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A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA GESTÃO PÚBLICA BRASILEIRA Revista JUS ET SOCIETATIS ISSN 1980 - 671X Rubens Pinto Lyra Doutor em Direito pela Université de Nancy I - França RESUMO Este texto trata de demonstrar que a fonte geradora das práticas participativas que hoje integram a institucionalidade jurídico- política brasileira foi a luta pela redemocratização, levada a cabo nos anos setenta, e que teve no “novo sindicalismo” e nos movimentos sociais emergentes os seus mais conspícuos protagonistas. Os operários do ABC, liderados por Luís Inácio Lula da Silva, organizaram as primeiras greves sob a ditadura, visando à melhoria de salários, direitos trabalhistas, e à conquista das liberdades sindicais, tendo como forma de organização a participação direta das bases no processo decisório. Palavras chave: Institucionalidade jurídico-política – Movimentos sociais – Sociabilidade política RESUMEN Este texto trata de demostrar que la fuente generadora de las prácticas participativas que hoy integran la institucionalización jurídico-política brasileña ha sido la lucha por la redemocratización, llevada a cabo en los años setenta y que ha tenido en el “nuevo sindicalismo” y en los movimientos sociales emergentes sus más representativos protagonistas. Los operarios del ABC, liderados por Luís Inácio Lula da Silva, han organizado las primeras greves bajo la dictadura, visando la mejoría de los salarios, derechos laborales y la conquista de las libertades sindicales, tiendo como forma de organización la participación directa de las bases en el proceso decisorio. Palabras claves: Institucionalidad jurídico-política – Movimientos sociales – Sociabilidad política 1. Introdução Do ponto de vista sociológico, a fonte geradora das práticas participativas que hoje integram a institucionalidade jurídico- política brasileira foi a luta pela redemocratização, levada a cabo

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A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA GESTÃO PÚBLICA BRASILEIRARevista JUS ET SOCIETATISISSN 1980 - 671X

Rubens Pinto Lyra Doutor em Direito pela Université de Nancy I - França

 RESUMOEste texto trata de demonstrar que a fonte geradora das práticas participativas que hoje integram a institucionalidade jurídico-política brasileira foi a luta pela redemocratização, levada a cabo nos anos setenta, e que teve no “novo sindicalismo” e nos movimentos sociais emergentes os seus mais conspícuos protagonistas. Os operários do ABC, liderados por Luís Inácio Lula da Silva, organizaram as primeiras greves sob a ditadura, visando à melhoria de salários, direitos trabalhistas, e à conquista das liberdades sindicais, tendo como forma de organização a participação direta das bases no processo decisório.Palavras chave: Institucionalidade jurídico-política – Movimentos sociais – Sociabilidade política

 RESUMEN

Este texto trata de demostrar que la fuente generadora de las prácticas participativas que hoy integran la institucionalización jurídico-política brasileña ha sido la lucha por la redemocratización, llevada a cabo en los años setenta y que ha tenido en el “nuevo sindicalismo” y en los movimientos sociales emergentes sus más representativos protagonistas. Los operarios del ABC, liderados por Luís Inácio Lula da Silva, han organizado las primeras greves bajo la dictadura, visando la mejoría de los salarios, derechos laborales y la conquista de las libertades sindicales, tiendo como forma de organización la participación directa de las bases en el proceso decisorio.Palabras claves: Institucionalidad jurídico-política – Movimientos sociales – Sociabilidad política

1. Introdução

Do ponto de vista sociológico, a fonte geradora das práticas participativas que hoje integram a institucionalidade jurídico-política brasileira foi a luta pela redemocratização, levada a cabo nos anos setenta, e que teve no “novo sindicalismo” e nos movimentos sociais emergentes os seus mais conspícuos protagonistas. Os operários do ABC, liderados por Luís Inácio Lula da Silva, organizaram as primeiras greves sob a ditadura, visando à melhoria de salários, direitos trabalhistas, e à conquista das liberdades sindicais, tendo como forma de organização a participação direta das bases no processo decisório.

O exemplo dos metalúrgicos do ABC irradiou-se para as categorias mais politizadas de trabalhadores, na esfera pública e privada, em todo o país, gerando uma nova sociabilidade política, lastreada na ação corporativa e na democracia direta. O incremento dessas lutas contra a institucionalidade ocorreu espontaneamente (pois o objetivo não estava previamente traçado), contribuindo, de forma decisiva, para por em cheque a transição “lenta, gradual e segura”, substituindo-a por um

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processo que culminou, mediante a promulgação da “Constituição cidadã”, com o pleno reconhecimento institucional do regime democrático.

Neste sentido, a democracia brasileira pode ser considerada como um sub-produto de lutas corporativas, diferentemente de outras transições como, por exemplo, as da Espanha e de Portugal. Nestas, a oposição política, ainda que impulsionada pelas lutas sindicais, teve papel crucial na liquidação do autoritarismo, seja através de um pacto congregando as “forças vivas da Nação” (Espanha) ou pela mediação revolucionária de militares “progressistas” (Portugal). Em ambos os casos, a restauração da democracia constituiu-se no pólo aglutinador e na razão de ser da luta contra o autoritarismo.

Todavia, por que países onde ocorreram lutas semelhantes pela restauração do regime democrático não ensejaram experiências participativas comparáveis às do Brasil?Porque, apenas no Brasil, fatores de ordem social e política se articularam de forma peculiar, propiciando a gestação de vários institutos de participação direta ou semi-direta na gestão pública:

1º) A profunda debilidade do sistema partidário,     aliás destroçado, à época, pela ditadura militar, e substituído pelo artificialismo de um bipartidarismo constituído pelo partido do governo (ARENA) e pela oposição consentida (MDB).2º) Coincidindo com o período de declínio das realizações econômicas do regime militar (o “milagre” brasileiro), a plena afirmação, na arena social e política, do segmento moderno do operariado cujo eixo de gravitação, como vimos, se situava no ABC paulista. E, concomitantemente, a expansão das “novas camadas médias”, igualmente carentes de instrumentos de vocalização de suas potencialidades políticas, que se concretizará, com base na práxis social da democracia direta, por meio dos diferentes institutos da democracia participativa.

Na verdade, as décadas de setenta e oitenta testemunharam o surgimento de uma revolução silenciosa, que vem pondo em cheque, com força crescente, os costumes políticos impregnados de autoritarismo, ainda hoje dominantes, na formação social brasileira. A constituição dessa nova sociabilidade apresenta-se indubitavelmente, como um dos momentos mais altos dessa “construção do público” pela sociedade civil, a qual, segundo Carvalho e Felgueiras, “foi lenta e permanentemente construindo-se nas brechas destestatus quo hierárquico e impermeável às demandas sociais” (2000, p. 5).

2.  REPERCUSSÕES POLÍTICO-INSTITUCIONAIS

2.1  A ação propositiva na Constituinte de 1988

A práxis de participação da base nos movimentos sociais e sindicatos será transposta, em versão atenuada, para a esfera jurídico-institucional, notadamente através de promulgação da Constituição de 1988. 

Algumas manifestações dessa nova sociabilidade gerada na luta pela redemocratização concorreram diretamente para a mobilização social pró-participação popular na constituinte: a ampla difusão da democracia direta no sindicalismo, o “basismo” particularmente forte nos movimentos sociais hegemonizados pela Igreja Católica, o papel das Organizações Não Governamentais (ONGs), ligadas à promoção da cidadania e o engajamento crescente de importantes setores da classe média nas práticas participacionistas.

É de se observar, todavia, que o corporativismo dominante na sociedade civil organizada restringiu o ímpeto de participar à apresentação de emendas constitucionais de interesse mais direto para o movimento ou para a organização proponente. Somente as entidades religiosas, com destaque para a Igreja Católica,

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efetuaram ampla mobilização nacional objetivando inserir, no texto constitucional, mecanismos de democracia direta.

No caso específico da emenda nº 21, sobre participação popular, aquelas organizações lideraram a coleta de assinaturas em todas as regiões do pais. Foi a partir desta emenda que se consolidaram alguns dos princípios fundamentais da democracia direta, como o plebiscito, a iniciativa popular de lei e o referendo. Por essas razões, das sete emendas à constituição que conseguiram recolher mais de 500.000 assinaturas, cinco foram apoiadas por organizações religiosas (DOIMO, 1994, p. 195).

Afora essas organizações, apenas entidades ligadas à saúde e à assistência social mostraram capacidade de mobilização para viabilizar, primeiro, na Constituição brasileira, e depois, na legislação federal, a instituição de canais de participação da cidadania na formulação de políticas públicas.

Nesse processo, desempenharam papel central o Movimento Popular de Saúde (MOPS) – situado na órbita da Igreja – e o Movimento de Reforma Sanitária – formado por profissionais da saúde, funcionários públicos e professores universitários. A ação desses movimentos possibilitou a inserção, no texto constitucional, da garantia de participação da sociedade na formulação da política de saúde e, posteriormente, a criação, a nível municipal, regional e nacional, de Conselhos ligados à área.

Já no âmbito das políticas relacionadas com a assistência social, alcançou papel de destaque o Movimento Nacional dos Meninos de Rua. Atuando como pólo aglutinador de um conjunto de entidades empenhadas na luta pelos direitos da criança e do adolescente, o Movimento garantiu, na Constituinte, a participação da cidadania nas ações de governo atinentes à política da criança e do adolescente, e contribuiu, de forma decisiva, para a aprovação do respectivo Estatuto (DOIMO, 1995, p. 110-114).

No âmbito do movimento sindical, a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES) foi uma das raras entidades a formular uma proposta mais abrangente para o texto constitucional. Tal proposta contemplava, entre outros pontos, as várias modalidades de democracia direta, posteriormente inscritas na Constituição de 1988. Postulava, também, a criação do cargo de “Defensor do Povo” (Ombudsman), “eleito pelo parlamento mediante a indicação de candidatos pelas organizações da sociedade civil” (LYRA, 1987, p. 31).Todavia, a aprovação das propostas de índole não-corporativa teve caráter, sobretudo, formal, tendo sido votada sem nenhum debate ou mobilização da categoria, por um plenário sonolento e esvaziado (LYRA, 2000, p. 44).

2.2  A Constituição brasileira e a legislação        infraconstitucional

A participação direta do cidadão na gestão pública é princípio consolidado há quase cinqüenta anos, inscrito na própria Declaração dos Direitos do Homem, na qual se lê que “todo homem tem o direito a tomar parte no governo de seu país diretamente, ou por intermédio de representantes livremente escolhidos” (Art. XXI, inciso I). Mas, poucas constituições reproduziram o conteúdo desse dispositivo, sendo que a brasileira o fez apenas em 1988: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (Art. 1º, par. único).

Além desta norma genérica, vários artigos da Constituição prevêem a participação da cidadania na gestão pública, seja através da “participação da comunidade”, no sistema único de saúde e na seguridade social” (Art. 198, III, e art. 194, VII), seja como, no caso da política agrícola, “com participação efetiva dos diferentes agentes econômicos envolvidos em cada setor de produção” (art. 187, caput). Somente nos

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casos da assistência social e das políticas referentes à criança e ao adolescente se especifica como se dá a participação da população: “por meio de organizações representativas” (Art. 200, II).

Da mesma forma, a constituição federal estatui, no seu Art. 206, VI, que o serviço público de ensino se organizará com base na “gestão democrática”. Desses e de vários outros dispositivos constitucionais infere-se que a participação do cidadão na gestão pública, no Brasil, “representa bem mais do que um emaranhado de regras esparsas autorizantes da adoção de institutos participativos em situações específicas. Trata-se, a participação administrativa, de um autêntico princípio constitucional” (PEREZ, 2004, p. 80). Este rege um amplo espectro de políticas públicas: agricultura, educação, saúde, assistência social e planejamento urbano, entre outras, que são necessariamente acompanhadas pela colaboração, participação ou controle popular, por disposição expressa da constituição brasileira.           O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado pela Lei 8.059, de 12 de julho de 1990, dá conteúdo ainda mais preciso às inovações introduzidas na Carta Magna em matéria de participação popular. Assim, nos Conselhos da Criança e do Adolescente – cuja instalação em nível nacional, estadual e municipal o ECA torna obrigatória – “deverão ter assegurada a paridade entre as organizações representativas da população e os órgãos do Governo” (Art. 88, 1).         Vale salientar que o ECA tornou-se o primeiro diploma legal a consagrar, em nível nacional, a democracia participativa paritária, na definição e implementação de uma política setorial.          Já no caso dos Conselhos Tutelares, importante órgão previsto no Estatuto acima referido, todos os integrantes são representantes da sociedade eleitos pelos cidadãos locais para mandato de três anos (Art. 132).          Também na área de saúde, a legislação federal introduz em todo o país a participação da sociedade na gestão pública, mediante as Conferências de Saúde – órgão de caráter propositivo – e dos Conselhos de Saúde, a quem compete “formular estratégias e controlar a execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros” (Lei n° 8.142, de 28 de dezembro de 1990).          Mais recentemente, a lei n° 10.257, de 10 de junho de 2001, conhecida como “Estatuto da Cidade”, ao regulamentar os art. 182 e 183 da constituição federal, estipula, no seu artigo 45, que “os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa representação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania”. Esta participação se dá, em geral, nos Conselhos de Desenvolvimento Urbano. Já o Art. 43, IV, estabelece que, para garantir a gestão democrática da cidade, deverá ser acionada, entre outros instrumentos, a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”.

Todos os institutos acima referidos, que contemplam a participação popular nos seus colegiados, têm força vinculante. Isto é, suas deliberações obrigam o gestor público a cumprir suas decisões. Neste caso, o cidadão ou entidade que deles participa compartilha dos poderes constitucionalmente atribuídos à administração pública. Esta é uma das peculiaridades da participação na gestão pública brasileira. O cidadão participa como sujeito deliberativo no interior do próprio órgão decisório do Estado.          Por outro lado, diversas Constituições Estaduais, por iniciativa de seus constituintes, tendo em vista o chamado “efeito dominó”, estenderam a participação popular a diversas outras áreas, notadamente àquela referente ao monitoramento das políticas de direitos humanos.

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         Cabe ainda observar que, mesmo sem terem sido recepcionados na Constituição, outros órgãos da democracia participativa vêm se insinuando no ordenamento jurídico pátrio. Nesse campo, a principal inovação é a Ouvidoria. Este instituto de caráter unipessoal vem se desenvolvendo de forma pouco homogênea, mas alcança, indistintamente, quase todas as esferas do serviço público: União, Estados Municípios, autarquias e corporações específicas, como as polícias estaduais.

3. O CARÁTER SUI GENERIS DA GESTÃO PÚBLICA     PARTICIPATIVA BRASILEIRA

A expressão democracia participativa recobre diferentes significados, relacionados a concepções político-ideológicas bastante diferenciadas, sendo algumas antagônicas entre si. Entre estas, a influência dominante é a socialista – nos seus diversos matizes –, sobretudo no que diz respeito aos processos de democracia direta.

Nas palavras de Genro, [...] a exacerbação de formas de democracia direta, que combine estabilidade e previsibilidade – regras de jogo firmes e contratos claros sobre os limites da utopia – com a legitimação permanente dos conflitos e a aceitação de um certo grau de indeterminação sobre o futuro (ou seja, considerar os consensos como necessariamente provisórios) passa a ser o estatuto mais avançado da cidadania moderna (GENRO, 2002, p. 30).

Entre as modalidades de democracia direta, o Orçamento Participativo é o mais referenciado. O OP objetiva a desconstituição do ordenamento jurídico, tendo como mola propulsora a tensão produzida pela coexistência, até agora pacífica, entre a institucionalidade vigente e, construídos à margem desta, com ela interagindo, dialeticamente, os espaços públicos híbridos, com atuação autônoma da sociedade. Tanto é assim que “a sua regulamentação não é feita por lei municipal, mas sim, pela própria sociedade de maneira autônoma” (GENRO e SOUZA, 1997, p. 48).

A corrente socialista é, em geral, qualificada de “democrático-radical”, pois objetiva fortalecer a participação da sociedade civil, notadamente a localizada no mundo do trabalho, com vistas à construção de caminhos alternativos ao capitalismo ou que, ao menos, conduzam à substituição das atuais políticas de feição “neoliberal” pelas que promovam maior inclusão social, mais investimento público e a “radicalização da democracia”, mediante o aprofundamento e a ampliação da participação popular na gestão pública.

Mas a militância socialista também influenciou decisivamente a constituição de conselhos de políticas públicas. Assim, a esquerda buscou assegurar, no ordenamento jurídico regido pela “Constituição cidadã” de 1988, instrumentos que garantissem, para as forças sociais dotadas de potencial transformador, espaços institucionais que lhes permitissem prosseguir na “disputa pela hegemonia”.

Com efeito, o desenho institucional conselhista se adequa a esse propósito, na medida em que a grande maioria dos colegiados na gestão pública brasileira, com participação societal, é paritária. Para que se compreenda o alcance dessa participação, vale lembrar que ela se distingue dos formatos convencionais de deliberação existentes em outros países. Isto porque, nestes casos, o diálogo envolvendo Estado e sociedade se dá entre dois interlocutores que ocupam espaços qualitativamente distintos no processo de deliberação, permanecendo, a sociedade, externa à administração pública. Assim, as propostas dela oriundas não são obrigatoriamente incorporadas, cabendo ao Estado a palavra final. Enquanto nos conselhos de políticas públicas, que incorporam a participação cidadã, a interlocução já se dá no âmbito do próprio Estado, com as entidades representativas da sociedade compartilhando, enquanto sujeitos deliberantes, decisões que vinculam a administração.

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Registre-se também, a contribuição das teses comunitaristas – em nosso entender, também relacionadas com o participacionismo cristão de Franco Montoro – no formato das representações conselhistas. Tais teses concebem o fortalecimento da sociedade civil em termos de integração, dos órgãos representativos da sociedade aos órgãos deliberativos e administrativos do Estado (GOHN, 2001, p. 16).

Na verdade, o desenho institucional prevalecente na legislação pátria combina, ainda, outras influências teóricas, como a participação corporativa, que valoriza a presença dos corpos intermediários entre a economia e o Estado. Ambas as formas de participação – a corporativa e a comunitária – motivam o indivíduo a participar pela sua preocupação com o “bem comum” - que visa tornar mais justa a ordem social vigente – e não pela satisfação de interesses meramente pessoais.

Outra é a ótica da corrente liberal cujo élan participativo não se interessa pela justiça social ou pela democratização da gestão pública. Ao contrário: busca o fortalecimento da sociedade civil para evitar as ingerências do Estado no mercado e na vida pessoal do cidadão. Trata-se de aperfeiçoar o sistema capitalista de produção, mediante o estímulo à participação voltada para o combate ao “estatismo”, ao burocratismo e à busca de melhoria dos serviços prestados pelo Estado, submetendo-os à racionalidade competitiva e à eficácia gerencial, espelhadas nos mecanismos de mercado.

Daí a sua identificação com Organizações Sociais (OS) que, sob tais parâmetros, executam os serviços públicos terceirizados, com o controle de seu desempenho confiado aos órgãos do Estado e aos segmentos sociais representados nas OS, definidos pelo governo. Além de se identificar com estas, a concepção liberal estimula a participação em áreas como a da proteção e defesa dos direitos do consumidor, pois aí se busca o aprimoramento dos serviços, e não o questionamento e a redefinição das políticas públicas e a ampliação da ação do Estado.

Com relação às ouvidorias, as primeiras foram criadas no Estado do Paraná, no final dos anos oitenta: a do município de Curitiba e a daquele Estado, ambas por iniciativa do Governador Roberto Requião. Todavia, somente nos anos noventa as ouvidorias vieram alcançar notável impulso, tendo, desde então, crescido em proporções geométricas. Suas características “conformam um primeiro paradigma desse órgão, que podemos qualificar de ‘modernizador’. Escolha de cima para baixo, ausência de autonomia do ouvidor e objetivos voltados, sobretudo, para a modernização e eficácia do serviço público” (LYRA, 2004, p. 124).

Mas um segundo paradigma vem se consolidando nos últimos anos, compondo a “vertente democrática”, ou “democrático-popular” do instituto da ouvidoria. Vê-se que este outro “modelo” expressa características radicalmente diversas. A ouvidoria, nesse caso, surge de uma mobilização de setores da sociedade. Nessas condições, criada de baixo para cima, confere ao ouvidor mandato certo e independência perante o órgão fiscalizado. Uma outra característica desse tipo de ouvidoria é a sua preocupação com a justiça e a cidadania – sem deixar de investir na busca de eficácia (LYRA, 2004, p. 124).

Não obstante as antinomias assinaladas, a maior parte dessas experiências não se desenvolve em compartimentos estanques. Ao contrário, com a possível exceção das OS, as outras formas de participação cidadã na gestão pública apresentam diferentes graus de proximidade, formando, em um extraordinário caleidoscópio, um conjunto de experiências participativas, de longe, o mais relevante da atualidade.

A democracia participativa brasileira apresenta um conjunto de aspectos, os quais, interagindo dialeticamente, produzem uma dimensão qualitativa nova, inconfundível e de importância territorial e populacional incomparável, sui generis, mais expressiva que qualquer outra experiência em curso na atualidade.

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O ineditismo e a originalidade destas impõem uma nova abordagem do conceito de democracia participativa, e, em particular, de sua modalidade direta, cuja teorização pelos “clássicos” se encontra ultrapassada. Por contraste, são ainda escassas – e incipientes – as análises sobre o tema. Urge, portanto, a crítica das concepções “clássicas” e a reconstrução do conceito de democracia participativa.

São, portanto, profundamente diversos, tanto das experiências históricas como das propostas “clássicas” de renovação destas, os pressupostos político-ideológicos em que se assentam as principais modalidades da democracia participativa na esfera pública brasileira e também a sua dimensão quantitativa e qualitativa, o campo de eticidade própria por elas engendrado, os objetivos a que se propõem e seu multifacetado significado político.

Examinaremos, na seqüência, os três principais institutos da gestão pública participativa brasileira: os conselhos de políticas públicas, as ouvidorias e o orçamento participativo.

4.  OUVIDORIAS PÚBLICAS

A ouvidoria pública – quando autônoma se assemelha ao instituto do ombudsman – é uma modalidade de democracia participativa que, devido à sua natureza unipessoal, não tem sido – salvo raras exceções – objeto de análise dos estudiosos de ciência política.

Trata-se, todavia, de instrumento de participação cidadã de grande importância para a administração pública brasileira. São mais de mil ouvidores espalhados em todo o país, que, na qualidade de representantes da sociedade nas instituições que fiscalizam, transportam o cidadão comum para a prática da administração pública na medida em que suas denúncias, críticas e sugestões contribuem para o aprimoramento e a correção dos atos de governo.

É necessário sublinhar que a denominação de ouvidoria pode estar associada ao desempenho de funções inteiramente distintas das que são atribuídas a um órgão que, em princípio, deveria ter prerrogativas para exercer alguma forma de controle da administração pública. Quando as tem, ela é o fiscal desta, no sentido mais rico desse termo.

Por exemplo, quem integra a administração não pode ser considerado ouvidor, no sentido pleno deste conceito. Também não, embora ostentando este nome, os que apenas repassam aos dirigentes do órgão em que atuam as demandas que lhe são encaminhadas. Na verdade, trata-se, no caso em espécie, de titular de uma central de reclamações, sem esta denominação.Mesmo reconhecendo a diversidade do seu formato, entendemos que algumas atribuições são inerentes à função do ouvidor, como a prerrogativa de receber a resposta da autoridade que interpela, e de emitir parecer a respeito, procedendo, quando necessário, à investigação que julgar conveniente. Assim, também, a prática da mediação, através da qual arbitra conflitos, buscando a composição de interesses. O exercício deste múnus torna possível a melhoria do relacionamento institucional, evitando os confrontos desnecessários. Finalmente, cabe ao ouvidor o poder de propositura, essencial para que possa agir como um indutor de mudanças no órgão em que atua.

Porém, tais prerrogativas, indispensáveis ao exercício independente do cargo de ouvidor – assim como a autonomia perante o órgão que fiscaliza, assegurada por mandato eletivo, e pela escolha de um colegiado independente do poder fiscalizado – constitui apanágio de poucos institutos denominados ouvidorias. A subordinação destes é generalizada, o que representa, não somente uma capitio diminutio, mas também uma verdadeira contradictio in terminis. Com efeito, poderia representar a

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sociedade, com idoneidade para exercer o efetivo controle de um ente público, alguém nomeado pelo titular do órgão que fiscaliza?

Todavia, nos últimos anos, têm sido instaladas ouvidorias – sobretudo em universidades e em corporações policiais – cujos titulares dispõem de mandato eletivo. Além disso, a maior parte das ouvidorias de polícia e de algumas municipalidades importantes, são, não só  independentes – a exemplo das de São Paulo e de Santo André – como contemplam, igualmente, o chamado controle extra-orgânico. Quer dizer, os seus titulares são escolhidos por entidades da sociedade civil e da esfera pública, externos às respectivas municipalidades ou corporações.

O ex-Ministro Olívio Dutra, quando Governador do Rio Grande do Sul, ao enfatizar a importância do controle público sobre os poderes do Estado, chegou a afirmar que, ser revolucionário hoje, é lutar para tornar efetivo, na práxis política e nas instituições públicas, esse controle. A ouvidoria é um dos seus instrumentos mais importantes e visa contribuir para que os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência que regem, em tese, a administração pública brasileira – embora se esteja, de fato, muito distante disso – se tornem, na prática, eixos norteadores da prestação do serviço público.

Sabemos que as demandas de caráter rotineiro – ou, até mesmo, as denúncias – são, não raro, tratadas com negligência, omissão ou de forma autoritária pela administração. Há, conseqüentemente, uma natural descrença na sua capacidade de autocorreção. Também a via judicial, pela sua morosidade e elevados custos, não se mostra eficaz como mecanismo de controle rotineiro dos órgãos públicos. O parlamento, por sua vez, não parece adequado à resolução de questões que surgem no dia-a-dia do funcionamento da máquina administrativa (GOZAINI, 1989, p. 14-15).

Daí a necessidade de um instrumento de características inovadoras, como a ouvidoria, cujo caráter unipessoal, informalidade de procedimentos e autonomia perante o órgão fiscalizado parece ajustar-se como uma luva às necessidades de pronta correção de atos administrativos ilegais ou injustos. E o fará na medida em que o ouvidor, pela sua competência e pela sua militância democrática, goze de credibilidade para praticar a exigente “magistratura da persuasão.”

Mas o sub-produto desse controle – a participação cidadã na gestão pública, é tão ou mais importante que os objetivos formais consignados à ouvidoria, pelo fato dessa participação trazer embutida um rico aprendizado pedagógico de caráter político. Com efeito, a ouvidoria transmuda ação do particular que, acionando-a, investe-se, de certa forma, do múnuspúblico, ao revestir a sua demanda, originariamente fundada numa lesão privada, com o “manto da indumentária pública”. De sorte que “[...] as reclamações e denúncias formuladas pelos cidadãos, ao serem admitidas pelo ouvidor, são por eles assumidas, contrapesando à presunção de verdade e fé pública dos servidores públicos em face do particular” (GOMES, 2000, p.86).

Por outro lado, a ouvidoria também contribui para a democracia na medida em que sua ação enfraquece o corporativismo, um dos principais óbices que se antepõem à formação de uma consciência cidadã, voltada para questões de interesse público e de caráter universal. Assim, algumas corporações sindicais se opõem às ouvidorias por temerem o questionamento do desempenho de seus integrantes.

Todavia, as resistências mais tenazes provêem sobretudo de políticos, de índole autoritária, ligados ao establishment, notadamente deputados e vereadores, prefeitos e governadores. Os primeiros receiam a perda de seu espaço político para a ouvidoria, além de não quererem, como os segundos, se sujeitar a um controle externo que os impediria, em muitos casos, de prevaricar.

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Tomemos o exemplo do gasto com verbas publicitárias. O caráter das licitações, a natureza dos contratos, o montante e a destinação das verbas alocadas à publicidade, a função e o objetivo desta, a sua conformidade com a legislação vigente, tudo seria objeto de fiscalização, cobrança e debate. Quando se conhece o clientelismo, o personalismo e o caráter ilegal, não raras vezes presentes na publicidade em todos os níveis de governo, compreende-se melhor a resistência de políticos conservadores a formas de controle social do serviço público, como a ouvidoria. Não é por outra razão que os governadores só aceitam implantá-la quando nomeiam o seu titular. 

Não se pode, pois, perder de vista as condições específicas em que atua o ouvidor, tão distanciadas das do ombudsman europeu, que trabalha em ambiente de democracia consolidada, no qual a expressão res publica tem efetividade. “Viva a República!”, saudação usual nas manifestações cívicas da França, não é mera retórica, mas deriva de conquistas revolucionárias que se encontram enraizadas na alma do povo francês.

É consabido que não temos essa cultura cívica republicana. Por isso, a ação do ouvidor alcança um impacto político inexistente nos institutos europeus similares à ouvidoria. Assim, o respeito ao princípio constitucional de igualdade de todos perante a lei não é plenamente acatado, na prática, no serviço público brasileiro. Nessas condições, o desempenho do ouvidor [...] esbarrará, por vezes, nas limitações e até na injustiça da própria Lei. Ele não substituirá a figura do legislador: e, quando o legislador falhar, faltar ou sentir-se tolhido, oombudsman não substituirá a urgência dos interventores da História. No entanto, o cumprimento da Lei elaborada pela classe dominante seria suficiente, no mais das vezes, ao estabelecimento da justiça. Porque a arrogância dos poderosos é tanta que, ao confiar no seu privilégio, edita leis relativamente justas mas espera pelo seu não cumprimento. Eis o momento do ombudsman (PINTO, 1995, p. 88).

A simples experiência e funcionamento de uma magistratura de natureza apenas persuasiva tem, contrariamente ao que muitos pensam, o condão de deixar inquietos os maiorais e seus apaniguados, quando se defrontam com a ação fiscalizadora de uma ouvidoria autônoma. Sabem que esta pode iluminar, pelas frestas de uma administração opaca, os seus desvãos, e assim expor os nichos de privilégios que se ocultam na aparente legalidade de seus serviços. Talvez por isso, antecipando-se às cobranças, não poucos tomam a iniciativa de criar uma “ouvidoria” decorativa, “para inglês ver”, que funciona como instrumento de legitimação e propaganda de um poder intransparente. Quando se deparam com uma ouvidoria autônoma (pela sua estrutura, pelo comportamento do ouvidor, ou por ambos) tratam de fragilizá-la, quando não podem, simplesmente, fechá-la.

Por isso, entendemos que, para setores ponderáveis da administração pública brasileira, o funcionamento da ouvidoria, mesmo quando não consegue inflectir os seus rumos, já demonstra ipso facto a sua imprescindibilidade. Assim, muitos consideram que a mais notável vantagem da ouvidoria “talvez resida na existência de uma instituição que pode adentrar o biombo que oculta a administração e ali investigar exaustivamente a razão de determinada queixa, o fazendo como autoridade independente e abalizada” (GOMES, 2000, p. 216).

Não há dúvidas de que, agindo com independência, o ouvidor, ao quebrar arestas corporativas e o autoritarismo que as acompanha, transfigura o seu papel. Este não é mais apenas o de lutar contra a “má administração”, mas sobretudo o de trabalhar em favor de uma nova administração, escolhida, dirigida e fiscalizada por parâmetros que se  regem pela ótica do universal, e não do particular; do público e não do privado, do interesse geral e não do imediatismo corporativista.

Mas a eficácia da ação da ouvidoria e, portanto, a efetividade da sua ação pública depende, em grande medida, do processo de aprofundamento da democracia, e de uma reforma do Estado orientada para a mudança nas suas relações com a

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sociedade. Dessarte, afirmar a ação da ouvidoria, enquanto mecanismo de democratização nas relações Estado-sociedade, pode contribuir para assegurar a cidadania plena a todos os brasileiros, garantindo a vigência de seus direitos.

Para finalizar, destacamos a importância de se firmar alianças táticas e estratégicas entre movimentos sociais e lideranças institucionalizadas da Administração Pública. Tais alianças permitiriam ocupar espaços institucionais cada vez mais importantes para buscar a conjugação de propostas racionalizadoras com a luta pela democratização do acesso a serviços públicos de qualidade (COSTA, 1998, p. 169). E também, ajudariam a promover a disseminação de ouvidorias autônomas, dotadas das atribuições próprias desse instituto e constituídas com a participação da sociedade na escolha do ouvidor.

5.  ORÇAMENTO PARTICIPATIVO

5.1  Introdução

O Orçamento Participativo constitui a experiência de maior impacto, entre outras razões, pelo fato de aglutinar, em todo o país, milhões de participantes, em aproximadamente trezentas cidades, na definição de prioridades na alocação dos recursos públicos. O exemplo de Porto Alegre se disseminou em todo o Brasil, especialmente nas grandes metrópoles, como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Recife e no ABC paulista, mas, também, em várias capitais do Nordeste e em pequenos e médios municípios espalhados em todo o território nacional.

O Orçamento Participativo (O.P.) é a denominação comum atribuída a processos de participação da população bastante diferenciados no que diz respeito às suas atribuições (deliberativo ou consultivo), à sua abrangência (envolvimento ou não dos conselhos setoriais do município no seu processo deliberativo), no que respeita ao montante de recursos que administra e aos seus mecanismos de deliberação, entre tantos outros aspectos. Ademais, todos os formatos do O.P. estão, em graus variáveis, permanentemente sujeitos à revisão das suas estruturas e normas de funcionamento.

O orçamento público, segundo Fedozzi, expressa em grande parte como se dá a produção do fundo público (via tributária e de receitas) e de que forma esse produto social é apropriado ou distribuído mediante a política de despesas públicas. O orçamento público, por isso, é considerado o núcleo duro do processo de planejamento governamental (FEDOZZI, 1997, p. 107).

Neste estudo, tomaremos como referência o Orçamento Participativo de Porto Alegre. Esta experiência pode ser considerada sui generis por envolver a participação voluntária da população de uma cidade, na apreciação e deliberação de parte do gasto publico orçamentário. Tal operação somente se torna possível porque as autoridades dotadas de competência institucional para propor e aprovar parte do orçamento do município (Prefeito e Câmara dos Vereadores) dela abdicam, devolvendo-a a quem lhe delegou esta prerrogativa: o seu titular, o próprio povo.

Trata-se, portanto, de um processo de compartilhamento da gestão pública que, ao efetivar-se no pleno respeito à “igualdade jurídica e às liberdades fundamentais”, mas em “tensão dialética” com a institucionalidade, gerou uma forma de poder e um novo espaço ético-político baseado, essencialmente, na democracia direta. Cria-se, assim, uma esfera pública ativa de co-gestão do fundo público municipal que se expressa, fundamentalmente, em regras de participação e regras de distribuição dos recursos de investimentos que são pactuados entre o executivo e os municípios.

5.2    O Orçamento Participativo como política pública

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Os critérios básicos que se referem à alocação de recursos pelo OP, no caso de Porto Alegre, são os seguintes: 1) carência de serviço ou de infra-estrutura urbana, 2) população em áreas de carência máxima, 3) população total da região do orçamento participativo, 4) prioridade atribuída pela região aos setores de investimentos demandados por ela (FEDOZZI, 1995, p. 126-127).

Vale sublinhar que a implementação do OP tem produzido uma melhoria nas condições administrativas para a tomada de decisões, derivadas da participação da sociedade, pois as informações de que dispõem o Estado e o mercado são incompletas. Assim, os arranjos deliberativos pactuados entre Estado e sociedade presumem que as informações ou soluções mais adequadas não são a priori detidas por nenhum dos atores e necessitam ser construídas coletivamente (SANCHEZ, 2002, p. 67).          Vê-se que o OP estabelece uma relação dialética entre participação, eficácia e justiça social. As vantagens do orçamento participativo são evidentes, no que diz respeito a uma maior eficácia latu sensu do serviço público. Entendemos por eficácia, não somente agilidade e competência no desempenho funcional, mas, também, mecanismos que reduzem custos e evitam ao máximo, desperdício e corrupção.

É certo que esta forma de exercício do “poder público em público”, ainda mais dando-se através de um ente coletivo, é, por definição, transparente, e, como tal, inibidora da corrupção.  Quanto à economia de custos, ela decorre do natural empenho dos participantes do OP em fiscalizar os gastos de obras, afinal, por eles próprios custeadas.

Existem, não somente assembléias das quais todos participam, mas também delegados do OP, encarregados, entre outras atribuições, de sistematizar as propostas provenientes das assembléias regionais. Todavia, esses delegados prestam contas, perante os coletivos que o elegeram, do andamento dos projetos acordados com o governo e que estão sendo desenvolvidos na comunidade. Se, por exemplo, as obras em edificação não estiverem em conformidade com o projeto aprovado, os delegados tem competência para embargá-las, Assim, garantem o fiel cumprimento dos contratos.

Outra característica do OP, conforme se depreende dos seus critérios de funcionamento, já referidos, é de ser eficaz promotor de mais justiça e inclusão social, produzindo uma inversão de prioridades no gasto público e favorecendo, dessa sorte, os bairros e populações mais desassistidas.

5.3.  O OP e seus “sub-produtos” políticos

Devemos ressaltar, além dos resultados de natureza administrativa, os subprodutos do OP relacionados com a socialização da política, de grande potencial transformador. Como dizem Genro e Souza, “a principal riqueza do orçamento participativo é a democratização da relação do Estado com a sociedade, deixando o cidadão de ser um simples coadjuvante da política tradicional para ser protagonista ativo da esfera pública” (1997, p. 45-46). Nesta, os cidadãos, voluntariamente, se mobilizam para compartilhar as responsabilidades de governo. Nessa práxis coletiva, tecem laços de solidariedade, criando um espaço púbico privilegiado, do ponto de vista dos ensinamentos que ela produz. Com efeito, no OP, o cidadão comum aprende a desvelar, desmistificando, a “caixa preta” do Estado, já que sua participação lhe torna familiar as engrenagens da máquina administrativa a as políticas públicas postas em prática pela administração. Mais do que isto: ele aprende que, sem sua participação, o poder público não conseguiria identificar as necessidades do povo nem teria a mesma força para garantir, com igual acuidade, a implementação das medidas necessárias à sua satisfação.

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Por outro lado, vários estudiosos do OP ressaltam a sua capacidade de gerar umacompreensão qualitativamente diversa do que seja o público, as questões de caráter universal, em contraste com a percepção corporativa do Estado. Em um espaço de onde emergem múltiplas reivindicações, os seus participantes, mediante a ação comunicativa envolvendo os diferentes interesses em jogo, descobrem que os recursos são finitos, sendo, portanto, necessário identificar prioridades propostas que atendam melhor ao interesse da coletividade.

Com isso, surgem novas lideranças capazes de atuar em um ambiente coletivo aberto a todos, onde a impessoalidade e a publicidade das decisões tomadas contrastam com a escolha arbitrária, por parte da administração, de determinadas demandas em detrimento de outras, devido, tão somente, ao peso da influência do vereador ou de grupos de pressão de extração empresarial, comunitária ou outra.

A práxis do OP vai mais além: faz com que a população se conscientize de que existem problemas que ultrapassam a esfera do município. Assim, as questões de saúde, habitação, assistência social, geração de renda, entre outras, para sua resolução, dependem de políticas macroeconômicas e fiscais e de definições dos governos estaduais, da União, da Assembléia Legislativa e do Congresso Nacional (GENRO e SOUZA, 1997, p. 50-51). Portanto, o OP contribui para que haja uma conscientização de que é preciso mudar, o que só pode ocorrer se os interessados em promover mais justiça social se empenharem na construção e efetivação de políticas públicas, a nível nacional, capazes de gerar transformações estruturais na sociedade brasileira.

Este novo espaço de contra-hegemonia se torna mais plausível na medida em que o funcionamento dos coletivos populares, (assembléias regionais, plenárias temáticas e conselhos) ocorre livre da influência direta da grande imprensa. Assim, ele cria estruturas de formação e de reprodução de uma opinião pública independente. As comunidades, pelo exercício direto da ação política, passam a ter, inclusive, um juízo critico sobre o próprio poder que as classes privilegiadas exercem sobre o Estado pois passam a conviver com a pressão exercida pelos meios de comunicação para realizar determinados investimentos, pactuados por interesses elitistas ou socialmente minoritários. (GENRO e SOUZA, 2001, p.16).

É interessante observar que a influência do OP não se dá esvaziando outros espaços associativos populares, potencialmente contra-hegemônicos. Ao contrário, conduz ao aumento da influência de associações e de movimentos sociais. Há uma inter-relação entre sua dinâmica e uma teia de outros espaços abertos para a participação no poder público municipal, como a Cidade Constituinte, congresso com edições anuais, articulando os mais diferentes fatores, com o propósito de constituir coletivamente diretrizes para o planejamento” (BAIERLE apud SANCHEZ, 2002, p. 62-63).

Last but not least: sabemos que a política econômica dos Estados capitalistas se caracteriza atualmente pela “desarticulação estatal, a perda de direitos, a precarização das relações sociais e a exclusão social crescente, implicando na deformação dos atributos da cidadania e do direito, em virtude de um certo retorno ao “estado de natureza”. Por contraste, o OP se fundamenta no resgate do valor do espaço público, da reorientação democrática, participativa e solidária do Estado e no revigoramento da sociedade civil. Destarte, “as experiências do OP desafiam o minimalismo da teoria  política liberal, do pluralismo competitivo e da teoria democrática restrita à conceituação das regras do jogo” (SANCHEZ, 2002, p. 82).

Já os seus aspectos políticos-institucionais são muito bem sintetizados por Chico de Oliveira, quando salienta o que há de sui generis no OP: [...] no capítulo das relações entre o executivo e o legislativo, intervindo no papel do Estado na regulação da economia pelo social; moldando a política social pública pela ativa intervenção cidadã nas prioridades; integrando a vontade cidadã com as decisões legislativas e executivas, acaparando agora parte do poder delegado e

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reapropriando-o diretamente; reduzindo as distâncias entre governantes e governados; introduzindo um nível intermediário entre a representação clássica em vias de esgotamento e a democracia direta sonhada mas não realizável, uma extraordinária invenção política vem se firmando no Brasil. O que a tradição, curta é verdade, está chamando de orçamento participativo (OLIVEIRA, apud SANCHEZ, 2002, p. 58).

6.  OS CONSELHOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS

6.1  Introdução

A modalidade mais amplamente difundida de participação institucional da cidadania na administração pública brasileira são os conselhos gestores de políticas públicas e os conselhos de direitos. Estes, predominantemente, de natureza fiscal, propositivo-consultiva.

Segundo Santos “Em 1993, já se contabilizavam cerca de 3.000 conselhos na área de saúde (IBAM, 1993); em 1994, dados do Centro Brasileiro da Infância e do Adolescente apontavam a existência de 2.362 na área da criança e do adolescente; em 1997, dados do Ministério e da Previdência e Assistência Social registravam a presença de 2.908 no setor da assistência social (SANTOS JUNIOR, 2004, p. 22).

São, portanto, milhares de conselheiros que, em todo o país, participam desses colegiados cuja criação, funcionamento e composição (paritária) são regulados por legislação federal. Existem muitos outros conselhos, de âmbito municipal e estadual, distribuídos em todas as unidades da federação, como os de educação, de segurança e de desenvolvimento urbano, que agregam outros milhares de participantes na gestão pública democrática.

Assim, os conselhos não têm uma configuração uniforme e acabada. Apenas os que funcionam nas áreas reguladas pela legislação federal (os de Saúde, da Criança e do Adolescente e os de Assistência Social) apresentam, obviamente, o mesmo formato em todo o território nacional. Além do mais, não há consenso sobre vários pontos, entre outros, a paridade e a representação dos prestadores de serviços.

Nos demais conselhos, as diferenças dizem respeito às suas características essenciais: peso da sociedade civil, dos entes públicos, e, em particular, dos representantes do órgão fiscalizado na sua composição; sistema de indicação de seus membros pelas organizações da sociedade civil, ou por ambos e a abrangência de sua jurisdição. Os conselhos de direitos do cidadão, por exemplo, podem ser competentes somente para fiscalizar o respeito aos direitos humanos ou, de forma mais abrangente, o desempenho do conjunto dos órgãos do Poder Executivo Estadual. Outro exemplo: existem conselhos com jurisdição restrita à área de segurança, ou a de justiça e outros que incluem ambas.

6.2  Modalidades

Os conselhos, que institucionalizam a participação cidadã, a despeito da sua grande diversidade, têm sido objeto de diferentes classificações, nem sempre concordantes. Optamos por distingui-los de acordo com a sua competência e com o seu papel na administração pública, como se segue:

a) Conselhos Gestores. A estes estão afetos a condução de diferentes áreas de atuação do governo, como a da Saúde, a da Assistência Social e a da Criança e do Adolescente. Os conselhos desses setores da administração foram criados por leis federais e foram instalados, em nível nacional, em todos os Estados e em quase todos os municípios. Mas existem outros conselhos gestores de políticas públicas, como os de Segurança (ou Defesa Social), que, como foram instituídos por leis estaduais, existem somente nos Estados que optaram por sua criação.

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b) Conselhos de Defesa e Promoção de Direitos. A maioria destes são dotados apenas do poder de fiscalização, sendo, portanto, de natureza consultiva, propositiva e educativa; enquanto os conselhos gestores têm, também, poder de decisão. Nessa categoria se enquadram vários conselhos, entre eles, os de Direitos Humanos, os da Mulher, os da Comunidade Negra etc. Mas existem conselhos de direitos, como os da Criança e do Adolescente, e alguns conselhos de Idosos, que são também conselhos gestores.

c)  Conselhos de controle administrativo-financeiro e funcional. Todos os conselhos mencionados neste estudo dizem respeito à ação governamental nucleada no poder executivo e, são, portanto, relacionados com políticas públicas. Todavia, inserimos, nesta classificação, pela sua analogia com os demais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), recentemente instituído, no Poder Judiciário, através da Emenda Constitucional no. 45, de 8 de dezembro de 2004. Trata-se de um órgão com atuação nacional, composto de quinze membros e presididos por um Ministro do Supremo Tribunal Federal.

No CNJ, a sociedade está representada por apenas quatro membros. Dois destes são indicados pelo Conselho Federal da OAB e mais dois, um dos quais, pela Câmara dos Deputados, e outro pelo Senado Federal, exigindo-se de ambos “notável saber jurídico e reputação libada”. Cabe ao CNJ “o controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes” (§ 4, inciso XIII, artigo 103-b, Emenda Constitucional no. 45).

A despeito da representação da sociedade ser pouco expressiva no CNJ, este órgão tem tido uma atuação destacada no controle do Poder Judiciário, tendo, entre outros, conseguido resultados importantes no combate ao nepotismo naquele poder.

d) Conselhos de Programas. Criados para operacionalizar ações de governo, de caráter específico, como os de Segurança Alimentar, da Merenda Escolar, do Aleitamento Materno, do Desenvolvimento Rural etc. Não dizem respeito, como os conselhos até agora estudados, à promoção de direitos ou à efetivação de conquistas sociais contempladas em lei. São vinculados ao “provimento concreto de acesso a bens e serviços elementares ou a metas de natureza econômica” (Comunidade Solidária/IBAM/IPEA, s.d. apud LÜCHMANN, 2002, p. 54).

e) Conselhos Consultivos de Governo. Existem basicamente duas modalidades desses conselhos:

1) os que articulam políticas públicas. Exemplo típico dessa categoria são alguns Conselhos Municipais de Segurança. Eles coordenam ações de vários órgãos das administração, no que diz respeito à segurança preventiva (prevenção da violência e da criminalidade), propondo normas e expedindo recomendações sobre a matéria. Mas suas propostas estão sujeitas à livre apreciação do Chefe do Executivo Municipal. Como se trata de conselhos com atribuições administrativas, a maioria de seus integrantes é, regra geral, vinculada ao Executivo;

2) os meramente consultivos, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social (CDES), ligado à Presidência da República. Esses conselhos, tem apenas, como atribuição, formular recomendações ao Governo. Assim, são compatíveis com uma composição majoritariamente emanada da sociedade civil. Observe-se, contudo, que, no caso do CDES, os representantes da sociedade são escolhidos pelo Governo, o que, em nosso entender, compromete a sua idoneidade.

f) Conselhos de Eventos. Estes conselhos são mais localizados e alguns mais raros, como o Conselho de Carnaval da Cidade de Salvador, que tem como função coordenar a organização dessa festa popular (HERBER, 2000).

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Os conselhos de políticas públicas vinculados ao poder executivo são sempre setoriais, quando se ocupam da prestação tradicional de serviços de um determinado segmento da administração (educação, saúde, justiça, assistência social); e temáticos, quando sua atuação tem como fulcro questões relacionadas com temas específicos – muitas vezes relacionados com os interesses de determinados grupos e camadas sociais - que estão a merecer atenção especial do gestor (Idoso, Deficiente, Condição Feminina, Comunidade Negra). Se os conselhos setoriais são gestores de políticas públicas, entre os temáticos existem, também, os que o são. Porém, a maioria, possivelmente, se restringe a funções de fiscalização, de caráter propositivo, consultivo e educativo.

Finalmente, é necessário distinguir, como fazem diversos estudiosos, os conselhos de políticas públicas, objeto deste estudo, que incorporam a sociedade civil organizada nos processos decisórios, consultivos ou de fiscalização, no âmbito do Estado, dos Conselhos Comunitários, compostos, exclusivamente, de representantes da sociedade civil, “cujo poder de fogo reside na força de mobilização e de pressão e não no assento institucionalizado junto ao poder público”.Existem, todavia, conselhos consultivos, como os que estão vinculados ao Conselho de Segurança e de Justiça do Município de Porto Alegre, de caráter institucional (PORTO ALEGRE, 2003).

A seguir, pela sua importância, examinaremos as atribuições e os requisitos de legitimação das duas principais modalidades de colegiados de políticas públicas: os conselhos gestores e os de defesa e de promoção de direitos.

6.3.  Os Conselhos Gestores6.3.1.  Atribuições e critérios de legitimação

Os Conselhos Gestores, órgãos de caráter deliberativo, são competentes para planejar, supervisionar e monitorar a implementação de políticas governamentais. Entre os mais importantes, estão os conselhos de saúde, que lidam com significativo volume de recursos financeiros; os de desenvolvimento urbano, a quem cabe “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” (art. 2° da lei 10.257, de 10-7-2001 – o Estatuto da Cidade); os da assistência social e os da criança e do adolescente.

Os conselhos de segurança são também de grande relevância. A eles estão afetos as políticas de segurança e de justiça dos Estados, competindo-lhe formular, deliberar e supervisionar a implementação dessas políticas. Devem, também, realizar estudos técnicos sobre as questões de sua competência e promover a integração dos órgãos que compõem o sistema de justiça e de segurança, estimulando a participação da sociedade na formulação das políticas nessa área.Todavia, são muito poucos os Conselhos de Defesa Social existentes – Pernambuco, Rio Grande do Sul, Pará e Alagoas – sendo que apenas os dois últimos têm representação significativa e autônoma da sociedade. Mas a tendência é a sua proliferação, face às diretrizes do Projeto Nacional de Segurança Pública do Governo Federal, que condiciona a concessão de verbas à área à criação desses Conselhos.

O primeiro critério de legitimação dos conselhos gestores reside na autonomia das entidades participantes (não dos próprios conselhos, que são parte integrante da administração). Esta autonomia se concretiza com a livre indicação, por elas próprias, dentre seus membros, de seus representantes nos conselhos.

O segundo critério de legitimação dos conselhos gestores de políticas públicas é a presença de uma participação expressiva da sociedade. Esta permite que os cidadãos sintam-se motivados para compartilhar as responsabilidades de Governo, aproximando-o da sociedade e assim fornecendo-lhe os meios para que ele identifique melhor as suas reais necessidades.

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Dessarte, a participação significativa da sociedade nas representações conselhistas é requisito indispensável para tornar sua intervenção eficaz no que consideramos ser o mais importante resultado da ação desses conselhos: o aprofundamento e a ampliação da democracia, através da socialização da política.

Em primeiro lugar, apenas um exemplo tirado de Raichelis (in CARVALHO e TEIXEIRA, 2000, p. 45). Esta lembra a verdadeira revolução cultural que pode significar a instalação, de conselhos, em pequenas cidades do interior, onde a política só é praticada por notáveis. Mesmo se inicialmente despreparados, e facilmente manipuláveis, a práxis política dos representantes da sociedade poderá, com o tempo, gerar elementos tendentes a favorecer a conscientização, e consequentemente maior autonomia à sua participação. Em segundo lugar, o exercício desta pela sociedade organizada, no âmbito dos conselhos confere, ipso facto, maior transparência à administração, permitindo, consequentemente, que a fiscalização exercida iniba a corrupção, favorecendo uma mais justa alocação do fundo público e contribuindo para menos desperdício e mais eficiência nos serviços prestados. Assim, fica evidenciado que o fazer político não pode ser apanágio de doutores, de “especialistas” ou de profissionais da política, sendo imprescindível a presença do cidadão.

Em terceiro, a participação da sociedade também contribui para relativizar o saber técnico, ao mostrar que este não é neutro, sendo as propostas que nele se fundamentam inseparáveis da forma de considerar (e de se relacionar) com os interesses econômicos e sociais em jogo. Ainda assim, é de capital importância que os conselheiros representantes da sociedade ostentem, não somente representatividade, empenho, relacionamento com as suas bases e capacidade de intervenção política, mas, também, preparo para o exame dos dossiês, por vezes complexos, que serão submetidos à sua apreciação.

Last but not least: a socialização da política é, também, eminentemente pedagógica, na medida em que a práxis participativa favorece o aprendizado da arte de governar. Quando, por exemplo, se percebe a finitude e a escassez dos recursos postos à disposição, compreende-se, também, melhormente, a arte de negociar para se obter um resultado que atenda ao interesse público, subsumindo-se as reivindicações corporativas a um projeto mais abrangente de sociedade.

6.3.2  Crítica ao formato paritário e à “paridade política”

O papel das entidades da sociedade não pode mais ser o de disputar a hegemonia dos governantes. Primeiro, por não terem força transformadora, como a sociedade civil dos anos oitenta. Segundo, pela impossibilidade “ontológica” de se soldar a mítica unidade da sociedade civil em torno de objetivos que a contraponham ao poder de Estado.Terceiro, por caber a quem foi eleito pelo voto popular o direito de ter papel preponderante na definição das políticas públicas a serem implementadas.

Com efeito, não é possível, no que se refere ao exercício desse direito, comparar a legitimidade conferida pela maioria da população a esses mandatários, com a representatividade de entidades – sejam quais forem – integrantes de conselhos. Assim, quando se trata de conselhos gestores de políticas públicas, que definem estratégias e elaboram políticas para o setor, alocam recursos, em suma, tomam decisões de Governo, entendemos que, nesses casos, é legítimo e até necessário que o poder executivo disponha de uma representação majoritária (ou, sendo o colegiado paritário, do voto de Minerva). Isto porque o titular do executivo (Governador ou Prefeito) foi eleito pelo povo para governar. O que, obviamente, poderia vir a não ocorrer, em um Estado em que os órgãos responsáveis pela formulação das políticas públicas fossem, não os do Governo, mas Conselhos integrados paritariamente por entidades do Poder Executivo, não tendo este maioria ou direito ao voto de desempate.

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A ocorrência dessa hipótese poderia gerar, como subproduto, a substituição da legitimidade derivada do sufrágio universal pela oriunda de organizações com base social limitada, idôneas para exercerem influência e poder de pressão no seio do Estado e para conferirem transparência à gestão pública. Mas não para governarem em lugar do Governo. Estaríamos assim, em presença da ressurreição do vanguardismo: uma minoria de “iluminados” representantes da sociedade civil, escolhidos por uns poucos, governaria em lugar dos mandatários eleitos pelo voto da maioria da população. Ou então, prevalecendo o desacordo, a impossibilidade de resolvê-lo poderia conduzir ao eventual engessamento da administração.

Por toda argumentação desenvolvida, entendemos que a institucionalização da participação da sociedade – e de órgãos públicos independentes, quando couber – deve ser minoritária, devendo-se atribuir ao governo a maioria numérica, e, consequentemente, política, nas representações conselhistas.

6.4.  Conselhos de direitos: os conselhos de direitos humanos

       6.4.1   Atribuições

Existem, como vimos anteriormente, um grande número de conselhos que cuidam da promoção e da defesa de direitos. Escolhemos os de direitos humanos, dentre esses conselhos, para ilustrar o nosso estudo das atribuições e dos critérios de legitimação dos conselhos de direitos, quando estes funcionam como órgãos de fiscalização, de natureza consultivo-propositiva e educativa. Os conselhos de direitos humanos são os de caráter mais abrangente na matéria, em âmbito nacional e nos Estados.

Os Conselhos Estaduais de Direitos Humanos independentes do Governo foram criados a partir de 1992. São órgãos de caráter propositivo, educativo, de fiscalização e de mediação, e não de Governo. Com algumas variações, já que cada Estado legisla livremente sobre a matéria, compete-lhes propor as diretrizes para o Poder Público Estadual atuar nas questões relativas aos direitos do homem e do cidadão e sugerir mecanismos legais para a institucionalização desses direitos.

Sua função educativa se baseia no dispositivo legal que lhe atribui competência para estimular e promover programas educativos, e eventos que incentivem o debate sobre os direitos do homem e do cidadão. Os Conselhos exercem a sua função fiscalizadora denunciando e investigando as violações de direitos humanos nos Estados, podendo ter acesso a qualquer unidade pública estadual para o acompanhamento de diligências, exames ou inspeções. De seu poder de fiscalização deriva a sua ação mediadora, voltada, sobretudo, para a solução de conflitos que envolvem entre outros, rebeliões de apenados e manifestações de movimentos sociais, sejam estas consideradas, ou não, atentatórias à ordem jurídica vigente.

Vê-se que os Conselhos de Direitos Humanos não integram o poder executivo, nem, aliás, nenhum dos poderes do Estado. Portanto, não deliberam sobre políticas públicas, mas opinam a respeito e fiscalizam a sua implementação. Deles participam representantes do poder executivo estadual, o ministério público, organizações não-governamentais (ONGs), universidades, centros de direitos humanos, conselhos profissionais e associações, com atividades relacionadas à defesa e promoção dos direitos do homem e da cidadania. Existem conselhos em dezoito Estados da federação, dos quais treze funcionando regularmente: São Paulo, Paraíba, Mato Grosso, Espírito Santo, Alagoas, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraná, Maranhão, Goiás e Piauí (conselhos independentes), além do Ceará, da Bahia, de Minas Gerais, do Pará, do Acre, do Distrito Federal e do Rio de Janeiro (conselhos dependentes, em diferentes graus, dos poderes do Estado). Estão em curso propostas para a instalação de Conselhos de Direitos Humanos no Rio Grande do Sul e no Amapá e para a reestruturação desses Conselhos, com a maior participação da sociedade, nos Estados de Sergipe e do Pará.

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A criação de conselhos com competência de deliberar sobre a formulação de políticas de Direitos Humanos dos Estados não parece exeqüível, visto que o caráter abrangente dessas políticas, que dizem respeito a quase todos os setores da administração provocaria, possivelmente, uma indesejável superposição de deliberações. Além do que, tal concepção de Conselho de Direitos Humanos não conta com o respaldo dos Princípios de Paris, consubstanciados na Resolução 1992/54, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que o define como um órgão de caráter consultivo-propositivo. Por fim, transformados em Conselhos de Governo, os Conselhos Estaduais de Direitos Humanos perderiam sua independência e teriam enfraquecida a representação da sociedade nos seus colegiados.

Em assim sendo, o caminho para tornar mais amplas e efetivas as atribuições desses Conselhos seria garantir-lhes, no âmbito estadual, o que está sendo proposto, na Câmara dos Deputados, em projeto encaminhado pelo Presidente da República, para o Conselho Nacional de Direitos Humanos. Com efeito, a este será deferido o poder de recomendar afastamento de cargo, emprego ou função na administração pública e de aplicar sanção aos infratores. E, também, o de expedir recomendações a entidades e órgãos públicos, fixando prazo para atendimento, ou para a justificativa da sua impossibilidade (BRASIL, 2006).

6.4.2  Requisitos de idoneidade

Os requisitos de idoneidade referentes ao desenho institucional dos Conselhos de Direitos Humanos – assim como os demais conselhos de defesa e promoção de direitos, que não são também gestores, são distintos dos exigidos estes últimos. Enquanto que, para estes, é suficiente a participação autônoma da sociedade e uma representação expressiva desta, nos Conselhos de Direitos Humanos, por se tratar de um órgão que exerce o poder de fiscalização sobre o Executivo, é o próprio órgão que necessita ser autônomo perante aquele poder.

Pela mesma razão, a representação da sociedade ou, mais amplamente, de entidades ou órgãos independentes do executivo, deve ser majoritária em relação à do governo. É ainda necessário, sempre para salvaguardar a sua autonomia, que os conselhos de fiscalização, monitoramento e avaliação das políticas públicas, como os já referidos, dotem-se de diretorias eleitas, tendo os seus integrantes mandato fixo.

Finalmente, é indispensável que os membros desse conselhos possam ingressar livremente nos estabelecimentos ligados ao sistema penitenciário e, quando for o caso, nas repartições públicas estaduais.

6.4.3  Um novo campo ético-político

Os conselhos que atuam nas áreas de segurança e justiça vêm produzindo, quando a cidadania neles tem voz ativa, um novo campo ético-político. Este nóvel espaço público se forja em laços de colaboração inéditos, consubstanciados em uma conjunção de forças que contém elevada representatividade social. Com efeito, nos conselhos estão presentes as entidades mais representativas da sociedade e os mais importantes órgãos públicos com responsabilidade no campo da justiça, da segurança e da cidadania Portanto, a construção desse espaço público sui generis representa um salto de qualidade, por permitir a produção de sínteses dialéticas capazes de superar concepções meramente corporativas.

Na verdade, a práxis política nesses conselhos permitiu o crescimento do entendimento e da compreensão recíprocas, e de negociações, ainda que muitas vezes laboriosas e difíceis, entre calejados e reputados militantes de direitos humanos e representantes qualificados do aparato de segurança e de justiça. Disso tem resultado uma cooperação crescente entre os diversos setores envolvidos na questão e uma visão mais abrangente dos direitos humanos e da segurança

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pública. De um lado, afastou-se o antigo preconceito contra os direitos humanos; do outro, deixou-se de promover uma espécie de responsabilização a priori das polícias pela violação de direitos, quando ocorrem conflitos.

Os conselhos em foco compõem, pelo seu caráter permanente e pela força de suas atribuições, o principal locus de construção desse novo campo ético, inclusive porque eles têm sido a matriz geradora de experiências inovadoras de educação em direitos humanos, permitindo que novas relações possam estabelecer-se entre a polícia e a sociedade.

Com efeito, essa reflexão autocrítica constitui o fundamento de um novo conceito: o de segurança pública democrática. Ao invés da culpabilização individual, pressupõe a responsabilidade coletiva. Coloca os atores sociais em relações horizontalizadas do ponto de vista do valor das pessoas, de suas crenças e de seus desejos (MENDONÇA FILHO, 2001, p. 13).

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