ipea - planejamento e avaliação de políticas públicas

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PENSAMENTO ESTRATÉGICO, PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL & DESENVOLVIMENTO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO 1 LIVRO PLANEJAMENTO E AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Organizadores José Celso Cardoso Jr. Alexandre dos Santos Cunha

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Documento do IPEA sobre planejamento e Avaliação de Políticas públicas

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    PENSAMENTO ESTRATGICO, PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL & DESENVOLVIMENTO

    NO BRASIL CONTEMPORNEO 1LIVRO

    PLANEJAMENTO E AVALIAO DE POLTICAS PBLICAS

    OrganizadoresJos Celso Cardoso Jr. Alexandre dos Santos Cunha

  • No momento em que o Ipea completa e comemora os seus 50 anos de existncia, nada mais emblemtico para todos ns que dar materialidade e significado a esta coleo coordenada pela Diretoria de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia (Diest). Recheada de estudos e proposies de colegas do prprio Ipea, servidores pblicos vinculados a inmeras organizaes, acadmicos e pesquisadores nacionais e estrangeiros, sem dvida se trata de uma coleo que nasce e crescer sob influncia da pluralidade e da diversidade que esto na raiz de nossa instituio.

    Entre tantos significados, a coleo Pensamento estratgico, planejamento governamental & desenvolvimento no Brasil contemporneo vem a pblico em momento mais que oportuno. Do ponto de vista do Ipea, sendo um rgo de Estado no diretamente vinculado a nenhum setor ou rea especfica de governo, goza ele de um privilgio e de um dever. O privilgio de poder se estruturar organizacionalmente e de trabalhar de modo no estritamente setorial; e o dever de considerar e incorporar tantas reas e dimenses de anlise quantas lhe forem possveis para uma compreenso mais qualificada dos complexos e intrincados problemas e processos de polticas pblicas.

    Por sua vez, do ponto de vista do pensamento estratgico nacional, dos problemas ainda por serem enfrentados no campo do planejamento governamental, e do ponto de vista do sentido mais geral do desenvolvimento brasileiro, a que faro referncia os ttulos desta importante coleo, podemos dizer que ela encarna e resume os dilemas e os desafios de nossa poca.

    Em poucas palavras, fala-se aqui de um sentido de desenvolvimento que compreende, basicamente, as seguintes dimenses: i) insero internacional soberana; ii) macroeconomia para o desenvolvimento: crescimento, estabilidade e emprego; iii) infraestrutura econmica, social e urbana; iv) estrutura tecnoprodutiva avanada e regionalmente integrada; v) sustentabilidade ambiental; vi) proteo social, garantia de direitos e gerao de oportunidades; e vii) fortalecimento do Estado, das instituies e da democracia.

    Nesse sentido, dotado desse mais elevado esprito pblico, conclamamos os colegas ipeanos e a cidadania ativa do pas a participarem deste empreendimento cvico, dando voz e concretude aos nossos reclamos mais profundos por um Brasil melhor.

  • 1LIVRO

    PENSAMENTO ESTRATGICO, PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL & DESENVOLVIMENTO

    NO BRASIL CONTEMPORNEO

    PLANEJAMENTO E AVALIAO DE POLTICAS PBLICAS

    OrganizadoresJos Celso Cardoso Jr.Alexandre dos Santos Cunha

  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Roberto Mangabeira Unger

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibi l iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteSergei Suarez Dillon Soares

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalLuiz Cezar Loureiro de Azeredo

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaDaniel Ricardo de Castro Cerqueira

    Diretor de Estudos e PolticasMacroeconmicasCludio Hamilton Matos dos Santos

    Diretor de Estudos e Polticas Regionais,Urbanas e AmbientaisRogrio Boueri Miranda

    Diretora de Estudos e Polticas Setoriaisde Inovao, Regulao e InfraestruturaFernanda De Negri

    Diretor de Estudos e Polticas Sociais, SubstitutoCarlos Henrique Leite Corseuil

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicas e Polticas InternacionaisRenato Coelho Baumann das Neves

    Chefe de GabineteRuy Silva Pessoa

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoJoo Cludio Garcia Rodrigues Lima

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

  • 1LIVRO

    PENSAMENTO ESTRATGICO, PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL & DESENVOLVIMENTO

    NO BRASIL CONTEMPORNEO

    OrganizadoresJos Celso Cardoso Jr.Alexandre dos Santos Cunha Braslia, 2015

    PLANEJAMENTO E AVALIAO DE POLTICAS PBLICAS

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2015

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    Planejamento e avaliao de polticas pblicas / organizadores: Jos Celso Cardoso Jr., Alexandre dos Santos Cunha. Braslia : Ipea, 2015. 475 p. : il. color. (Pensamento Estratgico , Planejamento Governamental & Desenvolvimento no Brasil Contemporneo ; Livro 1) Inclui bibliografia. Publicao dedicada em memria de Divonzir Arthur Gusso (1941-2014). ISBN 978-85-7811-245-5

    1. Planejamento Econmico. 2. Planos Plurianuais. 3. Polticas Pblicas. 4. Avaliao . I Cardoso Jr., Jos Celso. II. Cunha, Alexandre dos Santos. III. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 338.981

  • Em memria de Divonzir Arthur Gusso (1941-2014)

  • SUMRIO

    APRESENTAO .................................................................................9

    INTRODUO ...................................................................................11

    PARTE IPLANEJAMENTO & PPA ..............................................................................15

    CAPTULO 1A REORGANIZAO DO PROCESSO DE PLANEJAMENTO DO GOVERNO FEDERAL: O PPA 2000-2003 ......................................................................17Ronaldo Coutinho Garcia

    CAPTULO 2PPA: O QUE NO E O QUE PODE SER ......................................................55Ronaldo Coutinho Garcia

    CAPTULO 3SUBSDIOS PARA REPENSAR O SISTEMA FEDERAL DE PLANEJAMENTO ......81Ronaldo Coutinho GarciaJos Celso Cardoso Jr.

    PARTE IIPLANEJAMENTO & DESENVOLVIMENTO ...................................................107

    CAPTULO 4INIQUIDADE SOCIAL NO BRASIL: UMA APROXIMAO E UMA TENTATIVA DE DIMENSIONAMENTO ........................................................109Ronaldo Coutinho Garcia

    CAPTULO 5DESPESAS CORRENTES DA UNIO: VISES, OMISSES E OPES ............147Ronaldo Coutinho Garcia

    CAPTULO 6ALGUNS DESAFIOS AO DESENVOLVIMENTO DO BRASIL ............................183Ronaldo Coutinho Garcia

  • PARTE IIIMONITORAMENTO & AVALIAO DE POLTICAS PBLICAS ......................233

    CAPTULO 7SUBSDIOS PARA ORGANIZAR AVALIAES DA AO GOVERNAMENTAL ...235Ronaldo Coutinho Garcia

    CAPTULO 8COMO ELABORAR MODELO LGICO: ROTEIRO PARA FORMULAR PROGRAMAS E ORGANIZAR AVALIAO .................................................297Martha Cassiolato Simone Gueresi

    CAPTULO 9UMA EXPERINCIA DE DESENVOLVIMENTO METODOLGICO PARA AVALIAO DE PROGRAMAS: O MODELO LGICO DO PROGRAMA SEGUNDO TEMPO ....................................................................................333Helder FerreiraMartha CassiolatoRoberto Gonzalez

    CAPTULO 10METODOLOGIA DE AVALIAO DE RESULTADOS: O CASO DAS INTERVENES DO PAC URBANIZAO DE FAVELAS ...............................377Renato BalbimCleandro KrauseMaria Fernanda BeckerVicente Correia Lima NetoMartha CassiolatoCarla Coelho de Andrade

    CAPTULO 11PRONATEC: MLTIPLOS ARRANJOS E AES PARA AMPLIAR O ACESSO EDUCAO PROFISSIONAL ..................................................425Martha CassiolatoRonaldo Coutinho Garcia

    NOTAS BIOGRFICAS............................................................................475

  • APRESENTAO

    Neste momento do pensamento e desenvolvimento nacionais, nada mais em-blemtico que dar materialidade e significado a esta coleo rica em estudos e proposies de colegas da Casa, assim como de servidores pblicos vinculados a inmeras organizaes, acadmicos e pesquisadores nacionais e estrangeiros. Sem dvida, trata-se de uma coleo que nasce e crescer sob influncia da pluralidade e da diversidade que esto na raiz mesma de nosso instituto.

    evidente que esse imenso reservatrio positivo de diversidades geogrfica e social, acadmica e poltica, tcnica e profissional , num regime republicano e democrtico como o que se vai lentamente configurando no Brasil, apenas se faz possvel por meio das contribuies pessoais e respectivas trajetrias profissionais de seus servidores, tanto do passado como do presente. Este conjunto transforma-se, de modo contnuo, coletivo e cumulativo, no principal ativo institucional do Ipea neste momento de balano crtico de suas atividades e das de seus servidores.

    Entre tantos significados, a coleo Pensamento Estratgico, Planejamento Governamental & Desenvolvimento no Brasil Contemporneo vem a pblico em momento mais que oportuno.

    O Ipea, enquanto rgo de Estado no diretamente vinculado a setor ou rea especfica de governo como o so, por exemplo, o Inep para a educao, a Fiocruz para a sade, a Fundacentro para o trabalho, a Embrapa para a agricultura etc. , goza de um privilgio e de um dever, diretamente refletidos nesta obra. O privilgio de poder se estruturar organizacionalmente e trabalhar de modo no estritamente setorial; e o dever de considerar e incorporar tantas reas e dimenses de anlise quantas forem possveis para uma compreenso mais qualificada dos complexos e intrincados problemas e processos de polticas pblicas.

    Por sua vez, do ponto de vista do pensamento estratgico nacional e dos pro-blemas ainda por serem enfrentados no campo do planejamento governamental, a que faro referncia seus ttulos, esta importante coleo encarna e resume os dilemas e desafios de nossa poca. Embora no esgote o conjunto de atributos desejveis de um ideal amplo de desenvolvimento para o pas, a coleo tentar dar conta de parte substancial do que necessrio para se viabilizarem nveis simultneos e satisfatrios de soberania externa, incluso social pelo trabalho qualificado e qualificante, produtividade sistmica elevada e regionalmente bem distribuda, sustentabilidade ambiental e humana, equidade social, democracia civil e poltica ampla e qualificada.

  • 10 | Planejamento e Avaliao de Polticas Pblicas

    Nesse sentido, dotado desse mais elevado esprito pblico, conclamamos os colegas ipeanos e a cidadania ativa do pas a participarem deste empreendimento cvico, dando voz e concretude aos nossos reclamos mais profundos por um Brasil melhor.

    Sergei Suarez Dillon SoaresPresidente do Instituto de Pesquisa

    Econmica Aplicada (Ipea)

  • INTRODUO

    com honra e alegria imensas que trazemos este livro a pblico. No obstante todos os seus captulos j terem sido publicados isoladamente, inegvel o carter de atualidade e vanguarda que, juntos, representam. So vrios os significados da decorrentes.

    Em primeiro lugar, trata-se de justa homenagem a dois dos mais engajados e abnegados tcnicos do Ipea, que nos vrios anos de servios prestados pesquisa aplicada, ao planejamento e assessoramento governamental, e ao monitoramento e avaliao de polticas pblicas, souberam honrar a natureza precpua da instituio e engrandecer o estoque de conhecimentos socialmente teis disposio dos governos brasileiros e da prpria sociedade.

    Em segundo lugar, pelos contedos certeiros, coerncia interna e esprito pblico das diversas proposies e recomendaes presentes nos (ou derivadas dos) captulos aqui reunidos, conclui-se que no poderia haver melhor e mais adequada obra abertura desta coleo cujos motes centrais esto expressos em seu ttulo: Pensamento Estratgico, Planejamento Governamental & Desenvolvimento no Brasil Contemporneo.

    O chamamento geral a que se refere a coleo guarda, portanto, a mais completa relao com todos e cada um dos captulos aqui republicados de Ronaldo Garcia e Martha Cassiolato. Embora no corresponda a resultado de uma busca exaustiva, acreditamos ter aqui reunido alguns dos principais trabalhos de ambos os colegas, os quais perpassam as temticas que organizam cada uma das trs partes do livro, a saber: i) planejamento e planos plurianuais (PPAs); ii) planejamento e desenvolvimento; e iii) monitoramento e avaliao de polticas pblicas.

    A primeira parte, sobre planejamento e PPAs, congrega alguns dos artigos j clssicos e de leitura obrigatria de Ronaldo Garcia sobre o assunto. Focados nos processos tecnopolticos de formulao estratgica e elaborao dos planos plurianuais (PPA) das duas primeiras dcadas do sculo XXI, isto , do PPA 2000-2003 ao PPA 2016-2019, fornece argumentos crticos e propositivos relativos ao imenso desafio e dificuldades que os sucessivos governos tm demonstrado para conferir e garantir centralidade institucional e viabilidade prtica a este importante porm negligenciado instrumento de planificao das polticas, programas e aes de governo, mormente de mbito federal.

  • 12 | Planejamento e Avaliao de Polticas Pblicas

    A segunda parte do livro, que tem por objeto planejamento e desenvolvimento, volta-se, por sua vez, a estudos assinados por Ronaldo sobre a questo social brasileira, as finanas pblicas federais e o prprio sentido e amplitude do desenvolvimento nacional. Ele demonstra conhecimento profundo e preocupao tica, ambos sempre marcantes em toda a sua produo ipeana, diante de temas to diversos quanto complexos acerca da realidade nacional. Sem exagero, talvez seja possvel afirmar, por meio dos trs captulos que compem esta parte do livro, que Ronaldo Garcia consegue desenvolver e aplicar um mtodo prprio de investigao e anlise, por meio do qual cumpre a proeza rara de combinar elementos de pesquisa aplicada, planejamento/assessoramento governamental e monitoramento/avaliao de polticas pblicas, tudo em cada um dos textos a servio da nao.

    Por fim, mas no menos importante, a terceira parte do livro incorpora algumas contribuies expressivas de Martha Cassiolato e colegas ao amplo e complexo mundo do monitoramento e avaliao das aes governamentais. Sempre interessada em temas e abordagens de construo coletiva e aplicao prtica, sem dvida de Martha (e seus parceiros nos trabalhos que assina) que o Ipea e tantas outras instncias de governo figura como devedor no que se refere ao desenvolvimento e aplicao de metodologias inovadoras para avaliar e pensar as polticas pblicas, respeitadas a natureza do Estado no Brasil e as especificidades da nossa construo governamental ao longo do tempo.

    Neste diapaso, especial destaque deve ser conferido ao captulo intitulado Como elaborar modelo lgico: roteiro para formular programas e organizar avaliao. Explicitamente inspirado em Carlos Matus, importante economista chileno grandemente responsvel pela elaborao e difuso do mtodo de planejamento estratgico situacional (PES), o trabalho de Martha Cassiolato e Simone Gueresi consegue traduzir a concepo terica de Matus em um guia prtico e efetivo de modelagem para programas governamentais. Este guia tem forte perspectiva dinmica, j que pode ser entendido como um roteiro crvel para o desenho ou redesenho de programas e para a prpria ao governamental.

    Resumidamente, trata-se de modelagem calcada na delimitao de problemas objetivos, por meio de construo coletiva e participativa da teoria do problema etapa associada ideia de momento explicativo na teorizao de Matus , e na estruturao de aes de governo capazes de atacar as causas principais do problema identificado, por meio da construo da chamada teoria do programa etapa associada ideia de momento normativo na concepo original de Matus. Atravs de tais aes estruturadas, e por intermdio de monitoramento intensivo e correo de rumos ao longo do processo de implementao do programa, geram-se resultados (intermedirios e finais) que, agindo de forma contnua e cumulativa sobre as causas do problema principal, seriam ceteris paribus capazes ao longo do

  • INTRODUO | 13

    tempo de enfrentar as consequncias deletrias, como modificar a prpria natureza, perfil ou magnitude geral do problema. Em sntese, trata-se de poderosa ferramenta do planejamento governamental para apoio deciso estratgica, nos campos da formulao, implementao, monitoramento e avaliao das polticas e programas pblicos.

    Consoante o exposto, imperativo de nossa parte reconhecer as inestimveis contribuies de Ronaldo Garcia e Martha Cassiolato e seus colaboradores aos processos de produo e disseminao de relevantes conhecimentos para a melhoria efetiva do planejamento governamental e das polticas pblicas brasileiras. Da mesma maneira, cabe destacar suas contribuies ao prprio processo de construo e amadurecimento institucional do Ipea, pois, contra caractersticas hoje dominantes no setor pblico como o individualismo, a apatia ou mesmo a alienao intelectual, atitudes pouco condizentes com a tica pblica, sobressaem destes nossos amigos o esprito pblico, o discernimento crtico, a humildade intelectual e a postura institucional altiva e propositiva na construo do futuro.

    Por tudo isso, se com pesar lamentamos a aposentadoria formal dos compa-nheiros, com alegria e orgulho reconhecemos sua misso plenamente cumprida. E votos fazemos para que seus ensinamentos pessoais e profissionais possam servir de inspirao para as novas geraes de servidores, pesquisadores e planejadores do Ipea e do Brasil. A ambos, nossos mais sinceros e afetuosos agradecimentos.

    Colegas e amigos ipeanos de todos os tempos

  • Planejamento & PPAParte I

  • CAPTULO 1

    A REORGANIZAO DO PROCESSO DE PLANEJAMENTO DO GOVERNO FEDERAL: O PPA 2000-20031

    Ronaldo Coutinho Garcia

    1 INTRODUO

    Em outubro de 1998, o governo federal alterou, em profundidade, o marco conceitual e metodolgico para a elaborao e gesto do Plano Plurianual (PPA) e dos oramentos pblicos. Os projetos de lei do prximo PPA e dos oramentos para o exerccio fiscal de 2000 foram formulados de acordo com a nova orientao. As implicaes de tais mudanas so de diversas ordens e incidiro sobre os processos de trabalho, os modelos gerenciais, as estruturas organizacionais, os sistemas de informao e processamento, e os mecanismos de contabilidade e controle da administrao pblica brasileira. Exigiro esmerado monitoramento e permanente avaliao para que as mudanas no se restrinjam aos aspectos formais, mantendo intocados os contedos e as mesmas prticas antiquadas.

    A reflexo apresentada a seguir feita com o objetivo de contribuir para uma transformao que se julga necessria e cujo sentido promissor. O esforo ser o de, contextualizando o processo, olhar para detalhes que muitas vezes escapam aos condutores das mudanas, buscando identificar limites e possibilidades e oferecer, quando possvel, contribuies para o aprofundamento da mudana. Isso porque a nossa histria repleta de boas intenes que no se afirmam, de leis que no pegam e de reformas que no vingam, por serem esquecidos detalhes conceituais, processuais, culturais e outros, necessrios sua implementao.

    O ngulo de observao a partir do qual ser exercido o olhar referido o de quem se encontrava envolvido com as mesmas questes a moverem os que conceberam a mudana, com a diferena que com elas lidava na perspectiva da capacitao e assessoramento em planejamento estratgico pblico, oramento por programa e gesto por objetivos.2 Por fora do ofcio, estivemos dedicados a capacitar e a assessorar rgos do governo federal na montagem de programas setoriais e multissetoriais integrados no novo PPA e na elaborao das respectivas propostas oramentrias. com base nessa experincia, nos avanos constatados

    1. Originalmente publicado na coleo Textos para Discusso do Ipea, n. 726, em maio de 2000.2. No Centro de Treinamento para o Desenvolvimento Econmico e Social (Cendec) do Ipea, no qual compartilhava e discutia os detalhes dessas questes com Adroaldo Quintela Santos, Jos Valente Chaves e Martha Cassiolato, entre outros colegas do Ipea e do setor pblico.

  • Planejamento e Avaliao de Polticas Pblicas18 |

    e nas dificuldades e insuficincias encontradas que se organiza a presente reflexo, na expectativa de contribuir para aprofundar a transformao dos contedos e das prticas de planejamento e gesto governamentais.

    2 A INTENO

    Algum eventual leitor poder reclamar por este texto no se iniciar com uma pequena histria das teorias e prticas de planejamento governamental adotadas e desenvolvidas no Brasil nos ltimos cinquenta anos. Isso, no entanto, tomaria espao e tempo que, no momento, no esto disponveis, o que compromete a oportunidade, e extrapola os objetivos propostos. Existem, ademais, anlises que cobrem muitos aspectos interessantes dessa histria.3

    Aqui, tomado como ponto de partida o ano de 1988, quando a nova Constituio Federal, em seu Artigo 165, cria o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Oramentrias (LDO) e unifica os oramentos anuais (fiscal, seguridade social e de investimento das estatais) no Oramento Geral da Unio (OGU).

    A lei que instituir o Plano Plurianual estabelecer, de forma regionalizada, as diretrizes, os objetivos e metas da administrao pblica federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de natureza continuada(Artigo 165, 1o). O PPA concebido para abranger o lapso de tempo que vai do segundo ano de um mandato presidencial ao primeiro ano do mandato subsequente (Artigo 35 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias). A LDO delineada para fazer a articulao e o ajustamento conjuntural do PPA com o oramento. Diz o texto constitucional:

    A lei de diretrizes oramentrias compreender as metas e prioridades da administrao pblica federal, incluindo as despesas de capital para o exerccio financeiro subsequente, orientar a elaborao da lei oramentria anual, dispor sobre as alteraes na legislao tributria e estabelecer a poltica de aplicao das agncias financeiras oficiais de fomento (Artigo 165, 2o).

    As LDO e os oramentos anuais tm de ser compatveis com o que dispe o PPA, bem como todos os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituio ou quaisquer outros institudos durante um perodo de governo. Nenhum investimento cuja execuo ultrapassar um exerccio financeiro poder ser iniciado sem prvia incluso no PPA ou sem lei que autorize tal incluso, sob pena de crime de responsabilidade. As emendas parlamentares LDO e ao oramento somente sero apreciadas pela comisso mista pertinente do Congresso Nacional se compatveis com a lei do PPA (Artigos 165, 166 e 167 da Constituio Federal). Ou seja, o PPA concebido com um evidente carter coordenador das aes

    3. Como, por exemplo, Teixeira (1997); Fiori (1995); Campos (1994, cap. 5, 6, 9, 10 e 11); Furtado (1998); Reis Velloso (1986, cap. 16 e 17); e Matos (1988).

  • A Reorganizao do Processo de Planejamento do Governo Federal: o PPA 2000-2003

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    governamentais e com o poder de subordinar a seus propsitos todas as iniciativas que no tenham sido inicialmente previstas.

    Os constituintes buscam criar um instrumento que explicite as intenes do governo, d coerncia s aes ao longo do tempo e organize consistentemente as intervenes parlamentares nos oramentos. tambm evidente a preocupao em criarem-se condies para o exerccio regular da avaliao e do controle das aes e, em particular, das despesas pblicas. O Artigo 74, I e II da Constituio Federal determina que os Poderes Legislativo, Executivo e Judicirio mantero, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de avaliar o cumpri-mento das metas previstas no PPA e a execuo dos programas de governo e dos oramentos da Unio. Exige, ademais, a comprovao da legalidade e a avaliao dos resultados quanto eficcia e eficincia da gesto oramentria, financeira e patrimonial dos rgos e entidades da administrao federal, bem como da aplicao de recursos pblicos por entidades de direito privado. Tal processo culminaria com o Congresso Nacional exercendo sua competncia exclusiva de, a cada ano, julgar as contas prestadas pelo presidente da Repblica e apreciar os relatrios sobre a execuo dos planos de governo (Artigo 49, IX, da Constituio Federal).

    Esse conjunto de instrumentos e de determinaes tem seu sentido melhor apreendido se remetido ao contexto no qual foi produzido. A Assembleia Constituinte, instalada em fevereiro de 1987, concluiu seus trabalhos em 05 de outubro de 1988. O regime militar teve seu fim formal em 15 de maro de 1985, quando assumiu o primeiro presidente da Repblica civil em mais de vinte anos. Durante o regime militar, o Congresso Nacional teve seus poderes bastante reduzidos. Os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) no eram apreciados pelos parlamentares e os oramentos o eram apenas ritualmente, pois no se podia emend-los na substncia. O mesmo fato tambm ocorria na prestao de contas do Poder Executivo pelo Legislativo.

    No de se estranhar, portanto, que os constituintes exijam que o Executivo informe suas prioridades, estipule objetivos com clareza, detalhe suas intenes de investimentos e no submeta o Parlamento poltica de pacotes, principalmente os de natureza tributria, que a cada final de ano apareciam para fazer frente s interminveis crises de financiamento do gasto pblico.4

    H de ser lembrado que se vivia sob inflao alta e ascendente, que retirava com rapidez o valor de compra das dotaes oramentrias. Os excessos nominais de arrecadao conformavam outros oramentos sobre os quais os parlamentares no tinham ingerncia alguma. Acrescente-se que a democratizao havia trazido tona grande nmero de demandas sociais, muitas delas canalizadas para o Congresso Nacional, o qual, por sua vez, buscava inscrev-las nos planos, programas

    4. Ver definio de LDO adiante.

  • Planejamento e Avaliao de Polticas Pblicas20 |

    e oramentos do governo. Da a necessidade da explicitao de objetivos, metas e recursos comprometidos e o desejo de consistncia entre inteno e gesto, manifestados pelos constituintes quando votaram as matrias referentes ao planejamento, oramento, controle e avaliao das aes governamentais.

    Deve ser recordado, tambm, que o ambiente poltico poca da Constituinte era algo conturbado e a institucionalidade do planejamento pblico encontrava-se em visvel deteriorao. A crise do regime autoritrio se prolongara por quase uma dcada, devido: i) ao acelerado esgotamento do modelo de financiamento (interno e externo) do investimento pblico e do privado; ii) concluso do processo de substituio de importaes, sem que se afirmasse um outro padro de acumulao sob a vigncia da chamada revoluo tecnolgica; iii) perda de legitimidade dos dirigentes polticos militares; iv) ao crescimento das presses pr-democracia; e v) insuficincia do planejamento normativo e economicista praticado pelos governos.

    O planejamento normativo foi relativamente eficaz em lidar com uma sociedade menos complexa, social e politicamente contida pelo autoritarismo vigente, e conduziu um projeto de modernizao conservadora da economia nacional, orientado para levar o pas a concluir a 2 Revoluo Industrial, sem contudo construir um grande e mais homogneo mercado de massa. O planejamento normativo ganha grande expresso com os Planos Nacionais de Desenvolvimento Econmico, mas j era praticado no PAEG, no Plano Decenal, no Programa Estratgico de Desenvolvimento, no Metas e Bases para a Ao do Governo, anteriores ao ciclo dos PNDs (I, II, III e I PND da Nova Repblica). O vis economicista se manifestava ao se considerar o planejamento apenas como uma tcnica para racionalizar a aplicao exclusiva de recursos econmicos, entendidos como os nicos utilizados no processo de governar. So ignorados os recursos polticos, organizacionais, de conhecimento e informao, entre todos os outros necessrios conduo de uma sociedade multidimensional, mas una. Dessa forma, o reducionismo imps-se, inapelavelmente.

    Os vinte anos (1964-1984) de autoritarismo e economicismo deixam marcas profundas, que influenciam fortemente as vises sobre o tema por parte de intelectuais, tcnicos e polticos. A Constituinte, ao trabalhar em ambiente de forte crise econmica e desequilbrio das finanas pblicas nacionais e sob presso de reivindicaes populares antes reprimidas, no consegue superar a concepo normativa e reducionista do planejamento governamental herdada dos militares e seus tecnocratas. Tal dificuldade revelada no s pelo contedo dos artigos da Constituio Federal (Artigos 165, 166 e 167, principalmente) mas at mesmo pela localizao do assunto na estrutura que organiza o texto constitucional. Os artigos referidos integram o Ttulo VI Da Tributao e do Oramento, Captulo II Das Finanas Pblicas, Seo II Dos Oramentos. Ou seja, mesmo com a democratizao

  • A Reorganizao do Processo de Planejamento do Governo Federal: o PPA 2000-2003

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    do pas; com a poltica a ganhar espao e importncia, com a multiplicao dos atores sociais; com o ritmo de produo e difuso das inovaes tecnolgicas acelerando-se; com o conhecimento e a informao conquistando relevncia; com a comunicao ascendendo condio de recurso de poder e integrao; e com a clara percepo de que se ingressara em uma poca de rpida mudana de valores culturais; ainda assim, o planejamento governamental foi concebido sob um enfoque normativo e economicista. Ignorou-se a nova e muito mais complexa realidade poltica, social, cultural e econmica. No foram considerados os avanos do conhecimento sobre os processos de governo nem as teorias e prticas de planejamento pblico moderno que buscam integrar as dimenses e os recursos polticos, econmicos, cognitivos, organizativos e outros em uma perspectiva estratgica.

    poca j se dispunha de considervel evoluo terica e metodolgica na rea das cincias e tcnicas de governo e, principalmente, de experincias inovadoras e bem-sucedidas de planejamento estratgico governamental que poderiam ter informado as formulaes dos constituintes. Nos pases desenvolvidos praticavam-se modalidades diversas de planejamento pblico como requisito necessrio conduo do governo em seu conjunto e no apenas como algo relativo organizao da aplicao de recursos econmicos.5 Todavia, nada disso foi contemplado quando das definies constitucionais sobre o planejamento governamental.

    3 A PRTICA: OS PPAs DOS ANOS 1990

    3.1 O primeiro PPA

    O primeiro PPA viria a ser elaborado pelo governo que ganhasse as eleies de 1989, ano seguinte promulgao da nova Constituio Federal, e deveria vigorar de 1991 a 1995. O candidato vitorioso, no dia de sua posse na Presidncia da Repblica, anunciou uma reforma da estrutura executiva e do sistema da direo do governo que primava pelo simplismo poltico-administrativo e pelo vis economicista. Para o que aqui interessa, destaca-se a fuso da Secretaria de Planejamento e Coordenao da Presidncia da Repblica (Seplan/PR) com o Ministrio da Fazenda e com o Ministrio da Indstria e Comrcio em um Ministrio da Economia, Fazenda e Planejamento (MEFP), e a reduo do Instituto de Planejamento Econmico Social (Ipea) condio de um Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada, vinculando-o no rea de planejamento do MEFP mas de poltica econmica.

    5. Ver, entre outros, Nelson (1985); Dror (1988); Plowden (1987); Matus (1987, cuja verso em portugus foi publicada pelo Ipea, em 1993, e se encontra na 3a edio).

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    Abrem-se aqui parnteses para, em um contraponto com o processo que deu origem ao sistema de planejamento vigente at 1990, permitir-se dimensionar o tamanho do retrocesso experimentado.

    O planejamento governamental no Brasil ganha formalizao e institucionalidade com o governo militar.6 Alm de o planejamento e a programao econmica estarem em voga com a difuso das propostas da Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal), os militares, por formao, valorizam o planejamento e a estratgia. A criao do Ministrio do Planejamento (Miniplan), com Roberto Campos frente, um marco histrico e poltico-administrativo. Junto, criado o Ipea (Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada), tendo como titular Joo Paulo dos Reis Velloso, para ser o brao tcnico-operacional do Miniplan.

    Em pouco tempo, os governantes se do conta de que o planejamento um processo que vai alm da elaborao de planos. Necessrio , tambm, supervisionar sua implementao no dia a dia. Ao Miniplan atribuda a misso de coordenar a execuo dos diversos programas e projetos setoriais que compem os planos (este passa a ser denominado Ministrio do Planejamento e Coordenao), e ao Ipea atribuda esta tarefa. Com rapidez, estar amadurecido o entendimento de que o planejamento um instrumento para a conduo das aes do governo, o que requer que o rgo responsvel saia da mesma linha hierrquica dos demais ministrios e seja deslocado para a rbita da prpria Presidncia da Repblica, quando ento criada a Secretaria de Planejamento e Coordenao da Presidncia da Repblica (Seplan/PR).

    Nessa mesma poca, o Ipea transformado em Instituto de Planejamento Econmico Social. Ao auge do autoritarismo estaro associados diversos intentos de legitimao social, o que talvez explique a guinada sofrida pelo Ipea, que tambm passa a lidar com as questes sociais e a contratar para seus quadros no mais apenas economistas, mas socilogos, antroplogos, gegrafos, educadores, urbanistas, agrnomos, sanitaristas, engenheiros de todas as especialidades, advogados, comunicadores sociais etc. O economicismo, no entanto, no ser superado: permanece a viso de que planejar racionalizar e otimizar a aplicao de recursos oramentrio-financeiros. O Ipea ganha uma estrutura de holding, cuja presidncia acumulada pelo secretrio geral (equivalente ao atual secretrio-executivo) da Seplan/PR. desdobrado em um Instituto de Planejamento (IPLAN), cabea do Sistema Nacional de Planejamento, cujo titular simultaneamente o da Secretaria de Planejamento (virtual) da Seplan/PR; em um Instituto de Oramento (INOR), e seu dirigente responde, tambm, pela Secretaria de Oramento Federal (igualmente

    6. Antes de 1964 tambm se planejava, claro, mas sem que houvesse estruturas tcnico-administrativas com a incumbncia institucional para tanto. Ver, por exemplo, os planos SALT, de Metas, Trienal (do ministro extraordinrio de Planejamento, Celso Furtado, do governo Joo Goulart).

  • A Reorganizao do Processo de Planejamento do Governo Federal: o PPA 2000-2003

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    virtual); em um Instituto de Pesquisa sediado no Rio de Janeiro; e o Centro de Treinamento para o Desenvolvimento Econmico e Social (Cendec), responsvel pela formao dos planejadores federais e estaduais.

    O funcionamento dessa estrutura organizacional se mostrou bastante eficaz, se se considerar a vigncia do regime autoritrio, o carter normativo de um planejamento com forte vis econmico e o insuficiente desenvolvimento terico-metodolgico do planejamento estratgico pblico. Tal sistema comea a se revelar insuficiente com o aumento da complexidade social, poltica e econmica que se evidencia a partir dos anos 1980. A transio democrtica (1985-1989), feita sem projeto claro e sob forte crise econmica, poltica, de valores e de modelos administrativos, deixou transparecer a necessidade de se avanar para formas superiores e mais complexas de planejamento governamental (Garcia e Barbosa, 1989).

    Fechando os longos parnteses, as mudanas conceituais e organizacionais introduzidas em 1990 fizeram o planejamento governamental voltar aos anos 1960.

    O grupo que ascendia ao poder era formado basicamente por pessoas sem experincia em administrao pblica e governamental: predominavam empresrios, acadmicos e amigos do presidente. A reforma administrativa, que inevitavelmente fazem os dirigentes que chegam sem ter ideia precisa do que mais importa, foi desorganizadora e paralisante, e destruiu o pouco que restava de capacidade de governo.7 A equipe que assumiu o MEFP era integrada por economistas acadmicos convictos do sublime poder do mercado e minimizadores da relevncia do Estado. Para eles, o planejamento consistia em um instrumento ultrapassado, com a poltica econmica respondendo pelo que de mais relevante podia fazer o governo.

    Nessas circunstncias, o PPA ser entendido como algo no muito diferente de um Oramento Plurianual de Investimento (OPI). O OPI era uma determinao da Lei no 4.320/1964, mantida pela Constituio de 1967 (Artigo 63) e regulamentada pela Lei Complementar no 3, de 7 de dezembro de 1967, que estipulava a elaborao de estimativas de investimentos para um prazo mnimo de trs anos. A ideia central do oramento plurianual de investimento no Brasil a de permitir a integrao plano-oramento, a partir da concepo de que os investimentos constituem a base para o desenvolvimento econmico e social, e compreendendo o plano de governo, o prprio OPI e o oramento anual (Teixeira Machado Jr., 1979, p. 32). O OPI cumpriu, no muito satisfatoriamente, esse papel durante pouco mais de uma dcada (de 1968 a incio dos anos 80), aps o que a escalada inflacionria retirou-lhe previsibilidade e capacidade orientadora.

    7. Alm da desestruturao de setores inteiros da administrao federal, essa reforma no deixou resultados perenes, quer em termos de cultura reformista, quer em termos de metodologias, tcnicas ou processos. Sequer um diagnstico consistente pode ser elaborado a partir de sua interveno, pois em nenhum momento o voluntarismo que a marcou permitiu que a abordagem do ambiente administrativo se desse de maneira cientfica (Santos, 1997).

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    O primeiro PPA foi desenhado como um OPI ampliado (em tempo e em tipos de despesa), sem estar suportado por um projeto de governo preciso para o qual fizesse a mediao com os oramentos anuais. Sua elaborao deu-se sob enorme improvisao, pois os responsveis por sua redao trabalhavam sem contato regular com os dirigentes mximos, que, por sua vez, apenas declaravam intenes vagas, anunciavam programas com nomes pomposos e sem substncia. Muitas palavras de ordem, sem indicao de como realiz-las na prtica.

    Dificilmente poderia ser diferente. O programa de campanha do candidato vencedor tinha sido dominado pelo marketing. Os contedos ou no existiam ou eram mascarados. Apelava-se diretamente massa despolitizada com chaves e imagens de fcil aceitao popular. A campanha eleitoral no havia sido utilizada para a discusso sincera dos problemas nacionais e de como enfrent-los. Ao chegar ao governo, no se buscou o concurso dos melhores quadros da tecnoburocracia; ao contrrio, os servidores pblicos foram culpados por todos os males do pas, colocados em disponibilidade, execrados. Por tudo isso, qualidade e propriedade no primeiro PPA no se fizeram mostrar.

    O plano apenas cumpriu as exigncias constitucionais. Foi apresentado ao Congresso Nacional e aprovado quase sem discusso e emendas. Publicado pelo Poder Executivo, recebeu bonita encadernao e galgou prateleiras para se empoeirar. No se tornou um orientador da ao governamental. No era atualizado, pois inexistia um sistema de acompanhamento da realidade que permitisse incorporar as mudanas havidas e a adequao das intervenes. A dissociao do PPA das verdadeiras intenes do governo ficou clara em pouco tempo. Ainda no primeiro semestre de 1992 foi iniciada uma reviso do plano, concluda com a aprovao da Lei no 8.446, de 21 de junho de 1992. Esta, no entanto, foi de pouca valia, dado que praticamente mesma poca tinha incio a abertura do processo de impeachment, terminado com o afastamento do presidente. O novo governo, ao final de julho de 1993, encaminhou ao Congresso Nacional mais um projeto de lei com proposta de nova reviso do PPA. Tal projeto acabou no sendo votado, o que levou a que adaptaes tpicas fossem sendo feitas at o trmino da vigncia do primeiro Plano Plurianual, alm de todo o conjunto de medidas que prepararam o lanamento do Plano Real: contingenciamentos oramentrios, criao do IPMF (atual CPMF) e do Fundo Social de Emergncia (atual FEF), entre outros.

    A ineficcia do primeiro PPA, seja apenas como um OPI avantajado, seja como organizador das iniciativas governamentais que buscavam enfrentar alguns problemas nacionais, ser evidenciada pelo relatrio Retrato do desperdcio no Brasil, da Comisso Temporria das Obras Inacabadas, do Senado Federal (Brasil, 1995). Motivada pela constatao da existncia de milhares de obras que foram iniciadas, absorveram grande soma de recursos e no esto cumprindo a sua

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    finalidade, a Comisso cadastrou 2.214 obras, onde foram aplicados mais de R$ 15,0 bilhes (...). O inventrio no completo, por insuficincia de informaes e falta de controle, e inclui somente obras cujo financiamento consta dos Oramentos Fiscal e da Seguridade, deixando de fora obras a cargo das empresas estatais, a despeito das vultosas somas nelas despendidas, como, por exemplo, nas Usinas Nucleares (op. cit., 1995, 7 e 14).

    A tabela 1, apresentada a seguir, foi construda mediante a tabulao dos dados constantes do Retrato do desperdcio no Brasil (op. cit., 1995). Cerca de 10% das obras no possuam datas de incio e de paralizao, motivo pelo qual no foram includas. A periodizao adotada procura destacar o perodo coberto pelo primeiro PPA. As informaes so referentes a investimentos (obras) que, por exigncia constitucional, devem necessariamente constar do PPA, constituindo um razovel indicador da qualidade da programao e da competncia da gesto.

    TABELA 1 Obras inacabadas

    Perodo No (%)

    Iniciadas e paralizadas antes de 1990 107 5,4

    Iniciadas antes de 1990 e paralisadas at nov./1995 222 11,3

    Iniciadas e paralisadas entre 1990 e nov./1995 1.643 83,3

    Total 1.972 100,0

    Fonte: Brasil (1995).Elaborao do autor.

    possvel constatar que a quase totalidade (94,6%) dos investimentos foi paralisada durante o perodo do plano. Alm disso, a grande maioria das obras paralisadas tambm foi iniciada no mesmo intervalo de tempo. Os recursos totais para a concluso das obras estimado, pela comisso do Senado, como no mnimo igual ao aplicado at a data do relatrio; cerca de R$ 15 bilhes (em valores de nov./1995). De fato, trata-se de um retrato do desperdcio, revelador tambm da pobreza das prticas de planejamento, programao e gesto utilizadas.

    3.2 O segundo PPA

    O segundo PPA, sob a responsabilidade do governo empossado em 1o de janeiro de 1995, cobriria o quadrinio 1996-1999. A nova administrao era liderada por um presidente com vasto currculo acadmico em cincias polticas e larga experincia parlamentar, que havia sido ministro das Relaes Exteriores e da Fazenda. O ministrio contava com polticos experientes, acadmicos de expresso, tecnobu-rocratas competentes e alguns poucos empresrios. A Pasta de Planejamento tinha como titular um economista de renome, ex-secretrio de Planejamento do Estado de So Paulo e liderana poltica reconhecida em trs mandatos parlamentares.

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    A administrao anterior, ps-impeachment, havia recriado a Secretaria do Planejamento e Coordenao da Presidncia da Repblica (Seplan/PR), mas sem dot-la dos recursos e instrumentos necessrios ao cumprimento das tarefas implcitas no nome do rgo. A reforma administrativa que inaugura a gesto 1995/1998 transforma a Seplan/PR em Ministrio do Planejamento e Oramento, na mesma linha hierrquica dos demais, em uma clara afirmao do vis econmico/fiscalista por destacar o oramento como se no fosse parte integrante do planejamento. Esse ltimo assim reduzido condio de, prioritariamente, cuidar para que a execuo oramentria no comprometesse as metas fiscais necessrias consolidao do real. Algo sem dvida necessrio, mas que no esgota as possibilidades contidas no planejamento pblico como instrumento imprescindvel ao processo de governar.

    Na mensagem ao Congresso, encaminhando o PPA 1996/1999: investir para crescer, afirma-se que o plano estabelece princpios para o planejamento econmico, norteia os agentes econmicos, sinaliza as oportunidades de inverses, tornando-se importante instrumento de planejamento no somente do governo, mas tambm da iniciativa privada (Brasil. MPO/SPA, 1995, p. 11). Para tanto, anuncia trs estratgias (construo de um Estado moderno e eficiente; reduo dos desequilbrios espaciais e sociais; insero competitiva e modernizao produtiva), que mais se aproximam de desejos, por no qualificarem os contedos das aes que deviam realiz-las, e arrola as aes e os projetos que possuem expresso oramentria, explicitando os investimentos requeridos para alcanar os objetivos e as metas pretendidos, tidos como viveis (op. cit., p. 12).

    O PPA 1996/1999, apesar de introduzido por um discurso mais ambicioso, no consegue ultrapassar a natureza ltima de um OPI. Quando busca faz-lo, pela abrangncia dos assuntos do texto de apresentao, no destaca aes, instrumentos de poltica, mecanismos de coordenao e atualizao, sistemas de direo estratgica, entre outros, que pudessem conformar algo mais. Alcana, quando muito, o carter de um plano econmico normativo de mdio prazo. Isso se evidencia no captulo que deveria apresentar os cenrios possveis para a execuo do plano, indicadores das diferentes dificuldades, dos distintos esforos, dos custos a se incorrer em cada um deles, dos alcances possveis das diversas metas em cenrios mais favorveis ou desfavorveis. Mas no isso o que se v. O captulo intitula-se Cenrio Macroeconmico e, como tal, trabalha com um s futuro, como se o mesmo pudesse ser escolhido e apenas com variveis econmicas, como se elas fossem decisivas para promover reformas constitucionais (que demandam recursos polticos) e construir um Estado moderno e eficiente (exigente em recursos polticos, de conhecimento e organizativos, por exemplo). O resultado de tal precariedade pode ser vislumbrado ao se cotejar o futuro desejado pelo PPA para 1999 com a realidade que acaba por se impor. As diferenas encontradas na tabela 2, a seguir, indicam, quando nada, a necessidade de se dispor de cenrios alternativos que permitam ajustes mais rpidos nas aes previstas no plano, como forma de mant-lo vigente diante das transformaes da realidade que nunca so completamente previsveis, mas que sempre acontecem.

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    TABELA 2Cenrio nico e estimativas recentes (1999)

    Variveis selecionadas 1999 Cenrio PPA1 1999 (em estimativas recentes)2

    Crescimento do PIB (%) 5,0 -1,0 a 0,0

    Neces. financ. do setor pblico (% PIB) 0,0 15,5

    Dvida pblica (% PIB) 15,8 51,0

    Deficit conta corrente (US$ bilhes correntes) 18,1 25,0 a 27,0

    Renda per capita (R$ de1998) 6.195,0 5.317,0

    Elaborao: CGFP/Ipea.Notas: 1PPA 1996/1999.

    2BC.

    O segundo PPA foi confeccionado tendo como referncia bsica para o seu discurso o programa de campanha do candidato vencedor das eleies de 1994. Todavia, sua elaborao no consegue corporificar, em projetos e atividades ora-mentrias, as intenes do novo governo. Isso se deu basicamente por conta de a organizao dos trabalhos de preparao do plano ter sido relegada aos escales tcnicos, com baixo ou quase nenhum envolvimento dos dirigentes polticos. A ttulo de ilustrao, em abril de 1995, o responsvel por uma coordenao-geral, subordinada a uma diretoria da Secretaria de Planejamento e Avaliao do MPO, convocou diversos tcnicos do Ipea e da SAE (Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica) para que formulassem a estratgia do plano e apontassem as principais questes a serem trabalhadas. Solicitou que pensassem com a cabea do presidente, como se algum conseguisse pensar com outra cabea que no a sua prpria.

    A metodologia de elaborao do Plano Plurianual para o perodo 1996-1999 incorporou prioridades definidas a partir de uma viso intersetorial do pas. A programao dos dispndios foi precedida por amplo processo de discusso no mbito do governo federal (...). Esse trabalho foi desenvolvido nos meses de maio e junho, envolvendo quatorze Comits Temticos compostos por tcnicos das reas de planejamento dos ministrios setoriais (MPO/SPA, 1995, p. 49).

    Governar significa, principalmente, enfrentar problemas e aproveitar oportunidades. Um plano organiza sequncias estratgicas de aes para atacar problemas selecionados (segundo avaliaes de pertinncia e viabilidade, sob mltiplas perspectivas) e enseja, em simultneo, a preparao para lidar com surpresas e oportunidades. Os dirigentes polticos declaram problemas e respondem pelas aes. Os problemas importantes raramente se restringem aos setores nos quais est organizada a administrao pblica. Comits Temticos, compostos por especialistas setoriais, algo que pode ser adequado discusso acadmica ou tcnica mas no anlise de problemas complexos e definio de linhas polticas de ao. Ademais, as aes concretas envolvem mltiplos recursos (oramentrio-financeiros, polticos, de conhecimento e informao, organizativos etc.) e no apenas uma programao

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    de dispndios. O reducionismo conceitual e o distanciamento dos altos dirigentes fez do segundo PPA mais um documento formal, um simples cumprimento de determinaes constitucionais. De novo, o plano no ser um guia para a ao, mas to somente um OPI expandido, acompanhado de um texto bem elaborado, revelador de uma realidade mais complexa, mas sem articulao consistente com os projetos e aes que, ao final, acabam por no acontecer plenamente, mesmo se repensados e redimensionados a cada exerccio financeiro (oramentos anuais). Em grande medida, isso decorre da inexistncia de sistemas de monitoramento e avaliao que permitam decises seguras e direcionadas para a conduo do governo no dia a dia. Ou seja, falta a prtica de planejamento, mais alm da elaborao de planos e oramentos, enquanto instrumento de direo estratgica pblica.

    A precariedade do PPA, at mesmo enquanto definidor de prioridades e balizador da intensidade com que devem ser implementados projetos e atividades contidos nos oramentos anuais, pode ser visualizada na tabela 3.

    TABELA 3Execuo oramentrio-financeira, por subprogramas (1996-1998)

    Exerccio fiscal Nmero de subprogramas Grau de execuo1

    Menos de 50% Entre 50% e 90% Mais de 90%

    No (%) No (%) No (%)

    1996 152 49 32,2 71 46,7 32 21,1

    1997 144 38 26,4 84 58,3 22 15,3

    1998 142 20 14,1 87 61,3 35 24,6

    Fonte: STN/Siafi.Elaborao do autor.Nota: 1Relao entre empenho liquidado e despesa autorizada (dotao inicial mais crditos adicionais e remanejamentos).

    Os resultados alcanados em termos da execuo anual das aes constantes do PPA devem ser avaliados tendo-se como pano de fundo um contexto marcado por forte conteno de despesas, decorrentes da busca do ajuste fiscal, o que conduziu a dotaes oramentrias globais cadentes em termos reais, exceo do exerccio de 1997, que conheceu um pequeno incremento com respeito ao ano anterior. Era de se esperar, portanto, um grande empenho em executarem-se integralmente os projetos e atividades programados, no pressuposto de que expressassem as prio-ridades do PPA e, estas, as do governo. Mas no o que se v. Nos trs primeiros anos do plano, a mdia de execuo global dos oramentos anuais foi de 84,8% (82,2% em 1996; 81,7% em 1997; e 90,5% em 1998)8 (Brasil. STN/Siafi, 1999). Em mdia, tambm, apenas 20% dos programas atingem mais de 90% de execuo financeira, e no foi possvel averiguar se, em termos de execuo fsica, foi alcanado

    8. A taxa de execuo global igual a diviso do empenho liquidado pela dotao autorizada.

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    o mesmo desempenho. Provavelmente no, devido aos sistemticos atrasos nas liberaes dos recursos financeiros. Este um resultado muito modesto, que aponta a deficincia do enfoque e dos mtodos de planejamento e programao adotados. Em nada esses enfoques e mtodos se distinguiram dos praticados na elaborao e execuo do primeiro PPA, apesar de a equipe de governo responsvel pelo segundo Plano Plurianual ser intelectual, poltica e administrativamente mais capacitada e experiente, mas talvez desconhecedora dos avanos tericos e instrumentais acontecidos na rea do planejamento estratgico pblico.

    O no comprometimento da equipe dirigente do governo com o PPA 1996/1999 ficar melhor evidenciado em agosto de 1996 (apenas seis meses aps o plano ser sido aprovado), com o lanamento do Brasil em Ao. O programa selecionou 42 projetos (de fato, programas, projetos e atividades oramentrias) considerados prioritrios. Estes passam a ser executados segundo um novo modelo de gerenciamento, de natureza mais empresarial, que enfatiza a obteno de resultados, mediante o acompanhamento sistemtico e detalhado. Cada projeto passa a ter um gerente designado pelos ministros, que cuida da articulao entre os envolvidos na execuo e da obteno das metas previstas a cada perodo de tempo. Este informa ao Ministrio do Planejamento e Casa Civil o andamento dos projetos e as eventuais dificuldades. As liberaes financeiras para os projetos prioritrios ficariam, teoricamente, asseguradas, segundo os cronogramas de implementao e os desempenhos alcanados.

    Muitos dos projetos includos no Brasil em Ao contam com a participao do setor privado (principalmente em obras de infraestrutura) e,

    para permitir que a interao entre os vrios agentes pblicos e privados seja gil e fluente, desenhou-se o Sistema de Informaes Gerenciais do Brasil em Ao. Esse sistema permitir um acompanhamento compartilhado, com atualizao diria, de cada um dos projetos, em suas dimenses fsicas, financeiras e gerenciais. Esse acompanhamento oferece vantagens em termos da rapidez e qualidade do fluxo de informaes entre os agentes envolvidos, melhorando a capacidade sistemtica de antecipao de problemas e oferta pronta de solues (Brasil. MPO/SPA, 1996).

    Segundo a EM no 291/MPO, de 23 de outubro de 1996, o Programa Brasil em Ao visa, basicamente, melhorar a qualidade da gesto de projetos com a par-ticipao do setor pblico. Seus pontos fortes so: a seleo de projetos prioritrios, a criao da figura do gerente de projeto e a implantao do Sistema de Informaes Gerenciais. Todavia, tem enfrentado alguns problemas. O principal deles deriva da aplicao de um modelo de gesto empresarial sistemtica do trabalho de governo. Se o modelo empregado na gesto de projetos referentes a obras, tende a ser bem-sucedido, pois estas dispem de projetos tcnicos detalhados, quase sempre so executadas por empresas privadas que tm por tradio fazer monitoramento minucioso, com apurao de custos e cronograma bem fundamentado, entre outros.

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    O mesmo no ocorre com as atividades contnuas de governo (assistncia sade, fiscalizao, educao, pesquisas, combate s endemias, vigilncia sanitria etc.). Nestas, os processos no esto bem estruturados como nas obras, no se dispe de indicadores precisos e validados pela experincia, o nmero de variveis relevantes bem maior (muitas destas fora do controle do executor), e os atores sociais envolvidos podem no ter interesses convergentes. De tudo isso, os nveis de desempenho tm resultados diferentes no que se refere aos projetos e s atividades do Programa Brasil em Ao. Contudo, h espao para aperfeioarem-se os mecanismos e se conceberem mtodos e tcnicas mais apropriados gesto de aes governamentais. De qualquer forma, a criao do Brasil em Ao pode ser considerada um passo importante para reduzir-se o carter formal, normativo e pouco dinmico do planejamento pblico praticado, ao incorporar elementos para a gesto cotidiana do plano, o que implica a introduo de doses crescentes de pensamento estratgico e alguma viso situacional.

    4 UM TERCEIRO DIFERENTE: O PPA 2000-2003

    4.1 Antecedentes

    Os dois primeiros PPA foram elaborados sem que estivessem embasados por uma teoria e uma metodologia prprias de um conceito definidor de plano plurianual ou de uma modalidade de planejamento de mdio prazo. Era uma decorrncia da quase nenhuma importncia atribuda pelo Poder Executivo federal ao processo de planejamento governamental, pois a Constituio de 1988 determinava que uma lei complementar estabeleceria as normas para a vigncia, os prazos, a elaborao e a organizao do Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Oramentrias e da Lei Oramentria Anual(Artigo 165, 9o, 2).

    A iniciativa de se propor tal lei teria que ser, necessariamente, do Poder Executivo, conhecedor que dos detalhes tcnicos e operacionais envolvidos na elaborao de tais instrumentos, dos meandros da implementao de planos e oramentos, dos ajustes s dificuldades conjunturais e das surpresas previsveis ou no, que sempre ocorrem. No entanto, no foi o que se viu durante quase dez anos. Os projetos de lei sobre a matria PLC no 222/1990, PLC no 166/1993, PLC no 273/1995, PLC no 135/1996 e Substitutivo ao Projeto de Lei Complementar no 135/1996 foram de autoria de parlamentares, sempre com o estmulo e grande influncia da Associao Brasileira de Oramento Pblico (ABOP), que conta, entre seus principais lderes, com experientes planejadores governamentais.

    A inrcia do Poder Executivo foi quebrada somente em 14 de outubro de 1997, com a emisso da Portaria Interministerial no 270, que constituiu grupo de trabalho integrado por representantes dos Ministrios do Planejamento e Oramento

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    (SPA, SOF, Sest, Ipea, IBGE) e da Fazenda (STN, SFC, SRF, BC), do Tribunal de Contas da Unio, do Confaz, do Ibam, da ABOP e da Associao dos Profissionais em Finanas Pblicas. A misso do grupo de trabalho era a de, em sessenta dias, elaborar o projeto de lei complementar de que trata o Artigo 165, 9o da Constituio Federal, da perspectiva do Poder Executivo, mas considerando as formulaes e aportes dos projetos de lei e substitutivos originados no Parlamento.

    A demora do governo em se posicionar sobre o assunto tem mltiplas causas. O entendimento do planejamento pblico apenas como planejamento econmico uma delas, e esta atua mais fortemente quando a economia est dominada por preos em disparada. Com a inflao em nveis muitos altos torna at surrealista pensar a mdio e longo prazos. Todos percebem que a nuvem de poeira quente da inflao no permite enxergar a realidade e muito menos enfrent-la.9 O curioso que, mesmo sem enxergar a realidade, o governo obrigado a agir. Se seu nico olho o econmico, e est nublado, seu agir ser errtico, sem direo, ainda quando faa uso de outros recursos que no os econmicos ou quando atue em outros mbitos da realidade.

    Essa mesma viso tende a fazer o enfrentamento da crise fiscal, que acom-panha h longo tempo o pas, aumentando a receita pelo manejo detalhado dos tributos e contribuies, mas tratar a despesa pela via do contingenciamento global, do corte linear e da conteno das liberaes financeiras na boca do caixa. No se concebe a execuo do plano e dos oramentos como instrumentos de gesto estratgica; no so feitas anlises e avaliaes das polticas; no se trabalha com prioridades; e no se buscam a integrao e a convergncia das aes. Por isso, no se enxergou a necessidade de organizar o planejamento governamental, como determinava a Constituio.

    Entretanto, a persistncia das deficincias, as reiteradas comprovaes da limi-tao dos enfoques reducionistas, o acmulo de erros, o crescimento de insegurana na tomada de decises, o desconhecimento sobre os processos governamentais concretos acabam por levar a que mudanas fossem tentadas. A isso se props o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), ainda que sob os parmetros bastante restritivos impostos pela Constituio de 1988.

    O GTI, que concluiu seus trabalhos em 17 de dezembro de 1997, buscou integrar o planejamento com a programao oramentria, mediante o aperfei-oamento das definies e conceituaes das principais categorias programticas dos trs instrumentos: o PPA, a LDO e o OGU. As principais inovaes foram:10

    9. Artigo do ministro do Planejamento e Oramento para o nmero zero do informativo Visor Ipea, de maio de 1996.10. Ver Relatrio do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) incumbido de elaborar o projeto de lei de que trata o Artigo 165 da Constituio Federal, revista ABOP no 40, edio especial, Braslia, agosto de 1998.

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    o programa passou a ser a unidade bsica de organizao do PPA e o mdulo de integrao do plano com o oramento;

    foram excludas as categorias subprograma, subprojeto e subatividade;

    a consolidao da classificao funcional-programtica pelas trs esferas do governo passou a ocorrer exclusivamente por nvel de funo e subfuno, consideradas como categoria para a anlise de polticas;

    a classificao funcional-programtica, a partir de programas, passou a ser definida em cada esfera de governo quando da elaborao do respectivo plano plurianual, considerada como categoria de natureza gerencial, isto , instrumento de acompanhamento e avaliao da ao de governo;

    os programas passam a ser referidos, sempre, soluo de problemas preci-samente identificados, com seus produtos finais necessrios estabelecidos, com quantificao de metas e custos; teriam a execuo acompanhada e os resultados avaliados mediante indicadores especificamente construdos;

    os programas passaram a ser integrados por aes; os programas oramentrios foram desdobrados em projetos e atividades e a cada um deles corresponderia um produto, com sua respectiva meta; e

    a criao de operaes especiais, que no contribuiriam para a manuteno, expanso ou aperfeioamento das aes de governo e das quais no resultaria um produto (transferncias, servio da dvida etc).

    Pelas propostas do GTI o planejamento visto como um processo permanente que obedecer a princpios tcnicos e ter em vista o desenvolvimento econmico e social e a contnua melhoria das condies de vida da populao. O processo de planejamento compreender a elaborao de diagnstico da situao existente, identificando e selecionando problemas para o enfrentamento prioritrio. Sero formuladas estratgias e diretrizes e definidos objetivos a alcanar para cada um dos problemas selecionados, que sero atacados por conjuntos de aes organizadas em programas. Todos os programas indicaro os resultados pretendidos, e as aes que os integram tero metas e custos quantificados. Todos os programas tero sua execuo monitorada e com resultados avaliados; a avaliao de desempenho passar a ser critrio para a alocao de recursos oramentrios em anos seguintes.

    A mediao entre o PPA e o OGU passaria a ser feita pela LDO, que estabe-leceria prioridades, metas e custos para o exerccio subsequente, entre os programas constantes do PPA. uma simplificao apropriada com respeito prtica vigente de detalhar a programao em termos alocativos.

    Como instrumento de planejamento de curto prazo, a LDO estipularia os limites ora-mentrios dos Poderes Legislativo, Judicirio e do Ministrio Pblico, dispondo sobre as alteraes na legislao tributria e de contribuies e seus reflexos na Lei Oramentria

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    anual; autorizaria, especificamente, a concesso de cargos ou alterao de estrutura de carreiras e admisso de pessoal, a qualquer ttulo, ressalvadas as empresas pblicas e as sociedades de economia mista e estabeleceria a poltica de fomento das agncias financeiras oficiais (GTI, 1997, p. 150).

    No que se refere elaborao e execuo dos oramentos, o GTI tambm buscou a simplificao, eliminando categorias de programao (subprograma, subprojeto e subatividade), quadros e demonstrativos, a fim de estabelecer relaes diretas com o plano, exigir preciso no desenho das aes e recuperar a natureza do oramento como instrumento de gesto (metas, custos, prazos). Dessa forma, dado um importante passo no sentido da adoo da tcnica de oramento por programas, recomendada h dcadas pela ONU.

    Os programas sero originrios do plano de cada esfera de governo e traduziro produtos finais a serem alcanados para a soluo dos problemas identificados nesses planos. Os projetos e atividades detalharo esses produtos finais em produtos intermedirios, nas leis oramentrias. Com essas modificaes o oramento por programa assume a sua condio de um verdadeiro oramento por produto (bens e servios), com suas metas e recursos e no apenas uma mera verso financeira de um hipottico plano. Assim, o mesmo mdulo que organiza o plano (o programa), servir de base para o detalhamento do oramento em projetos e atividades, o que confere maiores possibilidades para uma integrao de fato entre plano e oramento (GTI, 1997, p. 151).

    O produto elaborado pelo GTI (apresentado aqui resumidamente e sem mencionar as partes referentes ao controle interno e externo, contabilidade e administrao financeira e patrimonial) introduz conceitos e orientaes metodo-lgicas consistentes com as formulaes mais avanadas na rea do planejamento estratgico pblico e do oramento por programa (Matus et al., 1980; Matus, 1993; Dror, 1996). Pensar por problemas e enfrent-los mediante aes organizadas por programas com objetivos definidos, com a articulao do plano ao oramento, permite chegar muito mais perto da complexidade do mundo real do que na forma tradicional de fazer planejamento e oramento (rea temtica, setores da adminis-trao e subprogramas referenciados apenas por metas a alcanar). Conceber aes (projetos, atividades e aes normativas) definindo com rigor seus produtos (um por ao), suas metas, seus custos e prazos criar possibilidades para a prtica de uma administrao mais gerencial no setor pblico. Isso algo sabidamente necessrio mas que s se faz com os instrumentos apropriados e no com intenes difusas e discursos vagos, instrumentos esses desenhados com propriedade pelo GTI.

    4.2 A formalizao da mudana

    Em 28 de outubro de 1998, o presidente da Repblica assina o Decreto no 2.829, que estabelece normas para a elaborao e gesto do Plano Plurianual e dos Oramentos da Unio. Poucos dias depois, o Ministrio do Planejamento e Oramento emite a Portaria no 117 de 12 de novembro de1998 (substituda pela Portaria do Ministrio

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    de Oramento e Gesto no 42 de 14 de abril de 1999, que mantm o contedo bsico e ajusta alguns pontos) alterando a classificao funcional utilizada nos oramentos pblicos, e criando as subfunes e estabelecendo conceitos necessrios para operacio-nalizar as normas do Decreto no 2.829. Os dois instrumentos conformam os marcos da reforma do sistema de planejamento e oramento pblicos.

    O contedo de ambos os instrumentos normativos consagra as recomendaes e sugestes do GTI, e antecipa o que dever ser o projeto de lei complementar a ser proposto pelo Poder Executivo federal para a regulamentao dos artigos da Constituio relativos ao planejamento pblico. O decreto e a portaria estabe-lecem que, para a elaborao e execuo do PPA e dos oramentos, toda a ao finalstica do governo ser estruturada em programas orientados para a consecuo dos objetivos estratgicos definidos para o perodo do Plano. Ao finalstica considerada aquela que proporciona bem ou servio para atendimento direto demanda da sociedade.

    Cada programa dever conter: objetivo, rgo responsvel, valor global, prazo de concluso, fonte de financiamento, indicador que quantifique a situao que o programa tenha por fim modificar, metas correspondentes aos bens e servios necessrios para atingir o objetivo (regionalizadas por estado) e aes no integrantes do oramento necessrias consecuo do objetivo. Os programas constitudos predominantemente de aes continuadas (atividades) devem ter metas de qualidade e de produtividade com prazos definidos. Os programas passam a ser estabelecidos em atos prprios da Unio, dos estados, do Distrito Federal e dos municpios (com os conceitos definidos em mbito federal), e integram os PPAs de cada nvel de governo.

    As novas orientaes conferem especial nfase gesto e avaliao e ordenam que cada programa seja dotado de um modelo de gerenciamento, com definio da unidade responsvel, com controle de prazos e custos, com sistemas de informaes gerenciais e com a designao de um gerente de programa pelo ministro pertinente. A avaliao compreender tanto o desempenho fsico-financeiro quanto a obteno de resultados e o grau de satisfao da sociedade em relao aos produtos ofertados pelo poder pblico. A avaliao anual da consecuo dos objetivos estratgicos do governo e dos resultados dos programas subsidiar a elaborao da Lei de Diretrizes Oramentrias de cada exerccio e as alteraes da programao oramentria e do fluxo financeiro de cada programa ficar condicionada informao prvia pelos respectivos gerentes, por meio de sistema informatizado, do grau de alcance das metas fixadas(avaliao de eficincia e eficcia).

    Os programas sero formulados de modo a promover, sempre que possvel, a descentralizao, a integrao com estados e municpios, e a formao de parcerias com o setor privado. Para orientar a formulao e seleo dos programas que integraro o PPA e estimular a busca de parcerias e fontes alternativas de recursos, sero previamente estabelecidos os objetivos estratgicos e as previses de recursos.

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    Determinou-se, tambm, que a elaborao do PPA 2000/2003 e do Oramento 2000 ser precedida da realizao de um inventrio de todas as aes do governo em andamento e do recadastramento de todos os projetos e atividades oramentrias como forma de constituir uma base para a reorganizao das aes em novos programas.

    A Portaria MPO no 117, de 12 de novembro de 1998 (ou MOG no 42, de 14 de abril de 1999) define as novas categorias oramentrias, que devero permitir conexes mais articuladas com o PPA. Assim, so conceituados a funo (em nmero de 28, tomadas como definidoras das polticas governamentais e entendidas como o maior nvel de agregao das diversas reas de despesas pblicas); a subfuno (em um total de 109, representa uma partio da funo, e visa agregar determinado subconjunto de despesas do setor pblico); o programa11 (instrumento de organizao da ao governamental, que visa concretizao dos objetivos pretendidos e mensurado por indicadores estabelecidos no PPA); o projeto; a atividade; e as operaes especiais (despesas que no contribuem para a manuteno das aes de governo, das quais no resultam um produto e no geram contraprestao direta sob a forma de bens ou servios).12

    Por essa via, so eliminadas as categorias de subprograma, subprojeto e subatividade. A classificao oramentria passa a ser exclusivamente funcional (e subfuncional), com utilizao obrigatria em todas as Unidades da Federao, mas preservada, no entanto, a lgica da organizao matricial, pois as subfunes podero ser combinadas com funes diferentes daquelas a que estejam vinculadas.13 A classificao programtica d lugar a uma estrutura programtica, diferenciada por nvel de governo e adequada soluo de seus respectivos problemas, definida no Plano Plurianual.

    No que se refere articulao plano-oramento, evidencia-se a acertada opo por superar-se a dicotomia estrutural entre os mdulos do plano e os do oramento, mediante a utilizao de um nico mdulo integrador do plano com o oramento, ou seja, o programa. Em termos de estruturao, o plano termina no programa e o oramento comea no programa, conferindo uma integrao desde a origem, sem a necessidade de buscar-se compatilizao entre mdulos diversificados. O programa como nico mdulo integrador e os projetos e atividades como instrumentos de realizao dos programas que devem resultar em produtos, com metas correspondentes aos recursos alocados, requisitos para a gesto de um oramento por programa (ou por resultados).

    Com as mudanas busca-se imprimir ao processo de planejamento e oramento uma perspectiva mais gerencial. A introduo de elementos que proporcionam

    11. O Projeto de Lei do PPA 2000/2003 organiza as aes governamentais em cerca de 365 programas.12. Ver Portaria MOG no 42 de 14 de abril de 1999.13. Segundo o MOG/SOF Manual Tcnico de Oramento 2000, SOF, Braslia, 1999, p. 13.

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    o exerccio da gesto cotidiana dos programas e de suas aes, a atribuio de responsabilidades, a prtica da avaliao e a cobrana de resultados revelam um avano conceitual e metodolgico. Ainda segundo o Manual Tcnico de Oramento da SOF (p. 12), formalmente passaria-se a um processo de planejamento sob o seguinte encaminhamento:

    estabelecimento de objetivos estratgicos;

    identificao de problemas a enfrentar ou de oportunidades a aproveitar para alcanar os objetivos estratgicos;

    concepo de programas a serem implementados com vistas ao atingimento dos objetivos, que implicaro a soluo dos problemas;

    especificao das diferentes aes do programa, com identificao dos produtos, que daro origem, quando couber, aos projetos e atividades;

    atribuio de indicadores aos objetivos (e programas) e de metas aos produtos (projetos, atividades e outras aes);

    designao de gerentes por programas;

    avaliao da execuo e dos resultados; e

    cobrana e prestao de contas por desempenho.

    A lgica que est por trs do esquema no a da sequncia de etapas estanques, mas sim a dos movimentos interativos entre anlise da situao ao correo/reviso ou confirmao ao anlise/avaliao. Ou seja, a sugerida pela teoria e prtica do planejamento estratgico pblico. E este, por sua vez, muito exigente em conhecimento, informao, organizao adequada conduo de processos complexos, quadros tcnico-polticos capacitados, algo de que talvez ainda no se disponha em condies apropriadas, mas que pode ser construdo. De qualquer forma, constituem inovaes alvissareiras.

    4.3 Da teoria ao comeo da prtica

    Estabelecido o marco normativo, o passo seguinte seria detalh-lo para ser apropriado pelos que deveriam aplic-lo. Isso foi feito em portarias da Secretaria de Oramento Federal (SOF) e manuais da Secretaria de Planejamento e Avaliao (SPA), ambos do Ministrio do Planejamento e Oramento.

    Inicialmente, decidiu-se pela realizao do Recadastramento de Projetos e Atividades constantes do Projeto de Lei Oramentria para 1999 (Portaria SOF no 51, de 16 de novembro de 1998) e dos Inventrios de Aes de Governo. Esse recadastramento abrangia as aes em andamento, mas sob a tica do conceito de programa, com vistas a reduzir eventuais dificuldades de redesenhar-se toda a ao

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    do governo por programas, criando um banco de dados com uma viso estruturada do PPA 1996-1999, que servir de referncia para a elaborao dos programas do novo plano.14

    Essas medidas revelam-se um ponto de partida de utilidade duvidosa. Ingressar em um mundo novo olhando para trs e guiado por mapas referentes a um mundo velho pode no ser um bom comeo. As aes em andamento no tinham sido desenhadas sob o conceito de programa e nem para atacar problemas bem definidos. Resultaram de uma viso convencional (setorial, incremental, sem base em anlises acuradas da realidade e sem preocupao com a gesto) que pouco podia oferecer para a implantao de inovaes metodolgicas e organizacionais como as pretendidas. Pelo contrrio, essas aes poderiam contaminar a nova proposta com a fora da tradio. Isso poderia no acontecer se o inventrio fosse precedido de intensa capacitao dos tcnicos responsveis, permitindo-lhes incorporar, efetivamente, os conceitos, a lgica, as tcnicas e a forma do novo modelo, o que no foi feito.

    Em relao ao Cadastramento de Projetos e Atividades, o ideal era que no fosse realizado, para se pensar com liberdade e de forma arrojada e sem amarras com o passado as aes com expresso oramentria necessrias a integrar cada um dos programas concebidos para enfrentar os problemas selecionados. Mais interes-sante teria sido caminhar na direo de um oramento base zero, tanto em termos do contedo dos projetos/atividades, como de dotaes, calibrando o alcance dos objetivos (quantidade de produtos) pela disponibilidade financeira global. Ajustes posteriores (para cima ou para baixo) no exerccio fiscal ou no perodo do plano se dariam em funo da receita que fosse realizada. Acredita-se ser melhor andar para frente olhando para frente e no para trs. Afinal, o caminho se faz ao andar, ainda que com tropeos e riscos, mas abre maiores possibilidades para o exerccio criativo de construo do novo.

    4.4 Definies operacionais e procedimentos

    4.4.1 Problema

    Os manuais produzidos para orientar a elaborao do PPA e do Oramento contm grave lacuna. Supem que o plano e os oramentos sero organizados por programas e que estes devero, segundo o MTO, dar soluo a um problema; mediante um conjunto articulado de aes que assegurem a consecuo do objetivo. Mas no definem o que problema. Justificativa: na nova forma de se tratar o planejamento considera-se que o seu elemento, talvez de maior relevncia, passa a ser um conceito de fcil entendimento, qual seja, o problema. Quem no tem ideia do que seja um problema? (grifo dos autores).

    14. Ver Manual Tcnico de Oramento (MTO) - SOF/MOG, Braslia, 1999 (MTO-2000), PPA-2000: Procedimento para Elaborao de Programas (PEP) - SPA/MOG, Braslia, 1999 e PPA-2000: Manual de Elaborao e Gesto (MEG) - SPA/MOG, Braslia, 1999.

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    Ora, se um conceito, deveria ser apresentado. Se uma ideia, cada um pode ter a sua, e no se cria uma base comum de entendimento, com prejuzo para a consistncia do plano. Se o elemento de maior relevncia na nova concepo de planejamento, deveria ser objeto de detalhada discusso, precisa definio, ampla exemplificao, para no deixar dvidas quando de sua aplicao.

    Problema uma noo que povoa o nosso cotidiano. Intuitivamente todos sabem o que problema. Mas o que problema para um pode no ser para outro qualquer e pode ainda ser uma soluo desejada para um terceiro. Problema no bvio e sempre relativo. Um grande nmero de estudiosos, em diversas reas do conhecimento, dedicam-se a refletir e formular sobre o conceito de problema.15 Mitroff (1984) prope dois tipos bsicos de problemas estruturados e quase estruturados e considera vital estabelecer a diferena entre eles,

    porque muitas pessoas pensam que o caminho pelo qual solucionamos os quebra--cabeas (problemas estruturados) deveria ser o padro para medir o xito na resoluo dos problemas sociais (quase estruturados). Diferente dos quebra-cabeas, os problemas sociais no tm uma soluo correta e nica, que reconhecida e aceita como tal por todas as partes afetadas pelo problema (...) As pessoas tm valores (e interesses) to diferentes e partem de ideias to diferentes sobre a sociedade desejada que o que um problema e uma boa soluo para uma pessoa, em geral irrelevante, estpido, tolice e mesmo perverso para outra (op. cit., p. 84).

    Por exemplo, muitos reconhecem a existncia de uma questo agrria no Brasil (propriedade de terra extremamente concentrada em mos de poucos e uma grande massa de trabalhadores sem terra ou com pouca terra, que demanda melhores condies de vida e de trabalho, vale dizer, de acesso terra e aos demais meios de produo). O governo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederao Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) e a Unio Democrtica Ruralista (UDR) declaram a existncia do problema, explicam-no a partir de suas respectivas posies e interesses, e propem linhas de ao sobre ele, coerentes com seus valores e perspectivas sociopolticas e econmicas. As solues vislumbradas e os objetivos buscados pelos distintos atores no so as mesmas. Os de um podem ser e efetivamente o so antagnicos aos de outros.

    Se assim , pode-se aqui definir problema como uma desconformidade com que um ator social determinado entende como o que deve ser, reconhecida como supervel ou evitvel, e declara-se disposto a enfrent-la.

    Carlos Matus (1993, p. 186-7), em magistral sntese sobre as contribuies de diversos autores sobre o tema, prope a seguinte caracterizao dos dois tipos bsicos de problema (quadro 1 adiante).

    15. Ver, entre muitos outros, Gadamer (1988); Mitroff (1984); Linstone (1981, v. 20, no 4; 1984); Ackoff (1978; 1987); Moles (1995); Demo (1997); Matus (1993).

  • A Reorganizao do Processo de Planejamento do Governo Federal: o PPA 2000-2003

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    Se so aceitas a definio de problema e a distino entre os dois tipos bsicos, fica evidente que, de fato, a categoria problema de grande relevncia para a nova proposta de planejamento, como afirma o MTO-2000. Fica evidente, tambm, que se trata de algo bastante complexo, principalmente se se leva em conta que a grande maioria dos problemas selecionados pelos planos governamentais do tipo quase estruturado.

    Problemas sociais, por definio, so socialmente produzidos, e tm, portanto, mltiplas solues, a depender dos atores sociais envolvidos. Exigem grande esforo de delimitao, sua explicao situacional e relativa a quem o faz, e sua soluo raramente se d por consenso. H, ento, distintas perspectivas, sem que haja um ponto neutro objetivo (Frondizi, 1992, p. 549). Tudo isso aponta para a necessidade de discutir, difundir e consolidar o conceito de problema e um mtodo de anlise adequado entre todos os envolvidos na elaborao do PPA. A uniformidade conceitual e metodolgica para a seleo, delimitao e explicao dos problemas um requisito para a congruncia do plano e base para o adequado desenho dos programas e aes com os quais seriam enfrentados. Infelizmente, isso no aconteceu e dever cobrar seu preo em termos de qualidade do plano e, posteriormente, de sua eficcia.

    QUADRO 1Problema estruturado Problema quase estruturado

    1. As regras do sistema que o produz so precisas, claras, invariveis e predeterminadas. Elas existem antes da soluo do problema e permanecem iguais aps a soluo.2. O homem est fora do problema e se relaciona com ele somente para tentar resolv-lo conforme regras predeterminadas; e se o problema solucionado, ningum ter dvidas quanto eficcia da soluo.3. As fronteiras do problema e do sistema que o gera esto perfeitamente definidas. No h dvida sobre onde comea e onde acaba cada coisa.4. As regras do sistema tornam explcitos ou contm implicitamente os conceitos (possibilidades e restries) pertinentes resoluo do problema.5. O problema est isolado de outros problemas e, se h uma sequncia com outros, a soluo de cada um no afeta a soluo dos seguintes.6. O espao e o tempo pertinentes ao problema so definidos nas regras como fixos, ou tornam-se fixos para quem se relaciona com ele.7. As variveis que constituem o problema so dadas, enumerveis, conhecidas e finitas.8. Qualidade e quantidade no se combinam; o problema se move em um ou outro mbito.9. As possibilidades de soluo do problema esto contidas nas suas premissas e so finitas em nmero. As solues so conhecidas ou conhecveis, mesmo no sendo evidentes.10. O problema coloca um desafio cientfico ou tcnico, podendo supostamente ser tratado com objetividade.

    1. O problema est determinado por regras, mas elas no so precisas, nem invariveis, e nem iguais para todos. Os atores sociais criam as regras, e, s vezes, as mudam para poder solucionar os problemas.2. O homem (ou ator social) est dentro do problema e a que o conhece e o explica, mesmo que no tente solucion-lo. A eficcia de uma soluo discutvel e relativa aos problemas que seguem.3. As fronteiras do problema e do sistema que o gera so difusas.4. Os atores sociais (ou os homens) criam possibilidades de soluo; elas no existem previamente. Os conceitos para compreender as possibilidades de soluo e suas restries no so dados necessria e previamente.5. O problema est sincrnica e diacronicamente entrelaado a outros; a soluo de um problema facilita ou dificulta a soluo de outros.6. O espao e o tempo so relativos a quem se relaciona com o problema a partir de diferentes posies.7. O sistema criativo e suas variveis no so dadas, no so todas enumerveis, nem conhecidas e nem finitas.8. Qualidade e quantidade combinam-se inseparavelmente.9. As possibilidades de soluo do problema so criadas pelo homem e so potencialmente infinitas em nmero.10. O problema coloca um desafio mltiplo que abrange sempre o mbito sociopoltico, mesmo se tiver uma dimenso tcnica. A objetividade no possvel, mas deve-se procurar o rigor.

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    4.4.2 Programa

    A elaborao dos programas teria os seguintes insumos e parmetros: i) o inventrio de programas; ii) a orientao estratgica do presidente da Repblica, definindo os macro-objetivos e as diretrizes (com indicaes de alguns problemas); iii) as orientaes estratgicas do ministrio, para tornar precisos os problemas a serem atacados em cada rea; e iv) a previso de recursos da Unio por ministrio.

    Esse ltimo ponto introduz um elemento destoante. A previso foi feita tendo em considerao a execuo oramentria e financeira de cada ministrio em trs exerccios anteriores. Novamente, olhou-se para trs e no para frente, pois as dotaes poderiam ser proporcionais relevncia dos programas ministeriais para atingir os macro-objetivos do plano, balizando o alcance dos objetivos e metas pelas disponibili-dades financeiras. Evidentemente, isso exigiria a definio, a delimitao e a explicao situacional de macroproblemas, tomando-se suas causas principais como problemas a serem enfrentados pelos programas, o que no foi feito. O vis fiscalista e a lanterna na popa se manifestam claramente na seguinte orientao: a seleo dos programas deve observar os recursos disponveis, orientados pela previso de recursos da Unio, acrescidos das parcerias pblicas e privadas (Brasil. SPA/MOG/PEP, 2000, p. 5).

    Foram definidos quatro tipos de programas:

    programa finalstico (bens e servios a serem oferecidos diretamente sociedade);

    programa de servio ao Estado (bens e servios ofertados diretamente ao Estado por instituies criadas para esse fim);

    programa de gesto de polticas pblicas (formulao, coordenao, superviso, avaliao e divulgao de polticas pblicas); h previso de apenas um deste programa por ministrio; e

    programa de apoio administrativo (aes de natureza tipicamente administrativa que, embora colaborem para a consecuo dos programas finalsticos e outros, no tm suas despesas passveis, no momento, de apropriao queles programas); haver um nico programa deste tipo por unidade oramentria.

    Atributos do programa (Brasil. SPA/MOG/PEP, 2000, p. 6-15)

    Denominao: comunica, de forma sinttica, os objetivos do programa.

    Objetivo: expressa o resultado desejado sobre o pblico-alvo.

    Pblico-alvo: os especficos segmentos da sociedade aos quais se destina o programa.

    Justificativa: descrio sucinta do problema a solucionar e a contribuio para o alcance de macro-objetivos e objetivos setoriais.

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    Unidade responsvel: a unidade administrativa responsvel pelo gerenciamento do programa.

    Horizonte temporal: o programa pode ser contnuo ou temporrio. No ltimo caso, indicam-se ms e ano de incio e trmino previstos.

    Valor do programa: estimativa das despesas com a execuo do programa:

    a) no perodo do PPA.

    b) valor total do programa: valor estimado at a sua concluso.

    Multissetorial: programa com aes desenvolvidas por mais de um ministrio.

    Indicador: associado aos objetivos do programa, deve permitir a mensurao de resultados. apresentado como uma relao ou taxa entre variveis associadas ao fenmeno sobre o qual se vai atuar. O indicador ser definido mediante:

    Descrio denominao do indicador selecionado.

    Unidade de medida o padro escolhido para a mensurao.

    ndice aferio do indicador em um dado momento.

    Apurao data da apurao mais recente.

    ndice desejado ao final do PPA resultado a atingir em 2003.

    ndice desejado ao final do programa quando se tratar de programa temporrio.

    Fonte a instituio responsvel pela apurao e divulgao peridica dos ndices.

    Base geogrfica da apurao o menor nvel de agregao geogrfica para a apurao do ndice (municipal, estadual, regional, nacional).

    Periodicidade mensal, trimestral, semestral ou anual.

    Frmula de clculo frmula matemtica e outros esclarecimentos necessrios.

    Quantidade de indicadores: cada programa deve ter, em princpio, um indicador, admitindo-se mais sempre que necessrio para avaliar sua efetividade.

    Ao: conjunto de operaes cujo produto contribui para os objetivos do programa.

    Ttulo da ao: deve traduzir de maneira clara e concisa a ao cujo produto contribui para a consecuo do objetivo do programa (por exempl