram o conceito de que existiria uma oposição entre o

Bem e o Mal), é que conceitos atualmente bastante estabelecidos na

cultura judaico-cristã se desenvolveram, como a noção de Paraíso,

inferno, um juízo final no fim dos tempos e muitos outros elementos

que parcela bastante significativa dos judeus do século I d. C.

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acreditava. A dominação romana, com seu imperador-deus, criou uma

série de conflitos contra o que os judeus consideravam como o cerne de

sua fé, ou seja, a negação de idolatria e a santidade do Templo,

considerado a casa verdadeira de Deus.

A maior virtude que o povo hebreu fornecia para o projeto

reencarnatório do mestre divino era sua dedicação à imagem de um

Deus único e infinitamente bom e poderoso. Nessa época, para o

nascimento do cristianismo, faltava apenas "tirar" Deus do Santus

Sanctorum, local do Templo onde julgava-se que o Pai residia, e

colocá-lo nas ruas e nas mentes das pessoas, na figura do Pai justo, mas

infinitamente bom e misericordioso, que saía da boca do mestre galileu

em inumeráveis parábolas que não foram registradas no cânone. Faltava

mostrar que o Deus de Abração nunca havia se afastado de seus filhos

terrenos, mas esses últimos sim tinham corrompido, pela sua ignorância

e falta de fé, o contato com o Altíssimo. A população que receberia o

mestre em seu seio apresentava os mesmos problemas que constituem

os maiores grilhões que impedem a nossa ascensão a planos de vida

mais elevados: o orgulho, a cobiça, o egocentrismo, o ódio e a

indiferença, associados a uma ignorância sem tamanho sobre a vida

espiritual (veja como as coisas pouco mudaram!).

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Foi nesse mundo violento, mas organizado por um poder

externo, que nasceu Jesus. Seu nascimento ocorria na momento do

amadurecimento da mentalidade religiosa judaica, com

questionamentos sobre a validade dos sacrifícios no Templo e a

necessidade de mudanças interiores para a obtenção da salvação

prometida pelo Deus de Abraão. Espíritos angelicais passaram a

acompanhar os pais e avós de Jesus, zelando para que o assédio de

forças das trevas fosse reduzido. Essas forças oriundas dos abismos

sabiam que o futuro messias deveria nascer de algumas das famílias

mais pias de Israel e cabe ressaltar que todos os ancestrais diretos de

Jesus foram alvo de assédio contínuo da perversidade institucionalizada

das legiões que seguiam os dragões da escuridão (nome bíblico dado

aos que as religiões cristãs literalistas denominam de demônios, como

Lúcifer, nome simbólico de um dos principais líderes dessas falanges

renitentes), mas graças à zelosa proteção individual e à postura familiar,

o assédio das sombras não teve qualquer efeito. Não podemos esquecer

que o próprio Jesus teve contato com um emissário das trevas, de forma

que a tradição da tentação no deserto tem fundo real, embora bastante

diferente do que nos é apresentado no evangelho.

A fome, miséria, violência desmedida e preconceitos de todo o

tipo faziam com que a vida fosse um verdadeiro desafio e espíritos

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especializados nos trabalhos de vampirismo e fascinação grassavam por

todo o império dos césares, sendo esses últimos as principais vítimas e

instrumentos de entidades dos círculos mais perversos que sabiam da

vinda do governante maior do orbe. O nascimento do enviado divino

significava que logo, do ponto de vista da escala temporal divina,

ocorreria novo expurgo planetário e as entidades que não estavam

afinadas com o progresso experimentariam novo degredo, semelhante

ao que haviam sofrido no passado imemorial, quando foram obrigados a

deixar seus mundos originais e convocados a mergulhar na carne dos

primatas e hominídeos do paleolítico terrestre, para assim contribuir

com o desenvolvimento intelectual do homem, enquanto tinham a

possibilidade de expiar seus próprios erros. Aqueles que não aceitaram

o reencarne se mantinham como "príncipes" das falanges trevosas e,

mesmo mantidos em contenção, podiam convocar seguidores em outros

planos para o assédio ao povo e o ataques aos enviados do Alto.

Todavia, é um mistério profundo as condições mais específicas

que reinavam no seio da família que iria abrigar o mestre, mas sabemos

que aqueles que vieram a ser seus pais e irmãos, em função dos nomes

que lhe são atribuídos nos textos bíblicos, eram pessoas bastante

religiosas e tudo na bíblia nos evidencia que eram judeus praticantes e

bastante zelosos com a fé, o que faria com que Jesus fosse conhecido

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como um "nazareno" (esse termo não tem relação com a vila de

Nazaré). Esse termo caracterizava um grupo de pessoas extremamente

religiosas e que cultivavam o zelo com a lei em sua forma mais

humana.

Cabe ressaltar que a Galiléia havia sido incorporada ao universo

judaico durante o reinado dos reis macabeus, dois séculos antes do

domínio romano, e para lá foram enviadas muitas famílias judias, além

de conversões de muitos dos antigos moradores. Assim, havia um certo

tom de preconceito entre os judeus da Judéia, de Jerusalém em especial,

contra os judeus da Galileia, posto que muitos desses últimos poderiam

não ser descendentes de Abraão, o pai dos judeus, o que não era o caso

de Jesus, um legítimo judeu da linhagem de Davi, com poucas

influências genéticas não semíticas.

Os familiares de Jesus haviam mudado para a Galiléia, vindos

da Judéia e essa mudança, nos anos que antecederam o seu nascimento,

ficou gravada nos anais do cânone nas Narrativas da Infância de Jesus,

onde se coloca erroneamente seu nascimento em Belém, quando o

mesmo ocorrera em Nazaré, embora parentes ainda residissem naquela

cidade da Judéia.

Muitos questionam se Jesus foi de fato o espírito mais evoluído

que já se aproximou da psicosfera terrestre e muitos espíritas defendem

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ou questionam tenazmente a idéia de Jesus ter sido "apenas" um

médium que trabalhou com um mentor ainda mais sublime do que ele.

Quando encaramos a humildade que brotava das mãos e atos de Jesus,

vemos que isso é irrelevante. Não concordamos com essa idéia, mas

podemos dizer com segurança que ele foi e sempre será o homem que

subiu na pedra do calvário pedindo perdão ao Deus Altíssimo em nome

dos seus pequeninos irmãos, que o estavam desprezando em prol de um

messias guerreiro e dotado de grande poder temporal. Jesus veio para

nos dar as armas da reforma íntima e não derrubar muralhas ou

fortificações.

Jesus nasceu e morreu judeu. Por isso precisamos conhecer um

pouco as diferentes nuances daquela fé do século I. d.C. Vamos?

1.2 O judaísmo no tempo de Jesus

Pode parecer enfadonho para um leitor moderno pensar nos

tempos do nascimento, vida e crucificação de Jesus. Tantos livros e

tantos filmes mostram os romanos e os judeus do Sinédrio; tantos

pontos de vista e a maioria deles é mutuamente excludente.

A quase totalidade dessas obras ou é doutrinária ou apresenta

Jesus como um homem moderno e libertário vivendo entre seres

humanos animalizados. Isso é muito diferente da realidade. Ele de fato

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era libertário, mas não podemos construir um bloco coeso do restante da

humanidade, como hoje também não podemos fazê-lo e pelos mesmos

motivos.

O judaísmo do período do segundo Templo (515 a.C. a 70 d.C.)

era extremamente rico e variado de forma que muitos preferem chamá-

lo de “judaísmos”.

Os judeus da época, como os cristãos atualmente, apresentavam

grande variedade de crenças, por vezes discordantes entre si, sendo

muito difícil traçar uma linha mestra capaz de unir a todos que se

sentiam ou se denominavam "judeus", tampouco os romanos eram

criaturas sem alma ou que sentiam excepcional prazer em gerar dor

alheia. Os invasores vindos de Roma eram práticos e procuravam

utilizar da menor dosagem eficaz de violência e controle para manter

suas províncias pagando o seu estilo de vida, como fica claro na

maravilhosa obra "Há 2000 Anos", psicografada por Francisco Cândido

Xavier, de autoria espiritual de Emmanuel.

O judaísmo experimentava uma grande mudança de perspectivas

nas décadas que antecederam o nascimento de Jesus. As expectativas

messiânicas, ao longo dos três séculos anteriores, haviam criado uma

sensação de que os momentos finais daquela época haviam chegado.

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Parecia que Deus Altíssimo tinha se cansado do homem comum e que o

julgamento final seria realizado a qualquer momento. Isso tudo em uma

intensidade muito maior do que nós mesmos, no século XXI, sentimos

Olhe que hoje existem milhares de igrejas que pregam o fim do mundo

a todo momento e isso não era nada comparado com o que havia no

século I d. C.

Esse era o clamor do milenarismo judaico, como hoje existe o

milenarismo cristão nas igrejas mais literalistas, esperando o

arrebatamento dos justos e o julgamento do ímpios, com o retorno de

Jesus em sua Glória de Guerreiro Celestial, com hordas de anjos

espalhando a luz com tambores, lanças e espadas flamejantes.

Ironicamente, Jesus pregava o perdão e a reforma íntima; as espadas

eram simbólicas e representavam a dor que segue à instauração da

ordem; a espada que se volta contra os erros de cada um e que necessita

ser extirpada com o burilamento pessoal.

O mestre de Nazaré, de certa forma, também sentia e refletia

esse estado de espírito apocalíptico, posto que conhecia a urgências das

transformações que a humanidade iria passar. Evitava exasperar as

expectativas milenaristas e apocalípticas daqueles que viam nele a

chegada do prometido, pregando e demonstrando humildade, e, ao invés

de procurar as diferenças entre a igreja nascente (nascia naturalmente,

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mesmo sem a aparente intenção de Jesus) e os judaísmos de então,

frisava a existência de denominadores comuns em todas essas filosofias,

como a existência de Deus, a ação de forças do bem e do mal sobre a

vida do homem comum, a necessidade de mudanças interiores para

atingir um estado que viesse a permitir ao homem comum entrar em

outro padrão de comunhão com o Criador. Mas mesmo esses elementos

não eram universais em todos os grupos judaicos. Como veremos a

seguir, com exceção da crença no Deus Pai, Único e Soberano, nada

mais existia que unificasse as concepções judaicas, de forma que

podemos dizer que existiam, verdadeiramente, diversos "judaísmos" nos

séculos I a.C. a I. d. C.

Para se compreender o sentido amplo da mensagem de Jesus,

deve-se procurar, inicialmente, entender a história do povo judeu, suas

frustrações e anseios, que levaram ao desenvolvimento de diferentes

expressões do judaísmo até a queda do Segundo Templo, em 70 d. C.

Não se pode esquecer que, em uma sociedade com fortes tendências

teocráticas, quando falamos de grupos religiosos, também nos referimos

a grupos políticos. Para muitos judeus, para termos uma idéia, Deus

morava no interior do próprio Templo, enquanto outros diziam que a

miséria se abatera sobre a nação porque o próprio Senhor se cansara do

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povo escolhido e havia se retirado, deixando o terreno aberto para os

tiranetes e seus enviados.

Mas o que significava ser judeu no século I d. C?

Essa questão pode parecer mesquinha e muito deslocada no

espaço e no tempo, mas temos que nos libertar de estereótipos

modernos. É claro que quase todos conhecem a imagem do judeu

ortodoxo caminhando com seu solidéu ou sabem de algumas de suas

crenças, como o Deus único, na chegada de um messias e na oposição

que fazem ao cristianismo e suas numerosas ramificações, porém não

podemos nos esquecer que, em nome de Jesus (obviamente sem o

menor consentimento dele) muitos milhões de judeus pereceram em

mãos cristãs. Também não podemos negar que o cristianismo se

desenvolveu dentro do judaísmo, como uma nova maneira de interpretá-

lo e se apropriando de todos os conceitos da religião mãe, mudando-

lhes o enfoque, algo semelhante ao que o espiritismo cristão fez com o

cristianismo literalista do passado.

Durante anos, pensou-se existir um judaísmo helenizado, na

Diáspora, entre os judeus que haviam saído da Palestina e utilizavam a

língua grega, e outro mais palestino e tradicional, na Judéia e Galiléia,

mas essa idéia teve de ser abandonada, visto que mesmo o judaísmo da

Palestina apresentava influências helenizantes, gregas, como a crença,

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cada vez mais aceita, da imortalidade da alma, ligada aos filósofos

atenienses, os mesmos que propunham a reencarnação, ou palingenesia.

Muitos desses filósofos gregos, como Sócrates e Platão, foram enviados

do Alto e tinham o objetivo de preparar o mundo do inconsciente

Mediterrâneo para o advento do Messias, do Cristo.

Alguns espíritas chegam a acreditar que Sócrates teria sido uma

encarnação prévia do mestre Jesus, enquanto outros o colocam como o

mesmo espírito de Buda e de outros mestres sublimes, o que não tem o

mínimo respaldo na literatura espírita mais tradicional, como a deixada

por Kardec e nosso querido Chico Xavier. Jesus NÃO reencarnou na

Terra, ele apenas encarnou aqui uma vez e foi crucificado pelo que

pregava. Nós, que o crucificamos, ainda não aprendemos o singelo

amor ao próximo que ele tanto solicitava como chave para o paraíso.

O entendimento da diversidade do judaísmo no início da era

comum depende de uma compreensão das mudanças do próprio

conceito de “ser judeu”. Até o século II a.C. o conceito de “ser judeu”

não estava bem estabelecido, sendo, por vezes, empregado para

designar um membro da tribo de Judá e, depois, um habitante da Judéia.

Porém, logo antes da ascensão dos reis macabeus ou hasmoneus, esse

substantivo passou a designar a todos que tinham Yaveh como seu Deus

Único e seguiam os preceitos da lei mosaica.

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O termo judeu era empregado especialmente pelos gentios, já

que os seguidores de Moisés se autodenominavam de “povo de Israel”.

Com as sucessivas conquistas da Palestina por assírios, babilônios,

medo-persas e macedônios, ocorreu um enfraquecimento do

componente territorial na mentalidade e identidade judaicas e se

fortaleceu o fator cultural e religioso entre os judeus, como podemos

ver até no presente, mesmo com a recriação do Estado de Israel em

1948.

A diversidade cultural dentro do judaísmo no século I d. C. não

é compreendida totalmente nos dias de hoje, mas podemos dizer que a

mesma era muito grande e inimaginável há alguns anos. Vários grupos

religiosos disputavam a interpretação da lei mosaica, baseada no

Pentateuco e nas tradições de seus ancestrais. Havia pesada discussão

entre os judeus para se saber o que era ou não santo e sagrado e muitos

livros judaicos foram considerados inspirados por Deus e depois

abandonados. Em outras palavras, NÃO HAVIA UM CÂNONE

JUDAICO ESTABELECIDO, ou seja, os judeus não se entendiam

sobre o que devia constar ou não daquilo que hoje chamamos de bíblia.

Não existia uma fé judaica normativa tão bem estabelecida e a

maior dificuldade é se determinar com precisão o que era ser judeu

naqueles dias. O próprio livro do Apocalipse, também conhecido como

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o Apocalipse de João, demorou para ser incluído no cânone cristão

porque muitos acreditavam que esse era um livro essencialmente judeu.

Da mesma forma, como analogia, seria muito interessante nos

questionarmos o que é ser cristão atualmente. Por exemplo, muitos não

consideram, erroneamente na nossa opinião, o espiritismo como parte

do cristianismo.

Não existiam limites muito nítidos da fé judaica logo após o

retorno do exílio na Babilônia, no período do Segundo Templo e

mesmo no início da era rabínica. Existia apenas um conjunto de crenças

reconhecidas como de origem divina. De tempos em tempos, novos

líderes emergiam e redesenhavam os contornos desses judaísmos, de

forma que até a destruição do segundo Templo e o surgimento do

rabinato, a fé judaica era como uma trança formada de muitos fios que

se mantinham mais ou menos unidos pela fé na providência divina e na

existência de um único Deus.

No século I d. C., pelo menos até o concílio de Iabné (Jamnia),

não havia um cânone universalmente aceito pelos judeus, sendo que, até

então, a unanimidade era a aceitação dos livros da Torah (Pentateuco).

Em segundo plano, também considerados pela maioria dos judeus como

de inspiração divina, tinham-se os Profetas (Neviim) e os Escritos

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(Ketubim), formando com suas iniciais a palavra TNK (TeNaK), o nome

da bíblia em hebraico.

Os judeus reconheciam a existência de um reino divino habitado

por seres divinos, como anjos e arcanjos, e adoravam o Deus único

através de sacrifícios e oferendas de produtos alimentares, sendo que,

como veremos a seguir, esse ritual era realizado no Templo e devia

satisfazer às necessidades individuais e coletivas. O judaísmo era uma

ilha de monoteísmo em meio ao mar politeísta, o que ajuda a entender

os motivos pelos quais se aferravam tanto á sua fé e a Deus.

Além dessa singularidade, a religião de Jesus era a única que

tinha regras de conduta e tradições redigidas e mantidas em um livro, o

qual era aceito, independentemente de qual era o cânone adotado pelos

diferentes grupos judeus, como inspirado pelo próprio Deus. Daí o

papel desempenhado pelas muitas escrituras citadas pelo messias de

Nazaré e a importância que os primeiros judeus cristãos davam aos

livros do Novo Testamento e do Antigo Testamento. Os muçulmanos

consideravam, nos séculos seguintes, os judeus e os cristãos como

sendo os "povos do livro".

Nesse amplo sentido, hoje vemos os cristãos tradicionalistas

aferrados a uma bibliolatria que não permite a livre discussão e

compreensão dos livros do cânone posto que, na opinião desses nossos

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dedicados irmãos, tudo é sagrado e a interpretação deve ser literalista

sempre que possível. O mundo muda e tudo muda com ele, inclusive o

sentido que a mensagem divina deve traz. Não podemos viver hoje com

os hábitos e costumes do mundo do século X a. C.; Jesus não vivia e

adaptava os antigos costumes ao seu mundo e isso criou muitos

problemas para ele e os primeiros cristãos, no seio da comunidade

judaica mais tradicionalista.

Um dos poucos pontos que separavam um judeu grego, ou da

Diáspora, de um cidadão de língua grega e de origem não judaica era a

negação por parte do primeiro de todo tipo de idolatria. Como a

existência de ídolos e deuses maiores e menores caracterizava toda a

cultura greco-romana, a repulsa por seguir e participar das atividades

sociais, quase sempre dedicadas aos deuses, tornava a comunidade

judaica uma entidade mais separada e fechada, mal quista pelos de fora.

Por essas características, os hábitos judeus eram ridicularizados pelos

romanos e demais povos considerados cultos. Entretanto, no mundo

romano, as tradições ancestrais tinham muito valor e todos reconheciam

que a fé judaica era antiga e seus praticantes eram relativamente

respeitados, o que não ocorria com os primeiros cristãos, que eram

considerados culpados por todo tipo de acidente natural, uma vez que

não ofereciam tributos aos deuses.

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Para os judeus, o Templo era visto como a morada de Deus, o

que explica porque eles o defendiam com toda a gana e dá uma

conotação teológica muito especial á passagem em que Jesus,

supostamente, faz a expulsão daqueles que, em sua opinião,

profanavam-no. Mesmo as seitas mais sectárias admitiam a importância

do Templo, embora algumas tenham abandonado o contato com o

mesmo por considerarem-no profanado pelas sucessivas linhagens de

Sumos Sacerdotes. Alguns grupos, como as primeiras comunidades de

judeus cristãos, estavam procurando uma alternativa de louvar a Deus

que não envolvesse o sacrifício de animais para a remissão dos pecados,

mas não tiravam o Templo do papel de centro do judaísmo e casa de

Deus. Lembrem-se que, por muitos anos após a crucificação de Jesus,

os apóstolos pregavam aos frequentadores do Templo e o irmão do

mestre, chamado de "Tiago o irmão do Senhor" por Paulo de Tarso,

encontrou ali a morte no ano 62 d.C.

Dentro do complexo Judaísmo-Templo ainda merece destaque o

papel do Sumo Sacerdote judeu, que era a maior autoridade dentro da

comunidade judaica, se relacionando diretamente com as autoridades

romanas. Durante o período romano, com a eliminação da realeza

judaica e o exercício do poder temporal pelo invasor, a figura do

sacerdote por vezes se confundia com a de líder político, principalmente

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em uma sociedade teocrática que até no presente sente dificuldades de

criar um estado laico. Vejam os noticiários diários sobre a Palestina e

sintam a eterna luta entre o sagrado e o laico-profano naquelas colinas.

A circuncisão e as regras alimentares também eram fatores de

união entre os judeus e apenas aqueles mais helenizados, que

praticamente não se consideravam parte do judaísmo, é que deixaram de

respeitá-las. Biblicamente elas representam os sinal de que o indivíduo

fazia parte do rebanho do Senhor, procurando se manter puro para a

comunhão com Ele. Entre os primeiros cristãos, se é que podemos

chamá-los assim, a obrigatoriedade da circuncisão dos gentios e a

observância das regras de dieta tornou-se um ponto nevrálgico de

discussões e está no centro da narrativa dos Atos dos Apóstolos, que

deveriam ser chamados de "Atos de Paulo", que representou o grupo

vitorioso, pelo menos em termos numéricos, entre os descendentes dos

primeiros cristãos.

Nessas contendas filosóficas, de um lado Paulo, judeu grego e

culto, do outro, os apóstolos rudes e ignorantes de Jesus; de um lado

aqueles que pregavam para os não-judeus, do outro lado Pedro e a

maioria dos apóstolos de Jesus, que acreditavam que, para ser cristão, o

indivíduo deveria ser primeiro judeu e seguir as leis judaicas. O real

motivo para essas discussões se deve ao fato de que entre os primeiros

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seguidores de Jesus, judeus palestinos, incluindo aí seus próprios

irmãos, havia a vívida noção de que ainda eram judeus e ninguém se

atrevia a dizer que haviam, de fato, criado uma comunidade separada do

judaísmo. Paulo tinha razão ao lembrar o caráter universal e libertário

da mensagem cristã, mas, infelizmente, nada sobrou dos pensamentos

de seus opositores, que, ao contrário de Paulo, haviam caminhado pelas

colinas da Galiléia com Jesus.

O sectarismo judeu no período intertestamental compreendia

uma série de nuances diferentes e muitas seitas surgiam e desapareciam

de uma hora para outra. Aparentemente, o surgimento desses

movimentos de reforma remonta o domínio persa sobre a Palestina e

sua maturidade foi atingida por volta do século II a.C., quando sua

legitimidade no seio da população judaica foi plenamente estabelecida.

Esses movimentos tiveram um fim brusco nos anos que se seguiram à

destruição do Templo de Jerusalém, em 70 d. C.

Esses grupos tinham maior penetração nas populações urbanas,

com pouca influência no campesinato, e acabavam criando polêmicas

contra as instituições sociais, em particular contra o Templo, sacerdotes

e suas práticas religiosas, como a pureza ritual, o sábado, a dieta, o

casamento, de forma que a força motriz desse sectarismo estava contida

na prática religiosa e não na formação teológica da população.

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O historiador judeus Flávio Josefo descreve as principais

divisões dos judeus como fariseus, saduceus e essênios, mas nos parece

improvável que os judeus palestinos seguissem apenas essas três

orientações espirituais e, até certo ponto, políticas. Muitos outros

grupos foram omitidos ou por falta de representatividade ou por não

terem se mostrado, na opinião de Josefo, relevantes. Talvez menos de

5% da população se afiliavam a alguma dessas escolas religiosas e de

filosofia. Esse historiador judeu do século I d. C., em sua obra intitulada

Antiguidades Judaicas, introduz um quarto grupo, oriundo da Galiléia,

denominado de Quarta Filosofia, com nítidos traços dos sicários, um

grupo ultranacionalista judeu.

O período de transição entre o “cativeiro” na Babilônia e a

reconstrução do Templo pode ter colaborado para exacerbar a

observância das regras ancestrais. Após o turbulento domínio

helenístico, nos séculos III e II a. C., no qual vários governantes

tentaram impor leis, costumes e rituais pagãos aos judeus, chegando a

ponto de proibir a circuncisão, teria ocorrido um renascimento da

identidade, língua e tradições judaicas, que culminaram com a revolta

dos macabeus, liderada, inicialmente, por Judas Macabeus. Durante

alguns anos, os judeus conseguiram até a independência política

temporária, porém, os próprios macabeus, em função de suas divisões

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internas, acabaram por jogar o país em um estado permanente de guerra

civil, atirando-o no colo do Império Romano, pelas mãos do general

Pompeu, como parte da província romana da Síria.

A revolta macabéia se desenvolveu sob o apoio de um grupo de

judeus denominados de “assideus (ou hassidim, em hebraico)”, que se

caracterizavam pelo apego à Lei e renascimento dos ideais proféticos.

Esperando o surgimento de um estado teocrático puro e que

restabeleceria a pureza do culto, esses assideus apoiaram os Macabeus,

mas logo ficaria patente que os novos soberanos se diferenciavam muito

pouco de seus predecessores estrangeiros e esse grupo religioso se

cindiu em outros, originando os essênios e fariseus mencionados por

Josefo. Contudo, as diferenças na interpretação da lei mosaica e

tradições orais já existiam antes do século II a.C. e apenas se

exacerbaram com as crises que se seguiram.

Na lenta evolução e cristalização das idéias, os hassidim que se

mantiveram politicamente ativos deram origem aos fariseus, enquanto

que um grupo mais radical e isolacionista daria origem aos essênios

que, liderados por um personagem denominado de Mestre da Justiça ou

da Retidão, teriam se estabelecido em diferentes comunidades no

deserto e na Judéia. Esses essênios acabaram absorvendo idéias

estranhas ao judaísmo tradicional, adquirindo conceitos vindos do

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zoroastrismo e se isolando em locais ermos e comunidades mais

fechadas como reação à penetração da cultura e língua gregas na

Palestina.

As fontes sobre esses grupos “filosóficos” judaicos são

problemáticas, uma vez que praticamente toda a literatura judaica

posterior à destruição do segundo Templo tende a atribuir aos fariseus

toda sorte de pensamentos, ficando os demais grupos quase sem serem

abordados. Também são comuns os textos que tornam o farisaísmo

como sinônimo do judaísmo rabínico, que se desenvolveu após a

revolta de anti-romana de 66-74 d.C., uma vez que após essa data

apenas os fariseus sobreviveram como grupo coeso, talvez por serem

mais numerosos, enquanto os demais foram completamente suprimidos

ou destruídos pelos romanos.

Na grande revolta, a participação de todos os grupos judeus da

Judéia e, em extensão menor, Galiléia, foi significativa. De acordo com

Josefo (Guerra dos Judeus), fariseus e saduceus forneceram alguns

membros que, dentro de uma coalizão mais moderada, governaram os

rebeldes por um tempo, enquanto os essênios, vistos até então como um

grupo que apresentava total aversão ás armas, forneceram um general e

resistiram de forma impressionante, até mesmo irracional, aos romanos,

enquanto os sicários, verdadeiros guerrilheiros nacionalistas da época,

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participaram de diferentes formas, culminando com a chacina da

fortaleza de Massada nas bordas do sul do Mar Morto, quando o

Segundo Templo já estava em ruínas.

Naquela época, a Galiléia era um ambiente cosmopolita, com

forte influência helenizante nas maiores cidades, uma das quais, Séforis,

ficava a poucos quilômetros de Nazaré, sugerindo que Jesus teria

sofrido influências de filósofos cínicos em sua formação. Em realidade,

essas filosofias tinham grande penetração pela visão mais

espiritualizada que transmitiam às populações urbanas. Nessa região do

mundo, o cinismo e o estoicismo estavam se fundindo com filosofias

populares, levando ao desapego às coisas e o abandono do mundo. O

filósofo Sêneca traduz bem esses pensamentos na frase “Um telhado de

palha costumava cobrir homens livres; sob um telhado de ouro e

mármore há apenas escravidão”. Indubitavelmente Jesus propagava

essa idéia de desapego aos bens materiais e hoje sabemos, no

espiritismo, o quanto o apego material é causa de sofrimento para o

espírito que acaba de deixar o mundo carnal.

A conversão tardia de muitos galileus gentios ao judaísmo, no

período dos Macabeus, fez com que muitos judeus da Judéia

considerassem que os galileus eram apenas superficialmente judeus, daí

alguma desconfiança em relação a Jesus, um judeu pio, praticante, cujas

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raízes familiares remetiam diretamente ao tempo dos patriarcas. Nesse

sentido, é importante frisar que os judeus não encontraram nada de "não

judeu" em Jesus e isso os incomodava. Sua interpretação peculiar da lei

mosaica gerava discussões variadas e acaloradas, mas estavam dentro

do que a própria lei permitia e aceitava como adequado. Isso também

perturba muitos cristãos modernos que nutrem profundo anti-semitismo.

Essas características fariam do judaísmo galileu, que logo daria

origem ao cristianismo judeu, uma versão que valorizava o

comportamento piedoso e a pureza interior como contraposição aos

estereótipos importados do judaísmo formalista. Além de Jesus, a

Galiléia produziu muitos homens piedosos e carismáticos, como Honi e

Hanina ben Dosa, que possuíam mediunidade de cura e de efeitos

físicos e cujos nomes estão no Talmude. Esses homens, tidos como

santos, eram adorados e respeitados pela população da base da pirâmide

social pela proximidade que pareciam ter com Deus, a despeito de

serem menos literalistas com os códigos de leis, como Jesus também o

fazia.

1.3 As seitas judaicas e suas peculiaridades.

Quando nos referimos às palavras “seitas, sectos ou grupos”

judeus no século I d. C., nos referimos a indivíduos que desenvolviam

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todos os aspectos de sua vida exclusivamente dentro do seu grupo,

evitando completamente o contato com os demais, algo inimaginável

entre as principais agremiações cristãs do presente. Assim, entidades

como o casamento, festas, comércio, hospitalidade eram, com poucas

exceções, restritas à comunidade religiosa em que o indivíduo e seus

similares mais próximos se inseriam. Quem não fazia parte do grupo,

não fazia parte do mundo judaico; era tão estrangeiro quanto os

romanos.

Do século II a.C. até II d.C. o ambiente palestino esteve

permeado de promessas messiânicas e de líderes carismáticos com

marcada ênfase escatológica (pregavam a iminência do juízo final),

gerando os profetas do final dos tempos ou apocalípticos, como João, o

Batista, para citar apenas aquele que é de conhecimento geral da

comunidade cristã. Vários documentos milenares encontrados, em

1947, no platô de Qumran, mostram uma preocupação com a chegada

eminente do reino de Deus, trazendo expressões que eram consideradas

uma exclusividade dos primeiros autores cristãos.

Para entendermos o cristianismo primitivo e seu messias, nosso

amado mestre Jesus, temos de conhecer o básico das seitas que com

eles partilhavam as mentes da população judaica. A seguir,

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caracterizaremos brevemente os principais grupos judeus encontrados

na Palestina na época de Jesus.

1.3.1 Os saduceus

Seus integrantes representavam uma parcela significativa dos

principais postos na hierarquia do estado judeu e o mais elevado extrato

sócio-econômico da época, sendo que três dos soberanos macabeus

foram Sumo Sacerdotes saduceus.

Eram os mais ricos e poderosos. Durante grande parte do

reinado da dinastia macabéia, dominaram as atividades do Segundo

Templo e exerciam esse domínio de forma extremamente conservadora.

Foi apenas durante o período da rainha Salomé Alexandra (76-69 a.C.)

que os saduceus não estiveram no controle do poder religioso e político

do estado judeu.

Sabemos que Anás e Caifás (os principais líderes judeus durante

o julgamento de Jesus) eram saduceus, sendo que dos 60 anos de

administração romana direta, em Jerusalém, em 34 deles os saduceus

estiveram no poder e outros tantos anos mais sob a égide dos soberanos

macabeus. Contudo, não existe um único texto escrito que os retrate

com imparcialidade, de forma que temos de ter muito cuidado quando

incorporamos informações sobre esse grupo.

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Pelas informações que o espírito Eleazar nos passou, ele mesmo

um fariseu (adversário dos saduceus), acreditamos que os integrantes

desse grupo procuravam manter o seu domínio econômico sobre a

população palestina e para tanto utilizavam a imagem de apego à lei

mosaica e nada que pudesse interferir nos seus negócios era aceito ou

permitido. Segundo esse espírito, esses judeus e os essênios

representavam os grupos mais radicais do judaísmo, embora em

extremos diferentes. Uma vez que a riqueza pessoal era bastante

valorizada como símbolo da boa relação do homem com Yaveh, os

saduceus se esforçavam para manter a riqueza em seu grupo familiar e

não se importavam em difundir suas idéias pessoais sobre os tempos

vindouros, o qual não contemplava grandes mudanças, motivo pelo qual

não apoiavam qualquer grupo nacionalista judeu e procuravam

estabelecer boas relações com os dominantes, independente de quem

fossem. Assim, eles teriam muitos motivos para se livrar rapidamente

de Jesus.

A observância das leis alimentares e do sábado parece ter sido

rigorosa entre os saduceus, comparáveis apenas aos essênios. Para os

saduceus, as expectativas escatológicas e apocalípticas eram uma

ameaça e isso ajudou a cristalizar o sentimento que os levaria a eliminar

Jesus, uma ameaça real à sua dominação.

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Jesus: homem e espírito

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Além disso, é sabido que, enquanto Jesus tinha um canal aberto

de discussão com os fariseus, não lhe foi permitido dialogar de forma

aberta e livre com os saduceus, com uma única exceção.

Esse antagonismo logo aparece de maneira clara e fica evidente:

os cristãos eram, de maneira geral, oriundos dos extratos inferiores da

sociedade, enquanto os saduceus eram o topo da pirâmide social; os

cristãos esperavam o reino de Deus, com seu banquete farto e bem

distribuído, enquanto a fartura da vida saducéia era considerada um

presente divino, de forma que esse grupo não tinha necessidade de

esperar um reino de Deus em outro plano. A mesa dos saduceus era

farta, para que então esperar fartura após o desencarne?

Os judeus cristãos tinham numerosas idéias escatológicas

ligadas ao reino da bem aventurança, no final dos tempos, com a

ressurreição dos mortos, enquanto os saduceus sequer pareciam

acreditar na vida após a morte.

A ausência de discussões maiores entre Jesus e saduceus, com

exceção da discussão sobre ressurreição, implica que os dois grupos se

mantiveram separados, se encontrando apenas, talvez, nas Narrativas da

Paixão, quando Jesus seria colocado frente a frente com os membros

saduceus do Sanedrim, ou Sinédrio, onde os principais líderes eram

saduceus.

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Segundo Josefo, um judeu palestino da “alta sociedade” que

sabia muito bem como sobreviver a crises e ficar sempre do lado do

vencedor, os saduceus não acreditavam que Deus viesse a interferir nas

atividades cotidianas e que o destino de cada um era traçado pelas suas

próprias atitudes. Não aceitavam nenhum texto que estivesse fora do

Pentateuco mosaico (Gêneses, Êxodo, Levítico, Números e

Deuteronômio), não reconhecendo os profetas e tampouco as tradições

dos ancestrais. Por outro lado, sendo um fariseu, adversário, até certo

ponto, dos saduceus, Josefo pode estar exagerando.

Com isso, podemos entender porque perguntaram a Jesus sobre

ressurreição e o mesmo respondeu não utilizando nenhum dos profetas

(Daniel 12:1 é o único texto do Antigo testamento que inequivocamente

se refere ressurreição dos mortos, enquanto em Isaías e Salmos existem

elementos que a sugerem) e sim Êxodo (3:6), aceito pelos saduceus. Os

grupos mais marginalizados da população judaica, que julgavam a vida

injusta, é que deveriam sonhar com a justiça divina. Como vemos,

tinham muitas semelhanças com aqueles que, atualmente, falam de

Deus desprezando o sofrimento dos menos afortunados, como se Ele

fosse mais pai de uns do que de outros.

Esse grupo judeu parecia não acreditar na existência de seres

angélicos ou na atividades desses no mundo material, além de espíritos,

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como descrito em Atos dos Apóstolos (23:8), e de algum tipo de vida

após a morte. Para eles, Deus premiava o bom fiel com uma vida longa

e farta, mas não com uma vida futura. Como Josefo situa esse grupo na

elite intelectual e social de Israel, é bem provável que o sonho de uma

vida próspera e sem males não viesse a seduzi-los significativamente,

posto que já a possuíam. Assim, aceitar como verdadeiro um conceito

de que “os últimos serão os primeiros” não estava nos planos saduceus

e se o Pentateuco nada fala sobre o tema, por que não ignorar o restante

da tradição judaica, particularmente os pontos acima, oriundos de

religiões da estrangeiras?

Com a destruição do Templo, em 70 d. C., a estrutura de poder

montada pelos saduceus ruiu. Essa catástrofe associada com sua

intransigência característica acabaram por levar ao fim desse grupo

judaico após a revolta anti-romana. Essa incredulidade em relação à

vida após a morte e a crença na inteira responsabilidade do homem para

com o seu próprio destino fez com que os saduceus não apresentassem

quaisquer anseios escatológicos, salvo alguma alusão a um rei da

linhagem davídica, mas em um nível extremamente elementar, muito

diferente dos demais grupos antes da segunda revolta dos judeus, em

135. d. C., quando o messianismo judeu sofreu um segundo e definitivo

golpe.

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Os saduceus foram os que mais sofreram com a queda do

Templo e com a visão mais espiritualizada que se desenvolveu no

judaísmo e no cristianismo. A perda das condições materiais e a falta de

fé em um "porvir espiritual" representaram o último e derradeiro golpe.

1.3.2 Os fariseus

O judaísmo farisaico possuía muitos pontos em comum com seu

sucessor, o judaísmo rabínico, desenvolvido a partir do século II d.C. e

que se estende até o presente. Os fariseus advogavam que o destino de

cada um era traçado pelas suas próprias atitudes, semelhante ao

pensamento cristão de “dar a cada um segundo suas obras”, associado

aos desígnios divinos. Além do Pentateuco, reconheciam os profetas e

as tradições de seus ancestrais, que constituíam o halakhot, que foi

incorporado na elaboração da Mishná.

Eles eram afeitos a discutir os aspectos práticos da lei e somente

o faziam com pessoas que consideravam dignas e verdadeiros

adversários de idéias, pessoas de honra, daí alguns estudiosos modernos

terem sugerido que o próprio Jesus tenha sido instruído por um mestre

fariseu ou foi, ele próprio, um deles. Quase todas as vezes que um

fariseu discute com Jesus, ou o está testando ou demonstrando grande

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apreço pelo seu caráter e conhecimento. Algo muito diferente do

julgamento que fazemos deles.

Os fariseus acabaram por se chocar com os grupos que detinham

o poder sobre as terras férteis e o farisaísmo se desenvolveu à medida

que a urbanização tomou conta da Judéia. Eles se mostravam mais

modernistas do que os demais grupos, acreditando na flexibilização da

Torah, visto que a vida urbana dificultava a aplicação estrita de todas as

Leis do Pentateuco. Hoje seriam considerados modernistas e

progressistas.

Essa forma de interpretar as leis se disseminou rapidamente na

população mais culta das cidades e exacerbou o papel da sinagoga como

espaço de difusão dos pontos de vista farisaicos, particularmente depois

da queda do Templo de Jerusalém, o que culminou com o

desenvolvimento do judaísmo rabínico. O contato de Jesus com esse

judaísmo pode ter se dado na pequena sinagoga de Nazaré e,

indubitavelmente, na bela e portentosa sinagoga de Cafarnaum. Muitos

dos maiores líderes fariseus citados no Novo Testamento sentem apreço

por Jesus e isso parece refletir a verdade.

As regras alimentares e de preparo dos alimentos eram seguidas

à risca, mas os fariseus valorizavam a interpretação mais equilibrada

das escrituras e enalteciam a discussão de idéias com pessoas que

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julgavam capazes de lhes oferecer algo que julgassem doutrinariamente

valioso, como Jesus, o nazareno. A possível relação de Jesus com os

fariseus é reforçada pelo fato dos fariseus chamarem-no, por vezes, de

mestre ou raboni, demonstrando o tom respeitoso e porque o com o

qual o mestre era tratado. Como Jesus, mas não profundamente quanto

ele, os fariseus criaram uma interpretação mais s tolerante e reformista

das escrituras, a despeito do sentido atualmente atribuído à palavra

“fariseu”, como um fanático irracional.

Nesse tocante, o espírito Eleazar defende que os judeus que

defenderam Jesus no Sinédrio eram fariseus e o faziam por ver nele um

homem sábio e justo, como outros que vinham da Galiléia. A

capacidade de argüição fazia de Jesus alguém com o qual os fariseus se

sentiam tocados a trocar experiências e muitos deles ofereceram auxílio

aos primeiros cristãos e ao próprio mestre nazareno. Lembrem-se de

José de Arimatéia, Nicodemos e mesmo Lázaro, de formação

inicialmente farisaica, além do rico dono da casa em que se deu a última

ceia.

Infelizmente para Eleazar, um rico e fanático religioso fariseu, o

mestre Jesus parecia incorporar algo novo ao judaísmo e, por apego à

idéia de um messias poderoso e guerreiro, se levantou contra o messias

galileu, na reunião do pequeno Sinédrio judaico, na casa do sumo

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sacerdote, colaborando com a crucificação do mestre. Enquanto suas

comunicações mediúnicas eram colhidas, lágrimas copiosas de

arrependimento caíam freqüentemente da face desse homem que

reencarnou dezenas de vezes depois daqueles dias fatídicos, mas que

ainda carrega o drama íntimo de suas atitudes, necessitando de muito

apoio para a conclusão de seus depoimentos por parte dos que

acompanhavam as reuniões mediúnicas.

Por outro lado, segundo Eleazar, a colaboração de alguns dos

fariseus com o mestre foi o que motivou a reunião do Sinédrio na casa

do Sumo Sacerdote e o objetivo da mesma era determinar até que ponto

as figuras mais relevantes do Sinédrio estavam envolvidas ou podiam

ser incriminadas por colaborar com Jesus, uma vez que o prefeito

romano, Pilatos, o esperava. Com o tempo, nós aumentamos o papel

dos fariseus e demais judeus na crucificação de Jesus e reduzimos a

importância dos romanos no processo e isso é uma grande falha que

somente pode ser explicada pelo fato de que o cristianismo se alastrava

pelo mundo romano, após a grande revolta judaica, e não seria bom

falar da responsabilidade dos romanos na morte do messias,

principalmente para um público romano.

Não se pode esquecer que Tiago, irmão de Jesus, era

considerado o Justo, pelos fariseus, em função de seus conhecimentos

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da lei mosaica, retidão pessoal e pela fé no Deus único. A morte desse

irmão de Jesus, em 62 d.C., iniciou uma grande revolta entre os fariseus

contra o Sumo Sacerdote Ananias, que o havia condenado ao

apedrejamento, segundo nos conta Josefo. Obviamente essa indignação

dos fariseus e a deposição do judeu mais importante do Império

Romano, pela morte de Tiago, o Justo, somente ocorreram porque o

irmão de Jesus gozava de grande apreço dos fariseus e outros grupos

judaicos. Pela descrição de que os textos dos primeiros pais da Igreja

primeva fazem desse personagem, ele não teria um comportamento

típico dos fariseus, assemelhando-se mais ao dos essênios, com a

exceção de que Tiago freqüentava o Templo de Jerusalém e os essênios

não o faziam.

Na concepção farisaica, após a morte, o indivíduo seria

reconstituído em um novo corpo físico para gozar a vida da boa

aventurança, algo como a ressurreição do corpo. Lembre-se que não

havia um conceito de espírito bem estabelecido naquela época.

Os fariseus eram considerados piedosos e não procuravam se

afastar dos demais judeus. Embora os apóstolos cristãos tivessem uma

posição desfavorável a eles em graus variados, pelos menos relatam que

os fariseus eram vistos nas mesmas sinagogas que os outros judeus,

embora utilizassem adereços que permitiam sua identificação. Os

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fariseus representavam a ala reformista do judaísmo e até participavam

de refeições com membros de outros grupos, como Jesus. Cabe ressaltar

que o farisaísmo, o "essenismo" e o cristianismo eram seitas judaicas

que valorizavam muito o "partilhar o pão", tão em voga no presente. A

mesa era o centro do mundo desses grupos; dividir o pão era semelhante

ao esperar o reino de fartura que logo viria a todos os judeus pios. Paulo

tratou de espalhar esse conceito para os cristão do mundo greco-

romano.

O tom das discussões entre Jesus e os fariseus, para um leitor

moderno, pode parecer acalorado, mas isso era absolutamente comum

para a época. Assim, a imagem normalmente negativa sobre os fariseus,

nos evangelhos, é motivada principalmente pelo ambiente em que as

duas comunidades conviviam nas vésperas da revolta judaica e nos anos

subseqüentes, e não 40 anos antes, quando Jesus caminhou na Palestina.

Nos primeiros tempos, os textos cristãos descrevem os fariseus de um

prisma menos desfavorável, enquanto os escritos mais posteriores,

como o Evangelho de João, colocam os fariseus em condições

realmente deploráveis, como a encarnação do preconceito entre os

homens.

Jesus via as discussões com os fariseus como oportunidades para

discutir o cerne de sua mensagem: o reino de Deus entre os homens.

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Nada há em seu comportamento, pelo menos no início do seu

ministério, que evidencie alguma discordância séria com os fariseus.

Ele os criticava por vivenciarem a lei apenas nas palavras e não nas suas

atitudes, colocando que é o que sai da boca do homem que o torna

impuro e não aquilo que por ela entra. Essa crítica se faria muito útil em

qualquer religião moderna, onde criticar os outros é mais fácil do que

vivenciar uma real modificação do seu estado íntimo de espírito, algo

tão freqüentemente discutido nas maravilhosas obras mediúnicas

enviadas ao nosso plano pelos espíritos Emmanuel e André Luiz,

apenas para citar dois dos mais conhecidos do público não espírita. A

reforma íntima é algo que ainda está distante da compreensão humana.

O perdoar para nos habilitar ao perdão divino era algo ainda

inimaginável por aqueles homens, incluindo aí os próprios discípulos do

mestre.

A importância da reforma íntima e a distância de pureza de

aparências em detrimento da pureza de coração era o principal ponto de

fricção entre as palavras de Jesus e os homens da época, fossem ou não

fariseus. Para maiores esclarecimentos sobre o papel da reforma íntima,

recomendamos o livro intitulado "Reforma íntima sem martírio",

psicografado por Wanderley Oliveira e de autoria espiritual de Ermance

Dufaux. Nesse sentido, Jesus provavelmente também criticaria os

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espíritas modernos em tons tão vívidos quanto aqueles que atingiam os

fariseus, uma vez que ainda temos o mesmo hábitos de ver o cisco nos

olhos dos outros, enquanto esquecemos a trave em nossos próprios.

Como os fariseus se tornaram o único ou, pelo menos, o mais

influente grupo judaico depois da primeira revolta contra os romanos, a

caracterização dos mesmos, pelos primeiros cristãos, com tons

caricaturais e pejorativos somente vem a enfatizar que as duas

comunidades disputavam espaço na mente do povo comum da

Palestina. Essa divergência estava mais ligada aos aspectos de

“propaganda e marketing” do século I e II d. C. e não uma descrição de

fato dos oponentes farisaicos. Algo muito semelhante ao que assistimos

atualmente quando escutamos as caracterizações que as religiões

literalistas fazem do espiritismo ou do movimento umbandista. Os

espíritas são vistos com a personificação do mal e representam o que

existe de pior no espectro religioso disponível, o que não condiz com a

realidade.

Como seria bom se todos os cristãos se conscientizassem das

suas semelhanças, que estão muito acima das suas diferenças, e se

tratassem como irmãos. Imaginem como seria bom se nós espíritas

desenvolvêssemos a capacidade de sorrir e receber os demais em nossas

reuniões como os evangélicos normalmente o fazem? Lembrem-se dos

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louvores e alegria que eles possuem. Pouco exploramos nesse sentido;

nossas reuniões são, por vezes, enfadonhas e entristecidas aos olhos dos

mais jovens e uma música de boa qualidade e devocional seria uma boa

idéia. Perdemos a oportunidade de crescer quando ficamos presos aos

estereótipos.

Além desse aspecto de competição entre os primeiros judeus

cristãos e os fariseus, tem-se que esse último grupo, ao se tornar a força

preponderante dentro da fé judaica, passou a antagonizar cada vez mais

ativamente a nova fé cristã, judaica no início e cada vez mais porosa e

permeável a idéias greco-romanas, que, com a incorporação de número

cada vez maior de gentios no seio do cristianismo, forçou esse último a

abolir parcial ou totalmente as regras alimentares, circuncisão, bem

como outros aspectos da lei mosaica e adotar conceitos estranhos ao

judaísmo, alguns até antagônicos a esse, como a eucaristia, pelo menos

na forma que essa última chegou até nós. Lembremo-nos que a alusão

ao pão e vinho, como carne e sangue de Jesus, simboliza quase uma

refeição antropofágica e isso era algo inimaginável para um judeu pio

do século I d.C., sendo possível que o ritual tenha se desenvolvido

rapidamente nos primeiros anos após a morte de Jesus, em referência à

Última Ceia (uma refeição de despedida e não uma ceia pascal),

posteriormente incorporada na narrativa desse evento.

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De qualquer forma, grande parte das descrições pejorativas que

os evangelhos trazem sobre esse grupo é marcada por décadas de ranço

entre as comunidades e não reflete a realidade dos fatos da época de

Jesus, sendo que o papel desempenhado pelos judeus no julgamento e

na crucificação do Mestre galileu se encontra exacerbado pela

necessidade de se culpar os arquirrivais na morte de um homem divino

que havia sido rejeitado pelo “duro” coração fariseu.

Muitos fariseus se aproximavam de Jesus, como José de

Arimatéia e Nicodemos ben Gurion, dois dos mais ricos homens da

Judéia, e apoiaram-no, mas não conseguiam entender como aquele

judeu pobre não ambicionava o poder terreno, além de não aceitarem

completamente o sentido de "dar a Deus o que é de Deus e a César o

que é de César", tampouco conseguiam entender o sentido real do amor

incondicional ao próximo, que ainda nos falta. Esses personagens

mostram claramente que Jesus estabeleceu uma ponte de contato com a

elite do farisaísmo e suas idéias eram muito bem recebidas entre os

homens de mente aberta, independentemente da classe social ou

afiliação política.

Inicialmente, as maiores disputas entre Jesus e esses grupos

judaicos, como narrado nos textos sinópticos, possivelmente não

traziam o nome dos fariseus, referindo-se apenas aos judeus em geral. O

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termo "fariseu" acabou sendo adicionado a essas disputas em função da

rivalidade que foi se desenvolvendo muito tempo após a crucificação. O

papel "aceita tudo", dizia a vovó...

Com essas inserções nos textos bíblicos, os evangelistas

procuravam mostrar que os cristãos eram muito diferentes dos judeus,

que haviam lutado ferozmente contra os romanos 40 anos após a

crucificação de Jesus. Como sabemos, essa realidade foi distorcida, uma

vez que a paz também estava e está no cerne do judaísmo, mas o

público greco-romano não via com bons olhos um grupo religioso vindo

da periferia do império e que trazia a marca da maior revolta da história

de Roma.

Os cristão utilizaram essas desavenças como forma de se

distanciar dos seus irmãos judeus e utilizaram indevidamente a figura

de Jesus para fazer isso. Criava-se uma atmosfera de antagonismo

apenas para aumentar o contraste entre Jesus, o Puro, o Divino, e o

mundo de então, farisaico ou não. Cometeram um grave erro e seus

efeitos perduraram até o recente episódio do holocausto judaico na

Europa durante a Segunda Grande Guerra mundial. Todos somos

culpados diante disso e mesmo os judeus tivessem errado, um erro não

justifica outro ainda pior.

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O próprio espírito Eleazar, colaborador desse livro, que teria

assistido e participado da reunião do Sinédrio, pagou um preço bastante

elevado pelo seu complexo de culpa ligado a esse fato: quando pôde

fazer as pazes com seu passado judeu, durante o período nazista na

Alemanha, onde trabalhou como médico militar, não o fez e hoje

trabalha para resgatar essa mancha da sua história pessoal.

Pode parecer estranho, mas é muito difícil encontrar diferenças

significativas entre o farisaísmo e as pregações de Jesus, sendo que os

fariseus eram considerados extremamente virtuosos. O próprio

Gamaliel, um dos fariseus mais cultos de Jerusalém, parecia para ser

simpático ou, como evidenciado em Atos (Atos 5:34-39), tolerante para

com os hassidim galileus, judeus devotos, como os cristãos eram

considerados no começo de seu caminho. Talvez essa tolerância esteja

por trás das palavras de Gamaliel sobre Pedro e os apóstolos diante do

Sanedrim, muito diferente da imagem de hipócritas que os textos

canônicos trazem.

É triste colocar, mas, na prática, se havia um grupo capaz de

aceitar Jesus como o messias, esse grupo seria o grupo farisaico, que já

havia participado de muitas rebeliões contra o poder estabelecido, que

tinha uma mentalidade reformista e que contava com o apoio dos “amei

haaretz”, ou povo comum. Mas a providência divina não queria

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revoluções exteriores, que culminavam com muitas mortes e a

substituição de um tiranete por outro; a espiritualidade maior queria a

reforma de valores e isso iria se iniciar a partir das sementes de amor

incontestável disseminadas por Jesus em todos os corações palestinos,

judeus ou não.

1.3.3 Os essênios

Quanto aos essênios, muita informação vem sendo

continuamente publicada, em particular devido aos Manuscritos do Mar

Morto, descobertos ao redor das ruínas de Qumran, cuja autoria foi a

eles atribuída em meados da década de 1950.

Entretanto, é cada vez mais difícil aceitar a idéia de que

documentos escritos por centenas de escribas, com centenas de tipos de

caligrafia, abordando os aspectos mais variados do judaísmo, muitos

dos quais conflitantes entre si, poderiam ter sido redigidos por um único

grupo sectário no deserto da Judéia. Assim, evitaremos falar aqui em

informações oriundas dos “essênios de Qumran”, posto que nem

sabemos se aqueles textos provém dessa comunidade, sendo provável

que os textos como um todo reflitam a diversidade do judaísmo dos

séculos I a.C. e I d.C., com alguns documentos saduceus, essênios e de

outras afiliações religiosas.

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A notoriedade que esse grupo ganhou no imaginário popular e

na imprensa deriva das numerosas semelhanças entre suas crenças e

aquelas professadas pela igreja primitiva, enquanto as semelhanças com

as crenças de Jesus são menores e mais fragmentárias.

Os essênios se viam como o verdadeiro Israel e os únicos a

conhecer a vontade de Deus, como uma reação ao que eles

consideravam como "a decadência da nação". Acreditavam na revelação

e inspiração proféticas vindas diretamente de Deus e se portavam como

se Ele os governasse diretamente. A influência de seres espirituais,

como os anjos e emissários divinos, era bastante reconhecida. Os

integrantes desse grupo acreditavam na completa dependência do

homem em relação a Deus, que ditaria seu destino. Sua observância do

dia do sábado e dos preceitos alimentares era a mais severa de todas as

seitas do judaísmo de então e seus integrantes não eram afeitos às

atividades militares, embora um general essênio tenha participado da

revolta contra o jugo romano, 40 anos após a morte de Jesus.

Os essênios evitavam todo tipo de comércio e partilhavam seus

bens materiais, como também faziam primeiros membros da igreja

cristã nascente. Eles habitavam a maioria das cidades da Palestina, mas

formavam comunidades separadas dos demais judeus e gentios.

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Aqueles que aspiravam entrar para o grupo passavam por um

período de três anos de severo aprendizado. A maioria preferia o

celibato, por considerar que a verdadeira vida era a espiritual, de forma

que ter filhos seria comparável a aprisionar mais espíritos a corpos

materiais corruptos. Entretanto, alguns essênios casavam e o sexo era

utilizado apenas com a finalidade da procriação. Essa visão do corpo

como uma prisão contrasta com a filosofia espírita onde o corpo é visto

como o presente sublime do Criador, uma benção, prova da

misericórdia divina, onde o pecador recebe, mais uma vez, a

possibilidade de expiar seus delitos anteriores. Comparações como essa,

entre o essenismo e o espiritismo, são comuns e quase sempre geram

muita confusão e criam imagens mentais bastante distorcidas nos

leitores que iniciam os estudos espíritas ou referentes à vida de Jesus.

Infelizmente, existe gente que, na procura por algo que se refira

ao mundo de Jesus entre 12 e 30 anos de idade aceita todo tipo de

informação, que vai desde a internação do mestre em comunidades

essênias, viagens ao Tibet, Índia, Alfa Centauro, Vênus ou às entranhas

da Terra. Devemos ter cuidado com esse tipo de colocação,

principalmente quando vem associada ao espiritismo. As informações

mediúnicas incluídas no presente texto não permitem nenhuma relação

direta entre Jesus e os essênios. A influência foi indireta, como veremos

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a seguir. Além do que, sempre que a informação mediúnica não

encontra corroboração na literatura especializada, mesmo que

perifericamente, destacamos o fato no texto.

Esses judeus sectários não possuíam residências de natureza

pessoal e viviam em movimento, utilizando os alojamentos comunais

espalhados pela Palestina e seus bens eram compartilhados com a

comunidade, sendo que a recusa em partilhá-los era punida com rigor,

algo muito semelhante ao descrito com os cristãos primitivos (Atos 5:1-

11). Aspectos tolos, como defecar, eram proibidos nos sábados e as

relações dos membros com familiares eram submetidas à permissão do

grupo. Tais aspectos contrastam com a benevolência e tolerância de

Jesus, que nunca foi essênio, embora tenha conhecido pessoas que o

foram e com elas interagiu, como João, o Batista, que abandonou o

essenismo e passou a viver como um pregador da reforma íntima e

profeta do final dos tempos no vale do rio Jordão.

Outro aspecto controvertido é a realização de sacrifícios animais

pelos essênios em seus cultos. Fílon relata que esse procedimento fora

banido e eles procuravam santificar suas mentes como forma de

adoração ao Senhor. Para os essênios, a vida após a morte se articulava

em um mundo imaterial, espiritual, não sendo necessário a

reconstituição de um corpo físico como nós o conhecemos, o que muito

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se assemelha a algumas crenças modernas e a cultos heréticos

medievais. O relacionamento com o Templo e os demais judeus que o

adotavam como casa de Deus era peculiar: enviavam oferendas, mas

não participavam das adorações, visto que seguiam regras de pureza

diferenciadas, acreditando que o Templo havia sido profanado e os

sacrifícios já não tinham mais valor nessas condições. Dessa forma, os

animais deixaram de ser sacrificados não por um pensamento

benevolente para com as demais espécies, mas por que esses judeus

julgavam que o sacrifício no Templo não chegaria até Deus, que havia

abandonado a sua morada entre os homens.

Os essênios também diferiram das demais seitas judaicas por

acreditarem na ressurreição dos mortos apenas em espírito, como

muitas comunidades religiosas modernas de inclinação espiritualista,

diferindo acentuadamente dos fariseus nesse detalhe. Os apóstolos e

discípulos de Jesus também discutiram a natureza da ressurreição do

mestre, sendo que muitas seitas cristãs acreditavam que Jesus teria

subido aos céus apenas em espírito, sem o corpo físico, enquanto a

corrente principal do cristianismo professa a fé em uma ressurreição de

corpo e alma. As aparições de Jesus durante o período que sucedeu a

sua crucificação apresentam todas as características relativas às

materializações de espíritos, o que, na ausência de um conhecimento

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espiritual mais desenvolvido, no povo palestino de outrora, incluindo-se

aí até os seus próprios discípulos e apóstolos, criou os elementos

básicos das discórdias e discussões dos séculos seguintes, sendo que

alguns cristãos chegaram a acreditar que o Cristo nunca tivera um corpo

físico.

Os essênios também não aceitavam a autoridade do Sumo

Sacerdote e esse fato remonta ao tempo dos reis Davi e Salomão,

quando o Sumo Sacerdote era escolhido entre a descendência de Sadoc

(talvez daí o nome saduceus). Como no período final do segundo

Templo a escolha do Sumo Sacerdote era feita por motivos puramente

políticos e econômicos, com barganhas de todo tipo, os essênios

consideravam o culto no Templo e os sacrifícios como tendo validade

questionável.

Somente se alimentavam em refeições preparadas por membros

do grupo e não permitiam que outras pessoas fossem admitidas em suas

refeições comunais, uma vez que essas refeições eram a marca principal

da irmandade. Para comparação, embora a mesa fosse o verdadeiro

centro do culto cristão primitivo, na ceia, não existem informações que

mostrem que os primeiros seguidores do nazareno eram tão ortodoxos

na preparação do alimento e, tampouco, limitassem-na a pequenos

grupos de iniciados. Essa é a maior diferença entre Jesus e os essênios:

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enquanto Jesus pregava a reunião de todos sob a proteção do Pai,

infinitamente misericordioso, os essênios se sentiam os eleitos e se

apartavam daqueles que consideravam impuros. Posturas opostas,

destinos opostos.

Os essênios também utilizavam vestimentas peculiares que

permitiam sua rápida identificação pelos que não faziam parte do grupo

e eram muito mais conservadores do que os fariseus. Os essênios

também não celebravam a Páscoa judaica com os demais judeus, visto

que cultivavam um calendário diferente do empregado pelos demais, de

inspiração selêucida, grega. Eram muito diferentes de Jesus e seus

seguidores.

1.3.4 A comunidade de Qumran

Inicialmente, a comunidade científica esperou que os textos

descobertos no deserto próximo ao Mar Morto, ao redor de Khirbet

Qumran, viessem a se referir a Jesus ou outros personagens presentes

no Novo Testamento, mas o desapontamento foi geral quando se

verificou que as centenas de manuscritos não traziam uma só palavra

aplicável diretamente ao nosso mestre. Contudo, permitiam uma

caracterização ímpar da fé que ele professava e como as comunidades

judaicas interagiam e se influenciavam mutuamente. Talvez o ponto

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mais coincidente entre os primeiros cristãos e os qumranmitas, essênios

ou não, é que ambos eram movimentos sectários dentro de um

judaísmo multifacetado.

Não se pode afirmar com segurança que o sítio arqueológico de

Khirbet Qumran, em algum momento de sua história, ao longo de 400

anos de ocupação, foi o lar de uma seita judaica ou comunidade

sectária. Assim é extremamente difícil atribuir aos essênios a ampla e

eclética biblioteca encontrada nas cavernas próximas a Qumran.

Possivelmente os textos ali reunidos são oriundos de várias bibliotecas,

do Templo e de Jerusalém, antes e durante o cerco da cidade pelos

romanos, em 70 d.C. A idéia de que esses textos são oriundos da seita

essênia, descrita por Josefo e Plínio como amantes da paz e celibatários,

que viviam no deserto nas margens do Mar Morto, acima da localidade

de En Gedi, se deu pelo fato da localização de Khirbet Qumran

corresponder, a grosso modo, àquela que esses autores haviam relatado.

Deve-se acrescentar, também, que alguns dos pergaminhos descobertos

de fato continham um material de natureza sectária e próximo do que se

esperava dos essênios.

Porém, à medida que novos e importantes manuscritos vieram à

luz e foram traduzidos, ficava cada vez mais claro de que esses textos

reuniam material de muitos escribas e pareciam refletir a grande

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heterogeneidade do judaísmo do século II a.C. até o final do século I

d.C. Assim, os textos mais sectários encontrados nas cavernas do Mar

Morto devem ser discutidos separadamente dos essênios. Além desse

aspecto, os Manuscritos do Mar Morto não dizem respeito a apenas uma

filosofia judaica. Em muitos aspectos pode-se perceber um tom mais

extremado, típicos dos zelotas, sugerindo que, pelo menos em alguns

momentos, os autores desses manuscritos tiveram uma relação mais

próxima com grupos ou pensamentos nacionalistas.

Pode-se observar que alguns judeus esperavam a vinda de um

Messias Davídico (descendente de Davi) e um Messias Sacerdotal,

também denominado de Mestre da Justiça (ou da Retidão) ou Mestre de

Aarão, que teria primazia sobre o poder temporal do Messias Davídico.

Nesses escritos, o Messias Davídico é o guerreiro de Deus e protegerá

os eleitos em nome do Senhor, principalmente os humildes e piedosos

que o procurarem. Não se pode ignorar que, em 2Tessalonissences 2:8,

a figura que Paulo faz de Jesus é semelhante a desse personagem (“a

quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca e o destruirá

pela manifestação da sua vinda”), enquanto o próprio título “Rei dos

Judeus”, atribuído a Jesus, em tom zombeteiro, pelos romanos, era

compatível com o que o Messias da casa de Davi receberia.

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A espera do Messias da casa de Davi e do Messias Sacerdotal

ocupa parcela relevante dos textos dessa comunidade e evidencia que

uma parcela da população judaica esperava por uma mudança radical no

mundo, na virada de eras. Na condição presuntiva de descendente de

Davi, Jesus é colocado nos evangelhos sinópticos como Messias

Davídico e, na Epístola dos Hebreus e algumas passagens do Evangelho

de João, é encarado como o Messias Sacerdotal, criando uma situação

embaraçosa para os seus autores, devendo-se salientar também que, em

muitos desses escritos do Novo Testamento, particularmente os mais

tardios, Jesus é tratado como a encarnação da Divindade e não apenas

como messias (o que significa " o escolhido").

De qualquer forma, é bem provável que o messias de Nazaré

fosse visto por muitos como Messias da casa de Davi e, por outros,

como a união do Messias Davídico com o Messias Sacerdotal. O

próprio Jesus alimentava as discussões messiânicas, através de seus

atos, como, por exemplo, a sua entrada em Jerusalém por ocasião de sua

última Páscoa, montado em um jumentinho, fazendo cumprir antigas

profecias amplamente conhecidas pela população judaica, retratando a

pessoa do escolhido de Deus.

Alguns desses documentos mostram que os membros da seita

faziam refeições comunais, oravam em comunhão e tomavam suas

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decisões em conjunto. Pessoas externas não podiam participar dessas

refeições sob pena de torná-las impuras; também não permitiam que os

membros viessem a se alimentar com não membros, o que os tornaria

impuros, como os essênios também pensavam.

O candidato à comunidade era considerado como membro

quando lhe era permitido se unir aos demais em suas refeições. A

redução das cotas alimentares constituía forma comum de punição para

os transgressores, sendo a expulsão a pior punição possível, porque o

tornava um proscrito aos olhos de seus antigos pares, que não poderiam

mais ajudá-lo, atenuando-lhe a fome, sob pena de também serem

expulsos da comunidade. Infelizmente, muitas seitas cristãs e não-

cristãs possuem essa filosofia no presente.

Esses judeus consideravam o Templo profanado e impuro, não

aceitando a liderança sacerdotal que lá existia e seu isolacionismo era

tão extremado que seus membros eram proibidos de terem quaisquer

relações comerciais ou sociais com forasteiros, a menos que o

pagamento pelas atividades fosse em dinheiro, para não permitir o

estabelecimento de laços mais duradouros com os não-membros. Seus

membros se autodenominavam de "Filhos da Luz", em oposição aos

demais, denominados de "Filhos das Trevas", e se preparavam para uma

guerra final de libertação contra esses últimos.

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O Documento de Damasco, um dos principais textos

descobertos no vale do Mar Morto, permite o casamento e cria normas

de bom proceder na família, além de aspectos relativos à educação dos

filhos. O líder da comunidade cuidava de seus membros como filhos, o

que levava a uma perda da identidade do pai biológico.

Uma semelhança significativa entre os seguidores de Jesus e os

autores desses textos é a importância dada ao batismo, bem como as

graças que todo sacerdote deveria dar pelo pão e pelo vinho, mas sem o

caráter eucarístico. A presença de um Deus onipotente em todas as

atividades humanas diárias, o enaltecimento de uma vida humilde, a

presença de anjos como interventores junto à humanidade, a proibição

do divórcio, além da vida comunal também mostram semelhanças com

os primeiros cristãos. Contudo, algumas diferenças de ênfase também

são evidentes: se compararmos o conservadorismo dessa seita com o

judaísmo rabínico ortodoxo ou as igrejas cristãs literalistas do presente,

veremos que esses religiosos modernos seriam considerados muito

flexíveis e liberais. O sábado, por exemplo, era guardado com extremo

rigor, enquanto os judeus cristãos guardavam o sábado de forma mais

elástica. Lembrem-se que Jesus sempre teve problemas com a forma

com que o sábado era guardado pelos grupos judeus, a ponto de afirmar

que o sábado fora feito para o homem e não o contrário.

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Para os qumranmitas, no banquete do final dos tempos (uma

alegoria muito comum também entre as primeiras igrejas cristãs),

estarão presentes muitos da casa de Israel e os Patriarcas ressuscitados,

enquanto todos os gentios e israelitas de fora da comunidade deverão

perecer no final. Alguns textos de Qumran também fazem alusão a

feitos notáveis que o messias seria capaz de realizar, devolvendo a visão

aos cegos e a saúde aos doentes, além de ter um relacionamento

especial com Deus, lembrando o livro de Isaías (61:1), onde, à

semelhança de Jesus, o messias fará prodígios em nome de Deus e em

Seu nome exercerá o poder.

Algumas expressões comuns a judeus cristãos e qumranmitas

são relevantes, como a alusão aos “pobres de espírito”, “os pobres” ,

que herdarão o Reino de Deus. Essas expressões podem ser as únicas

alusões aos qumranmitas, ou talvez essênios, no Novo Testamento,

visto que esses são um dos termos que esses grupos utilizavam para se

autodenominarem. Nos Salmos de Salomão, os pobres representam os

fiéis, mas ninguém se descreve utilizando essa terminologia, com

exceção dos qumranmitas/essênios e, talvez, os primeiros cristãos. O

próprio fundador do grupo sectário era chamado de “o Pobre”,

possivelmente por ter perdido tudo que por direito lhe pertencia, como

bens, posição social e o culto no Templo.

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O Manuscrito do Templo, texto sectário encontrado em Qumran,

adota a mesma postura de Jesus sobre o divórcio, a qual se mostra mais

rígida do que a empregada pelos demais grupos judeus do século I. d. C.

Os mesmos livros bíblicos são considerados inspirador por cristãos e os

membros desse grupo sectário, bem como algumas idéias sobre o final

dos tempos, como a redenção pelo sofrimento, que apresenta alguma

correlação com a visão espírita atual, mas sem o caráter da Lei de Ação

e Reação em reencarnações futuras.

As influências dos pensamentos sectários se fazem mais

presentes nos evangelhos tardios, como o Evangelho de João, enquanto

as cartas de Paulo, além dos documentos neo-testamentários mais

antigos, como o Evangelho de Marcos, são menos influenciados, o que

sugere que as semelhanças e contatos entre os dois grupos tenham se

tornado maiores na segunda ou terceira gerações de cristãos e menor

entre os cristãos que conheceram Jesus. O mestre galileu cultivava a

simplicidade e o contato com todos os grupos, incluindo os

transgressores, contrastando com a imagem austera do Mestre da

Retidão ou da Justiça, dos sectários. Ele mesmo teria dito que sua vinda

destinava-se, primeiramente, às ovelhas transviadas e aos doentes, que

não eram contemplados por nenhuma seita da época.

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Os cristãos ebionitas e os cristãos nazarenos são considerados

como possíveis descendentes filosóficos desses grupos judaicos ou,

pelo menos, mais influenciados pelas idéias dos qumranmitas. Esses

grupos chegaram a construir uma comunidade no monte Carmelo e

seguiam códigos de conduta semelhantes aos praticados pelos autores

dos textos de Qumran. Os mandeanos, considerados como seguidores

dos discípulos de João, o Batista, e confundidos pelos líderes

muçulmanos como sendo cristãos, também tinham práticas que fazem

lembrar os textos sectários do Mar Morto e, até recentemente, existia

uma comunidade mandeana que praticava o batismo ritual, no sul do

Iraque.

Poucos livros encontrados em Qumran têm uma terminologia

mais próxima aos cristãos antigos do que o Livro de Enoch, o qual

chegou a ser considerado como parte do cânone cristão ocidental e

ainda considerado canônico (divinamente inspirado) pela Igreja

Ortodoxa Etíope e pela Igreja Ortodoxa da Eritréia, além de leitura

obrigatória para a redação de cartas paulinas e para a epístola de Judas,

deixando marcas no judaísmo inter-testamental. Esse livro foi muito

difundido nos séculos I e II d.C. Expressões, como “Filhos da Luz”

(Lucas 16:8), o papel dos anjos como intermediários entre os homens e

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Deus, bem como o dualismo “Luz e Trevas” também denotam a

possibilidade de contatos entre os grupos.

1.3.5 Os seguidores de Banus

Esse grupo judaico não chegou a caracterizar um secto, mas foi

descrito pelo historiador judeu Flávio Josefo, que teria feito parte do

mesmo, o qual deve ter sido um entre dezenas ou mais de grupos

itinerantes que ocupavam o vale do rio Jordão e o deserto da Judéia,

como os seguidores de João Batista e os primeiros cristãos.

A descrição de Banus indica que o mesmo era parte de um

movimento extremamente introvertido, uma vez que seu líder vivia

quase como uma criatura silvestre, isolado e fora de uma estrutura de

irmandade. Todos os outros judeus eram tratados como forasteiros e o

contato com os mesmos torná-los-ia impuros, o que implicava em seu

afastamento do mundo. Além de pregar o desapego aos bens materiais,

os seguidores de Banus pareciam hostilizar a riqueza e a convivência

em comunidade, algo bem diferente de Jesus, o galileu, para o qual a

riqueza deveria gerar bem estar a todos e apenas o apego à mesma era

considerado inadequado.

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1.3.6 Quarta filosofia, Zelotas e Sicários

Embora estejamos discorrendo sobre movimentos religiosos,

não se pode esquecer que, na Palestina, política, religião e interesses

diversos sempre estiveram ligados, mesmo na atualidade. Pobre Oriente

Médio.

Muitos outros grupos político-religiosos podem ser identificados

na periferia do judaísmo palestino, como os movimentos de resistência,

possivelmente pacíficos, de Judas, o galileu, e Sadoc, o fariseu, contra a

taxação de impostos no início do século I d. C., bem como os

movimentos ultranacionalistas associados com os zelotas e sicários,

esses últimos bastante agressivos e violentos. No geral, os movimentos

que se seguiram à conquista do território pelos romanos eram mais

controlados e localizados, se tornando mais agressivos e generalizados

em função da repressão romana.

Os zelotas tinham esse nome em função do zelo com que

observavam as leis judaicas, constituindo um grupo extremamente

importante durante a Primeira Revolta contra a dominação romana, de

66 d. C. a 73 d.C. É possível que a origem desse e de outros grupos

nacionalistas judeus remonte ao reis macabeus, nas regiões do norte da

Galiléia, mas apenas na metade do século I d.C. é que eles passaram a

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ter atitudes mais violentas, eliminando os romanos e seus

colaboradores.

Para esse grupo, a santidade do Templo deveria ser mantida a

qualquer preço e Deus interviria quando visse que seu povo havia se

rebelado contra o invasor infiel. Os zelotas pareciam acreditar que a

expulsão dos ímpios aceleraria a vinda de seu Messias e a redenção do

povo judeu, disperso pelo mundo romano. Alguns estudiosos acreditam

que entre os discípulos de Jesus haviam zelotas, como Judas de Kerioth

(Judas Iscariotes), o qual acreditava que, ao forçar o mestre galileu a

defender a sua própria vida, nas mãos dos sacerdotes do Templo, daria

início a uma revolta armada contra Roma. Assim, Judas era mais

nacionalista e despreparado do que traidor.

O evangelho apócrifo de Judas sugere que a "traição" de Judas

para com Jesus foi acordada entre esse último e o próprio discípulo, de

forma que alguns cristãos viam nesse ato algo que era indispensável

para que as antigas profecias se concretizassem na vida e, nesse caso,

morte de Jesus.

É possível que os sicários constituíssem um grupo dentro dos

zelotas ou análogo a eles, sendo que seu nome deriva do uso que faziam

de um punhal chamado “sicar” para assassinar seus adversários,

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constituindo o grupo nacionalista mais aguerrido dentre tantos que

proliferavam na Palestina nas décadas seguintes à crucificação.

1.3.7 Os helenistas

Esses judeus, embora não constituíssem um grupo religioso

“senso estrito”, apresentavam grande influência em todos os grupos

religiosos, particularmente os mais liberais, e eram detentores de grande

poder econômico e político, em comparação aos demais judeus

palestinos.

Por esse nome são denominados os judeus da Diáspora que

empregavam o grego como primeira língua e, talvez, única língua,

tendo retornado tardiamente ao solo palestino. Traziam consigo

elementos de filosofia grega, como a oposição entre o bem e o mal, e se

diferenciavam dos judeus de língua semítica (aramaica e hebraica),

como evidenciado em Atos dos Apóstolos. Estevão, primeiro mártir

cristão, foi um judeu helenista e suas atitudes contrariavam muito as

oficialmente aceitas no Templo.

A filosofia cristã fez muitos convertidos dentro desse grupo,

mais permeável às filosofias atenienses, que também haviam

influenciado a mensagem de Jesus, particularmente sobre a

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reencarnação-ressurreição dos mortos e a existência de uma vida após a

morte.

1.3.8 Os samaritanos

Embora seja um erro associar os samaritanos aos judeus, uma

vez que constituem grupos separados, ambos têm origem comum e

aceitam o Pentateuco. Pode-se dizer que o samaritanismo e o judaísmo

são duas vertentes de uma única fé original que se dividiu

profundamente ao longo de cinco séculos, no período de invasões

estrangeiras que assolou a Palestina antes da chegada do persas.

Não se sabe exatamente quando judeus e samaritanos passaram

a se considerar como grupos distintos, porém pode-se perceber a origem

do problema na separação dos estados de Judá e Israel, logo após a

morte de Salomão. Enquanto o reino do sul ficara com o Templo e a

cidade santa (Jerusalém), o reino do norte tinha os profetas Elias e

Eliseu, abandonando o Templo e passando a se dirigir a Deus no monte

Garizim (ou Gerezim). A oposição aos samaritanos, no seio da

comunidade judaica, era óbvia, com os dois grupos mantendo relações

relativamente tensas. Essa oposição entre judeus e samaritanos fica

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clara na parábola do bom samaritano, contada pelo mestre galileu

(Lucas 10:25-37).

Os samaritanos também praticavam a circuncisão, o respeito ao

sábado e as festas típicas dos judeus. Enquanto alguns grupos judeus

esperavam o messias de Davi e o de Aarão (Messias Sacerdotal), os

samaritanos esperavam o Taheb, uma espécie de novo Moisés, que

traria a paz a colocaria tudo em seu devido lugar. Em muitos aspectos,

os samaritanos não eram muito diferentes dos saduceus.

1.3.9 Judeus cristãos

Poderíamos acrescentar entre os grupos judaicos do século I d.C.

os judeus cristãos, visto que a transição do judaísmo-cristão para o

cristianismo judeu e, finalmente, cristianismo greco-romano não

ocorreu como um passe de mágica e possivelmente se deu como

conseqüência da disseminação dos conceitos cristãos para o seio do

mundo greco-romano.

Para os primeiros seguidores de Jesus, a igreja de Jerusalém (a

igreja mãe de fato, precedendo a igreja de Roma) era parte do judaísmo

e as discussões de Paulo com os demais líderes dessa igreja sempre se

voltavam para a necessidade ou não de conversão dos gentios (como

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eram chamados os não judeus) ao judaísmo para que os mesmos se

tornassem cristãos.

Alguns pesquisadores modernos consideram que os essênios,

zadoquitas, zelotes, nazoreus, nazarenos e os primeiros cristãos judeus

eram, na prática, um único grupo com várias matizes, mostrando

profunda divergência religiosa frente ao culto dominante. Esse

movimento purista era intransigente com a corrupção da classe

sacerdotal e com a presença de uma dinastia indigna no trono, a dinastia

de Herodes. Contudo, o próprio Jesus não dava grande importância aos

donos do poder terreno e sua mensagem libertadora tinha um tom

voltado para o Reino de Deus e isso desagradou a muitos que viam nele

a imagem de um líder rebelde profundamente carismático.

Os cristãos, podiam comungar com os demais grupos judeus

muitos pontos de sua fé, mas em função dos ensinamentos do mestre de

Cafarnaum e Nazaré, adotaram uma postura mais receptiva para os

novos convertidos, rapidamente permitindo que não judeus se

convertessem, não sem antes discutir o que era ser cristão e os

requisitos mínimos para uma convivência harmoniosa com os judeus

cristãos.

Muitos judeus cristãos dos primeiros tempos se espantariam se

lhes disséssemos que, em nossa época, Jesus é tido como a encarnação

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do Deus-Filho por aproximadamente dois bilhões de pessoas e que os

seus seguidores não são mais judeus. Assim, é difícil separar textos

escritos por judeus cristãos daqueles elaborados pela corrente principal

do judaísmo de então. Muitos hinos cristãos da época eram ser entoados

dentro de uma sinagoga judaica. A Epístola de Tiago (escrita pelos

seguidores do irmão de Jesus) e o Apocalipse de João possuem tantos

elementos judaicos que talvez nem devessem ser considerados

“cristãos” de fato e essa situação se manteve por muitas décadas na

Palestina, após a morte do mestre.

Jesus, durante seu ministério, não teria fundado a igreja cristã e

nada em seu comportamento sugeria que ele desejava um rompimento

total com as práticas judaicas. Ele pregava a humanização do homem

(isso não é pleonasmo ou redundância, mas sim uma enorme carência

que temos até hoje). Sob esse ponto de vista, ele poderia ser

caracterizado com um hassidim galileu bastante diferenciado.

Entretanto, os que o seguiram acabaram criando um grupo

separado, mas ainda DENTRO do judaísmo, mas era questão de tempo

para que a fé cristã desaparecesse se continuasse restrita ao povo de

Moisés, daí a espiritualidade ter escolhido Paulo, o judeu helenista,

herodiano, para trabalhar junto aos gentios, mesmo que isso significasse

a perda de parte da pureza da doutrina cristã, em função da falta de

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arcabouço cultural de suporte fora do mundo judaico de então. Essa

transformação de judaísmo-cristão em cristianismo judeu e greco-

romano se operou principalmente fora da Palestina, visto que os

seguidores judeus de Jesus continuaram judeus e possivelmente pouco

contato tiveram com a teologia cristã que se desenvolvia no mundo

mais helenizado. Provavelmente nada sabiam sobre a figura da

Trindade Cristã e seus aspectos dogmáticos.

Até a destruição do Templo essas duas comunidades, judeus e

judeus cristãos, eram pouco distinguíveis e não se viam como grupos

rivais na Palestina. Em Atos dos Apóstolos temos muitos exemplos que

evidenciam que a comunidade cristã de origem judia, que residia em

Jerusalém, tinha reservas aos ensinamentos paulinos, que hoje dominam

o cristianismo, sendo que Paulo pôde manter sua atividade missionária

entre os gentios apenas em função da proteção especial que lhe

dedicavam Tiago, o irmão de Jesus, e Pedro.

Os judeus cristãos conhecidos como ebionitas (ebionim, "os

pobres", em hebraico) abominavam a obra do apóstolo Paulo e sequer o

reconheciam como cristão, enquanto os nazarenos eram menos radicais

e, embora discordassem de alguns ensinamentos desse apóstolo, como

os que hoje norteiam as igrejas evangélicas (como a salvação pela fé e a

natureza quase divina de Jesus), pelo menos reconheciam seus esforços,

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bem intencionados, de disseminar a palavra do Deus único entre os

pagãos.

No tocante ao apóstolo Paulo, um grande e imprescindível

propagador da mensagem cristã, ainda estavam encravados na sua alma

o poder que tivera outrora, em encarnação no tempo dos grandes reis de

Israel e a arrogância de seus primeiros dias na Palestina. Paulo não teve

participação no drama de Jesus, mas suas atividades contra a igreja

primitiva lhe renderam muitos inimigos entre os primeiros cristãos.

Ironicamente, Estevão, o primeiro mártir cristão, atacado por Paulo e

seus colaboradores, foi um dos seus primeiros mentores espirituais e um

dos responsáveis pela sua profunda mudança de atitude.

Alguns teólogos atribuem a Paulo a divinização da figura do

messias judeu, tornando-o uma pessoa muito diferente daquela pessoa

que havia caminhado pela Galiléia e Judéia. Contudo, essa

transformação da imagem do Cristo não foi intenção de Paulo, mas uma

consequência natural do universo de fé que ele encontrou entre os

gregos, com seus muitos deuses, semi-deuses e heróis lendários. Assim,

não podemos esquecer que estamos aptos a receber apenas o que

conseguimos compreender e ele mostrou a validade dos ensinamentos

de Jesus e foi o mais importante apóstolo de seu tempo. Infelizmente

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Jesus: homem e espírito

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ele não pode evitar o fenômeno de desenvolvimento da figura da

Trindade que se esboçava.

Essa divinização de Jesus era considerada inevitável até pelo

grupo de entidades angelicais que havia acompanhado a reencarnação

do messias. A motivação por trás desse fenômeno residia na

superioridade moral e espiritual de Jesus sobre todos os que o

cercavam, principalmente em um mundo onde deuses com

características e defeitos humanos abundavam, isso sem falar nos semi-

deuses (filhos de deuses ou deusas com seres humanos comuns, como

Perseu ou Hércules). Esse processo de divinização obrigou os

evangelistas a criar as Narrativas da Infância, que eles não conheciam,

de forma que a história do nascimento do messias teve de ser recontada,

criando-se elementos lendários que não poderiam mais ser contestados,

pois todos que haviam vivido no período próximo ao nascimento de

Jesus já haviam desencarnado, ao mesmo tempo em que a mensagem de

Jesus ficava para um segundo plano, ressaltando-se o caráter do

cordeiro que era entregue, pelos lobos, para o sacrifício. O místico

falava mais alto para aquelas pessoas simples, que ainda não estavam

preparadas para o domínio da razão.

Um aspecto que diferenciava Jesus de todos os demais grupos

judaicos da época era a sua tolerância e a aceitação de todos os

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pecadores no Reino de Deus, que já se fazia presente, em alguma

extensão, na vida das pessoas. Isso era impensável para os demais

grupos, que acreditavam que apenas aos virtuosos e puros teriam o

direito de ter contato com o Altíssimo. Para Jesus, Deus era o Pai,

amoroso e justo, de todos, que estava esperando o retorno de seus filhos

pródigos.

O messias se sentia na obrigação de assegurar que esse reino

divino era para todos e nem mesmo a igreja primitiva entendeu esse

aspecto de sua mensagem. Para exemplificar isso, será que você

acreditaria que Jesus consideraria lícito que dois de seus seguidores,

marido e mulher, Ananias e Saphira, (Atos dos Apóstolos 5:1-11), que

não compartilharam totalmente seus bens com os demais membros do

grupo, merecessem a morte, como relatam os Atos dos Apóstolos? E

isso tudo poucos anos após a morte do mestre. Nesse caso,

possivelmente os dois, marido e mulher, tenham sido tomados por

intenso drama de consciência e sofreram de morte súbita, mergulhados

que estavam em uma comunidade que, a despeito dos trabalhos de

apoio do Plano mais Alto, ainda se sentia acéfala e muito apegada a

aspectos triviais da fé (como todos os grupos religiosos periféricos que

perdem seu líder em um mundo extremamente cruel e violento).

Contudo, o mais provável é que essa história seja simbólica e apenas

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objetivava mostrar como o remorso e a punição por força da

consciência culpada podiam matar.

Essa história foi tomada como exemplo pela igreja para exercer

seu poder sobre os fiéis (particularmente sobre o bolso dos mesmos).

Todavia, graças ao trabalho deixado por Paulo de Tarso, que tentou

dourar a pílula e torná-la palatável ao mundo, reconduzindo o grupo ao

caminho aceitável deixado pelo mestre galileu, a mensagem cristã não

perdeu totalmente seu papel de guia ou mapa em direção ao reino do

Pai.

Outro aspecto que diferenciava Jesus de todos os grupos

religiosos do século I era o tratamento dado às mulheres. Enquanto o

mestre galileu as acolhia e permitia que exercessem suas atividades,

acompanhando-o, elas eram tratadas quase como párias pelos demais

judeus da época, incluindo-se aí os primeiros cristãos. A maior

deferência às mulheres pode ser comprovada pelo fato das primeiras

testemunhas da ressurreição serem mulheres e isso era motivo de

sarcasmo pelos outros grupos judaicos, do tipo "Vocês não tem nem um

cão como testemunha da ressurreição do seu messias? Só mulheres?".

Esse fato é freqüentemente utilizado pelos estudiosos para ilustrar o

papel de Maria de Magdala (Maria Madalena) como discípula de Jesus.

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Jesus não parecia temê-las. Lamentavelmente nem a própria

igreja cristã seguiu os ensinamentos de tolerância do mestre que se

abstinha de sexo, mas considerava-o bendito e colocava a mulher como

filha do mesmo Pai, em pé de igualdade com o homem. Por fim, muitos

estudiosos atribuem a raiz do Evangelho de João ao um grupo de

mulheres que acompanhava Jesus e cuja relevância teve de ser ofuscada

em função da ortodoxia cristã que amadurecia. Na igreja que se

desenvolvia após a morte de Jesus, as mulheres tinham (e têm) um

papel secundário. Quantas papisas vocês conhecem ou são reconhecidas

pela Igreja de Roma?

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2 Quais são as fontes sobre Jesus?

“...Bem-aventurados vós que sois pobres, por que vosso é o reino de Deus...”

(Lucas 6, 20)

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2.1 As Fontes sobre Jesus

Quando se deseja escrever sobre algo ou alguém, o primeiro

passo é procurar as possíveis fontes de informação, a bibliografia.

Embora espíritas, somos contra a postura de aceitarmos tudo o que vêm

dos planos invisíveis como a mais absoluta expressão da verdade,

postura essa criticada pelo próprio movimento espírita brasileiro e

claramente detalhada na obra magistral de Kardec.

Devemos escutar a razão. Temos de recorrer à fé racionalizada,

como coloca Kardec, para determinarmos o que tem ou não sentido, o

que provém ou não de uma fonte segura e digna de nota. Alegar que as

informações vieram de arquivos siderais não pode ser motivo para que a

informação fornecida seja considerada de uma fonte superior, sob pena

de nos tornarmos instrumentos de espíritos pseudo-sábios e acabarmos

perdendo a credibilidade que o movimento angariou junto à população.

Nesse sentido, quando as informações recebidas por nossos

guias e mentores se chocavam com os dados presentes na literatura

disponível, optava-se por reiniciar uma discussão e argumentação, sob o

princípio de que todos, encarnados e desencarnados, estamos em

aprendizado e a verdade plena somente está disponível a Ele, nosso

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Deus. Se após as discussões, as idéias não apresentavam uma harmonia

satisfatória, o tópico era retirado do texto ou a autoria da informação era

destacada, para que cada um viesse a se posicionar livremente sobre o

tema em questão. Em todos os casos, demos prioridade para a

informação científica disponível.

Jesus não deixou nada escrito e mesmo as fontes canônicas

(bíblicas) disponíveis refletem mais as opiniões dos evangelistas mais

do que do próprio mestre. Todavia, o que chegou até nós evidencia o

mais sublime código de moral do judaísmo, portador de uma

originalidade e uma clareza na arte das parábolas que não encontram

rivais. O pouco que temos de Jesus o torna um dos judeus mais

conhecidos do século I d.C., talvez apenas superado pelo que

conhecemos de Josefo, Filon e Paulo, três aristocratas da elite

intelectual e política, sendo que o conhecimento sobre o último somente

sobreviveu em função de suas atividades religiosas ligadas a..........

Jesus.

Como fontes sobre o messias de Nazaré destacam-se as fontes

cristãs canônicas, os evangelhos sinópticos (que permitem uma analogia

entre si), o quarto evangelho (João), as cartas e epístolas do Novo

Testamento, de autoria conhecida ou não, quer pela antiguidade, quer

por terem sido redigidos por prováveis testemunhas dos fatos ou, pelo

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menos, por indivíduos que travaram contatos com possíveis

testemunhas. Entretanto, não podemos nos debruçar nos textos

canônicos, ou quaisquer outros, sem a centelha do senso crítico visto

que a adoração à Bíblia constitui idolatria, uma bibliolatria e deve ser

evitada e desestimulada por todos, em especial os religiosos e isso não

tem sido feito.

Além desses textos, ainda temos os documentos cristãos não

canônicos, também denominados apócrifos, documentos dos primeiros

pais da igreja (século II d. C.), documentos históricos de Roma, de

cidadãos romanos ou lá residentes, documentos e tradições judias e

islâmicas. O maior problema em lidar com esse material está na

dificuldade na separação de material lendário, teologia cristã posterior,

censura e, obviamente, opinião pessoal do relator ou reações ou a

própria expansão da fé cristã entre os judeus e outros não-cristãos.

Mesmo os evangelhos sinópticos, escritos logo depois das cartas

de Paulo, sofrem com a influência paulina nas suas idéias, embora

tragam uma quantidade apreciável de material sobre o homem Jesus.

Esses textos se rendem, em maior ou menor grau, ao culto do messias

místico, mas ainda podemos subtrair, o que provavelmente foi inserido

nas tradições mais antigas. Essas características místicas estão mais

presentes no evangelho de João, que exacerba o misticismo presente nas

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primeiras comunidades cristãs, bastante influenciadas por Paulo, que

devido a pressões culturais do mundo romano e pela elevação espiritual

de Jesus se mostra seduzida pela imagem do Jesus-Deus, possuindo

pouco material útil do ponto de vista histórico. Nesse evangelho,

podemos evidenciar um material de melhor qualidade sobre a Narrativa

da Paixão, como veremos posteriormente.

Existem numerosas e veementes críticas aos evangelhos como

possíveis fontes de material histórico sobre Jesus, mas não devemos

descartá-los sem um estudo prévio, uma vez que muitos elementos

historiográficos podem ser obtidos por trás da teologia cristã que serve

de estrutura á narrativa. Não se pode esquecer que os evangelhos não

pretendiam ser fontes de informação histórica sobre Jesus, mas apenas

“proclamar e reforçar a fé em Jesus como Filho de Deus, Senhor e

Messias”, como assevera o brilhante autor J. P. Meier, padre católico

romano.

Contudo, não podemos nos esquecer que muitos profetas

orientavam os seus seguidores a terem em mente, nas tradições orais,

textos inteiros do Alcorão ou da Torah e não seria de se surpreender se

os seguidores de Jesus tivessem memorizado, por décadas, algumas

características básicas das principais parábolas, recontando-as e

recompilando-as segundo seus interesses de momento. Essas pessoas

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que assistiram ao mestre galileu possivelmente estavam no cerne das

primeiras comunidades cristãs e acabaram por delinear seus contornos e

tradições.

Muitos de nós conseguem manter, na memória, diálogos que

tivemos com entes queridos que vieram a falecer, com poucas

modificações ao longo de décadas, imaginem o quanto essas

comunidades deveriam zelar pelas memórias referentes a um homem

que todos julgavam santos e muitos consideravam como o escolhido de

Deus.

Assim conhecemos o passado pela imagem que nos foram

legadas sobre ele e algumas evidências físicas. Infelizmente os textos

canônicos foram submetidos a numerosas alterações, acidentais e

intencionais, que refletiam os momentos pelos quais passava a igreja no

momento em que o manuscrito era redigido, e as tendências de

harmonizar os evangelhos está por toda parte nos textos e eliminou

muito material que poderia ser útil em nossas discussões.

2.2 Os evangelhos canônicos

Os documentos cristãos, canônicos ou não, que trazem

informações sobre a figura de Jesus evoluíram na forma de extratos que

acabaram, por vezes, se sobrepondo. Ao primeiro extrato, elaborado de

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30 a 60 d. C., pertenceriam as quatro cartas de autoria confirmada de

Paulo, o Proto-evangelho de Tomé, o Evangelho de Egerton, a fonte Q,

da qual falaremos mais a seguir, e os Evangelhos da Cruz e dos

Hebreus. Os demais textos, canônicos ou não, seriam oriundos do

segundo (60-80 d. C.), terceiro (80-120 d. C.) e quarto extratos ( 120-

150 d. C.). A historicidade desses textos evangelhos é muito discutida,

mas podemos crer que, pelo menos parcialmente, podemos empregá-

los.

Os textos canônicos e muitos textos apócrifos foram obtidos

através da mediunidade de seres humanos privilegiados pela honra de

servir na seara cristã em desenvolvimento, mas da mesma forma que

temos problemas com médiuns modernos, envaidecidos de suas

próprias faculdades, problemas ocorreram com as influências pessoais

desses evangelistas. De uma forma geral, os Planos de Vida Superiores

mantinham enviados de elevada hierarquia junto a esses irmãos

encarnados, provendo a liga, a cola, que utilizavam para dar sentido às

tradições que coletavam junto das pessoas que conviveram com Jesus.

Assim, mesmo com as peripécias das igrejas cristãs em descaracterizar

o texto, ele mantém grande parte da beleza da mensagem de Jesus, mas

grande parte dos dados históricos se perdeu.

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Essa igreja cristã primeva era rica em histórias sobre o messias,

o mestre de Nazaré, que circulavam pela comunidade do Caminho,

como os primeiros seguidores de Jesus se auto denominavam (Atos dos

Apóstolos, 10:36-40). Assim, mesmo os acréscimos redacionais podem

conter informações relevantes e espiritualizantes, de forma que não

devemos descartá-las sem uma leitura mais crítica.

O evangelho mais antigo, o texto de Marcos, teria sido escrito

em Roma ao redor do ano 60 a 70 d. C., enquanto Mateus remontaria ao

ano 85 d.C. e a cidade de Antioquia, datando Lucas no ano 80-85 d. C.,

na cidade de Corinto. As imagens elaboradas que o evangelho de João

faz de Jesus, bem como o avançado processo de divinização do Cristo,

tirando ele do papel de messias judeu e colocando-o em pé de igualdade

com Deus, mostram que o texto joanino deve ter sido redigido no final

da segunda geração de cristãos, mas traz tradições bastante antigas que,

em muitos casos, remontam ao ministério público de Jesus. Além disso,

a presença de uma Narrativa da Paixão mais coerente do que os

sinópticos evidenciam que a fonte da tradição gravada no texto joanino

pode ter sido próxima de Jesus, embora sua autoria realmente constitua

um mistério e sua narrativa parte sempre do teológico e vai para o

mundo real, como assevera Meier.

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Existem autores que acreditam que a história narrada nos

evangelhos seja meramente uma ficção idealizada, copiando os passos

de iniciação dos cultos pagãos da antigüidade, possuindo muitos erros e

incoerências. Contudo, no interior de cada um desses textos existe um

substrato que subsiste e uma história de uma comunidade cristã e pode

ser aproveitado. Contudo, alguns pontos devem ser discutidos. A

autoria dos evangelhos merece algum crédito ou indivíduos alheios ao

meio ambiente da igreja primitiva foram seus verdadeiros autores?

Existem cópias de manuscritos antigos dos evangelhos canônicos que

nos permitem verificar a integridade de suas redações?

Embora Marcos, Mateus, Lucas e João tenham sido personagens

reais, os escritos que carregam seus nomes não foram por eles, de fato,

redigidos, mas circulavam livremente, sem autoria conhecida, até o

século II d. C., quando foram atribuídos, direta ou indiretamente, aos

indivíduos mais importantes dos círculos apostólicos, conferindo a

esses documentos e legitimidade de que necessitavam para serem

utilizados pelas comunidades que patrocinaram sua confecção e

distribuição. A autoria dos evangelhos canônicos necessita ser

relativizada, posto que dependemos totalmente da opinião de autores

cristãos antigos para atribuir essa autoria.

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Papias, escrevendo por volta de 125 d. C., afirmou que Marcos

registrou de maneira cuidadosa o que Pedro testemunhara pessoalmente,

evidenciando também que Mateus guardava escritos sobre Jesus. Irineu,

por volta de 180 d. C., sustenta que Marcos, Mateus, Lucas e João,

escrevendo de Éfeso, são os autores de textos sobre o messias de Nazaré

e sua missão. É muito pouco provável que João e Pedro tenham escrito

alguma coisa, posto que foram retratados como os mais rudes e

iletrados personagens entre os apóstolos (Atos 4:13), como a quase

totalidade dos cristãos até séculos atrás, mas esses apóstolos eram

dotados de pulsante mediunidade de psicofonia, cura e efeitos físicos,

tendo passado o conteúdo dos textos que levam seus nomes (com

exceção do Evangelho de João, que foi escrito por diversas mãos) aos

homens mais letrados que os acompanhavam, embora tais documentos

tenham sofrido diversas modificações posteriores, dando-lhes maior

beleza estética e fluidez lingüística, mas perdendo um pouco as

características originais.

Esses relatos obviamente não podem ser empregados como

indicação precisa da autoria dos evangelhos, mas pelo menos

estabelecem que desde os primórdios da igreja existia uma tradição que

associava esses personagens a esses textos.

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Dos evangelhos, o de João é o que apresenta as maiores

dificuldades para a comprovação da autoria, visto que a cristologia ali

apresentada é claramente muito posterior às cartas paulinas, sendo

sugerido que o quarto evangelho seria o fruto de muitos autores. Vários

traços desse evangelho sugerem a preeminência do discípulo que Jesus

amava e não existe qualquer evidência de que o mesmo era o apóstolo

João. Alguns estudiosos modernos acreditam que a fonte inicial do

material ali contido derivaria de uma comunidade liderada ou integrada

principalmente por mulheres, como Maria de Magdala, sendo que as

características originais foram se perdendo à medida que novos extratos

da tradição foram se fazendo sentir sobre o texto. Esses mesmos autores

sugerem que o papel das mulheres que seguiam Jesus reflete o papel de

importância desempenhado pelas mesmas nessa comunidade. A

hostilidade a Pedro possivelmente está associada á pressão da

comunidade cristã em expansão sobre esse grupo, o qual se dividiu e o

segmento que retornou à influência dos seguidores de Pedro teria dado

origem ao evangelho, escrito por volta de 90. d.C., escondendo a

verdadeira identidade do "discípulo que Jesus amava".

Os autores principais dos evangelhos de Mateus e João foram

decididamente judeus, colaborando para isso o conhecimento que

parecem ter da mentalidade semita e, no caso de João, o ranço contra os

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judeus e a sinagoga somente pode ter sido adquirido quando os cristãos

foram expulsos desse ambiente, o que denota uma proximidade muito

grande desse autor com o universo bíblico judeu.

A tradição da igreja primitiva localiza o autor do Evangelho de

Lucas como sendo um companheiro gentio de Paulo, mas seu

conhecimento da Septuaginta (o Velho Testamento traduzido para o

grego e disponível para os judeus da Diáspora, principalmente) e a data

de redação sugerem como autor um judeu helenista, uma vez que nunca

emprega os semitismos que são comuns nas demais redações dos

evangelhos sinópticos. Quanto a Marcos, ou “marcoses”, a tradição da

igreja lhe atribui uma identidade gentia, mas muitos pesquisadores, a

quase totalidade, estão inclinados a aceita-lo como judeu, mas com

pouco conhecimento ou interesse pelas minúcias da Palestina. Esse

evangelho apresenta o "Jesus" mais próximo da tradição dos seguidores

de Yaveh na TeNaK, ou Antigo Testamento hebraico.

Existem mais de 5000 manuscritos dos evangelhos, alguns como

fragmentos remanescentes, outros como cópias quase completas. Os

mais importantes papiros descobertos são os de Chester Beatty,

encontrados por volta de 1930. O papiro de número 1 apresenta partes

dos quatro evangelhos e do livro Atos dos Apóstolos, do século III d. C.

O número 2 contém grandes trechos das cartas de Paulo, além de

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trechos de Hebreus escritos por volta de 200 d.C. O número 3 possui

grandes fragmentos do Apocalipse de João, datando do século III d. C.

Ainda pode-se citar os manuscritos do bibliógrafo suíço, Martin

Bodmer, do século III d. C., sendo que o mais antigo deles é de

aproximadamente 200 d.C., que contém dois terços do evangelho de

João, enquanto outros da mesma época contém partes significativas dos

evangelhos de Lucas e João.

O fragmento mais antigo do Novo Testamento que temos hoje é

parte do livro de João, mais precisamente, capítulo 18, podendo-se ver

5 versículos ao todo, três de um lado e dois do outro. Foi comprado no

Egito em 1920 e datado como sendo de 100 a 150 d. C., podendo

remontar até ao período do imperador Adriano (117-138 d. C.) ou

mesmo do imperador Trajano (98-117 d. C). Tem-se ainda uma grande

abundância de manuscritos representando toda a evolução da fé cristã,

muitos dos quais remontando ao século III d. C. e a grande maioria do

material evidencia que os evangelhos chegaram até nós com o sentido

inicial relativamente preservado.

Contudo, não se pode negar que numerosos enxertos,

principalmente nas Narrativas da Paixão e Ressurreição, foram feitos

(por exemplo, nas versões mais antigas do Evangelho de Marcos, o

texto termina em Mc 16:8, com o sepulcro vazio, nada relatando sobre a

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ressurreição, e esse texto foi utilizado como base por todos os demais

evangelistas para a redação das suas Narrativas da Ressurreição).

Dos quatro evangelhos canônicos, considera-se que o mais

antigo é de Marcos, escrito por volta de 70 d.C, representando uma

tentativa de fazer a compilação de tradições orais e, provavelmente,

escritas referentes a Jesus de acordo com assuntos e palavras-chaves.

Acredita-se que o trabalho de Marcos fora precedido por um esboço

escrito, possivelmente em aramaico, que resumia os ensinamentos e

atos de Jesus. Os demais sinópticos, Lucas e Mateus, teriam se baseado

em Marcos e em fontes próprias (conhecidas como M e L), sendo que

esses dois últimos poderiam ainda conter uma quantidade variável de

material referente a uma tradição denominada de Q (“Quelle” que em

alemão significa “fonte”), que trazia uma narrativa de frases e ditos de

Jesus e teria sido utilizada para compor os trechos comuns ou próximos

dos dois evangelhos, que teriam sido redigidos por entre 80 e 90 d. C.

Alguns estudiosos acreditam que, ao mesmo tempo que textos

sobre os ditos de Jesus eram redigidos na Palestina, antes de 50 d. C.,

um outro evangelho, abordando apenas os feitos mediúnicos de cura e

desobsessões praticados por Jesus, era redigido. Esse texto se perdeu,

mas parte do seu conteúdo foi incorporado ao material dos evangelhos

canônicos. Alusão a esse texto pode ser lida nos últimos versículos do

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Evangelho de João. A própria igreja cristã acabou eliminando parte dos

fenômenos mediúnicos que acompanharam a tradição oral e escrita,

visto que os mesmos podiam ser fonte de constrangimento para os

cristãos em populações não judias, para onde a fé se disseminava.

Outro aspecto relevante do estudo dos evangelhos é a

determinação de uma ordem cronológica dos eventos narrados. A não

ser os pontos mais relevantes, como o batismo de Jesus por João, no rio

Jordão, e as etapas finais de sua jornada em Jerusalém, por ocasião da

Páscoa judaica, não se pode estabelecer um quadro histórico ordenado

da vida do Cristo, de forma que tentar harmonizar os textos canônicos,

produzindo um quadro coerente e compreensível, é pura fantasia e os

resultados, quase sempre, traduzem mais as concepções pessoais do

estudioso do que uma seqüência real de fatos.

Dentre todas as fontes sobre Jesus, a mais enigmática é a fonte

"Q", que teria sido redigida em extratos progressivos, englobando

dizeres de sabedoria, passando para dizeres apocalipsistas e, finalmente,

discursos relativos à “figura histórica” de Jesus, possivelmente retratado

como um mestre de sabedoria, sendo que essa imagem pode ter sido

compartilhada por parcela significativa dos primeiros cristãos,

conhecidos como ebionitas e nazarenos, os quais mantiveram tantos

laços com o judaísmo original que foram consideradas seitas heréticas

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no século IV e acabaram retornando para o seio da religião judia

original. Acredita-se que muitos desses cristãos acabaram sendo

expelidos dos impérios romano e bizantino, indo se alojar em Medina,

na atual Arábia Saudita, e influenciariam Maomé na elaboração do

Alcorão, norteando a visão que os muçulmanos têm de Jesus.

Fora dos evangelhos, o Novo Testamento é pobre em citações

capazes de colaborar com um estudo sobre a vida física do Cristo, quase

sempre se limitando a discutir aspectos centrais da fé cristã, como o

papel de Jesus na salvação, sua condição como Filho de Deus, eventos

após a crucificação e a condição que imperava nas novas comunidades

cristãs. Entretanto, algumas citações, como de Paulo sobre os apóstolos

e Tiago, “ o irmão do Senhor segundo a carne”, bem como a existência

de antigos credos cristãos (Didaque) podem corroborar para

compreendermos os demais textos canônicos.

Como aproximadamente um terço do Novo Testamento foi

redigido por Paulo ou por seus discípulos, os quais são considerados

como os verdadeiros fundadores do cristianismo helenizado, é

frustrante a falta de citações de valor histórico nesses textos. Paulo

escreveu muito mais cartas do que as que lhe são habitualmente

atribuídas no Novo Testamento, mas a Epístola aos Hebreus, 1 e 2

Timóteo, Tito, Colossenses e Efésios são consideradas obras de seus

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discípulos ou imitadores posteriores, mas todas trazem a marca que as

caracteriza: o Jesus da Galiléia não é importante, apenas nasceu para

que o Cristo viesse a emergir da fé, trazendo muitos aspectos lendários

e místicos. Em poucas palavras, Paulo pouco ou nada sabia de Jesus.

Nas cartas de Paulo, por exemplo, a preocupação central do

autor é morte e ressurreição de Jesus, de forma que os atos do mestre

simplesmente carecem de importância, a não ser quando Paulo defende

pontos polêmicos de sua teologia e necessita de alguma citação daquele

que estava muito acima para justificar suas palavras, como acontece

com a questão do divórcio, onde Jesus o proíbe com veemência e Paulo

utiliza esse material (1Coríntios 7:10-11). Paulo se afasta o máximo

possível da figura do Jesus da história, primeiramente por que não o

conhecera em vida e esse era seu calcanhar de Aquiles.

Além desse aspecto, o conhecimento que ele relata de Jesus vem

mais de seus mentores espirituais do que de pessoas com as quais ele

travou contato na Palestina, uma vez que nunca foi aceito entre os

judeus cristãos e sempre foi visto como alguém de fora e que tinha

tentado sepultar a nova fé; sempre foi visto como um vira-casaca, um

traidor que poderia se voltar contra os cristãos novamente. Como Paulo

não conseguia explicar suas visões de Jesus em espírito e ele atribuía o

seu conhecimento do mestre à figura do “Senhor Ressurreto”. A

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complexidade de um mundo espiritual, vidas sucessivas e

responsabilidade individual foram lentamente ganhando corpo na mente

dos apóstolos e muitos reentraram nos planos espirituais sem uma

compreensão maior; o próprio Jesus previra isso; Paulo não tinha

compreensão real do que ocorria ao seu redor, mas claramente passou a

perceber que um mundo diferente se descortinava diante de seus olhos

espirituais.

Como a historia das igrejas cristãs nos conta, a maioria dos

primeiros pregadores cristãos teria sido martirizada, tendo encontrado a

morte nas condições mais nefastas e, como coloca Pascal, “Acredito

com mais facilidade nas histórias cujas testemunhas se deixaram

martirizar em comprovação de seu testemunho”. Esse talvez seja um

dos mais convincentes argumentos a favor de uma historicidade de

fundo para os eventos narrados nos evangelhos.

2.3 Flávio Josefo

Poucas são as citações de autores não cristãos, em fins do século

I e início do século II d.C, que podem nos trazer alguma informação

sobre Jesus, o que revela que muito pouco interesse foi dedicado pelo

público greco-romano ou judaico sobre o novo movimento, pelo menos

inicialmente. A grande maioria das citações a Jesus se relaciona a

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Jesus: homem e espírito

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autores que direta ou indiretamente tiveram contato com cristãos, mas

não com o fundador do movimento e se acham envoltas em numerosos

problemas de autenticidade e interpretação.

Dentre todos os autores que nos remetem aos primeiros tempos

do cristianismo, merece destaque o historiador judeu José, filho de

Matias, ou Flávio Josefo (37/38 d.C.-100 d. C.). Esse personagem deve

seu nome aos seus protetores e benfeitores, os imperadores flavianos

(Vespasiano e seus filhos, Tito e Domiciano), para os quais passou a

trabalhar depois dos eventos dramáticos da rebelião judaica de 66 d. C.,

que culminou com a destruição de Jerusalém e, em última instância,

com o judaísmo que existia até então. Como autor redigiu duas grandes

obras, “A guerra dos judeus”, escrita logo antes da queda de Jerusalém,

e “Antiguidades Judaicas” em 93-94 d. C. Essas obras possuem

algumas citações a Jesus, mas é crível supor que, pelo menos

parcialmente, essas citações seriam fruto de algum escriba cristão

posterior, o que coloca em cheque a credibilidade de todo o texto como

fonte de material histórico.

Dentre essas citações, a mais controvertida é uma citação

encontrada apenas em alguns manuscritos russos, ou eslavônicos, de A

guerra dos Judeus, na qual o autor faz uma longa descrição sobre o

Cristo, onde aparecem numerosos elementos típicos dos evangelhos

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apócrifos dos séculos II e III d. C., de forma que esse texto vem sendo

veemente classificado como falso. Entretanto, Flávio Josefo ainda faz

outras citações cuja autenticidade é de difícil comprovação. Como

coloca J. P. Meier, a mais curta e menos discutida se dá numa tentativa

de explicar os eventos que ocorreram após a morte do procurador

romano Festo e sua sucessão por Albino, o que teria ocorrido em 62

d.C. Quando Albino ainda estava a caminho da Palestina, o Sumo

Sacerdote Hananias, o Jovem, convoca o Sanedrim ( Sinédrio) sem o

conhecimento do procurador e condena à morte alguns inimigos seus.

O trecho fundamental, segundo J. P. Meier, diz: “Sendo portanto

esse tipo de pessoa (um saduceu desalmado), Hananias, pensando ter

uma oportunidade favorável, pois que Festo havia morrido e Albino

ainda estava a caminho, convocou uma assembléia de juízes e colocou

diante dela o irmão de Jesus que-é-cognominado-Messias, de nome

Tiago, e alguns outros. Acusou-os de terem transgredido a lei e os

entregou para serem apedrejados.”

Aparentemente a morte desse Tiago, irmão de Jesus, que-é-

cognominado-Messias, levou à deposição de Hananias, o judeu mais

importante da Judéia e de toda a comunidade judaica na Palestina e da

Diáspora. Esse irmão de Jesus também é citado por outros autores,

como veremos posteriormente e era muito respeitado pela comunidade

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Jesus: homem e espírito

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farisaica, a qual se revoltou e conseguiu a deposição do Sumo Sacerdote

(repare o relacionamento favorável entre um membro da família de

Jesus e os fariseus antes da revolta contra Roma; isso não é condizente

com a forma com que os fariseus são retratados nos evangelhos, que são

mais tardios).

Essa passagem é bastante interessante posto que não está

carregada de teologia cristã e pode ser facilmente aceita como autêntica,

uma vez que o único papel de Jesus no texto é facilitar a identificação

de outro indivíduo denominado Tiago, nome muito comum entre os

judeus da Diáspora e mesmo em Israel naqueles dias, de maneira a não

nos sentimos inclinados a pensar que um copista cristão iria se referir a

Jesus dessa forma. Essa citação é encontrada, também, na principal

tradução do texto em grego, sem alterações significantes, e também

pode ser confirmada por Eusébio, um historiador da igreja, no século

IV, que cita Josefo em sua História Eclesiástica. A expressão “irmão do

Senhor” tornou a ser empregada por Paulo, que não morria de amores

por Tiago, em Gálatas (1:19). Hegesipo ainda menciona “um primo do

Senhor”, “irmão de sangue (do Senhor)” e “os irmãos do Senhor”, o que

vai contra a expressão “irmão de Jesus” empregada por Josefo.

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Outra menção de Flávio Josefo a Jesus pode ser encontrada no

Testimonium Flavianum. A versão apresentada foi retirada da extensa e

completa obra acadêmica de J. P. Meier, como se segue:

“Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio, se na

verdade podemos chamá-lo de homem. Pois ele foi o autor de feitos

surpreendentes , um mestre de pessoas que recebem a verdade com

prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como entre

muitos de origem grega. Ele era o Messias. E quando Pilatos, por

causa de uma acusação feitas por nossos homens mais proeminentes ,

condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de

ama-lo. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia, novamente vivo,

exatamente como os profetas divinos haviam falado desde e de

incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele. E até hoje a tribo dos

cristãos, que deve este nome a ele, não desapareceu.”

Não precisamos de muita erudição para perceber que uma série

de enxertos no texto destoam em estilo e conteúdo. Atualmente a

grande maioria dos estudiosos não mais considera esse fragmento como

sendo a expressão inicial de autor, mas sim um amálgama do texto

original sob a vontade de um copista cristão muito zeloso de sua fé.

Expressões como “se na verdade podemos chamá-lo de homem” (e os

demais negritos do texto), visa atribuir a Jesus uma natureza sobre

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Jesus: homem e espírito

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humana, o que obviamente não condiz com a visão que um judeu

praticante, como Josefo, teria do mestre e parece, indubitavelmente,

uma inserção cristã posterior. A sentença “Ele era o Messias” pode

dispensar comentários adicionais, visto que se trata de uma cabal

manifestação de fé em Jesus e reflete uma teologia muito claramente

evidenciada em Lucas (23:35), João (7:26), Atos dos Apóstolos (9:22) e

está fora de posição no contexto.

Porém, a parte mais impregnada de teologia cristã posterior

refere-se a “Pois ele lhes apareceu no terceiro dia, novamente vivo,

exatamente como os profetas divinos haviam falado desde e de

incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele”, que aparece nos mais

antigos credos cristãos datando da mesma época em que Paulo escrevia

suas cartas.

Assim, como mostra Meier, se retirarmos os enxertos acima

mencionados, o texto de Josefo adquire uma grande fluidez de idéias e

perde uma massa que parece deteriorá-lo:

“Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Pois ele foi o

autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a

verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos

judeus, como entre muitos de origem grega. E quando Pilatos, por

causa de uma acusação feitas por nossos homens mais proeminentes,

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condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de

amá-lo. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve este nome a ele, não

desapareceu”.

Ao analisarmos o remanescente, podemos observar que, a

despeito de um tom de respeito, não existe absolutamente nada que

possa ser considerado como oriundo de um cristão e nos parece mais

ligado ao estilo de Josefo e ao tipo de observação que um judeu do

mundo greco-romano faria. A linguagem passa a se distinguir

ativamente daquela observada no Novo Testamento. Essa passagem

também possui a vantagem de ser encontrada em todos os manuscritos

de origem grega e latina, o que dificultaria a sua maior deturpação.

Pode-se ainda questionar se este trecho não serviria para

confirmar a época e condições da morte de Jesus, bem como a

participação de alguns autores desse pesado drama, como o Sanedrim e

Pilatos, além de mostrar que os seguidores de Jesus logo se espalharam

no seio da comunidade judaica e gentia. Entretanto, como muito bem

observado por Meier, a descrição da participação dos judeus na

condenação de Jesus, no texto acima, não corresponde ao comumente

observado nos evangelhos, de forma a confirmar a idéia de que, pelo

menos uma parte do texto, constitui uma fonte de confirmação de dados

a respeito de Jesus.

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Nesse texto, a responsabilidade dos judeus na crucificação fica

restrita á denuncia contra o homem sábio, enquanto nos evangelhos, em

particular João, a condenação do Cristo se deu por uma conjunção de

fatores religiosos (as heresias cometidas por um galileu que pregava que

nada deveria separar o filho de seu Pai e o amor fraterno, a necessidade

de arrependimento, a iminência da chegada do Reino de Deus, o

domínio sobre a morte, como ocorreu em Lázaro, causa que João atribui

à crucificação) e políticos (o conceito de que aquele homem poderia

reclamar qualquer relação com uma linhagem davídica e seu peso

messiânico).

As fontes de Josefo permanecem obscuras, sendo que talvez o

historiador tenha entrado em contato com alguns cristãos em Roma, ou

com o próprio Lucas, mas Josefo parece saber mais sobre Jesus do que

sobre os cristãos. É possível que, na condição de protegido dos

imperadores flavianos, Josefo tivesse acesso aos relatórios dos

administradores provinciais do império em Roma. Muitos têm

perguntado porque Josefo não teria se aprofundado mais sobre uma

figura tão importante do século I d C., mas ele estava mais interessado

em questões políticas e na luta contra Roma, assim o próprio João

Batista merecia mais atenção, visto que muitos consideravam-no uma

ameaça política maior que Jesus.

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2.4 Tácito. O historiador romano e outros

Tácito deixou a mais importante referência de Jesus fora do

Novo Testamento, visto que a citação aos cristãos está carregada de

preconceitos e mostra-se claramente em oposição a esse grupo, como se

nota abaixo , conforme texto de Edwin Yamauchi:

“...para acabar com os rumores, (Nero) acusou falsamente as

pessoas comumente chamadas de cristãs, que eram odiadas por suas

atrocidades, e as puniu com as mais terríveis torturas. Christus, o que

deu origem ao nome cristão, foi condenado á morte por Pôncio Pilatos,

durante reinado de Tibério; mas reprimida por algum tempo, a

superstição perniciosa irrompeu novamente, não apenas em toda a

Judéia, onde o problema teve início, mas também por toda a cidade de

Roma.”

Embora o nome de Jesus não seja explicitamente citado, Tácito

revela numerosas informações sobre ele e sobre o movimento cristão

nos seus primeiros momentos. Não devemos nos esquecer que, para um

romano dessa época, não havia fato mais abominável do que elevar à

condição de um quase-deus (ou mesmo deus) um homem crucificado.

Esse método de condenar alguém à morte somente era praticado contra

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a escória do império e trazia a imagem do abominável mundo que

caracterizava a periferia dos domínios romanos.

Tácito (56/57-118 d. C.) escreveu os “Anais” como sua última

grande obra, onde pretendia narrar toda a história de Roma de 14 d.C. a

68 d. C. A despeito da perda de extensos fragmentos dos livros

(lamentavelmente os que retratavam o período de 29 d. C. a 32 d. C.

também foram perdidos), ainda podemos utilizá-lo para uma

caracterização do Império Romano no século I d. C. Hoje acredita-se

que essa passagem é, de fato, genuína. Primeiramente, podemos reparar

o tom anti-cristão adotado pelo autor, o que por si só já invalidaria a

hipótese de que mãos cristãs teriam produzido o texto. Tácito citara

apenas o que era do conhecimento geral a respeito dos cristãos, em

meados do século II d. C. e, na condição de governador da província da

Ásia (atual Turquia), teve contato com numerosos grupos cristãos.

Apenas os evangelhos, epístolas e cartas do Novo Testamento,

Josefo e Tácito fazem relatos independentes de Jesus, enquanto

Suetônio, Plínio (o Jovem) e Luciano descrevem atividades de

comunidades cristãs primitivas e não podemos extrair muitos elementos

para caracterizar o galileu que dividiu a história do mundo.

Suetônio fala da expulsão dos judeus de Roma (...”como os

judeus estavam constantemente causando distúrbios por instigação de

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Cresto, ele os expulsou de Roma”), provavelmente sugerindo que os

judeus cristãos estavam propagando a sua fé nas sinagogas romanas

(Meier) por volta da quarta e quinta décadas do século I d. C. Já Plínio,

o Jovem, descreve como os romanos lidavam com os cristãos durante

suas atividades como procônsul da Bitínia, evidenciando que Jesus era

cultuado como a um deus, sendo que esse texto teria sido escrito por

volta de 111 d. C., enquanto Luciano de Samosata (150-200 d. C.,

aproximadamente) escreve sobre as atividades dos cristãos nesse

período, ironizando-os com escárnio.

Referindo-se à morte de Jesus e suas implicações, Justino, o

Mártir, no século II d. C. diz “Que essas coisas realmente aconteceram

podes averiguar nos Atos de Pôncio Pilatos”, um texto apócrifo. Os

milagres de Jesus também parecem ter sido registrados nesses “Atos”,

uma vez que o mártir relata “Que ele fez essas coisas, podes saber dos

Atos de Pôncio Pilatos”. Esse texto de Pilatos, se algum dia existiu, não

existe mais, mas pelo menos Justino acreditava na sua existência.

2.5 Outras Fontes Judaicas e o Alcorão

Poucas fontes judaicas estão disponíveis para a pesquisa que

agora se apresenta. Poderíamos abordar os primeiros escritos rabínicos

desenvolvidos a partir do século II d. C. e os manuscritos descobertos

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nas imediações do Mar Morto a partir de 1947, os manuscritos do Mar

Morto, já mencionados quando falamos dos grupos religiosos dentro do

judaísmo palestino do século I. d. C.

Os manuscritos do Mar Morto permitiram uma excepcional

caracterização dos diferentes nichos e feições do judaísmo no século I

d. C., possuindo numerosos paralelos com filosofias e posturas

consideradas, até então, tipicamente cristãs. Um profundo pensamento

apocalíptico e sapiencial, gnóstico, dominava a Palestina, sendo

numerosos os paralelos com os evangelhos sinópticos, Epístolas de

Paulo, Epístola aos Hebreus e o Apocalipse de João. Mas esses textos

possuem uma origem bastante discutível e parecem não terem sido

escritos apenas por uma seita sectária judia, tampouco permitem uma

análise segura da época em que foram redigidos (do século III a. C ao

século I d. C). Nesses escritos aparecem personagens interessantes

como o Sacerdote Ímpio e o Mestre da Justiça ou Retidão, mas nada nos

permite supor que uma dessas figuras possa ter alguma relação com

Jesus (embora alguns autores mais imaginosos tenham sugerido que

Jesus ou seu irmão Tiago sejam o Mestre da Retidão). Em poucas

palavras: Jesus não existe para os textos de Qumran.

Poucas citações de qualidade podem ser encontradas em outros

textos judaicos, merecendo destaque a Mishná, do século II d. C e III d.

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C. A maioria das informações presentes não reflete um pensamento

refinado a respeito do mestre galileu, mas apenas uma reação tardia à

propagação do cristianismo. Jesus é caracterizado como um mago que

realizou feitos notáveis de bruxaria e levou Israel para o caminho da

apostasia. Reparem que tais textos não tentam eliminar o fato de que ele

fez coisas maravilhosas, mas apenas atribuem a fonte do poder de Jesus

a forças maléficas. Nesse caso, como se trata de um texto de resposta à

expansão cristã, é de se admirar que os judeus não tenham tentado

eliminar as histórias de “milagres” e isso provavelmente se deu porque

essas histórias eram do conhecimento mais ou menos geral e não

poderiam ser negadas.

As referências ao galileu presentes no Talmude são, como

coloca o estudioso judeu Joseph Klausner, de pouco valor, posto que

são tardias e reacionais, como as apresentadas na Mishná. O próprio

Talmude (Palestino e Babilônico) não apresenta nenhum mestre judeu

do século I d. C., enquanto que o conteúdo do século II. d. C. se refere

mais a calúnias contra o cristianismo. Como sugere Meier , ”o resultado

final é tão pobre, que seu único valor prático é comprovar a existência

de Jesus”. Os autores judeus parecem utilizar os evangelhos canônicos

para criar as versões para difamar Jesus.

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Muitos dos textos que ateus empregam para desqualificar a

origem de Jesus se baseiam em alguns trechos do Talmude que sugerem

que o “rabino” galileu era fruto de um relacionamento de uma jovem

judia com um soldado romano denominado de Panthera. Nesse sentido,

os nazistas, querendo evidenciar que Jesus era merecedor do sublime

título de “homem ariano”, segundo as leis raciais de Nuremberg, de

1936, se basearam nessa história para sustentar a hipótese de que seu

pai era um legionário romano de origem gaulesa, européia portanto.

Orígenes (185-254 d. C.) relata ter ouvido essa história de um judeu,

evidenciando uma reação aos textos evangélicos de Mateus e Lucas,

com sua descrição do nascimento virginal, que por si só traz muitos

aspectos do mundo da mitologia e das lendas dos povos da antigüidade.

Entretanto, existe uma citação talmúdica a um tal Yeshu (Jesus) que foi

enforcado na véspera da Páscoa judia depois de ter desencaminhado a

nação.

O Alcorão, escrito séculos após a morte de Jesus, não nos traz

nada de significativo sobre o mestre galileu, mas, pelo contrário,

incorpora toda uma série de lendas e contos sobre esse que os

muçulmanos acreditam ser um dos pilares santos da revelação de Deus

aos homens. Essas tradições possivelmente chegaram até Maomé

através de rotas comerciais na península Arábica e podem ter relação

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com antigos grupos de cristãos nazarenos e ebionitas que haviam sido

expulsos do mundo romano com a ascensão do cristianismo latino.

Assim, por exemplo, traz que Jesus não teria morrido na cruz,

tendo sobrevivido ao martírio. Essa história pode ter se originado entre

120 e 130 d. C., com um herege denominado de Basilides, que teria

escrito, em Alexandria, que a morte de Jesus na cruz teria sido uma

farsa e que Simão de Cyrene o substituíra na hora derradeira. A imagem

do messias de Nazaré que emerge do Alcorão é respeitosa, mas

tipicamente medieval, totalmente destituída dos traços culturais do

século I d. C. Muitos milagres são narrados, sendo que os mesmos

foram realizados por Deus para validar as “pregações do seu enviado”.

Nesses textos, Jesus não é tratado como o Filho de Deus, mas como um

grande servo de Allah, é um messias, um espírito enviado por Deus.

As palavras do Alcorão separam totalmente as palavras do

mestre galileu das ansiedades do povo judeu do século I d. C., trazendo

estórias que eram freqüentemente contadas no final do primeiro milênio

da era comum. Com esses elementos, fica claro que os muçulmanos não

aceitam a figura da Trindade Cristã, criada pelos missionários cristãos

que falavam grego e que não haviam convivido com Jesus. Ele, nosso

mestre, era sublime, mas sempre se reportou ao Pai como se fosse mais

um filho do “Senhor dos muitos mundos e moradas”.

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Muito interessante é a observação do papel atribuído a Maria no

olhar muçulmano, onde a mesma é considerada como um sinal, tendo

sido escolhida dentre todas as mulheres em função de toda sua fé e

pureza. Deus a teria poupado de toda sorte de impurezas, existindo

fortes indícios no texto de que a mesma teria se mantido virgem, casta,

por toda sua vida, algo muito propagado pelas igrejas cristãs naquela

época, particularmente na Síria, onde o culto à Maria foi

excepcionalmente intenso. No século II d. C., o Protoevangelium de

Tiago (um evangelho apócrifo) introduz a imagem de José, pai de Jesus,

como sendo um viúvo, idoso, aparentemente pouco inteligente,

causando problemas para seu filho adotivo, Jesus, e essa imagem foi

transferida para o Alcorão. Nada mais incongruente e inverídico, uma

vez que José era um homem prático, simples e extremamente

inteligente.

2.6 Os evangelhos apócrifos como fontes

Muitos livros outrora populares em diversas comunidades

cristãs, como o Apocalipse de Pedro, o Evangelho de Tomé e o Pastor

de Hermas, foram considerados “não inspirados”, ou apócrifos, na

medida que o “Jesus” que deles emergia era diferente daquele

reverenciado pela ortodoxia que se tornava dominante na igreja, mas

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realmente algumas dessas obras são exercícios de ficção muito mal

elaborados, enquanto outros mostram um Jesus bastante semita, judeu,

muito próximo de antigas tradições e merecem mais atenção. Outros

textos sobre a comunidade judaico-cristã primitiva existem somente em

pequenos fragmentos ou foram perdidos, como os Atos de Tomé, Atos

de Paulo e Atos de Pedro, segundo o erudito J. P. Meier.

A grande maioria desses textos traz a marca da falsificação ou

de um sensacionalismo que beira o absurdo. Modificações de ditos e

passagens dos evangelhos canônicos, bem como lendas e histórias de

feitos pagãos recheados de pseudo cristianismo podem ser encontrados

em praticamente todos eles. Outro aspecto que merece consideração é o

período em que esses ensaios foram produzidos, por volta do século II

ao século VI d. C., o que os torna muito tardios para terem um valor

histórico como fonte de evidências com um mínimo de credibilidade.

Os poucos que chegaram até os nossos dias relativamente

intactos foram o Protevangelium Jacobi (Protoevangelho de Tiago) e o

Evangelho da Infância de Tomé, apresentando Jesus como uma criança

que beira as raias da delinqüência, totalmente dominada por fúria

colérica e desejos mundanos. Outras obras, como os evangelhos judeus-

cristãos (evangelho dos Egípcios, dos Nazarenos, dos Ebionitas ou dos

Hebreus), chegaram apenas na forma de fragmentos esparsos ou

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citações de integrantes da igreja greco-romana e essa perda foi grande,

posto que, ao que tudo indica, traziam um Jesus judeu que, a despeito

de feitos extraordinários, era um mestre de sabedoria. Nesses textos, o

conteúdo gnóstico era parte de sua estrutura e a salvação era obtida com

o conhecimento da realidade interior e a fé.

O Evangelho dos Egípcios sobreviveu apenas na forma de

citações de autores antigos e é independente dos evangelhos canônicos,

tendo sido redigido por volta de 60 d. C., trazendo ditos de Jesus

redigidos e organizados de forma mais estruturada do que o Evangelho

de Tomé, devendo ser posterior a esse. O Evangelho dos Nazarenos

segue a linha dos trabalhos referentes ao Evangelho de Mateus,

podendo representar uma versão do mesmo para o aramaico, além de

uma construção moralizadora e que incorpora um certo toque lendário.

Nesse evangelho do início do século II d. C., Jesus se nega a procurar

João Batista para ser batizado, alegando não ter pecado. O Evangelho

dos Ebionitas reflete a visão que esse grupo de judeu-cristãos possuía e

foi redigido com o conhecimento prévio dos evangelhos sinópticos,

enquanto o Evangelho dos Hebreus, em seus sete fragmentos restantes,

realça a figura de Tiago, o irmão de Jesus, e se destina aos judeus da

Diáspora que falavam grego e assume um tom mitológico e gnóstico,

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encarando Jesus como sendo a encarnação da sabedoria divina e deve

ter sido redigido até a data de 50 d. C., o que o torna bastante antigo.

O Evangelho de Barnabé, muito popular, é aparentemente uma

falsificação grosseira de um convertido ao islamismo na Idade Média,

com 222 capítulos, narra que Jesus não morreu na cruz e foi Judas quem

o substituiu no martírio, enquanto Jesus anuncia a vinda daquele que

iria concluir sua obra, Maomé. Reparem como o papel aceita tudo que o

seu proprietário assim o deseja. Para detalhes, recomendo a obra de Bart

Ehrman, intitulada “O que Jesus disse ou não disse e porque”.

O Evangelho de Judas foi citado no final do século II d. C., por

volta de 180 d.C., por Irineu, que o critica por mostrar Judas com uma

imagem totalmente diferente da apresentada pelos evangelhos

canônicos. A cópia existente, redigida entre 220 e 340 d. C., evidencia

que a traição de Judas teria sido arquitetada pelo próprio Jesus e pinta

uma imagem desse apóstolo como sendo um dos preferidos do mestre

galileu e o único que o teria compreendido e sentido a necessidade do

martírio do seu amado mestre, alem de ter sido o único a reconhecer a

origem divina de Jesus. Importante por trazer informações sobre a

pluralidade de crenças cristãs dos primeiros séculos, esse evangelho

apresenta dados característicos de textos gnósticos mais tardios e não

apresenta elementos que possam ser utilizados para a pesquisa séria do

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Jesus: homem e espírito

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Jesus que um dia caminhou pela Palestina. A teologia nele contida,

como a divinização de Jesus, permite datá-lo como uma obra do século

II d. C., por volta de 120-150 anos após a crucificação do mestre.

No século XIX, veio à “vida”, novamente, porções do

Evangelho de Maria, que embora não traga a identidade dessa “Maria”,

supõe-se que se trate de Maria de Magdala (Maria Madalena), a qual é

retratada como tendo sido iluminada e teria recebido conhecimentos

secretos diretamente de Jesus, passando a atuar como um guia para os

apóstolos. Pedro, seu duro opositor dentro do grupo mais íntimo de

Jesus, é retratado como um conservador recalcitrante que não aceita a

importância daquela mulher. Os fragmentos remanescentes desse texto

evidenciam uma redação tardia e bastante influenciada pelo

gnosticismo, mas permite avaliar que, pelo menos em algumas

comunidades cristãs, as mulheres apresentavam um “status quo”

elevado e semelhante ao homens, como o próprio Jesus parecia desejar

que tivessem.

As informações descritas nesse texto são, em parte, verdadeiras,

uma vez que Maria de Magdala era uma médium extraordinária, não

apenas vidente, como mostram as Narrativas da Ressurreição, mas

também de cura e efeitos físicos. Sua sensibilidade e amabilidade,

adquiridas após a desobsessão promovida por Jesus e modificação

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profunda na sua maneira de agir e pensar (por favor, lembrem-se que

ela NUNCA foi uma prostituta arrependida, como tentaram caracterizá-

la nos últimos 1500 anos), fizeram-na a melhor intérprete de Jesus na

primeira geração de cristãos e a afinidade dela com o mestre acabou

gerando todo tipo de história depreciativa nos últimos 2000 anos. Maria

de Magdala foi um dos esteios da primeira geração de cristãos,

estabelecendo sólido apoio à figura feminina nos textos evangélicos,

juntamente com Maria, de Nazaré, a nossa eterna mãe.

Os poucos fragmentos disponíveis do Evangelho de Pedro,

descobertos em fins do século XIX, em Akhmim, alto Egito,

apresentam aspectos de antiguidade e conhecimentos bastante

peculiares, podendo-se observar as marcas de um outro texto mais

antigo denominado Evangelho da Cruz, em seu interior, o qual seria tão

antigo que foi tomado como única fonte de informações pelos autores

dos textos sinópticos sobre o drama da paixão, segundo Crossan. Esse

Evangelho da Cruz foi escrito em meados do século I d. C. e tomado

por Marcos como única fonte para sua Narrativa da Paixão, a qual teria

sido empregada como base pelos outros escritos canônicos, que também

tinham conhecimento do Evangelho da Cruz.

No Evangelho de Pedro, o Jesus ressurreto não teria um corpo

físico, mas apenas uma aparência física e teria aparecido para centuriões

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romanos e autoridades judias, que teriam admitido a culpa na

crucificação do Justo, algo muito pouco provável para meados do

século I. d. C. Entretanto, é bastante elucidativo que a ressurreição

física do mestre galileu não fosse universalmente aceita nas

comunidades cristãs, existindo aquelas que descreviam as aparições de

Jesus como materializações de uma entidade não corpórea; uma

ressurreição em espírito, como prova da vitória sobre a morte.

Tem-se ainda o Egerton Papyrus 2, representado por 4 pequenos

fragmentos, escritos baseando-se no quarto evangelho (João). Outros

trechos dos fragmentos denotam conhecimento de Marcos. Várias

considerações nos levam a ponderar sobre o valor do texto como fonte

de material sobre o Jesus da história: os termos empregados (mestre

Jesus, por exemplo) não refletem a linguagem dos judeus do início do

século I d. C., somente se popularizando a partir da destruição do

Segundo Templo. Expressões como “Rabi X”, somente poderiam ser

empregadas quando essa forma de falar já estivesse consagrada nos

meios cristãos, obviamente após a composição do Evangelho de

Marcos. Contudo, alguns acadêmicos acreditam que embora o texto

encontrado date do século II ou III, algumas de suas características

podem remontar à década de 50 a. C., um verdadeiro tesouro.

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John Dominic Crossan sugere que tanto os evangelhos

sinópticos quanto João também se basearam em um evangelho apócrifo

denominado de Evangelho Secreto de Marcos, cujo fragmento teria sido

descoberto por Morton Smith, da Universidade Columbia, em 1958, em

cópia de cartas do século XVIII, em um mosteiro ortodoxo. Entretanto

os fragmentos descobertos ainda não foram examinados

detalhadamente, de forma que a possibilidade de fraudes não pode ser

totalmente descartada (pode até ser provável, visto que o texto teria sido

examinado apenas pelo referido professor e nada pode comprovar, até o

momento, sua autenticidade). Clemente de Alexandria, entre 150 e 215

d. C aproximadamente, teria relatado a existência desse evangelho.

Clemente relata que Marcos teria escrito um evangelho público

a partir dos relatos de Pedro, no período em que esse último teria estado

em Roma e, após o martírio de Pedro, teria se deslocado para

Alexandria com material desse apóstolo e suas próprias anotações,

redigindo um evangelho mais espiritualista para os que perseguiam o

caminho da perfeição. Esse seria o Evangelho Secreto.

De todos os textos apócrifos nenhum mereceu maior atenção do

que os descobertos em Nag Hammadi, no Egito Superior, em 1945. De

nosso interesse merece destaque o Evangelho de Tomé, Evangelho da

Verdade e o de Felipe.

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O Evangelho da Verdade trata-se, na realidade, de um texto que

contém um verdadeiro tratado teológico e nada tem a ver com os textos

do cânone. Ele realça o papel de Jesus na salvação da humanidade e

deve ter sido redigido entre 140-180 d. C. No caso do Evangelho de

Felipe, o texto realmente contém palavras e atos de Jesus, com ou sem

equivalentes no cânone, em meio a uma redação desconexa e

tipicamente fantasiosa dos textos mais tardios. Esse texto sugere que

Maria de Magdala era a companheira carnal de Jesus, com o qual

trocava beijos (embora não cite em que região anatômica os beijos eram

trocados). O nome do seu autor é desconhecido e nós o conhecemos

com a denominação supra mencionada por que Felipe é o único

apóstolo nomeado no texto.

Entretanto, nenhuma discussão sobre a importância dos textos

apócrifos e sua datação se compara com o que estamos presenciando

com o Evangelho de Tomé, o qual é uma coleção de 114 dizeres de

Jesus praticamente destituídos de uma base de narrativa. A maioria

desses ditos não perece estar ligada ao restante da obra de forma coesa,

apenas associada por palavras-chave ou motivos-chave. A versão

disponível em grego parece remontar a 200 d. C., enquanto a versão em

copta é de 340 d. C.

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Além dos achados de Nag Hammadi, fragmentos desse

evangelho foram encontrados em uma forma mais original junto á

antiga cidade egípcia de Oxirinco e os mais antigos fragmentos

remontam ao século II d.C., enquanto a obra teria ganhado a

composição final por volta do ano 200 d. C. Nem todos sugerem que o

Evangelho de Tomé represente uma coleção tardia. Crossan e outros

acreditam que sua redação foi realizada por extratos, sendo que o

primeiro data de, aproximadamente, 50 d. C e teria Tiago, irmão de

Jesus, como seu “editor”, e um segundo extrato, redigido na Síria, em

Edessa, que teria sido compilado por Tomé. Nesse evangelho não existe

qualquer narrativa da paixão e Jesus é caracterizado como um grande

mestre sapiencial e não é denominado de “Cristo” ou “Mestre”,

denotando também uma postura mais próxima do que seria de se

esperar da igreja nos primeiros anos após a crucificação, sem a

roupagem teológica que esses textos ganharam. Contudo, poucos

aspectos da vida do Jesus histórico vêm à tona nesse evangelho.

As parábolas que permeiam o Evangelho de Tomé se

assemelham admiravelmente com as reconstruções “mais originais” dos

sinópticos criadas no início do século XX, sendo que suas palavras

podem ser facilmente revertidas para o aramaico e têm o ritmo e a

retórica que os exegetas atribuem às palavras autênticas de Jesus,

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sugerindo uma influência do suposto documento “Q”, característica

única entre os documentos apócrifos. Possivelmente, o Evangelho de

Tomé representa uma tradição autêntica e independente de Jesus e

acrescenta elementos de estudo que permitem uma reconstrução mais

acurada das palavras do rabi galileu, o qual emerge do texto como um

judeu pio e justo.

2.7 Arquivos espirituais.

Muitas fontes espíritas ou espiritualistas fazem menções à

existência de arquivos universais que conteriam todas as informações

pertinentes aos eventos, maiores ou menores, que tiveram o mundo

como palco, desde sua criação. São denominados de diferentes

maneiras, como por exemplo “arquivos siderais”, “arquivos akásicos”

etc.

A literatura espírita que recebeu a honra de vir à tona pelas mãos

do querido médium mineiro Chico Xavier, embora apresente pequenas

incorreções periféricas, é de enorme valia para todos os diferentes

aspectos que caracterizam o espiritismo moderno e esses textos, aliados

aos de médiuns como Carlos Baccelli e outros, fica bastante claro que,

nos planos espirituais que bordejam o plano físico em que vivemos, as

informações sobre Jesus e seus apóstolos não diferem

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significativamente daquela que está disponível em nosso próprio

mundo, destacando-se o fato de que, mesmo lá, nossa formação

religiosa ainda interfere sobremaneira na interpretação dada às palavras

evangélicas e isso está de acordo com o conceito de que a morte

representa uma passagem de estado, não uma transformação real. Lá, do

outro lado desse véu, continuamos a ser o que aqui cultivamos e somos.

Devemos ter muito cuidado com citações a respeito desses

arquivos e, como bem colocou Kardec, o estudioso do espiritismo deve

utilizar-se de todos os elementos da racionalidade para evitar devaneios

sem rumo, que acabam prejudicando toda a credibilidade da mensagem

espirita. Assim, não utilizamos esses arquivos siderais ou akásicos para

a redação desse texto, não porque duvidamos de sua existência, mas

porque entidades com a nossa evolução espiritual sequer conseguiriam

ter acesso a eles, que estão em toda parte. Seria algo semelhante a

procurar Deus nos céus, quando sabemos que Ele habita em nossos

próprios corações.

Da mesma forma que, em nosso plano, as academias estudam a

vida e mensagem de Jesus, nos demais planos da vida, mais ou menos

adiantados no processo de reconhecimento da verdade, estudos

similares também se fazem presentes, mostrando realidades mais ou

menos próximas àquelas que aqui colocamos, mas não nos eximimos do

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fato de que apresentamos aquilo que, à nossa razão, se mostra mais

razoável e menos fantasioso.

Agora que fizemos uma pequena viagem sobre o universo de

fontes históricas que abordam o messias de Nazaré, podemos começar

nossa jornada em direção ao seu ambiente familiar e nascimento.

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3 O nascimento de Jesus e sua família

“...Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas...”

(Lucas 3, 4)

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3.1 O nascimento de Jesus e sua família nuclear

As poucas fontes que se referem ao nascimento de Jesus estão

repletas de elementos lendários e são incompatíveis entre si. Desse fato

não podemos fugir e todas as tentativas de harmonizar as histórias de

Mateus e Lucas são apenas isso, tentativas, geralmente absurdas. Os

autores dos textos não tinham conhecimento sobre o fato narrado e

tentaram harmonizar a história que possuíam com as antigas profecias

sobre a vinda do messias, daí tantas incoerências terem aparecido.

Muitos espíritas também fazem o mesmo e se esquecem que a

majestade de Jesus não vinha de uma ascendência real, da casa de Davi,

mas sim de uma evolução e bondade infinitas.

Os cristãos ficavam incomodados com as ironias que se faziam

ao seu messias quando o assunto do seu nascimento era colocado em

pauta, no mundo greco-romano, e esse aspecto era agravado pelo fato

de Jesus não tocar no assunto durante a sua estada terrena, até porque

não havia motivos para comentar ou discutir a infância normal que o

menino teve, fora as frequentes manifestações do seu brilhantismo

intelectual e sua força moral. Ele foi mantido em preparação constante

e, ao mesmo tempo, distante das turbulências que cercavam o seu

pequeno lar na fértil Galiléia.

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A espiritualidade procurou, de todas as formas, evitar que o

local de nascimento do escolhido fosse conhecido das forças das trevas,

o mesmo ocorrendo com a identidade da família que o receberia. Isso se

manteve por todo o período secular que acompanhou a descida

vibratória de Jesus e objetivava evitar o assédio das forças contrárias ao

crescimento moral e intelectual da humanidade, ao mesmo tempo que

permitia que as principais lideranças das trevas fossem parcialmente

confinadas em seus redutos vibratórios.

A humildade de Jesus e de sua família, ao mesmo tempo que

desperta a admiração no presente, era vista como algo não muito digno

de um rei ou escolhido do Deus único e os evangelistas viveram uma

grande crise, decidindo entre colocar o que as tradições populares

diziam, mostrando uma vida real, pobre, mas não miserável, de um

menino e sua família, ou estilizar todos esses elementos em uma

narrativa digna de um grande rei do mundo de então.

Para resolver esses inconvenientes, cada comunidade cristã

passou a cultivar alguns aspectos lendários relativos à infância de Jesus

e ao seu nascimento, que acabaram incorporados aos textos dos

evangelhos de Mateus e Lucas, enquanto que o apóstolo Paulo, os

evangelistas que escreveram o Evangelho de Marcos, bem como os

autores dos demais livros do Novo Testamento não citam a primeira

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fase da vida de Jesus, exatamente porque ela não era relevante do ponto

de vista da mensagem do Cristo e poucas informações estavam

disponíveis quando os textos foram escritos. Para se ter uma idéia, as

cartas de Paulo (que nunca viu Jesus encarnado), os mais antigos

documentos do Novo Testamento, foram escritas 50-60 anos após o

nascimento do mestre e 30-35 anos após a crucificação, quando as

pessoas que haviam visto Jesus criança já haviam retornado para o

mundo maior e apenas lendas e boatos circulavam.

Dentre esses elementos lendários típicos de contos de fadas ou

histórias de semi-deuses gregos ou egípcios, temos o nascimento

virginal, anunciação por anjos, palavras a respeito do futuro grandioso

daquele que nasce, bem como atitudes muito precoces do rebento que

vem ao mundo, presentes sobretudo nos evangelhos denominados

apócrifos e nas comunidades egípcias que dizem ter recebido a sagrada

família durante seu curto exílio. Contudo, não podemos ignorar que tais

fatos ocorreram, em função da mediunidade de José e Maria, além da

poderosa sensação que o rebento era único e de inteligência vibrante,

como de fato se mostrou, mas a forma com que a informação é colocada

nos dá a impressão que os autores do texto procuravam contrabalançar a

vida singela do menino Jesus com a descrição de lendas gregas e dos

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demais povos gentios que passavam a receber a mensagem cristã de

amor ao próximo.

Quando os evangelhos foram escritos, o que ocorreu por

camadas ou extratos, entre 50 e 100 d. C., muitos ou todos os que

teriam informações sobre o menino Jesus já deveriam estar mortos, o

que provavelmente não ocorreu com as narrativas do seu ministério. A

única exceção a essas considerações era Maria, sua mãe, que o

acompanhou até o final de sua vida pública. Obviamente as Narrativas

da Infância poderiam ter nela sua inspiração maior, particularmente em

Lucas, uma vez que Mateus se concentra em José. Contudo, Maria não

informa nada a respeito do seu filho e tudo que transparece nos

evangelhos evidencia uma relação mãe-filho primogênito tradicional, de

forma que ela nunca é denominada de virgem e os irmãos de Jesus estão

presentes em toda a história da vida do messias galileu. Ela só se tornou

novamente virgem quando a igreja cristã decidiu valorizar a vida

familiar e a virgindade da mulher como forma de contrabalançar a

derrocada moral da civilização clássica.

Esses nobres irmãos cristãos não poderiam imaginar que

estavam cometendo um atentado com a mensagem do Cristo, uma vez

que no mundo judeu palestino, ter filhos era um dos mais importantes

chamamentos da lei divina e o sexo não era visto como algo impuro ou

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reprovável. Isso demonstra que os textos da infância foram redigidos

fora do ambiente palestino tradicional.

No antigo mundo mediterrâneo, a família constituía a única rede

de segurança social que o indivíduo possuía, assim o fato de Jesus ter

cortado os seus principais vínculos familiares no início do seu

ministério, teria um significado muito relevante, quase radical, como

colocam Meier e Crossan. Contudo, os membros da família nuclear de

Jesus, em particular seus irmãos, desempenhariam um sólido papel na

igreja primitiva e acabariam sendo removidos ou retratados de forma

pejorativa nos textos canônicos para agradar as lideranças locais das

igrejas cristãs que se formavam. Era a vaidade que falava mais alto,

mesmo entre encarnados que tinham grande suporte do Alto para sua

missão.

A família nuclear de Jesus foi escolhida em função do papel que

teria de desempenhar na vida do menino. Tanto o pai quanto a mãe de

Jesus, José e Maria, eram entidades da mais elevada expressão

hierárquica, dotados de elevada sensibilidade mediúnica, mas que não

haviam atingido a evolução espiritual de Jesus. José era mais velho do

que Maria, mas longe de imaginarmos barbas brancas para o pai de

Jesus, com forte personalidade e características enérgicas, deveria

conferir proteção física e uma profissão humana para o mensageiro de

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Deus, o que seria temperado pelo coração sempre receptivo e a

emotividade exacerbada de Maria. José, prático e tendo perdido grande

parte das ilusões da vida, não dava muita importância às numerosas

visões em que seu pequeno filho parecia envolto em luz e anjos

pareciam escoltá-lo e protegê-lo; a vida dura e a necessidade de garantir

o sustento de uma família que crescia rapidamente tomavam todas as

atenções do homem.

A vida dura que norteou a passagem de José pelo mundo físico

fazia com que ele, mesmo que carinhoso com o menino, acabasse tendo

um tom demasiadamente sóbrio. A possibilidade de ter seus dias

encurtados pela morte nas mãos da miséria física e na espada romana

tiravam qualquer encanto adicional que esse homem de meia idade

pudesse vislumbrar na criança. Esse fora um dos motivos pelos quais

José evitava o contato com o mundo greco-romano que os envolvia em

Nazaré, uma vez que a capital regional era a bela Séforis, distante

poucos quilômetros dali.

Tanto José quanto Maria tinham uma religiosidade extremada

mas não literalista. Essa característica pode ser observada até nos nomes

dos familiares de Jesus, que refletem o zelo emanado de uma família

judaica praticante: o nome de seu pai, José, é o mesmo de um dos filhos

de Jacó e pai de duas das 12 tribos de Israel, Efraim e Manassés; sua

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mãe, Maria (derivado de Miriam), possuía o nome da irmã de Moisés,

seus quatro irmãos, Tiago (Jacó), Simão, José e Judas, homenageavam

o patriarca bíblico que gerou as tribos de Israel e três dos seus doze

filhos.

O apego à lei mosaica na família de Jesus é expresso até nos

poucos adjetivos que são atribuídos a José, merecendo destaque Mateus

(1:19), que o qualifica de justo, ou seja, aquele que segue a lei. Tiago,

irmão de Jesus, também recebe esses adjetivos dos pais da igreja e

numerosas citações posteriores confirmam o tom respeitoso devotado à

família de Jesus. Essas pessoas simples, mas dotadas do básico em

termos de educação formal, poderiam passar para o messias de Nazaré

as ferramentas para que ele viesse a ter contato com as escrituras e

tomasse suas próprias conclusões. Não se esperava, tampouco se

desejava, uma participação mais ativa ou interferências na missão do

eleito, de forma que o mesmo era cuidadosamente assistido pelos

planos superiores como forma de possibilitar um rápido desabrochar de

suas potencialidades mediúnicas e intelectuais. Entretanto, cabe

ressaltar aqui que todos os irmãos e irmãs do mestre também

apresentavam as faculdades medianímicas, mas não em condição tão

natural e plena quanto observada em Jesus, tampouco possuíam o

caráter angelical que Jesus envergava em seus menores atos.

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Quando Jesus foi concebido, Maria contava com a pouco mais

de 13 anos e isso era uma ocorrência normal, até desejável, entre as

meninas judias. O casamento precoce significava menos peso sobre os

avós maternos e menor exposição ao mundo. Durante a infância de

José, os afazeres de um aprendiz de carpinteiro (em realidade José

trabalhava com construção, em madeira e pedra, não apenas com as

atividades de um moderno carpinteiro) não permitiam muito tempo para

pensamentos mais abstratos. Ele era um homem de atitudes, prático, de

poucas palavras, mas extremamente correto e cônscio de suas

obrigações perante Deus e sua família. Nunca passou pela sua cabeça

que seria pai de um espírito como Jesus. Aliás, nesse sentido, José

acreditava em um Deus que interferia na vida dos justos e os esperava

para a ressurreição final dos mortos, mas não podemos atribuir a ele

qualquer conhecimento da existência de planos de vida superiores.

Independentemente da profissão ou atividade a ser desenvolvida por

seus filhos no futuro, José lhes daria as mais sinceras provas de

honestidade e respeito, típicas dos códigos de honra e conduta do

Mediterrâneo Oriental.

Durante a infância, José foi acompanhado por espíritos sublimes

que o levavam à presença de todos os que, com ele, iriam atuar na trama

de vida de Jesus. Sua presença nos planos mais elevados produzia

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profundas impressões, o que se refletia na sua ansiedade e angústia

quanto ao porvir; a grande dedicação com relação ao menino e, acima

de tudo, a confiança no seu papel de pai. Em grande parte de forma

inconsciente, sua postura grave e responsável refletia a necessidade de

prover o ambiente adequado para o nascimento do Messias judeu.

Os anos passaram e as atividades diárias, bem como a

necessidade de prover o básico para a família, acabaram por transformar

os sonhos vívidos do jovem em recordações turvas na mente do velho,

que tudo interpretava como fruto de uma mente juvenil que desconhecia

a verdadeira realidade do império romano; todas as visões foram

convertidas à categoria dos sonhos e dele José se distanciou. Entretanto,

vemos reminiscências desses sonhos até na escolha do nome que seria

dado ao messias galileu: o nome “Jesus” deriva de Yesu, ou melhor,

Yesua, presente na Bíblia hebraica, sendo uma abreviação de Yehosua,

ou Josué.

Esse nome (Yehosua) foi simplificado, após o exílio na

Babilônia, para Yesua e, por fim, para Yesu. Até o século II d. C., o

nome “Jesus era muito comum entre os judeus”, obviamente

desaparecendo com a propagação do cristianismo, ao mesmo tempo em

que o nome retornava à sua estrutura original. O significado inicial de

Josué/Yehosua seria algo próximo a “Jeová ajuda”, “Que Jeová ajude’

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ou, mais simplesmente, “Jeová salva”. Esse significado ganha realce no

sonho de José (Mateus 1:21), onde o anjo teria dito “e lhe porás o nome

de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles”.

O jovem José e sua família, bem como os demais judeus de

Nazaré, se mantinham separados de toda a agitação do mundo ao seu

redor, como a construção da cidade de Séforis, uma grande e helenística

cidade erguida pelos governantes herodianos sob a proteção romana.

Ele deveria prover a Jesus o senso humano, o dever comum, o sentido

de honra de uma sociedade em ebulição, não devendo tolher o jovem

que logo adquiriria seus próprios caminhos.

José foi esquecido totalmente nos tempos modernos e a

paternidade de Jesus é atribuída ao próprio Deus. Essa transformação se

deu no mundo gentio, que via em Jesus uma contrapartida aos semi-

deuses gregos. Assim, criaram a figura de anjos que anunciavam a

vinda eminente de um enviado de Deus, seu filho único, profecias de

feitos que seriam realizados e sobre o papel do menino na história da

humanização do homem. Contudo, nesse último caso, somos forçados a

crer que essas histórias refletem os muitos chamamentos que José e

Maria, a jovem, receberam dos planos mais elevados da espiritualidade,

que foram paulatinamente sendo incorporados às tradições cristãs.

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Mas não podemos nos furtar de colocar que, com a paternidade

de Jesus, o menino, o homem, o escolhido, sendo transferida ao Espírito

Santo, sua família terrena e ele próprio foram vítimas de todo tipo de

ironia e escárnio, que se prolongaram por séculos. Era o efeito colateral

da teologia que se imiscuía na história.

Maria, por seu turno, era bela adolescente (verdadeiramente

linda, segundo a espiritualidade, como o retrato falado transmitido por

Chico Xavier, que nos legou a imagem mais viva da nossa mãezinha

espiritual) quando foi entregue a seu futuro marido, José, que além

disso era seu parente próximo e possuía diversos laços em comum.

Emotiva e extremamente afável, Maria era o oposto do rigoroso José e

isso acabava por temperar o lar com o equilíbrio que o menino Jesus

necessitaria para o seu nascimento.

Esse caráter maternal extremado poderia ser prejudicial à missão

que seria desempenhada pelo seu primogênito e todos os cuidados

foram tomados pelo Alto para que seus braços maternais não

prendessem demasiadamente aquele que seria cognominado “o Cristo”.

Sua mediunidade ostensiva lhe permitia ver a beleza espiritual do

maravilhoso espírito abrigaria no ventre e, por vezes, era encontrada no

"choro de mansidão" acariciando, em pensamento, aquele que sentia ser

a sua luz maior. Ela carregou esses pensamentos até seu desencarne em

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Jerusalém, aproximadamente 20 anos após a crucificação do seu

primogênito. Em profunda comunhão mental com Jesus, Maria nunca

conseguiu evitar a dor da incompreensão que seguiu seu filho durante a

sua curta jornada terrena.

Para evitar que a presença do Jesus no seu ventre se convertesse

em uma explosão de sensibilidade, com os consequentes efeitos

colaterais para seu corpo físico e perispiritual, a equipe invisível

encarregada de acompanhar o reencarne do mestre atuava de forma a

impedir o assédio de outros espíritos à casa da família, mas logo ficou

patente que as energias que se irradiavam daquele ambiente produziam

um modificação paulatina na pequena e pobre vila de Nazaré.

Muitos irmãos espirituais, de todas as esferas evolutivas

superiores, acorriam às proximidades da casa em que a criança estava

sendo gerada. As emanações eram fortes demais para serem contidas e

os trabalhos nos planos superiores zelavam para manter as influências

dessas pessoas dentro de um universo de harmonia. É certo que

ninguém, encarnado ou desencarnado, que acorria à casa de Maria,

podia imaginar o que se daria nas décadas seguintes, mas todos se

sentiam em uma paz profunda, dessas que não nos esquecemos

facilmente.

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Jesus: homem e espírito

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Ao contrário dos espíritos ordinários, comuns, profundamente

endividados com a lei divina, que sofrem as reencarnações

compulsórias, Jesus não teve seu perispírito ligado ao corpo físico em

formação senão pouco tempo antes do parto, o que permitia ao mestre a

liberdade espiritual plena, que não normalmente não cabe a um espírito

encarnado.

A contínua conexão com os espíritos que a protegiam e

acompanhavam a família ficou gravada na mente de Maria, traduzindo-

se como a visita de anjos que vinham lhe anunciar a chegada do

prometido e essas lembranças estiveram presentes ao longo de toda a

sua vida, mesmo nos momentos mais duros do calvário e nos anos

seguintes, quando as dores da separação e, principalmente, da

incompreensão lhe eram tão fortes. Mesmo a presença dos outros filhos

e filhas ao seu redor não atenuou a dor que ela sentiu com a

crucificação. Não é por menos que, na cultura popular moderna, ela seja

reconhecida como a mulher que encarnava as virtudes perfeitas de mãe;

ela, de fato, representava esse papel e não apenas para seus filhos,

cultivando o sentimento materno por todos que a procuravam, mesmo

nos anos finais de sua existência terrena.

Poucos aspectos são mais controversos do que o nascimento

virginal de Jesus, o que de fato não ocorreu. Essa transformação se deve

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ao fato de que o texto original do profeta Isaías alude ao fato de que o

messias nasceria de uma virgem, em idade de vir a conceber, não

colocando a necessidade dela "estar" virgem no parto. A igreja acabou

convertendo Maria em um ser assexuado, ao longo do tempo, e isso não

condiz com a visão judaica de mundo, onde a mulher e o homem

deveriam ter filhos e essa era a beleza da lei. Nada mais sublime e puro

para uma mulher judia do que ser mãe. A abstinência voluntária de sexo

era conhecida, mas não tinha um papel maior na sociedade palestina,

sendo que, com o domínio romano e as opulentas orgias que tomaram

corpo no império, a virgindade passou a ser valorizada; Maria foi

convertida no modelo perfeito de mulher, a virgem.

Assim, como forma de valorizar a postura submissa da mulher e

as virtudes da nova fé, até Maria de Magdala, sofrendo de sérios

desequilíbrios em função de obsessores perversos e sensibilidade

mediúnica aflorada, foi convertida, de forma irresponsável, pelo

papado, em exemplo de prostituta arrependida. Nada mais incoerente. A

relação da igreja cristã com as mulheres somente não foi conturbada em

seu nascedouro, na Casa do Caminho; pelos 2000 anos seguintes, elas

sofreriam toda sorte de humilhações, de pichações de bruxas a cargos

de submissão aos homens do movimento e somente agora as igrejas

mais literalistas despertam para esse fato.

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Jesus: homem e espírito

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A concepção virginal de Jesus está descrita apenas em Mateus

(1:18-25) e Lucas (1:26-38) e nada mais é dito sobre isso. Nas cartas

paulinas, os mais antigos documentos do Novo Testamento, seus

autores, Paulo e possivelmente alguns de seus seguidores, desconhecem

os pais de Jesus e, segundo Gálatas 4:4 ("vindo, porém, a plenitude do

tempo, Deus enviou seu filho, nascido de mulher, nascido sob a lei"),

Paulo deixa claro como água que o nascimento do messias galileu teria

ocorrido de forma normal. Nada de nascimento miraculoso; o

verdadeiro milagre consistia no amor que aquele espírito puro,

iluminado e infinitamente sábio e poderoso, parecia sentir por homens

tão primitivos e toscos. Eis o verdadeiro aspecto miraculoso do

nascimento de Jesus.

De todas as qualidades de um grande legislador, a maior é a de

seguir suas próprias leis. Existem leis que regem o reencarne de

espíritos em nosso plano, Jesus, representante do Legislador Supremo,

nosso Pai de Misericórdia e Bondade, teria de seguir as leis criadas pelo

próprio Deus. De que valeria o seu nascimento se ele fosse um

privilegiado? Como pregar a igualdade entre os filhos de Deus se ele

mesmo seria uma exceção à regra? Dessa forma, acreditamos que o

nascimento de Jesus veio coroar um amplo trabalho espiritual voltado

para a escolha de uma família, um conjunto de genes que viessem a

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permitir a concretização da missão divina atribuída ao mestre galileu e

que, acima de tudo, criasse condições favoráveis para que o Cristo, na

condição de homem, falasse para outros homens como um igual e não

apenas um espírito materializado ou um agênere. Eis o outro aspecto

miraculoso do mestre: ele abdicou de tudo quanto havia conquistado na

sua trajetória evolutiva e se fez um de nós.

Assim, nosso Deus não enviaria à Terra um filho sublime e

devotado, Jesus, burlando as leis eternas, de forma que a concepção de

Jesus e a gravidez de Maria foram eventos absolutamente normais, com

exceção da coroa de luz que os envolveu em todo o processo

divinamente planejado. Durante a gravidez de Maria se acentuaram as

influências do sublime espírito de Jesus sobre a estrutura corporal de

sua mãe, que parecia cada dia mais bela e feliz aos olhos do mundo. A

aversão á violência, matanças e a crise social eram deixados para o

segundo plano.

Pode-se pensar também que, se os irmãos de Jesus, ou pelo

menos aqueles assim denominados nos textos do Novo Testamento,

tivessem conhecimento de tal fato miraculoso (o nascimento virginal),

certamente iriam crer nele com mais facilidade e não é isso que os

escritos bíblicos revelam. A origem do nascimento virginal também

deriva da necessidade cristã de supor que, da mesma forma que o poder

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do Espírito Santo teria ressuscitado Jesus dentre os mortos, talvez o

mesmo poder deveria tê-lo concebido, com tantos paralelos na

mitologia greco-romana.

Aspecto relevante associado à concepção virginal é o seu

oposto, a ilegitimidade de Jesus. Isso parece herético aos ouvidos de um

cristão moderno, e provoca desconforto até nos autores desse estudo,

encarnados e desencarnados, mas essa consideração chegou a ser feita

pelos judeus nos primeiros séculos da era cristã, sendo gravíssima em

uma sociedade preconceituosa e fechada como aquela, mas

provavelmente se originou como uma reação à expansão da fé no

homem crucificado.

A própria narrativa da infância, como apresentada nos

evangelhos de Mateus e de Lucas, permite uma série de discussões

quanto à ilegitimidade de Jesus. Segundo Mateus, o mestre foi

concebido entre a promessa formal de casamento e a condução oficial

da noiva até sua futura residência, o que dá munição aos céticos para

formular teorias referentes à prática de relações sexuais entre José e

Maria nesse período, o que não configuraria adultério tampouco

fornicação, uma vez que os noivos já seriam considerados casados.

Muitos acreditam que a origem desse discurso se deva ao

escritor pagão do século II, Celso, que teria escrito o seu famoso “O

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Verdadeiro Discurso”, em 178 d.C., tendo motivado uma importante

resposta por Orígenes, um líder cristão, por volta de 248 d.C. Segundo

Celso, Maria teria cometido adultério com um soldado romano

denominado Panthera e teria sido repelida por José, o carpinteiro que a

tinha como prometida em casamento. Sem marido e dinheiro, deu á luz

a seu filho em segredo, o qual foi morar no Egito, onde tornou-se um

mágico e operário para depois reivindicar o título de “deus”. Isso é de

arrepiar os cabelos, mesmo para aqueles que olham para Jesus e o tem

como um mestre de grande sabedoria, mas não um Deus-Filho.

Obviamente esse texto remonta à reação judaica contra a

propagação do cristianismo, possuindo todos os preconceitos de que a

própria vida de Jesus viria a suscitar. Em debates anteriores entre judeus

e cristãos, como o debate entre Justino, o mártir, e Trifo, o judeu, sobre

a concepção virginal, essa história não havia circulado e, obviamente,

isso não se deu porque enquanto as testemunhas da vida de Jesus ou

seus descendentes diretos estavam vivos, não havia espaço para esse

tipo de consideração. Essas testemunhas oculares conheciam a família

do mestre e nada permitia que tais considerações pudessem vir à tona,

mas o tempo tudo apaga e permitiu que toda sorte de coisas fosse

deixada na trilha da sagrada família.

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Podemos concluir que as reações às narrativas da infância são

óbvias e isso se torna mais importante quando percebemos que essa

colocação dos judeus se iniciou entre aqueles que viviam na diáspora e

não na Palestina, uma vez que os judeus palestinos conheciam Maria,

seu marido e filhos, não tendo espaço para esse tipo de conversa. Todos

conheciam Maria e José seus numerosos filhos e filhas; uma típica,

fervorosa e grande família.

Quanto ao nascimento propriamente dito, júbilo tomou conta da

pequena comunidade em que Jesus veio ao mundo, pela expressão do

menino e pela aura maravilhosa que se irradiava do humilde suporte que

o recebera no mundo, revestido com tecidos simples e peles para que a

jovem viesse a dar a luz com um mínimo de conforto, como acontecia

com freqüência com as meninas-mães judias. A popular cena do

nascimento do menino Jesus em uma manjedoura apresenta traços

comuns ao deus oriental Mitra, enquanto a visita dos reis magos

constitui mais um artifício teológico que permite ter a realeza de Jesus

reconhecida por outros reis, partindo do princípio de que os pares se

reconhecem mutuamente, logo no início da vida do menino. A própria

cidade de Belém acaba sendo acrescida à história para concretização de

antigas profecias que atribuíam àquela cidade a honra de receber o

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messias. Não podemos esquecer que Belém apresenta relação direta

com a casa real de Davi, de onde se esperava que o messias viesse.

Todo o processo gestacional foi plenamente coroado de êxito, de

forma que uma das melhores linhagens genéticas da casa de Israel era

morada do menino. Sua elevada hierarquia e condição moral logo

modificaram as características do corpo físico em formação, permitindo

que se desenvolvesse uma estrutura capaz de sustentar sua soberba

inteligência, ao mesmo tempo que lhe provia o vigor necessário para

um futuro pregador itinerante do século I. d. C. Para que a gestação em

Maria fosse o mais confortável e tranqüila possível, influências

magnéticas eram continuamente dedicadas aos pais e ao embrião em

desenvolvimento, posto que a diferença vibratória entre eles e o mundo

que os cercava era dramática. Deve-se ressaltar, também, que a

segurança da família já somava décadas quando o pequeno rebento

nasceu.

Essa condição espiritual também criava um problema adicional

para o grupo de espíritos sublimes que cuidavam da gestação de Maria.

Enquanto no plano físico terreno, as visitas de familiares à menina

grávida e seu marido eram uma característica comum às famílias judias

do Mediterrâneo, o assédio espiritual era severo e teve de ser contido. A

luz emanada da mãe e, quando próximo do parto, do próprio

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reencarnante era tão significativa que muitos espíritos necessitados

costumavam acompanhar a bela família onde quer que fossem, como

aliás ocorreu com Jesus ao longo de toda a sua vida. Nesses casos, os

espíritos que cuidavam do processo de reencarne trabalhavam para

mantê-los a uma certa distância, embora não representassem risco

significativo. Muitos homens santos foram enviados ao mundo na

mesma época, como forma de reduzir as pressões vibratórias sobre o

menino em gestação, particularmente na Galiléia, que tinha fama de ser

terra de muitos judeus zelosos.

Por outro lado, muitas entidades das trevas e dos abismos logo

perceberam que algo estava ocorrendo, como a limitação da

movimentação de seus maiores líderes e falanges, desaparecimento de

legiões inteiras de espíritos trevosos que simplesmente não eram

localizados pelos seus comparsas, ao mesmo tempo que algumas

regiões do império Romano, como a Palestina, apresentavam uma

melhora nas condições sociais e relativa pacificação, em comparação

com a época de desorganização do reino dos macabeus e na guerra civil

romana. Não estamos dizendo que o nascimento de Jesus foi o que

motivou a melhora do panorama regional e global, mas

indubitavelmente teve uma influência significativa.

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Assim, Jesus nasceu e viveu seus primeiros anos na pequena

Nazaré, uma das centenas de vilas na rota de comércio que ligava o

crescente fértil ao Egito, Jerusalém e Transjordânia. Os próprios

evangelhos proclamam a insignificância do povoado, como coloca o

Evangelho de João, quando Natanael diz “De Nazaré pode sair alguma

coisa boa?” (João, 1:45) referindo-se à origem de Jesus. Obviamente

em um local tão modesto, parcela significativa da população

apresentava variados graus de consangüinidade com Jesus, sendo que

seus primos e primas, muito numerosos, brincavam tranquilamente nos

quintais comunitários que existiam ao redor das residências simples,

hoje descobertas pela arqueologia e disponíveis para visitação pública.

Essa ligação do mestre com sua terra e povoado natal deixaria marcas

notáveis no Novo Testamento, traduzindo-se na grande quantidade de

parábolas e citações sobre camponeses e a vida rural.

Não podemos ignorar os vários pontos nos evangelhos nos quais

Jesus é citado como um galileu de Nazaré, para onde retorna de suas

andanças, mas alguns aspectos interessantes a respeito do nome

Nazareno merecem considerações rápidas. O nome hebraico dedicado

aos cristãos inicialmente era “notzrim” , o qual já era empregado para

designar um movimento surgido 150 anos antes de Jesus, dentro do

judaísmo, significando “aqueles que se mantém afastados”, mostrando a

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natureza ascética desse movimento, nada relacionado com a cidade de

nascimento do mestre. A cidade de Nazaré era chamada, em hebraico,

de Natzrat, sendo seus moradores conhecidos como natzratii, sem

relação com nazareno.

Os presentes dos reis magos, que os textos canônicos dizem que

Jesus recebeu, não condizem com a realidade pobre de uma família de

artesãos na Galiléia e essa parte das Narrativas da Infância apresenta

caráter lendário. O reconhecimento da realeza, da importância do

menino, foi jogado pelos evangelistas para o próprio momento do seu

nascimento. Nesse sentido, lendas corriam nas décadas após a

crucificação sobre como teriam sido os primeiros dias de Jesus.

No plano espiritual pode-se dizer que a luz que dele emanava

era um bálsamo para amainar as dores de toda uma população sofrida,

que viam nele uma criança de rara beleza e com um tom ao mesmo

tempo terno e grave, que se manteve ao longo de sua existência terrena.

Contudo, à medida que ele crescia e desenvolvia sua capacidade de

interagir com o mundo ao redor, o belo sorriso que lhe estampava os

lábios sumiu. A fisionomia grave e o olhar distante passaram a

caracterizá-lo e o acompanharam até o calvário. Para aquele espírito

liberto de todas as dores da existência física, o que mais doía na alma

era a indiferença com a qual os seres humanos se relacionavam; a cruz

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foi um presente de liberdade que lhe deram e, no fundo, todos nós

participamos disso.

Jesus teve muito amor de seus pais e seus colaboradores

espirituais, mas fora isso, sua vida material era bastante precária. A vida

simples, com dieta essencialmente vegetariana, em função do custo de

proteínas animais e da pouca tolerância que todos os membros da

família experimentavam em relação à carnes, era coroada com um

relacionamento apaixonado e próximo que todos comungavam, mesmo

quando os irmãos menores vieram.

Embora seja muito difícil determinar, com segurança, a data do

nascimento de Jesus, independentemente dos planos de vida em que

vivemos, podemos ter a certeza que a data de 25 de dezembro, festa do

solstício de inverno, foi incorporada pela igreja romana, que não

conseguia acabar com a festa pagã ao deus Mitra e suas características

pouco salutares. Naquela época, era um momento para se refestelar com

a fartura da colheita que terminara e ainda fazemos isso 2000 anos

depois, onde poucos se lembram do aniversariante simbólico.

Pela descrição bíblica e pelas informações espirituais

disponíveis na nossa esfera de atuação, Jesus teria nascido em março ou

abril do ano 6 a. C., quando os pastos já davam bom suporte aos

animais domésticos da família e dos demais habitantes do povoado.

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E a ordem de mandar matar as crianças dada pelo rei Herodes, o

Grande? Embora a antiguidade esteja repleta de tiranos e sádicos de

todos os tipos, o rei fantoche estava mais preocupado com a sua

sucessão do que com crianças que viessem a reclamar seu trono 30 anos

depois. Ele não estaria vivo para ter esse desprazer e parecia pouco se

importar com a turba que ele mesmo trouxera do outro lado do véu, na

forma de filhos medíocres e obsessores sanguinários. A ordem de matar

as crianças é uma reminiscência histórica do fato de que Herodes, o

Grande, mandara matar parte de seus herdeiros, seus próprios filhos.

Vejam o ambiente que marcaria o nascimento de Jesus e sua primeira

infância.

Acreditamos que esse episódio narrado no evangelho possa ter

ocorrido de forma simbólica em planos paralelos, onde entidades

trevosas, cientes que o nascimento do santo menino representava uma

encruzilhada para a história do planeta e que eles logo não teriam mais

o domínio quase total exercido até então, passaram a assediar os

possíveis candidatos a messias, até que o Altíssimo mostrasse a todos

quem seria o enviado, o mensageiro prometido, e isso se deu somente

no batismo de Jesus. As perseguições aos pretensos “escolhidos” se

mantiveram por anos e, mesmo no presente, o nascimento de figuras

que são caras aos planos do Alto acabam suscitando perseguições de

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toda monta, na tentativa de retardar o inevitável, que é a própria

evolução moral da humanidade.

E a estrela de Belém?

A tradição judaica aponta para a presença de uma estrela no

nascimento de Abraão, Isaac e Moisés. A explicação mais racional para

a existência da estrela de Belém, contudo, não parte da astronomia e

sim da análise do Antigo Testamento (Números 24:17), onde uma

profecia (a profecia da estrela, bastante em voga entre o judeus

messiânicos do séculos II a.C a II d. C.) colocava que da Palestina sairia

o governante do mundo, coisa que os cristãos logo identificaram com o

messias de Nazaré, pelo menos na sua parusia, e que o historiador judeu

Josefo, para escapar da morte, usou para convencer Vespasiano de seu

destino como futuro imperador romano, o que de fato ocorreu.

A importância dessa profecia da estrela era tamanha que o líder

da segunda revolta contra os romanos (132-135 d. C.), Simão bar

Kosiba, mudou seu nome para “bar Kochba”, significando “filho da

estrela”, assumindo deliberadamente sua natureza messiânica. Para

marcar o retorno da glória de um estado judeu soberano, ele cunhou

moedas em que uma estrela pode ser vista entre as colunas do Segundo

Templo, que os judeus esperavam reconstruir e isso pode ser visto

facilmente através de imagens na rede de computadores; tente, vale a

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pena (http://en.wikipedia.org/wiki/Simon_bar_Kokhba). Nas

catacumbas de Roma e outras localidades de antigas comunidades

cristãs, os seguidores do mestre galileu pintavam uma estrela e um

homem ao seu lado, indicando o povo do Caminho, primeira designação

que os cristãos cunharam para si mesmos.

E os irmãos e irmãs de Jesus?

Aqui a fé, dogmas e a crítica se misturam de forma profunda e

por vezes produzem inflamadas discussões na facetas mais literalistas

das agremiações cristãs.

Hegesipo, no século II d. C., descreveu os círculos familiares de

Jesus, incluindo irmãos, irmãs, tios, primos, mencionando-os.

Entretanto, como ele acreditava no nascimento virginal de Jesus,

atribuía a esses irmãos a condição de "filhos de José" e não de Maria,

fruto de um casamento anterior. Na igreja ocidental, esses irmãos de

Jesus foram confundidos, erroneamente, com primos, filhos de um

casamento entre um personagem chamado Cleofas e outra Maria,

posição que não tem o menor amparo.

Entretanto, o evangelho de Mateus (13:55-56), deixa claro que

os irmãos de Jesus são de fato legítimos, ainda mais pela distinção que

o evangelista faz entre José e Maria no texto. Esse texto bíblico deixa

claro o que já dissemos: Jesus estava inserido em um sólido grupo

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familiar com fortes laços de sangue e profundamente religioso. Essa

interpretação é reforçada pelos demais textos canônicos, cabendo a

Paulo mencionar a proeminência de um dos irmãos de Jesus, Tiago, na

igreja primitiva, onde seria o mentor do grupo, ou aquele que

equilibrava as tensões naturais de uma entidade dessa natureza.

Contudo, aqueles que atribuíam a Pedro a liderança da igreja não

podiam aceitar que o próprio Jesus teria deixado esse irmão em posição

de destaque na igreja, como o próprio Atos dos Apóstolos parece

confirmar a contragosto; seria melhor eliminar, dos textos, a família do

Cristo e isso foi feito.

A idéia de que Jesus possuía irmãos e irmãs de sangue era

amplamente disseminada nos primeiros momentos da igreja cristã e

somente foi perdendo força em consequência da veemência com a

igreja romana, tão distante da Palestina em todos os sentidos, defendia a

da virgindade perpétua de Maria, que foi se impondo e desalojando o

que havia de mais semítico e genuinamente galileu no relacionamento

da nova fé com Deus. Lembre-se que gerar filhos era uma das maiores

obrigações do judeu.

Dentre esses primeiros defensores da teoria segundo a qual Jesus

teria tido irmãos verdadeiros está Hegesipo, que, ao descrever o

martírio de Tiago, o irmão do Senhor, em 62d. C, cita a existência de

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parentes do mestre, citando a existência de Judas, “o irmão do

Salvador” segundo a carne. Irineu (130-200 d. C.) e Tertuliano (160-

220 d. C) consideravam os irmãos de Jesus como verdadeiros e esta

posição tem muita relevância uma vez que este último valorizava

ardentemente a virgindade.

Os irmãos de Jesus, Tiago, Judas, Simão e José, e irmãs, Maria e

Salomé, traziam elevados créditos espirituais, merecendo numerosas e

profundos elogios do mestre galileu, principalmente Tiago, que o

sucedeu na liderança da igreja nascente. Entretanto, estavam longe da

condição angelical de seus pais e do seu irmão, tendo que arrastar seus

dramas pessoais ao longo da vida que gozaram na Terra. Dentre os

irmãos citados na Bíblia, Judas teria sido martirizado poucos anos após

a crucificação de Jesus, mas seus netos, Zacarias e Tiago, estariam

vivos no começo do segundo século da era cristã, o mesmo ocorrendo

com muitos outros sobrinhos e sobrinhos netos de Jesus, cujos nomes se

perderam no tempo. Tiago, seu irmão mais próximo e querido, teria

sido morto, por apedrejamento, pela ação do Sumo Sacerdote em 62 d.

C. e Josefo considera que esse personagem era dotado de grande

carisma e afeto do povo, mesmo entre os fariseus, que acabaram por

depor o líder judeu que havia determinado a morte do irmão de Jesus,

algo que não seria inimaginável se esses fariseus não admirassem a

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postura de alguns dos líderes judeu-cristãos (ver discussão sobre

fariseus na primeira parte do texto, abordando o mundo de Jesus).

Para Tiago, a figura do irmão mais velho sempre marcou seus

pensamentos e, dentro de suas limitações, procurou seguir o messias

judeu da melhor maneira. Sua influência na igreja primitiva, nas

décadas seguintes à morte de Jesus, era muito superior à de Pedro e os

outros apóstolos. Tiago era visto como o braço direito do irmão e sua

imagem no Novo Testamento é deturpada pelos interesses pessoais que

cada apóstolo e evangelista possuía, como donos da verdade cristã.

Porém, Paulo, o mais brilhante de todos os que envergaram o título de

homem apostólico, o chamava de “irmão do Senhor” e passa a depender

muito da colaboração de Tiago para não ser excluído da igreja

primitiva, recebendo desse último a autorização de pregar para os não

judeus. Se dependesse dos demais apóstolos, Paulo deveria se calar e

não proferir as blasfêmias que a ele eram imputadas, destacando-se a

salvação pela fé (embora Paulo também tenha dito que a fé sem

caridade é uma fé sem coerência e valor), a possibilidade de ser cristão

sem ser judeu, o dividir o pão com pagãos e a falta de respeito às leis

alimentares e à circuncisão.

No século I. d. C. os membros da igreja nascente foram alvo de

diversos e sistemáticos ataques de entidades trevosas. Da mesma forma

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que, simbolicamente, Jesus teria sido tentado por forças dessa natureza,

mas mostrado o valor da retidão e amor ao próximo, muitos dos

apóstolos e discípulos, mesmos os mais próximos, acabaram falhando

em função de influências menos nobres, oriundas deles mesmos e de

forças que os assediavam. Esses nossos irmãos que tiveram a honra de

conhecer e conviver com o messias, muitas vezes se deixaram levar

pela cólera e ira, abrindo portas que deveriam ser fechadas, de onde as

influências pouco salutares de seus desafetos se fazia sentir.

Ao tentar defender a figura de Jesus crucificado contra

insinuações desagradáveis, como a ilegitimidade do mestre e o fato dele

ser filho de um modesto trabalhador braçal, por vezes foram contra a

verdade que conheciam e acabaram por criar uma imagem que se

aproximava dos semi-deuses e deuses daqueles povos que zombavam

do nazareno. A inveja da postura justa e centrada de Tiago, Pedro e

João, bem como o papel central que toda a família do mestre exercia na

nova fé, nos anos que se seguiram à cruz, fez com que o espírito da

inveja atrapalhasse alguns dos muitos evangelistas que se dedicaram ao

trabalho nos textos que viriam a fazer parte do cânone e em muitos

outros documentos apócrifos.

Contudo, não se pode esquecer que o Espírito de Verdade, que

em sua última encarnação recebeu o nome de João, o Batista, e sua

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falange de trabalhadores incansáveis se mantiveram atentos para evitar

que modificações maiores fossem introduzidas nos versículos

evangélicos que tratavam da mensagem de Jesus. Os evangelhos foram

redigidos inicialmente, sob forte inspiração espiritual, psicográfica, e

adquiriram camadas adicionais que acabaram por mesclar e deturpar

pontos periféricos do texto, mas a mensagem central foi preservada,

como era o desejo dos irmãos superiores que planejaram sua

compilação.

Nas décadas que se seguiram à morte de Jesus, seus familiares

foram os principais responsáveis pela manutenção da mensagem viva da

caridade cristã, que pode ser observada em toda a sua profundidade na

Carta de Tiago, a qual esclarece a importância de “receber segundo

suas obras” e não apenas a salvação espiritual pela fé, a qual sem

caridade seria falha e incompleta. Esse texto, embora não tendo sido

escrito por Tiago, em função do grego fluente e elegante, não

condizente com um rude trabalhador galileu, traduz algumas das

principais posições dos familiares de Jesus e dos seus apóstolos mais

próximos, que eram e continuaram sendo judeus. Entretanto, o papel

redentor de Jesus somente foi realmente compreendido pelos seus

familiares e demais seguidores após as materializações do seu espírito,

nas semanas que se passaram após a crucificação, quando ficou claro

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Jesus: homem e espírito

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que o corpo físico do mestre não era mais que uma simples roupagem

que fora utilizada no curto período em que o mesmo esteve entre nós. A

transformação maior em seus parentes próximos teve aí seu epicentro,

embora Tiago, seu irmão, já o acompanhasse nas jornadas desde cedo.

Muitos se perguntam porque José praticamente não é mais

citado no Novo Testamento, salvo alusões aos membros da família de

Jesus, mas isso está ligado ao fato de ter desencanado muito cedo, na

casa dos 40-50 anos, quando Jesus adolescente assumiu o papel central

na casa. Na adolescência de Jesus, tendo José ensinado sua profissão e

seu rígido código de conduta moral, seu desencarne representou uma

maior liberdade para que seu filho mais velho viesse a assumir o papel

que lhe cabia, bem como permitiu a o amadurecimento das

características mais pungentes de Jesus. José havia cumprido sua

missão de criar as condições familiares e materiais para receber o

homem que transmitiria a palavra de Deus como ninguém o fizera até

então.

Caros amigos, Jesus era um espírito pronto, em profunda

comunhão com os planos mais altos, de onde nunca deixou de estar e

comandar, mesmo estando encarnado. Sua grandeza espiritual era tanta

que em sua presença a fome desaparecia e as pessoas sentiam uma

alegria salutar, inesquecível. Ele, como a própria igreja latina propôs,

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limitava o seu próprio conhecimento das coisas e mistérios de Deus

para poder conviver entre nós. Jesus não foi ao Tibet, não viajou para a

Cachemira e tampouco ficou anos na Índia; ele trabalhava para ganhar o

sustento de um grupo de irmãos menores e colaborar no amparo de

tantos quantos lhe batiam à porta em busca do que comer. Ele não se

utilizou dos seus muitos dons mediúnicos até que o momento se fez

adequado e, acima de tudo, aceitava tranquilamente as muitas

limitações que o seu corpo físico lhe impunha.

Isso explica os chamados “anos ausentes” do mestre, que se

deram em função do jovem trabalhar no ofício aprendido do seu pai

terreno, no sustento de uma família extensa, na qual, como filho mais

velho, tinha uma responsabilidade adicional. Tal postura do mestre

ajuda a entendermos os motivos que levavam sua família a questionar o

papel que, cada vez mais, ele se sentia depositário e que,

indubitavelmente, todos sabiam que o levaria a ter problemas com as

autoridades de Jerusalém e de Roma.

A visão do amado filho na cruz nunca saiu da mente de Maria e

isso foi motivo de muitas conversas entre eles, mãe e filho. Embora

tardio, o Evangelho de Judas reforça a idéia de que o próprio Jesus teria

conhecimento e planejado o seu desenlace. Não se esqueçam que a

postura de Jesus diante de Pilatos evidencia que o mestre reconhecia o

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Jesus: homem e espírito

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poder desse último, que era permitido pelo Pai, para que se cumprisse

as antigas escrituras e para mostrar às gerações futuras que um exemplo

vale mais que mil discursos de paz. O poder de Pilatos era exercido

daquela forma unicamente por que assim Deus o desejava; Deus é

infinitamente bom e sábio e nos permite exemplos como esse.

3.2 Jesus era de ascendência real ?

Esse é um tema polêmico que muitos pensadores cheios do

iluminismo científico tentaram resolver nos últimos 200 anos.

A tendência geral era considerar que Jesus precisava de uma

ascendência real para cumprir as profecias messiânicas sobre a origem

real do Salvador de Israel e pela a devoção que lhe era atribuída pelos

primeiros cristãos, de forma que essa particularidade teria sido resolvida

pelos evangelistas rapidamente. Algumas linhas e citações e tudo estava

como deveria ficar, mas esse não parece ter sido o que ocorreu.

Será que os contemporâneos de Jesus e seus discípulos o viam

como descendente da casa real de Davi, mesmo naqueles momentos

menos tensos em que o mundo do dia a dia emerge da tradição? A

genealogia de Jesus, como nos trazem os textos de Mateus e Lucas,

merece algum crédito?

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Como mencionado anteriormente, o corpo físico de Jesus

sempre foi uma preocupação do grupo de espíritos angelicais, que

estavam incumbidos de criar as condições necessárias para o trabalho

edificante do mestre galileu. Ao mesmo tempo que o organismo teria de

suportar grandes pressões do ambiente, teria de fornecer os requisitos

somáticos que dessem suporte para a vibrante vontade e a incomparável

inteligência do espírito de Jesus. Há séculos essa seleção vinha

ocorrendo e era claro, entre os encarregados do processo reencarnatório,

que a Casa de Davi decididamente reunia as características de liderança

e capacidade intelectual que seriam extremamente necessárias para

receber o espírito sublime do mestre de Nazaré. Não se pode deixar de

frisar que nenhum corpo humano podia corresponder ao que Jesus fazia

jus, em condições naturais, daí a sensação que ele se diminuía para estar

entre nós. De fato, o que Jesus aparentava em termos de capacidade

intelectual ou mediúnica representa 1% do potencial que ele mesmo

sabia possuir e nenhum corpo físico da nossa espécie (Homo sapiens)

seria capaz de corresponder ao ele possuía em espírito. Assim, a

divinização de Jesus decorre dessa enorme diferença entre ele e os

demais humanos que com ele entrariam em contato.

Embora o corpo físico não seja a sede imortal da inteligência do

espírito, ele representa o instrumento de manifestação dessa última e

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Jesus: homem e espírito

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Jesus recebeu o que havia de mais adequado entre as diferentes

linhagens da casa de Israel. Não podemos deixar de frisar que as

condições especiais que brotavam nas células físicas, que se adaptavam

às formas e funções de suas equivalentes espirituais no reencarne quase

automático, sem a colaboração mais profunda de equipes especializadas

no processo, eram um reflexo pálido do que o mestre galileu trazia em

seu cerne.

Para justificar o que dizemos, quanto ao enorme potencial do

Cristo Terreno, antes do reencarne, chamamos a atenção para o fato de

que o poder mental de Jesus havia atuado com plenitude durante a

criação do orbe terrestre, como descrito por Emmanuel, em livro

intitulado "A Caminho da Luz", psicografado por Francisco Candido

Xavier. Esse fenômeno ocorrera 4,6 bilhões de anos antes de seu

reencarne no planeta, mostrando que a entidade a quem denominamos

de "Jesus, o nazareno", pode ter se originado e evoluído até a perfeição

que lhe é reconhecida antes da existência do próprio universo atual,

como o conhecemos, o que necessitaria de muitos estudos adicionais e

isso foge completamente das intenções desse modesto ensaio.

Colocamos essa questão posto que muitas são as evidências

científicas que mostram que nosso universo teve início em algum

momento do passado há 13,7 bilhões de anos, mas esse começo

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representa apenas uma etapa indispensável no nosso campo de eventos,

como que se estivéssemos presos em um buraco negro, onde toda uma

infinidade de eventos ocorreria do lado de fora e nada nos fosse dado a

conhecer. Cabe ressaltar que esse universo físico também nos veta o

conhecimento do período anterior ao “Big Bang”, ou grande explosão,

de forma que apenas conjecturas podem ser feitas. Assim, muitos

universos separados por distâncias absolutamente indescritíveis ou

situados em dimensões paralelas podem existir, tendo se originado

mesmo antes do nosso cosmo e, como depreendemos de toda a

literatura espiritual que temos contato, podemos divisar a ocorrência de

verdadeiras migrações planetárias e, possivelmente, entre universos

paralelos, governados por leis que sequer podemos imaginar.

Pela natureza excelsa de nosso mestre Jesus, sua evolução

espiritual, desde as formas mais simples até a condição em que se fez

presente na Terra, demandaria bilhões de anos e possivelmente teria se

processado antes que a estrutura de nosso próprio universo tivesse

adquirido as configurações atuais. Em função desse ponto de vista, a

questão da existência ou não de uma genealogia nobre para Jesus perde

completamente a importância inicial, mas não nos furtemos ao

questionamento: ele realmente tinha em Davi um ancestral distante, da

época em que os judeus das montanhas e planaltos da Palestina eram

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grupos semi-nômades que mantinham pouca coesão nacional. Muito

diferente do quadro de um grande reino governado por um rei poderoso

e sábio, características que passaram à Bíblia com a intenção de exaltar

a força dos antigos reis e reinos do povo de Israel em uma época em que

os judeus eram servos de povos muito mais fortes.

Os evangelistas não sabiam o que fazer com as características

especiais de Jesus e, para ressaltar sua nobreza, criaram genealogias,

como descritas por Lucas e Mateus, que apresentam discrepâncias

insuperáveis e irreconciliáveis. Alguns atribuem o enfoque de Mateus,

na genealogia de Jesus, à sua árvores genética paterna, embora a

paternidade de Jesus nesse evangelho deva ser creditada, como em

Lucas também, ao Espírito Santo, enquanto Lucas teria enfocado a

genealogia através de Maria, mas não existe qualquer elemento que nos

permita concordar com essa hipótese, tratando-se de uma afirmação

gratuita, ainda mais em uma sociedade que retirava da mulher quase

todos os seus direitos, existindo relatos de rabinos que preferiam jogar

os livros da lei aos animais do que ensiná-los a elas. Esse era o mundo

de Jesus.

Em momento algum o Novo Testamento discute a genealogia de

Maria ou tampouco, sua linhagem. A única observação direta sobre esse

tópico se dá quando Maria vai visitar sua prima Isabel, que era

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considerada como “filha de Aarão”, que pertencia à linhagem

sacerdotal. Essa ascendência não pode ser considerada muito confiável

e, para não ficarmos apenas no campo nebuloso das conjecturas, melhor

dizer que pouco ou nada sabemos sobre a linhagem de Maria. Talvez o

único objetivo de entrecruzar as vidas de Maria e Isabel, mãe de João

Batista, seria para inter-relacionar João e Jesus, filho de Maria, ou como

uma forma de atribuir alguma linhagem levítica, sacerdotal, ao messias

galileu, Jesus.

Os judeus da Antigüidade davam grande relevância à sua

própria ascendência, sendo que famílias sacerdotais apresentavam suas

genealogia, por vezes muito bem conservadas, em arquivos públicos,

para evitar que seus membros viessem a se misturar com estirpes “não

tão nobres”.

A genealogia de Jesus, atribuída a Mateus, apresenta apelos

teológicos mais evidentes do que a apresentada por Lucas, segundo

Meier, a qual seria mais confiável. Mesmo essa última evidencia

problemas, como a presença dos nomes José, Judá e Simeão, que não

eram usados antes do exílio judaico na Babilônia. Segundo Júlio, o

Africano, no século III d.C., essas genealogias foram confeccionadas

com informações colhidas no seio da família de José. Ainda segundo

esse autor cristão, Herodes destruiu os arquivos genealógicos das

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famílias mais prestigiosas, provavelmente para apagar os registros

daqueles que já haviam possuído o poder político e religioso.

A família de José teria reconstruído alguns elementos dessa

genealogia a partir do conhecimento oral que possuíam, mas esses

elementos parecem apenas evidenciar que os cristãos primitivos tinham

problemas para justificar a genealogia do seu Cristo, sendo muitíssimo

pouco provável que a família de Jesus, um filho de “carpinteiro”, tenha

possuído, de fato, uma breve sinopse escrita de sua genealogia em

algum lugar. Lembrem-se que, na época, apenas 10% da população de

Atenas, a cidade mais cosmopolita e educada do mundo, tinham alguns

rudimentos de leitura.

A existência de uma linhagem davídica para Jesus está

totalmente ausente do Quarto Evangelho, que aliás coloca o local de

nascimento de Jesus como sendo a Galiléia e não Belém, a cidade do rei

Davi. Os adeptos do texto de João eram frontalmente anti-judeus e

procuravam, sempre que podiam, eliminar qualquer ligação entre Jesus

e seu povo, não interessando a eles qualquer menção a uma casa real de

Israel. Para eles bastava, como Jesus mesmo havia dito, saber que o

“reino do mestre não era desse mundo”.

Para esses irmãos nossos, da comunidade que redigiu o Quarto

Evangelho, Jesus era rei pela sua ascensão moral e pelo seu

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relacionamento com o Pai celestial e não por qualquer direito a trono

terreno. Nesse aspecto, embora Jesus enfaticamente não reconhecesse

qualquer relação com os reinos "desse mundo", não se pode deixar de

dizer que muitos dos seus seguidores achavam que o homem humilde,

mas de infinita bondade e justiça, iria restabelecer o poder da casa de

Davi, dentre eles Judas Iscariotes, ou de Kerioth, cidade da Judéia. Em

suma, o povo acreditava que entre seus ancestrais estava o rei Davi e até

o apóstolo Paulo, ou, mais provavelmente, um de seus seguidores mais

próximos, cita esse fato em 2Timóteo 2:8 (“Jesus Cristo, ressuscitado

de entre os mortos, descendente de Davi, segundo o meu evangelho").

Alguns grupos judeus não esperavam um único messias, mas

dois. O trabalho messiânico seria dividido por dois personagens

diferentes, como já citado, o Messias da Casa de Davi, que deveria criar

condições políticas para que o reino de Israel fosse restabelecido em

toda sua plenitude e conforme os mandamentos divinos, e o Messias da

Casa de Levi, ou Sacerdotal, que faria imperar entre os judeus um

estado teocrático. Embora Jesus não pertencesse à condição sacerdotal,

muitos o consideravam um rabi e Paulo atribuía o caráter sacerdotal a

Jesus como conseqüência da ressurreição.

A ascendência real do mestre pode ser inferida em múltiplos

fragmentos dos evangelhos sinópticos (Marcos 10:47; 12:35-37; Mateus

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9:27; 12:23; 15:22; 20:30; 21:9; 21:15; 22:42-45; Lucas 3:31, 18:38-39;

20:41-44) e mesmo nos Atos dos Apóstolos (2:25-31, 13:22-23) e na

Epístola aos Hebreus (7:14). A despeito das inúmeras inserções e

adulterações que o Novo Testamento sofreu para se adaptar aos desejos

de religiosos e soberanos, pode-se dizer que pelo menos parte desse

material era proveniente de tradições muito antigas e que,

assumidamente, tratavam de um Jesus terreno com ancestrais reais,

vindos de Davi.

Por outro lado, se a natureza davídica de Jesus ajudou na

consolidação de sua imagem como messias, por outro contribuiu

decididamente para sua crucificação, uma vez que os romanos nunca

aceitariam a existência de qualquer um que fosse considerado rei,

mesmo de reino que não fosse desse mundo. A proclamação da natureza

real de Jesus parece cumprir a promessa divina a Davi, em 2Samuel

7:12-14 (“Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais,

então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de

ti, e estabelecerei o teu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e

eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai,

e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de

homens e com açoites de filhos de homens”).

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Não se deve pensar, porém, que a ascendência real seja

simplesmente uma criação da igreja primitiva, visto que essa idéia

poderia ser rapidamente contestada por todos os que conheceram Jesus,

particularmente os judeus, e ainda estavam vivos quando as cartas de

Paulo foram redigidas. Se não o fizeram era porque essa ascendência

era considerada verdadeira por muitos, se não por todos.

Em meados do século I d. C., a família de Jesus acreditava, de

boa fé, descender do rei Davi e esse fato não parecia provocar

incredulidade na população palestina. De outros planos da vida no orbe,

sabemos que estavam certos; Jesus era descendente da casa de Davi.

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4 O relacionamento de Jesus com seus

familiares

“...Levanta-te, e vai para o sul, em direção do caminho ... Filipe levantou-se

e partiu...”

(Atos dos Apóstolos 8, 26-27)

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4.1 Como era o relacionamento de Jesus com sua família

terrena ?

Como citado anteriormente, poucos os que viam Jesus, na

infância pobre e sofrida, na região rural da Galiléia, podiam imaginar

que o mesmo seria futuramente reconhecido como messias ou o

escolhido de Deus.

Aquela região era famosa pelos seus homens santos e

pregadores itinerantes, como Honi e Hanina ben Dosa, mas poucos

poderiam supor que o jovem filho do carpinteiro teria um destino tão

impar. Sabemos que o próprio Jesus evitava falar de si mesmo e as

longas descrições do mestre atribuindo a si mesmo importantes papéis

na estruturação dos planos de Deus são adições tardias redigidas por

evangelistas que pretendiam realçar o papel singular de Jesus para os

não judeus, no final do século I d. C. e meados do século II d. C. e esses

discursos estão confinados principalmente no texto de João.

Para entender melhor o messias Galileu, no tocante à sua

mensagem, devemos dar prioridade ao Evangelho de Marcos, onde o

pregador que seduzia as multidões evitava falar de si e, quando

questionado sobre o seu papel na arquitetura divina para o mundo,

simplesmente dava uma resposta cuja interpretação dependia mais de

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quem escutava do que das palavras proferidas. Por esse motivo existem

tantas interpretações sobre suas falas e feitos.

Os evangelhos nos levam a crer que a família de Jesus duvidava

da sua missão junto aos seres humanos e possivelmente teria

perguntado “Quem ele pensa que é?. Curando, fazendo milagres,

pregando. Um profeta? O messias?”

Possivelmente nem mesmo a família do mestre sabia a resposta

exata para essa pergunta, porque Jesus era relutante em assumir uma

posição frente a essa questão. Nesse caso, se eles não percebiam

naturalmente o papel do Cristo, por que ele deveria lhes confidenciar

isso? Com exceção do Quarto Evangelho, no qual Jesus fala muito de si

mesmo e vai adquirindo uma posição cada vez mais divina, nenhum

texto deixa claro o papel que Jesus desempenhava na comunidade

judaica na qual ele se inseria, grupo que se autodenominava de “o

Caminho”. Esse papel vai amadurecendo e ganhando os contornos de

um messias sapiencial e médium de grande expressão; um canal para

Deus, por vezes erroneamente interpretado.

Outro ponto de discórdia entre o mestre galileu e seus familiares

diz respeito ao momento mais adequado para que o mesmo viesse a

iniciar seu ministério e havia discordância também entre o papel que a

família de Jesus esperava que ele desempenhasse e o que ele esperava

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executar. Entretanto, parece que após a crucificação, a própria família

de Jesus passou a organizar e supervisionar as regras que regiam “o

Caminho”, as quais se mostraram muito mais conservadoras do que

haviam sido durante o ministério público de Jesus, pelo menos quanto

ao papel exercido pelas mulheres dentro da comunidade, que acabaram

por perder gradualmente a importância que sempre tiveram enquanto o

mestre esteve entre nós.

Através das informações que nos chegam do plano espiritual,

através de psicografia e psicofonia, e pela literatura espírita disponível,

Maria havia sido escolhida como mãe pelo seu perfil amoroso e, ao

mesmo tempo, libertário, não procurando manter seus filhos junto de si

contra a vontade deles. Contudo, muitas foram as dores e angustias que,

misturadas com as notícias de milagres e feitos do filho mais velho,

faziam com que ela acreditasse em um final dramático para seu

ministério terreno, tendo conversado diversas vezes com Jesus sobre

esse ponto. Nessa mesma linha, os demais irmãos de Jesus viam como

um suicídio toda a agitação popular que se formava ao seu redor,

principalmente durante as visitas às cidades ao redor do Mar da Galiléia

e, por fim, na Páscoa fatídica.

Fora os receios familiares em relação ao futuro do pregador,

havia harmonia e simpatia no ambiente familiar, principalmente entre

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Jesus: homem e espírito

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Jesus e seu irmão Tiago, verdadeiro depositário de todas as credenciais

missionárias após a crucificação. Essa afinidade deu origem a inveja e

vaidade da parte daqueles que seguiam Jesus e muitas considerações

elogiosas do mestre galileu a seus familiares foram apagadas das

mentes humanas, o que seria seguido pela paulatina eliminação de seus

familiares dos próprios textos canônicos. Assim, a separação entre Jesus

e sua família era mais aparente do que real e os evangelhos não devem

ser tomados de forma “literalista”, uma vez que, propositalmente,

muitos familiares de Jesus foram colocados para escanteio, refletindo a

disputa de influência e relevância entre os apóstolos do mestre e a igreja

mãe, em Jerusalém.

As fantasiosas desavenças entre Jesus e seus parentes próximos

era uma forma de reduzir e ofuscar o papel que a família do galileu

exercia na direção da igreja Enquanto os textos canônicos traçam uma

relação tempestuosa entre o mestre e seus familiares, onde seus irmãos

não o compreendem, as tradições das primeiras igrejas evidenciam um

relacionamento muito diferente, onde Tiago, seu irmão, seria o

comandante da Igreja-Mãe de Jerusalém até 62 d. C., quando foi morto

por ordem de um Sumo Sacerdote; Judas seu outro irmão teria sido

martirizado durante um missão da igreja, por volta de 35 d. C., de 2 a 5

anos após a crucificação de Jesus.

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Após a morte de Tiago, Simão, seu único irmão vivo, seguiu à

frente da igreja de Jerusalém até 97 d. C., quando também foi

crucificado. O filho e neto de Judas, irmão de Jesus, seguiram à frente

da igreja palestina por algum tempo, até meados do século II d. C. Do

ponto de vista espiritual, nenhum dos familiares de Jesus havia atingido

a elevação do divino mestre e embora houvesse alguma incompreensão

em relação a ele, Jesus era visto como a personificação da justiça e da

bondade divina, sendo sua a última palavra sobre quase tudo, após a

morte de José.

No cinema e na televisão, Jesus é sempre retratado como um

nórdico de feições delicadas e compleição física de um intelectual, mas

isso não condiz com a realidade. Como um judeu da região norte da

Palestina, sob forte influência de numerosos exércitos invasores da Ásia

Menor (atual Turquia) e da Europa, nos séculos que se foram, o jovem

Jesus aparentava os traços típicos das diferentes correntes migratórias

que influíram na formação daquele povo. Seus olhos claros eram

motivo de observações mais detidas da parte dos que o seguiam, mas

seu inimaginável magnetismo pessoal, reforçado pela postura e

compleição física, faziam-no uma pessoa que despertava facilmente a

atenção. Seus traços faciais semitas se misturavam com a compleição

física mais avantajada para a época e os traços mais europeizados, no

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que tange aos olhos e a cor da pele, de um bronzeado adquirido no

trabalho incessante e árduo.

Era comum que, a um olhar do mestre, as pessoas desviassem os

olhos para esconder a própria culpa ou seus segredos mais íntimos; era

impossível não ser tocado pelo magnetismo do seu olhar ou pela

profundidade de suas palavras. Sua fisionomia era quase sempre grave,

mas não depressiva e dele sempre surgiam palavras de conforto. O amor

ao Pai a aos seus irmãos terrenos se manifestava pelo interesse que

sentia pela dor de seus pares e, quando percebia uma mudança íntima

entre os seus, respondia com um leve sorriso de satisfação. Era um dos

raros momentos de descontração. Nesse aspecto, nenhum de seus

irmãos possuía o carisma do primogênito de Maria e não aceitavam

comparações com Jesus, não por vaidade, mas por considerarem-no

ímpar, como evidenciado na Carta de Tiago, presente na Bíblia cristã

ocidental.

Mesmo após a morte física de todos os seus irmãos, segundo a

carne, histórias continuavam sendo contadas pelos seus sobrinhos e

sobrinhas nas décadas seguintes. Em meados do século II d. C., esses

personagens já estavam em franco processo de esquecimento, posto que

a nova fé estava se transformando em um misto de judaísmo renovado e

paganismo greco-romano. A renovação protestante iria nos libertar de

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parte dos acréscimos doutrinários perniciosos à verdade, mas foi apenas

com o advento do espiritismo que o cristianismo pôde respirar novos

ares e recuperar um pouco da liberdade que lhe havia sido subtraída.

4.2 Jesus era solteiro ou teria tido uma família ?

Por favor, não queremos falar mais de teorias de conspiração

nem de livros de ficção (ou de atrição religiosa), como o “Código Da

Vinci”, mas essa é uma questão real. Jesus era solteiro ou algo de

concreto sugere outra possibilidade ?

Pode parecer herético falar em um Jesus casado e com filhos,

mas pouco sabemos sobre sua vida pessoal, pelos textos do Novo

Testamento. Essa ausência de dados e as tentativas de eliminar tudo que

de humano havia em Jesus, acabou dando munição para teorias

conspiratórias e ficções bem estruturadas, como o livro citado acima.

Essa questão torna-se mais relevante quando lembramos que os judeus

valorizavam profundamente o matrimônio de seus líderes e mestres. Ter

filhos era visto como um dever e não um direito das mulheres e homens

pios.

A lei judaica recomendava que os homens e mulheres deveriam

constituir famílias e ter filhos, fato que três dos irmãos e as duas irmãs

de Jesus aceitaram. Como primogênito, o messias galileu era cobrado e,

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Jesus: homem e espírito

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de forma categórica, deixava claro que não havia tempo para esses

momentos familiares, posto que sabia que a jornada que o esperava

conduziria diretamente a um condição da qual não poderia voltar,

eliminando a possibilidade de ter uma família. Foi nessa área em que se

deram as poucas discussões entre Jesus e seus familiares, que adotaram

posições opostas sobre o tema “família”. Essas posições, entretanto,

foram apagadas com a crucificação e as materializações do seu espírito

na presença de dezenas de pessoas.

O próprio Moisés era casado e essa condição não era vista como

um fator limitante para o exercício de sua vida religiosa, o mesmo

sendo válido para o apóstolo Pedro. Devido a essas lacunas é que livros

de ficção, como o “Código Da Vinci”, acabam vendendo milhões de

exemplares e enchem (de fato) o imaginário popular (isso sem falar na

nossa paciência) com suas teorias conspiratórias. Nos textos hebraicos e

aramaicos, o casamento era visto como uma benção do Deus criador, de

forma que um rabino celibatário seria impensável para a maioria. Para

alguns rabinos, como Eleazar (Lázaro) ben Hircano (século I d. C), a

negação à obrigação de ter um filho, para um judeu, era comparável a

um assassinato.

Entretanto, Jesus não foi casado e tampouco teve tempo de

pensar em uma companheira. Sua vida, desde a mais tenra idade, fora

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tomada pelas preocupações relativas ao seu povo e á humanidade em

geral, onde tanta dor e desconforto espiritual e físico reinavam. Além

desses aspectos, os textos do Novo Testamento não se calam sobre os

vínculos familiares de Jesus, descrevendo-os com freqüência, de forma

que o silêncio dos mesmos a respeito do seu estado civil indica

claramente que ele não tinha uma esposa ou filhos, sendo que esses

mesmos textos são pródigos em relatar a presença de muitas mulheres

ao seu redor, sendo que Jesus chegou a admitir algumas em seu círculo

mais íntimo de seguidores, como Maria de Magdala e as irmãs de

Lázaro, o que as igrejas literalistas não aceitam com facilidade. Como

os próprios apóstolos possuíam filhos e esposas e isso não trazia

nenhuma vergonha ou constrangimento aos evangelistas, o silêncio

sobre esse aspecto da vida de Jesus confirma que não havia nada para

ser relatado sobre esposa e filhos de Jesus.

Muitos grupos religiosos da época de Jesus advogavam o

celibato como forma de não trazer mais ninguém para a prisão do corpo

físico ou para consagrar o próprio corpo a Deus, destacando-se entre

eles os “terapeutas” do Egito, semelhantes aos essênios do deserto da

Judéia e da maioria das grandes cidades da Palestina. Embora esses

grupos possuíssem celibatários em seus quadros, o sexo com a

finalidade da reprodução era aceito e tido como divino.

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Jesus: homem e espírito

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Josefo e Fílon, ambos judeus, e Plínio descrevem os essênios

como uma comunidade sectária de judeus vivendo uma vida

predominantemente celibatária, dedicada à oração e adoração do Deus

único. Segundo Plínio, os essênios eram um grupo dentro do judaísmo

que renunciara a todo prazer sexual e procriação. De fato, vários

documentos entre os “manuscritos do Mar Morto” consideram que o

pecado constitui uma verdadeira prisão e isto estava associado ao corpo

físico, que atuaria limitando o homem e dificultando o estabelecimento

de toda sua plenitude, de forma que não ter filhos antes que o

julgamento de Deus fosse realizado seria uma maneira de não aprisionar

mais ninguém na carne. Contudo, a autoria desses textos sectários não

pode ser atribuída aos essênios com segurança, como discutido

previamente.

O cânone ainda apresenta uns poucos exemplos de celibatários,

como o profeta Jeremias, que encarava o próprio celibato como um

trágico estigma pessoal. João, o Batista, era celibatário e isso é

particularmente relevante desde que ele foi contemporâneo de Jesus e

seu mestre dos primeiros caminhos, influenciando sua visão messiânica

(em realidade, João era um enviado do Alto e não apenas um precursor

do Cristo). Embora nenhum texto do Novo Testamento evidencie essa

condição do Batista, seu estilo de vida itinerante, no vale do Jordão e no

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deserto, comendo o que encontrava na natureza, seria incompatível com

a existência de uma família. Lucas (1:80; 3:2) mostra que João teria se

recusado a seguir a tradição familiar de seu pai como sacerdote levita e

teria se esquivado de perpetuar a linhagem sacerdotal através do

casamento e descendência. Em Mateus (14:1-12), são os discípulos que

vão buscar o corpo de João, após a morte, o que era obrigação de sua

família, se ele tivesse uma.

Moisés, quando passou a se apresentar aos planos espirituais

mais altos, também desenvolveu um comportamento celibatário,

mantendo com a esposa um relacionamento fraterno. O próprio rabino

Simeão ben Azai, embora celibatário, ou, como preferia dizer, casado

com a Torah (a bíblia judaica), recomendava o casamento e a

procriação. Assim podemos concluir que embora a escolha pelo celibato

tivesse um caráter de contestação, por vezes incômodo para a

sociedade, pode-se dizer que essa era uma opção reconhecida, embora

não comum, no mundo mediterrâneo do século I d. C. O celibato de

Jesus pode ser pensado como uma parábola viva que obrigava todos a

uma reflexão e permitia a ele a possibilidade de se deslocar e se dedicar

totalmente à sua missão de vida.

A frase “Porque há eunucos de nascença; há outros a quem os

homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos se fizeram eunucos

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por causa do reino dos céus” (Mateus 19:12), bem como a posição

celibatária de alguns de primeiros membros da igreja, revela o

conhecimento geral do modo de vida celibatário do messias galileu.

Podemos colocar um ponto final, seguro, nessa discussão, uma vez

existem elementos suficientes para dizer que Jesus foi celibatário e esse

modo de vida possuía todos os ingredientes que um pregador itinerante

do século I d. C. necessitava, além de ser uma postura que afrontava a

classe sacerdotal da época.

Esse questionamento sobre a relação entre Jesus e as mulheres é

importante. Primeiramente porque constitui dogma religioso e por

ajudar a moldar a relação homem-mulher em muitas igrejas cristãs de

cunho mais literalista. Casos existem em que a freqüência à igreja é a

única oportunidade para que os dois gêneros da espécie humana possam

interagir socialmente.

Ao lado de uma verdadeira revolução social representada pela

ascensão da mulher a todas as atividades da ciência, tecnologia,

religião, cultura e lazer, ainda existem mentes que procuram escravizá-

las utilizando a vida de Jesus como exemplo de posição secundária a ser

adotada por todas as mulheres, o que não condiz de forma alguma com

o que encontramos na Bíblia, onde elas caminhavam lado a lado com o

mestre e seus discípulos, e, acima de tudo, com o que nos é

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freqüentemente revelado da espiritualidade maior, onde Maria de

Nazaré reina em toda sua bondade de mãe piedosa e estremece, com a

oração a ela dedicada, o coração endurecido de tantos obsessores.

As mulheres que acompanhavam o mestre com mais

assiduidade, como Maria de Magdala, eram responsáveis pela

importante missão de recolher e manter os proventos que garantiam o

deslocamento do grupo. Essas mulheres, muitas das quais senhoras,

eram as "mães e irmãs" de todos e acabaram por despertar muito ciúmes

nos corações ainda empedernidos de alguns apóstolos, notadamente

Pedro, que se sentia diminuído pela importância que elas adquiriam na

comunidade de seguidores.

Prova bastante ímpar dessa relevância descansa junto ao

calvário, onde Maria de Magdala foi a primeira testemunha da ausência

do corpo de Jesus no sepulcro. Tendo-se em vista que uma mulher

raramente era aceita como testemunha de algo, na sociedade judaica da

época, podemos ter certeza que o fato ocorreu, posto que causava

constrangimento aos evangelistas citar que a primeira testemunha da

pretensa ressurreição era uma mulher, ilustrando, por outro lado, a

importância dessa personagem para o grupo de seguidores do mestre e

acrescenta cores novas ao afeto que a unia ao Cristo que a havia

libertado de severa obsessão no inicio de seu ministério público.

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4.3 Qual a formação religiosa de Jesus, o judeu?

Mais uma vez, nos vemos diante de uma indagação sobre a vida

de Jesus que, à primeira vista, parece ser facilmente respondida, mas

essa condição é enganosa. Como o maior de todos os pregadores

poderia ter sido um leigo destituído de uma formação sacerdotal?

Mas isso é o que realmente aconteceu. Jesus era um pregador

leigo. Um leigo de uma província marginal do Império Romano e,

portanto, visto com desconfiança pelos sacerdotes do culto estabelecido.

Por isso, talvez, Jesus tenha entrado em constantes choques com

escribas, fariseus e mestres de sinagogas locais, mas por vezes esses

confrontos mostram lados positivos nos questionadores e sempre as

portas do diálogo estão abertas, o que não acontece com os sacerdotes

do Templo e com os detentores do poder religioso da época. Na única

situação em que a classe sacerdotal se coloca em contato com Jesus, em

discussão, o faz de forma extremamente agressiva, tentando

ridiculariza-lo e o antagonismo entre ambos é insuperável.

O profundo conhecimento de Jesus sobre as leis judaicas deriva

essencialmente do seu precoce contato com as escrituras mais

relevantes, muitas das quais não fazem mais parte do cânone cristão ou

judaico atuais, como o Livro de Enoch, na pequena sinagoga de Nazaré,

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que não era nada além de um pequeno salão, e nas poucas visitas da

família ao Templo de Jerusalém. Jesus ficava impressionado com o

amor de Deus para com os homens e pela facilidade com que esses

últimos estabeleciam barganhas com o Criador (fazemos isso até hoje....

do tipo “pagar promessa”) e a forma literalista com que as pessoas, em

particular as detentoras do poder religioso e temporal, liam os textos

sagrados. A inteligência e desenvoltura do menino fizeram-no rodeado

de pessoas mais velhas, que se perguntavam de onde vinha tamanho

poder. Como que tomadas por seu indescritível magnetismo, as pessoas,

incluindo os sacerdotes locais, viam-no como um prodígio; um perigo;

delicioso perigo teológico e intelectual.

Mas Jesus teve alguma educação religiosa formal?

Pode parecer estranho, mas a resposta é.....Não. Ele era um

espírito pleno, puro e pronto para o papel divino que vinha

desempenhando há eras geológicas, após ter sofrido todos os percalços

dos caminhos evolutivos. O que lhe faltava de conhecimento formal,

adquirido em escolas e sinagogas, sobrava em termos de intuição e

conhecimento natural, inerente a ele.

Seu conhecimento transcendia o que a humanidade poderia ter

oferecido na época, e mesmo hoje. Muitos dizem que a filosofia cristã

incorporou muitos elementos dos filósofos gregos, como Aristóteles,

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Sócrates e Platão, mas esses últimos foram enviados do próprio Cristo

para remover parte dos muitos grilhões que prendiam a humanidade,

preparando seu ingresso em nosso mundo físico. Nada mais natural do

que isso, semelhantes refletem semelhanças.

Obviamente a mente brilhante de Jesus precisava ser nutrida

com informações que viessem a frutificar, mas o que havia à sua

disposição era muito parco. Muito do conhecimento que ele professava

vinha da interpretação dos textos disponíveis e pregações de homens

santos, verdadeiros andarilhos com cultura oral. Além desse aspecto, o

menino vivia mais tempo nos planos paralelos da vida, onde trocava

informações com a coorte angélica que o acompanhava e que eram

relembradas diariamente. Muitos pensavam que Jesus era louco, em

função desses “sonhos vívidos”, mas ele tinha plena consciência do que

se tratava e, mesmo na mais tenra idade, parecia administrar muito bem

esse fenômeno.

Quando lemos o Novo Testamento fica claro que os problemas

que Jesus passou a ter dizem mais respeito ao desafio que ele

representava ao poder temporal e à elite sacerdotal, do que questões de

natureza religiosa. Obviamente, como ele questionava a exclusividade

dos sacerdotes, sua postura representava uma reação ao poder existente

e isso envolvia os romanos. Logo cedo se esboçava o destino que teria

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Jesus e a cruz sempre esteve no horizonte a contemplá-lo em toda sua

macabra silhueta e extensão.

Essa abordagem ganha mais significado quando acreditamos no

que Jesus representava ao plano espiritual do orbe; não existe

necessidade de títulos de santidade ou formação religiosa para entrar em

contato com o Pai Divino. Essa posição de o "reino de Deus" acessível

aos homens reflete também a inexistência de educação religiosa formal

de Jesus e isso apavorava todos aqueles que se sentiam donos do

intercâmbio com a divindade e utilizavam essas prerrogativas para a

obtenção de vultosos lucros e vantagens pessoais, o que tornava a

posição de sacerdote do Templo, especialmente o Sumo Sacerdote,

bastante atrativa e freqüentemente era objeto de negociatas pouco

transparentes entre o poder religioso judeu e seus superiores temporais

romanos. Por esse mesmo motivo, nós espíritas NÃO devemos,

independentemente do papel desempenhado em nossas casas de

caridade e oração, adotar a figura de sacerdotes, o que de fato não

somos e jamais seremos, se tivermos juízo, claro.

Parte da razão entre o antagonismo entre os primeiros cristãos e

a classe sacerdotal deriva da época em que os evangelhos foram

escritos, entre 70 e 95 d. C. (com exceção de algumas composições,

como o Evangelho de Tomé, O Evangelho da Cruz e o documento Q,

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cuja redação pode ter se iniciado antes de 50 d.C.), quando a revolta

contra os romanos teria sido sufocada e a classe sacerdotal havia sido

banida. Com a destruição do Templo de Jerusalém e, sendo o judaísmo

rabínico o descendente direto do farisaísmo, os evangelistas teriam sido

mais benévolos com os fariseus na maioria de suas abordagens, o que

não ocorreria com a classe sacerdotal, agora expulsa de seus mais

íntimos redutos e despojada de seu antigo e dominante poder.

Por baixo dessa condição, o que se verificava nos contatos do

galileu com a classe sacerdotal é um profundo incômodo gerado por um

leigo que parecia dominar com maestria a lei mosaica e conseguia

subverter a ordem religiosa, a qual criava um abismo entre o homem e

Deus. Criar uma ponte sobre esse abismo era função dos sacerdotes do

Templo, mas eliminar esse abismo parecia ser a principal mensagem de

Jesus.

Essa filosofia acabou definindo, nas mentes cristãs, que Jesus

representava, para a Nova Aliança com Deus, aquilo que o Templo

representava para o povo judeu. Múltiplas evidências dessa associação

estão disponíveis nos textos bíblicos, onde os cristãos parecem mostrar,

aos judeus, que o verdadeiro Templo era representado pelo espírito e

corpo de Jesus, que havia se levantado do túmulo após 3 dias, enquanto

o Templo de pedras, dos seguidores da Lei Mosaica, ainda jazia

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destruído no solo, depois da destruição pelos romanos no dia 29 ou 30

de julho do ano 70 d. C. Entretanto, essa comparação não fora feita pelo

próprio Jesus, que aceitava a existência do Templo, mas não

concordava com todo o tipo de negociatas que se davam ao seu redor e

que constituíam a base da relação do homem com o divino.

Os cristãos primitivos tiveram numerosos problemas com a

classe religiosa judaica, visto que seu líder afrontava as autoridades,

mas sua própria autoridade vinha apenas do domínio que tinha do

pensamento mediterrâneo e judeu, em particular, temperado por uma

inteligência aguda e um profundo, mas curioso, para a época, senso de

justiça. Jesus não tinha base formal para sua autoridade. Falava apenas

por si mesmo e, utilizando lógica aguçada e comparações elaboradas,

afrontava o mundo miserável e cheio de relações de honra e preconceito

que o envolvia.

Não podia invocar títulos terrenos, tampouco autoridade formal

sobre os textos sagrados da Torah, a “Bíblia Hebraica”, mas trazia

impresso na alma um conhecimento que parecia vir do Mais Alto,

adquirindo a postura de Sumo Sacerdote dos homens,

independentemente de sua condição social e sexo, junto ao Pai.

Como coloca o brilhante J. P. Meier, alguns cristãos sentiam que

Jesus era “o verdadeiro e onipotente Sumo Sacerdote sentado à direita

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do Pai”, conforme a Epístola aos Hebreus. Somente nesse texto o

mestre galileu é chamado de sacerdote e Sumo Sacerdote. Para o

apóstolo Paulo, a condição de sacerdote exaltado de Deus, atribuída a

Jesus, deriva de sua ressurreição dos mortos, após a expiação na cruz.

Essa visão se generalizou e hoje está no seio da grande maioria das

igrejas cristãs pelo globo.

4.4 Como foi a educação formal de Jesus, um judeu

pobre do século I d.C. ?

A região onde a sagrada família residia também constituía uma

área de grande agitação cultural, principalmente no que concerne às

fortes influências helenísticas, persas e mesopotâmicas. A proximidade

com a cosmopolita Séforis ajudava a compor o mundo mental do

menino Jesus, insuflando-lhe o ponto de vista de uma sociedade mais

pluralista, embora tudo isso estivesse no seu “Eu” adormecido. Pelo

intelecto e sublime coração, o menino Jesus representaria um desafio

para muitos professores modernos, muitas vezes não preparados ou

acostumados e questionamentos.

A presença de Séforis a poucos quilômetros de Nazaré sugere

que conhecimentos de grego devem ter sido passados para Jesus, uma

vez que era a língua franca no Mediterrâneo oriental e na administração

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romana. Com isso, mesmo na forma mais rudimentar, o mestre galileu

poderia ter conversado com os guardas e soldados romanos nos

momentos que antecederam a crucificação, tornando-se plausível uma

conversa em grego entre Pilatos, o prefeito da Judéia, e o pregador

independente considerado por muitos como o Filho de Davi e enviado

do Deus Altíssimo. Esse conhecimento de grego também abriria as

portas da própria filosofia grega.

Os evangelhos trazem numerosas evidências de Jesus lendo,

escrevendo ou debatendo as escrituras (João 7:15; João 8:6; Lucas 4:16-

30). A habilidade de ler não era pré-requisito para o sucesso no mundo

greco-romano, muito menos para os habitantes da Galiléia, periferia do

império.

A fidelidade dessas passagens bíblicas é bastante questionável,

sendo que João 8:6 não fazia parte do Quarto Evangelho, como

demonstram as cópias mais antigas, sendo considerada como fruto da

teologia da igreja do século II d. C. Contudo, essa passagem reflete uma

tradição verdadeira a respeito de Jesus. Nesse versículo, Jesus escrevia

na terra com o dedo e a grande maioria dos estudiosos acredita que o

verbo “escrever”, em realidade, encobre o fato de que Jesus,

provavelmente, apenas desenhava, demonstrando sua “falta de

interesse” ou desagrado pelo excessivo “zelo aparente” daquele grupo

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judeu. O mestre galileu, evidenciando profunda misericórdia para com a

pecadora, teria escrito os pecados mais comuns daqueles que

ameaçavam apedrejá-la, mas como o texto joanino omite o que estava

sendo escrito, favorece a idéia de que “os escritos” não passavam de

linhas e desenhos.

Em João 7:15, os judeus se perguntam como alguém como

Jesus, sem uma educação formal com os grandes mestres das lei, como

Gamaliel e outros, poderia ler e discutir as escrituras, como ele o fazia e

com muita propriedade. A crítica, portanto, não recai na ausência dos

estudos básicos em Jesus, mas na precariedade de seus estudos na lei

mosaica e acaba até por mostrar que ele apresentava genialidade na

argüição e discussão dessas leis e isso somente se daria se Jesus

conseguisse lê-las, como ele de fato o fazia.

Para compreender as escrituras, muitas em hebraico, língua que

poucos falavam na época de Jesus, o divino mestre não podia ser

possuidor apenas de conhecimentos básicos de leitura, ou dominar

apenas os textos em aramaico, língua que ele falava em casa. Nesse

sentido, ele, na sinagoga de Nazaré, lê Isaías (61:1-2) e, ao final, dirige-

se aos seus ouvintes e conclama que naquele momento, enquanto ele lia

o texto profético, o mesmo se cumpria (Lucas 4:16-30). Seria análogo a

dizer “o messias hoje se apresenta a vocês!”. A historicidade dessa

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passagem é discutível, mas tem sido atribuída à tradição que permeia os

textos de Lucas e é uma das poucas ocasiões em que Jesus fala de si

mesmo fora do evangelho de João, o que sugere sua autenticidade. A

reação dos judeus deixa claro que existe uma oposição a esse mandato

messiânico e nem todos estão preparados para um messias que vem da

porção inferior da camada social.......eles se esquecem dos requisitos

divinos, comparando-os apenas aos aspectos mundanos de um messias

guerreiro e vencedor esperado pelo povo como o futuro rei judeu.

No início do século I d. C., ou mesmo antes, a maioria das

crianças judias recebia alguma educação formal em escolas, objetivando

a leitura das escrituras e tais escolas eram mantidas pela própria

comunidade, que as denominava de “casa do livro”. Pôde-se observar

sua existência em praticamente todas as cidades da Palestina, como

conseqüência do trabalho de Simeão ben Shetah, no século I a.C., e do

Sumo Sacerdote Josué ben Gamala, que exerceu o sumo sacerdócio de

63 a 65 d.C.

As fontes dessas informações são as tradições incorporadas na

Mishná, textos escritos por volta de 200 anos após a crucificação.

Assim, talvez os textos exortando a existência dessas escolas venham a

refletir mais os desejos de seus idealizadores do que sua ocorrência real.

Porém, tais “casas do livro” se tornaram uma instituição bem

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estabelecida nos séculos seguintes e, mesmo quando havia alguma

instrução, a mesma se resumia na capacidade de ler as escrituras e de

preencher as necessidades do indivíduo quanto aos aspectos mais

práticos da vida. A literatura era um bem reservado para um público

mais abastado e não para os habitantes das vilas.

Jesus teve acesso precário a essa educação formal e seu

profundo domínio das tradições e leis do povo vieram como

conseqüência de sua gana em saber e pesquisar, mesmo com

ferramentas tão limitadas. Seus primeiros mestres na casa do livro se

impressionavam com a capacidade de aprendizado e logo tiveram

dificuldade para conciliar as necessidades daquele menino pobre com as

necessidades das demais crianças, de famílias tão ou mais carentes do

que Jesus. Não era fácil ensinar alguém que, no seu espírito, trazia o

conhecimento da plenitude do cosmo, apenas adormecido

temporariamente pelas exigências e limitações do corpo físico, bem

como para o bem daqueles que o cercavam na época.

Como a vida religiosa de Jesus bem evidencia, ele costumava

discutir as escrituras e as tradições com eruditos e, por vezes, é flagrado

em discussões com esses “doutores da lei”, além de pregar em

sinagogas, o que requer muito mais do que um simples conhecimento

básico das letras. Esse fato torna sua situação ainda mais singular,

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particularmente quando os oponentes ressaltam que ele era um rabi ou

mestre sem que tivesse tido formação, no sentido formal, para tanto.

Pode-se suspeitar que a formação de Jesus no seio de sua família foi

intensa e incluiu a leitura de textos em aramaico e hebraico, como as

escrituras do Pentateuco. Essa capacidade de ler e discutir textos

religiosos antigos denota um conhecimento que vai muito além do que

se supõe como padrão para um habitante do mundo greco-romano de

então e pode ser comparada a educação de escriba. Nesse ponto,

acreditamos que a fé intensa do pai de Jesus e de seus demais familiares

tenha levado José a ensiná-lo a ler os textos sagrados precocemente.

A condição do aprendizado de Jesus com certeza foi facilitada

por ser primogênito, de forma que os recursos familiares poderiam ser

empregados com mais tranquilidade em sua formação. A sinagoga de

Nazaré também contribuiu para a formação intelectual do menino e

imaginem o significado do seu retorno adulto para pregar entre seus

iguais e o sentido da incredulidade dos mesmos, exemplificada pela

famosa expressão “Não é este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de

Tiago.....”. Muitos dos que proferiam essas palavras eram seus parentes

próximos e que viam o rumo que o jovem pregador tomava em sua

empreitada, que nada tinha de pessoal.

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4.5 Qual a profissão de Jesus e qual a condição

socioeconômica de sua família?

Para um habitante do século XXI, essas perguntas constituiriam

dois assuntos diferentes, uma vez que nem sempre a condição social

está tão diretamente ligada à profissão exercida. Em uma sociedade com

um mínimo de mobilidade social, como a nossa, vemos pessoas com

renda familiar satisfatória, independentemente da formação dos seus

membros. Hoje, o próprio indivíduo pode escolher a sua profissão; no

século I d.C. a profissão era parte da herança familiar.

Durante dois mil anos de história temos acreditado na imagem

de um Jesus desprovido de bens materiais, pregando a igualdade social

e desprezando a riqueza. Isso é muito diferente de alguém que não saiu

exatamente da base da pirâmide social, mas pregava o desapego aos

bens terrenos. Entretanto, a discussão que sempre existiu, no tocante ao

messias galileu e a riqueza terrena, dizia mais a respeito da riqueza da

própria igreja romana e da forma com que as pessoas e as nações eram

espoliadas de tudo que possuíam de mais valioso. Temos de deixar

claro que não estamos nos referindo à igreja quando perguntamos sobre

qual era o padrão de vida da família de Jesus e sabemos que esse ponto

é bastante relevante, uma vez que determina como o mestre via a

riqueza, como encarava a fome e a escravidão que vicejava nas

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entranhas do império romano e, por fim, como ele acreditava que

deveria ser o relacionamento entre os homens no compartilhamento do

fruto do trabalho.

É lugar comum entre os especialistas de que Jesus foi um

carpinteiro pertencente ao que atualmente denominamos de “classe

média baixa” e que sua profissão foi adquirida no dia a dia de convívio

com seu pai, José. Tal proposição pode, entretanto, ser enganosa.

Embora Jesus seja continuamente considerado um camponês nos

evangelhos, ele nunca é visto lavrando a terra, de forma que a palavra

“camponês” deve receber um novo significado. A ciência da agricultura

devia ser praticada por grande parte da população dos férteis vales da

baixa Galiléia, como forma de adquirir o seu próprio sustento ou para

fornecer parte das necessidades da família, cuja renda principal vinha

do trabalho urbano de autônomo dedicado a trabalhos em superfícies

sólidas, como outrora faziam os carpinteiros.

Esse passado familiar mais conservador pode ter influenciado de

tal forma a família de Jesus que, décadas após a crucificação, seu irmão

Tiago exigia uma certa observância da lei mosaica pelos novos

convertidos ao cristianismo, como descrito nos Atos dos Apóstolos.

Além desse aspecto, para esses indivíduos oriundos de minúsculas

comunidades na Galiléia, os grupos religiosos urbanos, particularmente

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Jesus: homem e espírito

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os fariseus e a classe sacerdotal dominante, deveriam ser encarados com

alguma desconfiança.

No caso da família de Jesus, seu pai, mãe, ele próprio e seus

irmãos homens costumavam exercer atividade econômica nas

proximidades da vila de Nazaré, o que explica a familiaridade do mestre

com a terminologia dos agricultores e nos auxilia a entender as

numerosas comparações com a vida rural presente nas parábolas. Deve-

se reconhecer, assim, que a família de Jesus, embora vivendo em uma

pequena vila e atuando como mão de obra com alguma qualificação,

também cultivava pequena extensão de terra para seu sustento. Nessa

atividade, o jovem Jesus se destacava pelo capricho e bons resultados

obtidos, o que nos ajuda a entender as reticências que a família tinha à

sua missão de pregador, abandonando a atividade profissional,

acarretando perdas significativas para as condições socioeconômicas da

família.

Cabe ressaltar aqui que a capacidade do mestre em obter o maior

rendimento dos cultivos e criações a que se propunha derivava do fato

de que ele espalhava energias nobres, que propiciavam mais harmonia e

permitiam maior desenvolvimento de animais e vegetais ao seu redor. A

vila de Nazaré era abençoada com sua presença, mesmo que não

soubesse ou, pior, valorizasse.

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Ainda nos primeiros anos do século II d. C., como nos conta

Hegesipo, através da obra de Eusébio intitulada "História Eclesiástica",

o imperador romano Domiciano, na tentativa de se livrar de problemas

com o nacionalismo judeu, teria interrogado os netos de Judas, irmão de

Jesus, sobre sua ascendência real e possíveis pretensões ao poder

terreno e tendências messiânicas. Esses sobrinhos-netos do messias de

Nazaré teriam dito que possuíam uma pequena extensão de terra que

lavravam com as próprias mãos, como também fizeram seus tios-avós e

demais familiares.

O único versículo que fala da profissão de Jesus já foi discutido

acima (Marcos 6:3 e suas versões equivalentes em Mateus e Lucas) e

refletiria uma sucessão natural de pai para filho, tão comum na

antiguidade. Cabe colocar que Jesus atuava de fato como um

marceneiro moderno e não um carpinteiro, como se popularizou, uma

vez que o termo grego empregado para descrever sua atividade

profissional é “tekton”, que deveria ser traduzido pelo que hoje

conhecemos por marceneiro, o qual deveria ser capaz de trabalhar, além

da madeira para móveis, madeiramentos para construção de casas,

pedras e outras estruturas sólidas como chifres e marfim, como

apresentado nas igrejas orientais, como as igrejas coptas e siríacas.

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Dessa forma, o ser quase esquálido e com expressão de doente

que vemos retratada na maioria das pinturas medievais e modernas, bem

como filmes, não teria muito futuro na profissão; Jesus tinha uma

robusta compleição física em função da genética familiar e pela

atividade física vigorosa que exercia como pequeno lavrador e

marceneiro. Isso pode ser inferido pela freqüência com que ele é visto

pregando para multidões e se desloca continuamente pela Palestina,

mostrando seu vigor físico.

A família de Jesus dependia do trabalho para sobreviver e,

assim, era considerada como parte do extrato inferior da sociedade, mas

não fazia parte da base da pirâmide social, tampouco era mais pobre do

que qualquer camponês da época. Lembre-se que lemas como “o

trabalho enobrece o homem” e “o trabalho liberta” não faziam parte da

filosofia do Mediterrâneo do século I. d. C. Na época, somente os que

tinham escravos ou podiam viver do trabalho alheio constituíam a elite

ou nobreza.

A pobreza da família do mestre não era opressiva e degradante

como a apresentada por aqueles que vislumbravam a pirâmide social

olhando a partir de sua base. Junto a ele estariam os pequenos

lavradores, profissionais liberais e pequenos comerciantes das vilas e

povoados, lutando, no dia a dia, pela sobrevivência, sem a garantia

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moderna que a classe média possui, mas longe da base dessa pirâmide

social. Os extratos inferiores incluíam os servos, lavradores sem terra,

trabalhadores diaristas, ambulantes e, por fim, os escravos. Dessa

forma, durante o exercício do seu ministério público, a sua renúncia aos

poucos bens que lhe eram facultados dava-lhe a aparência de uma

pessoa portadora da mais profunda miséria, o que lhe facilitava

aprofundar sua mensagem para grande parte da população de excluídos

e não lhe fechava as portas para o movimentação na condição de divino

peregrino. Como Jesus não vinha da base da pirâmide social, sua

renúncia aos bens materiais e sua profissão, no início de seu ministério,

teriam uma conotação ainda mais forte, firme, radical. Quando ele

ensinava a renúncia, mostrava o que ele mesmo teria feito no passado.

Algumas estudiosos advogam que Jesus discutia a lei com

pessoas ricas, como Nicodemos (possivelmente o personagem

conhecido como Nicodemus ben Gurion, citado no Talmude) e isso era

incomum para o pobres, de forma que enxergam um Jesus mais rico nas

escrituras, o que lhe teria permitido uma melhor formação intelectual.

Mas quase todos os aspectos da vida do mestre depõem contra essa

posição.

A Galiléia de Herodes Antipas (4 a. C a 39 d. C.) era uma ilha

de relativa calma e certa prosperidade cercada por outras províncias

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romanas, em particular a Judéia, onde o clamor revolucionário era

sentido associado a um forte sabor nacionalista e religioso que se

intensificava continuamente. Muitas construções estavam em

andamento e a força da civilização greco-romana mudava as paisagens

da Galiléia. Assim, embora muitos acreditem que Jesus tenha

trabalhado com seu pai em cidades helenizadas ao redor de Nazaré,

como a bela Séforis, distante apenas uma hora de caminhada, onde

poderia ter entrado em contato com a cultura e civilização gregas, nada

nos evangelhos permite esse tipo de extrapolação sem uma série de

reservas. Merece destaque o fato de que Jesus evitava essas cidades

helenizadas, mantendo-se apenas nas vilas e cidades de nítida maioria

judaica. Nesse particular, nada no modo de vida das comunidades

helenizadas chamava a atenção de Jesus, que nasceu, viveu e morreu

como um judeu pio, praticante.

A palavra aramaica “naggara” que teria sido traduzida por

tekton, para o grego, significa, também, mestre ou artista e,

empregando-se passagens posteriores do Talmude, coloca que esses

profissionais eram reconhecidos pelos seus conhecimentos das

escrituras hebraicas, porém não podemos determinar com precisão se

isso era válido para a época de Cristo, séculos antes. Contudo, a

sabedoria que o mestre dos mestres mostrou ao longo da sua vida vinha

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da sua indescritível condição espiritual e não de escolas do mundo; nem

a prisão da carne foi capaz de separá-lo do seu imenso cabedal de

conhecimentos anteriores. Como ele mesmo disse (João 3:5-6), "Em

verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito

não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e

o que é nascido do Espírito é Espírito."

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5 João, o mestre do Mestre

“...Em verdade, em verdade vos digo...

Eu sou o pão de vida: aquele que vem a mim, não terá fome,

e aquele que crê em mim jamais terá sede....”

(João 6, 32-35)

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5.1 João, o Batista, mentor e mestre de Jesus, o Cristo.

Poucos pontos da vida de Jesus estão claramente definidos nos

evangelhos, destacando-se o seu batismo por um pregador itinerante do

vale do rio Jordão, chamado João, e sua crucificação durante o governo

do prefeito romano Pôncio Pilatos. Todos os cristãos parecem conhecer

a história do batismo de Jesus e sabem que o mestre galileu teria

reunido seus primeiros discípulos e admiradores entre os seguidores do

Batista, como iremos chamá-lo a partir desse ponto.

Da mesma forma, quando todos os critérios de historicidade são

aplicados à associação entre Jesus e o Batista, aparece uma relação de

discípulo e mestre. Nesse particular, décadas após a crucificação, a

comunidade cristã começou a sentir algum desconforto com o fato de

que seu messias, homem e Deus- Filho, e dono de tantos outros títulos

que lhe eram atribuídos sem o seu consentimento (mesmo contra a

vontade de Jesus, ele passou a receber as mais lisonjeiras denominações

dos pobres e miseráveis do caminho), teria sido batizado por um

homem santo do deserto. O processo de divinização de Jesus,

promovido pelos seus seguidores tornava esse situação incômoda.

Assim, nos evangelhos mais antigos, o batismo de Jesus pelo Batista é

retratado em cores mais reais, que são modificadas nos textos de

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Mateus e Lucas, até ser quase negado no Quarto Evangelho, como

veremos a seguir.

Esse fato teve de ser trabalhado por décadas até assumir as cores

que vemos hoje nos evangelhos, “pasteurizando” a relação entre os dois

pregadores do século I d. C. Contudo, não se pode deixar de reconhecer

que o Batista era um enviado do Pai para os desesperados e miseráveis

que procuravam algum alívio para as muitas dores que sentiam na alma.

A miséria econômica aliada à intolerância de uma sociedade

patriarcal e teocrática acabava por criar condições para que os

desesperados dessem início a movimentos religiosos radicais, cada qual

trazendo uma mensagem escatológica sobre o juízo final. o Batista, ao

contrário de muitos que o precederam, não se sentia como o enviado de

Deus Altíssimo, aquele que deveria mudar o rumo da história, mas se

via como o homem que prepararia os corações e mentes para o advento

do messias. Para ele, sua missão era a de revelar a iminência dos planos

do Senhor. Apenas isso.

As evidências históricas da existência de João, o Batista, são

bastante significativas, principalmente no que se refere a citações por

não-cristãos. Além desse aspecto, os cristãos não iriam inventar um

personagem que teria batizado o seu messias, algo que parecia

constrangedor aos olhos dos novos adeptos; lembrem-se que Jesus

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estava sendo transformado nas mentes de muitos judeu-cristãos

helenizados, romanos e gregos em Filho Único de Deus ou Deus-Filho,

figura da controvertida Santíssima Trindade da igreja latina e isso não

permitia que descrições que mostrassem a humanidade do mestre

viessem à tona, como ocorre com o seu batismo por João.

Pela ampla cobertura que Flávio Josefo dá as atividades de João,

muito mais extensa do que a cobertura dada ao ministério de Jesus,

pressupõe-se que João, ao contrário, era muito mais indigesto e

subversivo ao poder romano, representado pelos seus reis fantoches

herodianos e pelo governo romano direto, tendo sido condenado a

morte por Herodes Antipas.

Tanto os evangelhos cristãos como Josefo falam que o Batista

era muito popular no vale do rio Jordão e sua mensagem estava ligada

ao julgamento do final dos tempos, que seria presidido por alguém que

viria depois dele e pelo próprio Senhor de Israel, o Deus de Abraão.

Segundo João, a salvação somente seria alcançada pelos judeus

pecadores que se arrependessem dos pecados cometidos e se

submetessem a um ritual de batismo, que consistia de um banho de

purificação especial e único, que dividiria a vida da pessoa duas fases,

antes e após o arrependimento dos pecados cometidos.

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Ao contrário de Jesus, que aceitava o Templo, mesmo que o

considerasse aviltado em sua pureza inicial, o Batista renegava qualquer

importância ao santuário judeu e isso era de grande relevância

teológica, visto que ele era filho de um sacerdote judeu e teria a

obrigação e honra de seguir o destino de seu pai, um levita. Hoje vemos

esses termos sendo aplicado de forma bastante honrosa, mas sem

critério em várias igrejas literalistas, mas na época do Primeiro e do

Segundo Templo, ser um levita era algo que vinha com o sangue e não

questão de "quero ser levita". Contudo, o Batista se afasta do Templo e

de todo o judaísmo formal a ele associado, uma vez que, na pregação

desse judeu palestino, o homem podia ter contato direto com Deus, sem

a intervenção de intermediários e credos tolos e a salvação dependia,

acima de tudo, de uma mudança de postura íntima diante da vida.

Muitas semelhanças podem ser traçadas com o cristianismo palestino

nessas breves linhas.

O ministério do Batista teria se dado entre 28 d. C. a 33 d. C.,

segundo Meier, refletindo o mesmo período básico de pregação de

Jesus e teria ocorrido junto ao curso inferior do rio Jordão, ao norte do

Mar Morto. Vivia como um profeta do Antigo Testamento e, embora

não possamos confiar muito nas descrições que os evangelhos

canônicos fazem dele, comia o que a natureza fornecia e se vestia como

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um miserável do deserto, com roupa de pelos de camelo. Esse perfil

lembra o de outros pregadores solitários e escatológicos no séculos I

a.C. a I d. C., considerados homens santos pelo povo comum, não

mantinham filiação com qualquer das principais filosofias do judaísmo

de então.

A própria descrição do Batista, como um homem que vivia do

que conseguia obter na natureza, como mel e gafanhotos, além de usar

peles de animais como vestimenta (Marcos 1:6; Mateus 3:4), nos faz

lembrar a postura dos sectários de Qumran, mas esses últimos eram os

mais aferrados a regras de pureza e somente se afastaram dos sacrifícios

de animais e demais atividades no Templo por considerarem-no impuro

e não por discordarem da corrente principal do judaísmo, ou por

considerar que o sacrifício dos animais representava algo cruel ou

primitivo. João, por outro lado, mostrava que apenas a postura

individual do pecador e o arrependimento da vida pregressa poderia ter

algum efeito sobre o seu destino, uma vez que os viventes, mesmo os

judeus, faziam parte de uma raça de “víboras".

A purificação através da água e banhos rituais era uma prática

bastante freqüente na antiguidade inter-testamental, sendo conhecida

entre os vários sectos judaicos, e outras regiões, como na Pérsia.

Entretanto, apenas entre os qumranmitas, os essênios e os seguidores de

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João, o Batista, incluindo-se aí os primeiros cristãos, associavam o

arrependimento dos pecados ao processo, sem o qual o banho ritual não

teria valor. Por outro lado, para diferenciar o batismo cristão daquele

executado pelo Batista, os evangelistas colocam que, enquanto esse

último batizava com água, Jesus e seus apóstolos batizavam com o

Espírito Santo, sendo que Mateus textualmente considera que a

remissão dos pecados viria com o sangue do Cordeiro, derramado na

cruz e lembrado na Eucaristia. Essas passagens são anexos tardios,

acrescidos aos textos canônicos por uma população cristã incomodada

com o fato de que nada de significativo diferenciava o batismo

praticado pelos seguidores de Jesus e os do Batista.

Uma questão bastante relevante vem à tona quando pensamos no

batizado de Jesus por João, o Batista. Se o batismo era destinado ao

perdão dos pecados, porque Jesus foi batizado? Ele se considerava um

pecador?

Embora possa parecer herético, essa é uma questão prática e

central na discussão. Hoje, sabemos que o mestre da Galiléia se

submeteu a um procedimento para a remissão dos pecados, o que

implica que ele se considerava pecador. Mas antes que você tenha

vontade de atirar fora esse texto, temos de ver que aquilo que hoje

consideramos como pecado (as pequenas ou grandes faltas pessoais)

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não era o objeto de atenção dos judeus do século I d. C. Para eles,

pecado era o afastamento deliberado da comunhão com Deus e a

expiação dos pecados era COLETIVA, onde o indivíduo lembrava da

misericórdia de Deus e pedia para que o mesmo perdoasse os pecados

coletivos do povo de Israel. Sendo Jesus um israelita em todos os

sentidos, ele se sentia com os pecados do seu povo. Exemplos de

expiação coletiva dos pecados pode ser observada em outros pontos do

cânone (Esdras 9:6-15; Neemias 9:6-37) e mesmo na literatura referente

aos Manuscritos do Mar Morto.

Se a ocorrência do batismo de Jesus é quase certa, tanto pelo

critério de múltiplas fontes e do constrangimento a ele associado, nada

podemos falar sobre a descrição do mesmo, conforme está no cânone. E

por que isso ocorre?

Como o batismo de Jesus gerava constrangimento entre seus

primeiros seguidores, visto que esses sabiam o significado daquele

procedimento, os evangelistas tiveram de criar um ambiente que

tornasse o fato teologicamente menos nocivo, de forma que

aproveitaram-no para descrever o momento em que Deus revela o seu

escolhido, Jesus, confirmando várias profecias antigas e com profundo

significado simbólico. Assim, temos analogias com a voz divina que

vem do alto e proclama Jesus como Filho de Deus, indicando também

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que esse Filho de Deus seria o messias davídico; o uso da palavra

“amado” pode fazer alusão também ao “filho amado de Abraão”, da

mesma forma que a expressão “em ti me comprazo” pode aludir ao

servo de Deus presente com grande intensidade nas profecias de Isaías

(Isaías 42:1), mostrando “eis o meu servo.....em que tenho prazer, sobre

quem pus o meu espírito”. Nesse último particular, cabe ressaltar que a

vida de Jesus foi muito semelhante à descrita para o profecia do servo

sofredor de Deus nesse mesmo livro do Antigo Testamento. Quando os

evangelistas fazem referência ao céu se abrindo no batismo, podem

estar associando com Isaías, enquanto o ambiente físico que assistia ao

batismo se assemelha ao descrito pelo profeta Ezequiel, na Babilônia

(Ezequiel 1:1).

Vejam que toda a descrição foi cuidadosamente montada para

ser o clímax de uma série de passagens bíblicas e daria a legitimidade

que Jesus precisava, na mente pobre e obtusa dos primeiros cristãos,

para pregar aos incrédulos.

Seria surpreendente que esses fatos tivessem ficado na mente de

alguns seguidores de Jesus, o que não é impossível, mas o mais

provável é que os autores tenham recorrido ao Antigo Testamento para

escrever o texto, criando a descrição do batismo conforme a

necessidade da igreja em formação e de acordo com os exemplos

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bíblicos existentes. De qualquer forma, o batismo despertou algo em

Jesus e seu ministério logo teria início. Aquele momento, mais do que

qualquer outro, abria as portas para a última fase da vida terrena do

espírito excelso que nos mostrou o caminho do Pai. Chegara o momento

e o Plano Mais Alto se fez sentir; o messias da Galiléia agora tinha

plenas condições de assumir publicamente o seu papel, para maior

compreensão do significado de sua vida entre nós.

Infelizmente para as mentes limitadas daqueles que

acompanharam o mestre ao longo de três anos de peregrinação pela

Palestina e daqueles que ficaram décadas esperando o seu retorno, que

traria a glória divina ao reino dos homens, a tão anunciada parusia, as

descrições bíblicas do batismo são pálidas em relação ao que ocorria

aos olhos daqueles que, dotados de vidência, podiam contemplar a

majestade de seres iluminados que, com profunda emoção, uniam sua

luz à do mestre divino naquele momento. João, o Batista, sentiu-se

tomado de força inesperada e não sabia exatamente como proceder,

embora não ficasse titubeando ou discursando para a pequena multidão

de seguidores nas margens do rio. Ele, o pregador do deserto, sentia que

algo muito poderoso estava no homem que se postava em sua frente e o

Batista nunca teve, em vida, a noção verdadeira da grandiosidade da

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mensagem e da missão de Jesus, com seu significado para o mundo em

evolução.

Ali, naquele momento, o governante espiritual do mundo se

colocava como humilde servo de Deus diante daquele que 1800 anos

depois se apresentaria, para Kardec, como o Espírito de Verdade, o

verdadeiro mentor por traz da codificação espírita. Todos sentiam o

coração acelerado, como que a tentar “pular para fora do peito”, e uma

paz profunda a todos tocou. As aflições e angústias sumiram e a

natureza se curvava diante da bondade do homem de Nazaré. João se

sentiu pequeno, como de fato era, perto de Jesus e, como almas

fraternas, se reconheceram. Profundo respeito seria demonstrado por

Jesus sempre que o nome do Batista era mencionado e assim seguiria

nos poucos anos vindouros. Indubitavelmente essa foi a mais

importante demonstração de humildade por parte de Jesus e que ela

sirva a todos nós.

A importância de João para o seu tempo foi tamanha que alguns

consideravam, na época, que a derrota do exército de Herodes Antipas

(que havia matado João) frente ao exército do rei Aretas IV da Arábia,

como uma penalidade infligida por Deus pela morte do Batista. Nesse

contexto, os evangelistas tiveram que resolver como apresentá-lo sem

diminuir a importância de Jesus. Dessa forma, o evangelho de Marcos,

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o texto mais antigo, o Batista não consegue perceber claramente a

importância de Jesus (1:2-3; 1:4-8; 1:9-11), no momento do batismo,

enquanto Mateus apresenta João como aquele que reconhece sua

inferioridade diante do messias galileu (3:13-15). Lucas coloca Jesus

como primo do Batista e a vida dos dois é apresentada como um

entrelaçamento de fatos, sendo que, nesse evangelho, a prisão do Batista

é dada antes do batismo de Jesus, de forma que não sabemos quem o

batizou de fato (3:19-21). No Quarto Evangelho, o Batista nem parece

estar ligado ao batismo de Jesus, de forma que o título Batista não lhe é

aplicado e ele apenas aparece como uma escada ou caminho para a

apresentação de considerações sobre Jesus, que é mostrado como sendo

a luz (1:7), o Cordeiro de Deus (1:34), o Senhor (1:23), o esposo da

igreja e, por fim, o Verbo Divino que se fez carne (1:15). Nesse último

evangelho, João é utilizado pelo evangelista(s) como sendo o primeiro a

reconhecer a verdadeira natureza divina de Jesus. Era a credibilidade do

Batista atestando o que os cristãos desejavam naquele momento.

Fora essas considerações, qual foi o relacionamento entre Jesus

e o Batista?

Uma vez tendo sido batizado, Jesus se tornou, por poucas

semanas, um discípulo do Batista. Mais uma vez, o que os evangelhos

calam fala mais do que os próprios textos trazem. De fato, Marcos e,

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indiretamente, João, são as únicas fontes sobre essa possibilidade e

Marcos tenta eliminar o tempo que existiu entre o batismo e a saída de

Jesus do grupo, mas como ele cita que o mestre Galileu levou consigo

alguns de seus primeiros seguidores a partir do grupo que seguia o

Batista, é claro que algum tempo deve ter se passado para que esses

seguidores viessem a preferir Jesus.

No Quarto Evangelho (Jo 1,:27), os autores se quer falam do

batismo, mas dão a entender que esse fato existiu e que a convivência

entre os dois pregadores foi maior do que um encontro casual no vale

do rio Jordão. Embora Jesus tenha feito parte do grupo que seguia o

Batista, não é possível discutir com muita propriedade a relação entre os

dois e o que significava para João o discipulado. Contudo, é seguro

afirmar que os seguidores de Jesus tiveram problemas com os

seguidores do Batista e que os dois grupos exerciam alguma

concorrência pela conversão dos infiéis (Atos dos Apóstolos 19:1-7).

Sabemos que Jesus nutria grande afeição e admiração por João,

considerando-o o encarnado com maior evolução espiritual que já havia

passado pelo nosso orbe e isso foi dito quase que de forma literal. O

mestre passou semanas com o Batista, aprendendo sobre a visão que

esse nutria sobre o reino de Deus e sobre o final dos tempos, com o

juízo final, mostrando as profundas divisões que se assenhoreavam na

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casa de Abraão. Entretanto, Jesus diferia muito do Batista no tom

otimista que adotava, mostrando que o Reino do Pai, da mesma forma

que o próprio Pai, estava ao alcance de todos. Sua mensagem de

perseverança e otimismo mostrava que o céu e o inferno começam

dentro de nós mesmos.

Infelizmente nada foi deixado sobre o que o Batista acreditava e

pregava, com exceção da ênfase escatológica da sua pregação de

arrependimento, mas podemos dizer com segurança que esse papel foi

acrescido, na figura de Jesus, a exorcista e fazedor de milagres. O

mestre de Nazaré levou as palavras do Batista até o calvário, de onde os

dois se encontraram em espírito novamente.

Poucos pontos são tão obscuros no Novo Testamento quanto as

condições que levaram à morte de João, o Batista. Todas as crianças

que passaram pelo catecismo católico ou protestante poderão lembrar da

jovem que pede ao rei, Herodes Antipas, a cabeça de João em uma

bandeja, como descrito no evangelho de Marcos. Entretanto, além de

graves erros de conhecimento histórico e geográfico, esse evangelista

não tem a intenção de transmitir um fato em si, mas de posicionar a

morte de João como um preâmbulo do que ocorreria com Jesus. Dessa

forma, apenas podemos dizer que as únicas referências disponíveis

sobre a morte do Batista, os evangelhos sinópticos (baseados no texto

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Jesus: homem e espírito

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de Marcos) e Flávio Josefo, concordam apenas que a morte foi obra de

Herodes Antipas e que o problemático casamento desse rei com a

esposa de um meio-irmão pode ter algum envolvimento no processo.

Tentar harmonizar esses dois textos, atualmente, é perda de

tempo. Alguns acreditam que as disputas territoriais de Herodes Antipas

com o rei Aretas IV, pai de Herodíades, a infame esposa de Herodes,

podem ter se somado ao discurso inflamado e moralista de João,

causando um mal estar na corte de Herodes, que decidiu resolver o

problema da forma mais rápida conhecida.

Quais os pontos em que Jesus e João, o Batista, mais se

aproximam? Qual foi a influência desse pregador no judaísmo de Jesus?

Indubitavelmente Jesus não foi uma cópia de João, mas foi por

ele muito influenciado ao longo de seu curto período de pregação na

Galiléia e Judéia. Ambos foram profetas escatológicos, embora o

caráter de revelação seja infinitamente mais nítido no que temos a

respeito da mensagem de Jesus. Esses dois homens acreditavam que as

histórias de Israel e seu povo estavam definitivamente para mudar, em

função do julgamento que seria realizado pelo Senhor, onde muitos

pereceriam, visto que tinham se entregado à apostasia e se desviado do

caminho divino. Cabe ressaltar que Jesus via João como o grande

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profeta dos tempos finais, mas não aceitou a idéia do “final dos tempos

eminente”, tão característico de João.

Ao invés de intimidar os pecadores e admoestá-los ao

arrependimento, como fazia João, Jesus pregava que o Reino de Deus

estava dentro e ao redor dos homens, sendo necessário a reforma íntima

para que pudéssemos vê-lo e senti-lo. Ao contrário de João, Jesus

realizou inúmeros feitos “milagrosos” (atestados até mesmo por seus

futuros rivais, nos textos judaicos escritos décadas ou séculos depois),

executou exorcismos e tinha uma abordagem muito mais universalista

da salvação, levando o cristianismo, que logo nasceria com a

crucificação, a uma posição vantajosa na doutrinação das mentes dos

judeus pobres do século I d. C.

É provável que esse papel de Jesus como “fazedor” de milagres

e expulsando “demônios”, associado à mensagem universalista de

Paulo, tenham, afinal, colaborado para a vitória do cristianismo no seio

do mundo greco-romano. Esses fatores traziam conforto, o que as

religiões dos deuses antropomórficos e irascíveis não oferecia.

Ambos os pregadores se dirigiram apenas aos judeus durante seu

tempo de vida terrena e, embora existam diversas histórias de curas e

desobsessões envolvendo gentios, a grande maioria delas é criação da

igreja primitiva para justificar a disseminação da fé cristã e o trabalho

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missionário para fora de Israel e seu povo; como João, Jesus sabia da

responsabilidade de reunir as ovelhas da casa de Abraão em primeiro

lugar, deixando-se as demais ovelhas de Deus para que seus seguidores

o fizessem. Não era um preconceito de cunho étnico-religioso, mas a

simples constatação de que o tempo de vida de um homem não seria

suficiente para alicerçar a idéia de um Deus único que se porta como

Pai misericordioso. Tudo vem em etapas.

Jesus e João nunca se viram como competidores. João tampouco

pode ser visto como um simples personagem preparatório. Ele foi o

sinal que despertou o “peregrino” o que havia em Jesus; ele foi o

portador da palavra do Pai Altíssimo, que se fazendo entre nós nos

baixios do Jordão, fez com que o adulto chamado Yeshua viesse a se

sentir em condições de dar início ao seu derradeiro destino entre nós.

João anteviu, em segundos, diante do galileu, os anos de dor que viriam

à frente; em uma troca de olhares, entre eles, talvez tenha passado

perguntas e imagens que não se calaram nos últimos dois mil anos.

Foram esses dois personagens, o mestre e o discípulo que o

superaria, que cristalizaram a forma com hoje entendemos a relação

entre o homem e seu Pai eterno. Naquele momento, a pergunta de João

"És tu aquele que há de vir?", foi respondida pela mais profunda

sensação de paz que aquele pregador itinerante jamais havia sentido e as

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palavras do Plano Mais Alto tomaram-lhe a mente na mais clara das

comunicações mediúnicas até então, embora ele não tivesse condições

plenas de antever claramente o papel de divisor da história da

humanidade que Jesus desempenharia. Muitos outros ao redor também

puderam perceber o que ocorria e escutaram a mensagem que brotava

do interior. Naquele momento, Jesus, filho de José, assumia sua

condição de mensageiro do Pai de todos nós.

O Batista foi o instrumento que o Plano Mais Alto utilizou para

catalisar, preparar e despertar os sentimentos populares que

desabrocharam ao redor de Jesus; como pregador preparou a alma do

povo para o ápice da mensagem de redenção que seria encarnada em

Jesus. João sabia da necessidade de mudar o rumo tomado pelos seres

humanos, caso esses últimos de fato aspirassem se unir a Deus em um

mundo muito diferente, mas foi Jesus que pavimentou o caminho que

deveria ser seguido. O mestre eterno, que da Galiléia até o calvário nos

prometeu a presença de um consolador, que, no presente, se faz sentir

pela voz de nossos próprios irmãos, que clamam do outro lado do véu

da morte.

Ao contrário de João, que aparentemente nunca teve uma visão

muito clara de como trazer o reino de Deus até os seus conterrâneo,

Jesus viria apresentar esse reino e o próprio Deus Eterno ao nosso

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alcance e sempre recebemos sua luz. Para tanto, basta estar em sintonia

com a paz, para sentirmos essas influências e o fluxo do próprio

universo que nos envolve.

Nosso mestre sempre falou que o Pai nunca abandona os seus

filhos e, no Seu mundo, os títulos terrenos não abriam as portas, as

quais eram estreitas e somente permitiam a entrada dos humildes de

coração, ou seja aqueles que se libertavam das sintonias inferiores e se

sentiam plenos ao entrar em contato com energias que até o presente

nem imaginamos sua natureza e sequer suspeitamos a sua existência.

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6 Os primeiros seguidores do nazareno

“...Não buscamos glórias humanas nem de vós, nem de outros...,

...desejávamos comunicar-vos o Evangelho de Deus...”

(Tessalonicenses 2, 6)

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Jesus, desde o seu nascimento, foi cercado por todo o tipo de

gente. Sua mãe e pai se preocupavam muito com sua enorme

capacidade de interagir com as pessoas e todas as criaturas da natureza.

Contudo, nada permitia supor, pela vida que ele passou na infância e

adolescência, que seu destino seria decidido por pessoas que viviam

uma vida faustosa e se banqueteavam com as força de ocupação

romanas. A morte dolorosa foi algo que sempre esteve esperando o

menino, mesmo com a profunda assessoria de numerosos seres

angelicais que evitavam que tais perspectivas viessem a atormentá-lo.

Contudo, desde a mais tenra idade Jesus tinha uma incomum

capacidade de atrair a atenção das pessoas, despertando o sentido de

mudança e sua inteligência aguda, associada com magnetismo pessoal

incomparável, logo fizeram com as palavras mansas destinadas a um

grupo pequeno de pessoas simples, logo se transformassem em

verdadeiros eventos. Assim, desde discípulos e apóstolos mais

próximos, até multidões acompanhavam o mestre-messias galileu.

Na vila de Nazaré, muitas vezes ele fora considerado como que

tendo acordo com as forças do mal, posto que as pessoas não

conseguiam entender de onde vinha tamanha sabedoria e o poder que o

menino parecia ter sobre as criaturas vivas do seu entorno. É errôneo

acreditar que o pequeno Jesus vivia uma vida típica de um menino

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normal. Isso não ocorria. Antes que as multidões de encarnados

estivessem ao seu lado, multidões de espíritos escutavam suas palavras,

em pensamento, em atitude de sublime aceitação, em todos os planos da

vida. A proteção bastante especial que a criança recebia impedia o

assédio constante em seu ambiente doméstico, mas o grande espírito

que habitava aquele corpo ainda franzino nunca descansou; suas

atividades continuaram em ritmo frenético e os afazeres diários, na luz

do dia, representavam momentos de descanso.

Quando a noite sucedia ao dia e o corpo repousava na pobreza

da vila, o excelso espírito do mestre imediatamente se dirigia às esferas

crísticas onde os destinos do orbe ainda requeriam a sua atenção. Hoje

nos perguntamos como esses eventos repercutiam na mente do menino

luz e não podemos nos esquecer que, embora pleno de capacidades e

sabedoria, era um menino. De certa forma, isso se mostrava no tom

grave que adquiria quando frequentava a sinagoga e na alegria do

contato com a natureza agreste que o envolvia na pequena vila de

Nazaré.

Adulto, os textos bíblicos dizem que, após o batismo, Jesus

reuniu um grupo de discípulos que, com o tempo, daria origem ao grupo

dos doze apóstolos. Em suas peregrinações, multidões os seguiam e

muitos dos que receberam a cura de seus males do espírito e da alma

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acabaram de se tornar membros do seu círculo mais íntimo de

relacionamentos, como Maria de Magdala e Eleazar, nosso querido

Lázaro (não confundir com o espírito Eleazar, um dos colaboradores

espirituais do presente ensaio). Possivelmente esses círculos não eram

tão firmes, estanques, e permitiam que elementos entrassem e saíssem

dos mesmos, com exceção, talvez do círculo mais íntimo, que

permaneceu mais ou menos constante ao longo do ministério terreno do

mestre.

Discutiremos brevemente os círculos concêntricos de pessoas

que gravitavam ao redor de Jesus. Para uma visão mais técnica desse

problema, recomendamos a leitura das obras de Jonh Dominic Crossan

e J. P. Meier, que são bastante esclarecedoras, embora não tenham

qualquer interesse de cunho espiritual sobre o tema.

6.1 Multidões e Discípulos

Quando divisamos a jornada de Jesus durante suas atividades

pela Palestina de 28 a 30 d.C. ou 33 d. C., nos damos conta de que o

mesmo sempre estava cercado por pessoas de todos os tipos, desde

curiosos e pedintes a enfermos, discípulos e apóstolos, refletindo uma

mensagem destinada a todo o povo de Israel, sendo que os gentios

seriam contemplados quando o povo de Israel viesse a aceitar os novos

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ensinamentos. De cobradores de impostos, mulheres pecadoras, fariseus

e populares simples, todos pareciam se interessar pelas palavras daquele

homem desprovido de bens materiais, com exceção da túnica que

envergava sobre o corpo e as sandálias que agasalhavam seus pés.

O nazareno tinha traços especiais que o distinguiam da maioria

(se não de todos) dos pregadores e senhores da lei de seu tempo: ele

escolhia seus discípulos e alunos diretamente das comunidades ou

grupos visitados.

Entre os demais pregadores itinerantes, os discípulos eram

aqueles que tinham interesse em se instruir quanto aos meandros do

judaísmo de então, não havendo um chamado ou convite vindo do

mestre, como ocorria com o messias galileu, o qual reservava para si

mesmo a prerrogativa da escolha e cada uma delas era realizada para

simbolizar o resgate de Israel e a iminência da chegada do Reino de

Deus. Em Jesus, tudo era previamente pensado e calculado para atender

à sublime missão e mensagem que era proferida em diferentes tons, em

cada vila pelo caminho, e para cada grupo de miseráveis que chagava

pedindo misericórdia pelas doenças do corpo e da alma.

O grupo dos apóstolos e discípulos mais próximos representava

a nação judaica como um todo, de todas as tribos e mesmo os oriundos

da diáspora. Jesus sabia dessa simbologia e cada ato seu representava o

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conceito de que Deus não abandona a ninguém, até mesmo nas furnas

infernais e abismos insondáveis que nos envolvem, que estão repletos

de dores e purgação, onde o Pai misericordioso se faz presente e zela

por todos os seus filhos amados. A misericórdia divina também nos traz

para a carne e o que fazemos com essa oportunidade irá ditar o destino

que damos a nós mesmos, após o sono ilusório da morte física.

Como Jesus estava muito a frente de seu tempo, nenhum dos

seus seguidores imediatos tinha a estatura intelectual e moral que

permitisse a eles compreender integralmente o mestre, de forma que o

maior sofrimento desse último não deve ter sido a cruz do calvário, mas

a solidão (entre os encarnados, por que a comunhão com os

desencarnados fora constante e intensa) e incompreensão que fora alvo

durante toda sua vida pública e, talvez, até no seio de sua comunidade.

Quando se coloca que Jesus atraía multidões para suas

pregações, devemos ter reservas com os números que acompanham os

evangelhos, como aliás ocorre em toda a literatura da antigüidade, até

por que, na época, não se via a necessidade desse tipo de precisão e os

textos bíblicos são relatos devocionais e não descrições acuradas da

realidade. Por vezes a mesma história é contada de diferentes formas

nos evangelhos, relacionando diferentes dimensões para essas

multidões.

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Contudo, todas as fontes dos evangelhos trazem uma verdade: o

mestre estava sempre cercado de grupos maiores ou menores ao longo

de seu curto ministério e até mesmo Josefo, na obra intitulada

Antiguidades Judaicas, assinala que Jesus conseguiu angariar

seguidores entre muitos de origem judia e gentios.

Essa capacidade de atrair a população, algo tão natural e simples

para ele, foi o combustível de sua crucificação, visto que provocava

temor na elite sacerdotal e política judaica, quanto às suas possíveis

intenções revolucionárias, com as quais os romanos eram bastante

intolerantes e sumários, principalmente no período da Páscoa, época em

que centenas de milhares de judeus palestinos e da diáspora acorriam a

Jerusalém para celebrar a libertação do cativeiro do Egito. Páscoa

traduz liberdade e nenhum exército de ocupação deve se sentir bem em

festas que celebram-na. Nesses dias, o clamor escatológico, messiânico

e nacionalista ecoava pesadamente nas multidões e, naquele ano

fatídico (possivelmente 30 d. C. ou 33 d. C.) os romanos julgavam ter

eliminado apenas mais um carismático e enigmático messias “caipira”,

como os evangelhos bem atestam (Marcos 12:12; 14:2; João 11:45-54;

Lucas 23:5). O próprio Josefo cita as intervenções romanas e judias

frente a líderes religiosos ou profetas no século I d. C., quase sempre

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resultando na morte desses últimos, mas sempre a motivação era

eminentemente política e não religiosa.

Muitos querem dividir o ministério de Jesus em duas fases: na

primeira fase ele teria considerável habilidade em atrair multidões,

seguida por uma segunda etapa marcada como um fracasso de público,

com o abandono de discípulos e obrigando o mestre galileu a se dirigir

à Jerusalém, buscando um novo público, criando condições para um

desfecho violento para sua vida. Essa visão carece de maior suporte e se

baseia quase que unicamente em Jo 6:66, que reflete muito mais os

conflitos internos da comunidade joanina, recém saída do judaísmo, no

século I d. C., e não se relaciona a fato reais do ministério do Cristo.

Nessa comunidade, a igreja perdia membros para outras cédulas cristãs,

além daqueles que retornavam ao judaísmo, por isso os judeus são tão

veementemente atacados nesse evangelho. Assim, os autores

procuravam mostrar que tudo que ocorria ao seu redor já teria ocorrido

com Jesus, mas nada atesta que eles estavam certos. Jesus nunca teve

momentos só seus, em função dos muitos que acorriam para lhe pedir

auxilio e seus discípulos mais próximos nunca se afastavam dele.

Esse versículo é um acréscimo cheio de teologia da Igreja, para

a própria Igreja. Lembremo-nos que a comunidade que deu origem ao

Evangelho de João tinha um núcleo constituído de homens e mulheres

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que se viam em pé de igualdade e, à medida que pessoas de fora

afluíam, a condição dessas últimas ficava insustentável. Para a época

era impensável tal condição igualitária no mundo Mediterrâneo, cheios

de códigos de conduta, honra e vergonha. Considere em seu coração,

por apenas alguns minutos, a condição das mulheres no Oriente Médio

no presente e imagine como era há dois mil anos...

Após décadas de dissensões internas, o papel das pessoas que

fundaram a comunidade foi sendo apagado e o grupo retornou à

corrente principal da vida cristã, deixando perdidas muitas tradições

verdadeiras sobre a maneira especial de Jesus de encarar as diferenças

através do realce das semelhanças. Sem esse texto, inexistem quaisquer

outros elementos que evidenciem uma diminuição da capacidade de

Jesus em reunir a população em suas pregações. O contrário, entretanto,

é mostrado em todos os evangelhos que abordam as atividades de Jesus

por ocasião de sua última Páscoa, o qual aparece cada vez mais cercado

de seguidores até o fatídico e carismático final de sua vida terrena.

Não se pode negar, contudo, que muitos que passaram a segui-lo

nos últimos dias de sua vida terrena estivessem mais interessados na

possibilidade de utilizar o carisma de Jesus em um possível movimento

de resistência à ocupação romana. Destacando-se, entre aqueles que

acreditavam que o messias de Nazaré iria dar início a uma revolta, a

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figura de Judas Iscariotes, oriundo da cidade de Kerioth. Essa

expectativa se cristalizou principalmente depois dos graves embates que

ocorreram no Templo de Jerusalém, quando Jesus se insurgiu com a

prática absolutamente legal, mas imoral, dos cambistas nas adjacências

da sagrada construção.

Essas pessoas que acompanhavam o Messias judeu eram

basicamente pobres ou miseráveis, desprovidas do básico, mas não

podemos nos esquecer de que os textos canônicos apresentam

numerosos exemplos de pessoas abastadas que o seguiam pela Galiléia

e colaboravam com o sustento do grupo. Outros indivíduos ricos, como

Nicodemus ben Gurion, o famoso fariseu que debatia com Jesus sobre

como o homem poderia atingir o Reino de Deus, e José de Arimatéia,

que cedeu o túmulo para o mestre, são exemplos de pessoas abastadas

que tinham satisfação em dialogar com Jesus, mesmo que não possam

ser considerados seus seguidores, segundo os textos canônicos.

De fato, o relacionamento de Jesus com esses personagens era

muito mais amplo do que podemos supor, mostrando que, mesmo

dentro do farisaísmo, ramo mais modernizante do judaísmo de então,

muitos estavam descontentes com a religião formal praticada e viam em

Jesus uma corrente de grande inspiração. Esse ponto de vista é

reforçado pela posição do lendário rabino Gamaliel, que anos depois da

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crucificação, iria libertar os apóstolos e sugere que, se a nova fé se

espalhasse, era sinal de que ela tinha o apoio divino e, dessa forma,

nada deveria ser feito contra ela. Não nos esqueçamos que todos os

homens dotados de cultura ou posses que se interessaram por Jesus

eram fariseus. O grupo farisaico era o mais preparado para entender a

mensagem messiânica do mestre e muitos o fizeram; não se esqueçam

que os fariseus admiravam profundamente o irmão de Jesus, Tiago, o

qual seria morto de forma violenta, 30 anos após a crucificação de Jesus

e foram os fariseus que exigiram justiça para a autoridade romana; algo

impensável se utilizarmos apenas as fontes canônicas em nosso estudo.

Obviamente a Palestina era constituída basicamente de pobres,

mas o próprio Simão Pedro, André, seu irmão, João e Tiago, todos

próximos de Jesus, eram pequenos empresários da pesca, contratavam

empregados e esse era um ramo muito próspero no Mar da Galiléia.

Temos ainda Levi/Mateus, coletor de impostos, Zaqueu, um funcionário

real de Herodes Antipas, Eleazar (Lázaro) e suas irmãs, bem como o

dono dos aposentos que recebeu Jesus para a Última Ceia, e a mulher

anônima, mas rica o suficiente para comprar, para Jesus, perfume

equivalente a um ano de salário de um trabalhador diarista, entre outros

personagens que desconhecemos a identidade.

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O mestre não parecia excluir ninguém de seu círculo, de forma

que devemos ter cuidado com movimentos que, em nome dele, pregam

a miséria ou lutam contra o “estado” de riqueza. A riqueza em si não

configura crime em nenhuma crença religiosa, mas sim o apego à

mesma e o inadequado uso que dela fazemos; como tudo na vida, existe

uma responsabilidade em tudo que recebemos de Deus. Somos fiéis

depositários dos bens divinos, apenas isso, e a Ele prestamos contas do

que fizemos com a prosperidade que recebemos.

Muitos autores modernos impregnam de postura leninista-

marxista a mensagem de Jesus; uma mensagem que se destacava porque

não vinha para dividir, mas somar: o rico e pobre na mesma mesa,

mesmo que Jesus advogasse a libertação da dependência de riquezas

pessoais. Ele pregava que a riqueza deveria ser colocada a serviço do

homem e não o oposto.

A literatura judaica posterior, como a Mishná, redigida por volta

de 200 d. C., descreve multidões desse tipo como sendo constituídas de

judeus comuns que não pareciam cumprir as regras de pureza ritual ou

não praticavam, com rigor, a lei mosaica da forma com que as

autoridades rabínicas desejariam, mas o texto procura, de certa forma,

diminuir a penetração da mensagem messiânica entre as classe mais

cultas da sociedade e está cheio de preconceitos.

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Nos evangelhos, o que mais movimenta essas multidões é a

realização de milagres e muitos parecem estar dispostos a assumir que

Jesus é o profeta ou messias enviado por Deus, provocando temor nas

autoridades judaicas. O Evangelho de João utiliza essas multidões como

uma caixa de ressonância para sua própria teologia, dificultando uma

caracterização mais detalhada desses populares, mas pode-se inferir

pelas descrições do cânone e, em particular, nas Narrativas da Paixão,

que a maioria dessas pessoas era mais movida por necessidades de

momento e curiosidade e nunca cruzou o divisor que separa o curioso

do crente; ao menor distúrbio poderiam ter debandado para qualquer

direção, embora alguns tivessem um comprometimento maior com o

movimento e seriam a semente do judaísmo cristão que, posteriormente,

se transformou em cristianismo judaico e cristianismo greco-romano

(que hoje é o único disponível nas formas mais literalistas da fé).

Exemplos do comportamento das massas que seguiam Jesus

pode ser visto em todo e qualquer lugar no presente. Enquanto o

conteúdo de uma pregação exige medidas periféricas para a obtenção de

uma graça divina, todos aplaudem, mas quando, para tanto, se exige

mudança íntima e se fala de responsabilidade pessoal, as idéias ferem e

as pessoas abandonam o teatro original e se voltam para cultos e

atitudes mais estereotipadas. Reparem nas sessões de desobsessão,

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enquanto os irmãos desencarnados enfermos são afastados, suas

pretensas vítimas respiram aliviadas e dizem “aleluias” aos quatro

cantos, mas quando retornam, atraídas pelos pensamentos dos antigos

obsediados, esses últimos renegam a doutrina espírita, acusando-a de

ser fraca e não libertar os homens. Jesus disse que a verdade liberta e a

verdade é que somos iguais aos nossos inimigos, motivo pelos quais

eles não nos abandonam. No fundo, podemos dizer que eles apenas nos

deixam, quando deixamos de ser o que somos, em um lento e difícil

processo de renovação (para ver detalhes, leiam “Diálogo com as

sombras”, de Hermínio C. Miranda, o melhor livro sobre o tema da

obsessão, na nossa modesta opinião, e “Reforma íntima sem martírios”,

de autoria espiritual de Ermance Dufaux).

Além disso, enquanto Jesus era visto como um possível líder

que entrava em Jerusalém, quase 30% da população da cidade o

aclamava como o rei que havia de chegar. Aos gritos que traduziam

mensagens como "viva o Filho de Davi", "santo, santo, santo é o Deus

de Abraão que o enviou", e "Glória", eles recebiam um “Jesus”

triunfante, mas, para decepção de muitos, pacífico e não guerreiro.

Quando ele foi preso e despertou a máquina romana, a mais eficiente

que o mundo divisara até então, quase todos sumiram e se acovardaram.

Todos nós estamos prontos para os sacrifícios da boca para fora. Muitos

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de nós, espíritas de carteirinha, estavam lá e, se nos for dada a

permissão divina, poderemos nos lembrar desses fatos e mesmo assim

poderemos sentir que o mestre dos mestres manteve a serenidade

interior, diante das mais absolutas e profundas traições daqueles que,

como nós, diziam amá-lo.

O espírito Eleazar nos colocou que os líderes do Sinédrio

receavam não apenas o volume de apoio que Jesus recebia do mundo

judaico em Jerusalém, mas principalmente a participação de membros

influentes do Grande Sinédrio, de origem farisaica, que eram vistos se

referindo elogiosamente a Jesus. Se os romanos descobrissem o

envolvimento de muitos ali, no Sinédrio, com o movimento daqueles

quase miseráveis que vinham do norte, a própria autoridade judaica

corria o risco de ser eliminada. Assim, fica coerente a idéia de uma

prisão às escuras e uma entrevista com um grupo de eminentes

saduceus e fariseus durante a noite, em clima de triagem, nas Narrativas

da Paixão. Ali, todos tinham algo a perder com a revolta e a expressão

“rabo preso” se aplicava a tantos quantos ali se encontravam, com

exceção de Jesus, que via a realização de suas visões de criança.

Esses homens, no umbral e abismos subcrostais, seriam

acusados pelas próprias consciências dos mais odiosos crimes contra a

evolução do planeta e retornariam à Terra na condição de religiosos e

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muitos sofreram martírios nas mãos dos imperadores de Roma. Apenas

alguns ainda se mantém aferrados às suas concepções antigas e servem

a falanges tenebrosas. A lei pode demorar, mas é inexorável e nossas

atitudes ditam a forma com que ela é aplicada.

A igreja cristã primitiva, ainda parte do judaísmo maior, recebia

alguma simpatia do ambiente judaico adjacente durante a primeira ou

segunda gerações de cristãos, antes da revolta judaica de 66-73 d. C., o

que permitiu alguma convivência entre essas comunidades. Os cristãos

judeus eram vistos como simples "judeus" pelos demais seguidores de

Yaveh, o nosso Deus também. Eram tidos como justos e honrados,

seguidores de homens que amavam a verdade e reverenciavam as leis

mosaicas e mantinham suas obrigações junto ao judaísmo mais amplo,

como sugere o próprio historiador Josefo. As descrições de Tiago, o

irmão de Jesus, evidenciam satisfatoriamente essa relação. Em alguns

casos, os fariseus continuaram escutando os líderes do movimento

cristão, como o próprio Tiago, a quem denominavam de O Justo, e cuja

morte foi o centro de uma revolta contra o sumo sacerdote, que acabou

sendo destituído pelo poder de ocupação, para evitar tumultos.

As boas relações com os judeus acabaram no longo epílogo que

se deu nas mãos dos soldados romanos, o que não ficou registrado no

cânone, até porque, depois da revolta contra a ocupação romana, os

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cristãos queriam se afastar da imagem que Roma tinham dos judeus. É

bem possível que os muitos judeus que viam Jesus como o messias

tenham retornado para o judaísmo tradicional, uma que não aceitavam a

visão do mestre galileu sendo divinizado, como o Deus Filho, como

ocorria com as comunidades greco-romanas, tão acostumadas com a

figura de homens-deuses ou semi-deuses, ou se transformaram em

algum dos muitos grupos cristãos marginais, que mantinham um

vínculo com o judaísmo e não aceitavam Santíssima Trindade, à

semelhança do espiritismo moderno, que vê a figura de Jesus como o

escolhido, o mensageiro de Deus, bem como o seu representante maior

entre nós, para zelar pelos destinos do mundo e elo de ligação com toda

a trama da criação, em um fenômeno de co-criação, o que explica

porque o evangelho diz que Jesus era o Verbo Divino que se fez

presente entre nós, na forma humana.

Entre as pessoas que seguiam Jesus merecem destaque aquelas

que foram chamadas a fazê-lo e aquelas que passaram a conviver com

ele tornando-se parte de um grupo mais íntimo conhecido como “os

discípulos”. A primeira questão que deve ser levantada se refere à real

existência de um círculo íntimo de discípulos, uma vez que nos

evangelhos esse termo aparece dezenas de vezes (72 vezes no texto de

Mateus, 37 em Lucas, 46 em Marcos e 78 em João, 28 vezes em Atos),

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Jesus: homem e espírito

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não sendo encontrado no restante do Novo Testamento. Existem

evidências de que o termo “discípulos” não era a forma dos cristãos

falarem sobre si mesmos e sua utilização parece, em Atos dos

Apóstolos, uma forma de construir uma ligação entre o ministério

público do mestre galileu com o período inicial da igreja.

Essa ligação era necessária para os continuadores de Jesus, que

precisavam legitimar a sua pregação, os seus pontos de vista e isso não

era muito fácil, visto que, em Jesus, a superioridade moral era tamanha

que as oposições se revestiam de agressividade irracional, motivada

pela ação de forças oriundas das numerosas falanges das trevas que

tentavam minar-lhe o caminho, em sintonia com as limitações

espirituais das pessoas que se rebelavam contra as palavras justas, mas

por vezes severas, do galileu. Muitas vezes a oposição se baseava na

falta de pretensos títulos da parte de Jesus, um modesto homem que

vivia de forma simples e que possuía apenas o básico para sobreviver.

Segundo Meier, a versão grega do Antigo Testamento, a

Septuaginta, não traz os termos “mathetes ou mathetai” (discípulo, no

singular e plural, em grego), com exceção de 1Crônicas 25:8, quando

aborda a existência de um músico aprendiz. Mesmo na literatura de

Qumran essa terminologia não é encontrada. Fílon de Alexandria, um

escritor judeu do período inter-testamental (25 a.C. a 50 d. C), emprega

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esses termos, mesmo que muito raramente, dando-lhe a conotação de

estudante-aprendiz ou uma concepção mística de alguém sem defeitos

que recebe ensinamentos diretamente de Deus. Também Josefo, com

extensa produção literária, raramente emprega essa palavra grega, onde

atribui extensa gama de sentidos, desde a um aprendiz de algum ofício

até a clássica visão do par mestre-seguidor/aprendiz.

Acredita-se que o uso do termo “discípulo(s)” tenha se originado

com a influência grega que se fazia presente na Palestina, mesmo no

interior dos círculos mais judaizantes e não era muito empregado em

meados do século I d. C., tendo se disseminado nos séculos seguintes.

Essa expressão praticamente não existe no judaísmo do Antigo

Testamento e do período inter-testamental, com exceção do mundo de

Jesus e do Batista, embora nesse último caso não saibamos o tipo de

relacionamento mestre-discípulo que se configurava. Outro aspecto que

corrobora com a historicidade da existência dos discípulos de Jesus

reside no fato de que ele próprio é descrito como tendo pertencido ao

círculo do Batista, de onde passou a batizar e a pregar, além de criar um

círculo de discipulado próprio.

A relação mestre-discípulo de Jesus e seus seguidores se mostra

muito semelhante à observada ente os rabinos dos séculos seguintes e

apresenta nuances dos filósofos cínico-estóicos do mundo

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Jesus: homem e espírito

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Mediterrâneo, onde as pessoas comiam, andavam, dormiam e viajavam

em grupo, a unidade básica. Com efeito, juntar-se a um círculo de

discípulos era como entrar em uma nova família (Mc 3:32-35; 10:29-31

e seus equivalentes no texto de Lucas e Mateus). Como uma força

especial que unia ainda mais o grupo, tem-se que Jesus não era apenas

professor, como aqueles que o sucederam, mas também um profeta que

curava, se assemelhando e suplantando o par Elias-Eliseu do Antigo

Testamento, mas sem igual em lugar algum, antes e depois na história

humana.

À medida que o tempo passava, no círculo mais íntimo do

mestre, ficava claro que ele representava a personificação do próprio

Reino de Deus, em todos os seus matizes e nuances, e sua vida parecia

exemplificar o caminho que ele queria para seus discípulos; o

desprendimento, a abnegação, o amor ao próximo e, acima de tudo, ao

Pai Eterno. Dessa forma, a proximidade acolhedora que Jesus oferecia

era tipicamente motivada pela necessidade de prover aos seus

continuadores o máximo de formação e instrução dentro de um contexto

turbulento que, quase sempre, se fazia presente. Jesus era cercado por

todo tipo de carência espiritual, mais do que material, onde quer que

fosse, e nesse pântano de relações humanas infernais e purgatoriais, ele

escolheu e lapidou diamantes.

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6.2 O que caracterizava um discípulo de Jesus?

Sabemos que uma característica ímpar do mestre galileu era que

ele tomava a iniciativa de chamar o futuro discípulo, enquanto o normal

era exatamente o inverso. Esse chamado nem sempre era atendido,

como no caso do homem rico (Marcos 10:17-22). Também merece

destaque o tom urgente do chamamento, não dando tempo para o

candidato olhar para trás (“Deixa que os mortos enterrem seus

mortos”).

A despeito de Jesus possuir a postura de um moderno instrutor e

mestre, não havia um programa ou período de estudos após o qual o

discípulo retornaria para seu lar e família. Seguir Jesus significava

deixar tudo para trás - casa, família, profissão-, literalmente TUDO e

desistir de segui-lo era como se mostrar inapto ao reino de Deus, que

logo chegaria, algo semelhante a uma deserção (Marcos 10:17-22), pelo

menos era assim considerado pelos seus seguidores mais próximos.

O próprio Jesus alertou seus discípulos da possibilidade de dias

turbulentos durante seu ministério e existem múltiplas confirmações de

fontes sobre esse aspecto. Ele começou o próprio ministério público

sabendo quais eram o riscos e quais seriam as conseqüências que se

desenrolariam no mundo nos séculos vindouros, alertando, a todos, das

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dores e padecimentos que teriam, a despeito de todo o conforto que o

Pai lhes reservava. Porém, algumas das advertências de Jesus nos textos

canônicos não provém dele, mas da igreja primitiva que estava

passando por sérias crises internas e frente ao poder romano

estabelecido.

Sabemos que muitas mulheres seguiam o mestre Jesus e, no

entanto, apesar de possuírem as características de verdadeiros

discípulos, não são assim chamadas nos evangelhos. Muitas explicações

vêm sendo formuladas para aclarar esse aparente disparate, visto que o

próprio Jesus não as tratava com qualquer preconceito, ao contrário do

mundo Mediterrâneo de então.

Teria a igreja primitiva, sofrendo da influência do ambiente que

a cercava, suprimido o papel dessas mulheres que, dentre outras

atribuições, proviam o alimento para Jesus e para os outros?

É possível, para não dizer provável, que isto tenha ocorrido em

parte, mas mesmo assim teríamos que concordar que o termo

“discípulos” nunca foi aplicado a elas, independentemente do papel que

um dia tiveram na comunidade.

Por outro lado, o termo “discípulos”, em grego, poderia incluir

as discípulas também. Se assim fosse, porque os evangelistas não

empregam o termo mathetria, singular de “discípulas” para descrever

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alguma delas em particular, embora o uso de mathetes, o equivalente

singular masculino é tão comum? A resposta pode estar associada à

língua grega, uma vez que essa palavra mathetria é relativamente rara

no grego da época; no cânone, apenas Lucas a emprega e isso não se dá

em seu evangelho e sim em Atos dos Apóstolos (Atos dos Apóstolos 9:

36), possivelmente por não ter se sentido á vontade para introduzir essa

inovação, que não existia nas línguas semitas da palestina.

Estudiosos como J. P. Meier advogam que, uma vez que os

evangelistas não conheciam histórias específicas de chamamentos de

Jesus a essas mulheres, acharam por bem omitir a denominação a que

elas de fato faziam jus.

As mulheres, como Maria de Magdala, curadas por Jesus, viam

nessas curas o equivalente ao chamamento e passaram a seguir o grupo

do mestre, sendo que essa história tem ressonâncias na cura do cego

Bartimeu (Marcos 10:46-52), onde a cura leva ao discipulado. Além

desse aspecto, no mundo machista da época, é pouco provável que às

mulheres, por vezes casadas, fosse permitido seguir um profeta

itinerante na companhia de homens sem a anuência dos seus

companheiros e do líder do grupo, corroborando para que nós

venhamos a considerá-las verdadeiras discípulas do messias de Nazaré.

Por fim, deve-se ressaltar que as palavras “discípulos e discípulo”, em

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hebraico e aramaico, somente existiam nas suas formas masculinas,

sendo que, desta forma, embora essas mulheres fossem, de fato,

discípulas, não existia um substantivo que pudesse ser utilizado de

maneira satisfatória para denominá-las na língua de Jesus.

Infelizmente, mais uma vez, a exclusão das mulheres de papéis

centrais de quase todas as igrejas cristãs no presente não encontra eco

nas pegadas de Jesus e somente se estabeleceu como conseqüência de

nossa própria inferioridade e preconceito. Essas mulheres, em particular

a controvertida Maria de Magdala, por vezes transformada em atriz de

filmes e livros de gosto exótico, presenciaram a crucificação,

perambularam com os demais discípulos, eram responsáveis, em parte,

pelo sustento e aporte financeiro do movimento, foram testemunhas do

sumiço do corpo físico de Jesus e foram as primeiras testemunhas da

imortalidade de seus excelso espírito (a ressurreição), pregavam (o que

era totalmente inovador para o judaísmo da época) e discutiam com o

mestre, sendo que muitas das memórias históricas que atestam a missão

desempenhada por elas podem ser lidas em Lucas 8,1-3. Tudo evidencia

que Jesus as considerava e as via como discípulas e das mais queridas e

respeitadas por ele, a ponto de provocarem crises de ciúmes nos

discípulos do gênero masculino.

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6.3 Outros seguidores desse lado e do outro lado do véu.

Além dos homens e mulheres que acompanhavam Jesus por seus

deslocamentos pela Galiléia e, posteriormente, Judéia, temos a presença

de pessoas amadas pelo mestre e que com ele tinham

comprometimento, mas sem a necessidade de deixar seus lares e segui-

lo em seus deslocamentos. Entre esses personagens destaca-se Zaqueu

(Lucas 19:1-10), Eleazar/Lázaro e suas irmãs (João 12:1-2), o anfitrião

anônimo da Última Ceia (Marcos 14:13-15), o leproso Simão (Marcos

14:3), dentre possíveis outros. Embora não lhes seja atribuído o

substantivo “discípulo”, é claro que essas pessoas desfrutam de um grau

especial de intimidade com o Cristo.

A maioria desses personagens que emergem das sombras para se

tornarem adeptos de Jesus, dando-lhe abrigo e alimentação, provem dos

círculos de pessoas que receberam “milagres” e foram curadas de

enfermidades ou submetidas a desobsessões. Muitos desses espíritos

conseguiram a graça de encontrar com Jesus no plano terreno para dar

testemunho do Reino de Deus, como etapa indispensável da lei de causa

e efeito, ação e reação, alçando planos muito mais altos de evolução

como conseqüência de sua própria elevação espiritual.

Essas pessoas, com suas limitações e doenças, tinham a

oportunidade de mostrar a misericórdia divina e se desvencilhavam dos

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últimos liames que as mantinham presas ao mundo de então. No

presente, muitos desses nossos irmãos são responsáveis por colônias de

desencarnados, instituições de trabalho e edificação espiritual e outras

nobres atividades, não esquecendo jamais, como também nos fala o

nosso querido Emmanuel, hoje já encarnado, os minutos em que

tiveram contato com o mestre dos mestres. Quem fitava os olhos de

Jesus, via o glorioso planejamento divino para nosso mundo e o amor

incomensurável que Ele, nosso Pai, desvelava para todos os que O

encontravam através de seu escolhido, o ungido, o messias.

Embora essas considerações possam fugir dos objetivos desse

estudo, não podemos nos furtar de dizer que Jesus tinha a companhia de

multidões de espíritos desencarnados de todos os matizes, que envoltos

pela impressionante energia emitida pelo mestre, acompanhavam-no a

fim de obter, em suas palavras, as mesmas dádivas que os encarnados

buscavam. Não foi apenas a cegueira, as paralisia e as letargias físicas

que o Cristo curou; curas muito mais proeminentes eram realizadas pela

sua vontade em todos os planos que nos envolvem. Multidões muito

maiores se mantinham ao seu lado, em outras esferas, somente visíveis

a ele e poucos dos seus eleitos, de forma que a vida de Jesus foi coroada

como um duplo ministério. Em diversas ocasiões, ele se ausentou do

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corpo físico e, em desdobramento, ministrava a palavra divina até nos

ambientes mais densos junto à crosta e áreas abissais.

Essas passagens foram omitidas dos textos neo-testamentários

apenas porque os evangelistas não conseguiam entender a extensão da

missão de Jesus, procurando dar sentido apenas aquilo que

compreendiam. Apenas no texto joanino, escrito em uma comunidade

cristã na Ásia Menor ou na Síria, as demais atividades do mestre galileu

estão implícitas na própria estrutura narrativa. Nesse evangelho, com

fortes inclinações espiritualistas, mais esclarecedoras do que as

passagens narradas são as informações que brotam das entrelinhas.

6.4 O Grupo dos Doze

Não se deve confundir o grupo denominado de “os Doze” ou os

“Doze Apóstolos” com o grupo de discípulos de Jesus, visto que nem

todos os discípulos acabaram se convertendo em apóstolos e muitos

questionam a existência desse grupo mais íntimo de Jesus. Alguns

personagens denominados de discípulos, como Levi, o coletor de

impostos, não parecem ter pertencido ao grupo mais íntimo dos Doze.

O termo “apóstolo”, em aramaico e hebraico, era empregado

para designar aqueles enviados em missão, mensageiros. Nos

evangelhos de Marcos e Mateus, essa palavra apenas é empregada

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quando esses enviados retornam ao seio dos seguidores de Jesus. É esse

retorno de uma missão que faz do discípulo, um apóstolo. Na igreja

primitiva o termo “apóstolo” passou a ser usado de forma fixa para se

referir a um grupo específico de discípulos, modificando o sentido

original, mais amplo. Contudo, isso não significa que um grupo mais

próximo de Jesus, composto por 12 discípulos, não existisse durante seu

ministério público.

Jesus acreditava na redenção de Israel para o advento do Reino

de Deus e isso passava pela reunião das doze tribos originais, dispersas

pela diáspora ao longo de 1000 anos. Daí a importância do número

doze, onde o mestre simbolizava que, dentro de seu grupo, havia uma

mensagem de salvação para toda a nação hebraica e, posteriormente,

para todo o gênero humano. Somente o evangelho de Marcos traz 10

menções ao grupo dos Doze, quase sempre com conotação negativa,

sem considerarmos a título de múltipla confirmação, os demais

evangelhos.

O grupo dos apóstolos ainda é citado por Paulo (1Cor 15, 3-7).

Contudo, Paulo também cita Andrônico e Júnia como apóstolos e eles,

obviamente, não faziam parte do grupo de discípulos conhecido como

“os Doze”, mas eram emissários de igrejas locais. Aparentemente,

deve-se a Lucas a identificação de “apóstolos” com o grupo dos

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“Doze”, que acabou sendo convertido em “os Doze Apóstolos”, embora

em Atos dos Apóstolos ele também inclua Barnabé e Paulo como

apóstolos.

Algumas menções aos apóstolos mostram tradições anteriores à

observadas nos evangelhos (Marcos 3:6-19; 14:43). Contudo, a maioria

dos críticos se apega às diferenças entre as listas de apóstolos

encontradas nos evangelhos sinópticos, para desacreditar a existência

desse grupo. O que essas diferenças evidenciam é a existência de duas

tradições diferentes, uma ligada a Marcos e outra da fonte L, sobre a

composição do grupo dos Doze. A própria citação de Judas Iscariotes,

"o traidor", como um dos Doze, teria sido omitida se ela apenas

remontasse ao interesse redacional das comunidades que deram origem

aos evangelhos, o que nos leva a deduzir que a presença de Judas como

um dos principais apóstolos já estava arraigada na primeira geração de

cristãos, tornando complicada sua supressão da lista de apóstolos. Era

uma vergonha para a igreja primitiva colocar que o messias havia sido

traído por um dos seus mais íntimos seguidores, de forma que a daquele

nome nas citações dos apóstolos é prova de que esse personagem

realmente existiu e comprova a existência do grupo dos Doze.

No quadro abaixo, os nomes dos apóstolos são apresentados

como citados nos evangelhos. Apenas o nome “Tadeu” e “Judas de

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Tiago” representam problemas mais sérios. Nesse sentido, não se deve

ceder à tentação de sugerir que esses dois nomes representem a mesma

pessoa (Judas Tadeu), visto que nada sugere essa harmonização. De

fato, eram duas pessoas diferentes, que se afastaram do grupo mais

íntimo do mestre, em função das severas exigências a que esses

abnegados missionários eram submetidos na época. Nos casos bastante

raros de desistência da provação, com a saída de um de seus membros,

ocorria sua substituição por outro discípulo.

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Tabela 1 - Lista dos apóstolos segundo avaliação de Robert Eisenman e John

P. Meier.

Texto canônico utilizado

Marcos 3:16-19 Mateus 10:2-4 Lucas 6:14-16 Atos dos

apóstolos 1,13

Simão Pedro Simão Pedro Simão Pedro Pedro

Tiago, filho de Zebedeu

Tiago, filho de Zebedeu

Tiago Tiago

João, irmão de Tiago

João, irmão de Tiago

João João

André André, irmão de

Pedro André, irmão de

Pedro André

Filipe Filipe Filipe Filipe

Bartolomeu Bartolomeu Bartolomeu Bartolomeu

Mateus Mateus, o publicano

Mateus Mateus

Tomé Tomé Tomé Tomé

Tiago, filho de Alfeu

Tiago, filho de Alfeu

Tiago de Alfeu Tiago de Alfeu

Tadeu Tadeu - -

Simão, o cananeu Simão, o cananeu Simão, o zelote Simão, o zelote

Judas Iscariotes Judas Iscariotes Judas Iscariotes -

- - Judas de Tiago Judas de Tiago

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As discrepâncias nas listas dos Doze podem refletir a tradição

oral que se manteve por uma ou duas gerações na igreja primitiva e,

depois de décadas, foram incorporadas aos textos canônicos.

O professor Eisenman, com alguns argumentos bastante

coerentes, enxergam nessas incongruências da lista de apóstolos, uma

tentativa de confundir deliberadamente as novas comunidades cristãs

em formação, quanto á verdadeira origem dos apóstolos de Jesus e seu

vínculo com o mestre. Essas tentativas de fato existiram posto que a

família de Jesus era o centro de referência da igreja na Palestina e isso

era indigesto para as comunidades que se formavam no mundo greco-

romano, mas não podemos ver nessa realidade as mãos dos seguidores

diretos de Jesus, mas sim daqueles que os sucederam nas décadas

seguintes, já separados de todo vínculo físico com o mundo do mestre e

já sofrendo a influência do ambiente gentio que os cercava.

A presença do complemento “publicano” a “Mateus”, presente

na lista de apóstolos do Evangelho de Mateus pode ser uma tentativa de

harmonizar o texto com Marcos, que mostra o chamado de Jesus a um

publicano denominado “Levi”. A presença de um segundo Judas, como

aponta a lista do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos, pode ser

confirmada pelo Evangelho de João (14:22), que narra uma pergunta

feita a Jesus por esse personagem.

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A segurança dessas fontes históricas sobre a existência do grupo

do Doze é significativa, mesmo durante o ministério público de Jesus.

As controvérsias sobre seu papel e características básicas evidenciam

que, logo após a crucificação, tiveram seu brilho eclipsado por novas

lideranças da igreja que nascia e acabaram por desaparecer do

cristianismo. As histórias que associam esses personagens à conversão

dos gentios, como o papel de Tiago, na Espanha, nada mais são do que

lendas sem conexão com a realidade. Dos 12 apóstolos, apenas Pedro

parece ter executado viagens missionárias (à Samaria, à Antioquia e,

talvez, Corinto).

A maioria dos apóstolos estava longe de entender a palavra do

divino mestre e muitos ainda retornaram ao nosso plano físico para dar

continuidade à programação reencarnatória pretérita, que deixou de ser

concluída satisfatoriamente, como ocorreu com Judas, de Kerioth, que

sofreu dores conscienciais cruciantes nos séculos que se seguiram ao

calvário e somente depois de reencarnações penosas nas lidas medievais

e meados da idade moderna, encontrou a paz que Jesus havia prometido

a todos que carregassem a sua própria cruz na senda da redenção.

Jesus não foi único ao criar um grupo de doze seguidores mais

próximos, uma vez que os qumranmitas, possivelmente essênios,

também possuíam essa estrutura, a qual era liderada por três sacerdotes,

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sendo que os serviços no Templo do final dos tempos deveria ser

executado por doze sacerdotes principais e doze levitas. Não se pode

esquecer que, na igreja primitiva, em Jerusalém, também existiam três

líderes principais, os “pilares” denominados por Paulo (Tiago, irmão de

Jesus e líder maior, Pedro e João).

6.5 E os apóstolos ?

Segundo o padre católico, J. P. Meier, pouco podemos falar com

certeza sobre esses personagens. A maioria das considerações sobre os

apóstolos é constituída de invencionices que objetivavam preencher o

vazio sobre vida de grande parte daqueles que seguiram o ministério do

mestre Jesus. As principais observações desse erudito são apresentadas

a seguir.

1. Bartolomeu: praticamente nada. Seu nome significa, muito

provavelmente, “filho de Tolmai” ou “filho de Tolomeu”. A partir

do século IX, esse personagem passa a ser associado com Natanael,

presente no Evangelho de João como um apóstolo;

2. Judas de Tiago e Tadeu: o primeiro aparece apenas na lista de

Lucas e Atos dos Apóstolos e seu nome possivelmente reflete o

nome de seu progenitor. Talvez seja o “Judas, não o Iscariotes”

citado por João. Numa tentativa de harmonizar esse “Judas” com o

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“Tadeu”, que aparece nas listas de Marcos e Mateus, a cristandade

logo o transformou, sem nenhuma base racional, em Judas Tadeu, o

santo das causas impossíveis. Essa associação de nomes (Judas

Tadeu) é artificial e não deve ser empregada.

Também existe confusão associando esse personagem com

“Judas, irmão de Jesus”, sendo que possivelmente seria esse último

o autor de parte da epístola que leva seu nome, ou pelo menos a

origem do centro da mensagem presente na epístola escrita

provavelmente por um discípulo de Judas, filho de José e irmão de

Jesus e Tiago (ele se denomina de “Judas, servo de Jesus e irmão de

Tiago”), possivelmente o mesmo Judas, o zeloso, da tradição greco-

siríaca. Esse personagem acabou sendo fundido na imaginação

cristã posterior com outros notáveis, como Tomé e Simão,

possivelmente também irmãos do mestre galileu. Percebam o papel

da família do mestre após a crucificação!

Essa proeminência da família de Jesus na igreja primeva

criava inconvenientes para a igreja romana, que ascendia ao poder e,

como coloca Emmanuel em seu brilhante livro "A Caminho da Luz",

psicografado por Francisco Cândido Xavier, logo se perderia das

tradições verdadeiramente cristãs para poder absorver o poder

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temporal que o império romano em decadência transferia ao bispo

local;

3. Tiago de Alfeu: possivelmente filho de alguém denominado “Alfeu”

e erroneamente conhecido, na tradição cristã, como Tiago Menor.

Alguns autores eruditos consideram possível, mas não provável, que

esse Tiago seja irmão de Levi, o publicano chamado para o

discipulado, mas não para o grupo mais íntimo dos apóstolos.

4. Mateus: talvez corresponda ao publicano Levi, mas Marcos e Lucas

o diferenciam desse discípulo, sendo que apenas o Evangelho de

Mateus faz essa associação. Deve-se ter cuidado quando se atribui a

autoria desse evangelho a esse personagem, como discutido

anteriormente;

5. Filipe: é apenas um nome na lista dos apóstolos presentes nos

evangelhos sinópticos, enquanto passa a ter um papel de relevância

no texto joanino, quase sempre acompanhado de André e, como

esse último, teria saído do círculo de discípulos do Batista.

Da mesma forma que o nome André, o nome Filipe também

é de origem grega e o Evangelho de João atribui à Betsaida, cidade

de André e de Pedro, a terra natal desse apóstolo. Aparece como um

interlocutor entre os peregrinos de origem grega, que o procuram

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para um encontro com Jesus. Ele não deve ser identificado com o

chefe do grupo de cristãos helenistas em Atos dos Apóstolos.

Recentemente, uma equipe de arqueólogos descobriu a

pretensa tumba desse apóstolo na atual Turquia, corroborando com

a participação desse apóstolo em atividades missionárias junto aos

gentios de língua grega, como apresentado acima.

6. André: irmão de Pedro e com ele chamado por Jesus para serem

“pescadores de homens”. Apenas um nome na lista de apóstolos.

7. Tomé: adquire maior importância no Evangelho de João e, mesmo

aí, sua imagem parece refletir a visão dos teólogos da igreja de João,

sendo utilizado para declarações revelatórias de Jesus. Quase

sempre é tratado em tom pejorativo. Esse nome deriva do aramaico

e significa “o gêmeo”, enquanto seu equivalente grego é “didymos”,

daí a denominação de Dídimo Tomé em textos cristãos. Contudo,

não existem evidências de quem teria seu irmão gêmeo no círculo

dos seguidores do mestre galileu. Assim, conhecemos apenas o seu

“apelido” ou segundo nome.

8. Simão, o zelote: por vezes esse segundo nome é utilizado pelos

críticos para evidenciar que Jesus tinha relações com grupos

nacionalistas judeus, zelosos com a lei mosaica, em meados do

século I d. C., mas não se pode esquecer que esse grupo apenas se

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Jesus: homem e espírito

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tornou um movimento organizado 30 anos após a crucificação, na

primeira revolta judaica. Provavelmente é a mesma pessoa

conhecida por “Simão, o cananeu”, visto que os termos “cioso e

zeloso”, de onde deriva seu nome, corresponde ao aramaico

qa`ana`, incorretamente traduzido como uma referência á sua

origem (um cananeu). Eisenman acredita que esse Simão, o zelote,

seria, na realidade, Simão, irmão de Jesus, o qual, de fato vinha de

família extremamente religiosa e não apresentava qualquer

movimentação de cunho nacionalista, seguindo a filosofia do “dar a

César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

Outros personagens judaicos são conhecidos pelo adjetivo

“zelote”, como Finéias, Paulo de Tarso, que se diz zelote com a lei e

muitos moradores de Jerusalém (Atos dos Apóstolos 21:20). Essa

denominação era utilizada para qualquer judeu devoto que se

opunha, de todas as formas, à invasão da cultura helenista e contra

os que não praticavam com rigor a lei mosaica.

O chamamento de Simão, o zelota, por Jesus, ao discipulado

e ao grupo dos Doze deve ser entendido como a necessidade de uma

mudança básica de posição das pessoas em direção à tolerância,

visto que o mestre confraternizava com todos, indistintamente.

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9. Judas Iscariotes: praticamente tudo que podia ser dito ou imaginado

sobre esse personagem já o foi. Sabe-se apenas, e com

controvérsias, que ele pertencia ao círculo dos Doze e acabou por

trair e entregar o próprio mestre às autoridades.

Quase tudo que se encontra nos evangelhos sobre esse

personagem representa uma expansão fantasiosa da tradição. Assim,

Marcos, o texto mais antigo e confiável das Narrativas da Paixão,

não existe um motivo para a traição de Judas, sendo que

posteriormente Mateus pinta esse personagem como avarento,

enquanto João o coloca como um ladrão ganancioso que exercia a

função de tesoureiro no grupo de seguidores de Jesus. Lucas atribui

a traição de Judas como tendo origem demoníaca e não apenas

material. O nome “Iscariotes”, era empregado para diferenciá-lo de

outros personagens com o nome Judas, como Judas de Tiago e

Judas, irmão de Jesus.

O nome “Iscariotes” é uma referência à cidade de Kerioth,

na Judéia, o que faria desse apóstolo o único seguramente não

originário da Galiléia, um estranho no ninho. Embora não exista

uma segurança arqueológica de que essa cidade tenha de fato

existido, as informações disponíveis na literatura espírita atribuem o

nome de Judas a essa vila judaica.

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Jesus: homem e espírito

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Como o Evangelho de João (6:71; 13:2) assinala, o pai de

Judas era chamado de Simão Iscariotes, sugerindo que esse termo de

fato indica a cidade de origem de ambos. Alguns atribuíram,

erroneamente, ao fato de que Judas faria parte do grupo dos sicários,

que matava suas vítimas no meio da multidão utilizando uma adaga

conhecida como sicarii, o que é improvável, posto que esse grupo

ainda não existia na década de 30 d. C., enquanto outros estudiosos

lembram que essa palavra evoca uma raiz semita que traduz a

imagem de mentiroso ou “ser falso”, mas Judas não mentiu, foi um

traidor.

Outras interpretações bastante criativas sugerem que a raiz

semita do termo “Iscariotes” significa “aquele que entrega”, mas,

mais uma vez estamos forçando uma conclusão aceitável, enquanto

outros traçam a possibilidade de vínculo com a cor vermelha

sugerindo que o mesmo fosse uma espécie de tintureiro, trabalhasse

com frutas vermelhas, fosse ruivo ou tivesse a pele avermelhada, o

que não diz nada.

Além desses personagens, ainda temos Pedro, Tiago e João,

o núcleo mais íntimo e, segundo Marcos, que recebera segredos

messiânicos de Jesus, tendo sido convidados a permanecer em

oração no Getsêmane com o mestre. A existência desse grupo mais

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íntimo somente é atestada nos evangelhos sinópticos, não

aparecendo em nenhum outro ponto do Novo Testamento.

10. Tiago: poucos personagens do Novo Testamento suscitaram tanta

discussão. Nos textos canônicos, Tiago e João aparecem como

irmãos, filhos de Zebedeu. Sempre que seu nome aparece, eles estão

juntos.

Foi martirizado por Herodes Agripa em 44 d. C. (Atos dos

Apóstolos 12:1-2) e pode ter sido o primeiro dos apóstolos a ser

penalizado com a morte, decapitado, em função de sua crença.

Nesse sentido, ele é o único cujo martírio é narrado no cânone,

embora João 21:18-19 possa conter uma referência ao martírio de

Pedro. Esse “Tiago”, a partir de meados da Idade Média, passou a

ser, absurdamente, associado ao trabalho missionário na Espanha.

11. João: pelo menos 5 indivíduos no Novo Testamento são ligados

direta ou indiretamente a esse nome, sendo que a tradição cristã

tratou de fundi-los em um único personagem, obviamente sem

muita base na realidade:

• João, filho de Zebedeu;

• o “discípulo que Jesus amava”, que está anônimo no

Quarto Evangelho (e assim deveríamos ter deixado,

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tendo sido identificado por modernos estudiosos

como sendo Lázaro ou mesmo outros, como Maria

de Magdala);

• o anônimo autor do Quarto Evangelho;

• o anônimo autor de 3 epístolas que levam esse nome;

• o autor do Livro do Apocalipse.

Hoje sabemos que as obras literárias citadas acima não

foram escritas por um mesmo autor, muito menos que o mesmo era

João, filho de Zebedeu. O livro do Apocalipse teria sido escrito

através da transmissão oral do conteúdo das visões do apóstolo

João a um cristão de língua grega. As epístolas foram escritas por

seus seguidores, procurando repassar aquilo que acreditavam que

consistia a visão teológica do ancião.

O Quarto Evangelho, embora leve seu nome, não foi obra

literária do apóstolo e foi o mais tardio dos evangelhos canônicos,

porque demorou a harmonizar as diferentes correntes de tradição,

algumas oriundas, de fato, de João, mas a maioria do texto era

característico da outros personagens da comunidade joanina, em

particular de um grupo de mulheres que seguia o mestre Jesus.

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Marcos coloca João como sendo um próspero

microempresário que trabalhava com seu pai no mar da Galiléia,

enquanto Lucas estabelece que João e Tiago eram sócios de Simão

Pedro em uma pequena empresa de pesca. De qualquer forma,

pescador ou alguém que lida com pescado. Sua condição financeira

não é retratada como desesperadamente pobre, sendo que seu ramo

de atividade era muito rentável no mar de Tiberíades (ou da

Galiléia).

Segundo o Evangelho de Marcos, os irmãos Tiago e João

são denominados de “Boanerges” por Jesus, sendo que esse termo é

traduzido como “filhos do trovão”, possivelmente significando que

eram impetuosos, de pavio curto, ou mesmo zelotes, ou zelosos.

Muitos acreditam que essa denominação remonta ao próprio Jesus,

possivelmente significando um estímulo do mestre para que os

irmãos logo se tornassem grandes porta-vozes do advento do Reino

de Deus, dado o potencial que possuíam.

João, em algumas circunstâncias era tido como um porta-

voz dos demais apóstolos, mas isso pode ser apenas uma criação da

igreja primitiva. Em Atos dos Apóstolos fica explícito que João

teve um papel proeminente na igreja nascente logo depois da

Páscoa fatídica, juntamente com Tiago, irmão de Jesus, e Pedro,

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tendo sido ligado de forma muito estreita a esse último. Não

existem quaisquer evidências nos textos canônicos ou entre os

autores do século II d. C. de que esse apóstolo teria sofrido

qualquer perseguição.

Em tempos recentes, alguns pesquisadores passaram a

considerar plausível a associação entre o “discípulo que Jesus

amava” e a figura de Maria de Magdala, sendo que o anonimato

desse discípulo no texto joanino e a sua inexistência nos demais

evangelhos sugere que o mesmo se originou na comunidade joanina

e possivelmente se destinou a proteger a identidade do personagem

que, naquela comunidade, era de conhecimento de todos. Em

realidade, o texto joanino carrega as experiências primitivas de uma

comunidade liderada por uma mulher ou na qual mulheres eram

proeminentes, com forte influência na redação do texto. Assim,

quando aquela comunidade passou a ser obrigada a se inclinar em

direção ao cristianismo da corrente principal, o papel dessas

sacerdotisas teve de ser apagado e Maria de Magdala passou a ser

apenas o discípulo que Jesus amava, segundo essa interpretação.

Acreditamos que esse enfoque é bastante coerente.

Do ponto de vista espiritual, sabe-se que Maria de

Magdala era portadora de grande sensibilidade mediúnica, a qual,

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associada a descontroles e desequilíbrios pessoais acabaram por

jogá-la na senda de perigosos obsessores que somente se afastaram

com a presença do mestre de Nazaré e sua mensagem de renovação

e reforma íntima, o que também abriu as portas de um mundo novo,

que ela abraçou com toda a força da sua alma em conflito, obtendo

a paz no trabalho edificante que passou a desenvolver. Assim, a

leveza e a sensibilidade no trato com as pessoas, que tanto

abundavam em Maria, logo produziram frutos amargos na inveja de

outros discípulos de Jesus, que não consideravam as mulheres

suficientemente preparadas para receber ensinamentos diretamente

do mestre. Obviamente esses pensamentos vulgares, oriundos de

pessoas que ainda apresentavam-se apegadas ao mundo

preconceituoso do século I. d. C., foram se moldando com o tempo

e deram origem a histórias absurdas sobre o relacionamento que ela

teria com seu mestre e mentor. A devoção a Deus e a luz que dela

emanavam e a impeliam em direção aos necessitados, permitiram

que, ao redor dela, crescesse um movimento cristão mais igualitário

e livre, também ligado a Maria de Nazaré e seus outros filhos,

Simão, Tiago e Judas.

Podemos, também, questionar o fato de que em várias

situações o texto joanino apresenta o discípulo que Jesus amava

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junto de Maria de Magdala ou das demais mulheres que

acompanhavam Jesus, o que impediria que esses dois personagens

tivessem a mesma identidade, mas não se pode crer piamente

nesses textos da forma que estão redigidos. É possível que a

colocação desse discípulo exatamente ao lado dessa Maria tivesse a

função exatamente de esconder a identidade da mesma como sendo

a líder daquela comunidade, que apresentava uma terrível divisão

interna. Com essa apresentação, os membros da comunidade ainda

preservariam o papel desempenhado por algumas mulheres no

grupo. Por fim, o apóstolo João até participou da redação desse

evangelho, mas poucos duvidam que os extratos mais primitivos se

originaram do grupo de mulheres que acompanhava Jesus ou, mais

especificamente, de Maria de Magdala.

Outra possibilidade quanto à identidade do discípulo que

Jesus amava, seria Lázaro, que interagiu de forma tão particular

com Jesus, de forma que seu corpo, inerte, letárgico ou cataléptico,

voltasse, aos olhos daquelas pessoas simples, a ter vida. Na acepção

tradicional, Lázaro estava morto e sua "ressurreição" teria sido um

fenômeno impar, enquanto na codificação de Kardec, uma doença

letárgica atingia o pobre homem. O ponto de vista de que Lázaro

era o discípulo amado é muito questionável e os evangelhos

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sinópticos sequer citam Lázaro de Betânia, algo pouco provável se

eles tivessem, de fato, conhecimento do "milagre da ressurreição"

ou da afetividade que unia o mestre galileu a Lázaro e suas irmãs,

como descrito no Quarto Evangelho.

12. Pedro: é o apóstolo mais citado, controverso e proeminente nos

textos canônicos. Simão, seu nome aramaico, deve ter sido o padrão

de judeu galileu pescador com esposa e família, residente em

Cafarnaum. Pode ter conhecido Jesus nas margens do mar da

Galiléia ou no círculo de discípulos do Batista, como traz o Quarto

Evangelho, mas foi apenas quando Jesus passou a ter um

movimento autônomo é que Pedro teria sido convidado a ser um

pescador de homens e de almas, termo que a maioria dos

pesquisadores atribui ao Jesus histórico.

Kepa' (transliterado no grego para Kephas e traduzido para

essa língua como Petros, pedra). Possivelmente teve algum papel

nos momentos que levaram à prisão e execução de Jesus, tendo sido

relatada a sua covardia diante de indivíduos que questionavam sua

relação com o prisioneiro Jesus e sua participação nos momentos

dramáticos do Getsêmane. Provavelmente após problemas com as

autoridades de Jerusalém, teria se dirigido à Síria (Gálatas 2:11-14)

e Corinto (1Coríntios 1:12; 3:22), possivelmente acompanhado de

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sua esposa, sendo que João 21:18-19 insinua que teve morte

violenta como mártir. Textos dos primeiros séculos da era comum,

como a carta 1Clemente e a carta de Inácio aos romanos, localizam

seu martírio nas colinas do Vaticano, sendo que escavações

realizadas nas décadas de 1940-50 sob a basílica de São Pedro

evidenciaram a existência dessa necrópole, o que, para alguns, é um

indicativo de que Pedro poderia estar lá enterrado.

Contudo, até mesmo os mais conservadores pesquisadores

acreditam que as chaves do céu que Jesus, simbolicamente, entrega a

Pedro, sugerindo que ele e seus sucessores poderiam abrir e fechar seus

portões para toda a eternidade, representa redação primitiva da igreja e

NUNCA teria se originado do Jesus histórico. Esses textos (Mateus

16:19; João 20:23) parecem mostrar como agir diante de problemas

internos na igreja, sem uma relação com um discurso real do mestre

Jesus. Assim, Pedro como pedra angular da igreja de Jesus constitui

uma fala artificial que foi colocada na boca do messias de Nazaré por

pessoas envolvidas em querelas religiosas, nos 50 anos após a

crucificação. Porém, dessas falas deriva todo o poder do papado, com

todas as suas conseqüências.

Um aspecto bastante questionável desse apóstolo se deve à sua

negação de Jesus nos momentos finais da vida do mestre galileu. Esse

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episódio apresenta traços históricos, visto que sua criação pela igreja

primeva seria equivalente a desautorizar um de seus principais

membros, criando um constrangimento desnecessário e mesmo

prejudicial. Jesus conhecia a natureza de seus seguidores, de forma que

não deve ter sido um espanto para ele e os apóstolos a negação de

Pedro. Eram espíritos em crescimento e foram escolhidos porque

representavam as características mais marcantes da própria

humanidade, de forma que a negação de Pedro fazia parte desse triste

quadro.

Independentemente de quem foram os apóstolos, podemos dizer

que a grande maioria deles acabou por desaparecer dos textos canônicos

ou apócrifos, de forma que a instituição dos Doze foi efêmera e não se

manteve coesa por muito tempo. Praticamente nada sabemos do destino

que esses personagens passaram a desempenhar e devemos acreditar

que a maioria acabou sendo suplantada pelos novos convertidos de

cultura helênica, o que não deve ter sido difícil já que a maioria dos

seguidores de Jesus era composta por pessoas aparentemente sem

instrução formal. Associado a esse fato, a liderança de membros da

família de Jesus sobre a igreja nascente sugere que o grupo dos Doze

logo perdeu importância para o grupo familiar ou que, de alguma forma,

esse último grupo fazia parte daqueles que seguiram Jesus e tiveram seu

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papel ofuscado pelos evangelistas, sendo que muitos elementos

apontam nessa direção, como veremos a seguir.

Nos Planos Espirituais, muitos dos personagens que tiveram a

graça de conviver algum tempo com Jesus, como a família de Lázaro,

em Betânia, onde nosso eterno mestre encontrou uma segunda família,

por afinidade, passaram a integrar as falanges do espírito Verdade e

trabalham ativamente na consolidação do evangelho redivivo

representado pela codificação espírita e pela fé inabalável de que Deus

nunca abandona seus filhos, nem mesmo nas mais profundas furnas das

trevas.

Existem boas evidências que Pedro, Tiago e João, os líderes

mais proeminentes da igreja cristã de Jerusalém eram médiuns de

efeitos físicos e de cura, como possivelmente Maria de Magdala. Eles

estavam sempre presentes quando materializações e muitas curas

ocorriam e, como nos disse o próprio mestre Jesus, desde que

acreditássemos poderíamos realizar verdadeiras proezas. Na opinião do

mestre, seus seguidores precisavam de mais fé e não de exemplos novos

que viessem a confirmar o que todos viam: Deus já se fazia presente e

era infinitamente justo, bom e misericordioso. Temos, então, o cerne da

mensagem de esperança e fé do messias galileu.

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6.6 Controvérsias sobre os apóstolos

Embora tenhamos discutido brevemente alguns aspectos da

identidade dos apóstolos, achamos por bem não incluir na discussão os

pontos mais controversos. Muitas são as evidências de que o

cristianismo gentio fez de tudo para eliminar os traços e os rastros da

família de Jesus de todos os textos que vieram a ser considerados

canônicos, mesmo quando as tradições mais antigas da própria Igreja

mostravam o contrário, evidenciando que os sucessores de Jesus, na

liderança do movimento de renovação dentro do judaísmo eram, quase

todos, seus parentes próximos.

A família passa a ser retratada até com uma certa leviandade

pelos autores do Evangelho de Marcos e com indiferença pelos demais

“evangelistas”. Isso contrasta com a realidade, exposta inúmeras vezes

pelos pais da igreja cristã, nos séculos I e II d. C., que colocaram que a

família de Jesus, seus pais e numerosos irmãos e irmãs eram

extremamente zelosos para com a lei mosaica e adotavam um estilo

nazirita ou nazareno, muito semelhante aos preceitos que Josefo e

Plínio atribuem aos essênios e próximo das descrições que alguns textos

encontrados nas cavernas ao redor do Mar Morto trazem.

Muitas confusões e alterações dos evangelhos foram realizadas

para encobrir a importância e a identidade dos sucessores de Jesus, que

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aparentemente seguiam a mesma inclinação do califado dinástico da

sucessão de Alid entre os muçulmanos xiitas ou a sucessão dos reis

hasmoneus/macabeus. A forma com que a mãe, irmãos e irmãs de Jesus

são tratados nos evangelhos é muito dependente da relação de poder que

o evangelista traçou com os membros da família e da liderança da

crença nascente.

Outro aspecto relevante se refere às diferentes listas de

apóstolos, nos quatro evangelhos, além das modificações e duplicação

de nomes de integrantes da família de Jesus, como a criação de uma

irmã de Maria, mãe de Jesus, também chamada Maria, para ser a mãe

de Tiago, José, Judas e Simão, tornando-os primos e não irmãos

verdadeiros do mestre, quando da disseminação do conceito da

virgindade perpétua de Maria, até hoje defendida por muitos.

Os três pilares iniciais da igreja primitiva, segundo os

evangelhos sinópticos, são Pedro, João, filho de Zebedeu, e Tiago,

irmão de João. Em Gálatas, os pilares são Pedro, João, filho de

Zebedeu, e Tiago, irmão de Jesus. Seriam esses dois “Tiagos” um só?

Se a resposta for positiva, por que foram separados em duas pessoas

diferentes ? O professor Robert Eisenman acredita que esses dois

personagens eram inicialmente um só, Tiago, o irmão de Jesus, e que

facções internas no movimento cristão trataram de dividi-lo em dois

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personagens diferentes como forma de diminuir sua importância e dos

demais sucessores de Jesus em prol de uma supremacia dos apóstolos.

Nascia, então, Tiago, o Justo (irmão de Jesus), de um lado, e, de outro,

Tiago, o irmão de João.

Outra tentativa de diminuir o papel de Tiago, o Justo, na igreja

primitiva foi relacioná-lo com Tiago, filho de Alfeu, sendo que,

segundo Papias, um dos pais da própria igreja gentia, esse último nome

era o mesmo que Cleofas, pai de Simão, bispo sucessor de Tiago na

igreja de Jerusalém e também seu irmão (e de Jesus por extensão).

Mesmo entre os discípulos, Tiago, filho de Alfeu, e Tiago, filho de

Zebedeu, tomam, por vezes, o lugar de Tiago, o Justo, enquanto Tomé

se transforma em Judas de Tiago, Tadeu, Teudas (Tadeu+Judas) e

Lebeus. Simão, o zelota, se transforma em Simão bar Cleofas.

A importância de Tiago para a igreja primeva foi incomparável.

Segundo Orígenes, um importante escritor e estudioso cristão que teria

vivido por volta de 150 anos após a crucificação de Jesus e considerado

um dos principais teólogos do seu tempo, a revolta e a queda de

Jerusalém foram reflexos do martírio de Tiago, o qual era considerado

uma verdadeira muralha defensiva e sua morte precipitou o pior, a

condenação da cidade através de um julgamento da Providência Divina,

tendo o exército romano como executor dos desígnios do Deus Todo

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Poderoso, segundo o que ele diz ter lido nos textos do historiador judeu

Flávio Josefo. É uma posição bastante original e indigesta para a igreja

cristã, visto que os cristãos literalistas atribuem a queda de Jerusalém e

seu Templo à crucificação de Jesus, ocorrida 30-33 anos antes, o que é

pouco provável.

Assim, muitos dos nomes dos apóstolos eram, em verdade,

pseudônimos ou verdadeiras substituições para os nomes dos irmãos de

Jesus. Embora isso possa chocar, parece explicar o porquê do círculo

dos Doze ser tão indistinto.

Devemos ter muito cuidado com essas considerações, mas não

se pode esquecer que Papias e Eusébio colocam dúvidas sobre a

precisão dos autores dos evangelhos, sendo que trazem a informação de

que Marcos nunca vira Jesus, tendo sido auxiliar de Pedro,

possivelmente em Roma, enquanto Mateus teve inúmeras dificuldades

com o hebraico, tendo recorrido a oráculos, sendo que cada um dava a

interpretação que lhe parecia mais adequada e segura. Essas

informações deveriam ser colocadas à disposição daqueles que se

sentem compelidos a estudar os textos bíblicos de forma literalista.

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6.7 Qual foi o destino dos apóstolos?

Independentemente da identidade verdadeira da maioria dos

seguidores mais próximos de Jesus, não se pode negar que quase todos,

em maior ou menor grau, submergiram na trama construída no século I

d. C. Embora bem intencionados e cheios de vontade de compartilhar a

mensagem divina com a população palestina, eram pessoas com

limitadas condições financeiras, muitos ainda estavam ligados a

deficiências e desarmonias íntimas, como inveja, ira, preconceitos de

natureza variada para com a população não-judaica e contra a

participação de mulheres no movimento, deixando que a direção da

igreja nascente migrasse definitivamente para a família de Jesus, com a

qual permaneceu até fins do século I. d. C. Contudo, a pequena igreja

palestina não podia fazer frente à poderosa força que emanava de

Roma, de forma que o cristianismo foi perdendo os seus traços semitas,

galileus, adquirindo feições de religião de mistérios e dogmas

literalistas nos séculos seguintes. A lei do espírito foi perdendo força

para o espírito da lei e a característica que Jesus mais criticou no

judaísmo de seu tempo, a fé das aparências e a inobservância da

verdadeira lei, o amor ao próximo e a Deus, passaram a imperar no

cristianismo também. A caminhada para o poder temporal fora lançada.

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Nesse processo, perdeu-se o contato com as histórias de vida da

maioria dos apóstolos, que viveram por décadas após a crucificação, em

terras Palestinas, curando e pregando em pequenas assembléias nas

vilas da Galiléia e Judéia. Como citado acima, o mundo greco-romano

era um desafio que Jesus nunca exigiu que eles encarassem. Por outro

lado, alguns de seus discípulos e apóstolos mais próximos foram, de

fato, martirizados, como Pedro, crucificado de cabeça para baixo no ano

64, em Roma, ou Tiago, filho de Zebedeu, o primeiro dos apóstolos a

encontrar a morte, no ano 44, através da decapitação. Outros que

receberam a crucificação, de acordo com antigas tradições, destacam-se

André, irmão de Pedro, Felipe e Simão, o zelota. Embora pouco

provável, existem tradições que apontam para a morte de Bartolomeu

por decapitação, junto ao Mar Cáspio, após ter sido esfolado, Mateus,

morto pela ação de uma machado, Tomé, mortalmente ferido com uma

lança, em solo indiano, no ano 72. Até mesmo Matias, que substituíra a

Judas Iscariotes, no grupo dos Doze, teria encontrado a morte no

apedrejamento, decapitação ou na fogueira. Apenas João teria vivido

longos anos (94 anos ao todo) e, através de sua lúcida mediunidade,

legado ao mundo as instruções sobre o destino do homem e do orbe

terrestre, por meio do seu livro de revelações (apocalipse, em grego,

ditado a um discípulo fluente nessa língua do tronco indo-europeu).

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7 A mensagem de Jesus

“...caríssimos, ..., esforçai-vos em ser por ele achados sem mácula e

irrepreensíveis na paz...”

(II Pedro 3,14)

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Jesus: homem e espírito

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Para uma consulta mais ampla sobre a mensagem de Jesus,

recomendamos o livro intitulado “A mensagem do Cristo e o

Espiritismo”, de autoria de Elerson Gaetti-Jardim Júnior e Christiane

Marie Schweitzer.

A disseminação do poder romano, por todo o Mediterrâneo

oriental, associada à dispersão dos valores culturais gregos na Palestina,

desde o século III a. C., fez com que uma base cultural despontasse.

Nessas condições, a mensagem de um grupo circunscrito de

judeus zelosos tinha plenas condições de se difundir, pelo menos no

meio daqueles que comungavam alguns de seus princípios e laços

culturais. O cristianismo estava fadado a continuar a ser uma seita do

judaísmo, tanto entre os judeus da diáspora, quanto na própria Palestina.

Entretanto, os "poderes" altamente curativos da filosofia de amor a

Deus e ao próximo, proclamada por Jesus, como forma de criar um

círculo universal de respeito e afeto, acabou por inundar as classes

menos favorecidas do império, convertendo-se, por força de sua leveza

e, infelizmente, interesses não tão nobres de alguns líderes da cúpula

romana, na herdeira temporal dos césares. Assim, quando falamos de

mensagem do messias galileu, temos que tentar separar aquilo que era,

de fato, objetivo e cerne da pregação de Jesus, daquilo que passou por

muitas alterações redacionais no Novo Testamento, como forma de

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legitimar o poder usufruído por grupos e pessoas nem sempre bem

intencionados.

Indubitavelmente, o mestre Jesus colocava no centro de sua

mensagem a proeminência do amor ao Pai e a presença Dele em tudo

que ocorria na superfície do nosso orbe terrestre. A importância do

Reino de Deus ganha cores próprias de cada apóstolo e evangelista, o

que mostra, através da múltipla confirmação das fontes, o quanto ele,

independentemente do local e das condições, falava dos destinos

individuais e coletivos e da misericórdia divina na vida de todos nós.

Tudo isso com vista à obtenção do “bilhete premiado” representado

pela permissão de ingresso nos "céus", ou, como freqüentemente

utilizado em outras religiões cristãs, a inscrição no “Livro da Vida”.

Algumas das discussões mais emblemáticas sobre esse ingresso

podem ter ficado preservadas nas palavras de Jesus em João (3:1-13),

onde coloca-se a importância de “nascer de novo”, em carne e espírito,

simbolizados pela água e Espírito. Não existem dúvidas que o centro da

pregação de Jesus consistia na sistemática proclamação do Reino de

Deus e todo o sentido da sua mensagem aí reside. Por “reino de Deus”

também incluímos as denominações de “Reino de Meu Pai” e “Reino

dos Céus”, totalizando dezenas de citações diferentes em diversos

contextos.

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Jesus: homem e espírito

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Essa característica de chamar o mundo espiritual e seus planos

superiores de "Reino de Deus", embora não seja uma peculiaridade de

Jesus, ganha muita força com ele, o que o distingue dos rabinos e dos

autores dos textos do Antigo Testamento e qumranmitas, que usam

muito raramente essa expressão. Essa forma de mostrar que Deus,

inteligência maior e criadora do cosmo, estava ao alcance de todos era

bastante marcada em Jesus. Isso era uma forma de mostrar que o Senhor

reinava sobre sua criação. Para um judeu praticante do século I d. C., o

reino divino tinha uma nítida vertente escatológica, de final dos tempos.

A seleção dos eleitos, com a separação dos justos e ímpios, era uma

característica dos judaísmos da virada de eras; Jesus não era uma

exceção nesse sentido. A diferença é que ele dizia que, a despeito da

justiça de Deus ser rigorosa, ela era exercida com misericórdia e

nenhuma ovelha do rebanho se perderia.

A importância do Reino de Deus, ao mesmo tempo futuro, mas

iminente, é tão grande, na mensagem de Jesus, que permeia até a oração

do Pai Nosso, quando coloca que "venha o Teu reino" (Mateus, 6:9-13;

Lucas 11:2-4). Naquela época, a chegada do reino divino seria

acompanhada por banquetes de fartura e profunda significação social,

com a reunião das antigas tribos perdidas da Casa de Israel, com o

gentios sendo convidados a partilhar da glória divina, em uma

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Jerusalém restaurada e plena da glória do Senhor. Esse conteúdo

filosófico ainda permeia a mentalidade cristã, principalmente nos cultos

mais literalistas, com muitos grupos sectários esperando o retorno de

um messias divino para o estabelecimento de um governo teocrático no

mundo judaico-cristão. Ainda hoje as estruturas de pedra ainda têm

proeminência sobre as fortalezas da alma.

A leveza e beleza da oração do Pai Nosso evidenciam que essa

última, em aramaico, é bastante antiga e seu sentido, embora pouco

compreendido pelos seguidores do mestre Jesus, remete exatamente a

ele. Foi feita para ser memorizada e passada a diante e traduz todo o

ensinamento básico das pessoas que tomavam as pegadas do jovem

galileu como o caminho a ser seguido; eram as palavras do povo da casa

do caminho.

A versão aramaica da oração ainda traz impregnada em sua alma

o sentido do perdão das dívidas, como sinônimo do pecado, individual e

coletivo, que a oração perde nas línguas indo-européias. A invocação de

Deus, chamado de Abba, com o sentido de "meu Pai amado", pelo seu

filho Jesus, remete diretamente às palavras de nosso divino peregrino,

não deixando de estar em sua boca nem nos momentos que antecederam

o martírio no calvário.

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313

Nessa bela e pura oração, o crente faz uma série de petições

curtas e diretas, mostrando que ninguém necessitava de templos de

pedra ou intermediários para conversar com Ele; para entrar no Reino

do Pai, cuja porta, embora estreita, poderia ser cruzada pelo exercício

da caridade, que nivelava a todos na condição de filhos do mesmo Pai

eterno; o ingresso trazia a palavra humildade, a mesma humildade que

não avilta o respeito daqueles que recebem o fruto da nossa caridade.

A paternidade divina humanidade nos colocava em pé de

igualdade perante Deus, de forma que as diferenças que ostentávamos

no mundo eram apenas superficiais e dispensáveis. Não havia o porquê

de separarmos as pessoas em "pecadoras" ou "puras", posto que nesse

mundo de dor e provas, rico em césares e reis de todos os tipos, ainda

tínhamos um longo caminho a percorrer até Ele. É dessa forma que

devemos entender os motivos que faziam Jesus interagir com todos os

tipos de pessoas, não dando absolutamente importância para as

aparências e convenções sociais.

Para aquele judeu pobre que vinha do norte, as regras de pureza

não se aplicavam ao relacionamento Pai-filhos e, dessa forma, todos os

filhos do Deus Misericordioso deveriam receber a mensagem de paz e

esperanças que ele mesmo trazia nos lábios. Isso era frontalmente

contra todos os preceitos das demais seitas e filosofias judaicas do

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século I d. C. Essa diferença nítida de Jesus em relação aos seus

contemporâneos cria muitas dificuldades, mesmo entre os espíritas

modernos, que vêem os essênios e outros sectos judaicos da época

como a encarnação da vida em comunhão e politicamente correta.

Essa visão é distorcida por 300 anos de iluminismo cultural e

um anseio quase angustiante de ligar o mestre galileu a alguma escola

cuja antiguidade remontaria aos primórdios da humanidade. Contudo,

se algumas características de Jesus lembram os demais movimentos

judaicos, isso se deve ao meio cultural comum e também ao fato de que

nada ocorre por acaso e sua encarnação se deu exatamente quando o

mundo apresentava um mínimo de maturidade para escutar as suas

palavras que, se praticadas, trariam a paz que sonhamos até hoje. Sua

mensagem é o mais belo código de ética já registrado pelo homem.

Nas palavras de Jesus há o pedido para que o Rei, nosso Deus,

não apenas um reino, se faça presente. Nessa súplica poderosa, pedimos

que Ele nos salve de nós mesmos. Assim, Deus é o rei que reina em

todos os lugares e o coração do homem é um trono para que nosso Pai

Eterno reine com toda a sua glória, basta que venhamos a nos tornar

dignos de Sua presença integral. Assim, Jesus via Deus como Pai e

como Rei, que traria a paz que todos aguardavam; traria o equilíbrio e

estabeleceria uma aliança que era impensável antes da vinda do messias

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judeu, em função do fato da humanidade se encontrar em uma infância

evolutiva bastante desconfortável para ela mesma.

Não podemos deixar de frisar que o uso do termo abba,

empregado por Jesus para se referir a Deus, é único e era utilizado de

forma bastante respeitosa para se referir ao próprio pai terreno, nos

mostrando que o mestre encarava, de fato, a figura divina como sendo o

Pai de todos os homens, uma imagem que acostumamos aceitar, mas

que era única para sua época. Não se falava em “papai do céu” para as

crianças e até nessa maneira carinhosa de ensinarmos nossas filhas e

filhos em suas primeiras orações temos a mãe de Jesus, o escolhido.

A chegada iminente do Reino de Deus permeia a oração o Pai

Nosso. Nesse sentido, devemos entender o "pão nosso de cada dia",

não apenas como o alimento que nos tira a fome, mas também o maná

do deserto que alimenta a nossa alma nos momentos mais difíceis desse

mundo, da mesma forma que o "perdoa-nos as nossas dívidas assim

como nós temos perdoado a nossos devedores" tem em vista o pedido

especial para que o Pai nos torne merecedores de Seu sublime perdão,

por conta de um julgamento universal que se daria em determinado

momento do processo evolutivo da sociedade terrena. Pode-se verificar

que, quanto a julgamento futuro, todas as denominações cristãs são

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concordes em admitir sua existência e sua urgência diante das

turbulências pelas quais a sociedade vem passando nos últimos séculos.

Ao "perdoar os devedores", nos habilitamos a receber o perdão

divino, manifestado em novas oportunidades de crescimento em um

novo corpo físico ou através de estudos e trabalho mesmo nas diferentes

esferas espirituais. O perdão implicitamente transforma contentores em

parceiros em seus destinos individuais, uma vez que diferentes tipos de

vínculos se estabelecem entre as pessoas ao longo do curso de suas

vidas terrenas e durante a permanência na erraticidade, para utilizar uma

terminologia do Livro dos Espíritos de Kardec. Aqueles que hoje são

nossos obsessores, seriam, com a vontade do par "vítima-agressor",

convertidos em nossos irmãos mais próximos e nos nossos maiores

companheiros de jornada. Sabemos, através do conhecimento adquirido

na literatura espírita e por meio da experiência com as reuniões de

desobsessão, que esse fenômeno de fato ocorre, embora possa demorar

séculos.

A urgência do julgamento futuro e a influência dos elos

múltiplos de vidas e dívidas contraídas faz com que Jesus peça "e não

nos deixes cair em tentação; mas livra-nos de todo o mal", uma vez que

o mal somente pode gerar o mal. Esse mal, que, segundo o próprio

mestre, se origina em nós mesmos, a partir de nossas próprias

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imperfeições, acaba por criar, em função de leis de causa e efeito, ou

ação e reação, condições de perpetuação. Uma encarnação

comprometendo a seguinte em um círculo vicioso que somente poderia

ser quebrado pelo perdão e quem perdoa tem condições morais de

solicitar o que oferece de coração aberto.

Dessa forma, é extremamente reveladora a ênfase de Jesus em

pedir a reconciliação dos inimigos e "o dar o rosto" para o agressor.

Nesse caso, estaríamos negando aos nossos inimigos a lenha para

manter a fogueira do ódio acesa ao nosso redor. Cabe-nos ressaltar que

a tentação maior a que Jesus, na oração cristã, se referia às atitudes que

viessem, no final dos tempos, impedir o nosso acesso à mesa do

banquete celestial (utilizando uma linguagem comum naquela época) na

qual os filhos poderiam entrar em comunhão com o Pai, em linguagem

bastante figurada, apocalíptica, escatológica, típica da igreja primitiva.

A chegada desse reino divino, que já se fazia parcialmente

presente através dos fenômenos de curas, da boa nova, da esperança que

inundava a mente de todos os despossuídos que cruzavam os caminhos

do messias galileu, era esperada para logo; muito pouco tempo separava

as palavras de Jesus e a concretização do ideal divino. Contudo, não

podemos esquecer que o tempo de Deus não é o mesmo nosso. Quanto

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mais sutilizado é o plano espiritual, mais o tempo rende, ao mesmo

tempo em que ele fui muito rapidamente.

Para os espíritos angelicais que acompanham Jesus, os 2000

anos que nos separam do calvário renderam o trabalho de 2.000.000 de

anos de nossa sociedade terrena, mas a sensação de sua passagem se dá

como se apenas 2 anos tivessem escoado. Por isso, as alusões temporais

devem ser sempre relativizadas na bíblia e não podemos esquecer que

nossa evolução é lenta e 2000 anos representam uma piscada de olhos

em nosso comportamento pessoal, o que ajuda a explicar a urgência que

Jesus transmitia quando exortava a população a modificar seu

comportamento. Para auxiliar essa transformação, veja todos como

irmãos e isso, como dissemos (EGJJr e SCJr) para nossa irmã Inalda, da

Fundação Adolpho Fritz, Teresina-PI, já representaria um enorme

progresso.

Várias passagens bíblicas, como Marcos 14:25 sugerem essa

urgência, onde Jesus coloca que "Em verdade vos digo que jamais

beberei do fruto da videira, até aquele dia em que hei de beber, novo,

no reino de Deus". Essa referência temporal está presente em todas as

narrativas do Novo Testamento, incluindo-se aí as cartas paulinas.

Muitos elementos da vida da igreja primitiva nos fazem supor que a

chegada do fim daquela era estava sendo esperada para os anos

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seguintes à crucificação, como a divisão comunal dos bens e recursos

na igreja primeva. Hoje acreditamos que as palavras de Jesus, quanto ao

aspecto temporal, devem ser entendidas em um horizonte mais amplo e

espiritualizado e nenhuma dessas expressões temporais se originou das

palavras de Jesus e sim da igreja primitiva, desejosa do retorno do

mestre amado.

A urgência, que carregava a necessidade de mudança íntima,

também nos traz a impressão de que a humanidade constituía um grupo

recalcitrante de indivíduos avessos a mudar hábitos e posturas;

estávamos atrasados em relação ao que deveríamos estar e ainda nos

encontramos com o rosto colado ao solo, no lodo moral que criamos

para nós mesmos ao longo de milhares de anos de escravidão,

destruição ambiental e violência desmedida. Embora nossa espécie

tenha passado por grandes transformações e imprimido uma

modificação bastante significativa do panorama mundial, pelo menos

no que diz respeito ao conceito hoje generalizado de que constituímos

uma grande família, ainda vemos o outro como alguém com quem

devemos ter cuidado e que, se possível, deve permanecer como "outro",

para não trazer suas misérias pessoais para dentro de nossos quase

sagrados lares. A fome e a miséria material e espiritual são aceitáveis,

desde que não apareçam na televisão ou atrapalhem a vida geral nas

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ruas. Como a Dra Inalda coloca: “Mudamos muito, mas muito

mesmo.......muito pouco”, pelo menos no âmbito do nosso padrão de

pensamento.

Esse panorama moral, horrível no presente e ainda mais

tenebroso e carregado na época de Jesus, fazia com que o mestre galileu

viesse a desejar a mais acelerada modificação íntima nos homens de seu

tempo; a adoção de uma postura mais universalista, onde a fome do

próximo também seria nossa, da mesma forma que a alegria que o

atingisse nos contagiaria, em um círculo de reações que elevaria a

condição da psicosfera do próprio planeta.

Para tanto, era indispensável para que os filhos do Pai se

reconhecessem como irmãos e, a partir daí, viessem a entender o

relacionamento com o Altíssimo. Um belo exemplo de revelação

progressiva, passo a passo, onde os conceitos seriam aprimorados à

medida em que fizessem parte de nosso cotidiano, como o próprio

Kardec postulou.

As provas mais cabais da determinação de Jesus de reconduzir

todas as ovelhas de Israel aos cuidados do Pai Santíssimo residem no

carinho especial que ele dedicava para os proscritos da fé, como os

cobradores de impostos, que tiravam do povo pobre e passavam ao

poder de ocupação romano, as pecadoras e pecadores, impuros e

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pessoas simples do povo. Essas pessoas não eram normalmente

contempladas pelos demais movimentos mais elitizados e constituíam o

rebanho mais importante de Jesus, o qual não impedia a entrada do rico

ou do poderoso nos céus, mas todos que eram chamados ao reino de

Deus deviam primar pela reforma íntima, de forma que a riqueza em si

mesma não era considerada boa ou má, mas o uso que dela fazia seu

possuidor poderia originar obras do bem ou do mal, sempre dentro do

livre arbítrio e da máxima através do qual “a cada um será dado

segundo suas obras”.

Nada mais belo do que a visão de que o retorno do pecador à

seara do Senhor aceleraria a redenção do mundo, como a volta de um

filho pródigo. Trazer o sofredor e o pecador para a casa de Deus era a

mais sublime demonstração de que o reino de Deus estava no meio dos

homens e era a mensagem mais marcante de Jesus (Marcos 2:13-17;

Lucas 15:1-32), uma vez que os sadios, que são raros entre nós, não

precisam do médico.

A despeito de Jesus proclamar o chamamento de nosso Deus

infinitamente bom, ele também deixava claro que o Pai era

infinitamente justo. No reencontro do indivíduo que conseguira mudar

sua maneira íntima de agir e pensar com Deus, haveria um banquete

celestial, em linguagem figurada, ao lado dos patriarcas de Israel,

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representados por Abraão, Isaac e Jacó, enquanto para aqueles que

ficassem ao largo dessa comunhão, teríamos dor e ranger de dentes

(Mateus 8:11-12; Lucas 13:28-29). A mensagem de estímulo à

renovação íntima é muito poderosa nessa passagem, evidenciando, com

a presença dos patriarcas, que a morte não existia de fato e que o júbilo

de deixar para trás as dores e dificuldades do mundo vinha com a auto-

elevação e a adesão ao bem e à mensagem de luz que Deus enviava aos

seus, enquanto que a dor da exclusão seria significativa aos demais e

iria gerar um mar de dores purgatoriais, seguindo a filosofia de que as

luzes e as trevas nascem em nós mesmos. Como Chico Xavier sempre

colocou, o umbral começa dentro de nós mesmos.

Essa consideração está plenamente de acordo com os conceitos

espíritas, de que os pensamentos e atos de um indivíduo criam as

condições do ambiente que o cerca, de forma que nos tornamos refém

das nossas imperfeições, as quais escravizam a nossa consciência,

dando início aos remorsos e dramas purgatoriais, conduzindo-nos aos

labirintos dos dramas umbralinos. Apenas quando o desencarnado está

propenso a modificações que lhe são facultadas é que o ciclo de

padecimentos dará origem a uma nova fase na sua existência.

Obviamente não se esquece da máxima de que a cada um é dado

segundo suas obras e que as cobranças são maiores quanto maiores

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forem as possibilidades da pessoa envolvida, o que dá um grande

destaque ao papel exercido pela nossa própria consciência no processo.

Nas passagens bíblicas citadas acima, Jesus sugere que os

gentios estarão sentados junto com os patriarcas do povo judeu no final

dos tempos, mostrando uma versão universalista da mensagem cristã,

enquanto muitos judeus estariam do lado de fora do banquete celestial.

Essas palavras nos fazem questionar se Jesus via alguma distinção entre

o público judeu, palestino ou da diáspora, e o público gentio. Pode-se

dizer com segurança que a grande maioria das passagens em que Jesus é

visto interagindo com não-judeus não constitui evento histórico, mas

criação da igreja para justificar a disseminação da fé aos gentios; ele

veio para reunir os filhos e filhas da casa de Israel e, só depois, espalhar

a pregação para o público pagão. Possivelmente essa postura deriva do

fato de que a mensagem de Jesus não era compreensível fora do

universo do monoteísmo judeu e apenas quando alguns judeus de língua

grega ou com domínio de grego se converteram ao cristianismo

nascente, como Paulo, é que passaram a existir intérpretes eficientes

capazes de levar a palavra divina aos demais povos.

Como muitos aspectos da vida do mestre, essa questão desafia o

sentido lógico e o leigo rapidamente falaria que "Jesus falou para o

mundo e mandou seus discípulos para o mundo todo". Entretanto, isso

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não condiz com a realidade. Jesus pregou para os judeus, somente para

eles, posto que a diferença cultural e a realidade do mundo greco-

romano eram impeditivas para um judeu galileu. Não podemos nos

esquecer que as pessoas falavam de lendas da mitologia, como Perseu e

Hércules, como se fossem histórias de criaturas reais, que haviam

habitado o mundo algum dia.

Contudo, à medida que a boa nova e o conhecimento do Deus

único se disseminava além das fronteiras culturais do judaísmo, os

gentios seriam tocados pela palavra divina e passariam a ter direito de

se sentar ao lado do povo escolhido no banquete de confraternização.

Esse ponto de vista é reforçado pelo fato de que restam poucas dúvidas

de que a maioria das raras citações bíblicas em que Jesus é visto

curando ou falando com não judeus é fruto das atividades redacionais

das diferentes igrejas cristãs, que se erguiam nas áreas de língua grega

no Mediterrâneo oriental; esses passagens, em sua grande maioria, não

ocorreram de fato na vida do mestre. Por que foram inventadas pela

igreja embrionária? Pensava-se que, mostrando o mestre interagindo

com não-judeus, atribuía-se maior legitimidade ao cristianismo greco-

romano, que foi se tornando mais importante à medida em que os

judeus cristãos, palestinos em geral, tiveram sua participação na

comunidade cristã cada vez mais reduzida em função do grande número

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de conversões de não judeus, bem como com a destruição da vida

judaica por ocasião da primeira grande revolta contra Roma, onde quase

um milhão de judeus pereceram, muitos dos quais judeus cristãos.

Para Jesus, o tempo era relevante e sua curta passagem terrena

teria de ser proveitosa para a humanidade e apenas os judeus reuniam as

mínimas condições para entender o plano divino destinado às

populações espalhadas pelo mundo. Porém, á medida em que essa

mensagem se disseminasse, nos últimos dias antes do final dos tempos,

junto ao público gentio, Deus não faria imperar a primazia do povo de

Israel e todos os que tivessem se preparado seriam conduzidos às

dádivas da misericórdia divina e à bem-aventurança, posto que o Pai é

único. Sabemos que essas palavras parecem saídas de um texto de igreja

mais literalista, mas essa era a linguagem dos séculos I d. C. e II d. C. e

temos de procurar entender sua mensagem.

E as bem aventuranças e as portas do Reino de Deus?

No sermão da montanha, Jesus vendo-se diante de um público

bastante significativo teria dito:

"Bem-aventurados os humildes (pobres) de espírito, porque

deles é o reino dos céus."

"Bem-aventurados os que choram porque serão consolados."

"Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra."

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"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque

serão fartos."

"Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão a

misericórdia."

"Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus."

"Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados de

filhos de Deus."

"Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque

deles é o reino dos céus."

"Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos

injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal contra

vós."

Essas bem-aventuranças apresentam dois pontos principais:

a) preparam as comunidades cristãs iniciais para possíveis

retaliações do poder temporal, romano, contra elas, bem

como de autoridades judaicas tradicionais, como os

sacerdotes do Templo de Jerusalém;

b) também mostram, com todas as letras possíveis, as enormes

diferenças que os mansos de coração e justos encontrarão no

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Reino de Deus, reforçando a necessidade de adotarmos uma

vida plena de caridade e humildade.

Existem evidências, nessas passagens, de que traços redacionais

da igreja primitiva foram inseridos. Essas igrejas cristãs estavam sendo

convidadas a se retirar das sinagogas, por volta das décadas de 70-90 d.

C. e criaram algumas dessas bem-aventuranças, principalmente quando

advertem contra as calúnias e as injustiças cometidas contra as

comunidades cristãs, mas o cerne do texto vem diretamente de Jesus,

particularmente aquelas linhas que lançam luzes na caracterização dos

escolhidos do Deus Altíssimo.

Alguns dos mais sectários grupos dentro do judaísmo de então,

os qumranmitas, se autodenominavam "os pobres", como também o

faziam os cristãos ebionitas, de onde deriva o seu nome. Por séculos,

essa proeminência dada aos humildes e aos pobres fez com que a

riqueza fosse demonizada, ao mesmo tempo em que o clero cristão

passou a acumular verdadeiras fortunas terrenas, distanciando-se das

máximas pregadas pelo messias de Nazaré. Contudo, não podemos

acusar apenas o clero romano, posto que a venda de indulgências e

perdões atingiu a todas as denominações cristãs em algum momento da

sua história, com nomes diferentes, gerando a igreja da prosperidade,

ainda muito viva entre nós.

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Também podemos entender que, partindo-se do princípio de que

os semelhantes se atraem, a permissão para entrar no reino de Deus é

universal, mas apenas os espíritos, encarnados ou não, que

apresentarem as características descritas nas bem-aventuranças irão

perceber a presença de Deus e receberão a dádiva da consciência plena,

limpa, condição indispensável para se manter nos planos espirituais

mais elevados. Quem procura Deus no espaço sideral nunca irá

encontra-lo, uma vez que Ele habita em cada um de nós.

O reino de Deus na Terra, em suas variadas descrições por

Jesus, reflete de forma bastante precisa e satisfatória a transformação da

Terra em um orbe de regeneração, deixando a categoria de expiação e

provas. O livro de Isaías e a resposta de Jesus à pergunta do Batista

sobre se ele seria o "que está para vir" (Mateus 11:2-6) dão uma idéia

desse reino, onde as doenças são curadas, o espírito se liberta da morte,

que passa a ser vista como uma mudança de fase e não algo absoluto,

definitivo. A tentação das forças do mal, simbolizadas pelo dragão, tão

presente no livro do Apocalipse (Apocalipse 12:3; 12:9; 12:13) e na

literatura espírita moderna (ver os brilhantes textos de Wanderley

Oliveira e Robson Pinheiro, além da tão consagrada obra de André

Luiz, pelas mãos do saudoso Chico Xavier) ainda se fariam sentir, mas

principalmente em função das nossas próprias limitações. Nesse mundo,

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Jesus: homem e espírito

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a grande maioria das entidades que se afinam com o mal instituído

serão transferidas para outros orbes do universo, em condições

vibratórias que satisfaçam a lei de afinidades e permitem a esses nossos

irmãos, talvez nós mesmos, reiniciar a caminhada a caminho da luz

divina, em alusão ao passado do nosso mundo como descrito pelo nosso

caro amigo Emmanuel (“A caminho da Luz”, psicografado por Chico

Xavier).

A importância da expiação do mal, que penetrava a tudo e todos,

no planeta, é enorme. Indubitavelmente a maior extensão dos

fenômenos mediúnicos descritos na Bíblia, envolvendo o messias de

Nazaré, se refere a casos de desobsessões que demandaram

intervenções suas. Assim, é de se esperar que uma nova humanidade

gere para si um ambiente mais saneado e adequado aos propósitos do

Pai Eterno, configurando as modificações que o próprio espiritismo

vem apregoando em associação com as demais igrejas cristãs e mesmo

não cristãs. Como todas as mudanças de posição, essa transformação

seria acompanhada de dores e destruição, criando o caminho para novos

valores e reconstrução.

Para quando Jesus e os primeiros cristãos esperavam a

concretização da chegada plena do Reino de Deus e o julgamento dos

homens, com a separação do joio e do trigo?

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Existem diversas passagens no evangelhos que sugerem que a

chegada do Reino de Deus, em sua plenitude, era esperada com muita

ansiedade e seria iminente, deixando-se bastante claro que expressões

capazes de traduzir um tempo determinado, preciso, sempre foram

evitadas, a ponto de Jesus ter afirmado, com ênfase, que apenas o

Senhor Altíssimo era conhecedor do exato momento em que o

fenômeno se daria. Isso se deve ao fato de que Jesus tinha

conhecimento de como funcionava a mentalidade da população

sofredora que o seguia (em diversos planos da vida) e o peso da

opressão com os contornos da ocupação militar ou nas mãos de

tiranetes fantoches.

Entre os mais pobres e marginalizados, o estabelecimento de

prazos, que podem se estender por séculos e milênios, motivaria uma

atitude de quase desleixo para com a própria vida pessoal, em vista das

recompensas vindouras; uma vez que papel do mestre era exatamente o

oposto, fazer com que as pessoas se sentissem amparadas na profunda

modificação que teriam de imprimir no seu "eu" espiritual, eterno, para

que pudessem atingir outros planos de vida e consciência, necessários

na extensa caminhada em direção ao Pai, os prazos seriam um

contrassenso. Essa forma de pensar e agir visava evitar o

comportamento típico da nossa espécie e temos visto muitos exemplos

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até nos dias de hoje, onde um líder carismático e messiânico propõe

uma data para o “julgamento final” e as pessoas abandonam o seu modo

de vida e se entregam a cantorias que apenas as entorpecem, deixando o

mundo e as infinitas atividades que nos preparariam para o advento de

um novo homem, paradas.

Contudo, não se pode deixar de considerar que acreditava-se em

uma vinda próxima do Pai. Pode-se ver isso em Mateus 10:23

("Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra;

porque em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades

de Israel, até que venha o Filho do Homem"), Marcos 13, 30 ("Em

verdade vos digo que não passará essa geração sem que tudo isso

aconteça"); 9:1 ("....dos que aqui se encontram, alguns há que, de

maneira alguma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com

poder o reino de Deus); Apocalipse 22:20 ("Certamente venho sem

demora. Amém! Vem Senhor Jesus"), mas esses textos provém da igreja

primitiva e não de Jesus, de forma que tinham o objetivo de manter o

espírito de coesão do grupo e de estimular uma atitude proativa frente à

crescente oposição das autoridades romanas e judaicas, no fim do

século I d. C.

Essa mesma igreja ainda esperava tanto a segunda vinda de

Jesus e do reino de Deus que se perguntavam o que ocorreria com

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aqueles que estavam idosos, uma vez que esperavam, pela sua

simplicidade e desconhecimento do mundo espiritual, que seus corpos

fossem revitalizados com a chegada do reino (1Tessalonicenses 4:15-

17; 1Coríntios 15:51-53). Pena que as pessoas da época não tinham

condições para atentar que as palavras de Paulo ("Porque é preciso que

este corpo incorruptível se revista da incorruptibilidade, e que o corpo

mortal se revista da imortalidade") faziam clara alusão ao espírito e

suas propriedades básicas, como descrito 1800 anos depois na obra de

Kardec.

Foi graças a essas expressões que a igreja manteve alguma união

nas décadas que se seguiram à crucificação, quando vários discípulos de

Jesus já haviam passado para o outro lado do véu e o reino de Deus

ainda não havia chegado em sua plenitude, destinando-se essas palavras

a atuar como um lenitivo para o vale de sofrimento e dor que constituía

a base da vida no mundo do século II d. C, principalmente para um

judeu cristão, que estava sendo rejeitado pelo judaísmo corrente e pelo

cristianismo gentio, que logo transformaria Jesus na figura do Deus

Filho, criando a Trindade Divina, o que seria inconcebível para um

judeu praticante, como o próprio Jesus, Tiago, Pedro, João, Judas, filho

de José e irmão de Jesus, além dos demais discípulos e apóstolos

judeus.

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Algo muito semelhante acontece com os cristãos modernos que,

ao desencarnar, esperam encontrar Jesus e Deus de braços abertos,

literalmente, esperando por eles. A enorme frustração quando não

podem volitar, na maioria dos casos, claro, quando sentem sede e fome,

frio e dor, bem como a angustia do tempo perdido sem trabalhos

dignificantes, impele o irmão a solicitar uma nova oportunidade de vida

no plano mais físico. Todas as vezes que desencarnamos, passamos por

uma análise de currículo, uma prévia desse juízo final e por isso

devemos parar de perder tempo pensando no que fomos no passado e

aproveitar tudo isso para determinar o que queremos ser no futuro.

Algumas expressões demonstram que o próprio Jesus não podia

e não queria falar com exatidão quando a transição planetária se daria,

descrevendo apenas as condições domundo na época do evento

esperado, como em Marcos 13:9-13, com os cristãos sendo delatados,

presos, açoitados e traídos pelas autoridades. Sabemos hoje que esse

texto também provém da igreja cristã após a revolta judaica, onde as

autoridades romanas e o povo comum entraram em choque e mais de

30% da população morreram e outro grupo bastante significativo foi

escravizado, com funestas conseqüências para o judaísmo, mudando a

cara do cristianismo nascente. Nesse texto, entretanto, o retorno do

mestre à frente do reino de Deus somente se daria quando a mensagem

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de esperança do messias de Nazaré tivesse sido pregada a todas as

nações do mundo, o que seguramente não havia ocorrido no século II d.

C., o que é absolutamente condizente com a maravilhosa fala de Jesus,

quando coloca que "Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém

sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai. Estai de

sobreaviso, vigiai [e orai]; porque não sabes quando será o tempo".

Embora dotado de sublime evolução espiritual e de faculdades

mediúnicas impensáveis para nossos padrões atuais, o que levou seus

discípulos a divinizá-lo, Jesus sabia da importância do livre arbítrio e

essa peculiaridade incidia profundamente na Lei de Ação e Reação,

segundo a qual colhemos o que plantamos e nossas atitudes para com as

pessoas e para com o mundo hoje irão ditar como seremos tratados nos

múltiplos planos vibracionais que constituem o orbe terrestre. Dessa

forma, o tempo, ou seja o “quando”, seria determinado pela capacidade

da humanidade em livrar-se de suas mazelas e imperfeições grosseiras,

que fazem com que a psicosfera planetária se comporte de forma tão

densa e carregada, típica de um mundo de expiações e provas dolorosas.

Mas algo pode ser dito: o tempo se escoava rapidamente e pouco a

pouco a sociedade teria de encarar o seu destino através de eventos

apocalípticos, como ocorreu ao longo de todo o século XX e se mantém

enquanto essas linhas são redigidas. A própria intensidade do fenômeno

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estaria condicionada ao trabalho de expiação que está em curso há

milênios.

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8 A Mediunidade e o Messias de Nazaré

“...Senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada.

Dizei uma só palavra e serei curado...”

(Mateus 8, 8)

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Ao contrário de seu mestre, João, o Batista, Jesus pontilhou o

seu ministério terreno com a realização de notáveis fenômenos

mediúnicos, que, por falta de compreensão maior por parte da

população, acabaram sendo considerados como eventos que rompiam a

lei de Deus e verdadeiros milagres realizados em prol de pessoas que,

naquele momento, ali se colocavam para recebê-los. Contudo, tudo o

que Jesus fez em vida está de pleno acordo com a lei de ação e reação,

tendo sido planejado com grande antecedência. Diversos fenômenos de

materialização, cura, vidência, audiência e, principalmente, desobsessão

(exorcismos) pontilharam o ministério público do messias de Nazaré.

Ele era um médium pleno, que, em função do seu domínio da

física do processo mediúnico, conseguia se comunicar com os diversos

planos da vida com a mesma facilidade com que falava aos seus

seguidores mais próximos, comandando, com a mente, a própria

estrutura do cosmo ao seu redor. A projeção de sua consciência fazia

com que Jesus entrasse em sintonia com outros espíritos crísticos

presentes em outros pontos do universo, de uma forma que as leis da

física não conseguem supor ou entender. A própria palavra

mediunidade precisaria ser repensada para incluir os diversos dons que

encontravam em Jesus sua máxima expressão.

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8.1 Desobessões

Ao contrário dos pregadores da antiguidade, o Cristo utilizava o

"exorcismo", palavra aqui empregada apenas como referência ao

sentido que tinha no século I d. C., como uma aula e além de expulsar e

doutrinar o espírito obsessor, acabava exemplificando as relações entre

os diversos planos da vida. Embora os termos empregados na bíblia

indiquem a palavra exorcismo para descrever a atividade de doutrinação

de Jesus frente aos "demônios" que atormentavam a vida de diversas

pessoas, somos da opinião de que deveríamos utilizar o termo

"desobsessão", em função de que não aceitamos o conceito clássico de

"demônios", seres infinitamente maus e incapazes de seguir para o

caminho do bem.

Desde a civilização suméria e acadiana existem ritos de

exorcismo, registrados em todas as línguas da antiguidade. Esses

procedimentos eram muito comuns na Palestina inter-testamental e um

surto de obsessões parecia assolar o mundo de Jesus nessa época.

Outros exemplos de exorcismos remontam a Salomão e a literatura de

Qumran, onde diversos manuscritos do Mar Morto falam desses

fenômenos. Além disso, o próprio Jesus enviava seus discípulos para

exorcizar (Marcos 6:7; 9:38-40; Mateus 10:1-7; Lucas 9:1) e Paulo

também praticava a desobsessão e doutrinação de entidades umbralinas

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(Atos dos Apóstolos 16:16-18; 19:12). Isoladamente constituem a maior

categoria de "fenômenos mediúnicos" ou "milagres" no Novo

Testamento.

No procedimento, Jesus não invocava Deus ou tinha palavras

prontas e atitudes estereotipadas, diferindo dos antigos magos, que,

proferindo nomes de deuses e termos incompreensíveis, procuravam

expulsar as "forças do mal". No caso do Cristo, sua superioridade moral

e espiritual eram suficientes para provocar a renúncia dos obsessores e a

cura das pessoas, as quais tinham de se comprometer com uma

mudança íntima se desejassem de fato impedir o retorno das entidades

que as atormentavam. Além disso, Jesus tinha a excepcional capacidade

de associar o papel de médium doutrinador (ou exorcista), mestre

sapiencial, profeta, médium de efeitos físicos e médium de cura. No

todo, ele era único.

Seu domínio sobre as entidades das trevas era tão significativo

que alguns de seus inimigos alegavam que ele expulsava os demônios

pela força dos próprios demônios, em um acordo particular, o que é um

absurdo. A defesa do mestre utiliza as passagens bíblicas nas quais os

magos do faraó, não conseguindo reproduzir as pragas lançadas por

Deus contra o povo do Egito, acabam por aceitar que o poder de Moisés

deriva de Deus também. Como ninguém conseguia reproduzir o poder

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pessoal de Jesus, deveriam aceitar a origem divina do seu poder de

submeter o mal e expulsá-lo.

Para Jesus, os qumranmitas, Paulo e João, segundo J. P. Meier,

os seres humanos representavam o campo de batalha verdadeiro entre o

bem e o mal. Assim, se após um exorcismo o indivíduo voluntariamente

se recusasse a seguir o caminho do bem, acabava abrindo as portas para

o outro lado, o que mostra uma profunda semelhança com a visão

espírita, na qual os semelhantes se atraem. Não havia real neutralidade e

isso Jesus nos disse claramente quando comentou que "quem não é por

mim é contra mim". Assim, o exorcismo significava também uma

renúncia para a vida pregressa do indivíduo e uma transferência da

pessoa para a influência divina, mas essa transferência respeita o livre

arbítrio, como tantos textos espíritas também advogam no presente.

Outra peculiaridade é que os discípulos começaram a praticar o

exorcismo em nome de Jesus (Atos dos Apóstolos 16:18; 19:13), algo

que reflete todo o valor que seus seguidores lhe atribuíam. Outros

pregadores independentes também passaram a fazê-lo, mesmo sem

terem conhecido o mestre galileu.

Exemplos de encontros de desobsessão ("exorcismos") e a

probabilidade de terem de fato acontecido na vida de Jesus (segundo J.

P. Meier):

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- o endemoninhado da sinagoga de Cafarnaum (Marcos 1:23-

28; Lucas 4:33-37): o demônio conhece a verdadeira identidade de

Jesus e é repreendido. Desobsessão provável;

- endemoninhado geraseno (Marcos 5:1-20): esse antigo

fenômeno de desobsessão deve ter de fato ocorrido, mas é difícil

separar o que há de acréscimo teológico na descrição. A história real foi

tão modificada por motivos teológicos que o texto se tornou de difícil

entendimento.

Primeiro problema: a cidade é pagã (Gerasa), em território

pagão, sendo o único exemplo real de exorcismo em cidade pagã. A

leitura do texto sugere que os versículos 11 a 13, onde os demônios

"entram" nos porcos e se atiram no mar da Galiléia, são acréscimos

tardios e não fazem parte da tradição original. Isso é uma clara

impossibilidade pelo pouco que sabemos da doutrina espírita, onde o

espírito não perde os atributos adquiridos, não podendo ir “habitar

porcos”, o que seria exemplo da metempsicose, combatida no século

XIX entre os espíritas.

As descrições originais desse exorcismo são mais adequadas,

uma vez que localiza o fenômeno na terra dos gerasenos, gadarenos,

gergesenos, gergesinos ou gersistenos, sem que se saiba onde isso fica.

Além desse aspecto, Gerasa fica a 56 km do mar e a descrição de porcos

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se atirando ao mar perde completamente a coerência. Outras cidades da

Decápolis, como Gadara e Gergesa ficam junto das margens do lago e

seriam palcos mais prováveis para esse fenômeno. Possivelmente o

diálogo entre Jesus e os demônios que se auto-intitulavam "Legião" é de

autoria da igreja primitiva, mas mostram que eventos dessa natureza

ocorreram no seu ministério.

Dentro dos pontos teológicos quentes desse milagre, destaca-se

que os demônios conheciam a verdadeira identidade do Filho do

Homem, a qual não deveria vir à tona antes do momento crucial, na

cruz. Além disso, os porcos simbolizavam animais impuros e tal alusão

pode significar que o mal fora atirado fora e habitado na impureza das

criaturas que cercavam o novo homem.

-o menino possuído (Marcos 9:14-29): descrição extensa e

desconexa. Os discípulos não conseguem fazer o exorcismo. O

intermediário entre Jesus e o “demônio” não é o possuído, mas sim o

pai do menino. Jesus identifica, na fé do crente, a capacidade de realizar

o exorcismo, sendo que o endemoninhado possui toda a sintomatologia

dos portadores de epilepsia. Os semitismos presentes na fala do pai do

menino e a ausência de títulos para Jesus dão suporte à autenticidade

dessa passagem, caracterizando um evento provavelmente histórico;

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- o endemoninhado mudo (e cego?) (Mateus, 12:22-23; Lucas

11:14): é a única narrativa de um exorcismo oriundo da fonte Q

(Quelle). Provavelmente a versão de Lucas é mais próxima da original;

- o endemoninhado mudo (Mateus 9:32-33): possivelmente é

uma história criada por Mateus para suas apresentações de milagres em

blocos de trincas, criando uma imagem semelhante à da discussão com

Belzebu no capítulo 12;

- exorcismo de Maria de Magdala (Lucas 8:2-3): Lucas relata

que haviam sido retirados sete demônios de Maria de Magdala. O

critério do constrangimento fala em favor da autenticidade do

exorcismo de Maria, uma vez que ela foi a primeira a comprovar que o

corpo de Jesus não estava no sepulcro e se mostrou bastante importante

para a igreja primitiva, após a crucificação do mestre. Reparem que

alguns ex-obsediados se tornaram seguidores do mestre. Nesse ponto,

vemos semelhanças com os centros espíritas modernos, onde antigos

obsessores se convertem em amigos da casa espírita a muitos

obsediados passam a trabalhar rotineiramente no atendimento fraterno;

- o exorcismo da filha da mulher siro-fenícia (Marcos 7:24-30;

Mateus 15,21-28): se assemelha ao caso do endemoninhado geraseno,

posto que se trata de uma mulher gentia, em território gentio. Existe a

magia de um judeu curar o gentio, de alto conteúdo teológico. A

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linguagem áspera de Jesus, até certo ponto grosseira, bem como a

cristologia do fenômeno são tão patentes que a história é claramente

uma adição da igreja primitiva e não tem relação com o messias de

Nazaré. Cabe ressaltar que os diferentes aspectos dessa história se

destacam do texto, mostrando um “Jesus” muito diferente daquele que

emerge das demais tradições de exorcismos.

De uma perspectiva bastante conhecida pela família espírita,

Jesus dispunha, a seu favor, de toda a autoridade que sua elevação

espiritual conferia. Não precisava estabelecer amplos diálogos ou

discussões com as entidades obsessoras, que normalmente se

identificavam com o nome de demônios ou de forma semelhante aos

relatos de demônio da antiguidade.

A aproximação de Jesus já provocava uma comoção ao redor

dos indivíduos sob jugo das trevas; seu amor incondicional pelo Pai e

pelos seus irmãos terrenos fazia com que as entidades umbralinas se

afastassem em cólera ou reconhecem a própria condição lastimável em

que se encontravam e vertiam copioso pranto, sendo encaminhadas para

recuperação. Nos evangelhos, ficaram apenas registrados os casos mais

emblemáticos, que não encontraram a solução nas mãos dos apóstolos

ou que apresentavam peculiaridades teologicamente importantes.

Lembrem-se que o messias de Nazaré utilizava essas desobsessões para

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doutrinar os encarnados também, mostrando que a retirada do

"demônio" seria temporária se não fosse seguida por uma modificação

significativa do ânimo e postura de vida da propalada vítima. Ao lado

do mestre havia extensa gama de espíritos de condição angelical que

também atuavam em tais circunstâncias, o que ajuda a explicar porque

esses casos de desobsessão eram prontamente resolvidos.

Hoje sabemos que a relação dos encarnados com os

desencarnados tomou boa parte do ministério de Jesus, mesmo que

inicialmente não tivéssemos consciência disso. Quando o mestre nos

solicitava a calma e a humildade, pedindo para que os encolerizados e

pecadores viessem a perdoar seus inimigos, desfazendo o círculo

vicioso que a lei do olho por olho e dente por dente acabava gerando

(pena de talião, inserida no Código de Leis de Hamurábi, depois de

mais de 1800 anos sendo praticada de forma generalizada), ele queria

dar um basta a esse estado de coisas. Desarmadas as mãos, dávamos um

passo para desarmar os corações voltados contra nós mesmos. A

solução: vá e te reconcilia com teu inimigo; dê a outra face; amor a

Deus em primeiro lugar e ao próximo como a ti mesmo. São inúmeras

as citações pedindo o perdão, imortalizadas na própria oração do Pai

nosso, onde as palavras “dívidas” e “devedores” traduzem o que ainda

impera no relacionamento entre os humanos, encarnados ou não.

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8.2 Os fenômenos de curas

Embora saibamos que as doenças do espírito se manifestem no

corpo, de forma que os casos de obsessão com freqüência se convertem

em quadros de doenças no organismo físico, enfermidades

psicossomáticas também podem deixar marcas indeléveis no perispírito.

Entretanto, não incluímos as doutrinações de obsessores como

exemplos de procedimento de cura, embora no século I d. C. as doenças

do corpo eram consideradas como conseqüência de doenças do espírito

e, mais abertamente, da condição pecadora do homem, com muita

razão. Imagem semelhante hoje é professada por aqueles que acreditam

no efeito da lei de ação e reação nas entidades reencarnantes e

desencarnadas.

O poder de cura de Jesus não encontrou limites nem quando foi

colocado a serviço de seus "inimigos de momento". Em diversas

ocasiões de sua vida terrena ele é visto curando e pregando a mensagem

de Deus aos que se encontravam sem esperanças, pelo caminho. Essa

postura foi relatada por todos os evangelistas, embora segundo a

intenção de cada um.

Diversas foram as ocasiões em que Jesus, ainda menino, em

função do seu magnetismo peculiar, modificava o padrão das condições

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vibratórias do local em que se encontrava, alterando, por conseguinte,

as enfermidades de toda monta que se faziam presentes, afetando até

mesmo o processo cicatricial, o que era providencial em um mundo em

que antibióticos e a maioria dos anti-sépticos eram desconhecidos.

Entretanto, a espiritualidade orientava Jesus a não dar início a

atividades ostensivas de curas e fenômenos mediúnicos públicos até que

as condições previamente traçadas se fizessem presentes e estas curas

não foram registradas no cânone e poucos se lembravam delas quando o

jovem Jesus saiu de Nazaré, para seguir a João, o Batista.

Aqui trataremos das curas físico-espirituais tradicionais, tais

como as doenças infecciosas, a hanseníase (lepra) em particular,

distúrbios de movimento, limitações motoras e, por fim, dos casos de

alegada ressurreição dos mortos descritos no Novo Testamento.

Em muitos desse eventos, como na cura do paralítico em Marcos

2:1-12, o fenômeno é precedido ou sucedido pela expressão de "os

pecados foram perdoados". Deve-se salientar que na passagem citada

acima Jesus também consegue sentir os pensamentos dos escribas que

assistiram ao fenômeno, na reunião em Cafarnaum. Esses escribas

diziam que apenas Deus teria o poder de perdoar os pecados. O mestre

assume toda a responsabilidade pelo fenômeno de cura e o associa com

o perdão divino dos pecados do paralítico. Nesse caso, tendo

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restabelecido as suas contas com a lei de ação e reação, o paralítico

podia ser libertado de sua enfermidade e estava ali exatamente porque

assim havia sido detalhadamente planejado pelo Alto, cuja equipe

assessória estava sempre em comunhão profunda de pensamentos com

Jesus, transmitindo-lhe as informações que se apresentassem

necessárias nos fenômenos mediúnicos em questão.

Apesar do fenômeno das “dívidas pregressas” ou “carma

negativo” das pessoas que recebiam as curas, não se pode esquecer que

Jesus era possuidor de uma infinita capacidade de intercessão junto aos

poderes do Alto, permitindo assim que os resgates fossem rearranjados

de forma a permitir o alívio para os que sofriam. Uma vez que as

enfermidades eram encaradas como fruto dos problemas do homem

para com Deus, a cura, na prática, era interpretada como um perdão

explícito dos pecados do sofredor. Esse fenômeno de cura acima citado

ficou gravado nas mentes das pessoas que acompanhavam o mestre, não

só pela beleza plástica da cena, mas também pelas circunstâncias

especiais que levaram "o paralítico" para o centro das discussões sobre

o pecado e o papel do mestre de Nazaré.

Muitos estudiosos acreditam que uma outra versão dessa cura

tenha sido utilizada na redação da cura de um paralítico na piscina de

Bethesda, em Jerusalém, como narrado por João 5:1-9, sendo que, nesse

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Jesus: homem e espírito

349

evento, os judeus discutem se seria lícito realizá-lo no sábado, dia

sagrado. Posteriormente, Jesus encontra no Templo o enfermo curado e

pede que o mesmo não peque mais, para que algo pior não recaia sobre

o mesmo. Essa piscina era, até recentemente, desconhecida das

autoridades da arqueologia de Israel e o fenômeno narrado apresenta

todos os elementos descritos sobre o drama de expiação de débitos

passados e, acima de tudo, sobre a oposição a Jesus, que crescia entre as

camadas do topo da pirâmide social judaica.

Essa polêmica sobre trabalhar no sábado ainda é descrita na cura

da mão atrofiada de um homem (Marcos 3:1-6), em que Jesus utiliza-se

de sua autoridade moral para, ao curá-lo, questionar também o que seria

lícito de ser fazer no dia santo, concluindo que o bem deve ser praticado

sempre, independentemente do momento. Mais uma vez, ele determina,

com suas palavras, que a cura se faça e isso ocorre. A descrição simples

e coerente com a quase totalidade das curas relatadas pelos evangelistas

é tocante e corrobora para que acreditemos na historicidade do fato

narrado.

Semelhante, em termos de estrutura, destaca-se a cura da mulher

encurvada (Lucas 13:10-17), repetindo-se a crítica de Jesus à proibição

de curas ao sábado, bem como a oposição entre o bem, representado

pela cura e por aquele que a realizou, e a doença, serva do mal. Esses

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fenômenos de cura mostram muitos acréscimos de redação na bíblia,

mas a tradição que carregam mostra que faziam parte do universo das

pessoas que acreditavam em jesus e não são fantasias para tentar

converter gentios ou judeus. Crossan acredita que as descrições de curas

pela fé realizadas por Jesus foram sendo paulatinamente apagadas do

cânone porque os cristãos não conseguiam explicá-las, o que provocava

certo desconforto; apenas os casos mais conhecidos acabaram

recebendo uma posição nos evangelhos canônicos.

A cura de doenças à distância, como a lepra da filha do senador

romano Publius Lentulus Cornelius, como descrito no livro "Há 2000

anos", de autoria de Emmanuel e psicografado pelo médium Francisco

Candido Xavier, bem como a paralisia ou doença grave do filho do

centurião romano (Mateus, 8:5-13; Lucas 7:1-10) e do filho do oficial

real (João 4:46-54), fazia parte do universo mediúnico de Jesus e

evidencia as potencialidades que esse tipo de mediunidade possui “nas

mãos” de um espírito de grande envergadura moral e espiritual. Em

todos esses casos, o mestre não precisava sequer ter o contato visual

com a pessoa que vai receber a cura, ele parece apenas ponderar sobre a

situação e procede a realização do fenômeno.

Embora muitos estudiosos julguem que esses três procedimentos

descritos no cânone dizem respeito a um único caso real, que foi

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Jesus: homem e espírito

351

ganhando cores diferentes à medida em que a história se disseminava,

estamos inclinados a considerar que a descrição de João e a de

Mateus/Lucas dizem respeito a eventos diferentes, mas ligados entre si

pela grande capacidade de cura de Jesus, que, a julgar pelas mensagens

espíritas e descrições cristãs de variada afiliação, transcendia a tudo

conhecido até então, bem como pela sua forma simples de atuar, sem

mistérios ou passes de mágica.

Dentro dessa fenomenologia merece destaque o papel das curas

envolvendo cegos, como narrado em Marcos (8:22-26; 10:46-52).

Nesse evangelho, a cegueira física do homem encontra a cegueira

espiritual em paralelo e, a despeito da forma elaborada em que o

fenômeno de cura é narrado, incluindo-se o fato de Jesus ter utilizado de

procedimentos que eram comuns para médicos e mesmo mágicos do

mundo antigo, como o emprego de saliva na cura, corroboram para que

acreditemos em um fenômeno verdadeiro, mesclado com teologia da

igreja primitiva.

Deve-se salientar que a cura da cegueira em Betsaida ocorreu

em dois procedimentos diferentes, sendo que Jesus questiona se o

suplicante conseguia enxergar ao seu redor. Esse questionamento foge

da imagem que os defensores de Jesus como um Deus Filho fariam,

mostrando que sua origem reside em tradição muito antiga, antes da

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divinização do messias de Nazaré pelo público greco-romano e mesmo

palestino. Pode-se ver em todo o texto as marcas que a cegueira da

inferioridade espiritual humana traduz. A pior cegueira é aquela de

quem não quer ver.

A presença de outras histórias de curas de pessoas com

deficiência visual, como o cego de nascença em João 9:1-7, parecem ter

base histórica real e, nesse texto, Jesus utiliza de sua saliva para

preparar uma mistura com terra, de forma que o indivíduo a ser curado

se lavasse na piscina de Siloé. Nesse fato existe um velado

questionamento sobre a reencarnação, quando os apóstolos perguntam,

ao messias de Nazaré, se a condição de cegueira ostentada desde o

nascimento pelo personagem da história se devia a um pecado de seus

pais ou dele mesmo. Como a doença era congênita, somente faria

sentido a pergunta se alguns considerassem plausível o fenômeno das

reencarnações e o problema de débitos para com a lei divina delas

decorrente, uma vez que se o próprio indivíduo teria a doença de

nascença, seu pecado teria que ter ocorrido antes do nascimento, ou

seja, em uma encarnação anterior. Estudos mostram que, a despeito de

modificações redacionais que enalteciam o papel de Jesus com filho de

Deus, existe uma história verdadeira de cura sob o texto bíblico. A

piscina de Siloé também era palco de importantes atividades religiosas

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Jesus: homem e espírito

353

por ocasião da festa dos Tabernáculos, quando essa cura físico-

espiritual teria ocorrido.

Jesus ainda é visto curando a sogra de Pedro, que possuía febre e

estava acamada, possivelmente portadora de alguma doença infecciosa

(Marcos 1:29-31; Mateus 8:14-15; Lucas 4:38-39), uma mulher

portadora de hemorragia (Marcos 5:25-34; Mateus 9:20-22; Lucas 8:43-

48), possivelmente de natureza ginecológica, um surdo-gago (Marcos

7:31-37), um homem hidrópico (Lucas 14:1-6), que mais uma vez

origina uma discussão sobre cura no dia do sábado.

O episódio da mulher com hemorragia, que possivelmente

possuía uma enfermidade ginecológica que a impossibilitava de seguir

as regras de pureza ritual, bem como a cura surdo-gago, apresentam

nuances de magia, mas possivelmente esses apelos redacionais refletem

o universo de Marcos e não os procedimentos de cura realizados por

Jesus. No caso do surdo-gago, o autor ainda procura, citando regiões

habitadas por gentios, mostrar que a mensagem divina e as curas a elas

associadas poderiam estar à disposição de não-judeus. No caso do

surdo-gago, Jesus assume uma postura de oração ao Pai Eterno e aí

concede a cura ao enfermo.

Dentre as curas mais difundidas nas tradições populares merece

destaque, pelo seu teor e apelo poéticos, a cura dos leprosos, como

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descrito por Marcos (1:40-45), com suas variáveis nos evangelhos de

Mateus e Lucas, e a cura dos dez leprosos (Lucas 17:11-19).

Poucas doenças na antiguidade representavam melhor o estigma

do pecado do que a hanseníase (lepra). A forma lepromatosa dessa

enfermidade está associada à destruição das extremidades do corpo,

além do profundo comprometimento sistêmico. Nesses pacientes, a

destruição tecidual se avoluma de forma significativa, sem o tratamento

medicamentoso adequado, universalmente disponível em nosso tempo,

mas desconhecido no século I. d. C. Assim, entende-se a preocupação

descrita por Emmanuel no livro "Há 2000 anos", onde, na condição de

senador romano, apresentava uma filha pequena portadora dessa doença

infecciosa (no livro “As vidas de Chico Xavier”, o jornalista Marcel

Souto Maior afirma que essa menina, filha do referido senador, seria

uma encarnação anterior de Chico Xavier, mas não descreve como a

informação lhe fora passada). Contudo, a doença presentemente

denominada de hanseníase ou lepra pode não corresponder ao texto

grego dos evangelhos, que sugerem a existência de uma doença de pele

persistente e mutilante, mas não necessariamente hanseníase.

Deve-se também destacar que a discussão sobre a cura, presente

no evangelho de Lucas, provavelmente reflete a intenção do autor de

mostrar a universalidade da mensagem cristã, com os gentios e

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Jesus: homem e espírito

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samaritanos aceitando a mensagem do mestre de Nazaré enquanto

muitos judeus não o faziam. Sabemos que a ocorrência de afecções

cutâneas graves ou persistentes era e é bastante comum na Palestina,

principalmente na época de Jesus, e, em função do seu estigma, os

portadores eram mantidos à margem da vida social, de forma que o

número de casos de hanseníase e doenças cutâneas curadas por Jesus foi

significativamente maior do que o relatado pelo cânone, mas esses

procedimentos de cura ocorreram durante seus diversos deslocamentos

pelo norte da Palestina e/ou no caminho de Jerusalém, quando esses

portadores podiam ser observados fora das vilas e povoados e as curas

acabaram não sendo conhecidas do público que redigiu os textos

canônicos.

Existem, entretanto, algumas citações de curas que são oriundas

da igreja primitiva, sem forte vínculo com a história real de Jesus, como

a cura do ferimento de espada na orelha do servo do Sumo Sacerdote,

que havia sido decepada, conforme descrito em Lucas (22:49-51) e

Mateus (26:51-52). Uma análise mais acurada do texto, sugere que a

cura do servo seria criação dos evangelistas e não uma cura real. Nesse

ponto, os evangelistas procuraram mostrar que até na derradeira hora de

sua vida, quando os inimigos trabalhavam ativamente e para prender e

crucificar o messias, Jesus ainda pensava amorosamente nos seus

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oponentes como irmãos (e isso era único e bastante marcante na

personalidade do mestre).

8.3 Ressurreição dos mortos

De todos os fenômenos que seguem a vida de Jesus até o

calvário, a ressurreição de três pessoas diferentes constitui e o ponto

mais desconcertante, por diversos aspectos. Em primeiro lugar, essa

atitude, se confirmada, subverteria a ordem da estrutura das

comunidades e da vida em si. Como diz o ditado popular, "de certo

apenas a morte" e com a ressurreição dos mortos cria-se uma pedra

angular que precisa ser analisada cuidadosamente.

Os espíritos desencarnados que buscam a luz evangélica

possuem os mesmos mecanismos de pesquisa e estudo que nós,

encarnados, e são movidos pelas mesmas forças e desejos de verdade e

justiça. Temos que ter o cuidado de, encarnados e desencarnados,

admitir que estamos diante de uma condição na qual podemos apenas

dizer se o fenômeno de ressurreição dos mortos fazia parte das atitudes

que a população palestina do século I d. C. atribuía a Jesus e a forma

com que encaravam esse fenômeno. Obviamente que não temos

condições de julgar se um indivíduo que "morreu" no ano 29 d. C.

estava morto de fato ou sofria de catalepsia ou letargia, ou estava em

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Jesus: homem e espírito

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estado comatoso, de forma que temos que ter muito cuidado com essas

considerações. Se, para o homem moderno, essas histórias aparecem

risíveis, o mesmo não ocorria no século I d. C. e, decididamente, não

podemos rotular de tolos e ignorantes a todos que presenciaram os

referidos fenômenos narrados no cânone.

Outro aspecto que dificulta uma análise mais aprofundada desse

fenômeno reside no fato de que as histórias de ressurreição foram

escritas décadas após os eventos narrados, como, aliás, todo o cânone.

Contudo, se falamos da cura de um paciente cego temos uma boa noção

da descrição da sua condição, a qual pode ser mais sucinta. Nesse

ponto, o mesmo não ocorre com as ressurreições bíblicas, visto que

essas necessitam descrever no texto algo que, de fato ateste a condição

de "morto” do personagem, sendo nesse ponto que as controvérsias

esbarram. Não podemos esquecer que pacientes portadores de

condições como "coma profundo", catalepsia ou próximos da morte

física podem ter sido considerados clinicamente mortos sem o estarem

de fato, lembrando-se que, em função de aspectos religiosos, os corpos

eram precocemente recolhidos ao túmulo.

Uma vez que as histórias são remotas, como confiar na

descrição que é feita do fenômeno? Sobre isso discutiremos,

rapidamente, a seguir.

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Três histórias de ressurreição dos mortos estão diretamente

ligadas a Jesus:

- a ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5:21-43; Mateus

9:18-26; Lucas 8:40-56). A versão de Marcos é a forma mais original e

foi abreviada por Mateus e reestruturada por Lucas. Nesse caso, a

menina muito doente acaba "morrendo" e o pedido de cura feito por

Jairo se converte na necessidade de um fenômeno ainda maior, a

ressurreição da morta.

Alguns estudiosos enxergam uma história bastante diferente nas

entrelinhas do texto bíblico, onde Jesus cura uma enferma terminal, mas

ainda viva, daí a ênfase em afirmar que ela não estava morta, mas

"apenas dormia". Nesse caso teríamos uma história de cura que foi

convertida em outro fenômeno absolutamente radical, embora não

existam elementos suficientes para darmos essa interpretação como

segura e certa. O que mais chama a atenção é que, se essa

transformação ocorreu, ela se deu perto ou no período de vida de Jesus,

uma vez que a história apresenta notável arcabouço aramaico por trás

do texto grego presentemente encontrado nos evangelhos, remontando a

uma tradição bastante antiga;

- a ressurreição do filho da viúva de Naim (Lucas 7:11-17).

Nesse texto percebe-se uma característica bastante relevante nos

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fenômenos descritos como casos de ressurreição: Jesus é aceito pelos

mais humildes enquanto existe descrença entre os mais poderosos, os

quais apenas se curvam às evidências após a realização da cura-

fenômeno.

O texto de Lucas faz jus à teologia do evangelista, que considera

o mestre de Nazaré o verdadeiro senhor da vida e da morte, para o qual

uma palavra basta para levantar um defunto de seu esquife.

Aqui temos maiores dificuldades de simplesmente atribuir à uma

doença terminal a condição do morto, que se encontrava a caminho do

campo de paz. Acompanhado pelos seus, Jesus ordena-lhe que se

levante, no que o "ex-defunto" atende. Por outro lado, não descreve as

circunstancias da morte do jovem e também não elimina a possibilidade

de uma condição letárgica ou cataléptica.

- a ressurreição de Eleazar/Lázaro (João 11:1-46). Esse evento

é considerado, pelo evangelista, como o motivo principal que teria

levado à crucificação de Jesus, o que não corresponde à verdade, até

onde sabemos.

Nesse evangelho, a ressurreição de Lázaro, com algumas das

linhas mais belas de todo o cânone cristão, é o ponto alto do ministério

de Jesus e, por isso mesmo, considerado como o protótipo de discussão

entre os espíritas e os seguidores das demais religiões cristãs.

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Antes de discutirmos esse ponto, gostaríamos de deixar claro

que a revelação da verdade se faz apenas de acordo com o merecimento

e a compreensão daqueles que a buscam e não temos qualquer interesse

na polêmica inútil e estéril que, quase sempre, acompanha a discussão

da fenomenologia da ressurreição de Lázaro. O objetivo maior do

espiritismo é prover condições necessárias para a reforma íntima e,

nesse aspecto, não precisamos de crer em reencarnação ou qualquer

outro fenômeno, uma vez que a cada um será dado de acordo com suas

obras e não segundo suas crenças. Crer em algo e não praticar é falta

não apenas de inteligência, mas também de coerência. Muitos

seguidores de religiões literalistas estarão em planos mais elevados do

que o nosso por terem praticado o bem e a caridade, enquanto outros, de

ambos os lados da vida, continuarão em discussões inúteis sobre a

ressurreição dos mortos.

De todos os fenômenos denominados de "milagres" pelas igrejas

cristãs, a ressurreição de Lázaro possivelmente é o que apresenta maior

reformulação teológica dos acontecimentos, de tal forma que determinar

como era a história original é praticamente impossível, embora a quase

totalidade dos eruditos seja uniforme em concordar que o evangelista

não criou a história, como assevera Meier. Esse brilhante pesquisador

católico acredita que as passagens 11:2; 11:7-8; 11:9-10; 11:1-16 e

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11:33-38 e 11:40 são acréscimos dos evangelistas ligados ao

desenvolvimento do evangelho de João.

Na história original, retirando-se grande parte dos acréscimos

posteriores, Maria e não Marta tem proeminência no desenrolar da

trama. Marta é sempre uma carta na manga do evangelista, que a utiliza

para os discursos teológicos que o caracterizam, daí a necessidade dela

ter maior relevância na história. Nesse texto, Jesus afirma que Lázaro

dorme e, sendo questionado pelos discípulos sobre o sono de seu amigo,

o mestre de Nazaré declara que seria o sono da morte. Essa passagem

ambígua precisou ser "arrumada" através de acréscimos posteriores para

mostrar que Lázaro, ou melhor Eleazar, estava de fato morto. Assim,

discutir detalhes sobre o texto joanino é perda de tempo. O que se pode

falar é que algum evento bastante relevante foi considerado como um

exemplo de ressurreição dos mortos e assim foi sendo passado para as

gerações seguintes, onde a história foi ganhando os contornos típicos do

Quarto Evangelho.

A doutrina espírita, até onde o nosso Pai Misericordioso nos

permitiu ir, nesses 160 anos, vem mostrando a impossibilidade de

mudar a Lei divina, de forma que a morte do invólucro carnal

representaria evento irrevogável para a romagem do espírito. A

deterioração das estruturas celulares e a dissolução dos liames que

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mantinham os corpos espirituais ligados ao corpo caracterizariam

evento que, uma vez concretizado, não seria revertido. Tomamos todo o

cuidado na discussão acima em função das susceptibilidades pessoais e

pelo fato de que as reais potencialidades da lei divina ainda constituem

campo de estudos. Acredita-se que Lázaro tenha apresentado um quadro

cataléptico ou letárgico, do qual foi retirado em função do chamado de

Jesus e seu inigualável magnetismo, como a obra de Kardec evidencia.

Alguns comparam a ressurreição de Eleazar/Lázaro e demais

personagens descritos acima e a presumível ressurreição do messias de

Nazaré. Enquanto a primeira é vista como um evento transitório, no

qual o beneficiário voltaria provisoriamente à vida, a segunda, para os

irmãos que seguem igrejas mais literalistas, representa a vitória de Jesus

sobre a morte física, de forma que todos aqueles que nele crêem

também passarão por fenômeno semelhante, sendo que essa imagem

dominou o cristianismo nos tempos do apóstolo Paulo. Contudo, sob a

luz da doutrina espírita e da razão moderna, acredita-se que a

ressurreição de Jesus representaria um fenômeno de materialização

espiritual, enquanto que a vitória definitiva sobre a morte seria

representada pelo conhecimento que devemos nutrir de uma vida além

dessa vida, onde o caminhar torna-se mais ou menos áspero em função

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das nossas atitudes e livre-arbítrio. O espírito é imortal, mesmo que ele

próprio, quando encarnado, não acredite nisso.

Dessa forma, acreditamos com segurança que os casos de

ressurreição dos mortos são exemplos claros de cura de doenças ou

estados de quase morte nos quais uma grande força motriz teológica

acabou transformando em uma vitória contra a morte física. O principal

motivo que nos leva a crer nessa assertiva recai sobre a falta de sentido

prático nesse fenômeno, posto que morte está de acordo com lei divina

para seres imperfeitos como nós, que estamos nos primeiros passos da

escola da vida; revogá-la seria um contra-senso.

A mesma vitória sobre a morte poderia ser obtida acreditando-se

na continuidade da vida após a morte física, em uma corpo mais ou

menos liberto das paixões e animosidades de nossa esfera de atuação.

Devolver a vida apenas para mostrar um "poder divino" não está de

acordo com a imagem que o próprio mestre de Nazaré cultivou: a do

mensageiro da vontade divina e o farol que guiaria o espírito humano

em direção a novos padrões de comportamento e atitudes.

8.4 Vidência, Audiência e Presciência

O cânone está repleto de feitos e passagens nas quais o mestre

de Nazaré toma conhecimento de fatos e fenômenos em locais e tempos

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distantes dele. Nos casos conhecidos de "ressurreição dos mortos",

Jesus parece ter ciência da condição do personagem alvo, o mesmo

ocorrendo com a grande maioria dos fenômenos de cura relatados nos

evangelhos.

Nas Narrativas da Paixão, Jesus previu seu destino junto ao

madeiro e a traição de um dos seus apóstolos, além da própria negação

de Pedro, o que causou um grande mal estar entre os membros das

primeiras comunidades cristãs na Palestina e reflete um fato real,

histórico. Em diversas situações o messias de Nazaré parece saber

detalhes sobre o que havia de ocorrer ao adentrarem uma dada

comunidade. Visões sobre problemas que atormentariam a igreja são

relativamente frequentes, embora a maioria deles tenham sido redigidos

pela própria igreja, na época em que os problemas aconteciam, e

devemos ignorar algumas dessas passagens, uma vez que não provém

do mestre.

São clássicas as previsões de Jesus sobre o destino de Jerusalém,

tendo se comovido com a imagem de desolação e destruição que

tomariam conta da cidade 30 anos após sua morte na cruz. Nesse

particular, alguns estudiosos racionalistas advogam que essas previsões

constituem um claro de exemplo de profecia ou previsão que se torna

pública após a ocorrência do fenômeno previsto. Assim, as previsões

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sobre a queda de Jerusalém teriam sido registradas nos anos 70 a 90 d.

C., quando a cidade já teria sido destruída. Fenômeno semelhante

ocorre em todo o livro de Daniel. Contudo, embora tenham sido

registradas após a ocorrência do fato previsto, acreditamos que a

previsão ficou na memória da população que acompanhava Jesus e, em

função de suas implicações teológicas, seria transferida para o texto

final daqueles evangelhos, uma vez que a previsão se confirmara. Nessa

condição, a previsão fora preservada na memória em função de ter se

concretizado como um todo. Muitos espíritas e outros cristãos possuem

previsões que ficam na memória por décadas até que os fatos previstos

venham a acontecer.

8.5 Fenômenos mediúnicos sobre a natureza e a matéria

Os fenômenos mediúnicos associados à manipulação da matéria

constituem uma outra grande categoria de eventos impressionantes

associados a Jesus e seu ministério, significando o domínio da mente do

espírito sobre a estrutura molecular e atômica do universo.

Bastante raros, esses fenômenos são frequentemente

desacreditados, considerados embustes e fraudes. Contudo, foram muito

mais numerosos do que imaginamos e sua execução depende de um

conhecimento mais profundo da própria estrutura da matéria e das

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dimensões espaço-temporais que caracterizam nosso cosmo. Assim, a

discussão fenomenológica não será abordada, visto que foge aos

objetivos iniciais desse nosso pequeno ensaio, mas deverá ser abordada

oportunamente em estudo futuro. Iremos nos ater à historicidade das

descrições evangélicas.

Essa categoria de fenômenos mediúnicos é bastante complexa e

heterogênea e foi incorporada aos evangelhos canônicos em um período

de afirmação da fé cristã, quando grandes discussões eram travadas na

igreja primitiva, como o respeito às tradições judias ao Templo, bem

como a comparação entre Jesus e Yaveh, Deus Pai, como forma de

afirmar a existência da “Santíssima Trindade”.

Temos informações de que a força mental, produzida pelos

espíritos encarnados e desencarnados, é capaz de interferir na estrutura

da matéria convencional e muito mais na estrutura da matéria espiritual

(nome esse impreciso mas que, por falta de terminologia mais

adequada, será aqui empregado). Contudo, tais fenômenos físicos são

bastante incomuns e sua explicação e comprovação científicas

necessitam de muita atenção. Jesus em diversos momentos teria

manipulado o ambiente físico ao seu redor, mas pouca coisa confiável

ficou registrada nos evangelhos, os quais tentam exemplificar esses

fenômenos e acabam por criar passagens que não remetem a ele.

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É bastante difícil estabelecer com segurança se algum evento

narrado nos evangelhos apresenta clara correlação com o mestre galileu,

mas poucas passagens são tão dissociadas dele quanto a morte da

figueira estéril após uma maldição proferida contra ela (Marcos 11:12-

14; 11:20-21; Mateus 21:8-20). O texto é desconexo e, em verdade,

procura comparar uma árvore que não dá fruto e deveria ser cortada ou

eliminada, com os seres humanos que são estéreis de coração, que

seriam penalizados no final dos tempos, em pleno julgamento divino da

humanidade. Essa comparação é o que motivou a criação dessa

passagem que vai contra tudo aquilo que seguramente se originou do

mestre Jesus.

Além desse aspecto básico, não podemos nos esquecer que a

figueira não tinha frutos porque não era época de figos e Deus nunca

cobraria atitudes de seus filhos fora do tempo, em uma época na qual

eles ainda não tivessem o preparo para tê-las. Incoerente se tivesse

vindo do mestre, mas perfeitamente compreensível em uma discussão

entre membros da igreja, décadas depois, sobre o juízo final e o reino de

Deus. Pode ser considerada uma exortação das pessoas ao

arrependimento e oração e NÃO provém de Jesus ou de seus primeiros

seguidores.

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Outro exemplo de extrapolação da igreja incluído no ministério

terreno de Jesus diz respeito à pescaria do peixe com a moeda na boca,

para o pagamento do imposto do Templo, para Jesus e Pedro (Mateus,

17:24-27), na qual toda a redação é montada apenas para mostrar que

Pedro era o preferido do mestre de Nazaré. Essa passagem é

considerada uma clara interpolação da igreja primitiva, que julgava

legitimar o poder de seus líderes sobre os líderes de outros grupos

cristãos concorrentes.

A pesca, em uma região de pescadores e pessoas simples,

sempre exerceu fascínio nos discípulos de Jesus e outro de seus

pretensos "milagres" teria levado a uma pesca extremamente abundante

no mar da Galiléia ou de Tiberíades, de fato uma das regiões mais

piscosas do mundo antes que a administração de Israel passasse a

desviar quase toda a água do rio Jordão, que o alimenta, para o cultivo

irrigado. As duas descrições desse fenômeno (Lucas 5:1-11; João 21:1-

14; 21:15-19) se referem a uma única tradição original, a despeito das

diferenças significativas entre os textos, como atestado por J. P. Meier.

Podemos dizer, com alguma segurança, que a versão joanina é

mais próxima da história original, que teria ocorrido após a

crucificação, com Jesus na condição de espírito materializado, e não no

começo do ministério público, como coloca Lucas, para o qual a

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Jesus: homem e espírito

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história serve de base para a introdução de Pedro, seu mestre, e o

convite para os primeiros discípulos pescadores, conforme descrito por

Marcos (1:16-20) e Mateus (4:18-22).

Essa história representa um de muitos fenômenos que ocorreram

após o desencarne do mestre e que foram transferidos para o seu

período de vida terreno, como forma de realçar alguma característica ou

teologia do evangelista. Isso explicaria a natureza quase impessoal de

Jesus, o qual não foi imediatamente reconhecido pelos discípulos. Essas

aparições do mestre de Nazaré, materializado, após a crucificação,

deixam perceber o papel dos médiuns Pedro, Tiago e João, sempre

presentes quando fenômenos de materialização e efeitos físicos podem

ser divisados.

Essa tendência de transferir as aparições de Jesus pós-

crucificação para o ministério público pode ter originado o "caminhar

sobre as águas". Em todos os fenômenos mediúnicos comprovadamente

ligados ao mestre de Nazaré, o fato narrado é realizado em benefício de

alguém e, muitas vezes, para transmitir alguma informação nova e

relevante. Porém essa tendência se desfaz no texto de Marcos (6:45-52),

Mateus (14:22-33) e João (6:16-21), onde ventos fortes assolavam o

lago ou mar da Galiléia, mas sem representar risco para os discípulos,

que estavam tentando atingir a outra costa. Ainda caberia salientar que a

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descrição dos fatos sugere que o fenômeno teria ocorrido na madrugada

(entre 3:00 e 6:00 horas) e os próprios discípulos não reconheceram

imediatamente o messias de Nazaré, amedrontando-se com a aparição

fantasmagórica, algo que seria bastante plausível se não esperassem

Jesus por ali e ele estivesse aparecendo em condições físicas incomuns.

Essa descrição tenta mostrar o total controle que Jesus tinha sobre os

elementos da natureza, como o vento, que cessa assim que o mestre

entra no barco, preenchendo os requisitos típicos de Yaveh, o Deus

Justo e, por vezes, Cruel, do Velho Testamento.

Algo semelhante e muito mais evidente é narrado por Marcos

(4:35-41), uma vez que Mateus (8:23-27) e Lucas (8:22-25) apenas se

utilizam da tradição marciana. O messias de Nazaré utiliza-se do

imperativo e ordena que a tempestade seja aplacada. Toda a cristologia

e a discussão sobre o papel de Jesus após o fenômeno mostram

claramente que a história é engendrada para criar o mesmo clima de

domínio sobre a natureza incontrolável que Yaveh apresenta nos textos

do Antigo Testamento, constituindo criação da igreja primeva.

Podemos divisar o mesmo fenômeno de criação da igreja

primitiva ou de um evangelista nas bodas de Caná (João 2:1-11), onde

Jesus é chamado por sua mãe para transformar água em vinho. Nessas

passagens fica claro que os autores utilizam-se de toda a narrativa para

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Jesus: homem e espírito

371

simbolizar a fartura da ceia do Senhor, no fim dos tempos, bem como o

encontro da noiva, a igreja cristã, com o seu noivo, Jesus, em uma

condição espiritual. Mesmo que o casamento em Caná fosse um fato

real e não um evento simbólico, como o encontro do messias e seus

seguidores, ele cria as condições adequadas para que o evangelista

traduza suas intenções e venha a converter a descrição do evento em

uma plataforma para propalar aos quatro ventos a mensagem do(s)

seu(s) autor(es). Sem as características tipicamente joaninas, a história

perde sua coerência e mostra a falta de um substrato histórico confiável,

como atesta Meier.

De todos os fenômenos com possíveis bases mediúnicas

descritos no Novo Testamento, ligados a Jesus, destacam-se os

fenômenos de alimentação de multidões. Dois diferentes episódios são

descritos em Marcos (6:30-44; 8:1-10), Mateus (15:32-39), mas apenas

um em Lucas (9:10 -17) e João (6,1-14). Acredita-se que inicialmente

havia apenas uma tradição de multiplicação dos pães e peixes, que foi

incorporada de forma independente na tradição do Quarto Evangelho e

no texto de Marcos, o qual, como vimos anteriormente, é a base dos três

evangelhos sinópticos.

A corrente acadêmica mais proeminente tem muitos motivos

para supor que esses eventos são fruto da igreja primitiva, não

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procedendo de Jesus, particularmente por se assemelhar a eventos

miraculosos relatados no Antigo Testamento e, quando isso ocorre,

quase sempre os evangelistas estão tentando fazer um paralelo ou

comparação entre as características de Yaveh e dos homens santos da

Palestina com o messias de Nazaré, como discutido acima. Entretanto,

alguns círculos espíritas supõe que o fenômeno da "multiplicação dos

pães e peixes" tenha de fato ocorrido, mesmo que sua descrição bíblica

esteja carregada de teologia cristã que se desenvolveu posteriormente.

Somos dessa opinião. Nesse caso, o que poderia ter de fato ocorrido?

Enquanto alguns espíritos se afinam com a idéia da

materialização direta dos pães e peixes, outros, como Emmanuel,

colocam que o alimento oferecido à multidão, pelos discípulos de Jesus,

provocou saciedade não pela multiplicação da quantidade disponível,

mas porque estavam carregados dos fluídos do mestre nazareno, os

quais atuaram sobre os centros de força das pessoas envolvidas e

induziram a condição de satisfação alimentar, uma vez que sabemos da

importância de sentimentos e energias para a fisiologia não apenas do

corpo espiritual, mas também do próprio corpo físico, seguindo a

filosofia de que "nem só de pão vive o homem" e isso é narrado em

diversos livros de André Luiz.

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Jesus: homem e espírito

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9 A crucificação de Jesus

“...Levaram então consigo Jesus. Ele próprio carregava a sua

cruz...”

(João 19, 17)

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O cristianismo literalista é extremamente dependente, do ponto

de vista histórico, do processo que foi armado contra Jesus e também do

fenômeno que culminou com sua crucificação, dando início ao ponto

teológico clímax do evangelho que foi a ressurreição. Contudo, ao

longo dos anos, os textos canônicos foram sendo reexaminados por

profissionais que conheciam os direitos romano e judaico, de forma que

numerosas incoerências passaram a aflorar da redação.

Para outras vertentes cristãs, o ponto clímax da vida terrena de

Jesus consistiu de sua pregação de 2-3 anos, nos quais passou a

defender a igualdade e a importância da humildade como ingresso para

o reino divino. Sua morte, para essas vertentes não literalistas, encerra

muitas lições, destacando-se a fé de Jesus na vitória do homem frente a

suas próprias limitações, o valor da humildade e da devoção total ao

Pai, sem qualquer alusão a sacrifício de um cordeiro de Deus, em alusão

ao rito sacrificial no Templo, praticado pelos judeus do século I d. C.

Por anos, os estudiosos cristãos se debateram sobre as narrativas

da paixão de Cristo procurando elementos que confirmassem ou

negassem sua historicidade. Por um lado, tem-se aqueles que aceitam as

narrativas como sendo “história relembrada”, com os defeitos, expurgos

e interpolações que esse tipo de texto logicamente traz, ou “profecia

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Jesus: homem e espírito

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historicizada”. As diferenças entre essas correntes são fundamentais e

interferem na forma com que encaramos as narrativas.

Por “história relembrada” tem-se que as narrativas da paixão são

basicamente históricas, acrescidas de elementos exógenos que servem

para afirmar e reafirmar a fé na providência divina e no Cristo que logo

ressuscitará.

Por profecia historicizada, tem-se que essas narrativas trazem

pouquíssimos fatos reais e são, em sua maior parte, versões atualizadas

de profecias do Antigo Testamento, que deveriam se cumprir com a

chegada do messias e, como acreditavam que Jesus era esse messias,

transferiram para sua morte todo o simbolismo do messias vindicado do

Antigo Testamento, do servo sofredor de Deus.

A forma com que os cristãos leram essas narrativas está no cerne

de seu anti-judaísmo agressivo, que logo se converteu em anti-

semitismo pulsante e milhões de judeus mortos para vingar o Cristo

supliciado e crucificado, esquecendo-se de que, para o cristianismo

greco-romano, em voga até hoje, a ressurreição deveria apagar

quaisquer impurezas na relação judaico-cristã e deixar essas mazelas da

história em uma passado enterrado. Holocaustos, como o ocorrido na

Segunda Grande Guerra, mostram o quanto ainda precisamos avançar

nessa linha para chegarmos a uma convivência harmônica com os

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demais cultos monoteístas. Isso se agrava quando começamos a

perceber que o papel dos judeus na paixão de Jesus pode ser muito

diferente daquele narrado pelos evangelistas e discutido nos cultos em

igrejas espalhadas pelo mundo.

Como espíritas, ainda devemos pensar, antes de acusar algum

povo da participação na crucificação, que muitos dos atuais moradores

encarnados do planeta, com pele, cabelos e olhos indicando as mais

variadas origens genéticas, possivelmente participaram do processo de

prisão, julgamento e crucificação de Jesus e muitos outros ainda teriam

as mesmas atitudes no presente, caso o Cristo viesse ao mundo

novamente.

Hoje já não se acredita que os evangelistas tenham tido contato

com testemunhas reais, oculares, da prisão, julgamento e crucificação

de Jesus. Apenas toques lendários, mais ou menos coesos, da tradição

oral sobreviveram e foram enxertados de material próprio de cada

evangelista, para completar uma narrativa de profundo significado

teológico, uma vez que deveria se prestar ao testemunho da fé e à

pregação. Infelizmente, os apóstolos se acovardaram, fugiram, e pouco

sabiam sobre a crucificação.

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Jesus: homem e espírito

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Para compreendermos um exemplo de “profecia historicizada”

da paixão, vejamos, como exemplo, o texto escolhido por J. D. Crossan.

Corresponde a Amós 8:9-10:

"Sucederá que naquele dia, diz o Senhor Deus,

farei que o sol se ponha ao meio dia

e entenebrecerei a terra em dia claro.

Converterei as vossas festas em luto

e todos os vossos cânticos em lamentações;

porei pano de saco sobre todos os lombos

e calva sobre toda cabeça;

e farei que isso seja como luto por filho único,

luto cujo fim será como dia de amarguras"

Não podemos deixar de reparar nas semelhanças que existem

entre essa passagem e a descrição dos fenômenos que se deram por

conta da crucificação e morte de Jesus. Assim, esses fatos foram

narrados na paixão apenas para dar cumprimento às profecias e não

porque, de fato, ocorreram. Um ponto que esse autor cita em favor da

teoria da “profecia historicizada” reside na existência de epístolas,

como a de Barnabé, que demonstram muito interesse sobre a

simbologia da Paixão e Ressurreição, mas nada sabem sobre elas, sendo

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que esse texto teria sido escrito por volta de 96 a 98 d. C. O próprio

Evangelho de Tomé nada traz sobre a crucificação.

Existem referências no Evangelho de Lucas à existência de

possíveis testemunhas desses eventos, mas não sabemos como seu

testemunho foi obtido e o seu valor de fato. Por anos pensou-se que

Pedro pudesse ter assistido aos fatos descritos, mas o problema de sua

negação ao Cristo, nos momentos mais cruciais do processo reduzem

muito a possibilidade dessa coragem súbita e de última hora. Os

evangelhos evidenciam que apenas as mulheres e, talvez, João,

estiveram ao pé da cruz, enquanto os demais estavam tomados pelo

pânico.

José de Arimatéia e Nicodemos, membros do Sanedrim

(Sinédrio) e simpáticos ao mestre de Nazaré, teriam sido as testemunhas

tão necessárias, mas atualmente ninguém pode atribuir muita

credibilidade a essa idéia. Muito pouco do processo de julgamento-

crucificação foi preservado, mas mesmo assim é possível avaliar se a

descrição evangélica é fruto de imaginação fértil ou constitui evento

possível ou, até mesmo, provável.

Sabemos que os romanos se livravam sumariamente daqueles

que incomodavam e nunca levariam, ao seu comandante mais poderoso,

um indivíduo, como Jesus, que lhes era um ninguém. Contudo...

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Jesus: homem e espírito

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Todo aquele que teve o prazer de se aproximar de Chico Xavier,

durante sua maravilhosa e exemplar vida produtiva, colocada à serviço

do Cristo e do espiritismo, sentia uma transformação pessoal de tal

monta que o fato não passava despercebido. Há pessoas, em nossa

própria família nuclear, que relatam a sensação de profunda paz que as

invadiam, bem como uma impressão de que um universo de

reencarnações nos separava daquele espírito. E isso era em relação ao

Chico Xavier. Imaginem a sensação de ficar frente e frente com Jesus.

Emmanuel descreve, em seu livro "Há 2000 anos", esse fenômeno.

Colocamos essas palavras aqui porque muitos encontraram Jesus

ao longo de sua jornada na Galiléia e Judéia e pela forma com que ele

passou a ser recebido nas vilas, cidades e, em particular, Jerusalém, na

condição de um líder ou messias, creio que teria despertado o interesse

romano e se Chico Xavier conseguia nos deixar absolutamente ligados a

ele, imaginem os efeitos da presença de Jesus sobre as autoridades

romanas. Assim, podemos crer que muito do que lemos nas Narrativas

da Paixão são acréscimos posteriores e parte desse material se origina

da própria influencia espiritual sobre os seus autores encarnados e

tradições que se mantiveram na comunidade cristã. Temos um núcleo

de material histórico e inspirado para trabalhar. Pautemos pela

coerência.

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De maneira geral, os textos canônicos transmitem a maior parte

da responsabilidade pela morte de Jesus aos judeus, em particular sua

elite, diminuindo a importância e a responsabilidade romana nesses

eventos. Em muitos manuscritos dos evangelhos, mesmo as falas em

que Jesus pede o perdão divino para aqueles que o agridem foram

retiradas (como Lucas 23:33-34), visto que o copista achava que os

judeus não mereciam perdão algum, culpados que eram de “deicídio”,

ou seja, culpados de matar o “Deus Filho”, como muitos cristãos

literalistas passavam a ver o messias de Nazaré.

Em algumas cópias do Evangelho de Mateus, os copistas fazem

Pilatos entregar Jesus para os judeus crucificarem-no, não bastando ter

se livrado do problema proferindo a célebre frase “Eu sou inocente do

sangue desse homem! A responsabilidade é vossa!”. Até o vinho

associado a mirra que lhe é oferecido em Mateus 27:34 é alterado em

alguns manuscritos para vinagre para fazer cumprir o Salmo 69:21 e

porque Jesus teria dito, na Última Ceia, que não beberia vinho até

chegar no Reino do Pai. Tudo tinha que se encaixar, mesmo que

precisasse de algum auxílio redacional para que isso viesse a ocorrer.

Todos esses fenômenos foram exacerbados gentilização da

igreja cristã: a presença improvável de um centurião romano

proclamando a natureza divina do Cristo aos pés da cruz; o papel de

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Paulo, cidadão romano, na frente da igreja não judaica; a imagem dos

judeus e romanos na crucificação e na descrição da "ressurreição".

Assim, os documentos escritos refletem mais as décadas de 70-100 d.

C. do que a realidade histórica do mundo romano de 20-30 d. C., no

ministério de Jesus. Pode-se perceber que a Narrativa da Paixão foi

confeccionada na fornalha das batalhas espirituais e físicas que

tomaram conta da Palestina judaica no final do século I d. C. e refletem

essa problemática.

Por exemplo, a responsabilidade dos judeus provavelmente

advinha da necessidade da pequena comunidade cristã de ganhar uma

identidade própria, separada do judaísmo, sendo que não era uma boa

política, no final do primeiro século, atribuir a responsabilidade da

morte do messias ao exército de ocupação romano, ainda mais porque o

cristianismo crescia rapidamente em tamanho e importância em Roma.

Seria mais adequado escrever o que o público pagão gostaria de ler,

repudiando e incriminando, ao mesmo tempo, a parcela do judaísmo

que não aceitou Jesus como seu guia prometido.

Para os romanos, já era abominável ter de suportar os judeus e

suas mazelas religiosas e sua insistência em não aceitar a divindade do

imperador, imaginem adorar um condenado que foi morto de forma

abominável e ao qual se atribuía uma importância acima de qualquer

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criatura vivente? Nada mais “justo” tornar a nova fé mais palatável ao

público pagão. Dirigir críticas mais severas ao poder imperial, através

do qual Pilatos condenou Jesus por crime de natureza subversiva não

era uma política que garantiria a sobrevivência dos minúsculos grupos

cristãos. Os cristão precisavam provar que a fé em Cristo, não mais

apenas Jesus, era absolutamente compatível com a lealdade à Roma e

ao imperador, seguindo a política do "dai a César o que é de César e a

Deus o que é de Deus".

Segundo Haim Cohn, os cristãos teriam sido muito prejudicados

se tivessem relatado que Jesus havia sido julgado e condenado por um

tribunal romano pelo crime de lesa-majestade, ou seja, traição ao

imperador e ao império, subversão. Ele parte do princípio que a visão

dos evangelhos evidencia que existia muita semelhança entre as crenças

judaicas tradicionais, particularmente farisaicas, e os ensinamentos

atribuídos a Jesus, e isso é real. Assim, as colocações pejorativas dadas

aos judeus seriam uma consequência da época em que os evangelhos

estavam sendo redigidos, 40 ou mais anos após a crucificação, quando

judeus e cristãos disputavam espaço dentro da comunidade e existia

uma iminente rebelião no ar ( ou mesmo logo após a guerra dos judeus

de 66d. C.-73 d. C., quando os cristãos pareciam desejar uma separação

mais ampla do judaísmo perante os pagãos).

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Depois da destruição de Jerusalém, em 70 d. C., os escribas,

sacerdotes, rabinos e anciãos caíram em desgraça e foram assim

retratados naqueles tempos. A crucificação já ia longe e a absoluta

certeza do que tinha de fato ocorrido não poderia ser obtida. Utilizando

a imaginação e a inspiração como cola e a existência de uma história

oral, os evangelistas criaram uma história de profundo significado

teológico que, se não fossem as inúmeras perseguições e holocaustos

afligidos aos judeus em nome de vingar a morte do salvador, não

necessitaria de maiores correções.

Também não se pode esquecer que as Narrativas da Paixão são o

ápice dos evangelhos canônicos e, por vezes, são utilizadas para as

maiores encenações teológicas dos evangelhos. Por exemplo, no

Evangelho de João, Jesus é o senhor de tudo e está ciente de todos os

fatos que logo se desenvolverão, não é ele que é julgado por Pilatos,

mas o inverso. Pilatos se torna presa da superioridade infinita do

acusado judeu. Nos demais evangelhos, Jesus é descrito desde a

condição de alguém que padece e se angustia pela dor e sofrimento

futuro, até aquele que aceita o inevitável destino como homem. Nos

evangelhos sinópticos, não é a imagem do Deus-Filho que vai para

cruz, mas o profeta-messias Jesus, o homem.

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As informações disponíveis na literatura espiritualista e espírita

em particular mostram que a crucificação sempre esteve na frente de

Jesus, em termos metafóricos. O messias de Nazaré sabia das

consequências das associações que as pessoas faziam entre ele e a casa

de Davi, que colocavam uma interrogação sobre as pretensões políticas

do mestre na cabeça das pessoas. Não adiantava falar o contrário. Por

mais que ele ensinasse que seu reino, o reino de seu Pai, não era desse

mundo, na mente das pessoas comuns, tanto no passado como

atualmente, não havia espaço para mensagens figuradas e teologia.

Precisavam resolver o agora, o que tornava Jesus perigoso aos olhos do

estado romano.

Que crime teria cometido Jesus para ser crucificado?

Pena bárbara somente aplicável para escravos e pessoas

consideradas absolutamente desprezíveis e nefastas, da qual um cidadão

romano deveria se manter distante. Segundo os evangelhos sinópticos,

os tumultos ocorridos no Templo foram os grandes responsáveis pela

crucificação de Jesus e temos excelentes motivos para acreditar nessa

visão, mas por motivos que nada tem a ver com a religião judaica.

Contudo, João atribui a crucificação de Jesus à ressurreição de

Eleazar/Lázaro, de forma a opor a vida dada à Lazaro àquela tirada de

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Jesus e devolvida pela ressurreição do Messias, criando um clímax na

sua teologia.

Quando analisamos a mensagem de Jesus aos judeus, percebe-se

um judeu justo pregando a transformação e reforma moral de seu povo.

As pessoas podiam não gostar do que ele dizia, por ser a verdade, mas

nada podiam fazer para impedi-lo legalmente. Em verdade, o povo o

admirava e muitos passaram a segui-lo, não apenas pelos seus

ensinamentos, mas pelo seu poder de cura e por seu relacionamento

peculiar com Deus. Embora a hipocrisia de qualquer sociedade pudesse

ser tocada por suas críticas e parábolas, o judaísmo se renovava e

revivia nele. Ele parecia dar um sentido novo à lei mosaica, cumprindo-

a integralmente.

Não temos porque acreditar que Jesus fosse tão lesivo aos

interesses dos judeus em geral para condená-lo á morte, uma vez que

muitos outros pregadores não pereceram naquela época e os que

tiveram esse destino sofreram devido a problemas de natureza política,

com os governantes romanos ou seus reis fantoches. Dessa forma, o

motivo maior para a crucificação de Jesus deve ser encontrado

principalmente na fortaleza que recebia o prefeito romano em Jerusalém

quando da realização das festividades pascais. Os romanos tinham

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muito a perder com a fala de Jesus e os judeus do Sanedrim também

tinham, como veremos a seguir.

Um pregador judeu que pedia ao povo para dar a Deus o que a

Ele pertencia e sua pregação que mostrava a possibilidade de

estabelecer um relacionamento com o Pai sem intermediários, acabou

por interferir com os interesses da elite sacerdotal, o que somado à

aversão que os romanos tinham de qualquer um que pudesse se

converter em uma liderança, temos os ingredientes básicos que

justificariam a crucificação de Jesus. Ele não cometeu nenhum crime

que viesse a merecer a condenação capital dentro judaísmo, mas foi

tratado como criminoso. Ainda nessa linha, a reação judia á difusão do

cristianismo criou uma aversão tão grande e radical ao movimento

cristão e tantas calúnias e inverdades foram ditas de lado a lado que

hoje é muito difícil determinar com segurança as responsabilidades das

partes envolvidas e modificar o conceito passado para a população

pelos inúmeros pontífices, filmes hollywoodianos e livros.

A realidade do mundo judeu em 70 d. C. era totalmente

diferente daquele panorama presente em 30 d. C., quando os cristãos

pareciam se comportar como uma seita reformista dentro do judaísmo.

Depois da destruição do Templo, o ranço dos judeus para com a cruz se

tornou mais forte, particularmente por que os cristãos atribuíam a

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destruição de Jerusalém e seu Templo à maneira com que os judeus

haviam tratado Jesus e sua refratariedade aos ensinamentos cristãos.

Nessa época, a fuga dos cristãos, narrada nos Atos dos

Apóstolos, no meio de uma guerra com os romanos, constituiu uma

mudança radical, posto que abandonaram os judeus à sua própria sorte.

Foram esses cristãos expulsos da sinagoga e os judeus que os

expulsaram que ficaram imortalizados no cânone e não aqueles que

viveram com Jesus, em uma época de animosidades muito menores. A

maioria das pessoas tem dificuldade de entender esse ponto, mas ele é

bastante plausível.

Para entendermos as circunstâncias em que Jesus foi crucificado

devemos tentar responder algumas pequenas questões sobre a

dominação romana sobre a Palestina.

I. Quais as consequências da ocupação romana? como os

romanos eram encarados pelos judeus e como lidavam

com seus inimigos?

O poder romano estabelecido criava ótimas condições de

comércio, com grande circulação de moeda e produtos, com aumento

muito grande da renda das classes mais favorecidas, enquanto que o

campesinato era mantido em condições de mera sobrevivência, com

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endividamento crescente e tensões sociais. Jesus, se verdadeiramente

era ou não era um camponês, pelo menos pregava para eles e como um

deles era visto pela elite sacerdotal e isso incomodava, posto que podia

mexer na fonte de riqueza de muitos. Isso era agravado pelo fato de que

Roma era uma cidade parasitária e vivia da cobrança de tributos, que

depois moviam sua economia.

Toda e qualquer agitação popular era esmagada com uma

brutalidade sem igual, com o intuito de mostrar, para a população local,

a fonte de onde emanava o poder. A Judéia, em particular, era uma terra

que exigia grande atenção, pois seu povo parecia sempre pronto a se

ofender com aspectos religiosos, embora apresentasse uma grande

tolerância com a sistemática romana de exploração de seus recursos

naturais e da economia em geral. Os romanos estabeleceram alianças

com a nobreza local e com as classes economicamente mais

privilegiadas, com elas desenvolvendo uma verdadeira relação de

simbiose. O comportamento dos saduceus, em particular, é típico de

pessoas que teriam tudo a perder, como perderam, com uma rebelião

violenta contra o poder romano.

O mundo pagão representava tudo que um judeu praticante

queria longe de si. Talvez, como coloca o Evangelho de João, os judeus

tenham evitado entrar no pretório romano onde os eventos do

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Jesus: homem e espírito

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julgamento de Jesus aconteceram, para não se contaminar, uma vez que

os ambientes pagãos lhes eram vetados, mesmo os domicílios. Como

era próximo da Páscoa, talvez não tivessem tempo para o ritual de

preparação para a festa se estivessem impuros.

Uma passagem de Atos dos Apóstolos ilustra bem essa aversão,

onde Pedro tem de se explicar como ousou compartilhar do ambiente de

um soldado romano, mesmo sendo, esse romano, homem de bom

caráter. Os romanos eram vistos como a encarnação da idolatria e

depravação, um repúdio aos desígnios de Deus, de seu povo, que

migrava periodicamente para a cidade santa de Jerusalém, onde estava a

casa do Deus Criador. Segundo o romano Tácito, “para os judeus são

profanas todas as coisas que temos como sagradas”, assim um judeu

sequer apertaria a mão de um romano.

Os governantes romanos locais viam com desprezo esse

sentimento de superioridade que os judeus sentiam, independentemente

do povo que os subjugava, e reagiam de forma extremamente agressiva

á maneira insultuosa desses semitas. Pouco sabemos a respeito de

Poncio Pilatos, mas esse “pouco” nos informa que o mesmo seria o

protótipo do governante romano eficiente e cirúrgico, nutrindo grande

antipatia e desprezo pela população local, muito diferente do homem

fraco e cheio de piedade que os evangelhos retratam.

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Pilatos é visto tendo problemas com os galileus, provavelmente

zelotas, ordenando a morte desses, por ocasião da construção de um

aqueduto para a cidade com riquezas confiscadas do Templo e, por fim,

com os samaritanos, o que levou á sua substituição pelo poder central

em Roma. Em todos os momentos, Pilatos mostra-se forte e firme, não

permitindo que a iniciativa parta para a população que o cercava. O que

teria acontecido com ele naquele dia, no dia em que dizem ter lavado as

mãos da responsabilidade do sangue de Jesus? Será que as descrições

bíblicas podem ser consideradas com um mínimo de coerência?

Discutiremos logo a seguir.

Pilatos tinha também uma aversão especial pelos príncipes e

reis herodianos, os quais tinham acesso direto a Roma. O próprio

Herodes Antipas esteve em contato com o imperador Tibério em

diversas ocasiões e isso podia incomodar profundamente Pilatos. A

indicação de Pilatos para a Judéia parece ter sido fruto do trabalho de

Sejano, ministro de César, que odiava toda a raça judia, esperando que o

novo indicado trabalhasse para manter a Palestina sob a mais rígida

dominação possível. Fílon, judeu helenista, descreve Pilatos como

sendo inflexível e implacável, cometendo atos de corrupção, insulto,

rapina e assassinatos com selvageria. Parecia sentir prazer em negar

tudo o que os judeus pediam e não pensava duas vezes em eliminar

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qualquer um que ofuscasse sua lealdade ao imperador. A intolerância

que hoje sabemos caracterizar esse prefeito romano talvez tenha sido

fruto dos anos de permanência na conturbada Judéia, onde uma mistura

explosiva de ideais religiosos, agitação política e ação de bandoleiros

tornavam a vida dos enviados de Roma particularmente desconfortável.

Pilatos foi uma figura muito poderosa e central na crucificação

de Jesus, associado a elementos da elite judaica. Enquanto os

evangelhos tentam mostrar que a condenação de Jesus se deu por

motivos direta ou indiretamente religiosos, não se deve esquecer que,

no mundo romano, religião era política e política era religião. As

sinagogas acabavam sendo um local propício para o surgimento de reis

e de líderes messiânicos, embora Jesus apresentasse essas intenções.

A despeito dessas colocações, em pelo menos em uma situação,

Pilatos demonstrou capacidade de negociar com a população local. Isso

teria se dado quando uma legião romana, com estandartes do imperador

Tibério, marchou para Jerusalém, contrariando a população local que

não admitia a presença dos estandartes em sua cidade santa. As

manifestações dos judeus, contra o que eles consideravam um grave

insulto a Deus, se sucederam diariamente até que no sexto dia Pilatos

teria ordenado que fossem todos mortos. Como os indignados se

deitaram no solo sem a mínima reação e com disposição de se

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submeterem ao sacrifício, Pilatos, admirado com a determinação desse

povo, ordenou a retirada dos estandartes, mostrando-se, naquele

momento, mais tolerante e passível de oferecer uma chance ao réu.

Os romanos não se importavam com as religiões de seus

domínios e permitiam que os cultos lícitos fossem seguidos livremente,

mas parece que Tibério não tinha grandes afeições pelo culto judeu,

obrigando vários de seus seguidores a queimar suas vestes religiosas e

outros acessórios, além de procurar abolir o culto. Existem relatos de

deslocamentos forçados de comunidades judias inteiras para regiões

pouco salubres. O imperador não hesitava em condenar seus súditos

pelo crime de lesa-majestade e isso atingiu tamanha dimensão que

falava-se que qualquer crime poderia ser assim julgado se César o

desejasse e a pena era a morte.

II. Quais eram as prerrogativas do Sumo Sacerdote e qual a

sua relação com os grupos judaicos que detinham o

poder político?

O Sumo Sacerdote tinha algumas prerrogativas, como julgar os

crimes cometidos por judeus e que interferiam com o culto, entrar no

Santo dos Santos, onde Deus residia, ter contato com Deus no Templo,

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bem como comandar a polícia do mesmo, a única força militar nativa

tolerada pelo império, nos limites da província romana.

Era tido como um fantoche pelos romanos e acabava por

representar os judeus perante o poder ocupante, uma situação bastante

incômoda para o povo, que dependia de um indivíduo tido como traidor

como representante. É muito provável que o Sumo Sacerdote também

tivesse autonomia para reunir o Sanedrim judaico, mas não existem

quaisquer evidências de um Sumo Sacerdote que tenha pedido ajuda de

uma força militar romana ou de autoridades romanas para exercer seu

papel, uma vez que se o fizesse estaria assumindo a própria

incapacidade de exercer o domínio sobre a população nativa, ao

contrário do que sugerem os evangelhos.

O poder sobre a população judaica, pelo menos ao que se refere

aos seus assuntos domésticos, emanava do Grande Sinédrio dos Setenta

e Um, que teria se reunido para julgar Jesus, segundo os evangelhos. A

maioria dos eruditos que compunha o Sinédrio era farisaica, enquanto a

categoria dos sacerdotes era composta principalmente por saduceus,

como o próprio Sumo Sacerdote. Em função de sua influência sobre a

população judia, os saduceus, com pouca penetração na população

geral, seguiam os votos dos fariseus, segundo Josefo, que eram muito

mais numerosos.

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O comportamento dos fariseus, segundo os poucos relatos que

nos chegaram em nossas mãos, sugere que os mesmos, de maneira

geral, eram prudentes e tomavam decisões apenas após refletirem,

sendo que eram piedosos e extremamente fiéis à crença em um Deus

misericordioso, que recompensaria os justos com uma vida cheia de

alegrias após a morte. Os fariseus possuíam profunda penetração na

mente da população urbana, que os acolhia com simpatia. Qualquer

rebelião futura teria de passar, em alguma de suas múltiplas fases, pela

adesão desse grupo. Muitos eruditos fariseus acreditavam que o

domínio romano sobre a Terra Santa representava um ultraje e uma

mácula, não podendo ser suportado.

Assim, é provável que, na medida que o poder romano se

tornava mais opressor, crescia a idéia de que os fariseus representavam

o patriotismo do verdadeiro povo de Israel e os saduceus passavam a

depender deles para manter a ordem que lhes interessava.

O Sanedrim e o Sumo Sacerdote quase sempre seguiam a

corrente principal de idéias, dependendo de votações, sendo que o

grupo romanófilo por vezes se aliava aos fariseus, que gozavam do

apreço popular. A citação do evangelho de João (18:31) que diz “ a nós

não nos é lícito matar ninguém” não é verdadeira e o Grande Sinédrio

de fato tinha como imputar ao criminoso a pena capital de acordo com a

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lei, a qual era executada, segundo a tradição, por apedrejamento, como

aconteceu com Estevão, um judeu-cristão helenista. Eles podiam matar

sim, enquanto tudo isso foi omitido dos textos canônicos para evitar que

os romanos fossem os grandes incriminados com a morte de Jesus.

Politicamente seria interessante culpar os judeus e isso foi feito.

Sem a pena capital, nos tempos antigos, teria sido um verdadeiro

heroísmo controlar a população local. Entretanto, o Grande Sinédrio

somente se reunia em situações especiais, quando, por exemplo, um

sacerdote era indiciado por algum crime. Em outras circunstâncias,

reunia-se o Pequeno Sinédrio, constituído por 23 membros que

exerciam de fato toda autoridade civil, penal, administrativa e

consultiva, em todas as principais cidades da Judéia e Galiléia, segundo

Josefo, reservando ao Grande Sinédrio um papel mais legislativo.

Com advento do poder romano na Palestina estabeleceu-se,

acima do direito judaico, o direito romano, exercido pelas autoridades

de ocupação. Os governantes, como Poncio Pilatos, representavam o

poder do próprio imperador e provavelmente nunca entregariam um

criminoso que estivesse sob seu domínio para um tribunal judeu, visto

que os romanos adoravam mostrar quem, de fato, detinha o poder nas

mãos. Um preso que tivesse cometido delitos contra as leis romanas e

judias dependeria da ação do governante romano para saber quem o

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julgaria, uma vez que dependia desse último a determinação, na prática,

da ação dos tribunais judeus. Os romanos dificilmente abririam mão do

seu direito de julgamento. Porém, para os judeus, crimes como o

desprezo pelo imperador ou o não cumprimento de obrigações para com

Roma não seriam vistos como crime pela população e direitos judaicos,

merecendo até, certo ponto, alguma admiração.

9.1 Jesus, o Templo e o Plebeus

A mais importante questão que nos salta aos olhos sobre a morte

do messias de Nazaré se refere ao motivo através do qual foi julgado e

condenado. Faltam om porquês de toda a trama...

Será que ele insultou a visão judaica de Deus, ou seu

igualitarismo de “sentar à mesa e pregar o reino do Pai” seria tão

afrontoso para o judaísmo que os escribas, sacerdotes e fariseus teriam

se unido e pedido sua cabeça às autoridades romanas? Os evangelhos

caminham nessa direção, acrescentando, no evangelho atribuído à João,

o medo dos milagres, em particular seu domínio sobre a morte, embora

tenhamos visto que o fenômeno denominado de "ressurreição dos

mortos" deve ser reexaminado.

No fundo, Jesus foi indiciado por crime de lesa-majestade, pelo

poder romano, o qual foi decididamente estimulado a fazê-lo pela elite

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judaica, temerosa de perder seus muitos privilégios, mas esses judeus

tentaram descobrir até que ponto havia envolvimento de membros do

sinédrio com o movimento de Jesus.

Outros líderes messiânicos existiram naqueles tempos e

terminaram de forma muito semelhante a Jesus. João, o Batista, por

exemplo, reencenava a conquista da terra santa pelo vale do Jordão,

além de profunda reforma moral na sociedade judaica da época,

reunindo multidões em seus sermões, o que alarmou as autoridades,

como Herodes, que o matou. João Batista passou a representar uma

poderosa alternativa ao Templo de Jerusalém; representante de um Deus

misericordioso que perdoava os pecados através de um ritual acessível a

todos.

Segundo Crossan, os batizados se convertiam em bombas-

relógios individuais, esperando o advento de algo que era difícil de se

qualificar e poderia mudar a estrutura do poder local. Os romanos e

sacerdotes tinham receio do desconhecido e não se podia prever qual

seria, a médio e longo prazos, o fruto de todo esse messianismo judeu.

A mensagem de Jesus estava na categoria de escatologia

sapiencial, onde Deus espera que nós ajamos. Suas interpretações sobre

o Reino de Deus podem ter feito a população divagar sobre como seria

o mundo se Deus estivesse sentado no trono de César, lançando nuvens

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sobre a paz romana. Esse mundo igualitário, sem qualquer tipo de

discriminação, era totalmente contra a exploração e a hierarquia

sufocante sobre a população que mais sofria com a opressão colonial.

Algo relevante nessa visão é de que ninguém, nem mesmo Jesus, tem o

monopólio desse reino; todos podem buscá-lo. Ele trazia a liberdade

plena.

Em seu governo como imperador, Gaio (Calígula),

inconformado com a resistência ao culto de sua pessoa como deus-

imperador, pelos judeus, enviou Petrônio e metade das forças romanas

do leste para instalar uma águia imperial no interior do Templo.

Contudo, milhares de camponeses e seus familiares se dirigiram até

Ptolomaida, no litoral, para fazer com que o enviado do imperador

sentisse a dor que essa profanação causaria na população em geral.

Temendo que os judeus destruíssem as colheitas, o comandante romano

ameaçou matar a todos, mas diante da multidão que preferia morrer a

ter o seu Templo profanado, preferiu escrever a Roma pedindo que

Calígula reconsiderasse. O imperador mandou Petrônio cometer

suicídio e isso só não ocorreu por que a notícia da morte do imperador

chegou antes da carta desse último, mas ilustra a postura de camponeses

e romanos a respeito do Templo.

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Durante as festividades da Páscoa, milhares acorriam a

Jerusalém de todos os cantos do Império Romano, onde toda a base da

sociedade agro-pastoril se reunia para celebrar a conquista da liberdade

e a fuga do Egito. É fácil imaginar o estado de ânimo da população

reunida quando verificava-se que havia um novo poder imperial

opressor, soldados gentios montando guarda por todo lado e líderes

messiânicos vindos do interior. O próprio Arquelau e o procurador

romano Cumano tiveram problemas com a população mais despossuída

durante a Páscoa e muito sangue foi derramado em ambas as ocasiões

(4 a. C. e entre 48-52 d. C., respectivamente). Dessa forma, era durante

esse festival que as autoridades romanas mais se esforçavam para conter

o espírito popular de sublevação.

Um outro Jesus, filho de Ananias, em 62 d.C., falava contra o

Templo durante a festa dos Tabernáculos e foi preso, espancado pelas

autoridades judias, entregue aos romanos que o açoitaram e libertaram.

A descrição de Josefo sobre esse evento apresenta notórias semelhanças

com as descrições as Narrativas da Paixão, sendo que o filho de

Ananias teve sofrimento semelhante, embora privado da crucificação, e

não pronunciou quaisquer palavras em sua defesa, sendo, então, levado

à autoridade imperial. Como foi considerado louco, acabou mantendo a

vida. Jesus, filho de José, considerado o messias de Nazaré, não foi

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considerado louco e sim perigoso demais para ser deixado livre; morreu

na cruz.

Jesus cometeu algum delito grave que merecesse a pena de

morte no judaísmo? Como sua postura era vista pelos judeus e

romanos? Será que sua postura e liderança inspiravam maiores cuidados

pelos romanos e a elite sacerdotal?

Para o poder romano, qualquer agitador que mexesse com as

estruturas vigentes era considerado perigoso e, sem muito trabalho,

eliminado, sem preocupações com o que povo pensava ou não do ato.

Na época em que os príncipes herodianos tinham domínio sobre a

Judéia o mesmo acontecia. Herodes, o Grande, logo antes de morrer,

ordenara a morte de dois professores e seus alunos, posto que haviam

tentado retirar uma águia imperial romana da entrada do Templo.

Contudo, nada fez contra os loucos que vociferavam palavras de ordem

contra as estruturas da sociedade judaica. Quem não tinha credibilidade,

não despertava interesse, podia falar à vontade.

Jesus era muito popular, inteligente, sério, dotado de faculdades

mediúnicas que estavam muito além do que havia sido descrito para os

profetas que o precederam e, acima de tudo, considerado o enviado de

Deus para uma grande mudança na vida da Casa de Israel. Os pobres o

adoravam; os fariseus o admiravam e ainda estavam divididos quanto

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ao seu papel nos eventos que se dariam na Páscoa judaica. Em

diferentes momentos, ele é visto discutindo com os fariseus, o que

demonstrava o respeito desses, sendo que em diferentes circunstâncias

não se registraram a respostas dos judeus às posições de Jesus,

sugerindo que os mesmos concordavam ou, pelo menos, viam mérito

em sua posição.

A posição de Jesus em relação ao jejum, dizendo que seus

discípulos não jejuavam pois eram como convidados de um casamento

simbólico, em que ele próprio parece representar o noivo, e todos

estavam felizes e em júbilo, mostra uma adaptação da norma farisaica

que proíbe jejum em dias festivos. Como se fosse um fariseu, Jesus

respondia aos fariseus. Sua convivência desde a infância com os

fariseus fez com que muitos tenham atribuído a ele alguma formação

farisaica ou ligada a grupos de sábios judeus, conhecedores da Lei

(Lucas 2:46; 5:17).

Quanto ao sábado, Jesus parecia humanizar a regras que os

próprios fariseus aceitavam, dizendo que se era lícito salvar um animal

nesse dia, que diria Deus se salvássemos a vida de um outro ser

humano, seu irmão? Quando Jesus cura no sábado e responde aos

fariseus as razões que o motivara a faze-lo naquele dia, os fariseus mais

uma vez nada respondem, o que é tomado pelos atuais leitores da bíblia

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como sendo a prova da derrota dos fariseus perante a astúcia do mestre

galileu, o que eles ignoram é que a resposta de Jesus não foi discutida

por que encontrava eco nas tradições farisaicas. Os fariseus aceitaram

esse ponto de vista.

A colheita de espigas no sábado, criticada pelos fariseus, é

respondida por Jesus não dizendo que os discípulos estavam corretos,

apenas cita um episódio envolvendo o rei Davi e a condição de fome,

justificando perante os seus interlocutores a atitude criticada, dizendo

que fome e necessidades atuariam modificando as características e

objetivos desse santo dia. Complementa “o sábado foi estabelecido por

causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2: 27).

Essa era a interpretação farisaica do delito de Davi, onde ele, Jesus,

clamava por indulgência para seus seguidores.

Existe ainda a passagem da reclamação dos fariseus de que os

discípulos (Marcos 7:2; Mateus 15:1-2) ou o próprio Jesus (Lucas

11:33-35) não lavavam as mãos antes de se alimentarem, uma tradição

dessa seita judaica. Sabe-se hoje que lavar as mãos se tornou parte da

tradição judaica e norma legal por Eleazar (Lázaro) ben Arakh, cinco

décadas depois de Jesus e contemporâneo dos evangelhos. É pouco

provável que Jesus, tendo sido convidado por um fariseu a dividir uma

refeição, uma honra considerável, tivesse respondido de forma tão

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agressiva como descrita nos evangelhos. Aliás, sua educação e

profundidade nas suas colocações mostram que esse texto foi criado

pela igreja primitiva para mostrar mais um ponto de choque entre Jesus

e os judeus.

Talvez o questionamento do fariseu estivesse mais ligado a uma

curiosidade sobre os motivos que levavam aquele sábio popular a

desconsiderar a tradição e não se lavar segundo a tradição ritual, do que

uma crítica verdadeira, posto que a lei ainda não existia e a pergunta no

seu sentido original não apresenta uma verdadeira crítica. Conclui-se,

portanto, que esse incidente foi criado ou modificado pela igreja

primitiva para permitir colocar nos lábios de Jesus as duras

considerações sobre os fariseus, chamados de víboras, serpentes e tolos.

Os evangelistas davam as suas próprias opiniões nesse momento, as

quais não refletiam o ambiente judaico de 40 anos antes, quando esses

eventos teriam ocorrido.

Assim, os choques entre Jesus e os fariseus ganharam as

dimensões que lemos nos evangelhos como forma dos evangelistas

continuarem disputando essas contendas nos 40-60 anos seguintes e

passaram a ter um caráter mais teológico e ideológico do que real. Tudo

que temos sobre os fariseus é muito semelhante ao que Jesus sempre

pregou, embora esse último tenha tornado a fé judaica mais humana e

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espontânea. Por vezes, quando Jesus parece se referir a escribas e

fariseus, ele o faz procurando se dirigir ao povo em geral, ao qual ele

propunha uma mudança radical de atitudes. Existe uma tendência, entre

os evangelistas, de atribuir as críticas de Jesus aos fariseus, sendo que,

em várias versões dos manuscritos bíblicos, tais palavras são dirigidas à

multidão ou população em geral.

As palavras de Jesus sobre o final do Templo de Jerusalém

foram usadas pelos primeiros estudiosos como indicativas de que Jesus

teria sido condenado por blasfêmia pelos judeus, em função dessas

palavras proferidas por ocasião da limpeza do Templo. Entretanto,

predizer o final dessas instituições parece alertar o povo para as

consequências do pecado e instigá-lo a construir, dentro de si mesmo,

uma casa para Deus que não ruísse com as forças externas; era um

chamamento à reforma íntima, tão em voga no presente. Não existe

blasfêmia nas palavras de Jesus, sendo que o próprio profeta Jeremias

era portador da mesma mensagem, embora estivesse ele destituído do

título de messias que rondava os ombros do mestre de Nazaré e essa

diferença acabaria provocando o calvário para o Cristo.

A atitude de Jesus na limpeza do Templo era bem do gosto da

audiência judaica, a qual era tocada por atitudes e gestos dramáticos,

que chamavam a atenção para o ponto central da pregação do homem

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santo. A própria entrada de Jesus em Jerusalém, por ocasião dessa

última Páscoa, montando um jumento, trazendo às mentes populares a

imagem da chegada do messias, mostrando o quanto Jesus sabia

aproveitar e utilizar o modo de pensar do povo a quem ele se dirigia.

Embora, para os modernos cristãos, montar um jumentinho pareça um

sinal de humildade, para o povo palestino da época, era sinal de que o

escolhido se fazia presente na cidade.

A limpeza do Templo é considerada, por muitos, como o

momento em que as elites judaicas perceberam que a mensagem do

mestre galileu poderia ser usada de forma explosiva pela população.

Desde que as atividades do Templo eram lícitas, a purificação que Jesus

imprimiu ao Templo era na realidade uma destruição simbólica do

modo com que as pessoas se relacionavam com Deus. Embora

convivesse com aquele edifício, o mesmo era algo muito diferente do

que a teologia cristã em formação e o próprio Jesus sempre pregaram.

Com o ataque ritual, simbólico, contra o Templo, Jesus agia pela

primeira vez de acordo com sua própria idéia de programa para o povo.

Deus não habitava casas de pedra e seu Espírito podia imprimir a

vontade do Pai em qualquer um e não apenas naqueles que tinham

condições de oferecer sacrifício. Temos aqui a primeira bomba de efeito

retardado, a qual explodiria no calvário.

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Os evangelhos apresentam a atitude de Jesus como um ataque ao

Templo, mas deve-se considerar esse aspecto do ponto de vista

simbólico e não militar, visto que a presença de soldados romanos na

Fortaleza Antônia e a própria estrutura do Templo eliminam a

possibilidade de um evento mais literal e Jesus era firme quando devia

sê-lo, mas era contra toda e qualquer forma de violência. Nesse sentido,

o emprego da palavra espada em Mateus 10:34 por vezes é interpretada

como sendo o sinal de agitações mais belicosas e guerreiras no seio do

grupo cristão primitivo, mas não se esqueçam que o próprio mestre

dizia que aquele que vive pela espada, pela espada perece. Ele sabia das

severas implicações que suas palavras teriam e não se pode deixar de

considerar que, de fato, até o presente, as palavras e orientações de

Jesus representam “espadas” apontadas contra o “coração” de

numerosos pontos de vista que temos do mundo, frutos da nossa

mesquinhez. Como tudo, muitos ainda fazem uma interpretação literal

dessa fala e se apegam à visão guerreira de Yaveh, tão bem

representada no novo testamento.

Se a aristocracia sacerdotal visse pecado ou blasfêmia nos atos

de Jesus no Templo, por que a mesma não o prendeu no mesmo

momento? Poder para isso ela tinha e contava com o apoio romano para

tanto.

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A venda de animais de sacrifício e a atividade dos cambistas não

eram ilícitas e o Templo dependia das mesmas. Assim, a retirada

daqueles que manchavam o Templo somente pode ter se dado caso

alguns desses mercadores estivessem atuando fora da área que lhes era

destinada, tornando a atitude de Jesus compreensível e até louvável. O

texto contado pelos evangelistas está repleto de incongruências, mas

possui grande força emocional.

O jurista Haim Cohn, da Suprema Corte de Israel supõe que

talvez os cambistas e comerciantes, que trabalhavam diariamente nas

adjacências do Templo, tenham sido surpreendidos por Jesus em algum

dos átrios do mesmo, o que configurava ofensa séria, visto não ser

permitida a entrada com bengalas, sapatos e até pés empoeirados. A

explosão colérica de Jesus traduz as palavras do profeta Jeremias (7:11),

as quais deviam ser de amplo conhecimento para aqueles que ali se

encontravam. O que esse autor não considera é que a própria natureza

do culto em um santuário profanado por sacerdotes corruptos estava

sendo considerada nas atitudes de Jesus.

Eles estavam tendo sua autoridade questionada pelo mestre da

Galiléia e a versão do jurista vai muito além da realidade. Jesus se

cansara de aparências e sua mensagem de libertação chegava a uma

encruzilhada que acabaria explodindo no Templo. Impossível não ir

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contra uma estrutura que se interpunha entre os fiéis e seu Pai. Olhem a

oração do Pai Nosso e vejam que todos esses elementos estão por lá,

esperando para frutificar na vida de cada um. Naquela época, apenas a

elite sacerdotal detinha o monopólio do contato com Deus.

Por menos que gostemos de dar razão aos religiosos formais que

herdaram a igreja em formação, a mensagem do mestre iria, mais cedo

ou mais tarde, se chocar com a simbologia do edifício que representava

o centro do universo judaico, da mesma forma que, no presente, se

choca frontalmente contra sacerdotes e igrejas de fachada, de todas as

correntes do cristianismo, até mesmo as nossas casas espíritas (que não

são exatamente igrejas, da mesma forma que não existem sacerdotes

espíritas).

A limpeza do Templo provavelmente foi feita pela multidão

ensandecida e liderada por Jesus, mas mesmo assim o mestre galileu

parece ter gozado de prestígio por parte dos judeus, visto que pregava

no Templo todos os dias sem que a polícia viesse a prende-lo por

distúrbio. Nosso companheiro Eleazar nos coloca que, a cada dia mais

gente se reunia ao redor daquele grupo exótico de pregadores do norte,

esperando pelos milagres que se falava e um sinal para começar algum

movimento de libertação. O ar estava cheio de furor religioso e

patriótico, o que não era desconhecido dos romanos. No evangelho de

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Jesus: homem e espírito

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Marcos (11,18), fica claro que os principais sacerdotes temiam Jesus em

função do apoio popular que esse possuía.

Jesus não queria nada disso e tampouco tencionava se tornar um

mártir ou líder rebelde. Porém a história tinha chegado a um daqueles

raros momentos que não podem ser avaliados com precisão pelos

estudiosos e, em parte, isso se deve ao fato de que os planos paralelos

de vida, chamados de planos espirituais, estavam trabalhando

ativamente naquele momento tenso da história global. Cada corrente era

forçada para um sentido diferente. Jesus estava sofrendo todo tipo de

assédio e, como homem, mesmo que divinamente preparado, sentia que

devia passar por tudo que ele mesmo profetizara para seus irmãos

menores. Sua dor era real e sua angustia não tinha relação com o seu

próprio destino, mas principalmente pelo ambiente que reinaria após

sua partida e a dor de tantos que morreriam nas décadas e séculos

seguintes. Essa sensação chega ai clímax na cruz, quando ele pede

perdão ao Pai em nome daqueles que o agrediam.

O mestre galileu não tinha autoridade sacerdotal para tomar para

si a responsabilidade pela limpeza que produzia no santuário e é de se

admirar que, embora Jesus não fosse um sacerdote, ele falava com tal e

pregava com autoridade sacerdotal, sem tê-la, é claro. Muitos eruditos

sugerem que Jesus empreendeu a limpeza do Templo através da

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autoridade messiânica conferida por Deus e demonstrada continuamente

através de numerosos debates. Quando os fariseus pediam que os céus

revelassem um sinal divino que evidenciasse que aquele homem do

norte representava a vontade do Criador, nada mais se faziam do que

dar referência a uma crença que muitos judeus começavam a se inclinar

em função da força da palavra do mestre galileu.

O pretenso ódio dos fariseus para com Jesus se mostra ainda

mais incompreensível quando lembramos que Herodes tinha receio que

o fenômeno chamado “Jesus” se convertesse em problemas, como

outrora ocorrera com João, o Batista, e acabou por tentar se apoderar do

mestre galileu e só não o conseguiu porque Jesus foi avisado por alguns

fariseus dos intentos do rei e conseguiu fugir com um barco para um

lugar ermo e seguro. Ainda não havia chegado momento para sua

prisão, mas os dias se passaram e agora estamos nos três últimos dias da

vida de Jesus sobre a Terra.

Mas por que Herodes tinha cuidados para cuidar do problema

chamado Jesus? Por que ele não mandou matar o messias da mesma

forma que o fizera com João? Porque o povo ridicularizava Herodes e

adorava Jesus, que não parecia ligar para política. A população parecia

sentir prazer quando lembrava que Herodes Antipas teve seu exército

derrotado pelo pai de Herodias, ex-esposa abandonada de seu meio

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irmão, rei Felipe. Sob os brados desafiadores de João Batista, o rei

passou por situações desagradáveis e ele com certeza não queria que o

mesmo se repetisse com Jesus, que também reunia grandes multidões

em torno de sua mensagem. O domínio pleno que Jesus tinha das

multidões logo foi notado pelos romanos e tal ascensão popular poderia

significar problemas. Pôncio Pilatos logo viria a exercer seu papel no

drama.

Com esses elementos podemos dizer, com segurança, que as

implicações da fé nesse Pai misericordioso e avesso a manifestações

estereotipadas de amor, conforme transmitido por Jesus, logo iriam se

chocar com a religião formal, por mais que o mestre frisasse que seu

reino nada tinha a ver com o reino dos homens. Lembremo-nos que a

brutalidade que caracterizava o mundo de então fazia toda beleza da

mensagem cristã e de outros espíritos libertos da miséria do formalismo

religioso submergir nas arenas de gladiadores e nos holocaustos diários

ao longo do império. Além desse aspecto, o medo de uma rebelião

liderada por um líder carismático e contestador acrescentou o

ingrediente que faltava para a caminhada final do messias galileu para o

reencontro com o Pai que o aguardava.

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9.2 A prisão de Jesus.

Este evento é um dos poucos no Novo Testamento e, em

particular na descrição dos últimos dias de Jesus, que não corresponde a

uma sequência de profecias historicizadas, mas a um fato real que teve

trágicas consequências para nosso mestre e, nos 2000 anos seguintes,

para toda a comunidade judaica e cristã, onde quer que elas se

encontrassem.

Os detalhes destoantes entre os textos canônicos refletem apenas

as diferenças teológicas entre os sinópticos e o evangelho joanino. Em

Marcos, a versão inicial, Jesus está quase que tomado pela angustia e

sofre de conflitos internos significativos, enquanto que João, o

evangelho que diviniza o mestre, tudo acontece de acordo com a

vontade do próprio Jesus, que está acima de tudo que acontece ao seu

redor. Pode parecer estranho, mas as duas versões traduzem dois

enfoques diferentes: Marcos descreve as condições físicas e emocionais

de Jesus, colocando que essa angústia teria relação iminente com sua

prisão e o desfecho da caminhada terrena de Jesus, enquanto João,

falando a partir de pessoas que viviam em grande proximidade com o

Cristo, evidencia que tudo ocorria segundo um plano divino e, para

harmonizar essa idéia com uma visão divinizada de Jesus, acaba por

criar toda uma atmosfera de teologia vibrante, em que Jesus é o senhor

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de sua própria prisão. Em poucas palavras, a dor que Jesus sentia vinha

da atmosfera espiritual que o cercava, era um amálgama de trevas, ódio

e miséria que se aproximava com os oficiais da polícia do Templo e

seus aliados romanos, que os esperavam. Tudo aquilo fazia com que a

história da humanidade, com todos os seus massacres e déspotas,

passasse como um filme de fundo e, mesmo nesses momentos, ele pedia

perdão a Deus em nome de seus inimigos e misericórdia para proteger

das trevas aqueles que iriam ataca-lo em instantes.

Embora os evangelhos sinópticos tragam que somente judeus

tomaram parte na prisão de Jesus, já plenamente reconhecido como o

Cristo, e o evangelho de João evidencie a presença de soldados romanos

entre eles, hoje sabemos que a força armada enviada para prender o

mestre judeu era uma coorte romana ou pelo menos parte de uma,

acrescida de alguns policiais judeus, que garantiriam a informação da

prisão em primeira mão para o Pequeno Sinédrio, que, como veremos a

seguir, teria sido chamado para inquerir Jesus a respeito de sua

mensagem e possível envolvimento de membros da elite com seu grupo

de galileus.

A presença de judeus entre esses romanos parece ficar clara

quando se verifica que o mestre galileu foi logo transferido para

custódia do Sumo Sacerdote ou, como coloca João, do sogro deste e

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isso somente aconteceria se membros da polícia do Templo estivessem

com a coorte romana e tivessem ordens expressas de agir dessa forma.

Lucas também menciona a presença dos capitães do Templo e os

“principais sacerdotes” entre aqueles que prenderam Jesus. Esses

“seganin” estavam logo abaixo dos sacerdotes oficiantes e acima dos

oficiais militares da polícia do Templo e parece que correspondem bem

ao que Lucas denomina como sendo os sacerdotes principais. João

também corrobora com essa informação sobre a presença de “enviados

dos judeus” e dos principais sacerdotes.

Os textos de Marcos e Mateus sugerem que uma multidão de

gente da cidade fora recrutada para ajudar a prender Jesus, o que não

ocorreu de fato, visto que o mestre estava cercado por um grupo

pequeno de seguidores e era o período das festas pascais, o que tornaria

qualquer tumulto envolvendo a participação de populares em algo capaz

de inflamar os ânimos e dar origem aos tumultos que os próprios

romanos e sacerdotes queriam evitar com a prisão noturna. Seria algo

bastante amador incluir populares na prisão e os romanos era

profissionais, os melhores que o mundo havia presenciado. Em caso de

luta os populares, sem qualquer experiência militar, o povo apenas

colaboraria para criar confusão e facilitar a fuga do pequeno grupo de

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seguidores de Jesus e dele próprio. Uma população civil era tudo que

uma coorte romana menos desejaria encontrar no momento da prisão.

As descrições da prisão de Jesus nos evangelhos muito se

assemelham ao estado em que o rei Davi se encontrava quando da

traição de Aitofel. Tanto Jesus quanto Davi passam pelo monte das

Oliveiras, ambos suplicavam a Deus e tem um fiel escudeiro, Etai, para

Davi, e Pedro, para Jesus, que lhes jura fidelidade. Fica difícil não

perceber o paralelismo que existe entre 2Samuel (capítulos 16 e 17) e os

textos da paixão. A própria multidão descrita nos evangelhos, indo

prender Jesus, pode ser uma forma de paralelo com o exército armado

de Aitofel contra Davi. Esses arroubos poéticos dos evangelistas tinham

intenções teológicas e não ocorreram de fato.

Outro aspecto controverso ligado à prisão de Jesus reside na

traição de Judas, relatada nos quatro evangelhos. Caso fosse uma

invenção da igreja, poderíamos dizer que não teria sido uma das mais

felizes, visto que Jesus teria sido entregue por um discípulo nas mãos

dos inimigos, não constituindo bom exemplo de fidelidade ou lealdade,

tanto naqueles tempos quanto como no presente, e reforça a idéia que a

prisão do mestre galileu estava muito mais ligada aos próprios romanos,

visto que os judeus o conheciam, uma vez que Jesus pregava

diariamente no Templo e, como reiteradamente colocamos, havia sido

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recebido como líder por uma multidão exaltada, em função dos apelos

típicos da Páscoa judaica. Os sacerdotes não precisariam de Judas para

prender Jesus, mas pagaram-no para não terem as mãos enlameadas

com o fato.

Jesus sempre soube de como seriam seus derradeiros momentos

entre nós. Ele que se fez humano, sofria com a densidade da vida na

Terra, com a psicosfera doentia e com a incompreensão geral. Não era a

expectativa de morte física que o atormentava. Judas sempre fez parte

do plano divino; não porque Jesus assim decidiu pela traição de seu

discípulo, mas porque ele sabia das fraquezas de seus seguidores e das

expectativas frustradas de Judas, que esperava ver o início da grande

revolta.

A descoberta do Evangelho de Judas, uma obra apócrifa do

século II d. C., mostra que essa traição era vista, por alguns círculos

cristãos, como tendo sido arquitetada pelo próprio Jesus, para fazer

cumprir as profecias e encontra respaldo entre alguns estudiosos, que

veem na traição uma relação entre o mestre galileu e possíveis

movimentos de resistência, onde Judas seria o portador de orientações

do messias, mas essas últimas colocações nos parecem extremamente

especulativas e improváveis. Por outro lado, acreditamos que Judas, de

Kerioth, acreditava de forma vívida que o mestre não se entregaria e

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daria início a uma verdadeira revolução divinamente inspirada; Judas

não entendera que a revolução de Jesus se processava no interior

daqueles que o seguiam e, como aquele homem de Kerioth não tinha

experimentado essa renovação, apenas via, com a esperança das

crianças em espírito, o seu mestre como um revolucionário a ser

despertado do sono. A silhueta da cruz poderia fazer o que ele, Judas,

em muitas conversas pessoais não conseguira, despertar o guerreiro de

Deus que tira o pecado literalmente pela espada. Quanto incompreensão

sofreu Jesus; quão rudes e pequeninos em compreensão eram o seus

seguidores, mesmo os mais próximos. E isso se mantém no presente.

Acrescenta-se, também, que esse desequilíbrio emocional em

Judas tornou-o bastante susceptível a influências nefastas, a ponto dele

ter sido considerado um obsediado pelos demais apóstolos, que

literalmente diziam, nos últimos dias antes da prisão de Jesus, que o

“demônio” havia se apossado daquele homem. Esse desequilíbrio ficou

evidente quando o traidor viu que seu mestre não iria reagir. A

simbologia do cordeiro que não emite lamento quando supliciado se fez

bastante coerente e presente, invocando toda a tradição do Antigo

Testamento, bastante cultuada nas igrejas cristãs mais literalistas.

Numerosas entidades trevosas do maior quilate ainda livres (fora

dos campos de contenção e do sono espiritual, facilmente confundíveis

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com os antigos “demônios” do mundo pagão e judaico-cristão),

trabalhavam dia após dia na mente debilitada e dividida entre a visão

universalista da pregação de Jesus e o nacionalismo extremado com o

qual ele, Judas, inicialmente se afinava. Além disso, escutando todo tipo

de influência nefasta, Judas comete suicídio, acrescentando algo

extremo a essa história macabra.

Entretanto, porque o Plano Mais Alto e o próprio Jesus, que

sabiam desse fatos não se precaveram e evitaram esses dolorosos

suplícios?

Para isso devemos crer piamente que Judas representava,

naquele momento, a própria natureza humana. Seus defeitos e

limitações somente refletiam um fenômeno comum. Nós somos “Judas”

hoje, enquanto ele, espírito que sofreu horrores indescritíveis associados

com o remorso e a ação da trevas, readquiriu a luz que tanto ansiava e

trabalhou séculos nos diversos planos da vida para sanar a consciência e

ascender novamente para os planos superiores. A história de Judas não

é diferente de muitos que foram curados por Jesus; uma vez libertos da

dor e da doença, retornaram para suas vidas normais com os mesmos

hábitos e com as mesmas limitações, voltando a comprometer a sua

existência.

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Quantos foram alvo de desobsessões realizadas por Jesus e

retornaram à condição de obsediados semanas ou dias depois, em

função da ausência de uma reforma íntima? Quantos viram-no orar dia e

noite pelo bem daqueles que encontrava pelo caminho e somente

pensavam em si mesmos? Quantos viram-no curar os enfermos e

acharam que tal fenômeno feria as leis de pureza ritual ou sacralidade

do sábado? Quanto encontraram Jesus sentado junto a pecadores e

excluídos e se esqueceram que aquela atitude simbolizava que, no reino

do Pai, não existia a exclusão, a menos que a própria pessoa, dotada de

seu livre-arbítrio, não desejasse participar? Muitos de nós estaríamos

em alguma dessas categorias ainda hoje. Judas representa o povo e sua

atitude fazia parte do que o próprio Jesus esperava encontrar; não era

uma surpresa e trazia tamanho significado simbólico que provavelmente

fosse inevitável de ocorrer.

Para Crossan, a palavra “Judas” ressoa, em hebraico, como

“judeu” e representaria o próprio anti-judaísmo presente nas

comunidades cristãs greco-romanas em expansão. Contudo ele acredita

que alguma traição tenha, de fato, existido. Talvez, nas horas seguintes

aos tumultos no Templo, os romanos ou a força policial judaica

tivessem capturado alguns integrantes do movimento de Jesus e

extraído de forma pouco humana a localização dos demais, levando à

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prisão e execução de Jesus. Por mais pragmática e imaginativa que essa

hipótese possa parecer, ela não se compara com a liberdade criadora dos

evangelistas. Segundo esse pesquisador, Marcos e sua comunidade

sofreram severas perdas humanas no período ao redor da grande revolta

judaica e sabiam o que significava traição ("Um irmão entregará à

morte outro irmão, e o pai, ao filho; filhos haverá que se levantarão

contra os progenitores e os matarão". Marcos 13:12), assim,

utilizaram-se do recurso didático de que "se você foi traído por alguém

muito próximo, Jesus também o foi". Contudo, se detalhes da traição de

Judas são acréscimos redacionais ao evento histórico, não merecendo

muitos créditos a idéia do beijo na face, por outro lado a participação

ativa e voluntária de um dos apóstolos teria de fato ocorrido.

Deve-se lembrar que na sociedade de códigos de “honra e

vergonha” do Mediterrâneo, trair depois de um beijo no rosto era

abominável, mas trair com tal beijo era uma infâmia, como coloca

Crossan. Desta forma procurava-se dar a Judas as cores mais terríveis,

caracterizando-o como um ser abominável, o que se completa com a

descrição do destino do seu corpo após seu suicídio. A morte de Judas,

descrita em Mateus, apresenta paralelos com Jeremias 32:9 e Zacarias

11:12-13 e se assemelha á morte de Aitofel, em 2Samuel 17:23, de

forma que não podemos ter segurança em afirmar se a descrição dos

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evangelhos é real, ou apenas reflete a composição desses textos, para

dar mais dramaticidade ao fato narrado. Em Atos dos Apóstolos (1:18-

20), o próprio Judas compra um campo e seu corpo é arrebentado ao

meio, daí o nome de "Campo de Sangue".

Sendo o mestre galileu um homem popular e considerado, por

grande parcela da população, como o messias da casa de Davi ou, pelo

menos, um homem santo que, com sua pureza de coração e feitos

miraculosos, deixava os sacerdotes embaraçados, não se pode deixar de

pensar que um assassinato desses exatamente no momento em que a

população festejava a libertação de um cativeiro poderia levar a surtos

ou uma grande revolta de cunho nacionalista. Talvez teria sido melhor

para a cúpula sacerdotal tentar tornar esse homem mais próximo dos

seus interesses ou leva-lo a ser executado pelos romanos, mesmo que

isso viesse a implicar a possibilidade de criação de um mártir. Foi o que

ocorreu.

9.3 O julgamento

Para Crossan, um dos mais polêmicos e questionadores

estudiosos do Jesus histórico, o julgamento de Jesus foi redigido pelos

evangelistas para ocupar o espaço vazio deixado pela ausência de

memórias reais sobre o que ocorreu de fato. Assim, dois julgamentos

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seriam criados, um judeu e outro romano, para opor os cristãos aos

ocupantes do poder na Palestina do século I. d. C. Contudo, existem

alguns pontos do processo que se não forem históricos, remontam à

forma com que as primeiras comunidades cristãs entendiam o

julgamento de Jesus e sua execução e possuem, pelo menos

parcialmente, vínculos com o que de fato ocorreu na Palestina.

Embora muito tenha sido dito sobre a subordinação de um

tribunal judeu à autoridade romana, hoje se sabe que os romanos nunca

se prestariam a fazer para os judeus o trabalho sujo de prender um

"bárbaro", como eles viam um não-romano, que havia cometido crimes

contra a fé de seu povo, o que decididamente ele não cometeu, muito

menos participar de uma prisão ilegal e sem razão, o que não era do

desejo de nenhum governante romano, como Poncio Pilatos, um dos

que mais tempo exerceu o poder romano sobre a Judéia.

Assim, a presença romana na prisão de Jesus significa que o

crime cometido feria diretamente o poder romano e, provavelmente, foi

visto como de grande importância, visto que uma coorte, com seus 300

a 400 homens , no mínimo, foi enviada para a prisão. Agora, Jesus era

prisioneiro romano, acima de qualquer coisa. Contudo essa descrição da

prisão de Jesus é exagerada, visto que as forças que cuidavam de

Jerusalém naquela época não eram muito maiores do que isto. Essa

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descrição se dá porque Marcos a descreve como PODERIA ter sido,

enquanto João a imagina como ela DEVERIA ter sido: um rei deveria

ser preso assim. Do coração dos fiéis do século I d. C. saíram os demais

arroubos da descrição da prisão de Jesus.

O fato de Pilatos ter se encontrado com Jesus na manhã seguinte

já significava que ele o estava esperando, como se já soubesse da prisão

e do crime cometido, o que reforça a idéia de que a prisão foi, em sua

natureza e origem, romana. A presença judia, na captura do mestre

galileu, foi resolvida por uns como sendo fruto de um mandato de

prisão prévio emitido pelo Sanedrim, reforçando um segundo mandato,

agora romano. Contudo, tal atitude teria sido um disparate diante de um

tribunal romano, que nada tinha com os crimes judeus que não

interferiam com a manutenção da paz romana. Se romanos estavam

presentes, o mandato de prisão era essencialmente romano ou apenas

romano.

Também deve-se salientar que o pedido do Sanedrim de apoio

romano na prisão de Jesus somente aumentaria ainda mais a aversão da

população em geral para essa instituição, que vinha tendo diversas

dificuldades para se legitimar perante a população. Os próprios romanos

poderiam ver nessa solicitação um sinal de fraqueza e desfazer uma

instituição que não era capaz de se livrar de um carpinteiro. Então, se

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uma força romana foi enviada para prender o mestre, o que lá faziam os

enviados da polícia do Templo, já que a mesma deveria estar

extremamente sobrecarregada com os problemas oriundos da

proximidade da Páscoa, quando centenas de milhares de pessoas de

todo o império acorriam a Jerusalém?

A presença dos judeus ali se deu por solicitação sacerdotal e

como os romanos tinham postos de detenção em Jerusalém e, mesmo

assim, entregaram Jesus aos judeus, naquela noite, só nos resta imaginar

que o prisioneiro foi entregue à polícia do Templo como consequência

de uma solicitação de seu capitão ou de um oficial da elite sacerdotal.

Na manhã seguinte, bastaria devolve-lo ás autoridades que efetuaram a

prisão. Talvez a polícia judia estivesse ali no monte para conseguir a

custódia de Jesus por aquela noite. Alguém ou grupo muito importante

queria ter momentos a sós com Jesus e, como sugere o espírito de

Eleazar, dinheiro teria sido oferecido para importantes autoridades

romanas, talvez o próprio Pilatos, que não era dos mais honestos e sabia

que a Palestina era o inferno na Terra para os mandatários de Roma. Os

apóstolos não teriam como saber disso e nada ficou registrado.

Reparem que, embora Jesus tenha sido preso pelos romanos, não

foi levado para qualquer tipo de cárcere e sim á casa do Sumo Sacerdote

ou do sogro do mesmo, que também já havia exercido esse posto.

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Assim, o pedido de custódia de Jesus deve ter sido feito diretamente

pelo próprio sacerdote e em seu nome cumprido. O Sumo Sacerdote

tinha conhecimento prévio do mandato de prisão contra Jesus e

destacou uma força da polícia do Templo para acompanhar o ato e

trazer o prisioneiro para uma discussão urgente. O próprio sacerdote

deve ter informado o poder romano sobre a possibilidade de tumultos e

sobre a volatilidade da situação que envolvia o mestre de Nazaré.

Embora João cite que Jesus foi agredido durante sua condução

até a casa de Anás e, depois, a Caifás, os demais evangelhos se calam

sobre isso, perdendo uma ótima oportunidade de incriminar ainda mais

os judeus. De fato, Jesus chegaria fisicamente bastante ferido, com

escoriações por todo o corpo, o que não era exceção na época em que

esses fatos se deram, seguindo a filosofia do “se ele não for culpado

dessa vez, pelo menos aprende e não se envolve em outros problemas

no futuro”.

Levado para a presença da elite sacerdotal judia, nada foi feito

para mantê-lo prisioneiro e nada lhe foi dito sobre sua condição de

prisioneiro. Ao invés de ser mantido em uma masmorra, foi levado

provavelmente ao interior de um cômodo da residência do Sumo

Sacerdote onde todos os conselheiros do Pequeno Sinédrio poderiam se

reunir. Segundo Lucas, Jesus passou a noite sendo agredido e zombado,

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sendo que a reunião com os membros do Sinédrio somente teria

ocorrido na manhã seguinte. A narrativa joanina sugere que Jesus foi

mantido em contato, inicialmente, com apenas poucos dirigentes judeus

na presença de Anás e só então enviado ao Sinédrio, de forma que a

entrevista noturna era apenas uma prévia do que se passaria no dia

seguinte na presença de Pilatos. Eleazar concorda com João.

Alguns estudiosos judeus acabaram criando a versão segundo a

qual Jesus teria uma entrevista na casa do Sumo Sacerdote, antes da

apresentação a Pilatos, com a intenção de livrá-lo da pena capital que

certamente lhe seria conferida. Acreditamos que a conversa entre Jesus

e alguns dos principais sacerdotes tenha, de fato, ocorrido e que os

sacerdotes tinham motivos para realizar esse encontro a portas fechadas,

posto que não deveria aparecer ao grande público. Qual seria o motivo

desse silencio? O que procuravam descobrir ou encobrir?

A palavra que pode responder isso tudo é......“fariseus”. Eles

foram os responsáveis pela conversa. Os sacerdotes sabiam que Jesus

seria condenado a alguma pena severa pelos romanos, possivelmente a

morte na cruz, ou provavelmente açoite intenso que o deixaria

desfigurado. A questão maior é de que o mestre galileu era visto com

alguns dos homens mais ricos da Judéia, grande comerciantes, que

poderiam financiar movimentos de resistência ou manter um grupo

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religioso dissidente e atuante. Esses homens eram fariseus e mantinham

extensas conexões no Grande Sinédrio. Quais seriam as ramificações do

movimento de Jesus dentro do farisaísmo? Como o galileu pobre e

carismático encarava seu papel naquele momento da história? Até que

ponto o Sanedrim poderia ser responsabilizado pelos romanos, caso o

galileu fosse condenado? Se ele fosse condenado, entregaria seus

simpatizantes do Sanedrim? Essas questões teriam de ser feitas e

respondidas. Depois disso, poderiam fazer o que bem entendessem com

aquele homem, se possível, o melhor seria calá-lo para sempre, através

da cruz.

Tudo corrobora com essa posição do espírito Eleazar. Por

exemplo, se os fariseus não eram os crápulas pintados pelos

evangelistas, como já discutimos, será que tiveram algum envolvimento

com o movimento de Jesus? Sim, e foi significativo, com muitos

expoentes do judaísmo farisaico se tornando simpáticos ao judaísmo

redivivo, representado por Jesus. Muitos fariseus pareciam admirar o

movimento cristão por sua natureza eminentemente judaica-palestina e

todos sabiam que alguns seguidores do mestre eram bastante reticentes

quando se tratava de travar contato com as forças de ocupação romanas

e tinham uma postura bastante crítica quanto à presença de romanos em

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seu solo sagrado. Lembre-se que assim o é até no presente; triste

Palestina.

Alguns desses judeus de origem farisaica, que tinham

confraternizado com os seguidores do caminho, como Zaqueu, José de

Arimatéia e, principalmente, Nicodemos ben Gurion, o homem mais

rico da Jerusalém na primeira metade do século I. d. C., eram

simpáticos também a algumas aspirações messiânicas, embora não

soubessem claramente o caminho a tomar. Eram condescendentes com

os primeiros movimentos nacionalistas que estavam surgindo e Jesus

poderia vir a ser bastante útil como o líder carismático que iria unir a

população em torno de uma grande e nobre causa. Em função das

conexões econômicas, muitos dos membros do grande e do pequeno

sinédrios acabavam tendo negócios com esses personagens e o próprio

poder judeu constituído não sabia, ao certo, qual era o envolvimento e a

participação desses homens abastados na estrutura do grupo liderado

por Jesus.

Dessa forma, acreditamos que essa entrevista prévia destinava-

se a determinar com segurança a participação de outros personagens no

drama que se desenvolveria ao longo do dia seguinte, na presença de

Pilatos, bem como determinar se Jesus seria capaz de se incriminar

sozinho ou de incriminar gente importante, o que ele nunca faria,

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segundo a filosofia de que cada um deve carregar a sua própria cruz. Se

pessoas importante do Sanedrim fossem incriminadas como cúmplices

de Jesus, o próprio Sanedrim e o Sumo Sacerdotes corriam o risco de

serem eliminados da face da Terra por Roma, acabando com a modesta

liberdade deixada nas mãos dos judeus.

Todos ali reunidos ficariam bastante satisfeitos se o messias de

Nazaré fornecesse os elementos capazes de incriminá-lo em um tribunal

romano, uma vez que não foi submetido a julgamento pelos judeus,

como veremos a seguir.

O Sinédrio, ou Sanedrim, tinha o direito de impor a pena de

morte a culpados do crime capital, pela lei judaica, mas a execução da

pena implicava em apedrejar, queimar ou chacinar o culpado, não

podendo a pena ser substituída por uma execução por métodos

estrangeiros como a crucificação, desenvolvidas pelos persas e

particularmente bem executada pelos romanos. O julgamento judeu, tão

popularizado desde o início da cristandade, supõe que Jesus foi

condenado à morte por blasfêmia, tendo ele confessado tal crime. Essa

teoria é absolutamente incoerente em função de numerosos elementos,

listados abaixo:

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1. o Sinédrio não poderia se reunir e julgar fora do Templo,

lembre-se que tudo se passou na casa do Sumo Sacerdote

ou do seu sogro;

2. o Sinédrio não poderia julgar durante o período noturno;

3. ninguém poderia ser julgado por crime nos dias festivos

ou na véspera de um festival (estávamos na véspera da

Páscoa);

4. ninguém podia ser considerado culpado por força de sua

própria confissão e sim pelo testemunho de duas

testemunhas oculares adequadamente qualificadas, que

no caso de Jesus não foram encontradas;

5. ninguém podia ser considerado culpado do crime capital

sem ter sido avisado por duas testemunhas oculares

adequadamente qualificadas que tenham verificado que o

acusado fora advertido sobre a ilegalidade do ato e as

consequências do mesmo;

6. o crime capital diz respeito do pronunciamento do nome

sagrado de Deus, não importando que outras calúnias são

ditas sem que o santo nome seja pronunciado.

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Nada disso ocorreu, o que tornaria ilícito o ato de condená-lo e

poderia dar início a uma revolta, uma vez que todos ali sabiam como o

mestre galileu era amado pelo povo comum.

Aqueles que acreditam no julgamento judeu alegam que essas

observações provam apenas que o julgamento foi ilegal e que os judeus

estavam desejosos de se livrar de Jesus. Para eliminar a possibilidade de

que o julgamento tenha se dado na véspera da Páscoa, alguns estudiosos

preferem rever a data em que o mesmo teve início, criando a cronologia

dos três dias, como previamente discutido aqui, seguindo a cronologia

de João, o que de fato ocorreu, mas os demais pontos da lista acima

continuam sem solução. Outra forma de resolver o problema reside em

atribuir uma natureza saducéia ao julgamento e, já que não sabemos

quais eram os preceitos do direito saduceu, qualquer peculiaridade

poderia ser atribuída a um julgamento assim; isso é “forçar a barra”.

Porém, não podemos nos esquecer que os saduceus observavam

estritamente os mandamentos do Pentateuco, ignorando tudo que

representasse acréscimos posteriores e tradições, de forma que temos

que procurar aspectos desses livros que podem ter sido contrariados

pelo julgamento de Jesus.

Nesse caso, os julgamentos em vésperas de festivais e dias de

festas seriam lícitos, mas existem boas evidências de que um

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julgamento noturno estava fora de qualquer cogitação dentro da lei

judaica, saducéia ou não, visto que em Números (25:4) o texto bíblico

exige que o julgamento e a punição dos criminosos sejam realizados

enquanto o sol brilha. A lei judaica em Deuteronômio (19:15) exige que

a condenação por pena capital seja feita apenas com a colaboração do

testemunho de duas ou três testemunhas fidedignas e todas as

testemunhas que se apresentaram no julgamento de Jesus foram

recusadas por serem incoerentes e o mestre teria sido condenado pelas

suas próprias palavras, o que contraria as escrituras. Um julgamento

saduceu parece tão improvável quanto um julgamento fariseu.

Existe também a idéia de que o Sinédrio teria atribuído ao

julgamento e à situação ligada a ele um caráter emergencial, que

permitiria passar por sobre todos os aspectos da lei judaica e constituir

algo próximo de um rito sumário. Um precedente que poderia ser

empregado para justificar essa crença reside na experiência de Simon

ben Shetah, presidente do Sinédrio, no século II a. C., que teria

ordenado o enforcamento de 80 feiticeiras em Ascalon depois de pedir

para si poderes emergenciais, mas essa ocorrência é uma exceção e não

regra, além do que, no caso das feiticeiras, não existiu, por parte do

presidente do Sinédrio, a mínima intenção de instituir um processo

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formal como aquele descrito pelos evangelhos, os quais tentam deixar

claro que os sacerdotes procuraram seguir um procedimento padrão.

Os fariseus eram legalistas, procurando observar os preceitos da

lei da forma mais completa possível, mesmo que esse formalismo

pudesse ter atenuantes na vida diária, mas não na aplicação do rito de

um julgamento por um crime capital, o que sugere que poucos fariseus

estavam presentes nesse julgamento, realizado já de antemão para

avaliar a culpabilidade de Jesus seus seguidores. Porém, se a reunião

noturna na casa do Sumo Sacerdote não se tratou de um julgamento,

todos esses elementos podem ser retirados e as incoerências tendem a

desaparecer. Se a reunião noturna fosse uma sessão investigatória

preliminar com intenções de analisar uma situação, então seria lícito a

reunião do Sinédrio na forma de um conselho, sumboulion em grego,

como utilizado nos evangelhos, enquanto que o Sinédrio como órgão de

julgamento ou tribunal seria denominado de krima.

A reunião desses conselhos podia ser realizada nas casas dos

seus membros, à noite. Assim, se tal reunião existiu, não foi o Sinédrio

como um todo que se reunira e, tampouco, nessas condições, poderia

emitir a sentença capital. A reunião de um conselho está implícita no

texto joanino e vai contra a descrição dos sinópticos, que seriam fruto

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de interpolações cristãs. João concorda, implicitamente, com os pontos

listados acima, como destaca Haim Cohn.

O julgamento de Paulo perante o Sinédrio, décadas depois,

mostra como seria um julgamento judaico, que não teria sido

interrompido, como foi, se Paulo não fosse cidadão romano e tivesse

alertado as autoridades romanas. Os judeus, por mais colaboradores que

alguns indivíduos pareciam ser para com os romanos, nunca utilizaram

o Sinédrio como auxiliar de um tribunal romano, mas assumiriam

prontamente a jurisdição sobre um judeu preso por romanos que tivesse

cometido um delito frente à lei judaica, desde que o mesmo não tivesse

cometido um crime frente ao poder romano. Nunca entregariam um

judeu aos romanos, como sugere a leitura dos evangelhos, a menos que

o crime fosse frente a lei romana. Esse era o caso de Jesus.

Pelo direito romano, a autoridade imperial não podia pedir ao

Sinédrio, ou a quem quer que fosse, para proceder a um inquérito

preliminar, mesmo para penas capitais. Cabia ao acusador o ônus de

encontrar as testemunhas que corroborassem com a acusação. Se o

Sinédrio fosse o acusador ele teria de encontrar testemunhas e parece

que foi isso que ele fez, mas o acusador teria de ser pessoa física e não

um grupo de indivíduos e caso o réu fosse alvo de calúnia o acusador

sofreria a perda de seus direitos civis, ou mesmo sofrer a pena para o

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crime que tentara incriminar o réu, inclusive a morte. Tendo o Sinédrio

considerado as testemunhas, contra Jesus, como incoerentes, ninguém

teria a coragem de chegar a acusar o galileu perante a autoridade

romana. Seria loucura e eles não era loucos, eram astutos.

Os judeus acusavam Jesus de subverter o povo, vedando o

pagamento de impostos ao imperador (Lucas 23:2), perverter a nação (

Lucas 23:14), de ser malfeitor (João 18:30), de se fazer rei (João 18:33-

34), não acusando-o de blasfêmia. Se durante o interrogatório noturno o

pseudo Sinédrio apenas buscou delitos contra o direito judaico, por que

teria feito uma acusação baseada no direito romano, sendo que, por

vezes, os judeus mais nacionalistas eram mais ou menos acobertados

pela classe dirigente, principalmente se essa mesma classe pudesse

tentar obter seu apoio em caso de insurreição, como aconteceria na

revolta judaica de 66-73d. C.?

A classe sacerdotal encontrava-se em uma situação delicada e

provavelmente queria se livrar de Jesus com o menor derramamento de

sangue possível, não por misericórdia ao povo, mas para não interferir

nos seus lucros com a Páscoa. Com sua legitimidade no Sinédrio sendo

contestada de forma surda pela população, lutar para salvar da morte

um jovem líder carismático que não tinha cometido nenhum delito

capital perante a lei mosaica poderia contribuir para deteriorar ainda

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mais a sua imagem perante a população, particularmente perante os

fariseus, mais nacionalistas e dominantes no Sinédrio. Assim, seria

ótimo se os romanos pudessem fazer o trabalho desagradável e eles, os

invasores, não se incomodavam muito com isso.

Jesus, para ser inocentado, teria de proferir palavras que

mostrassem boa vontade frente ao poder romano, o que significava não

ter qualquer inclinação messiânica ou ligação com profecias sobre a

chegada de um rei da casa de Davi ou de qualquer tradição nacionalista

judaica. Mas nosso mestre, quando perguntado pelo Sumo Sacerdote se

era o rei, filho do Deus Bendito, respondeu que era o Cristo, Filho do

Altíssimo, e que logo estaria do lado direito do Pai Todo Poderoso. Essa

resposta de Jesus evidenciou, ao Sumo Sacerdote, que os romanos não

teriam motivo para deixá-lo livre e, encolerizado, embora apenas

aparentemente, em um drama para que os demais assistissem, rasga

suas vestes, um ato bem ao sabor da época, para expressar aflição ou

indignação.

Muitos consideram que Jesus apenas assumiu seu caráter

messiânico nesse momento, declarando-se o escolhido (em realidade o

título de “Filho de Deus” lhe seria conferido posteriormente pela igreja

que se aproveitou desse momento para fazer mais um forte discurso em

favor da divinização de Jesus), mas isso não configurava blasfêmia

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perante o Sinédrio. A reação de rasgar as vestes significava que a sorte

do messias galileu estava selada. Os demais membros do conselho em

reunião também reagiram de diferentes maneiras frente às declarações

de Jesus, cuspindo e esbofeteando-o, segundo o texto joanino, sendo

que em seu interior aqueles homens sorriam, como coloca Eleazar, um

desses indivíduos, pois se livrariam do problema “Jesus” facilmente,

visto que o galileu assumiria seu papel de messias divino e acabaria na

cruz, calando-se a respeito de tudo quanto temiam os membros do

referido conselho.

O título “Filho do Homem”, por vezes utilizado por Jesus, pode

ter muitos significados, desde “ben Adam’, do hebraico “filho de um

homem’, ou literalmente “filho de Adão”, evidenciando um sentido

totalmente oposto ao pretendido por aqueles que o acusavam de se fazer

passar por um quase “deus”. A humildade de Jesus não permitiria isso e

os orofetas também receberam esse título, algo como “querido ou

enviado de Deus”, e também existe o “Filho do Homem” de Daniel, que

uma vez enviado através das nuvens, faria o poder de Deus presente em

todo o mundo e traria a redenção da casa de Israel. Nesse caso, o termo

trazia uma forte inclinação messiânica.

No sentido bíblico utilizado por Jesus, parece claro que o termo

não é uma alusão á divindade do mestre de Nazaré, mas destaca seu

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lado humano e essa interpretação foi seguida por muitos dos pais e

estudiosos da igreja, como Inácio, Irineu, Orígenes, Eusébio, Atanásio,

Gregório de Nisa, Gregório Nazianzo, Cirilo, Crisóstomo, Tertuliano,

Ambrósio, Cipriano e Agostinho. Quando Jesus fala de si como o Filho

do Homem parece discorrer na maravilha que Deus fez ao se fazer

representar na carne de um homem “comum”, para transformar os

corações de seus pares. Um homem imbuído do saber e autoridade

plenas, falando em nome do Pai, mas um homem. Isso não constituía

crime perante a lei judia, mas trazia implicações perante o poder

romano e à classe sacerdotal, como a existência de um poder paralelo e

um reino passível de ser atingido por todos, inclusive o imperador, com

a condição que se entregassem a esse Senhor Deus.

Se Jesus tivesse falado do seu poder sobre elementos, doenças e

destinos dos homens, sem invocar a força da piedade divina e sua

infinita glória, talvez tivesse despertado reações muito acaloradas, mas

em todos os momentos ele atribui seu poder unicamente à vontade do

Pai, que está acima de todos e de tudo. Isso seria algo até certo ponto

elogioso, para muitos membros do Sinédrio. Vários galileus

considerados santos, como Honi ou Hanina ben Dosa, se apresentavam

como servos de Deus e não tiveram problemas com o Sanedrim. No

julgamento dos discípulos de Jesus, anos depois, palavras muito mais

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provocadoras foram proferidas e os judeus, encabeçados por Gamaliel,

um sábio fariseu muito respeitado, acabaram fazendo cumprir uma pena

muito menor do que a pena capital.

A admissão de ser o messias feita por Jesus, diante o Sinédrio,

equivalia a obrigar os sacerdotes judeus a aceitarem como certa sua

reivindicação, colocando-se sob suas pretensões messiânicas, o que

seria impensável para os sacerdotes, além de correrem o risco de serem

vistos como cúmplices do galileu, segundo a mentalidade romana.

Aceitar Jesus como messias, mesmo que alguns o fizessem, como os

evangelhos sugerem sobre Nicodemos e José de Arimatéia o fizeram,

significava cair em desgraça frente ao poder romano e uma confirmação

do que as autoridades romanas suspeitavam quanto á natureza da

pregação de Jesus e das atividades de alguns membros do próprio

Sinédrio.

Apenas no evangelho de Marcos, Jesus é condenado à morte

(14:64), enquanto em Mateus (26:66) se lê que o galileu era “réu de

morte”, enquanto em Lucas nem essas palavras são proferidas. Mesmo

que esse julgamento tivesse sido realizado, nada foi proferido sobre isso

a Pilatos, o que seria muito estranho. Contudo, diante das palavras de

Jesus, é possível, se não provável, que palavras duras tenham sido

proferidas por membros do Sinédrio, revelando que o réu logo seria

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condenado diante dos romanos. Durante a condução ao palácio onde

Jesus seria julgado por Pilatos, o mestre galileu foi agredido como se

fosse um prisioneiro comum, mas essa agressão, na melhor das

hipóteses, não foi intensa, pelo menos nada perto do que ele sofreria nas

mãos das autoridades romanas.

Jesus foi levado á presença de Pilatos, que já o esperava, e foi

acusado por todo o conselho, anciões e sacerdotes diante da autoridade

romana. Manietado pela polícia do Templo, Jesus era uma presa nas

mãos romanas. Seu fim como encarnado se aproximava. Tudo de

acordo com a redação dos evangelhos. Mesmo sem uma acusação

prévia por parte dos judeus, a história se movimenta. A própria

admissão de Jesus no pretório seria vedada, se não houvesse uma

acusação formal contra ele, mas uma vez que Pilatos já estava pronto

para o julgamento, é óbvio que ele já sabia qual era a acusação, então

essa devia ser romana.

Existe um sério problema em ter os judeus assistindo ao

julgamento de Jesus: ele teria sido realizado, como manda a tradição “in

câmera” , ou seja, em ambiente fechado e sem a presenças desses

inoportunos cidadãos. Apenas os apparitones, auxiliares, eram

admitidos no tribunal e nada indica que, no caso desse julgamento

particular, algo tenha acorrido que fugisse á regra. O evangelho de João,

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mais uma vez, parece correto quando afirma que os judeus não puderam

entrar no praetorium onde se dava o julgamento, sendo que muitos

alegaram razões de pureza ritual para esse impedimento ou, mais

provavelmente, por terem sido barrados pela autoridade imperial

exercida pela figura de Poncio Pilatos.

Pilatos era cirúrgico, efetivo e violento. Não sentia a mínima

compaixão pelos seus semelhantes e se divertia, como aliás quase todos

os romanos, com o apego religioso da população local, com a diferença

de que ele odiava os judeus, principalmente porque esses ainda se

consideravam superiores aos romanos. Naquele dia fatídico, o prefeito

da Judéia iria encarar, face a face, o mestre de Nazaré e o resultado

pode bem ser lido no romance de Emmanuel, "Há 2000 anos". Contudo,

sabemos dos apelos poéticos de um livro romanceado, onde o clímax de

uma situação por vezes somente é atingido com algumas licenças de

historicidade. Sabemos que, de início, os judeus insistem que Jesus

deve ser responsabilizado pelo crime de lesa-majestade, atividades

subversivas contra Roma, em poucas palavras. Pilatos parece não

aceitar essa acusação.

A apresentação de Jesus a Herodes foi motivada também por

uma espécie de curiosidade que o prefeito romano passou a sentir em

função do comentários populares, que diziam que o mestre galileu era

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um homem de profunda sabedoria, embora não tivesse estudo, além de

ser portador, na "língua do povo", de estranhos poderes. Inicialmente

inclinado e acabar logo com o murmúrio sobre o nazareno, presente

mesmo entre seus soldados, assim que viu o messias judeu pela frente,

sentiu fortes dores no peito e alma parecia que queria explodir no seu

interior.

Pela primeira vez na sua vida ele se via diante de uma sensação

que não conseguia dominar. Era como se o filme de suas muitas vidas

estivesse passando em sua mente, tal qual lembranças de um tempo de

criança. Ao mesmo tempo em que desejava acabar com a situação, ele

desejava saber mais do galileu. Ao contrário dos textos canônicos, o

poder romano não precisava de mais um motivo para liquidar a vida

física de Jesus, quem, naquele momento, pretendia manter a discussão

era o líder romano e por motivos puramente pessoais. Os judeus não

tomaram parte no ocorrido porque sequer podiam entrar no recinto.

O relato joanino ainda evidencia que embora o julgamento tenha

sido realizado “in câmera”, o anuncio da sentença foi público, como

uma maneira de informar os que desconheciam a natureza do processo,

as razões que levaram ou não a uma condenação do réu, sem o qual, o

julgamento como um todo poderia ser considerado tirânico e um

simples assassinato.

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A inteligência de Jesus e a forma com que ele respondia as

questões não eram tão relevantes para Pilatos, quanto o impressionante

magnetismo do Cristo. A conversa curta foi o suficiente para que o

mandatário romano se demovesse de matar Jesus. Tal mudança brusca

de posição era fruto nas das palavras ouvidas, mas do efeito que a

simples presença desse homem santo tinha sobre as pessoas. Todas as

vezes que isso é descrito no cânone, os estudiosos atribuem a redação

do texto a algum cristão que tentava declarar seu amor ao Cristo e o

texto é descartado. Contudo, sabemos de pessoas com uma capacidade

enorme de envolver os outros e modificar, apenas com seu magnetismo

e carisma pessoais, as intenções de terceiros. O messias galileu era uma

dessas pessoas.

As palavras ditas em grego truncado pelo sotaque semita de um

lado e latino de outro eram irrelevantes naquela conversa. O prefeito

sentiu como se estivesse sendo julgado e toda a angústia e o ódio que

sentia, no seu interior, desapareceram como que milagrosamente. Por

momentos, ele se esqueceu de suas responsabilidades e do fardo de

estar naquela terra de fanáticos religiosos. Ele chegou mesmo a

considerar que o que diziam de Jesus, quanto a ele ser um mensageiro

dos deuses, poderia ser real, pena que era judeu, posto que se fosse

romano, seria logo aclamado como um grande filósofo.

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O próprio Pilatos sabia que o judeu Jesus não representava,

naquele momento, risco de insurreição, mas temia que alguma

associação futura entre ele e algum dos muitos grupos de insatisfeitos

acabasse ocorrendo. A hesitação do líder romano era fruto da

convergência de diversos elementos, notadamente a sua obrigação em

crucificar Jesus e a sua vontade pessoal de fugir dali e se retirar em

algum local ermo onde pudesse ter paz e deixar de escutar as palavras

que perturbavam a sua mente. o Peso era de fato enorme. Com o tempo,

toda essa batalha foi transferida para os atores que eram visíveis aos

evangelistas, o poder romano e os líderes saduceus.

A elite sacerdotal não esperava que o galileu viesse a sobreviver

a esse episódio e diversos grupos foram chamados, à custa de recursos

pessoais dos principais líderes saduceus, para se fazerem presentes.

Emissários dos sacerdotes estavam à espera de notícias sobre o messias

galileu e isso explica porque os judeus presentes sempre são descritos

de forma tão genérica. A redação dos evangelhos provavelmente reflete

a necessidade de colocar os arquiinimigos de Jesus no julgamento por

razões teológicas e políticas.

Nas aparições de Pilatos no pátio onde as multidões judias se

encontravam, o romano se manifestava repetidamente absolvendo Jesus

de todas as acusações, o que, como veremos adiante não pode ter

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acontecido, visto que perante o poder imperial Jesus, de fato, havia

cometido o mais grave dos crimes e seria merecedor da pena capital: ele

era o rei de um reino que não era desse mundo, mas no mundo romano,

isso era o mesmo que desafiar a figura do imperador. Os judeus não

fizeram nenhuma acusação mais fundamentada, dizendo apenas que

Jesus era malfeitor. Ora, se queriam e estavam há muito planejando

matá-lo, já deveriam ter preparado uma acusação mais substanciada do

que a que apresentaram nos textos canônicos. Estavam todos perdidos e

a crucificação foi considerada como medida padrão preventiva, menor.

Foi sugerido que, ao ver a postura passiva de Jesus diante de

Pilatos, a população teria se indignado e entendido que ele de fato não

podia ser o messias divino que era esperado para restaurar o estado de

Israel e criar uma teocracia e assim teriam pedido a cabeça do impostor.

Não devemos levar a sério esse comentário, visto que o julgamento,

tendo ocorrido no pretório, sem permissão para entrada de pessoas

estranhas ao processo, não poderia ser acompanhado pela multidão,

desqualificando qualquer idéia que se baseie no acompanhamento do

julgamento em tempo real pelos judeus.

Nada mais errôneo. Jesus foi mutilado como forma de aplacar a

sua própria indecisão de Pilatos, como se esse último dissesse para si

mesmo "fiz meu papel e ele sabe que não pode ser rei de um reino que

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não existe" ou "a imagem romana foi restaurada e esse aí não vai mais

aparecer". Temos consciência da dificuldade de aceitar essas

ponderações, mas o pouco que conseguimos captar de Jesus nos mostra

que ninguém ficava livre de sua benévola influência e Pilatos estava

nela envolto agora. Os sacerdotes sabiam das mazelas e erros de Pilatos

e seus representantes, fazendo-se presentes na entrada do pretório, eram

uma lembrança de que o Sumo Sacerdote era parceiro do poder romano

e pedia de forma "leve e sutil" que o galileu fosse eliminado.

O poder romano também se via tolhido para concretizar a

crucificação em função da época do ano em que isso se daria, a Páscoa,

onde centenas de milhares de judeus palestinos e gregos acorriam para

Jerusalém. Se o galileu tivesse um apoio popular significativo, os 3000

soldados à disposição dele não seriam suficientes para acalmar os

ânimos e uma rebelião poderia, de fato, ocorrer. Dentro desse contexto

podemos entender as consultas de Pilatos aos representantes dos

principais grupos judeus. Quando questionada sobre o galileu, a

população ali representava apenas os sócios do poder romano e não a

população comum, que vinha recebendo as dádivas divinas pelas mãos

e mensagem de Jesus. Os romanos não julgavam levar em consideração

a vox populi, sendo que uma lei dizia que “Vanae voces populi non

sunt audiendae”, ou "as vozes vãs do povo não devem ser ouvidas",

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segundo Cohn. Se alguma consulta foi feita por Pilatos, ao povo, a

mesma teria a intenção de medir o apoio popular do futuro condenado,

particularmente no período da Páscoa, quando todos os ânimos estavam

tão exaltados, e não para decidir o futuro do réu.

Nenhum episódio da paixão de Cristo é tão controverso quanto o

que se refere á escolha do prisioneiro judeu a ser solto por ocasião da

Páscoa, o episódio de Barrabás. Esse indivíduo era um insurreto e

nunca seria solto pela autoridade romana, que deveria tê-lo eliminado

precocemente.

É muito mais provável que essa passagem também tenha sido

escrita com finalidades teológicas, uma vez que manuscritos mais

antigos evidenciam que o primeiro nome de Barrabás também seria

"Jesus", de forma que a escolha pelos judeus seria entre Jesus Barrabás

(Jesus, Filho do Pai) e Jesus, o messias, rei dos judeus. Embora presente

no texto de Emmanuel ("Há 2000 anos"), não temos uma opinião

formada sobre o caso em análise, enquanto a comunidade acadêmica,

em peso, argumenta contra a historicidade desse acontecimento descrito

nos evangelhos.

A figura desse "Barrabás" é relevante no sentido de que o

mesmo representava um movimento de resistência contra a dominação

romana e, desde que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a introduzi-

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lo, nas Narrativas da Paixão, deve tê-lo feito para harmonizar sua

teologia. Como esse evangelho foi escrito logo depois da destruição do

Templo e da revolta judaica, na qual os movimentos de resistência

armada, como os zelotas e sicários, levaram o país ao caos e ruína, o

evangelista mostra que se o povo tivesse escolhido a opção de Jesus, do

amor ao próximo e do perdão, em vez da revolta e seus revoltosos,

representados por Barrabás, Israel poderia continuar existindo e o

derramamento de sangue teria sido evitado. A própria perseguição de

Jesus, por Herodes Antipas, em Marcos, provavelmente representa a

perseguição que esse governante e seus sucessores promoveram contra

a comunidade desse evangelista.

O jurista Haim Cohn enumera muitas incoerências na história de

Barrabás, tirando-lhe toda historicidade:

1. Se existia essa escolha na Páscoa, por que ela foi

limitada a esses dois personagens da história?;

2. Soltar um zelota culpado de assassinatos contra o

império, mesmo com os pedidos populares, seria algo

que ele nunca poderia ser explicado em relatório a

Tibério, o imperador, então por que teria ele feito isso?;

3. Vendo que o povo parecia em duvida sobre a quem

perdoar, por que Pilatos teria fugido completamente de

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suas responsabilidades ao deixar os sacerdotes

influenciarem a vontade popular?;

4. Como os sacerdotes poderiam influenciar o mesmo povo

que os culpava de serem colaboradores dos romanos?

5. Fora dos evangelhos não se ouviu falar ou se tem registro

desse privilégio no tempo da Páscoa, tanto entre judeus

quanto entre romanos. Nem mesmo Josefo o registra;

6. Quem concedia o perdão era o próprio imperador e não

Pilatos. Se Pilatos tivesse perdoado Barrabás, ele teria

incorrido contra a Lex Julia, algo como abuso de poder.

Os acadêmicos se inclinam para a imagem de que o episódio de

Barrabás estaria destinado a servir na catequese de gentios, não tendo

quaisquer aspectos dignos de historicidade. Ninguém soltaria um

homem assim, um agitador nacionalista, principalmente na Páscoa.

Seria o equivalente a soltar um reconhecido criminoso ou um provável

agitador, como se inflamando uma tocha em meio a um enorme barril

de pólvora. Isso seria, no mínimo, incoerente.

Outros pontos indicam que a possibilidade de escolha de um dos

dois teria sido apenas teórica, do tipo "ou esse ou esse", mas cuja

pergunta à população não teria sido formulada. Seria uma colocação

imaginária de Pilatos para com seus auxiliares e demais oficiais

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romanos que, por ventura, teriam recebido do prefeito a permissão de se

manter no recinto.

Da forma reservada em que o julgamento estava sendo

realizado, inclusive com a presença de outras autoridades romanas,

como sugere Emmanuel, a possibilidade de mostrar a extensão do poder

romano sobre os prisioneiros em questão pode até deve ter sido

considerada, até porque Barrabás era um criminoso aparentemente

conhecido, mas nunca seria concretizada em termos práticos. Também

não faz sentido uma consulta popular naquele momento, uma vez estava

claro que todos os "populares" ali reunidos haviam sido arregimentados

pelos sacerdotes saduceus e pelo Sumo Sacerdote e isso Pilatos sabia.

Existem textos que evidenciam que prisioneiros podiam ser

soltos, para ter o privilégio de festejar a Páscoa com os seus familiares,

mas essa normativa surgiu apenas no século IV, quando os evangelhos

se disseminavam pelo mundo romano e o imperador, por não encontrar

qualquer base legal para a lei enunciada no cânone, acaba sancionando-

a , o que se deu em 367 d. C., mais de 330 anos após a crucificação.

Vemos aqui um exemplo no qual os evangelhos criaram a realidade que

eles pareciam apenas descrever.

Mas mesmo assim, os prisioneiros acusados de sacrilégios

contra o imperador, assassinos, feiticeiros, mágicos, adúlteros, crimes

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contra os mortos, estupradores e homicidas deveriam continuar presos.

Jesus era acusado de lesa majestade, como veremos a seguir, enquanto

Barrabás era assassino e também um terrorista de seu tempo, em ambos

os casos temos crimes que, aos olhos de Roma e seus governantes, eram

bárbaros. Você acredita que um eficiente funcionário do império iria

libertar alguém com essas credenciais?

O julgamento de Jesus diante de Pilatos começou com a questão

“És tu o rei dos judeus ?”, essa foi a acusação formal que foi feita

contra ele: se Jesus dissesse ter direito ao trono da casa de Davi, se

dissesse ser o escolhido de Deus para reinar, como o messias devia

fazê-lo, constituía crime de lesa-majestade, alta traição perante o poder

romano. Como Jesus não fora reconhecido pelo imperador como tal, seu

reconhecimento como rei significava que alguém usurpava os poderes

do imperador e criava um estado paralelo, mesmo com a afirmação de

que esse reino que não era desse mundo. Sabemos que os romanos, por

força da lei, deveriam colocar o crime a que o réu havia sido

condenado, na cruz, e, no caso de Jesus, escrevam "Jesus o nazareno rei

dos judeus". Se Pilatos não o matasse, e ele não era homem de muitos

pudores, seria culpado também de alta traição.

A resposta de Jesus a Pilatos, “vós o dizeis”, quando

questionado sobre sua ascendência real, parece mais uma negação de

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que uma afirmação, porém seu sentido é dúbio. Pilatos repete a questão

e, pela resposta, verifica que essa tinha uma conotação afirmativa, a

qual foi acompanhada da explicação de que o reino era de natureza

metafísica, o que Pilatos certamente não entendeu, uma vez que, para os

romanos, rei era rei e não havia distinção entre o reino espiritual ou

divino e o mundo real, secular. A admissão de um título divino ou de

qualquer privilégio perante Deus, por uma alma vivente, no império, era

algo que feria profundamente a imagem do próprio imperador, que se

fazia deus encarnado.

Esse rei, Jesus, era muito mais perigoso que os reis terrenos,

visto que todo aquele que desejasse a verdade a ouviria de sua boca,

como o próprio Jesus afirmou. Um rei que não precisava de servos ou

exército, que parecia fazer do imperador um homem poderoso, mas

apenas um homem, perante a magnânima posição do Deus verdadeiro;

esse rei cujo reino não era desse mundo constituía um perigo

demasiadamente grande para ser ignorado e precisava ser eliminado

antes que muitos dessem crédito às suas palavras. Pilatos teria de fazê-

lo, mesmo com todas as células do seu corpo físico e seu guia espiritual

pedindo para que o prefeito romano não viesse a eliminar o estranho

que diante dele se colocava. Seria um peso enorme que aquele espírito

carregaria pelos séculos seguintes, como de fato ocorreu.

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O episódio da mulher de Pilatos, revelando seu sonho

premonitório sobre o que fazer no processo contra Jesus foi considerado

como destituído de historicidade pelos estudiosos e incluído nos textos

dos evangelhos para torná-los mais adequados aos gostos romanos, que

davam grande atenção aos mesmos, aos sonhos. Entretanto, a família e

a alma de Pilatos estavam sobre forte comoção espiritual, se é que

podemos denominar assim. O dever de um lado e o medo do outro;

aquele galileu parecia ter um conhecimento e uma força que ele, Pilatos,

na sua meia idade, sequer podia imaginar e isso ficava patente, por isso

o prefeito romano parecia tão diferente do habitual. A insignificância

dilacerava o íntimo do "poderoso", mas não gerava ódio, produzia

apenas uma enorme consternação, uma angústia sem limites. "O que

fazer? Como posso passar por isso?", questões como essas martirizavam

o coração do eficaz servo do imperador.

É dentro desse contexto que se deu o "lavar as mãos", que

também constitui outro sério problema para os textos canônicos, o qual

foi realizado por Pilatos para selar a paz com os deuses, que tinham leis

próprias e não precisavam prestar contas perante o imperador romano,

livrando-se do peso do sangue de um justo. Agradaria a todos; matando

o traidor agradaria ao poder imperial, se livrando da culpa agradaria os

deuses. Tudo se daria de acordo com a vontade dos deuses, como de

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fato ocorreu, aliás, nada se dá sem a anuência do Criador,

independentemente do nome que lhe conferimos.

Os procedimentos perante Herodes, relatados por Lucas, são

muitas vezes considerados incorretos e, talvez, fantasiosos, até porque

não havia tempo suficiente para que tudo isso se desse daquela forma.

Os evangelhos ainda relataram que Pilatos e Herodes não se davam

bem, talvez pelos privilégios que os príncipes herodianos pareciam ter

na corte imperial, com contato direto com o imperador, tornando pouco

provável essa delegação de poderes (Pilatos envia Jesus para Herodes),

particularmente quanto ao direito do prefeito romano em executar seus

prisioneiros culpados de alta traição.

Como Herodes era amigo de César, seria pouco recomendável

tornar claro essa hesitação a um inimigo político próximo do imperador.

Assim, parece que Lucas quis colocar que todos os poderes da terra se

voltaram contra o enviado dos céus. A teologia ditou a história narrada.

Herodes Antipas sentiu o ressentimento popular contra morte de João, o

Batista, de forma que não valeria a pena o risco de ter um

descontentamento popular ainda maior com a morte do profeta e

messias galileu, o que explicaria porque Jesus não fora eliminado na

Galiléia. Herodes Antipas não tinha a energia e a inteligência de Pilatos,

sendo pouco mais que um parasita que era mantido em um cargo por

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vontade de Roma. Não merecia nada além daquilo que o imperador já

lhe concedia e aos seus irmãos também.

A postura ambígua de Pilatos acabaria dando origem às

lendárias intercessões dos sacerdotes contra Jesus, criando uma imagem

de homem quase santo para o comandante romano, além de acentuar

para posteridade a fama de insanos para os judeus, com trágicas

conseqüências para esses últimos ao longo de 2000 anos. Convertido

pelo imaginário popular em um quase santo, Pilatos se tornaria, no

imaginário apenas, até amigo dos que se afeiçoavam a Jesus e seus

ensinamentos, tendo sido escrito um evangelho em nome dele, chamado

de "Atos de Pilatos", texto apócrifo e tardio que objetivava mostrar a

santidade de Jesus e incriminar os judeus em todo o processo de

julgamento. obviamente esse livro é bastante tardio e foi escrito por

algum cidadão ou comunidade romana que queria se livrar de qualquer

elemento histórico que apontasse para a responsabilidade do império na

morte de Jesus.

Embora a mente e a alma de Pilatos pedissem para que ele

julgasse o mestre galileu um demente ou idiota, o que permitiria sua

soltura, o apego à ordem e ao senso de responsabilidade, além do

assédio de entidades trevosas, acabaram por determinar a crucificação

do mestre galileu. Assim, após momentos de ansiedade e hesitação, ele

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determinou que o ritual da crucificação fosse consumado, o que os

emissários do Sumo Sacerdote e de alguns membros do Sanedrim

desejavam. Para os sacerdotes, a morte de Jesus também representava

um tipo de queima de arquivo, pelo envolvimento de fariseus ricos do

Sanedrim no grupo de simpatizantes do mestre.

A flagelação nunca seria instituída para substituir a crucificação

ou para aplacar o desejo circense da população, ainda mais sobre um

homem inocente. Era parte de um política de intimidação, colocada em

prática em todo o império, para evitar insurreições e fazia parte do

próprio procedimento de crucificação, nunca um procedimento

independente. A cena fica ainda mais improvável com Pilatos vendo-o

coroado com sua tiara de espinhos e as vestes púrpuras de um “rei”,

dizendo que não havia nele delito.

Se Pilatos tivesse achado que Jesus era um tolo destituído de

qualquer nexo, poderia tê-lo, de fato, açoitado e flagelado como forma

de impedir futuras manifestações messiânicas de pessoas menos loucas,

na população, como ocorreu em outras ocasiões. Um exemplo claro se

deu 30 anos após a crucificação do mestre galileu, quando um tal Jesus

parece ter tido esse destino: falava da queda iminente de Jerusalém, o

que incomodava os habitantes da cidade e foi lavado até o governante

romano, o qual mandou açoita-lo até não agüentar mais e a vítima nada

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proferiu em sua defesa, continuando seus lamentos quando libertado,

fazendo com que Albino o considerasse um louco e o soltasse. A

postura romana evidencia que considerara a ameaça irrisória e esse

“Jesus” foi tido como louco.

Pelo contrário, com o mestre galileu, Pilatos reitera

repetidamente a pergunta que reconhece Jesus como rei, e ele

sabidamente o confirma, atribuindo a ao mestre uma postura "de rei

ainda sem um reino", na mente dos romanos. Não se podia (ou pode)

deixar de ver crime aqui e a opção de Pilatos, de que o povo deveria se

contentar com uma pena mais leve, é uma absurdo legal e

demasiadamente elaborada para ser verdadeira.

O evangelho de João sugere que Pilatos manda açoitar Jesus

como forma dele negar sua afirmação sobre suas pretensões reais, sendo

que essa afirmação encontra eco nos evangelhos sinópticos. A renúncia

de Jesus não veio e ele foi entregue para ser crucificado. Essa poderia

ser a explicação mais real para a flagelação, visto que encontra

paralelos na própria lei romana e no proceder das autoridades romanas,

como Plínio fazia durante seu governo sobre a Bitínia. Essa flagelação

era muito rigorosa e, se comparada com a que sempre ocorria antes da

crucificação, cruel, muito mais severa e intensa, capaz de desfigurar.

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A flagelação seguida da crucificação era apenas uma

demonstração de escárnio e desprezo, enquanto a primeira podia ser

estendida até que obtivesse os resultados esperados, mas, naquele caso,

Pilatos ainda tentou evitar que o pior viesse a ocorrer, por influência

dos seus mentores do invisível.

9.4 A crucificação

Após sua condenação, Jesus foi levado para um local chamado

Golgota, e crucificado em meio a dois indivíduos denominados lestai

(bandidos ou salteadores) ou kakourgoi (malfeitores e criminosos),

tendo sido sugerido que ambos eram zelotas condenados em função de

uma pequena insurreição que ocorrera em Jerusalém.

Crucificação não era a maneira com a qual os judeus exerciam a

pena capital, embora, como afirma Josefo, o rei Alexandre Janeu

crucificava suas vítimas e sentia notável prazer ao vê-las sofrer nos seus

estertores (esse era o mundo de Jesus, mas não era mais cruel do que os

gulags de Josef Stalin na União Soviética ou os campos de trabalhos

forçados ou de extermínio dos nazistas no Terceiro Reich). Desde que a

pena capital judaica era concretizada através de apedrejamento ou

estrangulamento, a tese de que Jesus teve sua execução na cruz

realizada a pedido de autoridades judaicas ou que as mesmas realizaram

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a crucificação não possui suporte. Ele foi julgado por crime contra

Roma e executado com uma pena romana.

A “arte” da crucificação chegou ao auge com os romanos, que

em 4 a. C, sob ordens de Varo, crucificaram 2000 rebeldes nas

montanhas ao redor de Jerusalém. Félix ordenou, que 3600 judeus

fossem crucificados ou mortos no caminho da cruz, sendo que o general

Tito, futuro imperador, crucificou mais de 500 judeus sitiados em

Jerusalém todos os dias até o final do cerco à cidade na Grande Revolta

Judaica de 66-70 d. C. (na qual morreram de 600.000 a 1.300.000

pessoas e outros tantos foram vendidos como escravos para todo o

mundo romano). Acredita-se que até 60.000 foram crucificados ao redor

da cidade sagrada e faltaram árvores e locais vazios para novas

crucificações, ao redor, para que a crueldade continuasse, no final do

cerco ao Jerusalém, no ano 70 d. C. O cheiro pútrido de carne em

decomposição e a presença de aves carniceiras compunham a cena

mórbida, no meio de uma floresta de cruzes tortas ou retorcidas.

A morte na cruz advinha de insuficiência cárdio-respiratória, por

falta de retorno venoso, e não raramente por dilacerações produzidas

por aves de rapina e feras.

Era tradição que, aos condenados judeus, fosse oferecido, pelas

lamentadoras, vinho associado a incenso, para que o condenado não

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sofresse mais nos seus estertores. Tal associação apresentava atividade

analgésica e levemente entorpecente, reduzindo um pouco a dor

lancinante que advinha da falta de suprimento sanguíneo, além do

próprio trauma mecânico. A descrição dos evangelhos, com pequenas

variações, aceita que esse costume se deu na crucificação de Jesus, o

qual teria recusado o favor, permanecendo bem desperto as seis horas

em que passou na cruz. O vinagre dado a Jesus provavelmente reflete a

necessidade do evangelista de fazer cumprir o Salmo (69:21), onde traz

“e na minha sede, me deram a beber vinagre”.

Pouco sabemos como o corpo de Jesus foi fixado na cruz, por

meio de cordas – como quase sempre se dava – ou por meios de pregos,

mas, pelo evangelho de João (20:25), sugere-se que pregos foram

utilizados, ajudando a exacerbar a perda de sangue e acelerar a morte,

que ocorreu em tempo considerado curto pelos próprios romanos. Em

1968, em Israel, encontraram-se restos de um cravo metálico utilizado

para crucificação transfixando os osso do calcanhar de um homem de

aproximadamente 30 anos, evidenciando que o mesmo havia sido

crucificado com as pernas abertas, separadas pela trave vertical da cruz.

As representações artísticas da crucificação evidenciam um “Jesus

preso por três cravos”, mas isso de deve apenas ao fato de que Helena,

mãe do imperador Constantino, disse ter encontrado os 3 pregos que

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foram utilizados na crucificação, criando, na mente dos religiosos e

artistas, a necessidade de que os pés tivessem sido pregados

sobrepostos. Os pregos também foram utilizados nos pulsos e não nas

mãos propriamente ditas, mas, na antiguidade, os pulsos faziam parte

das mãos, nas descrições e podemos dizer com segurança que foi

exatamente isso que ocorreu.

Os maus tratos sofridos por Jesus no caminho da cruz, conforme

descrito nos textos canônicos, foram severos e refletiam o desprezo com

que os soldados romanos tratavam os criminosos judeus. Lembrem-se

que os judeus consideravam-se superiores aos romanos, o povo

escolhido por Deus, o que aumentava ainda mais a reação da soldadesca

romana quando um dos líderes locais ou um criminoso qualquer era

condenado.

A descrição desses flagelos também pode refletir o sofrimento

dos cristãos ou judeus crucificados e perseguidos em Roma, onde a

população tornava o ato um verdadeiro circo. O evangelho de João não

traz as zombarias típicas que os sinópticos conferem a Jesus pelos

escribas e fariseus, provavelmente porque esses elementos nunca foram

proferidos, tendo sido acrescentados aos sinópticos apenas para fazer

cumprir o Salmo 22:7-8. Esse ponto pode ser de relevância, uma vez

que João foi o único apóstolo que esteve presente na crucificação e foi

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testemunha ocular dos eventos narrados. Nosso companheiro Eleazar

coloca que, enquanto alguns proferiam impropérios a Jesus, do tipo

“saia daí se puder”, ou “rei dos judeus, veja se consegue se libertar

agora”, ou “onde está o poder que se dizias possuidor”, a maioria da

população se calava, em um misto de passividade em face da violência

extrema, um tipo de torpor, mas havia também vontade de reagir frente

à brutalidade, o que geraria uma carnificina ali. Mas, na presença de

tantos soldados e das lideranças judias, melhor seria fechar os olhos e

seguir a vida, que já era tenebrosa para os mais pobres.

Nos evangelhos, existem claras menções ao hábito dos romanos

de quebrar as pernas dos crucificados, para acelerar sua agonia e morte.

Na crucificação de Jesus, os próprios judeus pediram pelo ato de

misericórdia, não por compaixão, mas porque se aproximava a Páscoa e

o sábado, que naquele ano caíram no mesmo dia, um dia muitíssimo

especial, e os corpos não poderiam ficar pendentes na cruz, ao

anoitecer. Havia muito apreço por Jesus entre esses judeus (fariseus em

verdade) que reclamaram o corpo para Pilatos, visto que aceitaram se

contaminar com um enterro na véspera da Páscoa judaica, o que não era

pouca coisa naquela cultura. Aqueles homens sentiam uma dor

indescritível e, se não fosse a mensagem de amor que Jesus havia

plantado naquelas mentes, muita destruição teria ocorrido. Enquanto os

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discípulos, muitas vezes rudes e sem conhecimento formal, se

digladiavam em disputas sobre quem recaía o amor do mestre querido,

alguns fariseus, como Nicodemos e José de Arimatéia, dois dos mais

ricos homens do século I d.C., em Jerusalém, entenderam a extensão

espiritual da mensagem de Jesus e procuraram dar ao galileu, que

dividiu a história da humanidade, um enterro.

O ato de transpassar Jesus com a espada foi inserido para fazer

cumprir a profecia de Zacarias (12:10), mas tal fato ocorreu de fato e

aquele soldado romano sentiu, após a morte, anos depois, a dor do

remorso bateu poderosamente em sua alma agoniada. Após sua morte,

em função de tudo que realizara ao longo de sua vida, fora acolhido por

irmãos ainda distantes da luz divina, que o agrediram e escravizaram

por séculos, até que foi resgatado das furnas sub-crostais por

companheiros mais esclarecidos e encaminhado para reencarnação, na

Idade Média.

O enterro de Jesus também esbarra em aspectos legais, visto que

os crucificados não mereciam enterro pela lei romana e eram devorados

pelas feras e abutres. Contudo em 1968, o corpo de um crucificado,

provavelmente vítima do cerco de Jerusalém em 70 d. C. foi encontrado

em uma cova, permitindo supor que o enterro podia, em algumas

situações especiais, ser realizado, mas apenas o imperador ou seu

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representante provincial poderiam autorizá-lo e foi o que o perturbado

Pilatos fez. A presença de guardas junto á cruz impedia que parentes e

amigos viessem retirar o corpo inerte da cruz. Se o corpo de Jesus não

fosse retirado, seria, indubitavelmente atirado em uma vale comum e

consumido pelos abutres, como mandava a tradição.

Os condenados á morte por uma tribunal judeu deveriam ser

enterrados, quando permitido pelas autoridades imperiais, em um

cemitério separado e reservado para esse fim, sendo que Jesus foi

depositado em uma cova recentemente escavada na rocha, reservada

para uma personalidade de elevada posição social, atestando que o

mesmo não recebera quaisquer condenações judaicas. Os mortos

condenados pelos romanos podiam, desde que a autoridade imperial o

permitisse, receber o tratamento dispensado aos que padeceram de

morte por motivos naturais e ter mulheres pranteando ao seu redor.

Se pudéssemos observar com os olhos do espírito o que estava

ocorrendo ao mestre Jesus durante todo o processo de flagelação e

crucificação diríamos que, a despeito da ruína do seu corpo físico, o

mesmo tipo de agressão verbal era proferido por uma enorme falange de

desencarnados. A dor física não era nada perto do que vinha do outro

lado. O escárnio era duplo, simultâneo, mas centenas de entidades de

luz, angelicais, mantinham as trevas afastadas do agonizante. Sabemos

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que a própria evolução espiritual do mestre conferia as prerrogativas

que o protegiam de qualquer tipo de assédio, mas as falanges que

conspiravam contra sua missão terrena ainda tentavam escarnecê-lo e

ridicularizá-lo, utilizando uma linguagem que era bastante fluente nas

regiões de trevas no globo.

Em meio a um temporal de primavera que se avizinhava em

Jerusalém, tendo ao longe o Getsêmane, o espírito excelso que nos guia

até o presente se libertou do peso da matéria densa e, como previra

inúmeras vezes, inclusive para os outros condenados ao martírio da

cruz, iria se reunir com os anjos naquele mesmo dia.

Não foram observados tremores de terra ou outros fenômenos

miraculosos descritos nos evangelhos, mas como nunca antes, uma

tristeza se apoderava da população reunida em Jerusalém. As trevas

sorriram sobre a cidade e muita angústia foi sentida em todos, como se

toda a felicidade do mundo tivesse sido retirada e o peso que recaiu

sobre todos foi tremendo.

Pobre cidade, que mata ou insulta seus homens santos, como

ocorreria com Judas e Tiago, irmãos de Jesus, e com Estevão, o

primeiro mártir cujo nome passou para o cânone. Logo a lei de ação e

reação iria transformá-la em ruínas e sua história somente seria reescrita

com a criação do Estado de Israel em 1948, sendo que até hoje os

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árabes e os judeus, cada qual com seus justos argumentos, disputam a

soberania sobre a cidade das lágrimas.

Após a morte de Jesus, diversos fenômenos ocorreram nas vilas

próximas a Jerusalém, como visões de espíritos de todos os tipos e

freqüências vibratórias e, em função dos eventos espirituais em curso,

fenômenos de materializações, voz direta e escrita direta também

puderam ser percebidos, o que deixou os principais líderes judeus e o

próprio Pilatos, apavorado. Será que aquele homem tinha um

relacionamento especial com Deus? Essa pergunta era frequentemente

pronunciada em ambientes reservados. A resposta não vinha, porque,

afinal, já havia sido dada durante quase dois anos e meio de pregações e

curas de todos os tipos. Quem tiver olhos para ver e ouvidos para

escutar...

Para os principais líderes das falanges do mal, que não eram

poucas e fracas, a morte de Jesus era um grande prêmio, posto que

“ele”, o mestre, se calaria por algum tempo, e como seus discípulos

eram fracos e rudes, ainda pequeninos na sua longa caminhada

espiritual, existia a possibilidade de toda a mensagem de Jesus se

perder. Entretanto, não podiam divisar a premissa que Deus nunca

abandona as suas ovelhas e o exemplo de Jesus iria atuar como uma

caixa de ressonância em prol do perdão e da caridade, uma vez que até

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Jesus: homem e espírito

467

o último minuto de vida ele teria orado ao Pai pedindo proteção aos

seus ignorantes irmãos, que não eram responsáveis pelas atitudes que

tinham perante a vida.

Os primeiros locais visitados pelo magnífico espírito de Jesus

foram exatamente os campos magnéticos de contenção colocados ao

redor dos recantos mais profundos das trevas. Naquele momento, em

sua luz plena e magnânima, Jesus emitiu seu apelo pela renovação até

aos próprios dragões do mal, espíritos mais antigos que a própria

humanidade, conclamando o retorno à seara do Pai. Muitos espíritos

enfermos, aos milhões, que viviam em regime de servidão junto aos

dragões, foram levados para tratamento em regiões mais elevadas e isso

fazia parte da missão do mestre, que a todos servia. Parte dessa tradição

foi preservada nos relatos referentes ao Evangelho da Cruz e o

Evangelho de Pedro, que se perderam quase completamente e apenas

fragmentos podem ser vislumbrados a partir de relatos posteriores.

Depois da morte de Jesus, os discípulos parecem ter sofrido uma

profunda crise de identidade e numerosas tendências teológicas

surgiram para explicar o que havia ocorrido. Se Jesus era o messias, por

que morrera? Será que a salvação divina depende da morte? Ele fez

realmente tudo que vimos e ouvimos, ou será que fomos enganados?

Foi nesse clima de desânimo, justificável apesar de tudo, que as visões

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do espírito de Jesus, materializado se deram e marcaram profundamente

a alma daqueles personagens tão rudes e simples.

Com esses fenômenos mediúnicos eles encontraram um

caminho e continuaram a pregação. Infelizmente, muitos aspectos da

doutrina de Jesus foram corrompidos e alterados, criando a figura de um

deus-homem, mas o apelo à reforma íntima e a mensagem de ética

universal do mestre estavam preservados.

Os líderes judeus do Sanedrim devem ter achado que a nova

mensagem era ainda mais herética do que a propalada por Jesus, pois

agora o mestre galileu era elevado à condição de Deus-Filho, não

apenas um semi-deus grego ou o messias, enviado do Deus Único. Para

os cristãos greco-romanos e seus congêneres judeu-cristãos, a

crucificação do Cristo teria sido acompanhada por uma ressurreição,

que simbolizava a vitória sobre a morte e a remição dos pecados pelo

cordeiro que havia sido sacrificado naquela Páscoa judaica. Para os

espíritas modernos, a interpretação é bastante diversa, mas conserva o

sentido de renúncia de Jesus.

Obviamente, á medida em que essa heresia judaica se espalhava,

o Sinédrio começou a se movimentar para conter sua influência sobre a

população. Pedro e os apóstolos foram presos e julgados, sendo apenas

condenados à pena de açoitamento. Não foram condenados por

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blasfêmia e percebam, meus caros amigos, que o conteúdo de sua

pregação era muito mais explosiva do que aquela que o mestre galileu

popularizava de forma tão equilibrada. Jesus estava modificando

padrões de comportamento dentro do judaísmo, seus discípulos

ameaçavam explodir a fé de Abraão, o que de fato aconteceu com o

apóstolo Paulo (em verdade, Paulo nunca foi apóstolo, não tendo sido

discípulo de Jesus, mas assim era reconhecido por parte dos judeus-

cristãos de língua grega em Jerusalém e na Ásia Menor).

O próprio Gamaliel, sábio fariseu do século I d. C., alegava que

perseguir esses homens (os apóstolos de Jesus) era perda de tempo,

visto que, se seus ensinamentos provinham ou estavam de acordo com o

Criador, nada adiantaria e seria perigoso se colocar contra a vontade de

Deus, mas se aquela fé provinha de mentes puramente humanas, então

logo estaria condenada ao esquecimento. Os apóstolos acusaram o

Sanedrim de ter matado Jesus (“o Deus de nossos pais ressuscitou Jesus

a quem vós matastes, pendurando-o no madeiro”) e, quando os judeus

ouviram isso, ficaram furiosos, talvez por terem sido acusados de forma

caluniosa. Quem matara Jesus ou o condenara à crucificação foram os

romanos.

Embora condenados por minar a autoridade do Sanedrim e de

inventar calunias e heresias, os apóstolos não foram condenados à pena

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máxima, visto que aqui também ela não se aplicava, apenas flagelados e

liberados em seguida com a recomendação de que não pregassem mais

em nome do crucificado. Por que tratariam os apóstolos diferentemente

do seu mestre? Possivelmente o tratamento foi semelhante, mas

retratado de formas diferentes nos evangelhos e Atos dos Apóstolos.

Pena que milhões de judeus nascidos em todas as eras desde então

tenham pagado com a própria via o que havia sido erroneamente

inserido no cânone.

O símbolo da cruz, abominado por cristãos e pagãos no império

romano como um símbolo "maldito", logo se converteu no emblema

que a cristandade passou a adotar para se identificar. Foi Anselmo,

arcebispo de Canterbury entre 1093-1109, quem passou a estimular,

através de textos devocionais, a utilização da imagem de um homem

frágil, na cruz, para representar a essência da cristandade. Assim, o

crucifixo, como símbolo dos seguidores do messias de Nazaré, é criação

medieval, mostrando o quanto o cristianismo se modificou até os

tempos modernos. Nessa linha, ganhou destaque a imagem do ladrão

arrependido e último converso do mestre Jesus.

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Jesus: homem e espírito

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9.5 A data da crucificação de Jesus

Mesmo sem considerar que morte propriamente dita não existe,

não se pode falar que Jesus pereceu ou morreu na Cruz. Sua forma de

pensar mudou o mundo nos últimos 2000 anos e não se falou, estudou e

publicou tanto a respeito dele como no final do século XX e nesse

início de século XXI.

Entretanto, temos de tentar localizar no tempo, com a maior

precisão possível, os pontos mais importantes da vida do Ungido e as

poucas fontes de informação são de extremo valor. Ao contrário das

narrativas da infância, tomadas por toques lendários e muita teologia, as

Narrativas da Paixão possuem muitos elementos que nos permitem

detalhar com alguma segurança a época em que os fatos se deram e em

que condições ocorreram, bem como o que foi eliminado ou

acrescentado propositadamente no correr de 2000 anos.

Os textos canônicos e os historiadores estão de acordo que a

crucificação deve ter ocorrido na época em que Pôncio Pilatos, com o

título romano de Prefeito, teria governado a Judéia, de 26 a 36 d. C.

Muitos acreditam que isso teria se dado no final da década de 20 d. C.

ou início da década de 30 d. C. Os textos de Josefo e Lucas (3:1)

evidenciam que todo o período de pregação de Jesus teria se dado

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durante o governo de Pilatos. Merece grande consideração o texto de

Lucas (3:1-2), que diz:

“No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo

Poncio Pilatos governador da Judéia, Herodes, tetrarca da Galiléia,

seu irmão Felipe, tetrarca da Ituréia e Traconides, e Lisânias tetrarca

da Abilene, sendo sumo sacerdotes Anás e Caifás, veio a palavra de

Deus a João, filho de Zacarias, no deserto.”

Da mesma forma que 3 pontos no espaço acabam dando a

posição exata de um indivíduo, como ocorre atualmente com o uso do

GPS (“global positioning system”), Lucas tenta dar a posição temporal

da crucificação de Jesus, por múltiplas referências temporais passíveis

de confirmação. A menção a Pilatos como governante na época em que

João, o Batista, assumiu seu caminho de pregação sugere que Jesus teria

entrado em ação logo depois; a menção a Felipe, o tetrarca da Iduméia,

morto em 33 ou 34 d.C., sugere que o ministério de Jesus não teria

começado no final do governo de Pilatos. O ponto chave do texto

depende da determinação de quando se deu o décimo quinto ano do

governo de Tibério, mas existem várias maneiras de se determinar essa

data, como assevera J. P. Meier.

Desde 12 d. C. Tibério colaborava com Augusto na

administração romana, tornando-se imperador em 14 d.C. e, levando-se

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em conta os calendários Juliano, sírio-macedônio, egípcio e judaico, o

décimo quinto ano do governo de Tibério poderia ter se dado em

qualquer ano entre 26 d. C. e 29 d. C. Atualmente os acadêmicos se

inclinam em contar o seu governo a partir de 14 d. C. Como Lucas era

um cristão culto, tendo escrito o evangelho que leva seu nome na

Grécia, Ásia Menor ou, provavelmente, Roma, só faria sentido escrever

o texto para o público greco-romano empregando o calendário Juliano

ou o sírio-macedônio.

Algumas possibilidades se abrem para a determinação da data

do 15o ano de Tibério em Lucas, como magistralmente descrito por J. P.

Meier:

1. o autor usou o calendário Juliano e contou o primeiro

ano de Tibério como sendo de 19/08/14 a 18/08/15 e

continuou a adotar esse sistema daí por diante, de forma

que o 15o ano se daria de 19/08/28 a 18/08/29;

2. o autor usou o calendário Juliano e contou o primeiro

ano de Tibério como sendo de 19/08/14 a 31/12/15 e

passou a contar daí para frente os anos do governo de

Tibério como sendo de 01/01 a 31/12, caindo o 15o ano

de 01/01/28 a 31/12/28;

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3. o autor usou o calendário Juliano e não contou o

primeiro ano de Tibério como sendo de 19/08/14 a

18/08/15 e sim os anos redondos a partir de janeiro do

ano 15, caindo o 15o ano de governo de 01/01/29 a

31/12/29;

4. o autor usou o calendário sírio-macedônio e pelo método

de exclusão do ano de ascensão o 15o ano daria de

01/10/27 a 30/09/28 e incluindo-se o ano de ascensão, de

01/10/28 a 30/09/29.

Meier sugere o início do ministério público de Jesus em 28 d.

C., mas admite que a margem de erro poderia levar essa data para 27 ou

29 d. C. Temos dificuldade também para determinar a duração do

ministério de Jesus, o qual pode ter variado de um a vários anos. Uma

leitura rápida dos evangelhos sinópticos sugere que o ministério foi de

um ano, com pregações pela Galiléia e uma viagem que culminaria com

sua crucificação na Judéia. Contudo, o Evangelho de João sugere um

período maior de tempo, algo em torno de 3 anos ou mais, o que de fato

ocorreu.

Todos os aspectos da pregação de Jesus poderiam ter ocorrido

em apenas um ano, mas não OBRIGATORIAMENTE em um ano.

Numerosos pontos dos ensinamentos de Jesus parecem sofrer um

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amadurecimento ao longo do tempo e isso somente teria ocorrido se o

ministério tivesse uma duração mínima de alguns anos. No Evangelho

de João, as sucessões de datas e festas religiosas, as viagens de Jesus,

bem como a descrição das passagens das estações do ano sugerem um

ministério mais longo, de forma que podemos colocar que a

crucificação teria se dado, mais provavelmente, de 28 d. C. a 33 d.C.

Em João 2:20, a discussão entre Jesus e os judeus teria se dado

quando o processo de reconstrução do Templo teria completado 46 anos

e o apóstolo situa esse fato no início do ministério de Jesus. Entretanto

mesmo essa passagem não está livre de problemas. Josefo coloca que a

reconstrução do Templo teria se iniciado em 20-19 a. C., mas não se

pode falar com segurança se o apóstolo se referia ao Templo como um

todo ou apenas o complexo santo, onde se realizavam as cerimônias.

Essa diferenciação é importante, porque algumas partes do complexo do

Templo continuaram em obras até pouco antes de sua queda em meados

da década de 70 d. C. Assim, 46 anos após o início da reconstrução do

Templo daria em 29 d. C. ou, mais provavelmente, em 30 d. C., pouco

antes da crucificação.

Esses eventos narrados por João se dão no início do ministério

público, na limpeza do Templo empreendida por Jesus. Porém essa

narrativa, nos sinópticos, se dá no período imediatamente anterior à

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crucificação. Essa posição da Limpeza do Templo, no começo do texto

de João, e não no final, como nos sinópticos, possivelmente reflete a

tentativa do Quarto Evangelho de trazer todo o ministério de Jesus sob a

sombra da crucificação, bem como para responsabilizar a ressurreição

de Lázaro como provável causa da crucificação. Assim , essa descrição

de João, associada a um ministério de 2-3 anos, sugere um ministério

terreno exercido de 27 d. C. a 30 d. C.

Os sinópticos têm por base o evangelho de Marcos com

acréscimos, quase sempre de ordem estilística, de Mateus e Lucas.

Todos os textos sugerem que a crucificação, morte e sepultamento de

Jesus teriam ocorrido em uma sexta-feira e que a última ceia teria se

dado em uma noite de quinta-feira, mas existem diferenças muito

importantes entre o texto de João e dos sinópticos que não podem ser

ignoradas e não podem (e nem devem) ser harmonizadas.

Enquanto os sinópticos abordam a última ceia como uma ceia de

Páscoa, João não o faz. Para entendermos a importância que esse fato

possui, devemos retomar o próprio ritual judeu da Páscoa. Segundo o

Pentateuco, o sacrifício do cordeiro pascal se dava no 14o dia do mês

de Nissan (abril/maio), sendo que, no século I d. C., o sacrifício teria se

dado entre 3:00 e 5:00 horas da tarde. O problema que temos em mãos é

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saber se aquela ceia na quinta-feira que antecedeu a crucificação caiu no

14o dia de Nissan.

Os evangelhos sinópticos relatam que a última ceia transcorreu

como uma ceia pascal, particularmente no que diz respeito aos

preparativos. Assim, no anoitecer daquela quinta-feira seria o 15o dia do

Nissan, o dia da celebração da Páscoa, quando Jesus seria preso,

julgado, condenado e crucificado. Essa ordem de fatos é tão improvável

que os críticos dos evangelhos não tiveram muito trabalho para

desacreditar todo o texto das Narrativas da Paixão, visto que a Páscoa

era o momento especial do judaísmo e esses eventos não poderiam ter

ocorrido em um dia de celebração pascal. Entretanto se levarmos o

Evangelho de João em consideração teremos um quadro mais adequado

ao judaísmo da época e uma seqüência mais natural dos fatos.

Para o Quarto Evangelho (João), a última ceia teria ocorrido na

quinta-feira, como os sinópticos, mas não estaria associada á Páscoa

judaica, sendo provavelmente fruto da situação tensa em que se

encontravam os seguidores de Jesus. Assim, o próprio mestre de

Nazaré, sabendo o que logo ocorreria, tratou de reunir seus discípulos

mais próximos para as últimas considerações. Seria uma ceia de

despedida e não de Páscoa. Jesus quis dizer “até breve” e orientar seus

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discípulos mais íntimos antes dos tumultos que ocorreriam no dia

seguinte.

Outra controvérsia sobre a Última Ceia diz respeito à Eucaristia.

Essa interação com o corpo e sangue de uma pessoa, na concepção de

um judeu praticante, seria equivalente aos pecados mais sérios, como

comer o corpo e beber o sangue de alguém morto, o que possivelmente

torna a Eucaristia uma criação da própria igreja que associou as

refeições comunais de Jesus com o simbolismo característico do

cristianismo greco-romano. Entretanto, a presença da Eucaristia nas

Igrejas primitivas é assunto para discussões mais extensas e não cabem

dentro dos objetivos limitados desse texto.

Na concepção joanina, a última ceia teria se dado no 13o dia do

Nissan, tendo Jesus sido preso logo no início da sexta-feira, 14o dia de

Nissan, sido julgado, condenado e crucificado na véspera da Páscoa,

que naquele ano se daria em um sábado, um dia realmente muito

especial, como o próprio evangelho traduz (João 19:31). Por isso, toda a

pressa para retirar o corpo da cruz antes do por do sol da sexta feira,

quando começava a Páscoa e o próprio sábado. No Evangelho de João,

as pessoas se apressaram para retirar os corpos dos crucificados uma

que teriam de se preparar para a ceia de Páscoa, que ainda não teria

ocorrido. Uma visão muito mais coerente dos acontecimentos narrados

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do que os sinópticos. Na cronologia de João, o julgamento e a

condenação não teriam se dado de forma tão sumária, facilitando

compreensão do incidente envolvendo um homem chamado Barrabás,

ou melhor, Jesus bar Abbas (Jesus Filho do Pai, no aramaico).

Nesse sentido, qual teria sido a vantagem de libertar um

prisioneiro judeu na Páscoa, se a mesma já tivesse acontecido ou

estivesse acontecendo? O incidente de Barrabás apóia a cronologia de

João em detrimento dos sinópticos. A própria casa em que a Santa Ceia

ocorre pode colaborar com o esquema cronológico de João e interfere

com toda a compreensão do desenrolar de eventos que culminam com a

crucificação: se a última ceia se tratasse de uma refeição pascal, Jesus

deveria estar como hóspede de um homem muito rico, visto que o

proprietário daqueles aposentos também deveria estar celebrando a

Páscoa, o que indica uma residência muito grande para permitir dois

eventos dessa importância simultaneamente. Essa objeção desaparece

quando pensamos na última ceia como sendo uma celebração realizada

na véspera da Páscoa, quando o benemérito anfitrião de Jesus poderia

ceder-lhe sua casa sem maiores problemas, como sugerido por J. P.

Meier.

Uma vez que todos os sinópticos usam o texto de Marcos,

embora acrescentem elementos próprios em passagens menores, é fácil

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de entender a homogeneidade dos fatos e cronologia descritas. Se

eliminamos de Marcos os acréscimos posteriores de redação vemos que

nada, no texto original, vem a sugerir que Jesus morreu no dia da

Páscoa ou que a última ceia se tratava de uma refeição pascal. A

passagens do texto de Marcos que fazem a associação com a Páscoa são

14:1 e 14:12-16, sem as quais a instituição da eucaristia e a profecia da

traição, bem como a profecia relativa à negação de Pedro não teriam

sido tão associadas à essa celebração.

Também é acréscimo redacional posterior, o texto de Lucas

(22:15-16) em que Jesus teria dito “Tenho desejado ansiosamente

comer convosco essa Páscoa, antes do meu sofrimento. Pois vos digo

que nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus”,

constituindo uma expansão e reformulação de Lucas a partir do texto de

Marcos, evidenciando principalmente aspectos teológicos que

objetivavam manter a coletividade unida diante das tormentas do século

I d. C.

Nada na tradição sugere a natureza pascal daquela fatídica ceia,

a não ser os acréscimos posteriores. Meier vai mais além, sugerindo

que, “sentindo ou suspeitando que seus inimigos estavam fechando o

cerco para um ataque final iminente e, em razão disso, considerando

que talvez não tivesse oportunidade de celebrar a próxima ceia pascal

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com seus discípulos, Jesus então organizou uma solene refeição de

despedida com seu círculo mais íntimo, exatamente antes da Páscoa”.

Assim, embora a última ceia não tenha sido uma ceia pascal e sim de

confraternização e despedida, foi realizada em substituição a essa, no

dia anterior à festa pascal.

Assim, pode-se supor que bastaria encontrar um ano entre 29 e

34 d. C. em que o 14o dia do Nissan teria caído em uma sexta-feira para

termos o ano e o dia da crucificação de Jesus. A determinação do

começo do mês dependia, no calendário lunar judaico, da observação da

presença da luz da primeira lua nova após o vigésimo dia do mês

anterior. Assim temos uma “observação humana de um fato” e não “um

fato por si só”. Deve-se acrescentar que anos bissextos eram inseridos

todas as vezes que as autoridades julgavam necessário, geralmente com

preocupações relativas ao plantio e colheitas. Complicado não?

O notável pesquisador Joachim Jeremias, avaliando as

possibilidades de ocorrência de anos em que o 14o dia de Nissan caía

em uma sexta-feira, concluiu que entre 29 e 34 d. C. apenas os dias

07/04/30 e 03/04/33 d.C. reuniram essa peculiaridade, sendo que para

Meier, a data de 07/04/30 d. C. é mais provável por que assim o

ministério de Jesus teria a duração que melhor se adapta ao conteúdo

dos evangelhos canônicos. Um ministério público de, no mínimo, dois

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anos e um ou dois meses. Jesus teria algo em torno de 33-34 anos de

idade quando iniciou sua missão e 36 quando de sua crucificação.

Contudo, segundo. No entanto, o Novo Testamento diz que

Jesus morreu no dia após a primeira noite de lua cheia após o equinócio

de Verão.

De acordo com dois cientistas do Instituto Astronômico da

Romênia, Jesus teria morrido às 3 da tarde de sexta-feira de 3 de abril

de 33 d. C. (http://port.pravda.ru/news/mundo/18-05-2003/2057-0/ ).

Essa data surge pelo fato de que entre os anos 26 e 35 d. C. a lua cheia

teria ocorrido imediatamente após o equinócio em apenas por duas

ocasiões nesse período: uma sexta-feira a 07 de abril de 30 d.C. e outra

a 03 de abril de 33d.C, concordando com Joachim Jeremias. Segundo

esses autores, se levarmos em consideração os textos bíblicos, que

mencionam um eclipse solar, a data de 33 d.C. deveria ser a mais

adequada, uma vez que nessa ocasião ocorreu um eclipse parcial do sol.

Entretanto, as muitas ocorrências de fenômenos que acompanharam a

morte do corpo físico de Jesus se referem a eventos que tiveram o

mundo espiritual como palco e poucas evidências poderiam ser

divisadas pelos encarnados, de forma que o escurecimento do céu não

deve ser tomado isoladamente para determinar a data precisa da

crucificação do mestre, além desse aspecto, em 33 d. C. Jesus já estaria

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se aproximando dos 40 anos de idade, o que foge dos dados aqui

apresentados.

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10 A Ressurreição do Messias de

Nazaré

“...Mulher, por que choras? Quem procuras?...”

(João 19, 15)

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10.1 A "Ressurreição"

Os evangelhos, como discutido anteriormente, não são

biografias de Jesus, o nazareno, mas peças teológicas embasadas em

alguns aspectos reais outros lendários, de forma o texto fora redigido

para mostrar para uma dada comunidade a certeza (do relator do texto)

de que Jesus desempenhou o papel X ou Y. São documentos de fé e não

possuem a isenção que uma biografia sobre o tema demandaria. Essas

narrativas são o pano de fundo para o clímax dos evangelhos, a

ressurreição de Jesus, sua vitória sobre a morte e a esperança de uma

vida eterna. As pessoas acreditavam nessas palavras e a interpretação

costumava ser bastante literal.

Falar no fenômeno da ressurreição, mesmo no presente, é algo

que incomoda a todos, posto que não acreditar na mesma, ou pelo

menos na forma com que a mesma é apresentada nas igrejas e nos

textos canônicos praticamente te exclui da cristandade tradicional ou

literalista. Contudo, como já discutimos, possivelmente essas narrativas

não constituem, pelo menos no que concerne ao tópico "ressurreição",

descrições históricas e estão mais para a realização de antigas profecias

(profecias historicizadas), refletindo os desejos daqueles que seguiam o

messias que vinha da Galiléia.

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Em todas as composições dos evangelhos, existia a dualidade

entre os opostos, do sofrimento ao triunfo, e a ressurreição é o elemento

que se contrapõe à morte inglória na Cruz. Não se pode deixar de

reparar que alguns pontos dessa narrativa estão recheados de simbologia

judaica, como o 3 negações de Pedro e o canto do galo, o terceiro dia,

presentes no texto, o que constitui peculiaridade dos textos poéticos

judeus, como assevera J. D. Crossan.

As Narrativas da Ressurreição mostram as mesmas

inconsistências que as Narrativas da Paixão, sendo acrescidas de

numerosos pontos e aspectos místicos, na medida que o tempo entre a

redação do evangelho se distanciava dos eventos narrados. Nesse

sentido, o Evangelho de Marcos coloca apenas, nas suas versões mais

antigas, que o sepulcro fora encontrado vazio e o corpo de Jesus nele

não repousava, terminando em Marcos16:8. Ou seja, nos textos mais

antigos ninguém sabe o que aconteceu com o corpo físico de Jesus.

Até esse ponto parece que os evangelistas seguiram o texto

marciano e, a partir dali, colocaram suas narrativas em rumos

diferentes, até o ponto que algum escriba decidiu, muitas décadas

depois, concluir o texto de Marcos de forma a torná-lo mais próximo

dos demais evangelistas, mas atraente ao gosto dos novos convertidos

ao cristianismo.

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O texto de Marcos mostra que Maria de Magdala, Maria, mãe de

Tiago (possivelmente a mãe de Jesus) e Salomé receberam, de um

homem jovem, a informação de que Jesus não estava mais no sepulcro,

onde elas encontraram o tecido que havia envolvido o corpo e ficaram

aterrorizadas. Em Mateus, o homem jovem é transformado em anjo e

depois de os apóstolos terem sido acusados por descrentes de trem

roubado o corpo do mestre galileu, Jesus faz uma aparição aos

apóstolos e institui a igreja cristã. Lucas introduz a aparição aos homens

no caminho a Emmaus, sendo que os dois indivíduos não o reconhecem

inicialmente, o que se dá quando “Jesus” se despede; esses dois

indivíduos eram, provavelmente, irmãos do mestre.

No texto joanino, como não poderia deixar de ser, as histórias

ligadas à ressurreição são mais vívidas e dramáticas, como o par de

anjos guardando o sepulcro vazio diante de Maria de Magdala e a

incredulidade inicial de Tomé, mas mesmo nesse texto a identificação

inicial de Jesus não é facilmente reconhecida. O ápice da narrativa está

na promessa do Jesus redivivo em enviar o Espírito Santo para toda a

sua igreja, porém a carga teológica e a motivação política por trás dessa

descrição nos parecem óbvias demais, de forma que possivelmente todo

esse texto deve ter sido produzido para legitimar doutrinas e lideranças

da igreja joanina na virada dos séculos I d. C. e II d. C. Infelizmente,

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não temos uma única descrição da ressurreição que não padeça dos

problemas descritos acima. Nesse particular, os textos mais antigos

disponíveis trazem que Jesus enviaria UM espírito santo para consolar o

povo e essa mudança de enfoque, com a troca do artigo definido "O"

pelo artigo indefinido "UM" faz toda a diferença do ponto de vista

teológico, visto que fere o princípio da Trindade Divina.

De qualquer forma, o final original de Marcos é abrupto

(sepulcro vazio e NADA mais) e as mulheres não viram Jesus, apenas o

sepulcro vazio e receberam a notícia de outra pessoa ali presente.

Sem visões, aparições e outras características das Narrativas da

Ressurreição presentes nos demais evangelhos, que se basearam em

Marcos até aquele ponto, nada teríamos para comentar, a não ser a

possível materialização do espírito sublime de Jesus, com todas as

peculiaridades das materializações, como a dificuldade de identificar

prontamente a pessoa que ali se apresentava materializada.

O final que encontramos nas versões modernas de Marcos é o

fruto de um copista escandalizado com um final tão frustrante e

decidido a dar um fim mais a gosto da fé que crescia, com as cores

modernas. A maioria dos pesquisadores, como assinalado pelo teólogo

e especialista em literatura bíblica, Bart D. Ehrman (O que Jesus disse?

O que Jesus não disse? Quem mudou a Bíblia e por quê), suspeita que o

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próprio autor deixou em suspenso o final como uma forma de

indagação no ar e está de acordo com a teologia e as idéias do

evangelista, enquanto uma minoria acredita que o final que

encontramos nos manuscritos modernos reflete um final que fora

perdido e reescrito baseado em tradições orais, o que é muito pouco

provável.

Assim, se todas as Narrativas da Paixão soam como ecos do

texto de Marcos, o que dizer das Narrativas da Ressurreição, uma vez

que Marcos praticamente desconhece o que, de fato, ocorrera ali? A

maioria dos autores concorda que essas histórias representam a

expansão mais tardia dos evangelhos que incorporavam tradições

conflitantes e pouco reais.

Pode-se dizer que, além dos textos canônicos e apócrifos

disponíveis, muitos outros, como os Evangelhos da Cruz e de Pedro,

que outrora existiram, foram redigidos sobre esse tema, que

possivelmente marcou as primeiras comunidades cristãs, mas em todos

eles Jesus aparece para todos os personagens que interessam aos autores

dos textos e vale a pena ressaltar que a razão dessas aparições é

puramente teológica ou política. Não deixamos de crer que algo

realmente fora de nossa compreensão, na época, tenha ocorrido,

motivado ou não por mentes decepcionadas ou perturbadas. Contudo,

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com as evidências que temos nos evangelhos não podemos julgar a

historicidade dessas visões.

A conseqüência mais clara desse arrazoado é inutilidade de

discutirmos as diferentes posições da igreja cristã, independentemente

do nome da agremiação, sob pena de apresentarmos comportamento

irracional e bibliólatra, o qual é tão desanimador quanto contra-

producente. As últimas falas do “Jesus ressurreto” deixam claro as

intenções dos autores que as escreveram: transferir o poder e as

responsabilidades de Jesus para seus discípulos e continuadores. O

poder, o poder, sempre o poder.

Nessas descrições, Jesus atribui responsabilidades e estabelece

uma estrutura chamada igreja, assim essas aparições também podem ter

sido criadas para concluir o que o mestre não havia feito antes da morte

na cruz; elas legitimariam a hierarquia da igreja na época em que os

textos foram escritos (e não a ordem ou importância dos fatos ocorridos

no início da década de 30 da era cristã).

Pode-se perguntar o que está por trás das aparições de Jesus. Ele

realmente apareceu aos seus? Falou, andou e até se alimentou na

presença de seus discípulos, depois da crucificação?

Sim, muitas vezes. Ele apresentava características tão materiais

e físicas que muitos não perceberam que se tratava da materialização de

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seu espírito excelso. Muitas indicações sugerem isso, como a forma

inesperada com que aparece em um determinado local, a dificuldade

dos apóstolos e demais discípulos em reconhecê-lo prontamente, a

forma relativamente impessoal que caracteriza essas aparições, dentre

outros elementos.

Cabe ressaltar que algumas versões dos evangelhos apócrifos

mostram que, após o desencarne, Jesus teria penetrado nos círculos

mais tenebrosos dos planos umbralinos e subcrostais, espalhando sua

luz em todas essas regiões, permitindo que muitos irmãos em condições

infelizes fossem resgatados e encaminhados para atendimento. Essa

visão do Cristo nas regiões mais densas foi abordada no início desse

livro e apresenta algumas confirmações da literatura espírita, podendo

ajudar a explicar a observação de muitos homens "ressuscitados" na

cidade de Jerusalém nos dias seguintes ao calvário, exemplos vivos da

mediunidade ao longo das eras.

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11 O Papel de Jesus no Presente

“...Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações...”

(Romanos, 5, 5)

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A extensa literatura espírita disponível, em particular o livro " A

Caminho da Luz", de autoria de Emmanuel e psicografado pelo médium

Francisco Candido Xavier, nos mostra que desde a mais remota

antiguidade, quando do estabelecimento do orbe terrestre, o espírito a

que denominamos de Jesus já era o grande responsável pelo

desenvolvimento da nossa sociedade e co-autor da evolução em nosso

mundo.

Sabemos plenamente que essas considerações são bastante

criticadas dentro das religiões cristãs que, erroneamente, excluem o

espiritismo do rol de crenças oriundas da mensagem de Jesus. Não

viemos para polemizar e não o faremos agora. A verdade se impõe por

ela mesma e se o que dissemos e acreditamos não for uma expressão

dessa verdade maior, que caia no esquecimento e pedimos perdão ao

divino mestre pela nossa insignificância e ignorância.

Contudo, Jesus não morreu na cruz e não dizemos isso porque

acreditamos que ele montou em um camelo ou jumento e rumou para a

Ìndia, Tibet, Egito ou para as colinas de Hollywood, mas simplesmente

porque a morte é apenas uma ilusão dos nossos sentido materiais. A

morte da carne significou uma intensificação das suas atividades de

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trabalho junto ao globo terrestre. Não ficou à direita do Pai, escutando

sons melodiosos que se originavam da milhares de orquestras

angelicais. Não falamos essas palavras com tom irônico, pelo contrário,

queremos apenas mostrar que muitos foram os enviados de Deus,

mandados diretamente pelo mestre que nasceu em Nazaré, que atuaram

em nosso meio. O próprio Jesus acompanhou o processo de renovação

da fé cristã na Europa e o surgimento de outras religiões monoteístas no

mundo.

Sabemos que, quanto mais evoluímos nessa jornada, maior é a

nossa responsabilidade e a necessidade de trabalho. Se isso é verdade

para nós, pequenos ciscos na criação divina, imaginem o quanto o

mestre vem sendo envolvido no trabalho incessante ligado ao mundo

em que vivemos.

Tempos duros se abateram sobre o mundo ao longo dos últimos

dois mil anos, mas indubitavelmente crescemos e as dores que agora

sentimos são dores que mostram a transição da infância espiritual da

humanidade para a fase adulta, de regeneração, e essa transição também

vem ocorrendo sob os auspícios do Cristo, do escolhido de Deus. Quem

tem acompanhado a literatura espírita e os movimentos religiosos pode

estar presenciando a maior vitória do espírito cristão nos último séculos:

o reconhecimento de que o Pai é um só e somos, em consequência

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disso, irmãos. Isso torna muito mais fácil a lei do "amar ao próximo

como a ti mesmo".

Todos os enviados das trevas, que espalharam a guerra ao longo

dos séculos XIX e XX (infelizmente elas ainda vicejam no século XXI),

acabaram destruindo o mundo provinciano e preconceituoso, abrindo as

portas para um cristianismo prático, que não se prende a rótulos. O

amar ao próximo hoje se inicia de forma tímida em todos os cantos do

globo, com o reconhecimento de que fazemos parte dessa família,

independentemente da cor, credo e filosofia. Sabemos que o caminho é

muito longo, mas desanimar não é opção depois de tudo que se passou

nos anais da história.

O Reino de Deus já se faz presente na vida das pessoas, através

do pastor inspirado, que transborda de cultura evangélica para seus

fiéis, através do padre amoroso (como tantos que conheci, EGJJr) que

orienta crianças na escola salesiana (ou de outras agremiações), pelas

mãos do médium espírita, naquela vila pequena junto ao rio Tietê,

Paraná ou Parnaíba, bem como em mesquitas e sinagogas, onde

esperamos que os moderados vençam as intransigências e estimulem

que todos venham a reconhecer primeiro as semelhanças que nos unem

e deixem para trás as diferenças que ainda nos separam. Nosso Deus é

um só, Yaveh ou Alá, sempre Ele e somente Ele, nosso Abba, Pai. Pai

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divino que nos mantém vivos e atuantes. A Ele devemos a tolerância

que caracterizava a palavra de Jesus, seu maior enviado e nosso líder

planetário.

Podemos observar que o Alto tem procurado desmistificar a

figura de Jesus, aproximando-o das pessoas mais simples e tem

trabalhado incessantemente para que as diversas religiões readquiram o

espiritualismo, em contrapartida ao materialismo, que foi perdido

quando se aproximaram do poder temporal, mundano, humano. Isso

ocorreu com todas as crenças; o dinheiro e o poder são doenças do

homem e todos somos passíveis de sucumbir em suas mãos.

No presente, o mundo vem experimentando profundas

modificações em todos os níveis: ascensão de novas potencias

econômicas, desenvolvimento de novos métodos de produção,

ampliação exponencial do conhecimento cientifico disponível,

enfraquecimento das crenças religiosas tradicionais, aumento

vertiginoso do consumo de drogas e da violência a elas associadas,

redução do número de filhos e envelhecimento da população,

esgotamento dos recursos naturais, dentre tantos outros pontos que nos

parecem bastante cruciais. Nesse quadro, poucas são as notícias boas,

como uma significativa redução das posições de xenofobia e outras

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fobias, como a homofobia. Nasce a compreensão de que a humanidade

é uma grande família e de que o mundo é pequeno e bastante frágil.

Poucos duvidam que estamos em um momento bastante

complexo e importante da história do globo, onde teremos de encarar as

nossas mazelas e tirar das gavetas antigas reformas, proteladas por

séculos. O tempo urge e, como o próprio Cristo nos preveniu, a

sociedade será contemplada, coletivamente, pelas suas obras e as nossas

ainda denunciam uma espécie belicosa e infantil, incapaz de gerir seus

próprios recursos. Guerras avassaladoras, muitas das quais praticadas

em nome de Deus, marcam o nosso currículo.

Bilhões de seres humanos ainda vegetam em condições

lastimáveis na superfície do planeta, sem o acesso a condições mínimas

de dignidade e ainda dizemos que foi o Pai eterno que fez o mundo

como o conhecemos. De forma alguma, os recursos naturais constituem

o presente divino, mas o que fazemos com eles diz respeito apenas à

humanidade terrena. Ele tem mostrado uma paciência infinita com essa

espécie recalcitrante, mas claramente não poderemos mais manter

nossos padrões de consumo e desperdício de outrora. Seremos os

autores maiores do nosso próprio Armagedom, do nosso próprio

Apocalipse.

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Pela lei de afinidades, a humanidade vem se cercando da pior

influencia possível. Os umbrais estão repletos de gente, mais de 20

bilhões, segundo a própria literatura espírita, e muitos desses nossos

irmãos estão vindo para o nosso plano continuamente, mostrando que a

qualificação moral e espiritual da humanidade continua a apresentar um

quadro bastante sofrido e triste, de forma que todas as características da

psicosfera terrena nos lembram da necessidade de saneamento urgente.

Para tanto, os espíritos superiores, fazendo eco ao que Jesus

dizia aos seu seguidores e às multidões pelo caminho, têm enviado

missionários, como Gandhi, Madre Tereza da Calcutá, Chico Xavier e

outros, para nos lembrar do reino de Deus, que irá substituir o caos.

Esse reino irá brotar do interior de cada um e se tornará o padrão de

relacionamento interpessoal, norteando o próximo ciclo de

desenvolvimento do planeta, agora elevado à condição de mundo em

regeneração.

Obviamente, a seleção daqueles que deverão aqui permanecer e

daqueles que serão convidados, pelo Mestre Divino, a se deslocar para

um outro bastião de vida, no universo, se dará em função do fenômeno

de sintonia vibratória e, dessa forma, ninguém poderá dizer que

injustiças foram cometidas, afinal estaremos onde nossos corações

disserem que deveríamos estar. É a justiça divina, que chega, como

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colocou o mestre galileu, insidiosamente, durante a noite, para permitir

um belo raiar do dia, de uma nova civilização.

O processo como um todo já começou e seu ritmo está se

acentuando vertiginosamente, o que nos faz lembrar que as

reencarnações que hoje tomam corpo no planeta se revestem de um

chamamento pessoal em caráter de urgência, para que todos promovam

a reforma íntima necessária e trabalhem na seara do mestre, de forma a

se habilitar para a permanência em nosso planeta e para um novo

recomeço coletivo. Embora o Apocalipse de João venha despertar

aversões pelas imagens fortes que ele utiliza, o que é normal, se

considerarmos a época em que ele foi escrito e os fenômenos que ele

tenta descrever, temos de concordar que o mundo que vemos hoje

corresponde, claramente, à descrição do médium que acompanhou

Jesus.

A luz da doutrina espírita e a penetração dos conceitos básicos

do amor ao próximo em todas as crenças, particularmente na seara

cristã, constituem uma esperança de conforto para todos no futuro

atribulado que nos espera, mas devemos lembrar que o Pai não

abandona os seus filhos e tem assistido o desenrolar dos atos dessa

história surreal que vem a ser a nossa humanidade. O Governo

Espiritual do Mundo, constituído de seres angelicais, muitos dos quais

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interagiam com Jesus durante seu ministério terreno, liderados pelo

Cristo Terreno, nosso amado Jesus, nos faz crer que estamos muito bem

acompanhados e amparados nessa jornada e o mestre que amou a ama

profundamente nossa pobre humanidade não nos deixará ao acaso, qual

nave sem rumo em um oceano tempestuoso.

Como um dia disse a querida progenitora de um dos autores

(EGJJr):

"Filho, lembre-se, nada separa o que o amor verdadeiro uniu".

Ela, um ser imperfeito como nós, falava como mãe, mas em diversas

ocasiões pudemos perceber que essa filosofia norteia a estrutura do

próprio universo; o amor divino é como as forças nucleares que mantém

a estrutura atômica. Que Deus, nosso Pai, tenha misericórdia de nós.

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12 Referências Bibliográficas

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