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três BAIÕES | 1 três Itapetim: TERRA DE POETAS TERRA DE POETAS Geni de Fonte, Adalberto de Vital e Zezito Domingo: toda a poesia de três sertanejos Fevereiro de 2015 | Ano 1 | n° 1 PELOS BOQUEIRÕES como o repente desceu a Serra do Teixeira e chegou ao Pajeú

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três

Itapetim:TERRA DE POETASTERRA DE POETAS

Geni de Fonte, Adalberto de Vital e

Zezito Domingo: toda a poesia de três sertanejos

Fevereiro de 2015 | Ano 1 | n° 1

PELOS BOQUEIRÕEScomo o repente desceu

a Serra do Teixeira e chegou ao Pajeú

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SUMÁRIO

A terra pág 6

A arte pág 9

Cidade das pedras soltas pág 6

Manancial de poesia pág 6

Bê-a-bá da poesia por Zé Adalberto pág 13

Sob o Sol de Caetana pág 18

Inácio da Catingueira: um escravo repentista pág 11

Carta da editora pág 4

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O homem pág 23

23 Geni de Fonte

Adalberto de Vital

Zezito Domingo

Agradecimentos pág 39

Livros e contatos pág 38

28

28

três BAIÕES

Editora, idealizadora e diagramadora

Érica Rodrigues

OrientadoresProf. Dr. Severino Alves

de Lucena Filho

Prof. Dra. Suelly Maria Maux Dias

Colaboradores

Adalberto de VitalAlbertino BezerraAlgedi RodriguesAntônio Lucena

Bernardo FerreiraGeni de Fonte

Maria das Graças FerreiraZé Adalberto

Zezito Domingo

Universidade Federalda Paraíba

ReitoraProf. Dra. Margareth de Fátima Formiga Melo

Diniz

Centro de Comunicação, Turismo e Artes

DiretorProf. Dr. José David Campos Fernandes

Coordenadora do curso de Jornalismo

Prof. Dra. Zulmira Silva Nóbrega

Chefe de departamentoProf. Dr. Dinarte Varela

Bezerra

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O poeta tem algo de jornalista, o jornalista tem algo de poeta. Foi ouvindo versos recitados pelo meu avô nos fins de tarde da infância que eu percebi que queria contar histórias. Não como o poeta, que tem o dom de traduzir em versos o que sente e vê, mas escrevendo histórias de pessoas reais, como o próprio sertanejo. Esta revista trata da manifestação da poesia popular, em suas diversas vertentes,

no município pernambucano de Itapetim, uma pequena cidade a 414 km de Recife. Câmara Cascudo diz na introdução de seu “Vaqueiros e cantadores” que a cultura é a imortalidade de um povo. Através das tradições, o povo consegue se fazer único e vencer o tempo, levando de geração em geração aquilo que o acompanha, mesmo que não esteja mais em sua terra natal. A cul-tura sertaneja, em específico, com seus cantadores, bandas de pífano, vaqueiros e cordéis, encanta por sua capacidade de florescer em meio à aridez e infertilidade da terra. A poesia não escolhe lugar, classe social ou escolaridade. Nesta revista você encontra histórias de poetas que estudaram pouco ou nada, mas tornaram-se conhecidos em sua região pela qualidade de seus versos. Nela é possível ver traduzida em palavras uma vida de admiração da cultura e, espe-cialmente, da bravura do sertanejo. Seguindo o modelo euclidiano, reproduzimos a divisão dada ao livro “Os Sertões”, adaptando-a à realidade da história aqui contada. A revista está dividida em três partes: “A Terra”, onde você encontra um pouco da história e geografia do município de Itapetim, palco da nossa narrativa; “A Arte”, onde é possível conhecer como a poesia chegou à região do Pajeú e se manifesta em Itape-tim; E, por fim, “O Homem”, onde você conhece mais a fundo a história de três poetas, através de seus perfis. Zezito Domingo, Geni de Fonte e Adalberto de Vital são três itapetinenses que dedi-cam-se à poesia desde a infância e encantam pela história de vida e qualidade dos versos.

Érica Rodrigues

Carta da editora

Arielle Vasconcelos

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A terra

Cidade das pedras soltas

Eu sou da terra onde as almas são todas de cantadores. Assim escreveu Rogaciano Leite em seu poema “Aos Críticos”. Os versos do poeta condizem bem

com o município de Itapetim-PE, a 414 km de Recife, terra natal de centenas de poetas e repentistas. A cidade localiza-se no Sertão do Pajeú, microrregião de típica caatinga, cujo clima semiárido pode elevar as temperaturas até os 35º C durante o dia e fazê-las cair aos 20ºC durante a noite. Quem chega à peque-na cidade depara-se com uma clássica cena de interior: a praça em frente à igreja, com pre-feitura e alguns estabe-lecimentos comerciais

ao seu redor. Próximo à cidade existe um cruzeiro, que pode ser avistado de qualquer ponto da área urbana, localizado em um la-geiro alto, que abriga um pequeno santuá-rio de Nossa Senhora da Conceição.

Logo à entrada da ci-dade, cruzamos uma ponte sob a qual corre o rio Pajeú, que banha a região. Ele nasce no vizinho município de Brejinho-PE, mas pro-vém da Serra do Teixei-ra-PB, de onde correm boqueirões e riachos que formam as nas-centes do famoso rio, imortalizado por Luiz Gonzaga em sua músi-ca “Riacho do Navio”. O povoamento do lugar teve início em 1885, quando o senhor Amâncio Pereira deu início à construção das

“Senhores críticos, basta!Deixai-me passar sem pejoQue o trovador sertanejo

Vem seu “pinho” dedilhar...Eu sou da terra onde as almas

São todas de cantadores– Sou do Pajeú das FloresTenho razão de cantar!”

Rogaciano Leite

Itapetim, do tupi-guarani “pedras soltas”, é terra natal de grandes poetas e repentistas

Érica Rodrigues

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A terraA Igreja Matriz de São Pedro começou a ser construída em 1914 e é a mais alta da região do Pajeú

primeiras casas, sendo uma de al-venaria e duas de taipa, e incenti-vo para a realização de uma feira. O município a princípio chamou-se Umburanas, quando ainda era um povoado pertencente a São José do Egito-PE, em virtude da árvore nativa de mesmo nome que nascia às margens do rio Pajeú e sob a qual os tropeiros descansa-vam de suas jornadas e onde pos-teriormente seria realizada a feira do lugar. Em 1928, passaria a se chamar São Pedro das Lages, em homenagem ao santo padroeiro do lugar, e em 1938, já na categoria de vila, se chamaria Itapetininga. Devido à existência de uma cidade no interior de São Paulo também com o nome Itapetininga, a cidade denominou-se Itapetim em 31 de dezembro de 1943, desmem-brando-se de São José do Egito e su-bindo à categoria de município em 29 de dezembro de 1953. A cidade vive basicamente de agro-pecuária e comércio. Devido ao cli-

ma semiárido e os longos períodos de seca, as plantações e rebanhos muitas vezes são dizimados pela falta de água. É o que acontece re-centemente, devido à seca que já dura três anos e esvaziou os reser-vatórios que abastecem a região. A água agora chega aos itapetinenses através do projeto federal Operação Carro-pipa e de trabalhadores autô-nomos que abastecem as casas. Quem vai a Itapetim pode até pensar que a música “Feira de Mangaio”, de Sivuca e Glorinha Gadelha, foi

Érica Rodrigues

Bernardo Ferreira

A feira livre acontece todas as quintas-feiras e reúne uma diversidade de artigos à venda

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inspirada na cidade. Às quintas-fei-ras acontece uma característica fei-ra livre interiorana, onde é possível comprar desde legumes e frutas até animais, artigos de cozinha, aquela tradicional panela de barro ou até mesmo uma bicicleta ou moto, na clássica “Feira do Troca”. No mês de junho realiza-se anu-almente a tradicional Festa de São Pedro, que reúne artistas locais e nacionais em vários dias de progra-mação profana, além de eventos re-ligiosos que têm seu auge na missa de São Pedro, dia 28. A Associação Cultural dos Artistas de Itapetim (Assoc’Arti) também promove vários eventos culturais, como mesas de glosa e exposições de artistas locais. Dentre os projetos desenvolvidos pela associação está o Itapetim Diverso, que é realizado mensalmente e homena-geia, em cada edição, um artista itape-tinense vivo.

“A gente traz artistas daqui da ter-ra e da região. Já veio gente de Ser-ra Talhada, João Pessoa, Campina Grande, até mesmo de Brasília, de Patos. E não são só poetas que são homenageados, tem música, decla-mações, exposições de artesanato, o que for de arte”, explica Antônio Lucena, um dos organizadores do evento e fundador da Assoc’Arti.

A terra

Fotos: Bernardo Ferreira

Poeta Dedé da Serra reci-tando no primeiro Itape-tim Diverso, em sua ho-menagem (acima); João Cupira apresentando-se no palco do evento, que acontece na praça Simão Leite

“Sou do Pajeú das FloresRama do mesmo jardim

Cidade de ItapetimDos três irmãos cantadores Lá eu cantei meus amores

Nas noites de São JoãoNo tempo que no Sertão

Quem mandava era a pistola Meio século de viola

Não é brincadeira não.”Otacílio Batista

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A arte

Em Itapetim, “po-eta” é cumpri-mento. Não é difícil encontrar alguém na rua

que te cumprimente com “bom dia, poeta!” ou “tudo certo, po-eta?”, pois ali parece mesmo que todos fazem versos. A po-esia é algo tão comum ao povo itapetinense que encontramos várias famílias compostas, em sua grande maioria, por poe-tas. É o caso da família Batista, que nos trouxe os famosos “três irmãos cantadores”: Dimas, Lourival e Otacílio Batista. Outro exemplo é a família Rodrigues dos Santos, fruto do casamento entre o casal de poetas Pedro Louro e Ana Caetano, que deu origem a nove fi lhos, todos poetas e poetisas. Dentre esses está Heleno Rodrigues dos Santos, pai do cantor e compositor Maciel Melo. A poesia popular é herdeira do tro-vadorismo galego-português medie-val, primeiro movimento literário da língua portuguesa de que se tem no-tícia. Os trovadores galego-portugue-ses surgiram na época que Portugal se estabelecia como um Estado-Nação, por volta de 1297, e se caracterizavam por comporem cantigas (poemas com uma melodia), que podiam ser satíri-cas ou líricas. Era comum aos trova-dores se apresentarem em feiras, festas e nos castelos medievais, geralmente acompanhados de uma viola de arco, ou arrabil, que daria origem à rabeca, instrumento clássico da cultura nor-destina.

Essa manifestação cultural chegou aos sertões brasilei-ros através das famílias de cristãos-novos que vieram ao Brasil junto com os co-lonizadores. A família de cristãos-novos “Nunes da Costa” erradicou-se no Nor-deste e, misturada a outras famílias, originou muitos poetas e cantadores. O pri-meiro repentista de que se tem notícia seria justamente Agostinho Nunes da Costa Filho, neto de João Nunes da Costa, cristão-novo vindo da Península Ibérica por volta dos primeiros anos do século XVIII e erradicado na Capitania de Pernam-buco. Em razão de perseguições do Tribunal do Santo Ofício, João Nunes da Costa fugiu para a Paraíba, fi xando-se primeiro em Santa Luzia do Sabugi – PB, onde casou-se com Teresa Maria de Jesus, e depois nas redondezas de

Manancial de poesiaJunto ao rio Pajeú, que corta o sertão e provém da

Serra do Teixeira, corre também a origem poética dos itapetinenses

Renata Duarte

Maciel Melo destacou-se nacionalmente com composições como “Ca-boclo Sonhador” e “Que nem Vem-vem”, grava-das pelos artistas Rai-mundo Fagner, Flávio José e Elba Ramalho

Aponte um leitor de QR Code para a imagem e veja Maciel cantando

“De Itapetim para São Paulo”, música que fez em homenagem

ao seu pai

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Denomina-se cris-tãos-novos os judeus e mouros que foram con-vertidos à força ao cris-tianismo na Península Ibérica, após ultimato da coroa portuguesa no qual aquela gente preci-sava aderir à fé católica ou ser banida para ter-ras estranhas. Mesmo após a adesão em massa ao cristianismo, o povo português apelidou os novos adeptos de cris-tãos-novos, sefardins ou marranos.

A Kahal Zur Israel, ou Congregação Rochedo de Israel, foi a primeira sinagoga das Américas. Após a ex-pulsão holandesa, alguns dos seus membros fugiram para Nova Ams-terdã, hoje a cidade Nova Iorque, e fundaram a primeira comunidade judaica local.

Érica Rodrigues

A arte

Patos – PB. Segundo o a d v o g a d o , professor e p e s qu i s a d or Saulo Passos, coautor do li-vro “Itapetim: ventre imor-tal da poesia”, João Nunes da Costa foi um dos fundado-res da sinagoga do Recife, após a invasão holandesa a

Pernambuco, em 1630. “O nome de judeu dele é Samuel, o Velho. Quando houve a expulsão e os portugueses voltaram para Per-nambuco, acabaram com a sinago-ga e os judeus fugiram, e ele fugiu pra Teixeira-PB”, conta. Os Nunes da Costa ainda trariam à poesia popular dois trios de irmãos poetas, sendo o primeiro Nicode-mos, Nican-dro e Ugo-lino, fi lhos do primeiro cantador. Dos três irmãos,

apenas Nicodemos não se dedicou ao repente, escrevendo somente poesias eruditas. O segundo trio de poetas, conhecido como “os três irmãos cantadores”, bastante prestigiados no mundo da poesia, seriam Otacílio, Lourival e Dimas Batista, trinetos de Agostinho Nu-nes da Costa Filho e naturais do po-voado das Umburanas, atual cidade de Itapetim. “Em 1858, s e g u n d o O r l a n d o Tejo, houve a primeira cantoria em Teixeira-PB, num dia de São João. Eles estavam glosando versos, apa-receu um violão e eles começaram a tocar e fi zeram aquele ensaio. De-pois fi zeram de novo e usaram uma bandeja de prata, aquela bandeja de balança, que se inseriu na cantoria”, conta o professor, afi rmando que

A poesia de repente começou em Teixeira-PB e fi rmou-se em Itapetim, com nomes como Otacílio, Lourival e Dimas Batista

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um dos cantadores seria Silvino Pi-rauá. Provavelmente a proximidade entre as terras da Paraíba e os ser-tões pernambucanos, além da abertura das primeiras estradas que davam aces-so às regiões litorâneas, na primeira metade do século XVIII, trouxeram a poesia ao “Vale do Pajeú”. A Serra do Teixeira, mãe do rio Pa-jeú, deu a Itapetim não só as águas que fazem nascer o seu principal rio, mas a vo-cação poética que parece es-correr junto aos boqueirões.

A cantoria fi rmou-se de fato na cultura nordestina após a histórica peleja entre Inácio da Catingueira e Romano da Mãe D’água, no Mercado de Patos-PB, em 1870. Inácio era um escravo do senhor Manoel Luiz e fa-zia versos de improviso tocando em um pandeiro. “Ele foi convidado por Romano da Mãe D’água, que era um cantador letrado, que já tinha lido as escrituras sagradas, as histórias de Carlos Magno, pra cantar com ele no mercado de Patos, e Inácio disse que ia falar com o dono dele, Manoel Luiz”, conta Saulo Passos. Segundo o professor, Manoel Luiz aconselhou Inácio a não aceitar o convite, pois ele era analfabeto e o outro cantador alfabetizado, e pode-

ria acabar passando vergonha. E foi a esposa do senhor de escravos quem deu força para que a cantoria aconte-cesse. “A mulher dele estava na cozi-nha escutando e disse ‘Inácio, ele não confi a em você não, mas eu confi o, e você vai’. E foi por isso, pela palavra de uma mulher, que hoje nós temos a cantoria. Por que se não tivesse acon-tecido isso, não teria existido a gran-de cantoria de Patos, que deu rumo a tudo isso aí”, explica Saulo. A lendária cantoria durou oito dias e foi vencida por Inácio da Catingueira. Hoje, na cidade de Ca-tingueira-PB, existe na praça uma estátua de Inácio, segurando o pan-deiro que lhe fez um nome essencial para a história do repente.

Estátua de Inácio segurando o pandeiro que o imortalizou na história da cantoria de repente

Inácio da Catingueira: um escravo repentista

Internet/Blog Catingueira Online

A arte

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Bê-a-bá da poesia

por Zé Adalberto

O poeta itapetinense Zé Adalberto explica as regras que regem a poesia popular, sua mética e seus gêneros. Zé Adalberto nasceu no sítio Juá, município de Itapetim, e começou a interessar-se por poesia aos 16 anos. Seu primeiro livro de poemas foi lançado em 2005, intulado “No Caroço do Juá”. Gravou em 2013 o CD “Retrato 3 por 3”, com declamações, em parceria com os poetas Alexandre Morais e Genildo Santana. Ainda lançou o livro infantil “Real ou Imaginário: Circo é Diversão” e a compilação de poemas “Cenário de Roedeira”.

A arte

Internet

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A arte

Decassílabo

Sílabas poéticas

“ O decassílabo é o mais difícil, tanto de cantar como de escrever. Ele tem uma sílaba forte na terceira, sexta e décima de cada verso. O decassílabo tem dez versos e dez sílabas poéticas por verso. Essa semana Adalberto de Vital me man-dou um mote de roedeira, que gosto muito, que é assim: ‘Coloquei meu currículo no seu peito/mas só tinha uma vaga e eu perdi’, e eu disse:

Só conta até a sílaba tônica da última palavra

Dez sílabas poéticas

Sílabas fortes na terceira, sexta e décima

Dez versos(ou linhas)

Fiz a minha inscrição no olhar delaMas nem sei se ela soube quando eu fi z

Com a única intenção de ser felizPra poder viver de um tudo com elaPreparei um encontro a luz de vela

Mas a vela sequer eu acendiE no silêncio da dor me recolhi

Sem querer aceitar, mas foi o jeitoColoquei meu currículo no seu peitoMas só tinha uma vaga e eu perdi.

Zé Adalberto

Na poesia, quando uma palavra termina com uma letra e a seguinte começa com a mesma letra, só conta uma sílaba. Além disso, só conta até a sílaba tônica da última palavra, o resto é só a sequência do som e da palavra. Eu digo:“

Só conta uma sílaba

Sete sílabas poéticas

Esta tarde está bonita

Esta tarde parece muito quente

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“Quatro versos

(ou linhas)Rimam entre si

O sabiá na ternuraDo dom que é somente seu

Canta pela partituraQue a mão de Deus escreveu.

Doutor Pedro Nunes de Barros, lá do Rio Grande no Norte, fez um po-ema falando sobre o sabiá, que é uma quadra e, ao mesmo tempo, é uma trova. Ele disse:

Rimam entre si

A cada taça de orvalhoQue a boca da rosa tomaNão dá tontura no galhoMas dá ressaca de aroma.

Zé Adalberto

Quatro versos(ou linhas)

A arte

A quadra é um poema composto de quatro versos. O poeta pode rimar a última palavra do segundo verso com o quarto, ou o primeiro com o tercei-ro. Ela também é conhecida como trova, mas o que diferencia as duas é que eu posso fazer dez quadras falando de inverno, por exemplo, e a quadra que melhor resumir o assunto que eu estou abordando é a trova. Quando eu falo trova, é porque ela sintetiza tudo, a quadra é um complemento, eu posso fazer um poema só de quadras.Geralmente a gente aborda uma palavra, e na trova é rimada a última palavra do primeiro verso com o terceiro, e o segundo com o quarto, obrigatoriamen-te. Por exemplo, a palavra é orvalho:

Quadra e Trova

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Sete versos(ou linhas)

Saudade tem de dois jeitosUma nasce e a outra não

Uma se cria na terraA outra no coração

A da terra não maltrataA outra maltrata e mata

Conforme a lei da paixão.

“ Na sequência vem a sete linhas, que é um gênero da poesia popular muito abordado pra falar em saudosismo, casa velha, coisas da infância, algo do tipo, bem saudoso. Tem até um verso de Leonardo Bastião que diz:

Sete linhas ou Septilha

A arte

Depois de ler e relerDe mim a Pablo NerudaVi que rimar é mais fácil

Do que plantar uma mudaDifícil é botar miolo

Quando a casca não ajuda.

Zé Adalberto

Seis versos(ou linhas)

Sextilha A poesia popular, principalmente a poesia cantada, é composta de vá-rios gêneros e tem como coração da cantoria as sextilhas. Obrigatoriamente, quando o poeta vai se apresentar, geralmente uma dupla, começa cantando sextilhas, que é aquela estrofe feita de seis versos. A gente tem o hábito de dizer “o verso” referindo-se a uma estrofe, mas o verso é cada linha do poe-ma. Geralmente o poeta tem que cantar pelo menos três baiões, ou seja, três etapas de sextilhas, e a partir daí ele pede sugestões à plateia, que vai sugerir temas, motes, outros gêneros. Mas a cantoria é feita basicamente de sextilhas.

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A arte

Mote

Rojão Pernambucano

O mote entra na estrofe de dez linhas, a décima, que tem sete sílabas poéticas. Ele é como se fosse o mar, feito de dois versos muito consistentes, e esses dois versos vão receber mais oito versos em cima deles. Por exemplo, eu estava numa mesa de glosa e uma pessoa me deu o mote: “Rasguei as leis da razão/Me apaixonei novamen-te”. Esse mote é como se fosse o título de uma redação, em cima disso você faz a sua poesia e conclui com esses dois versos. Você pode criar muitas estrofes com o mesmo mote. Aí eu disse:

Aí tem vários gêneros de poesia... Tem o Quadrão Perguntado, o Dez a Qua-drão, o Galope a Beira Mar, tem um gênero chamado Gabinete, tem o Desafi o, que é aquele “comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar”, que você desafi a o outro. O cantador profi ssional tem que estar preparado pra todos os gêneros. A poesia tem um campo bem vasto pra você escrever e o que abre esse espaço são justamente os temas. Os cantadores vão criando novos gêneros pra inovar a cantoria. Um exemplo também é o rojão pernambucano, que termina com “quando eu ia ela voltava e quan-do eu voltava ela ia”. Você faz um trocadilho de acordo com esse fi nal que eu falei. É como se fosse um mote... Eles usam até duplo sentido, nesse rojão pernambucano. Severino Feitosa disse:

Dez versos(ou linhas)

Mote

Depois de tanto encararUm amor mal resolvidoEu tinha me prometido

Nunca mais me apaixonarMas foi só ela voltar

A pisar no meu batentePra eu fi car dependenteDa droga dessa ilusão

Rasguei as leis da razãoMe apaixonei novamente.

Zé Adalberto

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A arte

Soneto O soneto já é uma poesia mais clássica, que pode ser popular, mas é uma po-esia mais rebuscada. Ele tem métricas diferenciadas, tem gente que usa até o Galope a Beira Mar, que são onze sílabas, também abordado por cantadores de viola. Mas basicamente tem duas partes de quatro versos e duas de três. Vou dizer um soneto que fi z com Isabela, minha fi lha... O título é Obra da Inspiração. Eu disse:

“No esboço das obras que arquitetoPlanejadas por mim na inspiraçãoSempre busco fazer a construção

Com a parte melhor do meu afeto

Mas você superou o meu projetoEm beleza, carisma e gratidão

Porque leva consigo um coraçãoQue abriga o amor desde o seu feto

Sua alma bondosa é como um temploOnde Deus manifesta o seu exemplo

Reunindo e fazendo maravilha

E quando alguém me pergunta: Quem é ela? Eu respondo, feliz, é Isabela

Isabela? Isabela, minha fi lha.

Dez versos(ou linhas)

Me casei com Conceição Na terra paraibana

Depois fui vender bananaE Conceição foi vender pãoMas deixa uma confusão Com nossa mercadoria Minha banana subia

Quando o pão dela baixava Quando eu ia ela voltavaQuando eu voltava ela ia.

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Sob o Sol deCaetana

A arte

Junto de Caetana, mitológica onça-moça com que Ariano Suassuna representava a morte em sua obra,

estão alguns dos grandes nomes da poesia itapetinense. Essa fera, por vezes mulher sedutora, por outras onça

ou ser alado, misto de onça, cobra e ave de rapina, tem junto de si nomes como Rogaciano Leite, Jó Patriota,

Lourival, Dimas e Otacílio Batista.

O mais ilustre dos poetas itapetinen-ses é certamente Rogaciano Bezerra Leite (01/07/1920-07/10/1969), que nasceu no sítio Ca-cimba Nova. Aos 15

anos de idade participou do seu primeiro de-safi o de cantadores, com o poeta Amaro Ber-nardino. Na juventude, Rogaciano morou em Patos-PB, onde conheceu Pinto do Monteiro, e no Rio Grande do Norte, onde fez amizade com o poeta pernambucano Manuel Bandei-ra. Aos 23 anos mudou-se para Caruaru-PE, onde iniciou sua carreira de jornalista, apre-sentando um programa radiofônico diário. Em 1944, fi xou carreira em Fortaleza-CE, onde passou grande parte de sua vida e atual-mente encontra-se sepultado.

Rogaciano foi uma fi gura muito importan-te para o meio da poesia popular, chegando a idealizar, ao lado do escritor Ariano Suas-suna, o 1º Congresso Regional de Cantado-res de Viola, realizado no Recife, em 1948, no Teatro Santa Isabel. “Eu vejo Rogacia-no como um divisor de águas para a poesia popular, porque ele levou os cantadores de viola para os salões aristocráticos, para onde eles não iam”, afi rma Saulo Passos. Segundo o professor, o teatrólogo recifense Valdemar de Oliveira colocou-se contra a realização do congresso, afi rmando que “um bando de pe-dintes” não poderia se apresentar num palco onde subiram Tobias Barreto e Castro Alves. “Se você pesquisar os jornais da época, muita gente do Recife foi assistir para fazer manga-ção, e quando chegaram lá se surpreenderam, porque nunca tinham visto o verso feito de repente “, conta. Também em 1948, o poeta escreveu de im-

Rogaciano Leite: o condor sertanejo

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A arte

proviso, no bar Maxime, na praia do Pina, Recife, a músi-ca “Cabelos cor de prata”, gra-vada por Sílvio Caldas. Saulo Passos ainda destaca dois episódios marcantes de Rogaciano como poeta de improviso: “no cente-nário de Castro Alves, Rogaciano improvisou no palco por duas horas, e quanto mais improvisava mais tinha. Parecia que alguém estava soprando no ouvido dele. E em 1968, ele pediu pra ajudar

na defesa de um júri em São José do Egito e fez a defesa toda em versos”. Em reconhecimento ao seu trabalho de jornalista, Rogaciano recebeu dois prêmios Esso de Repor-

tagem, em 1965 e 1966. Em 1968 passou uma temporada na Europa, deixan-do registrado em monumento na Praça de Mos-cou um de seus poemas intitu-

lado “Os Trabalhadores”, que foi traduzido para vinte e seis idiomas. Publicou alguns cordéis, mas sua maior obra foi o livro Carne e Alma, publi-cado pela editora Pongetti, no Rio de Janeiro, em 1950, com prefácio de Luis da Câmara Cascudo. O poeta faleceu de um enfarte, em Fortaleza-CE.

Ariano foi um dos maiores defensores da cultura nordestina e é autor da peça teatral “Auto da Compadecida” e dos romances “História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça Caetana” e “O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”.

Oh! Como o Sertão é lindoNuma noite enluarada

Quando o violeiro cantaAssentado na calçada!...Na voz do bardo matuto

Há tanta brasilidade,Que eu penso que’ alma da terra

Encarnou-se na Saudade,Para cantar na garganta

Desse caboclo virilCuja face embraseadaParece que foi pintada

Com tinta de Pau-Brasil!”

Rogaciano Leite

Bernardo Ferreira

Internet

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Irmãos Batista: um trio em versos

A arte

Virgulino Ferreira, o LampiãoBandoleiro das selvas nordestinasSem temer a perigo nem ruínasFoi o rei do cangaço no sertãoMas um dia sentiu no coraçãoO feitiço atrativo do amorA mulata da terra do condorDominava uma fera perigosaMulher nova, bonita e carinhosaFaz o homem gemer sem sentir dor.

Otacílio Batista

No povoado das Um-buranas, às margens do rio Pajeú, nasceu o famoso trio de ir-mãos poetas Louri-val, Otacílio e Dimas Batista. Filhos de Raimundo Joaquim

Patriota e Severina Batista Patriota, perten-cente à tradicional família Nunes da Costa, os irmãos Batista tornaram-se, cada um ao seu es-tilo, extremamente importantes para a poesia popular. Lourival, o mais velho dos irmãos (06/01/1915-05/12/1992), era cantador de profi ssão e dedi-cou-se a isto até a morte. Durante a carreira publicou apenas folhetos, mas o que o tornou famoso foram os versos com trocadilhos, um estilo próprio que lhe traria o título de ‘Rei dos Trocadilhos’. Já Dimas, nascido em 21 de julho de 1921, o irmão do meio do trio, é considerado o mais erudito dos três, e fez profi ssão de canta-dor por 15 anos, chegando a vencer vários con-

gressos de can-tadores. T a m -

bém não publicou nenhum livro, apenas folhe-tos de cordel. Dimas faleceu em Fortaleza-CE, em 1985. Otacílio Batista, nascido em 26 de setembro de 1923, começou sua carreira de cantador em 1940, quando os irmãos já eram famosos, e logo no início já foi convidado por Ariano Su-assuna para cantar no Teatro Santa Isabel, em Recife. A partir daí, ganhou diversos congres-sos de cantadores e foi convidado a se apresen-tar para seis presidentes da república: Eurico Dutra,Juscelino Kubitschek, João Goulart, Jâ-nio Quadros, Figueiredo e José Sarney. Cantou também para o papa João Paulo II, quando este veio a Fortaleza-CE, em 1983. Otacílio é autor do poema “Mulher nova, bonita e carinhosa”, que fi cou conhecido na voz de Amelinha, em 1982, na trilha sonora do seriado da Rede Glo-bo sobre a vida de Lampião. A canção seria re-grava por Zé Ramalho, tempo depois. “Eu me surpreendi porque o poeta mesmo, dos três, era Dimas. Lourival era repentista, Otací-lio era cantador. Eu nunca vi uma voz tão bo-nita pra cantador como a de Otacílio, uma voz limpa, melosa, ela não usava nem microfone. Acho que juntando os três dava um grande cantador”, brinca Saulo Passos.

Otacílio Batista

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A arte

Entre o gosto e o desgostoO quadro é bem diferente,Ser moço é ser sol nascente,Ser velho é ser um sol-posto,Pelas rugas do meu rostoO que eu fui hoje não sou,Ontem estive, hoje não estou,Que o sol ao nascer fulgura,Mas ao se pôr deixa escuraA parte que iluminou.

Lourival Batista

O cordeiro de Deus imaculadoFoi ao Monte Calvário conduzido

Tendo à esquerda um ladrão obstinadoE à direita um ladrão arrependido

Um persiste no mal, é condenadoOutro foge do mal, é redimido

Com um extremo da vida em cada ladoAgoniza o messias prometido

Na cruz do lado esquerdo, o mal negrejaNa do lado direito, o bem reluz

Na do centro o amor que fez a igreja

Todos nós conduzimos uma cruzPermiti, ó senhor, que a minha seja

A do lado direito de Jesus.Dimas Batista

Dimas Batista

Lourival Batista

Internet

Internet

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Jó Patriota (01/01/1929-11/10/1992) nasceu no sítio Ca-cimbas, em uma família humilde, e cursou apenas o primário. Tornou-se cantador de profi ssão ainda jo-vem, embora também exercesse a profi ssão de agricultor. Ganhou sua primeira viola de presente da irmã

Maura, que vendera uma cabra para poder presentear o irmão. Quando ia cantar, sem-pre acontecia de estar sem viola, pois devi-do à sua pobreza, era obrigado a vendê-las, e precisava pegar alguma viola emprestada

para a cantoria. Apesar das adversidades, Jó lançou um livro intitulado “Na Senda do Lirismo”, que compila algumas de suas po-esias, e graças à grande fama que o canta-dor adquiriu, o escritor Alberto da Cunha Melo lançou o livro “Um certo Jó Patriota”, sobre a vida do poeta. Jó Patriota morreu de cân-cer pulmonar, deixando um legado de centenas de poesias e um enorme prestígio no meio da poesia no Nordeste.

Jó Patriota: na senda do repente

A arte

Aponte um leitor de QR Code para a imagem e assista a um encontro

de Otacílio, Lourival e Jó recitando poesias

Jó Patriota

Sem nenhum fragmento de maldadeTinha Ele os sinais da inocência

Em seus olhos mostrava complacênciaNo Espírito trazia a santidade

Não temia o furor da tempestadeNão roçavam-lhe as asas do pavor

Confundia o sorriso com a dorPorque tudo pra Ele era divino

Na frieza da gruta o Deus MeninoTeve o bafo de um boi por cobertor.

Jó Patriota

“Internet

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Um forte, como diria Euclides da Cunha. Assim é o poeta Zezito Domingo, um típico serta-nejo de 63 anos, que vive da agricultura e luta contra a seca todos os dias, mas ainda assim encontra inspiração na natureza para escrever

belas poesias. José Domingo Ferreira nasceu, como ele mesmo diz, “de última hora” em 1951, na noite de ano novo, numa casa do sítio Boa Vista. A casa, na zona rural de Itapetim, é a mesma em que mora até hoje, sozinho. Não é difícil iniciar uma conversa com o poeta, que como todo sertanejo, é dado a um bate-papo de calçada, contando sua his-tória e recitando poesias que sabe de cor. Ele divide-se entre as casas de parentes e a casa paterna, onde tem por companhia apenas alguns gatos que brincam pelos quintais.

O homem

ZezitoDOMINGO

O poeta Zezito Domingo encanta pela sua simplicidade, traduzida nos versos em que

fala da natureza, do cotidiano e de sua história no sítio Boa Vista

A casa, segundo ele, é um “rancho” onde gosta de passar algumas horas de solidão nos fi ns de semana. “Mas eu vivo só, assim, não é porque vivo como um cão sem dono, é questão de gosto. Graças a Deus eu tenho uma amizade grande, a minha famí-lia sempre me aceita muito bem. Eles até reclamam: “você vai pra acolá fi car sozinho”, e eu digo que faz parte da vida. Eu gosto de fi car um tempinho sozinho aqui, algumas horas”, explica o poeta, sentado na sombra um jatobá que cresce aos fundos da casa.

Érica Rodrigues

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Ele conta que começou a se interessar por poesia e entendê-la melhor ainda na infância, aos 10 anos. “Eu também tenho o dom que a natureza dá pra gente. Ninguém é poeta por letra ou por sabedoria. É do berço. Sabendo ler ou não, a poesia é coisa natural. Então só é poeta quem nasceu poeta, não tem esse negócio de nascer pra ser depois, já nasce sendo”, explica. Zezito estudou apenas dois anos, tempo sufi ciente para se alfabetizar. “No meu tempo, um tempo atrasado e fraco, a gente não tinha condição de estudar muito, então estudava por aqui mesmo. Mas o pouco que eu aprendi, graças a Deus já me serve, né?”, conta, completando que na época precisava trabalhar para ajudar os pais. Junto com os irmãos, ele co-meçou a ajudar na roça aos sete anos de idade. Reclama que já foi retratado em publicações sobre a poesia no município como “um analfabeto redondo”, embora não acredite que isto tenha nenhuma infl uência em suas criações. Zezito é agricultor aposentado, mas ainda trabalha na roça, quando sobra tempo. Com a seca que assola a região, tem sido

difícil manter as plantações, pois fal-ta água para irrigá-las. Ele conta que nas horas vagas gosta muito de ver televisão, mas difi cilmente faz ver-sos inspirados nas programações. “Se fosse uma coisa que desse pra fa-zer na hora, mas depois que termina alí, foge à lembrança e eu esqueço de uma parte, aí fi ca difícil”, explica. O poeta gosta de escrever seus versos para depois decorá-los, pois assim fi ca mais fácil de memorizar. “Se eu tiver fazendo no improviso não tem como decorar, a menos que alguém decore ou grave, mas se for pra fazer pensando, eu faço e escrevo”.Ele afi rma que não seria um poeta melhor se tivesse estudado mais, pois a poesia é algo que vem natu-

O homem

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O homem

ralmente. “Através do estudo a gente arruma mais conhecimento. Através da leitura, quando a gente entende, aprende a dizer melhor. Agora sendo natural, a natureza mesmo ensina a gente a dizer, e a gente diz”. Zezito trabalhou na construção civil por muitos anos, fazendo serviços de carpinteiro e pedreiro em São Paulo, Rio de Janeiro, João Pessoa, Natal e Fortaleza, lugares onde passava par-te do ano. “Deu certo enquanto eu tinha aquela idade que podia fi car no trecho. Mas eu trabalhava mais na agricultura do que lá, eu fi cava lá e aqui”, conta. Aos 45 anos o poeta passou a se dedicar apenas à agricul-tura e não viajou mais a trabalho. O poeta já participou de cantorias com repentistas como Valdir Teles e Zé Gomes, em Patos-PB, mas não seguiu carreira. Atualmente ainda participa, vez por outra, de canto-rias de amigos da região e mesas julgadoras de congressos de canta-dores amadores. “Eu faço parte de cantoria de amigos, sempre vou, mas sou meio tímido nesse caso. Eu canto mais um pouquinho quando saio daqui, vou pra Imaculada-PB, Água Branca-PB. Tenho família lá e sempre faço parte”. Ele diz que acredita ser possível fi -nanceiramente viver da poesia, dependendo do dom e empenho da pessoa. “Dá pra viver de poesia quem começa no tempo mesmo. Quem tem de ser, é. Porque logo de pequeno já nasce sendo. E se a pes-soa for bem poeta mesmo, ainda que não cante, pode escrever”, esclarece. Em suas poesias, Zezito fala sobre a natureza, pois ela lhe dá inspira-ção e palavras para escrever o que sente. “Às vezes a gente não faz na hora, mas admira, fi ca com aquilo na lembrança e depois dali faz um trabalho”, complementa. “

Eu também tenho o dom que a natureza dá pra gente. Ninguém é poeta por letra ou por sabedoria. É do berço. Sabendo ler ou não, a poesia é coisa natural. Então só é poeta quem nasceu poeta, não tem esse negócio de nascer pra ser depois, já nasce sendo”

Casa do poeta Zezito Domingo no sítio Boa Vista

Érica Rodrigues

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Fotos: Érica Rodrigues

Quando voltou de São Paulo, ele trouxe consigo uma mu-lher que tinha uma fi lha de 6 anos. Pouco tempo depois, a mulher, que dizia ser cearense, foi embora e deixou a menina aos cuidados da mãe de Zezito. “E aconteceu que quando ela foi, largou aqui a menina com minha mãe e minhas irmãs e eu não tive como ir atrás, pois não tinha nenhum endereço. Eu acho que ela foi na intenção de fu-gir, porque ela deixou a garota com seis anos. Eu não sei como uma mãe faz uma coisa dessas...”, explica. A mulher nunca mais voltou e a menina acabou sendo registrada como fi lha dele, com o nome de Edicleide, e hoje tem 24 anos. “Eu ainda tenho contato com ela, ela vem aqui de vez

em quando com o marido”, conta.O pai de Zezito morreu em 1990 e a mãe em 1994, e restaram na casa ape-nas duas irmãs, além dele. Um pouco depois, as duas acabaram indo morar em outros lugares e ele fi cou sozinho. Da casa onde nasceu resta apenas a calçada, pois pouco depois da morte dos pais, construiu uma nova no lu-gar da original. Ele pede licença na entrevista para recitar um poema que escreveu sobre a casa paterna intitu-lado “A casa que nasci nela”. “Eu não tinha como largar a casa, não tinha outra pessoa que cuidasse e eu fi quei aí. Então fi z um trabalho terminando falando na casa”, conta sorrindo.

O homem

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O homem

P O

E S

I A

Zezito Domingo

A CASA QUE NASCI NELA

Por uma infelicidade Vou seguindo outro caminho

Por tá morando sozinhoE mamãe na eternidade

Mas quando eu for pra cidadeVou fazer uma capela No lugar da cova dela

E vou zelar depois de pronta E na roça, Deus tome conta

Da casa que nasci nela

Assim que papai morreuComecei perder meus planos

E após de quatro anosMamãe também faleceu Quanta tristeza me deu Ficar sem ele e sem ela Uma falta dele e dela Sozinho no abandono

Igualmente ao cão sem donoNa casa que nasci nela

Pela manhã matutinaMesmo sem ser por desprezo

Mamãe me deixava presoNum chiqueiro de faxina Outra criança traquina

Bulia na taramela Até abrir a cancela

E eu saía bem ligeiroPra nós brincar no terreiro

Da casa que nasci nela

Morte ingrata traiçoeira De um instinto negativo

Me contras por qual motivoLevaste a minha caseiraMinha santa padroeira Minha linda Cinderela

Que hoje lá no túmulo dela Num sono eterno ressona

Mamãe, a rainha e donaDa casa que nasci nela

Em situação grosseiraSe encontra a minha casinha

Chega um bando de andorinha E invade a sua biqueira

Chega a coruja agoureira Com aquela cantiga dela E se eu não tanger ela

Ela canta a noite inteira Em cima da cumeeira Da casa que nasci nela

Um tempo eu saí daquiPassei mais de um ano ausente

Na casa de um parenteEm Picos do Piauí

Quando retornei lhe viEm situação singela

Em toda madeira dela Tinha cupim destruindo

E a jetirana cobrindo A casa que nasci nela.”

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“Ser poeta é ver, sentir e dizer”, explica Adalber-to Arcanjo de Sousa, itapetinense nascido no sítio Bonita, em 4 de

novembro de 1955, que faz poesia desde os oito anos de idade. Poucos minutos com o poeta são sufi cientes para deixar claro o seu amor pelos versos, que vai além de todas as adversidades. “O meu pai era poeta e gosta-va muito de poesia, e vendo ele fazer versos gostei também, comecei fazer e fui apren-dendo”, conta. O poeta vem de uma família de sete irmãos homens, todos poetas, fi lhos do repentista Vital de Sousa Leite.O pai de Adalberto morreu em 1963, aos 45 anos, deixando-o ainda menino, para traba-lhar na roça junto dos irmãos. “Na época que meu pai morreu ninguém soube por-que, mas existe a suspeita que foi doença de chagas. Naquela época o povo morria muito disso, eu tinha oito anos”, relembra.Aos 15 anos, o poeta começou a participar

de cantorias, chegando a can-tar com profi ssionais como Manoel Francisco e Zé Catota. “Uma vez Manoel Francisco veio cantar aqui em um bar, e o cantador que vinha cantar com ele não apareceu. Então disseram ‘Adal-berto canta!’, e Manoel pra não perder a viagem perguntou se eu cantava mesmo e se tinha viola. Como respondi que sim, ele disse: ‘pois vá buscar sua viola pra a gente tirar essa canto-ria aqui de todo jeito, que eu não posso é perder minha viagem... Eu venho de Patos’. Eu fui bus-car a minha viola e sei que cantei com ele”, relembra, acrescentando que ao fi m da cantoria, re-cebeu “uns trocados” do cantador como pagamento pela peleja.

Adalberto usa as adversidades do dia a dia como combustível para a sua criação poética, fazendo versos sobre "natureza,

amor e essas coisas"

Adalberto DE VITAL

O homem

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O homem

Érica Rodrigues

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O homem

“ Ainda cheguei

a cantar nos festivais, mas

sem a viola é ruim. Porque a viola é a arma do cantador,

com ela você se inspira mais.

Mas mesmo depois que adoeci eu

ainda cantei muito tempo, mas acabei

deixando, agora faço mais escrever”

Em 1978, Adalberto passou por um pro-blema de saúde que o deixou tetraplégi-co, um ano após seu casamento com Ma-rinalva, sua companheira. Na época ele trabalhava no sítio, quando sentiu uma tontura que o impossibilita-va de se levantar. Foi ao médico e este o aconselhou que fosse procurar trata-mento em Recife, pois poderia ser um problema grave. Lá, o poeta passou por uma cirurgia e quando acordou não con-seguia se mexer. Segundo a própria equi-pe médica, foi um erro médico que lhe tirou os movimentos do corpo. “Outro médico que fez parte da equipe me dis-se, depois que insisti muito. Ele disse ‘eu vou logo dizer, o senhor teve uma lesão na sua cirurgia e infelizmente aconteceu isso’, e pronto”, conta Adalberto. Na época, há 36 anos, a fi sioterapia não era tão desenvolvida, o que levou o poeta a não ter grandes avanços na recupera-ção de seus movimentos desde então. Ele explica que depois da defi ciência, houve mais tempo e inspiração para dedicar à poesia. Mesmo sem conseguir segurar a viola, ele ainda chegou a fazer cantorias por um tempo, desde que outra pessoa tocas-se enquanto ele fazia os versos. “Ainda cheguei a cantar nos festivais, mas sem a viola é ruim. Porque a viola é a arma do cantador, com ela você se inspira mais. Mas mesmo depois que adoeci eu ainda cantei muito tempo, mas acabei deixan-do, agora faço mais escrever”, conta. Em seus versos, Adalberto gosta de es-crever sobre tudo, “natureza, amor, essas coisas”, esclarece sorrindo. Ele decora os versos já quando os compõe, e pede à sua esposa que os transcreva, para guardar como registro. O poeta estudou a até a quarta série primária, na cidade de Ita-petim, e acredita que se na época tives-se havido oportunidade de passar mais tempo na escola, sentiria mais seguran-ça na hora de escrever. “Mais poeta do que eu sou, talvez eu não fosse, mas teria mais facilidade, né?”, questiona.

Adalberto de Vital e sua esposa, Marinalva,

assistindo a uma apresentação do Itapetim Diverso

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O homem

Ele explica que por vezes tem medo de falar alguma coisa errada e prefere não dizer nada, deixando de escrever versos bonitos. Adalberto aprendeu a fazer versos de im-proviso vendo o pai e os irmãos escreve-rem, mas acredita que a poesia vem do berço, é um dom. “Mas você aprende com o tempo... Aprender a fazer, você apren-de, mas ser poeta você tem que nascer”. Ele já ajudou a promover vários congres-sos de cantadores amadores em Itapetim, chegando a cantar em pelo menos vinte. No entanto, mudou-se para João Pessoa e acabou se afastando da organização. Agora, o poeta divide-se entre a capi-tal paraibana e Itapetim, mas prefere o tempo que passa na cidade natal, próxi-

mo da família e dos muitos amigos. Ele explica que em João Pessoa é mais difí-cil sair de casa, por causa da violência e das complicações de uma cidade maior. Nos períodos em que está em Itapetim, o poeta sempre comparece a congressos como declamador, ou participa de mesas julgadoras. Adalberto acorda cedo, gosta de ver tele-visão e, sobretudo, de conversar. Poucos minutos em sua companhia são sufi cien-tes para se encantar com a simpatia e for-ça com que encara os obstáculos do dia a dia. Em seu auxílio, há sempre Marinalva, sua esposa, que lhe devota todos os cuida-dos nesses longos anos e faz valer a máxi-ma de que certamente existe uma grande mulher por trás de todo grande homem.

Bernardo Ferreira

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O homem

P O E S I A

Tudo por amorAdalberto de Vital

dedicado a Marinalva

Ela tem na alma a essência da fl orMesmo sem seu ventre fecundar semente

Quando me irrito ela é pacienteCasou-se comigo e vive por amor

Juntos dividimos alegria e dorA madrugada fria, o travesseiro quente

Não me subestima, não me trai nem menteNega meus defeitos, mostra o meu valor

Eu jamais pensei ela ser tão santaPra não me ver triste, brinca, ri e cantaNão pode ser mãe e vive conformada

Por Deus há de um dia ser retribuídaRenunciou tudo pela minha vida

Sem ela eu seria nada vezes nada.”

Vou morrer sem ter direitoDe um dia me vingar

Do médico que me aleijouLhe botando em meu lugar

Pra ele ver como é ruimViver sem poder andar.”

“Verso improvisado sobre o erro

médico que o deixou tetraplégico

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O poeta José Genival Rangel, conhecido como Geni de Fonte, apesar da timidez, parece ter sempre um sorriso pronto

para quem tenta puxar assunto com ele. Nascido em 26 de fevereiro de 1957, no

O homem

sítio Goiana, ele começou a se interessar por poesia aos 13 anos de idade, quando ainda morava no sítio. “Eu achava bom e fi z os primeiros poemas, mas era meio desmantelado, porque eu não entendia da métrica”, explica. Talvez a vocação de família, seguindo os passos dos tios poetas Júlio de Fonte e Raimundo Bastião; ou os muitos banhos no leito do rio Pajeú, nas margens do qual nasceram tantos ilustres poetas, incrustaram em Geni o dom de escrever versos.

GeniDE FONTE

O agricultor Geni de Fonte relembra a infância, a vida e as poesias escreve e

declama, apesar da timidez

Érica Rodrigues

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O homem

O pai do poeta morreu de um infarto quando ele tinha apenas um ano e oito meses, não lhe restando nenhuma lembrança paterna. Da infância ele recorda as brincadeiras improvisadas nas horas vagas em que não ajudava nos trabalhos do sítio onde moravam. “Desde menino que naquela época a gente já trabalhava tratando dos bichos, e os brinquedos eram diferentes dos de hoje. Eu vejo meu neto com um brinquedo, brinca uma hora e já joga pra lá. No meu tempo era um brinquedo improvisado, um sabugo amarrado num cordão, a gente não sabia nem o que era... Talo de jerimum a gente dizia que eram os porcos, porque tinha aquele jeito do focinho. E eu gostava de jogar bola, depois das 16h eu vinha lá pro campo de Domício, que hoje não existe mais, jogava ruim... De tudo no mundo eu fui ruim na vida”, brinca.O poeta estudou até a quinta série primária, mas na época era muito difícil manter-se na escola. “Nesse tempo tinha uma grande rejeição à pessoa do sítio, era muito discriminado, tinha aquelas piadas, aquelas críticas”, explica. Ele não acredita que os poucos anos de estudo infl uenciem a qualidade de seus versos. “Talvez, se eu tivesse estudado mais, fosse [um poeta] ruim do mesmo jeito que sou”, brinca. “Devido ao estudo, você aprende a rimar, mas é uma poesia que parece que está contando uma história, sem origem, sem aquela doçura do repente...”, complementa. Geni não faz versos de improviso, nem participa de cantorias como cantador. Quando é convidado, faz participações como declamador, e dos melhores. “Eu declamo os meus poemas, porque se eu não disser as minhas coisas, quem danado que vai dizer?”, questiona, com seu bom humor de sempre. Ele explica que o nervosismo não o permite tentar improvisar na frente de uma plateia. “Antes eu ainda cantei ‘uns baião’, mas o nervosismo pegava. Cantei com Zé Carlos Barbeiro e Zé Adalberto,

Érica Rodrigues

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O homem

mas não saía nada de futuro não”, conta. Nas primeiras vezes em que se apresentou como declamador, o nervosismo não lhe deixava olhar para a plateia. Agora já consegue comparecer mais vezes em pequenos congressos e declamar com um pouco mais de segurança. “Mas pra ir declamar eu tenho que “tomar uma” ainda, porque senão o sangue não espalha, né?”, conta. A mãe de Geni morreu em 1994, e o poeta se emociona ao recordar os momentos em que cuidou dela antes do fi m. “Fazia quatro anos que ela tava numa cadeira de rodas. Tinha levado uma queda e como a minha luta sempre foi lá no sítio, eu todo dia estava lá. Tirava ela da cadeira, botava na cama, tirava da cama e botava na cadeira... Até hoje eu queria que tivesse do mesmo jeito essa luta. Eu pensei que ia enlouquecer quando ela morreu, não foi um choque porque a gente vinha esperando, porque ela tava doente, mas de qualquer maneira, quando diz assim “fi ndou, morreu”, aí o desespero bate”, relembra.Em 2010, o poeta lançou o livro “Na ‘fonte’ da poesia”, publicado pela Fundação Antônio dos Santos Abranches (Fasa), que reúne alguns de seus versos em motes, sonetos e poemas matutos. Sobre o processo de criação para o livro, ele explica que às vezes fazia um verso e fi cava com ele na mente, para depois ser digitado. “Depois de escrever eu sempre procurava meu sobrinho, Evanaldo, aí já ia pro computador. Por que a pessoa já digitava e alguma dúvida que tivesse nos erros de português, já tirava. Esse livro uma parte foi com ele outra com Júnior de Fonte, e o poeta Zé Adalberto passou a limpo e revisou”, explica. Ele conta que a maior difi culdade para a publicação do livro foi fi nanceira, pois não houve patrocínio e o poeta precisou recorrer a um empréstimo, que seria pago com a venda dos exemplares.

“Eu faço poesia porque na hora que vem aquela inspiração a gente tem que fazer mesmo, que seja bom ou que se seja ruim, mas tem que fazer. Eu nem sei dizer o que a poesia é pra mim... Ela é boa, é aquele sentimento que a gente sente nem toda hora, mas que quando aparece, dá inspiração pra fazer um verso ou dois”

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O homem

“O mercado pra poesia é meio fraco, porque eu escrevi esse livro com 500 exemplares e ainda tem 70 em casa, e fez quatro anos no mês de junho. No começo até que vendeu, mas depois passa, não é mais novidade, e fi ca pingando um aqui, um acolá, de quando em quando”, esclarece. Para ele, o mercado para poetas amadores não é satisfatório, pois não existe uma forma efetiva para divulgação dos seus trabalhos. “Eu acho que é difícil conseguir patrocínio pra todo livro, principalmente num lugar como esse, que é uma cidade pequena e não tem muita chance para a cultura. Eles sempre fazem o Itapetim Diversos, fazem um congresso, uma coisa e outra pra ver se dá uma elevada na cultura, mas eu acho muito pouco”, refl ete. Ele vive da agricultura e acredita que se sua renda viesse apenas da poesia, não seria possível sobreviver. Geni dedica-se diariamente à criação de gado e ovelhas, no mesmo sítio onde nasceu. Antes o

poeta também plantava, mas a seca o fez abandonar essa ocupação. “Mas quando pegar um ano de inverno eu vou começar a plantar de novo. De qualquer maneira, fi ca muito difícil, porque tem que comprar ração e eu tô pagando um carroceiro pra botar água pros bichos. A gente vai tanto, que chega esse ponto que não tem mais volta. Mas o agricultor, quando fi nda um ano, já fi ca com medo do outro”, conta.Quando questionado do porquê continua a escrever poesias, mesmo sem o devido incentivo e reconhecimento fi nanceiro, ele responde que é através dela que desabafa. “Eu faço poesia porque na hora que vem aquela inspiração a gente tem que fazer mesmo, que seja bom ou que se seja ruim, mas tem que fazer. Eu nem sei dizer o que a poesia é pra mim... Ela é boa, é aquele sentimento que a gente sente nem toda hora, mas que quando aparece, dá inspiração pra fazer um verso ou dois”, defi ne, com seu sorriso acanhado.

Geni de Fonte declamando seus versos no Itapetim Diverso

Aponte um leitor de QR Code para a imagem e assista a Geni de Fonte

recitando o poema “Herança da minha vó” completoBernardo Ferreira

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O homem

P O

E S

I A

Quando minha vó morreuFui receber a herançaMas perdi a esperança

Quando vi o que era meuUma banda dum pneu

Um pedaço duma esteiraO fundo duma panela

O resto ‘véi’ dum pinicoE um pilão feito de angicoQue só tava a bagaceira

Tinha um ‘catatau’ de couroUma cabaça de golaUma sela, rabichola

Já furada de um bisouroEu achei um disaforoA herança da fi nada

Uma rede remendadaUm cachimbo ‘chei’ de sarro

E uma muringa de barroQue tinha a boca quebrada

Encontrei a escrituraDo terreno que era delaFoi medido com tabela

Quatro metros de larguraMas só tinha pedra pura

Naquela infelicidadeE eu disse: a propriedadeDa minha vó vai ser minhaMas deixa que vó já tinha Vendido mais da metade

A fortuna que ela tinhaQuase não dava pra vê

Era um galo ‘pelelê’Duas ‘franga’ e uma galinha

Meia cuia de farinhaUma lata, uma bacia

E um gato cego de guiaDeitado em cima da mesaFoi essa a maior riquezaQue a minha vó possuía

Um cachorro canindéQue adoecia na lua

Quatro ovos de peruaUma pata e um guinéMais um bacurim baié

Lá no chiqueiro trancadoO bicho era tão cevadoQue chega dava fadiga

Mas era tanta bexigaQue chega era entabuado

Peço a Deus que é Pai dos paisQue bote vó num bom canto

Sua herança num foi tantoMas já foi coisa demais

Butei as iniciaisLá na cruz do túmulo seuDepois que vovó morreuLembro muito da senhora

E agradeço toda horaA herança que me deu.”

“Geni de Fonte

HERANÇA DA MINHA VÓtrecho

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L I V

R O

SColetênea de poemas de José Genival Rangel, Geni de Fonte,

dividida em “Versos em motes”, “Versos a partir de temas”, “Poe-

mas matutos” e “Sonetos”. NA “FONTE” DA POESIA, Geni de

Fonte, Fasa - Fundação Antô-nio dos Santos Abranches, 103

páginas.

Compilação de poesias inspiradas no sentimento de “roedeira”, do poeta José Adalberto Ferreira, Zé Adalberto. Cenário de Roedeira, Zé Adalberto, Independente, 99 páginas.

C O

N T

A T

O S

PrefeituraPrefeitura Municipal de Itapetim- PE - rua Major

Cláudio Leite, S/N - Centro - (87) 3853-1374http://www.itapetim.pe.gov.br/

Assoc’Artihttp://associartiitapetim.blogspot.com.br/

Itapetim.nethttp://www.itapetim.net/

NA “FONTE” DA POESIA

Cenário de Roedeira

Fotos: Érica Rodrigues

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Ao meu avô Francisco, por ter me mostrado, desde a infância, a beleza da poesia e o gosto por contar histórias. Aos meus pais, pois sem eles nada disso seria possível. E também por cada carona, ajuda em entrevistas e, sobretudo, por subirem no cruzeiro comigo para fotografar a cidade.A Larissa Rodrigues, pelos “rabos de olho” e palpites na diagramação. Ao sertanejo, que observo desde que nasci e a cada dia me encanto mais com sua bravura.A Amanda Gabriel, Daniel Sousa, Flávia Lucena, Daniel Lustosa e Manoela Raulino, pela parceria e amizade nesses anos de curso. Por mais que eu me esforçasse, não encontraria novamente amigos tão incríveis, doidos e divertidos como vocês.A Felipe Morgan, pelas ajudas técnicas inestimáveis no computador.Aos poetas Adalberto de Vital, Zezito Domingo, Geni de Fonte e Zé Adalberto, que abriram suas casas para me receber e compartilhar comigo suas belas histórias.A Antônio Lucena, Saulo Passos e tio Dedé, pelas entrevistas. A Bernardo Ferreira, por ter cedido muitas fotografias.Aos meus professores, que me ajudaram nessa caminhada.A Suelly Maux e Severino Lucena, pela enorme ajuda e por terem acreditado no meu projeto.A Albertino Bezerra, por ser o melhor chefe na história dos chefes e ter me incentivado e ajudado como se o trabalho também fosse seu.A Leto Fernandes, meu anjo da guarda, que certamente ouviu “TCC” mais de dois milhões de vezes nos últi-mos meses e mesmo assim ainda me incentivou.A Débora Pessoa, Priscila Benício, Arielle Vasconcelos, Laryssa Guimarães e Clara Serrano, pelo apoio moral e por me aguentarem todos os dias no trabalho falando desta revista. Ao Sertão, que ao mesmo tempo que nos maltrata com sua aridez, ensina a sermos fortes e dá condições para que brote toda a poesia de que fala este trabalho.

Agradecimentos

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