jean-philippe faure - educar sem punições nem recompensas

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    Jean-Philippe Faure

    Educar sem puniesnem recompensas

    Traduo de Stephania Matousek

    EDITORA

    VOZES

    Petrpolis

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    ditions Jouvence, 2005 Chemin du Guillon 20

    Case 184CH-1233 Bernex

    http://[email protected]

    Ttulo original francs: duquer sans punitions nircompenses

    Direitos de publicao em lngua portuguesa:2008, Editora Vozes Ltda.

    Rua Frei Lus, 10025689-900 Petrpolis, RJ

    Internet: http://www.vozes.com.brBrasil

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obrapoder ser reproduzida ou transmitida por qualquer formae/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo

    fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema oubanco de dados sem permisso escrita da Editora.

    Diretor editorial Frei Antnio Moser

    EditoresAna Paula Santos Matos

    Jos Maria da SilvaLdio Peretti

    Marilac Loraine Oleniki

    Secretrio executivo Joo Batista KreuchEditorao: Frei Leonardo A.R.T. dos Santos

    Projeto grfico: AG.SR Desenv. GrficoCapa: WM Design

    ISBN 978-85-326-3683-6 (edio brasileira)ISBN 2-88353-422-5 (edio sua)

    Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

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    SumrioPrembulo................................................................................................5

    1 Experincia pessoal e motivao..........................................................62 Os objetivos da educao .....................................................................9

    3 Ateno ao sentido que voc d s suas mensagens.........................12

    4 Vamos parar de achar que o erro um problema .............................14

    5 A crtica vista como uma oportunidade..............................................18

    6 Uma boa acolhida ...............................................................................21

    7 A empatia, um apoio nossa capacidade de acolhida.......................23

    8 Oferecer nossa presena ....................................................................26

    9 Respeito por nossos sentimentos.......................................................29

    10 Uma pedagogia da espontaneidade.................................................32

    11 Aprender a no saber tudo, uma pedagogia no-diretiva ...............35

    12 O problema dos limites.....................................................................38

    13 O valor da palavra.............................................................................43

    14 Observar ou imaginar o mundo........................................................46

    15 O tringulo relacional .......................................................................49

    16 A relao de confiana......................................................................52

    17 Confrontar-se com as exigncias......................................................54

    18 Um dia de Ivan, estudante em 2020.................................................57

    19 As caractersticas de uma escola no-diretiva..................................59

    20 Abertura............................................................................................62

    Bibliografia.............................................................................................63

    Para saber mais......................................................................................64

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    Prembulo

    Ao buscar a simplicidade e tendo pouco espao disponvel num livro

    destinado a uma coleo de bolso, fui levado a exprimir algumas crenas comoverdades, e no do jeito que eu gostaria de viv-las, ou seja, como hipteses.Apesar dos cortes que foram feitos, no desejo passar a idia de que tenho apretenso de ter certeza (quero dizer, a cristalizao de um esquema depensamentos imutvel) do que quer que seja.

    Eu ficaria aliviado se os leitores no quisessem aderir de imediato ao queest escrito e experimentassem por completo o alegre movimento da crtica, que

    coloca em questo todas as noes (tanto as nossas como as dos outros).O contedo deste livro se baseia na, e limitado pela, minha experincia de

    formador em Comunicao No-Violenta na Sua e na Frana. s pessoas quedesejam compreender melhor os fundamentos dessa prtica, indico os livros deseu criador, Marshall Rosenberg.

    Optei por no abordar vrios aspectos ligados a uma pedagogia cooperativa,como por exemplo a tomada de deciso atravs de um consenso ou a gesto das

    regras, por causa da amplitude desse tema, que ser tratado em outro livro.Foram muitas as pessoas que me apoiaram na redao deste livro, e, por

    isso, impossvel citar todas elas. No entanto, gostaria de registrar umagradecimento especial a Aline Bourrit, Christiane Goffard e Patrick Wouters,cujas contribuies foram muito preciosas para me ajudar a esclarecer tanto aminha iniciativa quanto estas pginas.

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    1Experincia pessoal e motivao

    Um dia, eu esperava a mim mesmo e me dizia: "Guillaume, j hora de aparecer", para que eu, enfim, conhecesse aqueleque eu sou.

    Guillaume Apollinaire

    Como bilhes de outras crianas, aprendi a deixar de lado a relaocomigo mesmo. Aprendi a renegar meus sentimentos e confiar nas crenas dosadultos. Aprendi a negar voluntariamente as minhas emoes e varrer astenses para debaixo do tapete. Aprendi a conceder o essencial do meu tempoaos meus pensamentos e alguns minutos de esmola ao meu corpo, fazendo-ocalar-se quando gritava de fome. Essa obra de destruio, de separao, derecalque se chama "educao".

    Dos seis aos dezoito anos, acumulei um saber que era completamenteexterior a mim. Inculcaram-me milhares de noes para as quais eu via poucautilidade, em detrimento de assuntos que despertavam minha curiosidade. Aoterminar a escola, as conjugaes dos verbos me eram mais familiares do que ointerior do meu corpo. Eu sabia os nomes da maioria dos pases do mundo, masera incapaz de exprimir o sentimento que eu trazia no peito. Alis, eu ignoravasua presena: a escola tinha contribudo para me transformar num analfabetoemocional.

    Mas tive sorte, porque todos esses anos de escola no abafaramcompletamente a minha curiosidade. Pouco a pouco, aprendi a rever o mundocomo uma matria viva e redescobri a alegria de explorar algo quando apesquisa possui alguma ligao com o meu profundo ardor. A Comunicao No-Violenta (que a partir de agora chamarei de CNV) me permitiu mergulhar emassuntos de estudo dos quais, que eu me lembre, nenhum professor tinha mefalado: reaproximar-me dos meus sentimentos e necessidades, expressar minhaautenticidade, encontrar meu lugar num grupo, administrar os conflitos com

    confiana e benevolncia...

    Percebi a que ponto essa via que a CNV desenvolve me tinha feito faltadurante os anos de escola. Depois, pouco a pouco, uma pedagogia mais global,

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    que levava em considerao o pleno potencial do ser humano, revelou-se paramim. No bastava levar em conta o aspecto relacional na educao semmodificar a estrutura do ensino, como alguns professores me perguntaramdurante meus seminrios. Comunicar-se de outra forma implica mudar suamaneira de ser consigo mesmo e sua relao com o mundo. Surgiu ento uma

    pedagogia desconcertante: da presena a si mesmo e no mais da ausncia; doencaminhamento e no mais do objetivo; do instante e no mais do programa.Tratava-se de fazer uma revoluo to completa que se modificariam todos ospontos de referncia de nossa sociedade, uma vez que ela deveria arrancar asprofundas razes da violncia, ou seja, a cultura e as crenas.

    Por ter colocado a minha vida focada no plano da imaginao, estouciente do perigo de uma existncia virtual. J constatei a que ponto minha

    relao com a realidade pode ser frgil e o quo facilmente posso voltar amergulhar num universo de fices quando o acontecimento que estou vivendome perturba emocionalmente. Isso me tornou sensvel ao sofrimento que, emlongo prazo, essa ruptura com a realidade pode provocar nas crianas.

    Por isso, no consigo me impedir de sonhar com a fora de vida quemudaria a nossa Terra se a educao pudesse ajudar os jovens, mesmo queapenas cem mil, a realizar o seu pleno potencial; se o aprendizado contribusse

    para formar seres humanos autnomos, sensveis ao seu meio ambiente e emcontato consigo mesmos.

    Essas so algumas pistas que seguem a direo da viso pela qualconvido voc a me acompanhar.

    Na prtica das escolas, a educao estagnou na acumulao de saberes ena aquisio de modos de pensar, em detrimento de todas as outras formas de

    inteligncia. Essa focalizao nas capacidades mentais restringe o poder deadaptao do indivduo. No meu trabalho de acompanhamento em CNV, conhecivrias pessoas que conhecem seus problemas, o que poderiam fazer paramelhorar... e que, claro, no conseguem, apenas com a compreensointelectual, abandonar o esquema do qual gostariam de se libertar. Para operar atransformao que desejam, elas devem desenvolver suas inteligncias corporale emocional.

    Quanto famlia, cada vez menos os pais podem dedicar o melhor desua ateno aos seus filhos: as presses do sistema econmico os levam avoltarem para casa sobrecarregados e esgotados. Alm disso, sejam quais foremos mritos do que eles conseguem transmitir, os valores que podem encarnar se

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    opem poderosa inanidade daqueles que a cultura veicula. Assim, as crianasso desorientadas por mensagens contraditrias.

    E mais, um forte condicionamento faz com que os jovens no obtenhamo mesmo respeito intrnseco que os adultos. Sejam quais forem os lugares de

    encontro, a atitude se modifica se a pessoa com que se fala for "menor" ou"maior de idade". Durante minha infncia, vivi dolorosamente essa diferena deateno e permaneci bastante sensvel a essas variaes de respeito. Ainda hoje,quando escuto na rua um adulto gritar com um outro ser vivo, com freqnciapreciso me virar para ver se ele se dirige ao seu cachorro ou ao seu filho. Omesmo tom, as mesmas entonaes e as mesmas palavras so empregadas nosdois casos.

    Aspiro a viver num mundo liberto dos jogos de poder ligados idade eonde os antigos sistemas de crenas que os fundam desapaream. Uma dasminhas amigas tem quatro anos. claro que os assuntos de minhas conversascom ela no so os mesmos que com outras pessoas conhecidas: o senso dehumor nessa idade no igual quele que se tem aos quarenta anos. E, noentanto, no vejo diferena profunda entre essa amizade e as outras.

    Paradoxalmente, ao lado dessa fundamental falta de considerao para

    com os jovens, vejo-os com freqncia com uma liberdade de ao e de discursoque me espanta! Assisto a cenas nas quais professores olham, impotentes,jovens quebrarem o material que lhes foi oferecido; escuto pais que se deixaminsultar sem reao (no se trata de acreditar no insulto, mas de reagir angstia que est por trs dele); observo sem parar anncios destinados scrianas, aladas ao patamar supremo de consumidores. Vejo acordarem umaliberdade de comportamento que, porm, no vivida a partir de um respeitoprofundo. Esse desacordo cria uma confuso e uma violncia germinal que me

    aterrorizam.

    Em matria de educao, tenho a impresso de viver, assim como Aliceno pas das maravilhas, do outro lado do espelho da lgica. As crianas nopodem contar com uma abertura para as suas necessidades nem com umaclareza no plano das regras e valores. Os adultos lhes concedem uma recusaquando elas desejam ser escutadas e uma permissividade quando a firmeza seriaum poderoso apoio para elas.

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    2Os objetivos da educao

    A educao correta cultiva o nosso ser inteiro, a totalidade danossa alma. Ela oferece, ao nosso esprito e ao nosso corao,

    profundeza e compreenso da beleza.Krishnamurti

    Frente aos desafios do nosso tempo, onde a humanidade responsvelno somente pela sua sobrevivncia como tambm pela de milhes de outrasespcies, seria de se esperar que a educao fosse o alvo de todas as atenes,permitindo aos jovens desenvolverem as capacidades de adaptao que essecontexto requer. No entanto, constato com tristeza que a educao contem-pornea baseada em paradigmas que perpetuam antigos condicionamentosdestrutivos:

    A submisso s crenas dominantes e s autoridades exteriores.

    So os pais, os professores, depois os chefes, os polticos, etc. quesabem o que bom para o jovem.

    A aquisio de saberes e tcnicas que permitem exercer um papelconforme s grandes normas sociais.

    A educao consiste essencialmente na acumulao de um saberreconhecido por um grupo ou pela sociedade. O tipo de matrias adquiridas d

    direito a um certo status social: admite-se que uma competncia em literaturaou medicina tem mais valor do que em eletricidade ou jardinagem.

    A assimilao de um sistema de comparao e competio pelosestudantes.

    Na maior parte das escolas, os alunos adquirem os esquemas dacomparao. Espera-se de cada indivduo um desempenho definido globalmente

    de antemo. Os objetivos so os mesmos para cada um e os membros de umgrupo so comparados entre si de acordo com seus resultados. O esquema dacomparao gera o da competio: os alunos no trabalham em funo de si

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    mesmos, mas sim para ultrapassar os outros.

    Atravs do meu trabalho de formador em CNV, pude constatar a queponto essas noes de comparao e competio provocam violncia. Osestudantes so condicionados a responder s exigncias do sistema e, para

    consegui-lo, criam para si mesmos exigncias internas (ou, segundo a definioque lhes dada em CNV, a dolorosa presso quanto a um objetivo, que nos isolada necessidade do instante). Eles se acostumam a s obter um reconhecimentopositivo se conseguirem produzir resultados conformes s expectativasprojetadas sobre eles. Ao terminar a escola, eles tero acumulado crenas e

    julgamentos destrutivos, particularmente sobre si mesmos.

    O estrangulamento da originalidade de cada indivduo em proveitode esquemas culturais gerais.

    Na imensa maioria dos casos, a ateno concentrada na obteno deresultados esperados pelo professor ou pelo sistema escolar. Sobra poucoespao para as pesquisas atpicas ou para os encaminhamentos pessoais dosestudantes. Embora recentes reformas escolares valorizem mais a iniciativa doque o resultado, parece que os professores no foram formados para deixar delado os to preciosos elementos dos saberes que assimilaram ao longo de seus

    estudos. Por isso, eles mantm na cabea os objetivos a serem atingidos. Nomelhor dos casos, h uma tolerncia quanto originalidade, que, porm, raramente encorajada.

    Ento, o que poderia ser uma educao que permitisse aos estudantesexercerem ao mximo sua imensa potencialidade natural, que os apoiaria parase tornarem autnomos, sensveis, criativos e benevolentes?

    Uma educao a servio da vida visa a que os jovens:

    sejam capazes de respondercom confiana e criatividade aosdesafios da vida;

    aprendam a se conhecerintimamente e estejam prontos para sequestionar,

    sejam capazes de sentire exprimir as emoes, tanto para si mesmoscomo para os outros;

    desenvolvam os aprendizados que lhes permitam se inserir em suas

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    culturas com um esprito de cooperao e, ao mesmo tempo, adquiramum verdadeiro senso crtico com relao a todas as formas de crenas(em outras palavras: um amor pela verdade);

    possam assumir a responsabilidade de suas vidas e estejamconscientes das conseqncias de seus atos para o meio ambiente;

    adquiram meios para gerir seus problemas e sofrimentos;

    desenvolvam uma sensibilidade quanto aos problemas e sofrimentosdos outros;

    internalizem uma real capacidade de ateno e de presena noinstante.

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    3Ateno ao sentido que voc d s suasmensagens

    Se um dia voc constatar que os antigos mtodos de punioe recompensa so inteis, seu esprito se tornar bem maisativo.

    Krishnamurti

    Na minha opinio, o maior problema causado pelas punies erecompensas o fato de elas enfraquecerem o sentido que a mensagem querpassar. Quando voc diz a uma criana: "Faa tal coisa, seno tal outra vaiacontecer! Se voc no comer a salada, ficar sem sobremesa! Se voc noterminar esse dever de casa, no poder assistir televiso! Se voc fizer essedever, ter uma recompensa!", voc est sempre sugerindo que a primeira parteda mensagem no suficientemente vlida e que preciso acrescentar algo paralhe dar crdito.

    O problema a causalidade. Pouco a pouco, as crianas se sentemdivididas entre os dois componentes da mensagem situados de cada lado do"seno". E, no final, a maioria delas vai se condicionar a dar mais importncia segunda do que primeira parte.

    Tomei conscincia disso, em particular, graas ao meu filho, depois deuma situao que vi vemos. Naquele dia, tnhamos pego o bonde no ltimo

    segundo e, por isso, no tive tempo de comprar uma passagem.1

    No final dotrajeto, fui comprar um bilhete no distribuidor automtico. Ento, meu filho meolhou bastante surpreso e me disse:

    "Mas, pai, por que voc est comprando essa passagem? Agora nocorremos mais o risco do controlador nos pegar!"

    Foi a que percebi que ele j tinha comeado a ser doutrinado pela

    1 Na Europa, o sistema de transporte funciona assim: o passageiro compra um bilhete antes de embarcar nomeio de transporte, ao entrar neste valida-o num dispositivo automtico que o carimba ou perfura, e, s vezes,um agente controlador passa para verificar se todos pagaram o trajeto (N.T.).

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    educao da punio e da recompensa: por que pagamos por uma passagem nobonde? Para escapar dos controladores, ou seja, para evitar a punio.Comuniquei-lhe ento a minha surpresa e tristeza pelo fato de ele ver as coisasdesse ngulo. Se estava quitando a minha dvida de um trajeto no transportepblico, era para demonstrar o meu apoio e reconhecimento por beneficiar de

    tal servio e porque queria contribuir para a permanncia desse direito.

    O que criamos quando condicionamos as crianas a agirem para serrecompensadas ou evitar serem punidas? Um mundo de pessoas pouco livres.Uma cultura do medo, com pessoas que pagam pelos artigos das lojassimplesmente para evitar serem pegas se sarem com eles debaixo do brao, eno por uma necessidade de eqidade. Gente que no ultrapassa os limites develocidade por causa das multas, e no por respeito aos outros motoristas ou

    por uma necessidade de segurana coletiva. Gente que frauda o fisco tantoquanto possvel, porque no foram ajudados no sentido de desenvolver uma realpertena sociedade da qual fazem parte.

    Nas relaes com os jovens, eu gostaria de desenvolver uma cultura dosentido. Se realizamos uma ao, porque ela responde a uma necessidadeconstrutiva. Se os pais pedem alguma coisa ao seu filho, porque isso possui umsentido, e o importante fazer a criana entend-lo.

    Mas quero eliminar um risco de confuso: no estou pregando uma novaforma de submisso s instituies. Ao contrrio, acho que pessoas educadaspara assumir realmente as suas responsabilidades se conformam com maisfreqncia s obrigaes sociais porque tm conscincia da interdependnciafundamental entre os seres humanos, o que as leva a serem solidrias com seussemelhantes. Porm, se decidem no cumprir as regras, suas aes sopoderosas, uma vez que so conduzidas a partir de uma motivao clara. A, no

    se trata mais de maracutaia ou contrabando, mas sim de uma objeo comconscincia, baseada numa necessidade de integridade.

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    4Vamos parar de achar que o erro umproblema

    O professor adota, desde o primeiro dia, o tom e os procedimentos de um juiz, e, por isso, o aluno desenvolvenaturalmente a atitude de algum prevenido... que, a todoinstante, talvez seja pego em flagrante delito de falta deateno ou de ignorncia.

    Henri Roorda

    Uma crena que considero das mais destrutivas aquela segundo a qualo erro um problema. Fomos condicionados a acreditar que h respostas certas,as quais devemos buscar, e outras falsas, as quais temos de evitar. Alm disso,fomos condicionados a crer que autoridades exteriores a ns sabem o que certo e o que errado.

    Meu filho tambm me ajudou a perceber o perigo dessa fixao no erro.Um dia, ele me mostrou uma prova de matemtica cuja nota o tinhadesagradado. Olhei seu trabalho e me dei conta de que a sua dificuldade tinhasido causada por um smbolo que ele no conhecia, que significava "multiplicar",enquanto que ele tinha aprendido essa operao com um outro signo. Haviauma seqncia inteira de clculos nos quais ele se tinha enganado, porque tinhainterpretado que era preciso dividir ao invs de multiplicar. Ento eu lhe disse:

    "Legal, essa prova lhe foi bastante til, porque ela permitiu que vocaprendesse um novo smbolo!", mas ele me respondeu: ", pode ser, masessa nota vai baixar minha mdia!"

    Pude constatar, ao longo de vrias discusses com ele, que suafocalizao mais na nota do que no aprendizado o fazia perder o sentido dasprovas.

    Com muita freqncia, a ateno dos alunos no est concentrada novalor intrnseco dos fatos, mas na interpretao do sistema de referncias dosprofessores.

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    No basta, como sempre escuto por a, falar do direito ao erro paraapaziguar a tenso que, para a maioria de ns, representou o medo permanentede nos enganarmos, de no correspondermos s expectativas que eram criadasquanto a ns e as quais tnhamos de adivinhar pouco a pouco. Para se livrardesse paradigma preciso adotar uma atitude globalmente diferente.

    Para deixar para trs a oposio entre o certo e o errado, sugiro umparadigma que nos deixa escolha entre duas oportunidades: o esperado e oinesperado.

    Quando um resultado esperado, ele cria um consenso, sustenta fatos,valida um processo de aprendizado ou representa uma aquisio comum. A

    primeira oportunidade a integrao do processo que nos leva ao esperado. No

    o saber adquirido, mas a incorporao de uma iniciativa que aumenta nossasensibilidade com relao aos problemas da vida.

    Quando um resultado inesperado, ele suscita um processo deinterrogao sobre nossos hbitos a partir da surpresa inicial. No mbito daeducao, h uma busca comum. O autor da iniciativa e a pessoa surpreendida no importa quem exera o papel de professor e o de aluno confrontamsuas impresses e avaliaes, a fim de verificar se h uma chance de colocar em

    questo um conhecimento ou valid-lo de outra maneira. Essa busca aberta dosentido do inesperado a segunda oportunidade.

    Um professor de matemtica me comunicou as dificuldades queencontrava quando dizia aos seus alunos para prestarem ateno nos seusprocessos de reflexo, e no nas notas que poderiam receber. Ele chegoumesmo a suprimir as notas, mas certos alunos permaneciam focalizados nos

    julgamentos que ele poderia fazer sobre eles.

    Uma vez, corrigindo uma prova, ele se deparou com um resultado tosurpreendente que ficou bastante perplexo. Ele se contentou de escrever namargem: "Como voc chegou a essa concluso?" Aps receber sua prova, aaluna veio lhe perguntar: "Mas eu acertei ou errei?" E ele lhe respondeu: "Issono me interessa, o que eu quero entender o seu pensamento. Voc podereproduzi-lo agora?"

    Ela acabou reconstituindo-o, porque imaginava que sua soluo estavade acordo com a norma esperada. Depois do acontecido, ela explicou que, casocontrrio, teria ficado constrangida demais para ousar mostrar-lhe um processoenquanto o supusesse errado.

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    "Nesse caso em particular, eu tinha dificuldade em acreditar que seupensamento era vlido", acrescentou o professor, "mas para mim eraimportante permanecer aberto: eu no teria aprendido a maneira de lheensinar se no tivssemos refeito juntos o seu raciocnio".

    Embora tanto o esperado quanto o inesperado representemoportunidades, a surpresa causada pelo inesperado me parece ter um valorpedaggico superior. O mais interessante quando nos "enganamos", quandoestamos em busca de algo, quando questionamos nossos esquemas depensamento, que, de modo to rpido, tomam a forma nociva de certezas. Estaconcepo to contrria aos ensinamentos contemporneos, que enfatizam aestranha crena no desempenho, que sinto dificuldade em dizer para o meu filhoque considero uma vantagem o fato de ele "falhar" numa prova. Ele no o

    entenderia, porque seus professores j o mandaram buscar as respostas queesperam para as suas perguntas e tentar no surpreend-los. Acho isso umapena, pois essa mudana de perspectiva diante do erro um dos fundamentosde uma pedagogia baseada na ateno s necessidades efetivas do aluno(empregarei tambm o termo "pedagogia no-diretiva" para designar a partir deagora esta educao centrada na escuta das necessidades).

    Essa valorizao do erro, num contexto de no-julgamento, muda o

    sentido que damos aos testes escolares. Eles voltam a exercer a sua funoprimordial de apoio (a qual no me lembro de ter percebido durante os meusanos de escola). Eles podem se tornar (de novo) instrumentos privilegiados pararevelar os terrenos que devem ser explorados e aqueles j maduros para seremprovisoriamente abandonados.

    Para que as avaliaes possam ter um sentido pleno preciso que sejamaplicadas com o esprito de iniciar um processo, e no de valid-lo. Portanto, elas

    devem ser propostas no incio ou no meio de um perodo de aprendizado, nono final. Para no enfraquecer a importncia do teste para a pessoa avaliada, eugostaria que no fossem dadas nem sano nem recompensa. E, para que cadaaluno possa se concentrar no proveito que ele pode tirar, seria bom que, se umacomparao acontecesse, que ela no fosse entre os alunos, mas sim entre osdiferentes resultados possveis.

    Essa no-comparao geral permite introduzir reais desafios para os

    alunos. Numa pedagogia no-diretiva, interessamo-nos pelas necessidades decada um e buscamos com ele um desafio que lhe permita evoluir. Os testes daeducao tradicional, quase sempre formatados para um grande nmero de

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    alunos, no conseguem encontrar ligao com as necessidades individuais. Paramuitos, eles eliminam a parte de desafio, pois a avaliao no adaptada s suascompetncias: so simples ou complicados demais.

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    5A crtica vista como uma oportunidade

    No mundo atual, o nico objetivo educacional que faz sentido a adaptabilidade, ou seja, a f mais num processo do quenum saber imutvel.

    Carl Rogers

    Para mim, uma das diferenas mais marcantes entre uma educao nosentido da CNV e outras, mais tradicionais, encontra-se em relao crtica. Emmuitos sistemas educativos que utilizam as normas habituais, a crtica , para oprofessor, o meio de apontar um erro, a fim de retific-lo. Ele no somente sabeo que certo, como tambm a maneira pela qual os outros alunos devem atingiresse imaginrio.

    No esprito da CNV, a crtica reflete uma necessidade no-satisfeita deuma pessoa que vai comunic-la a uma outra para tentar encontrar seu sentidoa partir dessa busca. A insatisfao no vista como um problema, mesmo que, claro, ela possa ser vivida de maneira dolorosa, mas sim como umaoportunidade de tomada de conscincia. Essa viso e emprego da crtica seintegram no vasto campo do que a CNV chama de celebrao. Quando trabalhacom esse esprito, o professorno repreende o aluno pelo resultado inesperadoque ele produziu, mas lhe agradece a sua tentativa e lhe prope utiliz-la paraaprenderem juntos.

    Se a crtica for empregada a partir desse ponto de vista durante umtempo suficiente, tenho a esperana de que os jovens acabaro buscando-acomo uma oportunidade, ao invs de fugir dela como de uma prova. Porm,antes de chegar l, o professor tem de realmente amenizar a fragilidade queseus alunos desenvolveram aps terem sofrido as crticas costumeiras como sefossem agresses. Talvez seja preciso dar o exemplo: encorajar os estudantes alhe dar avaliaes e lhes mostrar todo o prazer de receb-las atravs de suaatitude. At o dia em que a crtica poder ser percebida assim como : uma

    forma particular de nossa gratido pelo que a vida nos est ensinando.

    A CNV prope um procedimento para nos apoiar na expresso dessaforma de crtica construtiva:

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    Exprimir antes de tudo a nossa autenticidade: a observao mais rigorosa possvel dos fatos;

    o sentimento que isso estimulou em ns;

    nossa necessidade no-satisfeita;

    e terminamos por uma demanda de conexo. Por exemplo:

    "Quando vejo que no concordamos em sete das dez questes desseteste de biologia, fico curioso para saber as razes dessa diferena egostaria de lhe pedir para me explicar as razes das suas escolhas."

    Escutar com empatia:

    As concepes ultrapassadas que acumulamos com relao crticafazem com que ainda seja raro encontrar pessoas essencialmente antenadasquanto aos seus aspectos construtivos. Um reflexo saudvel consiste, portanto,em investir um momento na escuta emptica do jovem para verificar se ele noest brincando de "Quem est certo e quem est errado?"

    Dessa forma, ele pode nos dizer:

    " verdade, no entendo nada de biologia!" Em vez de tentar convenc-lo do valor do seu raciocnio, com freqncia mais til ajud-lo primeiroa se voltar para os seus medos. Pode ser propondo-lhe a seguintereformulao:

    "Voc ficaria desmotivado porque tem dificuldade em acreditar nas suascapacidades nesse domnio?"

    Buscar a vantagem da nossa insatisfao:Em que medida ela permitir que o avaliado evolua e que o avaliador

    repense sua viso de mundo. Se houver abertura, os dois movimentos realmentese realizaro. uma busca mtua, com um beneficio para os dois.

    O critico poderia prosseguir assim:

    "Estou surpreso ao perceber a quantidade de pontos sobre osquais no temos a mesma opinio, porque eu achava quetinha passado tempo suficiente explicando meu ponto de vistae que voc me tinha dito estar de acordo. importante para

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    mim saber onde poderia ter sido mais claro.

    Voc pode me ajudar resumindo o que voc tentou fazer?"

    Celebrar o sentido do que emergiu:

    Certas vezes, o benefcio se mostra mais efetivo para a pessoa querecebe a avaliao, e, em outras, para aquela que a aplica.

    Nos casos descritos anteriormente, uma vez que o aluno e o professorestiverem de acordo sobre o ensinamento a ser tirado da diferena dos seuspontos de vista, o primeiro poder dizer:

    "Sinto-me aliviado porque agora esta matria me parece mais simples, o

    que me d um pouco mais de autoconfiana em biologia!"

    E o segundo:

    "Tambm me sinto aliviado de ter descoberto o que voc no tinhaentendido do meu raciocnio. Agora, tenho uma idia de como possoexplicar essa matria de outra forma da prxima vez."

    O que vai mudar a relao com a crtica no tanto um procedimentoou uma maneira de se expressar, mas uma atitude aberta do professor: suaverdadeira curiosidade quanto iniciativa do jovem; sua capacidade de deixar delado seus conhecimentos enquanto busca, junto com o aluno, o que os doispodem aprender com essa situao.

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    6Uma boa acolhida

    Escutar quer dizer amar. Amar significa: estar disponvel parao que est aqui.

    ric Baret

    Fao questo de desenvolver com as crianas uma relao fundadanuma qualidade de acolhida global. Essa ateno fundamental quase nunca lhes dada. Vou dar um exemplo, que escolhi entre vrios outros, porque memarcou:

    Fui convidado, numa escola genebresa, para assistir a uma formao dealunos mediadores. Eu e a formadora estvamos arrumando a sala, quando, porfalta de sorte, chegou um grupo de atores nos explicando que aquele lugarestava reservado para o ensaio deles. Fomos obrigados ento a mudar de sala. Aprofessora aparece com a turma, e comea uma grande discusso entre ela, aanimadora e dois outros adultos presentes. Durante cinco minutos, elesresolveram tudo entre si.

    Durante esse tempo, o grupo de crianas tinha sido largado no seucanto. Ningum lhes disse bom-dia nem explicou o que estava acontecendo. Porqu? Porque eram jovens. Para aquelas pessoas no era normal dar a mesmaqualidade de ateno a um grupo de crianas e a adultos. Imagine a mesmasituao com um grupo de vinte adultos. O primeiro reflexo seria lhes dizer:

    "Bom-dia, sentimos muito por faz-los esperar. Tnhamos reservado essasala, mas houve um contratempo. Vocs podem, por favor, esperar um

    pouco?"

    Essa diferena de atitude em funo da idade de nosso interlocutor umcondicionamento ancorado to profundamente que o vejo inculcado mesmo empessoas repletas de benevolncia para com os jovens. Nas relaes entremaiores e menores de idade, com freqncia observo mudanas de tom, deescolha das palavras, de posies corporais, as quais interpreto como os indciosde um jogo de poder. Essas mudanas de relao se fazem de maneira toinconsciente que os envolvidos me dizem em seguida, quando lhes falo sobre

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    isso, no terem percebido. S que, atravs dessas manifestaes, as crianasaprendem a se submeterem ou a se revoltarem ou a fugirem, o que d nomesmo.

    Esse um ponto sobre o qual eu gostaria de insistir. Em geral pensamos

    que nas situaes difceis que as relaes se fragilizam. Porm, a partir darepetio desses milhares de momentos, nos quais no damos aos jovens a mesmaboa acolhida que aos adultos, que a base da confiana se quebra. No tanto nassituaes de conflito que essa diferenciao se d, pois as pessoas envolvidassabem perfeitamente que se trata de momentos delicados, onde cada um perdeum pouco da sua estabilidade e ento d o melhor de si. sobretudo o acmulodessas atitudes inconscientes, onde o menor tratado com menos consideraopor causa da sua idade.

    por isso que com os professores eu no trabalho tanto o que acontecedo incio ao final do seu curso, mas do fim deste ltimo ao comeo do seguinte.Falo sobre todas as relaes, todas as conexes que se criam nos corredores eno ptio. Todas essas ocasies condicionam os jovens ou no sentido de umrespeito mtuo ou no de um hbito de submisso ou revolta.

    O que ainda prejudica a boa acolhida a rigidez dos papis nos quais

    fomos condicionados a nos mantermos. Deixamo-nos permanecer fixos naimagem do nosso papel porque nos desapegarmos dele nos deixa inseguros. Acapacidade de passar de um papel para outro, em funo das necessidades dasituao, justamente um elemento-chave de uma pedagogia no-diretiva.

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    7A empatia, um apoio nossa capacidade deacolhida

    Os pais s lanam um olhar incondicionalmente positivo sobrea criana se fizerem o mesmo com relao a si mesmos.

    Carl Rogers

    A CNV determina dois poderes na comunicao: o de nos voltarmos para

    a nossa vulnerabilidade e exprimi-la e o de nos abrirmos de maneiraincondicional mensagem de nosso prximo e reformul-la. Este segundo poderse chama "empatia".

    Ela poderia ser definida como a qualidade do que permanece na nossafaculdade de escuta quando nos liberamos de nossos hbitos e defesas:

    Quando paramos de acreditar saber para o outro o que bom para ele

    e, portanto, abstemo-nos de dar conselhos quando eles no nos so pedidos.

    Quando cessamos de querer fazer alguma coisa nas relaes onde bastaque existamos.

    Quando aceitamos no nos metermos no que diz respeito apenas aooutro e, em momentos diferentes, no incluir o outro no que s interessa a nsmesmos.

    Quando tivermos feito esse trabalho de purificao, podemos noscolocar escuta do nosso interlocutor. Durante alguns segundos no buscamosmais mudar o mundo e em especial a pessoa que estiver diante de ns, paramosde impor aos indivduos que nos cercam o peso de nossas exigncias e de nossosaber.

    Uma ao profundamente ecolgica pode ento comear. Podemos nosabrir mensagem viva que o nosso interlocutor, com freqncia de mododesajeitado, est tentando nos passar. Oferecemos-lhe o presente de umaacolhida que no tenta reformar, nem mesmo entender, mas simplesmente criaruma boa conexo com ele.

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    A fora dessa benevolncia em ao pode ser representada de duasmaneiras:

    Atravs de nossas propostas de reformulao, onde propomos aooutro uma interpretao centrada nos sentimentos e necessidades

    subjacentes da mensagem exprimida, seja ela qual for.

    Pelo desapego que devemos ter quanto forma literal do que dito.Conseguimos este recuo graas ao interesse que aquele que se exprime despertaem ns. Para quem escuta, cada frase contm a manifestao de umanecessidade fundamental. Se quem est sendo escutado sente que a nossaateno aberta, ele poder se deixar levar, sendo ele mesmo, j que noprecisa mais convencer, nem se defender ou se justificar.

    Portanto, a acolhida emptica no insignificante. Quando aoferecemos, ela presta um grande servio relao. Alm do resultado quepodemos obter no instante, a prtica da empatia alimenta nossas relaes, eprincipalmente as que so ntimas, que demandam muita confiana.

    Vejo o alcance mais precioso disso na sua aplicao a longo termo. arepetio de situaes em que a criana pde se sentir acolhida exatamenteonde se encontrava que a base de uma segurana fundamental nas suasrelaes consigo mesmo e com seus pais. um forte apoio para desenvolver suaautoconfiana.

    Essa acolhida no implica que devamos ficar uma hora, ou mesmo dezminutos, escutando o que o nosso interlocutor est exprimindo. Com freqncia,mesmo uma s reformulao vai mudar a energia emocional, contanto quetenhamos criado previamente em ns um espao suficiente de abertura.

    Uma professora me contou a seguinte experincia ocorrida no seuestabelecimento. Ela tinha dificuldades com um jovem que no suportava certasobrigaes da instituio. Uma noite, ele disse:

    "Que saco ter que ir dormir agora!"

    Ela entendeu o que ele devia estar sentindo e apenas lhe disse:

    "Isso o deixa com raiva? Voc gostaria tanto assim de poder escolher?"

    Ao que ele apenas respondeu "Ahan" e subiu para o seu quarto, para

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    surpresa da escutante, que esperava ter que gerir sua resistncia habitual.

    Uma me me contou um episdio muito parecido que ela tinha vividocom uma das suas filhas. Ela a rodeava na cozinha enquanto reclamava de suairm, depois dos seus deveres de casa, da escola, e assim por diante. A mulher

    interrompeu a sua tarefa durante alguns segundos, entrou em contato com airritao de sua filha, tomou-a um instante em seus braos e apenas lhe disseessa frase:

    "Hoje no o seu dia, n?"

    A criana pareceu subitamente calma. Sacudiu a cabea e depois deixousua me para ir fazer os seus deveres.

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    No que a serenidade face s situaes delicadas no me parea umobjetivo a ser alcanado. Porm, essa tranqilidade s me deixa seguro quando resultado de um processo de aceitao de nossa vulnerabilidade e de tomadade conscincia de nossos limites. Ao recalcarmos nossas emoes, obtemos umcerto controle do instante, cuja conseqncia, com a qual teremos de arcar mais

    tarde, uma tenso escondida. A presena no pode ser encarnada a partir deuma fora de vontade ou de reflexo. Ela nasce de um desapego e segue o cursode nossos sentimentos.

    Assumir a responsabilidade de nossas necessidades tambm me pareceessencial. Trata-se de permanecermos fiis ao que sentimos, no nosmisturarmos com as reaes dos outros, ao mesmo tempo em que respeitamosnossas necessidades. Este equilbrio entre uma atitude clara, firme para si e

    aberta para o outro cria condies de segurana para as crianas, antes derealizarmos qualquer ao.

    Nossa autenticidade no ser necessariamente algo fcil de entenderpara o nosso interlocutor. A CNV no visa gentileza (se esta consiste emacreditar que prefervel evitar os conflitos), mas benevolncia, quer dizer, orespeito pelo que est dentro de ns e a confiana no que sua expressohonesta vai trazer. s vezes, o estar presente de verdade pode tomar a forma da

    expresso de nossa raiva, contanto que possamos demonstr-la de maneiraconstrutiva.

    H tantas pessoas desajeitadas na manifestao de sua raiva que muitasse protegem desse sentimento antecipadamente, no querendo exprimi-lo oureceb-lo. Para ajudar tais pessoas e entender este sentimento como uma formade vulnerabilidade, a CNV preconiza assumir a plena responsabilidade dele eterminar nossas intervenes por pedidos concretos e positivos. Portanto,

    perceber que no estou irritado com algum, mas com raiva porque gostaria desatisfazer tal necessidade, no gritar para o outro tudo o que nos desagradanele, mas lhe dizer o que nos fez falta e o que queremos.

    Um amigo que pratica a CNV h alguns anos me comunicou algumasmudanas que essa viso o levou a introduzir na sua comunicao com seusfilhos. Ele tinha adquirido dos seus pais o hbito de ameaar para obter o quedesejava. Descontente com essa transmisso, ele concentrou sua ateno no ato

    de conversar com seus filhos com autenticidade. Mesmo na expresso de suaraiva, ele descobriu que, agindo dessa maneira, ele obtinha deles o que desejavade modo mais fcil, e no mais pela fora do medo. Por exemplo, quando seu

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    filho percebia que, se seu pai estava bravo, era em primeiro lugar em funo doseu cansao e de sua necessidade de preservar seu tempo e no sendo ele acausa disso , ele ficava comovido, mas sem culpa.

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    9Respeito por nossos sentimentos

    Quando voc parar de achar que compreende o seu filho... lherestar a admirao, o sentimento, a brincadeira, o amor.

    ric Baret

    Aprender a se conhecer, a desenvolver uma ligao benevolente consigomesmo me parece no mnimo to importante quanto saber ler e escrever bem.E, de fato, se tivssemos os indicadores para poder calcular a taxa deanalfabetismo emocional e corporal no final do perodo escolar, acho que osnmeros seriam aterradores. Na Sua, um nvel de analfabetismo de 15% ou20% preocupa. O que diramos ento de uma proporo de 80% a 90% deanalfabetos emocionais e corporais? Lanamos na vida "ativa" inmerosindivduos que no aprenderam a se escutar, que tomaram o hbito de recalcarsuas tenses e que no sabem que palavras podem traduzir o seu mal-estar. Aisto vm se juntar, no mbito das estatsticas, as altas taxas de depresso,

    obesidade, suicdios e divrcios. Espero que um dia essa matria essencial pordefinio (o seu prprio ser) seja ensinada nas escolas.

    Vamos pensar na forma que essa parte fundamental da educaopoderia ter.

    Imagino-a na forma de um nico ateli: o do conhecimento de si mesmo.O ser humano seria estudado em sua globalidade, cada parte remetendo outra. O que importa a aquisio de um reflexo de ateno s mensagens queo nosso corpo nos envia quando estamos perturbados, em vez de recalcar estainformao, como tantos de ns aprenderam a fazer. E assim desenvolver aconfiana em nossos sentimentos.

    Vamos explorar as diferentes portas de acesso a ns mesmos, duas dasquais so privilegiadas e devem ser enfatizadas: os sentimentos corporais e asemoes. claro que a mensagem de uma porta est profundamente ligada daoutra.

    A viso de um professor dedicado inteligncia corporal seria no sentidode que a criana redescobrisse a comodidade e o prazer de habitar o seu corpo

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    (segundo a expresso de Thrse Bertherat2). Para conseguir isso, em vez de ummtodo escolhido entre as dezenas que figuram no mercado do bem-estar, oque conta, na minha opinio, a permanncia da conscincia das necessidadescorporais ao longo dos estudos.

    Devemos ajudar os jovens a estarem disponveis para a escuta e a cuidardas suas necessidades fsicas: movimentar-se, alimentar-se, relaxar de maneirasaudvel e respeitosa.

    Temos de ensinar s crianas o ato de prestar ateno nos sinais do seucorpo quando exprime tenses, indisposies, contrariedades e inquietudes.Devemos lhes dar as chaves para aceitar e transformar esses mal-estares.

    Por exemplo:

    Realizar jogos, espaos e rituais para favorecer as necessidades demovimento nas turmas, como rodas de reflexo onde seria possvel

    cogitar um assunto ao mesmo tempo em que todos andam.

    Ritmar os tempos de estudos por momentos de concentrao,relaxamento ou liberao das tenses corporais.

    Prever momentos de expresso, de compartilhamento dossentimentos psquicos e suas mensagens.

    Oferecer aos alunos assentos ergonmicos, bolas ou bancos. Ter uma abertura da parte dos professores s posies corporais

    freqentemente julgadas desrespeitosas, as quais eu associo mais ao

    cansao ou ao tdio.

    Propor atelis para desenvolver o sentido do ritmo: rtmica,eurritmia, dana, etc.

    Quanto inteligncia emocional, poderamos propor s crianas umaalfabetizao. As mensagens veiculadas pelos sentimentos deveriam se tornarpara eles como que placas de trnsito. Cada um deve conhecer seu sentido: umaplaca de rua sem sada, um sentido proibido, uma ultrapassagem de limite develocidade... Mensagens que eles poderiam aprender a aceitar, sejam elas quais

    2 Thrse Bertherat criou e desenvolveu, em meados da dcada de 1970, em Paris, a antiginstica, tcnica que

    permite conhecer melhor o seu prprio corpo e realizar novos movimentos, diferentes dos praticadoscotidianamente. Segundo ela, devemos esquecer os lugares-comuns de que somos "moles ou fracos demais,gordos ou magros demais", pois todos somos muito bem-feitos. Porm, nossa forma perfeita mascarada porcrispaes, dores, deformaes, etc. Fonte: site oficial de Thrse Bertherat, http://www.antigymnastique.com(N.T.).

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    forem, em vez de se voltar vagamente para os "bons" sentimentos e tentarsufocar a fora de vida dos outros.

    Por exemplo, o tdio ou a frustrao, sentimentos "horrveis" aos quaisno damos considerao na nossa sociedade de lazeres, poderiam ser

    apresentados como oportunidades de se conhecer melhor, convites para escutara si mesmo.

    Ou ento a raiva, potncia constrangedora que revela nossa inabilidadea exprimir nosso mal-estar. As crianas poderiam treinar "grit-la" estandoconscientes do que querem, e no, como de costume, exprimindo algo de queno gostam no outro.

    E mesmo os medos, turbulncias subterrneas que se escondem tobem. Os alunos poderiam ensaiar ir busc-los atrs dos discursos animadores,dos sentimentos aparentes ou dos comportamentos provocadores.

    Ou ainda a surpresa, chave de nossa relao com o mundo emocional. Seos jovens percebessem que ela pode trazer mais alegria do que pnico, a simplesdescoberta ajudaria a formar cidados abertos diferena.

    O aprendizado tambm consiste em realizar nossos movimentos de fuga

    com relao a emoes que nos perturbam. , em seguida, adquirir os meios deadministr-las: a capacidade de se concentrar, de prestar ateno em si mesmo,de se deixar surpreender pela energia que surge no corao, de acolher as ondasdessa corrente, de colocar uma delas de lado quando nos submerge, etc.

    Uma amiga minha me contou uma maneira inspiradora de iniciar um be-a-b emocional. No seu jardim-de-infncia sempre perguntam de manh a cadarecm-chegado como ele se sente. Quando se expressa, ele entra numa roda

    onde todos os participantes cantam vrias vezes o seu nome e a emoo que eleest sentido:

    "Joo est triste esta manh, Joo est triste esta manh."

    Guardo a alegre lembrana de uma experincia que vivi numa colnia defrias. Para iniciar as crianas expresso de seus sentimentos, tnhamospintado um grande crculo no qual diferentes emoes correspondiam a uma

    cor. Antes da reunio cotidiana, cada um pintava o seu rosto seguindo essecdigo, as cores representando sua sensibilidade do momento.

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    10Uma pedagogia da espontaneidade

    No fazemos questo de que a criana esteja interessada peloseu trabalho. Pedimos-lhe somente para obedecer. Se, naturma, com freqncia ela parece to pouco inteligente,

    porque no sacudimos seu esprito, no nos demos aotrabalho de despertar sua curiosidade.

    Henri Roorda

    Vrias vezes fiquei chocado, ao conversar com estudantes, de constatara que ponto o interesse que eles demonstravam por tal assunto eracondicionado e limitado pelas diretivas que lhes tinham sido dadas.

    "T, mas isso no est no programa.""No o que o professor quer.""No vale a pena estudar tal matria, no vai cair na prova mesmo!"

    Que tristeza: eles viam o mundo no a partir de sua curiosidade, mas deacordo com a imposio de uma hierarquia.

    Quando observo a incrvel fora de curiosidade presente na criana bemnovinha, a que ponto todo o seu ser captado por cada novo tema dedescoberta, fico desesperado ao ver o contraste com o estudante-padro. Queimpulso de vida se apagou e quanto o indivduo aprendeu a se limitar! E nosomente a sua curiosidade. Estando essa qualidade restrita, uma parte da sua

    inteligncia e de sua capacidade de adaptao morre.

    O que impediria, e mesmo suscitaria, o entusiasmo do jovem comrelao descoberta do mundo? O que falta para ele confiar na plenitude domovimento que o fez aprender, nos primeiros anos de sua vida, um ou maisidiomas, sem programa preestabelecido? Por que no dar prioridade ao quemobiliza a sua ateno neste instante?

    Essa pedagogia, que enfatiza a espontaneidade, implica inverter a lgicada iniciativa de aquisio no seio da escola pblica. No vamos mais partir doobjetivo de um Estado, mas da interao das necessidades individuais tanto dos

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    alunos como dos professores. Isso implica tambm desenvolver meios paraesclarecer essas necessidades em presena, possveis estratgias no momento eestabelecer processos de acompanhamento para permitir tirar o mximoproveito das escolhas efetuadas.

    Se desejamos incitar os jovens a ter prazer em aprender, necessrioque os pedagogos comecem por se divertir. Em seguida, eles naturalmentemostraro aos seus alunos a alegria de explorar. O que o professor vai transmitir antes de tudo o seu entusiasmo por uma matria.

    Desse ponto de vista, a tarefa primordial do professor conservar a suaprpria espontaneidade, manter a ligao com os sonhos que o levam a exercera sua profisso. Esse aspecto agradvel do seu trabalho demanda que suas

    motivaes, que evidentemente evoluem com o tempo, permaneam claraspara ele. Essa vigilncia vai lev-lo a desenvolver um conhecimento de si mesmoe uma conexo com suas necessidades. Essas capacidades lhe sero teis nosmomentos agitados que surgem durante o ano letivo.

    A fim de prevenir o esgotamento e o desestmulo dos professores, duasajudas me parecem preciosas: criar espaos de acolhida emptica, para darconta de assuntos de escuta atrasados, facilmente acumulados numa profisso

    em que se d o melhor de si aos outros, e prever intervalos regulares derevigoramento, um por ano por exemplo, onde os professores poderiam estarcertos de manterem os laos com suas aspiraes profundas.

    Alm da ao empolgante do professor, outros fatores permitem que os jovens se voltem para a aventura infinitamente apaixonante que oquestionamento da vida. Um contexto rico, aberto e motivante, junto com vriosinstrumentos e temas de explorao disposio. A menor presso possvel

    quanto a um objetivo enquanto o estudante no tiver escolhido uma direoclara visto que as obrigaes provocam uma resistncia proporcional foraexercida, o que leva a uma queda da espontaneidade interior.

    Isso no quer dizer que abandonamos a noo de objetivo. Quando umaluno se foca num projeto, com o aval do seu professor, so definidos objetivos,que no entanto evoluem. Avaliaes conjuntas regulares permitem adapt-lospara que permaneam a servio da iniciativa de aprendizado e no se tornem

    obstculos.

    O essencial no est no projeto escolhido, mas na maneira como ele vivido pelo jovem e como seu encaminhamento explorado pelo professor. A

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    construo de pipas no tem nem mais nem menos valor do que atrigonometria, contanto que a matria seja abordada com paixo e que ocontexto permita que o que foi aprendido d frutos.

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    11Aprender a no saber tudoO questionamento, base de uma pedagogiano-diretiva

    Eu me pergunto se, quando uma tartaruga esconde a cabeana sua carapaa, l dentro to escuro que ela tem medo de

    ficar ali.Eu me pergunto se uma pedra gosta de ser dura.Eu me pergunto se o cu gosta de ser azul.

    Ruth Bebermeyer

    Recentemente, durante um curso que ministrei a adolescentes com aminha colega Fabienne Rauch, pudemos experimentar a magnfica capacidadede questionamento do mundo que acontece nessa idade graas a uma dasparticipantes, que exprimiu suas dvidas quanto ao que propnhamos. Ns lhetnhamos comunicado todo o prazer que sentimos ao descobrir sua faculdade dequestionamento do que dizamos e a segurana que isso nos proporcionava, poisdessa forma, sabendo que o nosso discurso passaria pelo crivo da crtica,podamos nos permitir sermos menos vigilantes.

    No entanto, essa menina baseava suas observaes em suasrepresentaes do mundo, as quais temamos serem imutveis. De fato, ela nosdizia: "No vou mudar minhas idias" ou "Tenho minha opinio". Ela j tinhaaprendido a saber tudo! Acho isso uma pena, pois, se o questiona-mento baseado num sistema de representaes j adquiridas, ele pode no sersuficientemente pleno para criticar certas crenas imutveis. Para conseguir umaavaliao realmente livre do que nos acontece necessrio partir do no-saber.Esse questionamento, que no sabe nada ou, em todo caso, no sabe mais nadadurante um tempo suficiente, representa para mim a chave da criatividade.

    A escola que repete normas e contribui para mant-las conduz ascrianas a certa rigidez de pensamento. A adoo de hipteses apresentadascomo evidncias, a multiplicao de respostas j prontas e os saberes aingurgitar sem comentrios nem crticas reduzem a maravilhosa plasticidade doesprito infantil. Cada certeza adquirida (lembre-se de que chamo de "certeza"

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    uma crena cristalizada) mata uma parte de ns mesmos. Esses "pensamentosimutveis" so obstculos para a nossa capacidade de nos voltarmos para oinstante. Um esprito profundamente angustiado se agarra a essas crenas. Jum esprito seguro de si aprende a desenvolver uma confiana no que est porvir e a simplesmente manter um esprito aberto.

    A chama da inteligncia (que a educao reduz a cinzas com tantafreqncia) a potncia de Um questionamento permanente, de um olharsempre novo sobre as coisas, de um olhar que no considera nada como j dado. o presente do ato de colocar em questo certas convices do professor e doaluno, para que eles sigam juntos por caminhos nunca antes trilhados.

    A chama da inteligncia o olhar extraordinrio que a criana pequena,

    eternamente surpresa, lana sobre o mundo. A magia revelada nos desenhos deum pedao de madeira, na forma de uma montanha, nas cores de um alimento.E afloram as questes:

    "Por que as chamas nunca descem? O que a grama sente quando cortada? De onde vem a gua da fonte, j que no chove h umasemana?"

    Que mundo surgiria se as crianas fossem encorajadas a continuar essequestionamento?

    um motivo a mais para a explorao pedaggica da espontaneidadedos jovens, que permite ao tema explorado manter a sua atualidade e sertrabalhado por inteiro.

    Uma escola ao meu gosto enfatizaria tanto a desaprendizagem quanto aaprendizagem. Trataramos um assunto uma primeira vez, depois diramos aos

    jovens para esquec-lo durante um tempo e, em seguida, o retomaramos. Oque permaneceu? Como essa parte se integrou ao esprito deles? Revejamos oselementos que a memria no guardou na conscincia, como se eles nuncativessem sido tratados. Como olh-los de outra forma, permitindo-lhes revelarseus diferentes aspectos?

    Vamos estimular os estudantes a ficarem com os seus questionamentos.Acima de tudo, no se deve pression-los para que assimilem um tema senorapidamente eles correm o risco de se contentarem com uma aquisio. Vamosdeixar as interrogaes amadurecerem neles, ajud-los depois a formul-las,construir pontes com outros elementos.

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    Vamos favorecer sua faculdade de duvidar, de colocar em questo seufiltro de interpretao dos acontecimentos. Assim os ajudaremos a manter avivacidade natural de seus espritos, a chama inata do questionamento.Contribumos para que eles se tornem membros ativos da sociedade, ou seja,cidados perturbadores. Esse poder de suscitar e de ficar no desconforto

    permitir a evoluo do seu meio ambiente.

    o peso de nossos saberes que representa o principal obstculo para avida criativa e o conhecimento mais ntimo do mundo.

    a nossa relao com a surpresa que revela nossa capacidade de aceitaro mundo tal como ele , em vez de defender nossas crenas.

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    12O problema dos limites

    A cultura busca a norma, a adeso coletiva, e persegue oanormal.

    Jean Dubuffet

    Um grande problema na educao so os limites. Regularmente escutopais me dizerem:

    "Tudo bem, mas de qualquer forma preciso impor limites aos nossosfilhos!"

    Sempre tenho vontade de lhes responder (na verdade, comeoescutando-os, pois isso permite que nos entendamos mais rpido):

    "Concordo perfeitamente, mas ser que voc pode me explicar o quevoc entende por limite?" porque vejo que diferentes significados se

    escondem por trs desse termo.

    Para mim, quando uma pessoa fala de limites, a questo fundamental saber se ela est falando de uma necessidade ou de uma viso estratgica.*

    No mbito da necessidade, constato que as crianas (e, na verdade, osadultos tambm) se sentem seguros num contexto claro. possvel cri-losatravs de referncias, que so meios a servio da vida. Para delimitar o

    contexto devemos utilizar limites precisos com um objetivo construtivo. Se asreferncias no convm mais, podemos substitu-las por outras, contanto queelas permitam responder s necessidades de presena (mais freqentemente asegurana, o sentido ou a pertena).

    Nessa perspectiva, o limite representa um apoio para a relao, em cujaproteo a ateno concentrada. Por exemplo, quando um professor prope,como regra de comunicao para a turma, que cada aluno fale de uma vez sem

    ser interrompido. Se essa estratgia estiver explicitamente associada s

    * Para deixar claro, gostaria de especificar que, quando emprego o termo "estratgia", no fao julgamentosde valor sobre ele. Utilizo-o para designar a implantao de aes para satisfazer necessidades.

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    necessidades de compartilhamento e clareza das quais provm, h chance de elaser aceita como ajuda, e no como outra imposio vinda dos adultos.

    No cotidiano, a complicao deriva muito da atrao que as situaesexercem sobre ns. De tanto pensar, solues acabam se impondo a ns. No

    entanto, assim que acreditamos saber a maneira exata como a nossanecessidade deve ser satisfeita, no estamos mais em contato com ela, mas como mbito da estratgia.

    claro que uma hora empregaremos meios de ao, mas comfreqncia, quando as pessoas falam de limites, elas j tm idias rgidas sobreos que devem ser impostos. So regras, punies, palmadas, advertncias. Eleslhes passam um sentido de obrigao, e no de ajuda.

    Uma dificuldade crucial nas relaes entre pais e filhos vem do fato deque, com muita freqncia, os primeiros tm claramente na cabea asestratgias que querem instaurar com relao sua prole, mas no asnecessidades que alimentam atravs delas. Eles afirmam para mim:

    " necessrio que nossa filha v dormir antes das nove da noite." "Faoquesto de que meus filhos tenham uma alimentao variada." Etc.

    Suas estratgias so claras. Contudo, quando lhes pergunto:

    "Por que essa maneira de agir importante para voc e no para o seufilho? Posso imaginar o sentido que voc v nessa regra para o seu filho,mas, e para voc?", fico espantado com o tempo necessrio paraencontrar uma resposta.

    Quando esses pais entram em contato com as necessidades que eles

    buscam satisfazer atravs de suas exigncias, com freqncia estas ltimasdesaparecem ou se modificam. Por exemplo: uma vez que percebem que oessencial para eles se reservar um tempo de revigoramento noite, o pedido sua filha se torna: "No nos perturbe depois das nove da noite."

    Se uma necessidade no estiver claramente expressa, issoautomaticamente estimula no interlocutor um reflexo de defesa ligado suanecessidade de autonomia. Tendo visto essa resistncia na prtica, numa

    quantidade considervel de casos, tirei a concluso de que um dos maioresservios que podemos prestar aos nossos filhos sermos claros quanto s nossas

    necessidades quando lhes pedimos alguma coisa. E, a partir da, estarmos, quanto

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    possvel, mais abertos s estratgias implantadas para satisfazer tal necessidade.

    Gostaria de dissipar certas representaes que escutei vrias vezes sobrea no-diretividade. Para explicar as causas delas, devo em primeiro lugar abordara noo de crena. Esta ltima faz parte de uma representao binria do

    mundo. Cada fixao mental tem seu oposto, que no um outro paradigma,mas o outro lado da medalha. Se imaginarmos uma coisa certa, estaremosprontos a consider-la errada. Se projetarmos sobre algum uma fantasia deinteligncia, aceitaremos de modo inconsciente a imagem de sua estupidez.

    Na nossa cultura da eficcia, muitas pessoas esto acostumadas a sefocalizarem nas estratgias. Quando surgiu a moda de uma educao menosdiretiva, elas pensavam: "Antes, eu impunha limites. Pois bem, vou mudar minha

    maneira de agir: vou elimin-los!"

    Na verdade, elas permaneceram completamente no mesmo sistema decrenas, mas imaginaram aderir a um sistema no-diretivo enquanto que narealidade tinham passado de uma atitude diretiva a uma negligncia.

    Portanto, as pessoas envolvidas pelas crenas sobre a no-diretividadeeliminaram vrias obrigaes que impunham anteriormente e se convenceramde que tinham mudado de doutrina pedaggica. O que evidentemente provocousituaes pouco agradveis. Seus filhos no tinham mais segurana em funoda falta de referncias, e os professores se enrascaram na confuso que havia noincio. Como ningum se entendeu, depois de um tempo os adultos afirmaram:"A no-diretividade no funciona, vamos instaurar novamente os limites!"

    Essa alternncia, a partir de uma confuso, ainda poderia durar muitotempo. Pelo menos enquanto no houver a compreenso de que diretividade e

    permissividade so os dois plos da mesma esfera de conscincia.

    Ento, como impor limites a partir da conscincia das necessidades?Uma pedagogia no-diretiva no se apia nas representaes hierrquicas,sanes e outros meios de obrigao. Para sustentar seu funcionamento, elautiliza outros elementos:

    a maior clareza possvel na circulao da informao;

    a autonomizao da maioria de seus atores; a confiana recproca;

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    o aumento da quantidade de referncias.

    Os limites no devem ser suprimidos, pelo contrrio, devem seraumentados. Um sistema no-diretivo se caracteriza por um nmero dereferncias maior.

    Mais do que no mbito do fazer, no do ser que os limites adquirempotncia. A clareza sobre as nossas necessidades, a fidelidade a ns mesmos e anossa coerncia so belos limites para os outros. Tenho a convico de que, sedesenvolvermos essa arquitetura interna, teremos menos necessidade de imporuma estrutura externa para atenuar a nossa confuso.

    Em todo caso, para favorecer a vida social, as referncias so grandesapoios. Elas podem tomar as formas:

    de transmisso de informaes:

    "A lei estipula que proibido fumar aos menores de dezoito anos.""O costume neste prdio de os moradores dizerem bom-dia quando secruzam."

    de opinio:

    "A fumaa do cigarro me incomoda. Eu acharia respeitoso seconvissemos que nesta sala ningum deve fumar."

    de expresso da nossa autenticidade:

    "Fico preocupado quando voc me diz que vai acampar com dois amigosda mesma idade. Preciso me assegurar de que manteremos contato

    durante esse perodo."

    de pedidos concretos e realizveis:

    "Voc pode conversar agora? H algo que o impediria de fazer o que eulhe pedi?"

    de negociao de regras de vida:

    "Algum gostaria que nossas sesses no fossem encabeadas por umanimador? Se sim, pode dizer o porqu?

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    de esclarecimento dos campos no-negociveis:

    "Se voc quer fazer parte do nosso time de futebol, tem de vir a pelomenos um treino por semana. Voc est preparado para aceitar isso?"

    de indicao da causalidade ligada a uma ao:

    "Se voc colocar a mo nessa resistncia eltrica, vai se queimar." Etc.

    O importante no tanto o limite escolhido dentre a multiplicidadeexistente, mas sim a certeza de que:

    Ns o impomos corretamente para beneficiar a relao.

    Conseguimos que ele seja percebido assim. H uma quantidade suficiente de limites para "alimentar" asnecessidades ativadas.

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    13O valor da palavra

    A palavra a sua aliada, mas nunca a sua substituta!Janusz Korczak

    O instrumento privilegiado que utilizamos numa pedagogia no-diretiva a comunicao. Porm, para que a palavra se torne realmente uma ajuda, preciso que ela tenha adquirido uma considerao particular. Por isso, acho tilapresent-la s crianas como um elemento que a priori questionamos apenaspor uma razo salutar.

    Ao darmos mais fora palavra, visamos a dar mais importncia responsabilizao. Para funcionar, a no-diretividade precisa de certo grau deimplicao dos seus membros. Ela se apia numa tomada de responsabilidadeindividual, proporcional aos meios de cada um e de cada uma.

    Vejamos como proceder.

    Desenvolvendo uma atitude coerente. Em primeiro lugar, nsmesmos devemos fazer o que dizemos e dizer o que fazemos. Quantas

    vezes escutei pais ameaarem seus filhos de aes que nunca

    cometeriam?

    "Se voc no vier comigo, vou deix-lo na loja!"

    "Cuidado, se continuar, vamos pedir para esse policial prender voc!"

    Seus filhos acabam no levando a srio essas fantasias; d para ver naindiferena que manifestam diante dessas ameaas.

    Esforando-nos para que as crianas respondam aos nossos pedidos.No se trata de for-las a satisfaz-los, mas de se engajar para obter

    uma resposta autntica. Essa qualidade de ateno no intil. Para

    preservar a energia de todos, antes de fazer um pedido, vale a penapensar com carinho se ele faz realmente sentido.

    Por exemplo, um pai pede ajuda numa tarefa ao seu filho, que,

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    recorrendo a uma estratgia corrente, aquiesce, mas no vai. O primeiro podeparar um instante para verificar se o seu pedido faz sentido para si e depoiscomear a tirar proveito desse pequeno conflito, dizendo:

    "Fico chateado quando escuto voc dizer sim e no vir me ajudar. Prefiro

    que me diga logo no, pelo menos eu sei o que esperar. Voc sabe que ahonestidade nas nossas relaes importante para mim. Por isso, podeme dizer o que passou pela sua cabea quando voc me respondeu?"

    Mostrando a importncia que damos ao respeito dos compromissos.Resignar-se com relao s quebras de compromisso no tem nada a ver com ano-diretividade. Pelo contrrio, ela nos conduz a no deix-las passaremdespercebidas. Podemos permanecer abertos mensagem que procura se

    expressar por trs da ruptura. Esta abertura implica uma escuta daquilo quebusca se fazer ouvir por trs das aes inbeis. Ela no quer dizer que aceitemosesses atos ou que estejamos dispostos a questionar nossa posio.

    Entretanto, podemos abrir um espao para verificar:

    "Ok, isso o que voc quer me dizer."

    Podemos correr o risco de nos comovermos. E eu convido a todos a

    correrem esse risco, porque, quanto mais o fizermos, mais a relao podeevoluir. Devemos permanecer fiis nossa necessidade, se ela continuar vivadentro de ns. Porm, devemos estar abertos quanto escolha da maneira desatisfaz-la. uma posio bsica da CNV: estarmos atentos s nossasnecessidades e flexveis com relao s estratgias a serem empregadas.

    O valor conferido ao compromisso e tomada de responsabilidadepoderia parecer em contradio com a importncia da acolhida do instante. No

    entanto, no os vejo como dois fatores que se opem, mas, ao contrrio, que seequilibram. A viso de longo prazo sustenta a escuta do instante.

    preciso levar em considerao a fluidez da emoo. Esta realmente amensagem mais segura na comunicao, contanto que no seja escutada comoum objeto isolado, mas como elemento de uma dinmica em curso. Vrias vezesassisti a essa necessidade de acolh-la com uma distncia.

    Dessa forma, digamos que uma pessoa enxergue o seu esgotamento e anecessidade de respeitar seu ritmo de vida. Perceba a que ponto no o escutounos ltimos tempos. Esta tomada de conscincia a conduz a parar tal atividade,

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    cansativa demais para ela. Voltando-se para tal possibilidade, ela invadida porum imenso alvio. Para ela, tudo parece estar no seu lugar... e est. No entanto,se continuar sua escuta, ela ser levada a prestar ateno numa necessidade desegurana material e a lhe dar prioridade. Escolher manter seu emprego, maseste lhe demandar menos energia porque as razes de sua escolha se tornaro

    claras para ela. Se essa pessoa tivesse acreditado em sua emoo rpido demaisou se lhe tivesse dado apenas uma acolhida fragmentria, poderia ter tomadouma deciso que na realidade seria precipitada demais para ela. O que no querdizer que ela no pedir demisso em seis meses, quando esse impulso tiveramadurecido o suficiente.

    Podemos levar uma vida fundada unicamente na prioridade dada ao queacontece instante aps instante. Posso admirar tal escolha; s que, para mim,

    ela no concilivel com a no-diretividade. Viver a cooperao nesse sistemapedaggico implica nutrir relaes que levem em considerao o respeito pelasnecessidades do grupo e, portanto, viso de longo prazo.

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    14Observar ou imaginar o mundo

    A criana, que v os mnimos e reais detalhes do mundo, deveter sobre ns, que vemos imagens de nossas snteses mentais inacessveis para ela , uma idia de inferioridade; eladeve nos considerar como incapazes, como pessoas que nosabem enxergar.

    Maria Montessori

    O primeiro convite da CNV o de desenvolvermos uma sensibilidadequanto s coisas que existem e de estarmos conscientes dos comentrios queacrescentamos a elas. Quanto mais potente o movimento de observao,menos se julgar. E, mesmo que nos percamos num "cinema interior" a partirdos fatos que gravamos na mente, a todo instante possvel voltar ao rigor daobservao constatando sem comentrios as imagens com as quais brincamos.

    A ateno ao que acontece o movimento natural da criana bemnovinha. A intensidade de sua relao com o mundo tal que no h ou hpouca distncia entre ela e o objeto que a atrai. Todo o seu ser mobilizadopela relao presente: a dana da vassoura sobre o cho, os jogos de luz naconcavidade de uma colher ou os fascinantes relevos do pur de batatas no seuprato.

    Contudo, na nossa sociedade, onde os intermedirios eletrnicos estoem todo lugar, essa ligao privilegiada com o instante se fragiliza. Amultiplicao dos meios virtuais de comunicao aumenta a nossa propenso anos protegermos da realidade imaginando-a. Alm da diminuio dos contatosreais, a insistncia desses meios na distrao estimula nossos sistemas deproteo. Em vez de nos voltarmos para as emoes originadas pelaconfrontao, rejeitamo-las comentando os acontecimentos. O risco que secorre o de dar, pouco a pouco, uma prioridade interior aos comentrios sobreos fatos objetivos, o que em longo prazo provoca sofrimento.

    Regularmente acompanho grupos de jovens em programas na naturezae fico espantado com a dificuldade deles em se conectar ao seu meio ambiente.Nas sadas para observao de animais, escuto-os falarem durante horas, dias,

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    sobre a sua convivncia na turma ou seus lazeres, s vezes mesmo quando osbichos que eles foram ver esto na sua frente. Essa distncia com o presente norevela uma falta de interesse pela natureza, no o que eles me dizem quandoos questiono, mas um hbito de inateno j bastante consolidado.

    Fui levado a comparar minha capacidade de ateno no mundo e a queconsigo dar a mim mesmo. Pude perceber que, quando aprendia nem que fosses um pouco a olhar para mim, essa aptido se transformava numa aberturamaior para os outros. Para mim, doloroso sentir ento essa desero de simesmo nos jovens, que, h alguns anos, educavam-me para que eu avivassemeu olhar sobre as coisas.

    Por isso, aspiro a que o ato de observar se torne outra prioridade da

    educao. Que a criana possa conservar a profundidade de sua relaosensorial com o mundo. Que ela desaprenda a pensar suas relaes, se j estivercontaminada por esse hbito, e se instrua para viv-las com a mesmaintensidade de quando ela toca, escuta, v, experimenta e cheira.

    Uma educao da observao enfatizaria dois eixos que se completammutuamente:

    Desenvolver uma relao rigorosa com a realidade.

    Tomar conscincia da nossa dificuldade em no julgar o que nos cerca.Desenvolver a capacidade de distinguir os fatos objetivos dos julgamentos, bemcomo assumir a responsabilidade da nossa subjetividade.

    Essa compreenso poderia ser criada atravs de brincadeiras como"Kim" (na qual se deve citar o mximo de objetos escondidos sob um pano, ques foi retirado durante alguns segundos); a descrio de cenas representadas,

    quadros, paisagens, como se o narrador quisesse ajudar um cego a pint-los; avisita de um laboratrio de fsica para descobrir os meios que a cincia possuipara observar o mundo; etc. As possibilidades so limitadas apenas pelacriatividade do pedagogo.

    Esse aprendizado faz com que o amor pela verdade cresa.

    Sensibilizar-se quanto potncia de nossos sentimentos.

    Desenvolver uma pedagogia multissensorial, que compensaria a atualtirania da viso em detrimento dos outros sentidos. Essa ateno a todos os

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    sentidos o ponto de partida da pedagogia aplicada nas escolas Steiner.3

    As brincadeiras que estimulam a nossa capacidade de espanto e demaravilhamento contribuem para o aumento dessas capacidades. Algunsexemplos: passeios sensoriais com os olhos tapados, a pintura de vistas que nos

    surpreendem, a criao de um mapa sonoro ou olfativo do nosso meioambiente, etc.

    Esse aprendizado ajuda a aumentar o amor pela beleza.

    3 "Introduzida por Rudolf Steiner em 1919, em Stuttgart, Alemanha, uma das principais caractersticas estapedagogia o embasamento na concepo de desenvolvimento do ser humano, criada pelo prprio RudolfSteiner, que leva em conta as diferentes caractersticas das crianas e jovens, segundo sua idade aproximada.Um mesmo assunto abordado vrias vezes durante o ciclo escolar, mas nunca da mesma maneira, e semprerespeitando a capacidade de compreenso da criana. Para atingir a formao do ser humano, a pedagogiaatua no desenvolvimento fsico, anmico e espiritual do aluno, incentivando o querer (agir) por meio da

    atividade corprea das crianas em quase todas as aulas. O sentir estimulado na constante abordagemartstica e nas atividades artesanais especficas para cada idade. O pensar cultivado paulatinamente, desde aimaginao incentivada por meio de contos, lendas e mitos no incio da escolaridade , at o pensarabstrato rigorosamente cientfico do Ensino Mdio (colegial)." Fonte: http://www.ewrs.com.br/pedagogia.htm(N.T.).

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    15O tringulo relacional

    Podemos contribuir para o aprendizado de uma criana, masno ensinar.

    Marshall Rosenberg

    Uma representao do ser humano me ajuda muito a apreender acomplexidade de suas motivaes. Pais e professores j me confessaram se

    apoiar nela para decodificar os comportamentos de crianas que lhes pareciamcontraditrias demais.

    Nas relaes humanas, uma freqente complicao a crena segundoa qual um indivduo inteirio, uma personalidade monoltica, que s vezestende para uma direo e s vezes para outras. O trabalho que pude realizarsobre os jogos das relaes me convenceu do contrrio: vejo os indivduoscomo seres eternamente divididos em partes interiores que, por sua vez, com

    freqncia se opem. por isso que um adolescente pode mandar seus pais secatarem num instante e, no momento seguinte, repreend-los por no lhedarem ateno. Aqui no h paradoxo ou esprito de perversidade, mas aexpresso de um conflito interno. Ele est vivendo um dilema entre uma fraontima que aspira a mais liberdade e outra que sente grande necessidade desegurana.

    A multiplicidade de conflitos internos se desdobram em trs grandes

    partes:

    Chamo a primeira de "animadora" ou "exploradora". ela que leva oindivduo a correr riscos, enfrentar desafios ou pedir demisso dotrabalho sem a segurana de ter encontrado outro. Tambm ela queincita a criana a se levantar e dar seus primeiros passos, etc. Anecessidade que ela encarna a autonomia. Esta tendncia nos fazseguir em frente.

    Denomino a segunda de "protetora". Sua funo manter emsegurana todas as partes que compem o ser humano. O que quer que

    faamos, ela sempre procura segurana. O que no nos impede de saltar

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    de pra-quedas ou fazer escalada: ela simplesmente quer ser convencidade que podemos viver tais situaes com alguma forma de segurana,

    pois esta a necessidade que ela personifica acima de tudo. Estatendncia nos faz dar um passo atrs.

    Batizei a terceira de "educadora". Ela representa a inclinao a tirarpartido de tudo o que nos acontece sob a forma de tomadas de

    conscincia. Se no virmos nenhum sentido numa ao, no arealizamos, esta a necessidade que esta parte encarna. Tal tendncianos leva para cima.

    Vejo essas trs partes como guias que esto a nosso servio e sempreativas, nunca pram de tomar conta de ns. Elas formam as trs pontas de umtringulo e cada uma puxa a brasa para a sua prpria sardinha. A personalidadede um ser humano se situa no interior dos trs lados desse tringulo e tendepara uma ou outra direo em funo da parte escutada no instante. Noentanto, seria uma iluso acreditar que possvel ignorar uma dessas partes porlongo tempo. Quando uma delas no escutada, acumula frustrao e pouco apouco comea a gritar mais alto, at o momento em que nos fora a lev-la emconsiderao.

    Quando tenho dificuldade em me ligar fora de vida por trs damensagem de um jovem, eu me pergunto:

    "Qual dessas trs partes ele est escutando agora?"

    Quando um aluno diz durante a aula: "Ah, estou perdendo meutempo, no serve para nada aprender essas datas!", visvel que a sua

    parte educadora pede para entender melhor o sentido do que lhe

    proposto.

    Quando meu filho me confessa, com um tom desiludido: "De qualquerforma, na audio no vou conseguir tocar essa msica sem errar",escuto sua parte protetora que tenta poup-lo de uma decepo.

    E quando um jovem afirma: "estou com vontade de passar a noiteacordado com meus amigos", imagino que seja a sua parte animadora

    que o leva a querer esse tipo de experincia. claro que o adulto tambm est exposto s mesmas leis da diviso

    interna. Ele tambm enfrenta um dilema entre suas partes ntimas. Uma

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    educao mtua implica o mesmo respeito pela complexidade do tringulo dospais e professores que pelo do jovem.

    O tringulo relacional tambm me ajuda a compreender as refernciasque sustentam uma pedagogia no-diretiva. Se almejarmos um equilbrio entre

    as tendncias contraditrias das trs partes interiores, ento os limites quevamos impor, tanto para os nossos filhos como para ns mesmos, apresentaronaturalmente certas caractersticas.

    Para levar em conta a necessidade de segurana da "protetora", vamosoferecer informaes:

    numerosas,

    claras,

    confiveis.

    Para satisfazer necessidade de sentido da "educadora", vamos darinformaes que sero ao mesmo tempo:

    associadas s nossas necessidades,

    bem explicadas,

    avaliveis.

    Por fim, para responder necessidade de autonomia da "animadora",nosso discurso ser: flexvel,

    questionvel.

    A prtica desses oito critrios contribui para instaurar a condio bsicade um funcionamento no-diretivo: a riqueza dos recursos.

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    16A relao de confiana

    O que essa metade da humanidade que, vivendo ao lado dose com os adultos, encontra-se ao mesmo tempo todramaticamente separada deles? Ns a fazemos carregar o

    fardo dos seus deveres de sujeitos de amanh sem lheconceder os seus direitos de sujeitos de hoje.

    Janusz Korczak

    O que permite um equilbrio entre nossas partes internas a qualidadeda aceitao de cada uma. Esta ateno cria aos poucos uma relao deconfiana entre as trs tendncias. Quando no h tal benevolncia, muitoschegam a acreditar que tm adversrios no interior de si mesmos. Isso porque,de tanto no serem escutadas, as partes interiores comeam a gritardesajeitadamente e acabam sendo percebidas como inimigas! A "animadora" imaginada como um tirano; a "protetora", como um policial; a "educadora",

    como um censor. Um dos objetivos da relao de ajuda na CNV ajudar a pessoaa perceber que, na verdade, as partes internas so amigas que sofrem com umdficitde empatia.

    Em seguida, nossos conflitos ntimos se revelam nas relaes exteriores.A falta de harmonia interior induz uma desconfiana com relao aos outros:acreditamos termos algo a defender ou justificar. Ao contrrio, a confiana quepodemos ter em outras pessoas desenvolve a confiana entre nossas partes

    internas. Por isso, uma ajuda essencial que permite s crianas desenvolveremuma amizade consigo mesmas (de acordo com o ttulo de um livro de PedmaChdrn que eu adoro)4, consiste em construir confiana em suas relaes comos outros, principalmente com as pessoas que representam modelos para elas.

    Para mim, esse lao de confiana a base de um trabalho educativoprofundo. a primeira coisa que busco quando entro em contato com jovens. o ponto que quase sempre privilegio em caso de dilema.

    A importncia da relao de confiana refora o sentido do investimento

    4 Entrer en amiti avec soi-mme. Paris: Pocket, 2000 (N.T.).

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    na faculdade de presena e de acolhida. A autenticidade e a empatia de pais eprofessores representam exemplos inspiradores para as crianas. Qualidadesque so o que cada um deve dar a si mesmo se quiser alcanar o bem-estar emsua vida.

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    17Confrontar-se com as exigncias

    evidente que a sociedade deva exercer um controle benficosobre o indivduo humano e verdade tambm que aeducao deve ser considerada como uma ajuda para a vida,mas esse controle nunca deve ser constrangedor nemopressivo, mas sim um ajuda fsica e psquica.

    Maria Montessori

    Freqentemente os pais me dizem estarem descontentes com asexigncias que se vem obrigados a fazer aos filhos. Eles gostariam de aplicarmelhor o processo da CNV, que implica pedidos negociveis. Vejo que a tensopara manter essa aspirao no-exigncia lhes custa muita energia e que elesacabam oscilando entre este ideal sedutor e rupturas culpabilizantes comrelao a ele. Por fim, a idia de funcionar sem exigncia se torna para eles umanova forma de exigncia.

    Acho mais econmico primeiro exercermos uma benevolncia quanto nossa natureza humana e aceitarmos o fato de esbarrarmos regularmente emnossos limites internos, o que nos impede de dialogar o tempo todo. A partirdessa indulgncia, com relao aos nossos limites que podemos aplicar a CNV.

    A exigncia surge ento como a compensao desajeitada de necessidadesrecalcadas.

    Se criamos essa violncia interna, porque gostaramos muito de serpais mais amveis, mais disponveis, mais alguma coisa. Isso porque, entre anossa situao atual e o que desejamos viver, conhecemos bem a diferena, quenos insuportvel, e assim temos tendncia a mascar-la, recalc-la, o que criauma saturao emocional... at o dia em que as nossas barreiras se quebram. Eacabamos impondo s pessoas que nos cercam um comportamento quedetestamos. Portanto, a beleza de nossos valores e ideais queautomaticamente suscita o peso de nossas exigncias.

    Da a vantagem de no dirigirmos nossa ateno para os charmes dofuturo, mas sim acolhermos o que est presente no instante. Sermos brandoscom a nossa frustrao, se for o caso, ou seja, concedermo-nos empatia. E, se o

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    suficientemente as necessidades frustradas em mim, conseguindo separar estaconscincia do que acho da minha filha?

    Quarto, como posso formul-la?

    Expresso uma ordem, mas associo-a minha vulnerabilidade e tentocomunicar o seu sentido. Por exemplo:

    "No estou mais afim de discutir porque estou esgotada e queropreservar o meu tempo. Agora, v limpar a cozinha! Dessa forma vou meassegurar de que cada um faz a sua parte para a organizao da casa."

    Ateno! Uma freqente complicao nesses momentos deixarressurgir nossos antigos condicionamentos e acrescentar uma ameaa. Assim

    enfraqueceramos a exigncia ao deixar subentendido que ela no basta por sis. Se estamos dando uma ordem, que ao menos ela possua o mrito de serclara.

    Quinto, qual ser o acompanhamento que vir em seguida?

    A partir da minha experincia, a exigncia no to problemtica. Somais as nossas dificuldades de acompanh-la que podem estimular reaes e

    defesas parto do pressuposto de que no estamos nos confrontando comuma filha que est acostumada a se submeter ou a se revoltar diante de ordens,mas sim a um modo de relao baseado num respeito mtuo. Se estivermosdispostos, podemos tentar nem que seja um pouco permanecer escuta dareao do outro:

    "Voc pode apenas me dizer como encara isso?"

    Nessas horas, quase nunca temos vontade