introduÇÃo - puc-sp

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INTRODUÇÃO Existem várias ‘frentes de batalha’ que poderiam ser estrategicamente consideradas na luta travada pela efetividade dos direitos fundamentais. Optamos apenas por um, entre tantos caminhos a serem trilhados para a concretização do sonho de uma nova realidade social em que prevaleçam a justiça e o bem comum como ideais permanentes. Trata-se de enveredar pela senda teórica – e, mais precisamente, pela senda filosófica. Neste sentido, uma das contribuições da maior importância para o pensamento filosófico contemporâneo é a obra de HANS-GEORG GADAMER (1900-2002). Este filósofo centenário – aluno e discípulo de HEIDEGGER – legou- nos uma nova maneira de entender o significado ontológico da interpretação. Mas, qual seria a sua contribuição para a filosofia jurídica contemporânea, e – o que mais importa – para a efetividade dos direitos fundamentais? É do que nos ocuparemos, considerando a fecundidade do pensamento filosófico gadameriano e o valor da sua aplicação no âmbito jurídico, acreditando que a filosofia tem algo a dizer-nos enquanto amantes do direito e da justiça. Forçosamente, num trabalho acadêmico-científico, impõe-se a delimitação do objeto da pesquisa. Somos sempre tentados a enveredar por este ou aquele

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Page 1: INTRODUÇÃO - PUC-SP

INTRODUÇÃO

Existem várias ‘frentes de batalha’ que poderiam ser estrategicamente

consideradas na luta travada pela efetividade dos direitos fundamentais. Optamos

apenas por um, entre tantos caminhos a serem trilhados para a concretização do

sonho de uma nova realidade social em que prevaleçam a justiça e o bem comum

como ideais permanentes.

Trata-se de enveredar pela senda teórica – e, mais precisamente, pela senda

filosófica. Neste sentido, uma das contribuições da maior importância para o

pensamento filosófico contemporâneo é a obra de HANS-GEORG GADAMER

(1900-2002). Este filósofo centenário – aluno e discípulo de HEIDEGGER – legou-

nos uma nova maneira de entender o significado ontológico da interpretação.

Mas, qual seria a sua contribuição para a filosofia jurídica contemporânea, e –

o que mais importa – para a efetividade dos direitos fundamentais?

É do que nos ocuparemos, considerando a fecundidade do pensamento

filosófico gadameriano e o valor da sua aplicação no âmbito jurídico, acreditando

que a filosofia tem algo a dizer-nos enquanto amantes do direito e da justiça.

Forçosamente, num trabalho acadêmico-científico, impõe-se a delimitação do

objeto da pesquisa. Somos sempre tentados a enveredar por este ou aquele

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caminho – que também poderiam contribuir com valiosas análises para a solução do

problema que ora discutimos – mas a metodologia cientifica não nos permite.

O que é e o que não é, então, objeto deste estudo? Comecemos pelo que

não é.

Não se trata, em primeiro lugar, de um estudo histórico sobre os direitos

humanos, embora tenhamos aberto um capítulo para este fim. Tratamos apenas de

sumariar, em apertada síntese, a afirmação histórica dos direitos fundamentais, para

evidenciar o crônico problema da sua inefetividade.

Segundo, não se cuida tampouco de analisar as ações constitucionais

garantidoras dos direitos fundamentais. Apenas e tão-somente, ocupamo-nos com o

problema da sua ineficácia social, como é apontado pela doutrina pátria.

Afastadas estas análises – que poderiam constituir objeto de outra pesquisa

– pretendemos enfocar o assunto de uma perspectiva filosófica (e não sociológica

ou dogmática), mesmo porque foi esta a área de concentração escolhida para

desenvolver as investigações, no curso de pós-graduação que ora conclui-se.

O objetivo do trabalho, assim – repita-se –, é apresentar o contributo da

hermenêutica filosófica de GADAMER para a solução do problema da inefetividade

dos direitos fundamentais, considerando que a metodologia cientifica – além de não

resolver – constitui uma das causas da ineficácia social destes direitos, à medida em

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3

que sua utilização, pelos operadores do direito e tribunais, impede a força normativa

da Constituição – como queria KONRAD HESSE.

Daí a hipótese de que partimos: a eficácia social dos direitos fundamentais

depende de uma interpretação jurídica ontológica e não apenas metodológica,

como tem sido o enfoque tradicional. Para verificação desta hipótese,

procedemos, fundamentalmente, à análise estrutural da obra clássica de

GADAMER, Verdade e Método, procurando, em seguida, aplicar sua teoria

hermenêutica à interpretação constitucional, com apoio na doutrina pátria.

Entendemos necessário, então, estruturar o trabalho em três capítulos. No

primeiro, tratamos da histórica inefetividade dos direitos fundamentais desde a

proclamação dos direitos da pessoa humana e do cidadão na França até aos dias

que correm. Procuramos considerar neste capítulo, também, os efeitos da

globalização econômica sobre os direitos sociais bem como outras causas da sua

ineficácia, num país de modernidade tardia, como o Brasil.

Em seguida, no segundo capítulo, ocupamo-nos da reconstrução histórica de

uma das causas apontadas pela doutrina para a inefetividade dos direitos, a saber: a

metodologia jurídica, inaugurada na modernidade a partir do pensamento cartesiano

e que entra em crise no século XX, abrindo espaço para o pós-positivismo e para o

retorno à ética e à filosofia dos valores. Valemo-nos para essa reconstrução da

metodologia jurídica, basicamente, de três autores: dois europeus – KARL LARENZ

e GUIDO FASSÓ – e um nacional – LUIZ FERNANDO COELHO.

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Por último, no terceiro capítulo, apresentamos um caminho possível para a

solução do problema da ineficácia social dos direitos fundamentais, a partir da

análise da hermenêutica filosófica de HANS GEORG GADAMER, que tem merecido

a atenção da doutrina constitucional em nosso país e também no exterior.

Poder-se-á indagar, sobre a importância desta pesquisa. Que importância – e

urgência – teria tal empresa, que merecesse o emprego de tempo e do esforço de

uma investigação científica? Se considerarmos que para a convivência social é

necessário o mútuo respeito e que os direitos declarados mas não garantidos

constituem um estado de injustiça; se considerarmos, de outra parte, que a injustiça

social é fomentadora do ódio e, daí, causadora dos conflitos sociais, tanto no plano

pessoal quanto coletivo; e, se considerarmos ainda que, onde não reina a paz nas

relações sociais, não é possível o desenvolvimento espiritual, nem material; se tudo

isso constitui uma verdade, então acreditamos que todo esforço de pesquisa está

justificado.

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1. A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A

EVIDÊNCIA DA SUA INEFICÁCIA SOCIAL: UMA PROPOSTA DE

ANÁLISE

1.1. Breve Histórico dos Direitos Fundamentais

1.1.1. Introdução: origem e perda da dignidade humana

A maior contribuição do povo da Bíblia, “uma das maiores, aliás, de toda a

História ... [foi] a idéia da criação do mundo por um Deus único e transcendente”.1

O ser humano não surgiu, assim, por obra do acaso, mas teve origem divina.

A teoria darwinista da Origem das Espécies pouco contribui para sustentar a tese da

dignidade humana. De acordo com o relato bíblico, o ser humano foi formado à

imagem do seu Criador.2 Digno de muita honra, portanto.

O salmista expressa, em versos poéticos, sua admiração pelo amor divino, ao

conceder ao ser humano um lugar especial na criação do mundo (apesar da sua

insignificância no contexto do universo):

“Quando olho para o céu, que tu criaste, para a lua e para as estrelas, que puseste nos seus lugares – que é um simples ser humano para que penses nele? Que é um ser mortal para que te preocupes com ele? No entanto, fizeste o ser humano somente

1 FÁBIO COMPARATO, A afirmação histórica dos direitos humanos, p.1. Ver, no mesmo sentido, CELSO LAFER, A reconstrução dos direitos humanos, pp. 118-119. 2 Gênesis, 1:27.

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inferior a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei. Tu deste poder sobre tudo o que criaste; tu puseste todas as coisas debaixo do domínio dele...” 3

Atribui-se, pois, ao judaísmo (e ao cristianismo) a origem histórica do

princípio da dignidade humana e da doutrina dos direitos humanos fundamentais.

Mas, se assim foi, que terá acontecido, então, para que o ser humano

perdesse sua elevada posição na criação? Que problema terá surgido?

Arriscaremos aqui uma interpretação do Gênesis; uma interpretação do que

aconteceu nas nossas origens.

A lei divina estabelecia que o amor devia reger as relações humanas – tanto

no plano vertical (criatura e Criador), quanto no plano horizontal (homem e mulher,

de início; pais e filhos, e irmãos, logo em seguida). Assim, a lei era para amar, e não

para oprimir os semelhantes. Do respeito a este mandamento dependia a harmonia,

a felicidade e a própria existência do gênero humano.

Mas... insatisfeitos e inconformados com estes limites, as criaturas rebelaram-

se. A liberdade – direito concedido ao ser humano pelo Criador – foi usada para

subverter a ordem fundada no amor e respeito mútuos entre as criaturas: foi usada

para dominar e oprimir.4 O egoísmo, então, predominou, causando a miséria – que

até hoje perdura – e a perda da dignidade originária. O desejo de domínio ilimitado

3 Versos 3-6, do cap. 8, do Livro dos Salmos, ‘A glória divina e a dignidade do filho do homem’. 4 Epístola aos Gálatas, 5:13-15.

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gerou o espirito de avareza, de acúmulo egoísta dos bens. ... E o estado paradisíaco

tornou-se no estado de natureza hobbesiano,5

Ao tratar da história dos direitos fundamentais, JOSÉ AFONSO DA SILVA6

ensina que, nas sociedades primitivas, não havia propriedade privada. No entanto, a

apropriação privada dos bens deu origem às desigualdades e à opressão entre os

detentores dos bens e aqueles que nada possuíam.

E ROUSSEAU (1712-1778), no Discurso sobre a origem da desigualdade,7

afirma

“O primeiro homem que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: Isto me pertence, e encontrou criaturas suficientemente simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Que de crimes, de guerras, de assassinatos, que de misérias e de horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, desarraigando as estacas(...) tivesse gritado aos seus semelhantes: ‘Guardai-vos de escutar este impostor !”.

A partir daí, – do surgimento da opressão por causa da apropriação privada

dos bens – começaram os conflitos no plano individual e coletivo. Os mais fortes

fizeram as leis e impuseram aos mais fracos suas condições, submetendo-os às

condições degradantes, indignas e miseráveis que historicamente conhecemos,

como a escravidão e a servidão coletiva. Para romper os grilhões, para impor limites

5 BURKE sintetiza algumas causas que trouxeram a infelicidade ao nosso mundo: “A história consiste em grande parte em miséria, que a soberba, a ambição, a avareza, a vingança, a lascívia, a revolta, a hipocrisia, a avidez descontrolada e as paixões desenfreadas espalharam pelo mundo... Tais vícios são a causa dessas tempestades. Religião, moral, leis, privilégios, liberdade, direitos do homem são os pretextos dos quais se servem os poderosos para poder governar a massa humana mobilizando e jogando com suas paixões.” BURKE, apud, NORBERTO BOBBIO, O positivismo jurídico, p.49. Daí a ‘necessidade de um senhor’, a necessidade de uma ordem coercitiva, segundo KANT. Cf. SIMONE GOYARD FABRE, Os princípios filosóficos do direito político, p.494. 6 Curso de direito constitucional positivo, p.134. 7 P.175.

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ao poder opressivo e (re)conquistar sua dignidade originária, muita luta foi

necessária, ao longo da história.

Daí ter constatado JHERING que:

“O Direito não é pura teoria, mas uma força viva. Todos os direitos da humanidade foram conseguidos na luta. O Direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos, mas da nação inteira” 8

Poderíamos, pois, remontar à antigüidade para descrever as lutas que foram

travadas contra a opressão e pela libertação. Limitar-nos-emos, contudo, à

apresentação de apenas alguns documentos históricos que registraram a vitória na

luta pela conquista dos direitos humanos.9

Um desses primeiros documentos, apontados pela doutrina como precursor

na luta pelos direitos fundamentais – já na chamada Baixa Idade Média – foi a

Magna Charta Libertatum, de 1215. Este documento, entretanto, pode ser

considerado como uma carta feudal que servia tão-somente para proteger os

privilégios dos barões. A bem da verdade, foi apenas na modernidade que os

direitos fundamentais foram historicamente conquistados. Daí porque decidimos

fazer um recorte, para considerar especialmente este período histórico.

8A luta pelo direito, p.21. 9Sobre os principais documentos relativos aos direitos humanos, publicados a partir de 1945, consultar OSCAR VILHENA, Direitos humanos: normativa internacional.

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1.1.2. A luta pelo direito no plano ideológico e político-social

1.1.2.1. A escola de direito natural moderno

As declarações de direitos, bem como a doutrina dos direitos humanos que

lhe serviram de fundamento, surgiram num período histórico considerado de

transição entre o sistema feudal de produção e o sistema capitalista.

Embora possa ser criticada – porque a história seria uma eterna transição –,

a tese da Idade Moderna (1453-1789) como um período de transição é defendida

por historiadores como FRANCISCO FALCON que consideram a transição um

elemento específico desse período histórico, por encontrarmos elementos da antiga

e da futura ordem social, econômica, política e ideológica que, englobadas, formam

uma estrutura específica que não é nem mais a antiga ordem feudal, nem a futura

ordem capitalista.10

A análise das estruturas econômico-sociais, políticas e ideológicas leva a

essa conclusão. Para o que aqui importa, entretanto, é necessário sublinhar que

uma das características do pensamento moderno, ainda segundo FALCON, é o

“abandono de concepções e preocupações construídas em função de uma

10 Cf. FRANCISCO FALCON, Mercantilismo e transição, pp. 21 e 22. Cf. também, para uma análise da passagem do feudalismo para o capitalismo os seguintes autores: ROBERT HEILBRONER, A formação da sociedade econômica, pp. 65-93; LEO HUBERMAN, História da riqueza do homem, pp. 45 ss.; HENRI PIRENNE, História econômica e social da Idade Média, pp. 207-219; PIERRE VILAR, ‘A transição do feudalismo ao capitalismo’, in: THEO SANTIAGO(org.), Do feudalismo ao capitalismo, pp. 37-49; MICHEL TIGAR & MADELEINE LEVY, O direito e a ascensão do capitalismo, passim; HILÁRIO FRANCO JR., O feudalismo, pp. 78-93. Sobre o pensamento político na modernidade ver: LUCIANO GRUPPI, Tudo começou com Maquiavel, pp. 7-46. Para o caráter imanentista do pensamento moderno, consulte-se: UMBERTO PADOVANI, História da filosofia, pp. 255-259

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ordenação sobrenatural ou extraterrena do mundo e do homem, em favor de uma

visão essencialmente calcada na natureza e no homem em si mesmos ” 11

Outra característica que marca a modernidade, e deve ser destacada, é o

processo de secularização, que determina o “recuo das formas de pensamento e

das instituições eclesiásticas, a afirmação do Estado como realidade própria...” 12

Pois foi nesse quadro geral mais amplo – de rejeição da ordem medieval –

que pode ser inserida a doutrina do direito natural moderno. Há, portanto, uma

ruptura com a doutrina clássica e medieval da existência de um direito natural, que,

na Idade Média, correspondia ao direito divino.

HUGO GRÓCIO é o homem de transição que a modernidade precisava.13

Vivendo na época das guerras de religião, e desejando viver em um mundo onde

reinasse a paz, percebeu que para alcançá-la, não poderia fundar o direito na

teologia, para que fosse aceito por todos e, assim, obedecido.

Separando, então, o direito da teologia, encontrou na razão o fundamento

universal do direito, pois, sendo universal, o direito fundado na razão não poderia

ser objeto de contestação, eis que sujeitaria a gregos e judeus, livres e servos.

11 Mercantilismo e transição, pp. 37-38. 12 Ibid., p. 38. 13 Cf. MIGUEL REALE, Horizontes do direito e da história, pp. 102-112. Sobre a influência do pensamento jusnaturalista na formulação das declarações modernas dos direitos humanos, consulte-se: MICHEL VILLEY, Filosofia do direito, pp. 123-126; CELSO LAFER, A Reconstrução dos direitos humanos, pp. 35-46; MARCELO CAETANO, Direito constitucional, pp. 360-365; DALMO DALLARI, Elementos de teoria geral do estado, pp. 182-185; DEL VECCHIO, Lições de filosofia do direito, p.126; JOSÉ REINALDO LIMA LOPES, O direito na história, pp. 205-208; FERREIRA FILHO, Curso de direito constitucional, p.83.

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Tem inicio assim, com GRÓCIO, o processo de secularização do direito, de

separação do direito da sua base religiosa, o que o tornou, por isso, o fundador da

doutrina moderna do direito natural.

GRÓCIO, no entanto, é um homem de transição. Na sua teoria encontramos,

ainda, elementos do período precedente. A ponte, porém, estava lançada para a

modernidade.14

O movimento iluminista, no século XVIII, insurgir-se-á contra a ‘idade das

trevas’, defendendo que apenas a razão poderia ser a solução para os problemas da

humanidade. Por isso, no plano jurídico – na mesma linha inaugurada por GRÓCIO

– colocar-se-á a razão como o novo fundamento dos direitos. E esses direitos, para

os iluministas, são os direitos naturais, isto é, direitos inatos que o ser humano

possui no estado de natureza, antes, portanto, da constituição do Estado e da

sociedade civil. Justifica-se, pois, o surgimento do Estado como organismo que tem

por finalidade a garantia destes direitos.

Defendida a existência de direitos inatos no plano teórico-filosófico, era

chegado o momento de garantir seu exercício no plano social.

14 No século XVII, outros pensadores fundamentaram a moderna teoria do direito natural, com destaque para JOHN LOCKE, THOMAS HOBBES e SAMUEL PUFENDORF.

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1.1.2.2. A luta no plano político-social e a fase das declarações

A Inglaterra, que já era pioneira em limitar o poder do soberano em favor dos

súditos, desde a Baixa Idade Média – como acima referido – saiu na frente.

A luta contra o absolutismo inglês, através das revoluções do século XVII,

acabou produzindo três documentos ao longo deste século, que precederam as

declarações modernas: a Petição de direitos, de 1628; a Lei de Habeas Corpus, de

1679 e – cem anos antes da Revolução Francesa – a Declaração de direitos, de

1689, que impuseram limites ao absolutismo da monarquia inglesa, dando origem,

agora, a uma monarquia constitucional.

Foi no ‘século das luzes’, contudo, que surgiram os três documentos que se

tornaram famosos e materializaram os ideais iluministas: nos EUA, a Declaração de

Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 12/6/1776, – considerada a 1ª declaração de

direitos no sentido moderno – e a Declaração de Independência, de 4/7/1776; na

França, a famosa e celebrada Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de

1789.

Estes documentos – todos inspirados na doutrina do direito natural moderno –

impõem forte limitação ao poder, dando origem à nova fase do Estado Moderno –

o Estado-Liberal-individualista, em lugar do Estado absolutista – que era a

expressão dos interesses da burguesia capitalista agora detendo, além do poder

econômico, o poder político.

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Era o início do movimento constitucionalista e da chamada primeira geração

(ou dimensão, se se preferir) de direitos. O movimento constitucionalizador surge

não apenas como forma de limitar o poder mas, “mais do que isto, limitar o poder em

benefício de direitos, os quais, conforme a evolução histórica, vão se construindo no

engate das lutas políticas (direitos de primeira, segunda e terceira dimensões...” 15

A característica destes direitos é a de serem ‘direitos negativos’, porque

exigem do Estado uma abstenção. O Estado deve ser o “guardião das liberdades,

permanecendo longe de qualquer interferência no relacionamento social”.16

São chamados também de direitos de liberdade, direitos individuais ou,

simplesmente, liberdades públicas. Dentre eles, mencionamos o direito de

propriedade, o direito à vida, à liberdade, à inviolabilidade de domicílio e o direito à

segurança.

1.1.3. A ineficácia social dos direitos de liberdade e a conquista dos

direitos sociais

Embora declarados com pompa e circunstância, os direitos não se

concretizaram para a grande maioria. Só uma minoria de privilegiados gozou desses

direitos.

Se, por um lado, ficamos livres da opressão política, com o fim do

absolutismo, o liberalismo econômico e o Estado mínimo – em outras palavras, a

15 Cf. LENIO LUIZ STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p.289. 16 LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO e VIDAL SERRANO NUNES JUNIOR, Curso de direito constitucional, p.77.

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experiência da democracia liberal – produziram a opressão econômica dos

poderosos sobre os mais fracos e lançou na miséria centenas de trabalhadores em

Paris e em Londres, ao longo do século XIX.17

O humanismo abstrato e o caráter meramente formal das declarações de

direito – e sua ineficácia social – foram objeto, durante o século XIX, da crítica dos

movimentos socialistas e da doutrina social da igreja. Estes movimentos

denunciaram a exploração dos trabalhadores resultante do modelo econômico-

político estabelecido pela revolução burguesa.

Neste contexto de ineficácia, contudo, surgiram alguns documentos jurídicos

importantes para a história dos direitos humanos fundamentais: o Manifesto

Comunista e a Constituição Francesa, ambos de 1848; a Convenção de Genebra, de

1864, que deu início à internacionalização dos direitos e inaugurou o direito

humanitário (pois sua finalidade foi minorar o sofrimento dos feridos de guerra); e o

documento elaborado na Conferência de Bruxelas, de 1890, para repressão ao

tráfico de escravos africanos.18

A situação social dos trabalhadores, porém, continuava a mesma. Depois de

muito ‘sangue, suor e lágrimas’, a necessidade de assegurar proteção à classe

trabalhadora acabou levando à conquista da segunda geração dos direitos

fundamentais, chamados de direitos sociais, econômicos e culturais. Caracterizam-

17 Cf. MARIA STELLA BRESCIANI, Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza, passim, e o romance de VICTOR HUGO, Os miseráveis; ver também RENÉ REMOND, O século XIX, pp. 141-143. 18 Foi no Brasil (!!!), no entanto, que os direitos fundamentais foram subjetivados e positivados pela primeira vez, através do art. 179 da Constituição de 1824. Um paradoxo, porém. Embora de inspiração liberal, a Constituição de 1824 era escravocrata e não democrática, servindo à elite

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se por serem ‘direitos positivos’19 – ao contrário dos direitos de liberdade, que eram

‘direitos negativos’ – porque exigiam do Estado uma providência, uma atuação

positiva, para oferecer as condições materiais que garantissem a concretização dos

direitos. Nesta dimensão de direitos, a ênfase passa a ser a garantia da igualdade

material, não a igualdade meramente jurídica, de natureza formal.

Poderiam ser mencionados, como direitos que surgem nesta etapa, os

direitos relativos ao trabalho, o direito à previdência social, o direito à educação e

cultura, os direitos relativos à família, dentre outros.

O século XX tem início, assim, com três documentos fundamentais para a

classe trabalhadora: a Constituição Mexicana, de 1917, que foi o primeiro

documento jurídico que sistematizou os direitos sociais (trabalho e previdência

social). Depois da Revolução Russa, foi elaborada a Declaração dos Direitos do

Povo Trabalhador e Explorado, em 1918, e, terminada a Primeira Guerra, a

Alemanha produziu a consagrada Constituição de Weimar, em 1919, que acabou

sendo a fonte de inspiração da nossa Constituição de 1934.20

Dois documentos de importância, ainda, antes da Segunda Guerra, foram as

Convenções de Genebra sobre a escravatura, de 1926, e sobre prisioneiros de

guerra, de 1929.

aristocrática. A Constituição de 1891, por sua vez, de inspiração norte-americana, no seu art. 72, não inovou o rol de direitos da Constituição do Império. 19 LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO e VIDAL SERRANO, Curso de direito constitucional, p.78. 20 No Brasil, tivemos duas Constituições antes da eclosão do segundo conflito mundial. A Constituição de 1934 que, como já dissemos acima, foi inspirada na de Weimar, inova, no art. 115, ao criar um título sobre a ordem econômica e social. A Constituição de 1937, todavia, – conhecida como ‘polaca’

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1.1.4. A ruptura totalitária e a necessidade de internacionalização dos direitos humanos

Embora positivados, foi de pouca duração o gozo dos direitos sociais. A

ruptura totalitária interrompeu sua concretização. O mundo mergulhou num período

de trevas. Todas as conquistas, obtidas com muito sacrifício pelas revoluções

precedentes, vieram abaixo com o surgimento dos estados totalitários, culminando

no segundo conflito mundial.

Terminado o conflito, contudo, iniciamos a fase de internacionalização dos

direitos humanos fundamentais da pessoa humana.21 Do ponto de vista do estudo

que estamos fazendo, podemos considerar que o século XX foi o século por

excelência dos direitos humanos fundamentais. Há uma verdadeira proliferação22 de

documentos internacionais, a partir da segunda metade do século XX. O holocausto

levou a comunidade internacional a buscar reforço para a proteção dos direitos

humanos fundamentais além das fronteiras do Estado-nação – que violava

reiteradamente tais direitos –, como forma de pressão internacional.

por ter sido inspirada na Constituição polonesa, de caráter fascista – investiu contra os direitos fundamentais. 21 A primeira fase foi a das declarações, no século XVIII, e a segunda fase a da positivação, no século XIX. 22 A expressão é de BOBBIO que, porém, hesitando em usá-la, prefere substituí-la pela expressão ‘multiplicação’, ao referir-se à grande quantidade de documentos internacionais surgidos a partir do final da Segunda Guerra. Cf. A era dos direitos, p.68. Para um breve histórico dos direitos fundamentais ver ainda: LAFAYETTE POZZOLI, Maritain e o direito, pp. 123-133; PAULO G. BRANCO, ‘Aspectos da teoria geral dos direitos fundamentais’, in: GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO & PAULO GUSTAVO BRANCO,. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, pp. 103-113; IGNACIO DA SILVA TELLES, A experiência da democracia liberal, passim.

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De início, destacamos a Carta das Nações Unidas, de 1945, que criou a ONU,

e a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, que estabeleceu como um

dos seus objetivos a possibilidade dos direitos, “exigindo que se procure

assegurar a todos os indivíduos os meios necessários à fruição dos direitos, não se

permanecendo no formalismo cínico e mentiroso da afirmação de igualdade de

direitos onde grande parte do povo vive em condições sub-humanas.” 23 (grifos do

autor)

Também, no mesmo ano de 1948, no dia 2 de maio – antes, portanto, da

Declaração Universal da ONU, que é de dezembro desse ano – foi elaborada a

Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.

Além destes documentos, tivemos muitos outros que precisam ser

mencionados, a saber:

• Em 1950, a Convenção Européia dos Direitos Humanos que constituiu uma

Comissão Européia de Direitos do Homem e um Tribunal Europeu de Direitos do

Homem;

• Em 1965, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação

Racial;

• Em 1966, os Pactos Internacionais de Direitos Humanos, com a finalidade de

conferir dimensão jurídica à declaração de 1948; 24

• Em 1969, a Convenção Americana de Direitos Humanos;

23 DALMO DALLARI, Elementos de teoria geral do estado, p.187. 24 Adotado pela Resolução nº 2.200-A(XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992. Cf. LAFAYETTE POZZOLI, Maritain e o direito, p.99 (notas de rodapé 42 e 43) e Direito comunitário europeu, p. 74, nota nº 30.

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• Em 1979, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação

contra a Mulher;

• Em 1981, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos: importante

documento pelo reconhecimento de direitos de 3ª geração (direito à paz, art. 23 e

ao desenvolvimento, art. 22);

• Em 1982, a Declaração para Eliminação de todas as Formas de Intolerância e

de Discriminação Religiosa;

• Em 1984, a Convenção contra a tortura;

• Em 1986, a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento;

• Em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança;

• Em 1992, a Convenção sobre a diversidade biológica.25

Na segunda metade do século XX, surgiram, assim, os direitos de terceira

geração.26 Esta geração de direitos ficou conhecida como ‘direitos de fraternidade’

ou ‘solidariedade’, porque agora trata-se de considerar o ser humano não apenas

na sua dimensão individual (como ocorrera por ocasião da proclamação dos direitos

de primeira geração) ou na sua dimensão coletiva (como foi o caso do período da

segunda geração de direitos), mas na sua dimensão humanitária, na sua essência

25 Lembramos ainda, no plano interno, por terem sido produzidas no segundo pós-guerra, as Constituições do Brasil: de 1946, de inspiração social-democrata, que, nos artigos 129 a 145, integrou a Justiça do Trabalho ao Poder Judiciário, proibiu a pena de morte e consagrou o direito de ação; de 1969, de caráter autoritário, criou a doutrina da segurança nacional, que desconsiderava os direitos fundamentais, previstos no art. 153; e a de 1988, Constituição compromissária e dirigente, foi batizada como ‘Constituição cidadã’, pelo privilégio, valor e extenso rol de direitos fundamentais, previstos no artigo 5º e em outros. 26 Sobre os direitos de 3ª geração, cf. ainda COMPARATO, A afirmação histórica dos direitos humanos, p.359 e FRANCO MONTORO, Estudos de filosofia do direito, pp. 221-243, onde destaca o direito ao desenvolvimento.

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como humano, “pensando o ser humano enquanto gênero e não adstrito ao

indivíduo, ou mesmo, a uma coletividade determinada”.27

Podemos considerar direitos dessa fase histórica, os direitos à paz no mundo,

o direito ao desenvolvimento econômico, o direito ao meio ambiente sadio, o direito à

preservação do patrimônio comum da humanidade, o direito à comunicação, dentre

outros.28

1.1.5. A crise da modernidade e a era da incerteza 29

O breve histórico da afirmação dos direitos fundamentais até aqui realizado,

passando pela fase das declarações de direitos no século XVIII, da sua positivação

no século XIX e da sua internacionalização no século XX – sendo esta chamada ‘a

era dos direitos’ – poderia ser considerado promissor, não fosse o fato de estarmos

vivendo em um momento histórico de crise generalizada. Os fundamentos sobre

os quais a modernidade edificou estão abalados. Os ídolos, outrora sacralizados,

caíram no descrédito.

GILBERTO DE MELLO KUJAWSKI defende que:

27 LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO e VIDAL SERRANO, Curso de direito constitucional positivo, p.78. 28 Ibid., mesma página. 29 Sobre o conceito de ‘crise’ como um parto, um momento de tensão entre o novo e o velho e de indefinição quanto ao que virá (vida ou morte da civilização?), cf. FABIO KONDER COMPARATO, A afirmação histórica dos direitos humanos, pp. 405-406. Sobre uma análise do homem e da sociedade contemporânea, cf. JACQUES MARITAIN, O crepúsculo da civilização; ERICH FROMM, Análise do homem; EMMANUEL MOUNIER, ‘A desordem estabelecida’ in AUGUSTO JOSE CHIAVEGATO (org.), Homem hoje, pp. 89-99; HÉLIO TORNAGUI, Instituições de processo penal, vol.I, pp. 3-9.

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“Embora com inevitável risco de arbitrariedade, cabe estabelecer que as crenças básicas e específicas do mundo moderno, responsáveis pela sua estrutura e contextura durante quatro séculos, e que hoje falham como crenças, desestabilizando o mundo presente em que vivemos, são: nação, razão, ciência, técnica, progresso, revolução e paixão.” 30

E, mais adiante, explica:

“No curso desse processo de hominização do ser, a Nação é sacralizada, pelo romantismo, como santuário da história e da natureza de cada povo, acervo inestimável de ‘nossos’ heróis, ‘nossos’ feitos, ‘nossos’ rios, ‘nossas’ florestas etc. A razão é sacralizada como princípio de desvelamento da natureza e do próprio homem, como fonte da liberdade e da condição de pessoa do ser humano. A Ciência é sacralizada como a estrada real para alcançar a realidade, além do engano dos sentidos e das opiniões. A Técnica e o Progresso são consagrados como princípio e processo de aperfeiçoamento infinito. A Revolução é vivida como a promessa infalível do paraíso terrestre. E a Paixão é arrebatada sinceramente pelas causas mais nobres e elevadas da modernidade. Toda essa consagração humanística veio por terra. A nação se esvaziou como um balão furado, dessacralizada na sua história e na sua natureza A razão pura atingiu o desespero dos seus limites, afrontada pelo irracionalismo cultural, ético, político, existencial, desmoralizada e desacreditada. A ciência, desde a crise dos fundamentos, perdeu e não recuperou sua legitimidade. A técnica degenerou em tecnocracia, precipitando o fim da história. O progresso foi desencantado, fragmentado, e o ‘progressismo’ já não resiste a ironia e ao escárnio A revolução mergulha no ocaso, cansada de se trair a si mesma. E a Paixão já não tem no que acreditar, dissolvendo-se no manto do tédio universal que recobre um mundo cada vez mais cinzento.” 31

O século XX é, por isso, o século da crise dos fundamentos e, como afirma o

economista americano GALBRAITH, estamos na ‘era da incerteza’. 32

30 A crise do século XX, pp. 113-114. 31 Ibid., p.146. 32 “No século que passou, os capitalistas tinham plena certeza do êxito do capitalismo, os socialistas do socialismo, os imperialistas do colonialismo, e os dirigentes políticos sabiam que era seu dever dirigir. Muito pouco dessa certeza ainda existe hoje em dia. Dada a desalentadora complexidade dos

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Apesar dos progressos na ciência e na técnica, os acontecimentos no plano

social e político quase levaram o mundo à destruição na primeira metade do século

XX. E estamos ainda na expectativa pelo que há de vir, mesmo quando há uma

aparente paz entre as nações.33

O historiador DAVID THOMSON, analisando os fatos que marcaram o século

XX, conclui que não temos o controle dos acontecimentos como gostaríamos e

que todos os esforços empreendidos a nível internacional para a solução de crises

podem ter conseqüências inesperadas.

THOMSON pergunta:

“O mundo de 1961 estava-se dirigindo para a cisão ou para a integração? Se alguma moral pode ser tirada da história mundial após 1914 é que os acontecimentos não seguem um movimento inevitável e raramente apresentam um padrão previsível. Houve sinais de que o próprio entrechoque dos oponentes obrigou a que ambos se tornassem mais semelhantes. O efeito cumulativo da guerra fria, a revolução colonial, os triunfos da democracia e do Estado do bem-estar, o progresso da ciência, tudo isso devia conduzir os povos cada vez mais ao padrão de vida estabelecido pela civilização ocidental. Os Estados-nações soberanos, reivindicando ou aspirando a serem Estados democráticos do bem-estar, todos igualmente objetivam a autodeterminação, o crescimento econômico através da industrialização e um amálgama de segurança social e nacional. Mas tal assimilação não leva necessariamente a uma harmonia maior; na verdade, exatamente como o conflito encoraja a assimilação, assim também a semelhança pode gerar o conflito. Nenhum deles pode controlar os

problemas enfrentados atualmente pela humanidade, sem dúvida alguma seria estranho se ainda existisse.” Prefácio de A era da incerteza, p. XV. 33 O historiador A. SOUTO MAIOR, ao analisar as causas da I Guerra Mundial, observa: “Se bem que as reformas sociais e o desenvolvimento das ciências e das idéias democráticas tivessem dado ao século XIX uma posição de destaque na história do desenvolvimento social e cultural da humanidade, as competições de ordem econômica, apoiadas num nacionalismo belicoso e apaixonado, conduziram o mundo a uma catástrofe : a guerra de 1914-1918.” Cf. Souto Maior, História Geral, 15a. ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1974, p.387.

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acontecimentos conforme gostaria. Mesmo os esforços internacionais em concerto de ações podem ter conseqüências inesperadas.” 34

E termina seu livro advertindo que :

“A atitude sugerida pelo estudo da história recente, a despeito dos maravilhosos feitos da humanidade e de suas potencialidades ainda mais maravilhosa deve ser de humildade, não de orgulho. É raro que os homens extraiam dos grandes acontecimentos exatamente os benefícios que haviam esperado. Os transes mais desconcertantes da humanidade são solucionados mais pela pressão dos acontecimentos e contingências, que impõem concessões relutante a cada lado, do que pelos mais engenhosos projetos dos peritos ou pelos profetas.” 35

Além de tudo o que já aconteceu no século XX, ameaçando sempre a

efetividade dos direitos fundamentais – declarados, positivados e internacionalizados

– estamos, neste início de século XXI, sob a ameaça do terror, que poderá levar,

mais uma vez, à supressão destes direitos.

ERIC J. HOBSBAWM esclarece, no prefácio do seu livro A era das

revoluções 36 seu propósito hermenêutico – que deveria ser o objetivo de todo

historiador – , isto é, compreender o sentido da história:

“Este livro não pretende ser uma narrativa minuciosa, mas sim uma interpretação e o que os franceses chamam de haute vulgarisation. Seu leitor ideal seria aquele construtor teórico, aquele cidadão culto e inteligente, que não tem uma simples curiosidade sobre o passado, mas que

34 Pequena história do mundo contemporâneo, pp. 192-193. 35 Ibid., p.193. 36 P.15.

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deseja compreender como e por que o mundo veio a ser o que é hoje, e para onde se dirige.”

Diante desta crise, anuncia-se o fim da modernidade e o início da pós-

modernidade. 37 A época que vivemos aponta para um novo horizonte. Sente-se o

prenúncio de um novo tempo. ALAÔR CAFFÉ ALVES analisa a questão do Estado

numa sociedade de transição, no seu Estado e Ideologia.38 Diz ele:

“É preciso considerar, finalmente, ainda que de forma passageira, pois não constitui o objeto específico deste trabalho, a questão do Estado numa sociedade de transição para um sistema em que as relações sociais de produção não mais se caracterizariam dentro dos princípios e das leis de apropriação privada burguesa do excedente econômico resultante do esforço social.”

E, GARCIA MORENTE, encerra seu livro anunciando o início de uma nova

etapa na história da filosofia

“[Em 1925], num trabalho jornalístico publicado em Madrid, JOSÉ ORTEGA Y GASSET usava como título para esse trabalho esta frase: Deus à vista, como quando os navegantes, da proa do navio, anunciam a terra.(...) Por isso digo que agora começa a terceira navegação da filosofia, de rumos apontados pela proa dos navios, que, como diz Ortega, caminha para um

37 Sobre o ‘pós-moderno’ consulte-se: DAVID HARVEY, A condição pós-moderna, Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992; STEVEN CONNOR, Cultura pós-moderna, Introdução às teorias do contemporâneo, trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, Edições Loyola, São Paulo, 1992; GILBERTO DE MELLO KUJAWSKI, A crise do século XX, especialmente o capítulo 1: ‘A Questão do Pós-Moderno’, pp. 16-29; Cf. também GIANNI VATTIMO, O fim da modernidade, Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. 38 P.290.

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continente em cujo horizonte se desenha o alto promontório da Divindade.” 39

O problema que estamos a enfrentar, porém, diz respeito à

efetivação/concretização dos direitos fundamentais.

Algumas questões se impõem:

• Diante da evolução histórica dos direitos humanos, especialmente no século XX,

que causas impedem sua concretização?;

• Qual o impacto da globalização sobre os direitos fundamentais? Até quando as

cláusulas pétreas suportarão “as tentativas desregulamentadoras

/desconstitucionalizadoras advindas dos setores neoliberais”? 40

• Por que há uma crônica falta de efetividade das normas constitucionais? E, por

que a Constituição de 1988 ‘ainda não aconteceu’?;

Estas questões nos levam a algumas considerações sobre a atual crise do

Estado Social e o fenômeno da globalização, que ameaça todas as conquistas até

aqui obtidas a duras penas.

39 Fundamentos de filosofia, p.317. 40 LENIO STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p.453.

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1.2. A Globalização Capitalista e o Problema da Inefetividade

dos Direitos Fundamentais

1.2.1. A crise do estado social e a crítica à globalização e ao neoliberalismo

“Este é o aspecto menos discutido, mas não o menos importante, das transformações correntes. O debate sobre o encolhimento do Estado e sobre a liberação das forças de mercado envolve, necessariamente, a reavaliação de uma ética” 41

Julga-se que os primeiros sinais da crise do Estado Social surgem na

década de setenta do século XX, com os choques do petróleo de 1973 e 1979 sobre

as economias do mundo desenvolvido. A partir da década de 80, a crise econômica

mundial acabou levando os países capitalistas a restringirem os custos sociais e à

privatização dos serviços, no período dos governos TATCHER, na Inglaterra, e

REAGAN, nos EUA.

Começou então o processo de desregulação da economia e de

desestatização. Paralelamente, a crise das economias socialistas levou também à

dissolução desses regimes, no final da década de 80 e início dos anos 90.

Nos países em fase de desenvolvimento, os organismos internacionais do

capitalismo financeiro passaram a ‘ditar’ as regras do jogo, condicionando o aporte

de recursos e refinanciamento das dívidas desses países à adoção das políticas

contencionistas dos gastos estatais por eles estabelecidas.

41 JOSÉ EDUARDO FARIA e ROLF KUNTZ, Qual o futuro dos direitos?, p.19.

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26

Daí falar-se na perda de soberania desses países, que não teriam condições

de estabelecer suas próprias políticas de investimento social, e no fortalecimento

da soberania de mercado, havendo perda de intervenção, controle e direção, e

surgindo a descentralização política e jurídica. 42

Em relação aos direitos fundamentais, a proposta neo-liberal é pela

desconstitucionalização dos direitos sociais, ou seja, adequação do direito nacional

ao direito ‘transnacional’, reforma do direito trabalhista e reforma da previdência.

Por toda essa conjuntura, a globalização tem merecido a crítica de vários

autores, tanto no plano externo quanto internamente. No plano externo, NOAM

CHOMSKY tem sido um destes críticos.43 Entre nós, BONAVIDES talvez seja,

senão o maior, o mais contundente crítico desse modelo.44 Diante da ameaça da

globalização econômica para os direitos fundamentais, PAULO BONAVIDES

defende a existência de uma quarta geração de direitos, que seriam o direito à

democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.45

42 Fala-se, por isso, que estaríamos não no neoliberarismo, propriamente dito, mas numa etapa de neo-feudalismo. 43 Cf. O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global, pp. 21-46. Para a crítica da doutrina neoliberal e dos efeitos socias perversos da globalização capitalista, consulte-se ainda: FRIEDRICH MÜLLER, ‘A democracia, a globalização e a exclusão social’, in: Anais da XVIII Conferência Nacional dos Advogados. Cidadania, vol. 1, pp. 263-270; 44 Cf. Teoria constitucional da democracia participativa, pp. 66-86. Ver também: REINALDO GONÇALVES, ‘Políticas neoliberais e exclusão social. Heranças e rupturas’, in: Anais da XVIII Conferência Nacional dos Advogados. Cidadania, Ética e Estado. Brasília, OAB, Conselho Federal, vol. I: 311-319, 2003; JOÃO RICARDO W. DORNELLES, ‘Ajustes neoliberais, direitos econômicos, sociais e culturais e o descaso com os princípios constitucionais no Brasil’, in: MANOEL MESSIAS PEIXINHO, ISABELLA FRANCO GUERRA & FIRLY NASCIMENTO FILHO (orgs). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de janeiro, Lumen Juris, 2001, pp. 475-482. 45 Curso de direito constitucional, p.524.

Page 27: INTRODUÇÃO - PUC-SP

27

Nesse quadro econômico e político internacional gostaríamos de apresentar

as causas que a doutrina aponta, especialmente no caso brasileiro, para a ineficácia

dos direitos fundamentais.

1.2.2. O problema da inefetividade dos direitos fundamentais no caso brasileiro

“O pior mal já está feito quando se tem pobres para defender e ricos para conter. É apenas sobre a mediocridade que a força das leis se exerce completamente: elas são igualmente impotentes contra os tesouros do rico e contra a miséria do pobre; o primeiro as engana, o segundo lhes escapa. Um rompe a rede, o outro passa através dela” 46

1.2.2.1. A inefetividade para Ingo Sarlet e José Eduardo Faria

Para INGO SARLET os direitos fundamentais “constituem construção

definitivamente integrada ao patrimônio comum da humanidade”.47

Contudo, como observa já nas notas introdutórias do seu livro, em plena era

tecnológica, apesar de todo progresso e evolução, ainda continua agudo o perene

problema da eficácia e efetivação dos direitos fundamentais diante do abismo

existente entre norma e realidade e, – lembrando a análise feita por ERIC

HOBSBAWM, em A Era dos Extremos – o “não superado fosso entre ricos e

pobres”. Recorda também as ameaças advindas das agressões ao meio ambiente,

as manipulações genéticas, a fragilidade da paz, entre outros fatores que aponta.48

46 ROUSSEAU, Discours sur l’Économie Politique, apud, JOSÉ EDUARDO FARIA, Direitos humanos, direitos sociais e justiça, p.3. 47 A eficácia dos direitos fundamentais, p.23. 48 Ibid., pp. 23 e 398.

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28

Por paradoxal que seja – acrescenta SARLET – são precisamente nos países

que consagraram um extenso rol de direitos fundamentais que sua ineficácia mais se

manifesta.

Já uma abordagem a partir do impacto da globalização sobre o direito em

geral e sobre a eficácia dos direitos fundamentais, em particular, é feita por JOSÉ

EDUARDO FARIA. 49

Segundo FARIA, algumas características da globalização do capital que

poderiam ser apontadas seriam:

• Desregulamentação da economia;

• Revogação dos monopólios públicos;

• Abertura comercial;

• Inserção das economias periféricas e semi-periféricas nos mercados globais.

Qual terá sido o impacto da transnacionalização dos mercados sobre a

economia, a política, o direito e a sociedade? Em resumo, este impacto poderia ser

relacionado da seguinte maneira:

• no plano econômico: aumento da produtividade e da competitividade;

• no plano social: modificação das condições estruturais dos padrões de trabalho,

fim das políticas de emprego, seguridade pública e bem-estar social;

49 Qual o futuro dos direitos?, pp.7-8.

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29

• no plano político: internacionalização das decisões e déficit de legitimidade da

democracia representativa;

• no plano jurídico: desconstitucionalização e deslegalização dos direitos sociais;

• no plano institucional: alterações no arcabouço do direito positivo e nas

competências e alcance da jurisdição dos tribunais.

Deter-nos-emos apenas à crítica que o autor faz à timidez hermenêutica das

cúpulas do Poder Judiciário em relação à efetivação dos direitos fundamentais. Por

que tem sido tão tímida a atuação do Judiciário a esse respeito?

FARIA aponta como causa da timidez hermenêutica das cúpulas do Poder

Judiciário a “cultura normativista e positivista, envolvendo a obsessão pelo apego

aos ritos e procedimentos formais” e a resistência “a interpretações praeter legem

no plano dos direitos humanos e sociais. Por causa de sua mentalidade dogmática,

elas [as cúpulas do Poder Judiciário] tendem a considerá-los como uma distorção

das funções judiciais, como uma ameaça à ‘certeza jurídica’ e como uma

perversão da ‘segurança do processo’.50

Acrescenta ainda que há uma forma sutil de se negar efetividade aos direitos

humanos e sociais, qual seja, através de uma “interpretação dogmática” do direito

que enfatiza a inexistência de leis complementares que regulamentem os direitos e

as prerrogativas assegurados pela Constituição, servindo o argumento para

conquistar “o silêncio, o apoio, a lealdade e a subserviência dos segmentos sociais

50 Cf. ‘O Judiciário e os direitos humanos e sociais: notas para uma avaliação da Justiça brasileira’, in Direitos humanos, direitos sociais e justiça, pp. 95-96.

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30

menos favorecidos, pouco dando em contrapartida, em termos de efetivação de seus

direitos humanos e sociais.” 51

FARIA critica duramente a burocratização e ineficiência do Poder Judiciário

que não está preparado para enfrentar os novos tipos de conflitos sociais que lhe

são apresentados, resolvendo apenas questões rotineiras e triviais em todos os

ramos do direito, hesitando diante das novas situações que surgem. Além do mais,

denuncia a conivência da Justiça com a sistemática violação dos direitos humanos e

sociais ao negar-lhe efetividade.

Relata-nos, finalmente, uma série de violações dos direitos fundamentais para

demonstrar a ineficiência do Judiciário e, como conseqüência, gerar sua crise de

legitimidade e o retrocesso do Estado de direito para o estado de natureza, a saber:

• Violência no campo;

• Exploração do trabalho de crianças;

• Violência policial;

• Esquadrões de extermínio de menores carentes;

• Justiceiros;

• Milícias privadas das companhias particulares de segurança;

• Quadrilhas de traficantes que controlam os morros e as favelas;

• Trabalho escravo no campo.

51 Ibid., p. 98-99.

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1.2.2.2. A causa da inefetividade para Luís Roberto Barroso

Na primeira parte do seu livro, O Direito Constitucional e a Efetividade de

suas Normas, LUÍS ROBERTO BARROSO aponta as raízes e causas do fracasso

institucional brasileiro através de um levantamento histórico da nossa experiência

constitucional.

Após esse levantamento histórico, finaliza esta primeira parte com um capítulo

sobre a frustração constitucional. Os dois valores fundamentais – segurança e

justiça – não estão assegurados. Conclui então que “uma ordem jurídica incapaz da

satisfação ponderada desses dois valores fundamentais se reduz a um mero

formalismo retórico”. 52 Essa realidade acaba conduzindo a um sentimento

constitucional de descrença.

Relembra-nos, LUÍS ROBERTO BARROSO, que uma das causas dessa

descrença constitucional é a insinceridade normativa. A Constituição norte-

americana não foi elaborada pelo povo americano, como está proclamado na sua

abertura, mas sim, a portas fechadas, por “abastados comerciantes e proprietários,

heróis militares e advogados de renome. Não se contabilizou um voto nem se ouviu

uma palavra do cidadão comum...”; 53 e, mais adiante, arremata: “Não é incomum a

existência formal e inútil de Constituições que invocam o que não está presente,

afirmam o que não é verdade e prometem o que não será cumprido.” 54

52 P.45. Cf. também neste sentido JOSÉ EDUARDO FARIA ‘O Judiciário e os direitos humanos e sociais: notas para uma avaliação da Justiça brasileira’, in Direitos humanos, direitos sociais e justiça, p.98. 53 O direito constitucional e a efetividade de suas normas, p.57. 54 Ibid., p.59.

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32

Critica também o autor o que ocorre com mais freqüência, isto é, “a farsa de

regimes autoritários que ocultam a violência, o privilégio e a miséria por detrás de

uma fachada constitucional copiada do mostruário liberal - democrático”.55

BARROSO conclui então, o capítulo três, defendendo que se impõe “o caráter

normativo da Constituição, assegurando aos seus preceitos eficácia jurídica e

social.”. Apela também para que não se adie o esforço de “integrar o Direito

Constitucional ao processo histórico de promoção da justiça e da igualdade, no

campo real e concreto – e não teórico ou retórico”. Citando PAULO BONAVIDES,

afirma que o “drama jurídico das Constituições contemporâneas assenta

precisamente na dificuldade de passar da enunciação de princípios à disciplina de

direitos acionáveis...” 56

1.2.2.3. A inefetividade do texto constitucional segundo Lenio Luiz Streck

Na obra de LENIO LUIZ STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica,

encontramos várias razões apontados pelo autor para explicar a crônica falta de

efetividade do texto constitucional.

Em primeiro lugar, uma causa de natureza histórica, que é denominada por

LENIO STRECK de deficit histórico. Que aconteceu historicamente no Brasil em

relação ao valor da Constituição no ordenamento jurídico?

55 Ibid., p.60. 56 Ibid., p.71.

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33

Segundo o autor, a causa da inefetividade do texto constitucional se deve à

tradição de baixa constitucionalidade em nosso país, pois, “...somente em 1965 é

que o Brasil adota... uma forma de controle concentrado objetivo de

constitucionalidade...” 57

Valendo-se do conceito gadameriano de pré-juízos inautênticos, culpa essa

tradição de baixa constitucionalidade pelo obstáculo à compreensão do sentido

autêntico da Constituição:

“...essa fraca tradição vai gerar efeitos negativos no modo-de-aplicar-a-Constituição, pós-entrada em vigor do texto dirigente da Constituição de 1988. Os pré-juízos da comunidade jurídica estão condicionados pela tradição de ‘baixa constitucionalidade’, razão pela qual o elevado grau de inefetividade do texto constitucional. São, pois, naquilo que se entende como direito constitucional exsurgente do Estado Democrático de Direito, pré-juízos inautênticos, que obstaculizam o des-velamento do sentido de Constituição, produto daquilo que Jorge Miranda argutamente chamou de revolução copernicana do direito constitucional.” 58

No Brasil, a efetividade do sistema jurídico sempre deixou a desejar. O

constituinte de 87/88, diante da tradição brasileira de inefetividade do sistema

jurídico procurou solucionar o problema elaborando uma Constituição mais longa,

que consagrasse todos os anseios da sociedade brasileira, saída do período militar.

Entretanto, os setores conservadores acabaram incluindo no texto muitas normas de

eficácia contida e limitada.

57 Jurisdição constitucional e hermenêutica, p.381. 58 Ibid., mesma página.

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34

Isso não deveria impedir, porém, que através dos instrumentos colocados à

disposição pelo constituinte, se desse efetividade às conquistas ali consagradas.

Ficou faltando, pois, um acontecer constitucionalizante, segundo STRECK.59

A baixa constitucionalidade, segundo STRECK, constitui-se também num

obstáculo para a compreensão do Estado Democrático de Direito e da força

normativa da Constituição.60 Explica STRECK que essa tradição leva o

pensamento dogmático do direito a produzir um discurso hermeneuticamente

inautêntico, que valoriza a legislação em detrimento da Constituição.61

Lembra-nos os perigos dos pré-juízos inautênticos legados pela tradição,

conforme GADAMER, e que se fundam na autoridade. Esses pré-juízos aproximam-

se daquilo que ele chama sentido comum teórico dos juristas e adverte que eles

nos levam a interpretações descontextualizadas do sentido da história e à

resistência aos novos paradigmas filosóficos e jurídicos.62

A tradição, no Brasil, não aceita a idéia de Constituição Dirigente, com

eficácia plena. Daí ser mais fácil modificar a Constituição do que o Código Civil. E o

Código Civil, seguindo o modelo francês, ainda é mais importante do que a

Constituição.63

59 Ibid., pp. 452, 832 e 835. 60 Ibid., pp. 538, 707 e 710. 61Ibid., p.381. 62 Ibid., pp. 382-383. 63 ibid., p. 383.

Page 35: INTRODUÇÃO - PUC-SP

35

Mas há, também, uma causa de natureza filosófico-epistemológica. A

Constituição não pode ser convertida em objeto de conhecimento, ou seja, em uma

abstração de conceitos universalizantes sob pena de perder a raiz, o solo em que foi

produzida e que será aplicada.

Que significa entificar a Constituição? Significa produzir conceitos

petrificados, congelados, que impedem o seu acontecer, isto é, suas

possibilidades hermenêuticas, pois houve uma parada na espiral hermenêutica. A

Constituição Federal deixa assim de estar aberta ao ser, à realidade, que é

dinâmica, mutável, ocorrendo pois neste esquecimento do ser o esquecimento da

diferença ontológica, obnubilando o aparecer da singularidade.64

Acrescente-se, ainda, além da tradição de baixa constitucionalidade, para

explicar a causa da crônica inefetividade do texto constitucional, “a falta de uma

teoria constitucional adequada e a própria crise do Direito” 65 E, some-se a isso, o

avanço neoliberal e um cem número de emendas que comprometem o núcleo

essencial da Carta, além de violar os limites ao poder de reforma.66

LENIO STRECK analisa alguns casos de inefetividade. Por exemplo, a

ineficácia do controle difuso de constitucionalidade. Vigente no país há mais de

um século, mesmo assim, o peso da tradição de baixa constitucionalidade, tem

levado a comunidade jurídica a privilegiar a legislação infraconstitucional em

detrimento da Constituição. A jurisdição ordinária se ocupa apenas com o controle

64 STRECK, Jurisdição constitucional, p.577. 65 Ibid., p.709. 66 Ibid., p.710.

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36

da legalidade, deixando para outra instância o controle da constitucionalidade, como

se fosse possível fazer essa separação. Tem-se, assim, o que se pode denominar

de ‘baixa’ aplicação do controle difuso pelo juízo singular. Além disso, os tribunais

confundem controle difuso com controle concentrado.67

Após a análise de vários julgados, STRECK conclui também pela ineficácia

do mandado de injunção, o que, segundo ele, constitui um paradoxo, pois o

instrumento criado pelo constituinte para tornar eficaz as normas constitucionais

tornou-se ineficaz pelo próprio Judiciário, o que provocou forte crítica de JOAQUIM

ARRUDA FALCÃO ao STF.68

Por outro lado, a análise que o autor faz da ação direta de

inconstitucionalidade por omissão, não é nada otimista:

“Ações de inconstitucionalidade por omissão poderiam funcionar como uma alavanca para a discussão da concretização da Constituição. Não é o que tem ocorrido, entretanto. Como já referido, problemas semelhantes aos ocorridos com o mandado de injunção levaram a ADInPO a uma morte prematura. A quase total ineficácia da ação de inconstitucionalidade por omissão ocorre na contramão da relevante circunstância de que esse instituto é produto de um novo conceito de constitucionalismo, umbilicalmente ligado à concepção intervencionista e ao plus normativo que assume o Direito (constitucional) no Estado Democrático de Direito.”. 69

Qual seria a causa apontada por STRECK, para essa ineficácia? Ele

responde que sua ineficácia “deita raízes em razões semelhantes às que levaram à

67 Ibid., p. 462-464. 68 Ibid., pp. 536-538. 69 Ibid., p.788.

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derrocada do mandado de injunção.” 70 Ele atribui essa ineficácia, também, à

confusão estabelecida na doutrina entre a ADInPO e o mandado de injunção: “A

tese de que o mandado de injunção não passa de uma ação de inconstitucionalidade

por omissão subsidiária surgiu logo após o advento da Constituição, através do

jurista J.J. Calmon de Passos, e ganhou força no âmbito da doutrina e da

jurisprudência constitucional.” 71 A tese doutrinária foi acolhida tanto no STF como

no STJ (julgado do mandado de injunção nº 27).

Insurgiu-se contra esse entendimento, no entanto, JOSÉ AFONSO DA SILVA,

para quem é um absurdo a inserção do mandado de injunção no âmbito da

inconstitucionalidade por omissão.72

Por outro lado, um levantamento da jurisprudência indexada do STF “aponta

para a ineficácia da ação de inconstitucionalidade por omissão”. De um total de 53

ações contabilizadas: 22 aguardam julgamento; 7 não foram conhecidas; 14 foram

julgadas prejudiciais; 8 tiveram negado seguimento; 1 caso de extinção do processo;

2 tiveram êxito.73 Que quadro estarrecedor!

Já em relação à argüição de descumprimento de preceito fundamental

(ADPF), somente 11 anos depois(!!!) de promulgada a Constituição, foi editada lei

regulamentando o dispositivo constitucional que previa sua criação, no dia 3 de

dezembro de 1999 (Lei nº 9882).74

70 Ibid., p.780. 71 Ibid., p. mesma página. 72 Cf. Curso de direito constitucional positivo , pp. 388-389. 73 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p.784. 74 Ibid., p. 798.

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38

Por que o STF não deu eficácia à ação? A falta de regulamentação serviu

como argumento para o não-conhecimento e rejeição de todas as argüições

intentadas junto ao STF. STRECK, entretanto, questiona:

“Não parece que a falta de norma regulamentadora fosse fundamento razoável (e suficiente) para negar eficácia a esse importante instituto de proteção dos direitos fundamentais...Daí a pergunta: é possível, na vigência do Estado Democrático de Direito, em havendo remédios... contra a ineficácia de normas....e contra a inefetividade do sistema jurídico..., continuarmos a não aplicar um dispositivo que tem, precipuamente, o escopo de proteger o cidadão contra os abusos do poder e a violação de seus direitos humanos - fundamentais?” 75

Além disso, o veto ao acesso direto do cidadão à jurisdição constitucional,

constitui violação ao próprio dispositivo que estabeleceu a ação, pois, “não se pode

olvidar que a ADPF, fruto do constituinte originário, teve o escopo de ser, desde o

início,...uma ação de cidadania, de caráter individual, concedendo ao cidadão o

direito de pleitear diretamente à Suprema Corte o seu direito, quando este estiver

sendo colocado em xeque por violação de algum preceito fundamental. Se o

constituinte originário não restringiu a legitimidade, qual o fundamento para

estabelecer, agora, essa restrição?” 76

O balanço, portanto, da história constitucional brasileira, não é nada

animador!

A conclusão a que se chega, pois, pelo brevíssimo levantamento da história

dos direitos fundamentais até aqui realizado, é que, a despeito da proclamação

75 Ibid., p. 801. 76 ibid., pp. 810 e 834. Sobre o problema da inefetividade, merece ser lembrada ainda as razões apontadas por CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, A constituição aberta e os direitos fundamentais. Ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário, pp. 255-320.

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universal dos direitos humanos, este é apenas um dos lados da moeda, pois o

problema da ineficácia social permanece, especialmente nos países de modernidade

tardia, como é o caso do Brasil. Foi o que procuramos tornar evidente, neste

primeiro capítulo do trabalho.

Como, entretanto, o objeto da presente pesquisa é de natureza filosófica,

deixaremos de tratar em seguida das causas de natureza socio-políticas, apontadas

pelos autores, detendo-nos apenas na causa lógico-metodológica que envolve a

ciência do direito, ou, em outras palavras, na forma pela qual a ciência aproxima-se

dos seus ‘objetos’.

Como surgiu e se desenvolveu a metodologia jurídica? Por que a metodologia

jurídica gera a inefetividade dos direitos fundamentais? Estas as questões que nos

propomos a enfrentar, na seqüência.

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2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E MÉTODO: A FORMAÇÃO DO

PENSAMENTO METODOLÓGICO-FORMALISTA E O PÓS-

POSITIVISMO

Entre outras, uma das causas da ineficácia social dos direitos fundamentais,

apontadas no capítulo precedente, é a dogmática jurídica formalista que, por

influência da filosofia moderna, converteu o direito em objeto de conhecimento.

Reconstituiremos neste capítulo, em primeiro lugar, a trajetória da filosofia

jurídica, do século XIX ao século XX – quando entra em crise o pensamento

moderno e o positivismo jurídico. Em meio à crise do positivismo, examinaremos o

retorno à ética e aos valores na pós-modernidade e algumas propostas para a

efetividade dos direitos fundamentais.

2.1. A Filosofia Jurídica sob o Domínio Lógico-Metodológico

2.1.1. A metodologia jurídica romântico-formalista no século XIX: a rejeição da fé e a era das ‘certezas’

Tudo começou com DESCARTES...77 Descartado o caminho da fé, sob a qual

havia sido edificado o pensamento medieval, RENÉ DESCARTES sai em busca de

77 Sobre as características da filosofia e da ciência moderna e a influência do pensamento cartesiano, ver: MARILENA CHAUÍ, ‘Filosofia moderna’, in SILVA, Franklin Leopoldo et alii. Primeira filosofia. Aspectos da história da filosofia, pp. 60-81; GARCIA MORENTE, Fundamentos de filosofia, ‘O sistema de Descartes’, pp. 167-177; HILTON JAPIASSU, Nascimento e morte das ciências humanas, ‘Como nasceu a ciência moderna’, pp. 23-59; ROLAND MOUSNIER & ERNEST LABROUSSE, O século XVIII. O último século do Antigo Regime, pp. 15-19. Para a crítica do humanismo antropocêntrico e a rejeição da fé, ver JACQUES MARITAIN, O crepúsculo da civilização; JEAN-JACQUES CHEVALLIER, As grandes obras políticas de Maquiavel aos nossos dias, p.18.

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um caminho seguro para a verdade, em todas as áreas do conhecimento. Este

caminho ele o encontra nas matemáticas, pela qual demonstra todo seu amor e

reverência, nesta passagem:

“Aprazia-me, sobretudo, nas matemáticas, por motivo da certeza e da evidência de suas razões; mas não atentara eu ainda no seu verdadeiro uso, e, pensando que elas não serviam senão às artes mecânicas, admirava-me de que, sendo os seus fundamentos tão firmes e sólidos, nada se houvesse construído sobre eles de mais elevado(...). 78

Encontrado o caminho para a verdade, o racionalismo assim se consolida,

tendo seu apogeu em KANT, iluminista que confiava no pensamento racional, mas

que fora despertado do sono dogmático por HUME.

Chegamos então ao século XIX, ao século do positivismo. E o que foi o

positivismo? Nada mais do que a idolatria da ciência. Algumas vozes se

levantaram – é verdade – contra o racionalismo e o cientificismo. A filosofia

permaneceu, porém, na discussão metodológica. É assim que inauguramos o século

XX.

A filosofia moderna caracterizou-se, pois, pelo privilégio que concedeu às

questões de natureza epistemológico-metodológicas.

Esta diretriz do pensamento ocidental determinou também o debate no âmbito

da filosofia jurídica que voltou-se predominantemente para os aspectos lógico-

78 Discurso sobre o método, pp. 16-17.

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metodológicos do direito. Isto é o que nos revela o estudo das correntes do

pensamento jurídico na modernidade.

Com a codificação do direito, a partir do início do século XIX, e com o triunfo

da ciência sobre a filosofia – e outras formas de conhecimento – os juristas

concentraram seus esforços na construção da sonhada ciência jurídica.

GUIDO FASSÓ 79 observa que:

“Aparte de que el hecho de referirse solamente al Derecho positivo significaba rechazar el Derecho natural, e incluso el repudio de la aborrecida metafisica, más bien que de la filosofia, el operar sobre las normas positivas ofrecia, o parecia ofrecer, la possibilidad de la construcción, por contra de lo que cualquiera pensara, como era el caso de Kirchmann, de una ciência del Derecho. Y la construcción de una ciencia del Derecho que, como sabemos, habia sido siempre el sueno de los juristas, lo era mucho más ahora, en el instante en que la Ciencia parecia celebrar su definitivo triunfo sobre la religión, sobre la filosofia y sobre parecidas formas superadas de conocimiento.”

Por esta razão,

“en los inicios del siglo XIX, la concreta realidad del Derecho, así como su ciencia, van a proponer a la filosofia unos nuevos problemas, o van a plantear de um modo nuevo los problemas tradicionales. Por un lado, el triunfo del iusnaturalismo en el terreno político y legislativo induce a pensar que el derecho natural ha sido ya efectivamente realizado, y que, por tanto, su problema - el problema de sus relaciones con el Derecho positivo - habia perdido su razón de ser. De forma que parece como si el derecho no pudiera plantear a la filosofia otros problemas que los del método de la ciencia del Derecho vigente positivamente, única forma de Derecho pensable. Por otra parte, en el iluminismo inglés, empirista y utilitarista, tiene su origen una nuova línea del positivismo jurídico, caracterizada por

79 Historia de la filosofia del derecho, Vol. 3, pp. 152.

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su formalismo; y con la que más tarde vendrán a confluir las orientaciones precisamente formalistas de la misma reacción romantica al iluminismo. Reacción que por si mesma, aunque por otras razones, se opuso desde sus inicios al iusnaturalismo.” 80

Mas quem dá início à ciência do direito, propriamente dita, no século XIX?

Com quem tem início a moderna ciência do direito?

Considera-se que a “moderna ciência do Direito começa com F.C.von

SAVIGNY (e seus colaboradores e opositores), porque tudo o que se havia dito

antes é transmitido por ele.” 81

Muito embora seja comum admitir-se que o historicismo jurídico opõe-se ao

jusnaturalismo do século XVIII, KARL LARENZ chama a atenção para o fato de

SAVIGNY – que foi um dos fundadores da Escola Histórica – já nos seus escritos de

juventude, considerar a ciência do direito não uma ciência histórica mas também, e

simultaneamente, uma ciência ‘filosófica’, devendo-se entender a palavra ‘filosófica’,

nestes escritos, como sinônima de ‘sistemática’.82

SAVIGNY acentua, portanto, “desde o começo, ao lado do caráter ‘histórico’ e

com idêntica importância, o caráter ‘filosófico’ ou sistemático da ciência do Direito –

80 Ibid., p. 15. 81 A afirmação é de WALTHER SCHONFELD, citado por KARL LARENZ que também concorda com esta idéia. Cf. Metodologia da ciência do direito, 1ª ed., ‘Introdução’, p. XV. 82 Cf. Metodologia da ciência do direito, capítulo 1, p.1, in verbis: “Quem se acostumou a ver a ‘Escola Histórica’ que SAVIGNY ajudou a fundar sobretudo na sua oposição às escolas ‘filosóficas’ do último jusnaturalismo, ficará decerto surpreendido ao ler nas suas lições de inverno de 1802 que ‘a ciência da legislação’ (...) é ‘primeiro uma ciência histórica, e depois, também uma ciência filosófica’ e que ambas as coisas se devem unificar porque a ciência do Direito tem de ser ‘simultânea e completamente tanto histórica como filosófica’.”

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vindo a segui-lo, de resto, nesta alta valorização do sistema científico, quase todos

os juristas representativos da Alemanha de Oitocentos” 83

Nota-se, nos primeiros escritos de SAVIGNY, o espírito racionalista e

científico do seu tempo. Esse espírito que dominou seus primeiros escritos não se

perdeu, pois, ”o elemento sistemático também desempenha um papel considerável

na teoria do método do Sistema.” 84

Contudo, se a formação do sistema jurídico pretendia resolver um problema

de natureza lógica estabelecendo a unidade entre as normas que deveriam ser

deduzidas a partir de certos princípios, por outro lado, o problema hermenêutico, que

colocava a questão geral do sentido da unidade do todo, ainda reclamava uma

solução.

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. esclarece o aparecimento desse problema

no seu livro A Ciência do Direito. 85 Diz ele:

“O jusnaturalismo, como vimos, já havia cunhado, para o direito, o conceito de sistema, que se resumia, basicamente, na noção

83 Ibid., p.12. 84 Ibid., p. 1. Por estas razões K. LARENZ conclui que: “A idéia de sistema, se constitui, na ciência jurídica, uma herança da Escola do Direito Natural, também mergulha profundamente as suas raízes na filosofia do idealismo alemão.” Ibidem, p. 12. Como se sabe, o espírito racionalista da modernidade manifestou-se inicialmente através do jusnaturalismo moderno. Acima do direito positivo está a razão. Portanto, - defendiam os jusnaturalistas - há um direito racional, isto é direito conforme a razão, que deve prevalecer sobre o direito positivo. Surgiu assim a idéia de um direito estritamente lógico que formava um sistema dedutivo. O termo sistema tornou-se preciso e vulgarizou-se com CHISTIAN WOLFF datando do século XVII essa ligação entre pensamento sistemático e ciência, conforme nos lembra TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. Invocando o testemunho de WIEAKER, TÉRCIO lembra-nos ainda que o conceito de sistema é a maior contribuição do jusnaturalismo moderno ao direito privado europeu. “A jurisprudência européia, que até então era mais uma ciência de exegese e de interpretação de textos singulares, passa a receber um caráter lógico-demonstrativo de um sistema fechado, cuja estrutura dominou e domina até hoje os códigos e os compêndios jurídicos.” Cf. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., A ciência do direito, pp. 23 e 24. 85 P.69.

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de um conjunto de elementos ligados entre si pelas regras da dedução. No campo jurídico, falava-se em sistema das ordens da razão ou sistema das normas racionais, entendendo-se com isto a unidade das normas a partir de princípios dos quais elas eram deduzidas. Interpretar o direito significava, então, a inserção da norma em tela na totalidade do sistema. A ligação, porém, entre o conceito de sistema e o de totalidade acabou por colocar a questão geral do sentido da unidade do todo.”

É apenas nesse momento, portanto, que se ganha a consciência que a

ciência do direito surge como teoria da interpretação. Conforme TÉRCIO esclarece:

“Muito embora o desenvolvimento de técnicas interpretativas seja bastante antigo, e, como vimos no panorama histórico, já esteja presente na jurisprudência romana e até na retórica grega, elaborando-se progressivamente nas técnicas das ‘disputationes’ dos glosadores e tomando um caráter sistemático com o advento das escolas jusnaturalistas da Era Moderna, a consciência de que a teoria jurídica é uma teoria hermenêutica, ou seja, a tematização da Ciência do Direito como ciência hermenêutica é relativamente recente.” 86

Assim, é precisamente a partir de SAVIGNY que a questão hermenêutica

“deixa de ser a mera enumeração de técnicas interpretativas, para referir-se ao

estabelecimento de uma teoria da interpretação." 87

Cumpre salientar, portanto, que SAVIGNY não foi apenas influenciado pelo

idealismo romântico. Ele sofreu, como SCHLEIERMACHER, o duplo influxo

racionalista-cientificista e romântico-idealista que caracterizou o início do século XIX.

Por isso, como ocorre na teoria hermenêutica de SCHLEIERMACHER, a

teoria de SAVIGNY enfatiza primeiramente o aspecto lingüístico. Embora o objeto da

86 A ciência do direito, p. 68. 87 Ibid., p. 69.

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interpretação seja “a reconstrução do pensamento que é expresso na lei” o enfoque

é mais para a expressão do pensamento.88

Entretanto, no último SAVIGNY, predomina o lado romântico na sua teoria. A

interpretação não é uma operação lógica para conhecer o texto legal, mas uma

operação intuitiva para conhecer o espírito do povo. Há um deslocamento da

“expressão” para o pensamento e para a “atividade do espírito”.89 Na sua obra de

maturidade SAVIGNY liberta-se da “estrita prisão à palavra da lei defendida nos

seus primeiros escritos.” 90

Esclarece, contudo, KARL LARENZ, em nota de rodapé, que, a seu ver, não é

“correto contar SAVIGNY, como ocorre geralmente, entre os representantes da

teoria ‘subjetivista’ da interpretação” 91 A ‘vontade’ do legislador a que SAVIGNY se

refere não é uma vontade psicológica. O intérprete deve, na verdade, procurar

“atrás dos pensamentos do legislador, o pensamento jurídico objetivo que se realiza

no instituto jurídico”.92 É um engano, pois, considerá-lo, segundo LARENZ, um

representante da teoria subjetivista.

Ao contrário, porém, de SCHLEIERMACHER – que marcou influência pelo

lado psicológico da sua teoria hermenêutica – o que acabou influindo mais na

metodologia de SAVIGNY foi a idéia de sistema como sistema ‘científico’, “idéia

que serviu de ponto de arranque para a ‘jurisprudência dos conceitos’.” 93

88 KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p.2 89 Ibid., p. 8. 90 Ibid., p.10. 91 Ibid., nota 4, p. 8. 92 Ibid., mesma página. 93 Ibid., p. 11.

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A escola pandectista94 e a jurisprudência dos conceitos, que assim surgem da

escola histórica alemã, privilegiam o aspecto lógico-sistemático do direito e, com

isso, necessariamente, teriam que voltar-se contra a interpretação ou, pelo menos,

procurar converter a hermenêutica em lógica jurídica.

Por isso, podemos concluir com VIEHWEG que há no pensamento

jusfilosófico moderno – racionalista e cientificista – a tentativa de eliminar ou, pelo

menos, controlar a interpretação. VIEHWEG, no seu Tópica e Jurisprudência,

observa que esse “desejo da moderna cultura da Europa Ocidental no continente, de

conceber a jurisprudência como ciência” 95 acabará dirigindo-se necessariamente

contra a tópica – e, podemos acrescentar, contra a hermenêutica também.

O projeto para controlar a tópica, e conseqüentemente a interpretação, foi

desenvolvido, conforme nos lembra VIEHWEG, por LEIBNIZ. Como a tentativa de

controle fracassou, foi necessário, explica VIEHWEG, substituir a tópica pelo

sistema: “(...) se se põe de lado a frustrada tentativa de LEIBNIZ de conservar a

estrutura tópica ao mesmo tempo controlando-a, torna-se necessário, com o

propósito de obter a ‘cientifização’ pretendida, substituir a tópica pelo sistema.” 96

Assim, com o aparecimento da jurisprudência dos conceitos surge a teoria

objetiva da interpretação contrapondo-se à teoria subjetiva – que ainda conservava

94 Segundo MIGUEL REALE, “A ‘Escola dos Pandectistas’, na Alemanha, corresponde, até certo ponto, à ‘Escola da Exegese’, na França, no que se refere ao primado da norma legal e às técnicas de sua interpretação.” Cf. Lições preliminares de direito, p.278 e 279. ‘Pandectas’ designa a coleção de fragmentos dos jurisconsultos romanos que foram objeto de investigação e sistematização dos juristas alemães do século XIX. Ver PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário jurídico. 95 P.75. 96 Tópica e jurisprudência, p.75.

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seu resíduo romântico-historicista – considerando que a tarefa da interpretação é a

compreensão da ‘vontade’ da lei, que era considerada razão escrita.

Como esclarece LARENZ havia algo de errado na doutrina da maioria dos

autores (ou, pelo menos, algo de inconciliável ou incompatível) que, no clima

racionalista dominante, defendiam a teoria subjetiva da interpretação, isto é, que a

tarefa da interpretação era “transmitir a vontade empírica do legislador histórico. (...)

Com efeito, se a lei vale menos, em último termo, por ser ‘positiva’ do que por ser

‘racional’, mais do que a vontade empírica do legislador cumpre recorrer à sua

vontade ‘racional’, ou seja, à razão jurídica contida na lei”. E acrescenta que “foi a

esta exigência e, ao mesmo tempo, a um tipo de pensamento que era ainda muito

mais determinado pelo racionalismo do que pelo historicismo ou até pelo positivismo,

que correspondeu a teoria subjetivista da interpretação.” 97

Para cumprir, então, a missão de “revelar a razão mais ou menos oculta na lei

e libertar cada norma da lei do seu isolamento empírico, de a depurar digamos

assim, reconduzindo-a a um princípio superior ou a um conceito geral (...) utilizar-se-

á a interpretação ‘lógica’ e ‘sistemática’.” 98

Na França, o esforço da escola da exegese foi converter a interpretação da lei

numa operação mecânica de lógica dedutiva. Não era a interpretação da lei o que

se pretendia propriamente, mas sim uma operação lógica, estritamente racional e,

portanto, controlada.

97 Cf. Metodologia da ciência do direito, p .31. 98 Ibid., pp. 30-31.

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O intérprete era – ou deveria ser – escravo da lei. “O intérprete deveria

proceder more geometrico, deduzindo o sentido oculto da lei mediante

procedimentos filológicos e lógicos.” 99 Não se podia em hipótese alguma substituir

a vontade do legislador pela vontade do intérprete. A lei devia ser aceita e aplicada

com todos os seus defeitos.

Esclarece MIGUEL REALE que o estrito apego à lei com a finalidade de

declarar a vontade do legislador devia-se ao apego desmedido ao princípio

constitucional da separação de poderes pois entendia-se que esse princípio ficava

comprometido caso o intérprete substituísse a vontade do legislador pela sua.100

A escola da exegese passou, entretanto, de uma fase extremada em que só

se admitia a interpretação gramatical (filológica ou literal) para uma fase mais

moderada em que percebeu-se a necessidade da interpretação histórica e

sistemática.101

99 LUIS FERNANDO COELHO, Lógica jurídica e interpretação das leis, p.226. 100Lições preliminares de direito, p.276. 101LUIS FERNANDO COELHO, Lógica jurídica e interpretação das leis, pp. 228-229. COELHO explica esta passagem da escola da exegese da fase extremada para a fase moderada na interpretação da lei: “A princípio, limitavam-se os juristas a interpretar o código por meio da gramática e da revelação do sentido literal das palavras (...)Aos poucos porém aperceberam-se os juristas da insuficiência desse processo e concluíram que, para a exata interpretação da lei era necessário recorrer às fontes, isto é, aos trabalhos preparatórios da lei;(...) começou-se a admitir a interpretação histórica, isto é, o exame das circunstâncias que antecederam a lei. Alguns exegetas propugnaram pela consideração da tradição histórica e dos costumes, e até dos princípios gerais do direito e da eqüidade, porém repelidos pelo legalismo extremado dos mais ortodoxos. Admitiu-se mais tarde outro processo: a necessidade de evitar enganos levou os juristas a considerarem cada título dentro do contexto do código: interpretação denominada lógica ou sistemática, já que a mesma lei pode assumir sentidos diferentes conforme o lugar onde se ubique no conjunto da legislação.(...) Segundo Demolombe, ‘antes de tudo, os textos’, e ‘interpretar é elucidar o sentido verdadeiro da lei, não é inovar, é simplesmente declarar, reconhecer´...”

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Foi a partir dessa postura ‘hermenêutica’ da escola da exegese que a decisão

judicial acabou convertendo-se num silogismo em que a premissa maior é a lei e, a

premissa menor, o caso concreto que deveria ser subsumido à norma geral.

A fase da idolatria do Código como uma lei imutável, porém, não poderia

durar muito tempo. A Escola da Exegese teve um período relativamente curto de

duração (1830 –1880), sendo contestada suas principais teses.

As transformações sociais ocorridas na Europa, na segunda metade do

século XIX, produziram uma primeira crise no positivismo jurídico dogmático-

formalista que podemos designar como uma crise de natureza sócio-econômica para

procurar distingui-la da crise ético-política que ocorrerá no século XX.

As revoluções tecnológicas modificaram o sistema capitalista de produção

que, da sua fase mercantilista, passou para a fase industrial, na segunda metade do

século XIX. As transformações econômicas provocaram o êxodo rural e

conseqüentemente o crescimento das cidades. A sociedade rural do início do século

transformava-se em sociedade urbana; a sociedade agrária em sociedade industrial.

Essas transformações sociais geraram novos tipos de conflitos até então

desconhecidos e não previstos pelos códigos. Foi-se abrindo paulatinamente um

fosso entre as normas jurídicas codificadas e os fatos da realidade social.

Apareciam, assim, as primeiras lacunas na legislação e a tese da plenitude legal da

Escola da Exegese era abalada. Os fatos primeiro – e os juristas logo em seguida –

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contestaram essa tese. Era preciso encontrar o direito em outras fontes para

solucionar os novos conflitos.

Podemos reunir sob a denominação de Movimento do Direito Livre, as teorias

jurídicas que em vários países contestaram os postulados das escolas formalistas,

ora de forma moderada, ora radical. Limitar-nos-emos, na seqüência, a apresentar a

nova proposta metodológica para a ciência do direito, surgida na Alemanha, através

da crítica de JHERING.

2.1.2. O sociologismo jurídico e a reação formalista no século XX

2.1.2.1. Do formalismo para o sociologismo jurídico

No novo contexto de transformações sócio-econômicas da segunda metade

do século XIX e, também, com o surgimento do positivismo sociológico de

AUGUSTO COMTE no âmbito filosófico, as teorias jurídicas inclinaram-se para a

concepção do direito como puro fato – ora psicológico, ora sociológico ou, mesmo,

lingüistico.

A reação contra o formalismo jurídico, isto é, contra a lógica formal e a

conexão ou – mais que isso – a redução do direito ao fato (especialmente ao fato

social) levaram as teorias jurídicas a considerarem os fins e os interesses como

objeto da ciência do direito. A nova tarefa que se impunha agora era o

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conhecimento dos fins e dos interesses sociais que constituíam a causa do direito

(ou das leis).

Na Alemanha, a crítica ao positivismo dogmático-formalista partiu de um dos

seguidores do pandectismo alemão. Na primeira fase do seu pensamento, RUDOLF

VON JHERING (1818-1892), que escreveu O Espírito do Direito Romano,

“considerava como função essencial da Jurisprudência a ‘construção jurídica’,

realizada através de um procedimento de análise e síntese(...) trabalhando-se sobre

a ‘matéria prima’ jurídica até fazê-la ‘evaporar-se em conceitos.” 102

Descobrem-se então os princípios lógicos do ordenamento jurídico, que não

são declarados pelas normas jurídicas. “Através da combinação de distintos

elementos a ciência pode criar novos conceitos(...) e da combinação dos conceitos

podem surgir ainda outros.” 103

Todavia, na segunda fase do seu pensamento, em que escreveu O Fim do

Direito, JHERING muda de posição e passa à crítica do pandectismo defendendo

uma concepção teleológica e pragmática do direito. “O direito autêntico não é o que

aparece formulado em conceitos abstratos pelas normas gerais, mas o que é vivido

realmente pelo jurista e pelo aplicador.” 104 “O criador de todo o direito é o fim; não

existe nenhuma proposição jurídica que não tenha sua origem em um fim, ou seja,

102 GUIDO FASSÓ, Historia de la filosofia del derecho, p.162. 103 IHERING, Der Geist des romischen Rechts, prag. 3, 3a. ed., Leipzig, 1891, p.40, citado por GUIDO FASSÓ, Historia de la filosofia del derecho, vol. 3.,pp. 162-163. 104 MARIA HELENA DINIZ, Compêndio de introdução à ciência do direito, 3a. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.55.

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num motivo prático.”105 E o fim do direito para JHERING é a proteção dos

interesses.

Com JHERING, pois, surge a metodologia teleológica. Deve-se interpretar a

norma levando-se em conta seus fins.

Cumpre observar, porém, que já no clima racionalista da jurisprudência dos

conceitos, os autores que defendiam a teoria objetivista da interpretação (BINDING,

WACH e KOHLER) abriram a porta para o positivismo sociológico por

entenderem a ‘racionalidade’ da lei “não apenas em sentido formal, como um nexo

lógico entre os conceitos, mas também em sentido material, como racionalidade dos

fins, ou seja, como uma teleologia imanente.” 106 Tratava-se de conhecer – ou

descobrir – a racionalidade imanente dos fins inseridos na lei. Esse entendimento

dos fins é que possibilita a conciliação do método teleológico de interpretação com a

dedução lógico-conceitual (embora esta conciliação seja uma contradição para a

jurisprudência dos interesses).107

Como conseqüência, em oposição à jurisprudência dos conceitos, nascerá na

Alemanha a jurisprudência dos interesses que “substitui o primado da lógica da

Jurisprudência conceitual pelo primado do estudo e da valoração da vida.(...) O fim

último da ciência jurídica e da atividade dos juizes é a satisfação das necessidades

105 IHERING, Der Zweck Im Recht, Prólogo ,3a. ed., Leipzig, 1893, I, p. VIII, apud GUIDO FASSÓ, op. cit., p.163. 106 KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p.32. 107 Ibid., p.34.

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da vida, dos desejos existentes na comunidade jurídica, tanto materiais como

ideais.” 108

Para os juristas dessa escola, “O juiz é um colaborador dentro da ordem

jurídica vigente, para que se realizem os ideais em que essa ordem se inspira.” 109

PHILIPP HECK, considerado o maior representante desse movimento,

defende que a ciência tem uma finalidade prática e não teorética.110 O direito, para

HECK, é produto de interesses e o objeto da ciência jurídica é conhecer com rigor

os interesses reais que causaram a lei. “A interpretação, reclama HECK, deve

remontar, por sobre as concepções do legislador, ‘aos interesses que foram causais

para a lei.” 111

A pesquisa, ou conhecimento do nexo causal da lei, revela o influxo, a

influência do positivismo sociológico que considera científica apenas a pesquisa do

nexo causal conforme as ciências da natureza. A interpretação é, assim, ‘explicação

de causas’.112

Feita esta sucinta apresentação da crítica de JHERING e da proposta da

metodologia teleológica, através da jurisprudência dos interesses, na Alemanha do

século XIX, resta-nos examinar a resistência que o formalismo jurídico ofereceu.

108 GUIDO FASSÓ, Historia de la filosofia del derecho, vol. 3, p.165. 109 LUIS FERNANDO COELHO, Lógica jurídica e interpretação das leis, p. 245. 110 KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p.54. 111 Ibid., p. 56. 112 Ibid., p. 57.

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2.1.2.2. Hans Kelsen: a norma fundamental como hipótese lógica da ciência do direito e a hermenêutica como ato de vontade (o desafio do irracionalismo jurídico)

Apesar de todas as críticas sofridas desde o final do século XIX, o positivismo

jurídico formalista não estava vencido. Surgirá, no início do século XX, a reação ao

movimento do direito livre, em defesa do dogmatismo-formalista. O neopositivismo –

ou positivismo lógico – empunhará a espada contra o que considerava ser a

tentativa de acabar com a ciência jurídica, reduzindo o direito a um mero capítulo da

sociologia.

Esse espírito cientificista do positivismo ainda estava vivo e manifestar-se-á

de forma cotundente na primeira edição da Teoria Pura do Direito de HANS

KELSEN (1881-1973), publicada em 1934.

O objetivo de KELSEN será purificar a ciência jurídica de todo elemento

estranho, isto é, de toda ideologia, de toda política, de todo e qualquer valor e

alcançar mediante a metodologia científica o ideal de uma ciência do direito objetiva

e exata.

KELSEN afirma, no prefácio desta primeira edição:

“Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. Desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, a altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências

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endereçadas à formação do direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão.” 113

E esclarece, ainda, nas primeiras linhas do capítulo um:

“Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito. Quando designa a si própria como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Isto quer dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.” 114

O ideal de exatidão perseguido por KELSEN deveria ser alcançado mediante

o emprego da razão ‘pura’ – ou lógica ‘pura’ – ao conhecimento do direito. Trata-se

de uma ‘análise sintática’ das normas jurídicas que, enquanto objeto de ciência,

convertem-se em proposições lógicas para serem apreendidas pelo pensamento

analítico, isto é, pelo pensamento ‘puro’.

Neste sentido, o pensamento de KELSEN está fundado na filosofia kantiana

do conhecimento. BAPTISTA MACHADO115 sintetiza o ensino de KANT, nestes

termos:

“Aceite como ponto de referência o estatuto elaborado por KANT para o pensamento analítico – ou seja, o pensamento racional, científico, do racionalismo –, facilmente se verificará que este, para se constituir como tal, para atingir a transparência imediata (e atemporal) do nexo lógico, tem de eliminar do seu campo de visão um certo sector da realidade: a realidade do sujeito

113 Teoria pura do direito, ‘Prefácio à 1a. ed.’ ,p. V. 114 Ibid., p.1. 115 ’Prefácio do Tradutor’, in Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, pp. XII-XIII.

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pensante, ou seja todo o sector da realidade antropológica, abrangendo o homem e os seus produtos. Para nos convencermos de que assim é, basta atentar em que, estando a consciência transcendental – segundo o próprio KANT – implícita na consciência empírica(real), e sendo atingida a partir desta através do processo explicitante da reflexão transcendental, uma vez alcançada mediante tal reflexão já não mais necessita ser mediatizada por aquela consciência empírica: apreendida em si, torna-se imediata. Assim se apaga a sua gênese histórica, a sua origem na consciência empírica, historicamente situada. O ponto de vista genético é inteiramente sacrificado ao ponto de vista lógico. Agora, é a consciência empírica que se determina como consciência psicológica em face da consciência transcendental. Mas esta consciência psicológica já não é a consciência real, o sujeito real, onde historicamente teve origem o processo da reflexão transcendental: é, antes, uma consciência totalmente determinada, preenchida por conteúdos fenomenicos determinados. Já não há nela resquícios da consciência transcendental, nem mesmo implícitos. Nós, isto é, o nosso pensamento, passamos a determiná-la justamente por contraposição à consciência transcendental, não empírica, não determinada: o eu puro ou sujeito lógico. Que é feito do eu real, do sujeito real do conhecimento? Foi obliterado, desapareceu para sempre e não poderá voltar a ser reencontrado nesta perspectiva.”

Coerentemente com essa postura metodológica, KELSEN dedicará o último

capítulo da Teoria Pura do Direito para demonstrar que a interpretação jurídica não é

um ato de ciência mas um ato de política, um ato de vontade.116

Se os formalistas do século XIX ainda acreditavam na possibilidade de uma

interpretação “lógica” do direito, já não acontecerá o mesmo com KELSEN que

reconhece essa impossibilidade, isto é, a redução do ato hermenêutico a um ato

lógico. Foi o engano cometido pelos positivistas do século XIX. Faltava eliminar a

possibilidade da interpretação “científica”.

116 Cf. Capítulo VIII, ‘A interpretação’, pp. 363-371.

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58

Por isso, a maneira pela qual KELSEN trata do problema hermenêutico,

constitui o que TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., chama de ‘desafio kelseniano’. 117

Esse desafio levará a comunidade jurídica – inconformada – a procurar um

novo caminho para o conhecimento do direito e sua aplicação. Urgia encontrar

algum fundamento racional para a interpretação das normas, para não cairmos no

voluntarismo arbitrário defendido na Teoria Pura. Destacaremos, em seguida, a

proposta culturalista.

2.1.3. Trânsito para o pós-positivismo: a metodologia jurídica culturalista

2.1.3.1. O movimento neokantiano na Alemanha

A concepção positivista de ciência – tanto racionalista-formalista quanto

naturalista-sociológica – conduziu a filosofia para um movimento em busca de uma

metodologia específica para as ciências do espírito, para os estudos humanísticos.

Partindo da distinção entre natureza e cultura, buscou-se o método, a lógica, a razão

específica para o conhecimento histórico.

O movimento neokantiano (e historicista) recusará a tese epistemológica do

positivismo.

Nesse novo contexto – ainda dominado, entretanto, por preocupações

epistemológico-metodológicas – a hermenêutica ressurgirá para ocupar um lugar de

destaque na metodologia científica. A hermenêutica não será apenas um conjunto

117 Cf. Introdução ao estudo do direito, pp. 236-239.

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de técnicas de interpretação, mas o próprio método das ciências do espírito.

Estabelecer-se-á a separação entre natureza e cultura, entre explicação e

compreensão.

No âmbito jurídico, sob a influência de novas correntes filosóficas –

neokantismo, historicismo, fenomenologia – surgem os filósofos que afirmam a

historicidade do direito. O direito é um objeto cultural – mas continua sendo um

‘objeto’.118

LARENZ diz ter sido especial contribuição de STAMMLER, para a

metodologia jurídica, a defesa da “autonomia metódica da ciência do Direito em face

da ciência da natureza, autonomia que se funda na idéia de que a ciência dogmática

do Direito não pergunta pelas ‘causas’, mas pelos ‘fins’ e pelo sentido de uma

proposição jurídica ou de uma instituição.” 119

Todavia, esclarece também que: “De modo completamente distinto se deve

entender o conceito de ‘ciência final’ de STAMMLER daquele proposto por JHERING

e seguido pela jurisprudência dos interesses. Para STAMMLER não se trata de

‘esclarecer o surto causal das normas jurídicas a partir dos fins sociais)’, mas, ‘trata-

se da especificidade lógica das ponderações jurídicas em si mesmas, especificidade

que reside numa relação, de determinada espécie, entre meios e fins(...). O Direito

não pode, por conseguinte, ser ‘explicado’ científico-causalmente.’” 120

118 Cf. KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p. 99. 119 Ibid., p.110. 120 Ibid., p.104.

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60

No entanto, só através do movimento conhecido como neokantismo

Sudocidental-alemão 121 que o conceito positivista de ciência foi contestado, tendo

surgido a defesa de um tipo específico de ciência que desse conta do conjunto de

objetos produzidos pelo homem.

Surge, no bojo desse movimento filosófico, a idéia de valor na metodologia

das ciências do espírito, bem como o conceito de cultura.

Para RICKERT – que foi o pai do movimento – as ciências históricas

“ocupam-se, não tanto com a repetição uniforme – com um gênero ou com uma lei

geral da natureza –, quanto com pessoas, obras do espírito, acções e

acontecimentos individuais. A personalidade ‘histórica’ interessa-nos, não porque e

enquanto pode subunir-se num conceito geral, mas na medida em que é esta ‘

figura’ única.” 122

2.1.3.2. A lógica do razoável e a teoria tridimensional do direito

Nessa nova perspectiva metodológica, o direito é concebido como produto

histórico, ou seja, um produto da cultura. O direito é, assim, uma obra humana criado

para a consecução de algum fim. Os fins do direito são os valores estabelecidos pela

cultura. O conhecimento dos valores exige, portanto, o conhecimento da cultura em

que ele é produzido.

121 Ibid., p. 111. 122 Ibid., p.113.

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É o caso, por exemplo, na linha culturalista, da teoria raciovitalista do direito,

de LUIS RECÁSENS SICHES que, entendendo o direito como produto cultural,

defenderá um outro tipo de ‘razão’ para compreender o direito: a lógica do razoável.

SICHES, que foi influenciado pelo pensamento de JOSÉ ORTEGA Y

GASSET e pela filosofia dos valores de SCHELER e de HARTMANN, considera

que “acima dos fins imediatos do direito, relativos a regulação das relações sociais,

encontra-se o fim absoluto da realização da justiça, valor a priori (ainda que

condicionado pela estrutura social, fora da qual não tem significado).” 123

Do ponto de vista hermenêutico, para SICHES, “a norma jurídica revive toda

vez que é aplicada. O seu reviver concreto fundamenta, para ele, uma nova

interpretação, pois a norma sofre modificações para ajustar-se à nova realidade para

que é revivida.” 124

Na direção culturalista ainda, desejamos também destacar o pensamento de

MIGUEL REALE que, com a sua teoria tridimensional do direito sustentará a tese

da integração dos aspectos lógico-sociológico-axiológicos no âmbito jurídico,

considerando, por isso, a necessidade de um pluralismo metodológico para o

conhecimento do direito, “sendo descabidas certas polêmicas que se travam ainda

sobre a excelência deste ou daquele processo hermenêutico.” 125

123 GUIDO FASSÓ, Historia de la filosofia del derecho, vol. 3, p. 285. 124 MARIA HELENA DINIZ, Compêndio de introdução à ciência do direito, p.385. 125 Cf. O direito como experiência, p.256.

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Embora reconhecendo a impossibilidade de uma interpretação puramente

científica, isto é, desenvolvida apenas no plano da Teoria Geral do Direito, sem a

consideração dos pressupostos filosóficos que a condicionam,126 REALE defende

uma interpretação integrativa que capte ao mesmo tempo o sentido das normas

jurídicas como “formas de composição entre complexos valorativos e fáticos vividos

pela comunidade a que se destinam.” 127

Advoga – contra o positivismo – que a objetividade das realidades histórico-

culturais exige categorias adequadas à sua compreensão, mas não nega que a

objetividade seja necessária para a certeza científica – sendo necessária, portanto,

uma contemplação do objeto ‘de fora’.

Afirma também que o “dualismo ou até mesmo a contraposição sujeito-objeto

é um pressuposto do ato interpretativo, que nunca se resolve numa ‘introspecção’,

num ‘estar em si’, visto que se dirige sempre a algo logicamente posto como ‘distinto

de si’.” 128

A interpretação é, pois, um ato de conhecimento presidido pela relação

sujeito-objeto: “A interpretação é sempre um momento de intersubjetividade: o meu

ato interpretativo procurando captar e trazer a mim o ato de outrem, não para que eu

mesmo signifique, mas para que eu me apodere de um significado objetivamente

válido.” 129

126 Ibid., pp. 235-238. 127 Ibid., p.239. 128 Ibid., p.240. 129 Ibid., mesma página.

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63

REALE conclui então – com apoio em EMILIO BETTI – que: “a objetividade

de algo representa o primeiro pressuposto de qualquer ato interpretativo, mesmo

quando (...) o intérprete não se limita a reproduzir algo, mas, de certa forma,

contribui também para constituí-lo em seus valores expressivos”. 130

Com o advento da corrente culturalista, portanto, a metodologia jurídica

caminhou para o reconhecimento dos valores como objeto da ciência do direito.

Cumpre, em seguida, examinar algumas propostas para a efetividade dos direitos

fundamentais fundadas na perspectiva ético-axiológica do direito (a proposta

ontológica será objeto do próximo capítulo). Antes, porém, acreditamos ser

necessária uma palavra sobre a crise da ciência em geral e da dogmática-formalista

em particular.

2.2 A Crise do Pensamento Dogmático-Formalista e o Retorno

à Ética na Interpretação Constitucional

2.2.1 A crise da ciência moderna

BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS afirma que “a ciência moderna se

encontra mergulhada numa profunda crise” e que a época em que vivemos é uma

“fase de transição paradigmatica” da ciência moderna para a ciência pós-

moderna.131

130 Ibid., p.241. 131 Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, p.11.

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64

Propõe-se, a partir daí, a “definir o perfil teórico e sociológico da forma de

conhecimento que, nesta fase, transporta os sentidos emergentes do paradigma da

ciência pós-moderna”, sendo necessário submeter “a uma crítica sistemática as

correntes dominantes da reflexão epistemológica sobre a ciência moderna,

recorrendo, para isso, a uma dupla hermenêutica: de suspeição e de recuperação.”

132

Também BENEDITO NUNES, da Universidade Federal do Pará, em

entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo, fala sobre o “sentimento que

nós temos de ir à deriva, sem pontos fixos” ao explicar a crise do pensamento atual,

e mostra como em meio à crise ”renovam-se as questões fundamentais e o interesse

pela filosofia.133

HEIDEGGER, outrossim, fala sobre a crise dos fundamentos da ciência e sua

razão de ser ao analisar a nossa existência. Diz ele:

“O ‘movimento’ próprio das ciências se desenrola através da revisão mais ou menos radical e invisível para elas próprias dos conceitos fundamentais. O nível de uma ciência determina-se pela sua capacidade de sofrer uma crise em seus conceitos fundamentais. Nessas crises imanentes da ciência, vacila e se vê abalado o relacionamento das investigações positivas com as próprias coisas em si mesmas. Hoje em dia, surgem tendências em quase todas as disciplinas no sentido de colocar as pesquisas em novos fundamentos. A ciência mais rigorosa e de estrutura mais consistente, a matemática, parece sofrer uma crise de fundamentos’.(...) A teoria da relatividade na física nasceu da tendência de apresentar o nexo próprio da natureza tal como ele em si mesmo se constitui. (...) Na biologia, surge a tendência de questionar o organismo e a vida independentemente das determinações do mecanicismo e vitalismo.(...) Nas ciências históricas do espírito,

132 Ibid., mesma página. 133 Cf. Suplemento ‘Cultura’, de 08.01.94.

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acentuou-se o empenho pela própria realidade histórica na tradição e sua transmissão(...)” 134

HEIDEGGER diz que “como atitude do homem, as ciências possuem o modo

de ser desse ente (homem)” 135 e, portanto, se a compreensão é temporal o

“movimento” próprio das ciências é exatamente a mudança de paradigmas, para

usar a expressão de THOMAS KUHN. Os fundamentos não podem ser imutáveis

como imaginavam os positivistas do século XIX. Nem nas matemáticas...!

O progresso da pesquisa científica, diz HEIDEGGER, consiste exatamente

nessa mudança de fundamentos e não “...em acumular resultados e conservá-los

em ‘manuais’ mas em questionar a constituição fundamental de cada setor que, na

maioria das vezes, surge reativamente do conhecimento crescente das coisas.” 136

O abalo nos fundamentos da modernidade foi um impacto tão grande que, se

NIETZSCHE proclamou a ‘morte de Deus’ no final do século XIX, no século XX, os

filósofos anunciaram a ‘morte do homem’ – do sujeito cognoscente – que acabou

nos enganando, apesar da confiança que os modernos nele depositaram.

SUSAN HEKMAN, em Hermenêutica e Sociologia do Conhecimento, fala

sobre o “grito reunificador dos teóricos que perfilham esta teoria”, como os

estruturalistas franceses do pós-guerra e os pós-estruturalistas, dentre eles:

134 Cf. Ser e Tempo, Parte I, pp. 35-36. 135 Ibid., &4, p.38. 136 Ibid., &3, p.35.

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FOUCAULT, As Palavras e as Coisas, 1966; HEIDEGGER, Carta sobre o

Humanismo, 1947 e DERRIDA, Os fins do homem, 1969.137

O que unifica o pensamento destes pensadores é recusar “a primazia

epistemológica do sujeito através de uma desconstrução do conceito de ‘homem’” e

“a proclamação da ‘morte do homem’.” 138

Contudo, com a virada lingüística da filosofia, no início do século XX, – e para

salvar a ciência dos embaraços em que se envolveu com a sua crise – os

neopositivistas do Círculo de Viena, defenderam que o papel da ciência não é

produzir uma espécie de conhecimento que nos leve à verdade sobre o mundo,

conforme acreditavam seus colegas do século XIX.

O conhecimento científico é válido sim e ainda constitui-se no único

conhecimento legítimo. Mas não por levar-nos a alguma verdade sobre o real. Sua

legitimidade e imposição derivam do seu caráter puramente lógico.

A ciência é a sua linguagem e a sua linguagem é uma linguagem de rigor,

uma linguagem estritamente lógica. E, se a ciência é lógica pura, como afirmam os

neopositivistas, então suas verdades são verdades puramente formais sem qualquer

referência ao mundo da vida.

137 Cf. p. 237. 138 Ibid., mesma página. HEKMAN ainda acrescenta que: “Coincidente com e, segundo alguns, causa da ‘morte do homem’, é a viragem lingüística do pensamento social e político do século XX.” Cf. p.238.

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Para o neopositivismo – ou ‘positivismo lógico’, como também se denomina –

a tarefa da filosofia fica reduzida à análise da linguagem científica, a fim de “

determinar as condições gerais e formais que tornam possível uma qualquer

linguagem.” 139

A respeito do Círculo de Viena, entretanto, é valiosa a crítica feita por

ALOYSIO FERRAZ PEREIRA no prefácio da sua tese a concurso de livre-docente

de Filosofia do direito na faculdade de direito da Universidade de São Paulo, que

merece ser transcrita:

“Mas no campo mesmo das ciências do homem e – o que é mais – na perspectiva própria da filosofia (e até da teologia) dissimulam-se resvaladouros que nos levam freqüentemente ao conformismo e a trivialidade, longe da nossa situação e da dos nossos semelhantes. É o caso, por exemplo, dos filósofos, e até filósofos do direito, filiados ao chamado círculo de Viena. Nesse episódio a história registra um brilhante movimento intelectualista empenhado, apaixonadamente, em desviar o pensamento ocidental de sua vocação mais genuína: interpretar a si mesmo e o mundo, desvelar o sentido, interrogar o ser. Renovando o masoquismo gnosiológico de Augusto Comte, os cruzados de Viena impuseram-se o interdito intransigível de ceder àquela exigência inerradicável do homem, que Kant chamou de ‘disposição natural’. A metafísica, que esses professores, couraçados na sua lógica, expulsavam aos baldões pela porta, lhes entrava sorrateiramente pela janela, sob os andrajos do ceticismo. Se é verdade que ‘com bons sentimentos se faz má literatura’, parece também que com bons raciocínios se pode fazer má filosofia. Esses caminhos, como os que partiram de Viena, calcados de cálculos lógico-matemáticos, conduzem à gratuidade intelectual, à neutralidade moral, à indiferença religiosa, ao oblívio do sentido, à omissão do ser.” 140

139 Cf. NICOLA ABBAGNANO, História da Filosofia, vol. XIV, &805, p.07. Ver também BATTISTA MONDIN, Introdução à filosofia, Problemas, sistemas, autores e obras, 7a. ed. rev. e ampl., trad. J. Renard, São Paulo, Ed. Paulinas, 1980, pp. 206-207. No âmbito jurídico, ver NORBERTO BOBBIO, ‘Ciência del derecho y analisis del lenguage’, in ALFONSO RUIZ MIGUEL (org.), Contribución a la teoria del derecho, Valência, Fernando Torres--Editor, 1980. PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso de direito tributário, Capítulo 1. 140 Cf. pp. 04-05.

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ALOYSIO aponta ainda as conseqüências dramáticas de tal filosofia,

lembrando-nos uma passagem de MACHADO DE ASSIS em Dom Casmurro :

“Na realidade, numerosas são as lentas metamorfoses em que imperceptivelmente deslizamos até a condição de animal, máquina e coisa. Assim, há os que labutam apenas no estudo dos meios, confeccionando os utensílios, costumam confundir-se neles. Seu ofício, ainda quando são matemáticos e filósofos, é igual ao do bicho que Machado de Assis catou num livro velho: ‘Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos: nós roemos’.” 141

É desoladora a situação a que podemos ser reduzidos por meio dessa

maneira de ‘filosofar’! Será que nos tornaremos um verme na nossa filosofia

jurídica? Estudamos sem saber o ‘porquê’ e o ‘para que’?

Vive-se, assim, numa época de crise do pensamento filosófico e científico.

Os protestos contra o método e a razão surgem de todos os lados. PAUL

FEYRABEND escreve o seu Contra o Método e, também, Adeus à Razão.142

THOMAS S. KUHN, na mesma linha crítica, observa que a ciência dá saltos.

Existem rupturas no edifício científico. Há revoluções que abalam as estruturas e os

fundamentos da ciência. A ciência, diz KUHN, é paradigmática, isto é, constitui-se

por teorias aceitas pela “comunidade científica” baseadas na fé. As teorias

científicas limitam-se a uma determinada época ou período histórico, servindo para

141 Ibid., p.05. 142 Sobre a ‘epistemologia anarquista’ de PAUL FEYRABEND’ ver, ainda, GIOVANNI REALE & DARIO ANTISERI, Historia del pensamiento filosófico y científico, pp. 915-918.

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solucionar determinados problemas. Depois, o paradigma pode entrar em crise e

surgem, então, as revoluções científicas. Há uma mudança de paradigma.143

LUIS FERNANDO COELHO, do mesmo modo, apresenta sua crítica ao

conhecimento científico bem como expõe as epistemologias de KARL POPPER e

GASTON BACHELARD que criticaram o positivismo lógico e a pretensão de uma

verdade absoluta nas teorias científicas.

Explica, inicialmente, que o paradoxo da ciência é que, para apreender seu

objeto, ela precisa primeiro destruí-lo – porque “a realidade não é universal, mas

particular e individualizada (...) não é eterna, mas transitória, (...) não é necessária,

mas contingente” – para depois reconstruí-lo através de conceitos, pois não há

identidade entre ser e conhecer. Daí que, “o conhecimento científico é apenas uma

aproximação da realidade, tentativa cada vez mais próxima de reconstituição da

realidade.” 144

“Tal paradoxo”, conclui, “é o grande enigma da epistemologia, e está

presente, manifesto ou oculto, nas avaliações que a filosofia da ciência tem levado a

efeito em torno da validade do método científico e de critérios de verdade do

discurso da ciência tradicional.” 145

Que critérios de verdade seriam esses? Para POPPER, – que negou a

pretensão de verdades absolutas e definitivas nas teorias científicas – o critério de

143 Cf. A estrutura das revoluções científicas., passim. Ver, também, Giovanni Reale & Dario Antiseri, Historia del pensamiento filosófico y científico, pp. 908-91. 144 Cf. Lógica jurídica e interpretação das leis, pp. 310. 145 Ibid., mesma página.

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verdade depende não da correspondência com os fatos mas da aceitação da

comunidade científica. Por isso, segundo POPPER, as teorias explicativas da

realidade devem ser consideradas provisórias.146

Para BACHELARD – outro epistemólogo – o que constitui o progresso da

ciência é o questionamento e a revisão contínua dos seus postulados, e não a

acomodação com o que já foi conquistado. E, como a realidade é irredutível aos

modelos teóricos que a interpretam, há necessidade de constante retificação dos

erros verificados pelas novas hipóteses formuladas. 147

Assim, explica FERNANDO COELHO, o “novo paradigma exsurgido desse

questionamento não vê a ciência como descrição da realidade, mas como racional

ordenação da realidade, visando transformá-la” e que, – em conclusão – para

BACHELARD “a ciência deve elidir os preconceitos e falsas imagens da realidade e

tentar reconstruir seu objeto, a partir de uma perspectiva sempre renovada; daí a

ocorrência de uma ruptura com o saber acumulado, um corte epistemológico.” 148

O momento histórico é, pois, como já foi observado anteriormente, de crise

generalizada – tanto material quanto espiritual. Por isso, muitos autores falam no

fim da modernidade, em “sociedade de transição” e fala-se, também, em ‘pós-

modernidade’. Trata-se, assim, de um período de incerteza quanto ao futuro.

146 Ibid., mesma página. 147 Ibid., pp. 310-311. POPPER também defende que o conhecimento científico só avança pela refutação de hipóteses. 148 Ibid., p. 311.

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Em meio à crise da ciência moderna, cumpre destacar, nesta parte do

trabalho, – especialmente – a crise de natureza epistemológico-metodológica da

ciência do direito, isto é, a crise do pensamento jurídico – ou da lógica jurídica –, e,

conseqüentemente do positivismo jurídico dogmático-formalista bem como

considerar, nesta época pós-positivista, algumas propostas para a efetividade dos

direitos fundamentais.

2.2.2. Críticas à metodologia jurídica formalista e o pós-positivismo

A crise da ciência do direito – já iniciada no final do século XIX, com as

teorias do direito livre – conhece novos desdobramentos depois da Segunda Guerra.

O próprio KELSEN, na 2a. edição do seu Teoria Pura do Direito, de 1960, admite

que a “multiplicidade de conteúdo dos ordenamentos jurídicos positivos” coloca em

risco uma teoria geral do direito por “não abranger todos os fenômenos jurídicos nos

conceitos jurídicos fundamentais por ela definidos”. E KELSEN declara estar

plenamente consciente desse perigo, ao elaborar sua teoria, pois agradece todas as

críticas que lhe sejam feitas sob este aspecto.149

Como afirma LARENZ, “o abandono do positivismo na prática jurídica foi

determinado menos pelo movimento jusfilosófico da primeira metade do século,

ainda mal conhecido da maioria dos juristas alemães, do que pelas terríveis

149 Cf. ’Prefácio à 2a. ed.’ , 1960, p. IX.

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experiências que se fizeram, na Alemanha e noutros países, com o ‘positivismo’

prático de uma ditadura que se considerava isenta de todas as peias.” 150

Nessa linha de pensamento, PERELMAN afirma também que:

“Depois do processo de Nuremberg, que deixou claro que um Estado e sua legislação podem ser iníquos ou inclusive criminais, observamos na maior parte dos teóricos do direito, e não apenas nos partidários do direito natural, uma orientação antipositivista, que deixa um lugar crescente, na interpretação e na aplicação da lei, à busca de uma solução que seja não apenas conforme a lei, mas também eqüitativa, razoável e aceitável.” 151

Assim, “a tese de que o Direito nada mais é do que um comando do poder

estatal; a opinião de que o valor do Direito é o de simples instrumento a serviço da

utilidade do povo, da sociedade ou de uma classe; numa palavra, a doutrina da

‘discricionaridade’ do conteúdo do Direito positivo – foram abandonadas por toda

parte”,152 e, “o reconhecimento da insuficiência do sistema lógico-formal dos

conceitos jurídicos abstractamente formados – que foi facilitado sem dúvida pela

jurisprudência dos interesses, mas também pela filosofia do Direito, na medida em

que transpôs a barreira do neokantismo – levou por um lado a uma atitude

acentuadamente céptica em relação a todo e qualquer pensamento sistemático,

mas suscitou igualmente novas investigações sobre o sentido e a possibilidade de

uma conceituação e de uma sistematização que sejam adequadas ao objecto da

ciência jurídica.” 153

150 Cf. Metodologia da ciência do direito, p.149. 151 Cf. Lógica jurídica , p.184. 152 Cf. KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p.149. 153 Ibid., p.151.

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Surgem, pois, vários autores e correntes do pensamento jusfilosófico

manifestando-se contra o formalismo jurídico, ora negando completamente o

emprego da lógica formal (pura) no campo do direito e defendendo um outro tipo de

lógica, ora negando a exclusividade da lógica formal e reconhecendo que, além

desta, a lógica jurídica pode ser de outro tipo também.

Estes autores enfatizam o caráter prático da Jurisprudência redescobrindo e

resgatando o pensamento e os ensinos de ARISTÓTELES sobre a tópica e a

retórica, – que foram esquecidos pela modernidade – lembrando, ainda, o caráter

prático, da jurisprudência romana.

Afinal, os romanos não estavam preocupados em construir uma teoria jurídica

propriamente, como ocorrerá na modernidade. Não lhes preocupava a construção de

um sistema normativo e, conseqüentemente, a construção de uma ciência do direito.

O que lhes interessava era a prática do direito, isto é, a solução do problema – do

caso concreto – que se apresentava e requeria uma solução jurídica.154

Pois bem, denomina-se pós-positivismo a esse conjunto de novas teorias e

filosofias de múltiplas orientações. O que as unifica é a crítica ao positivismo jurídico

dogmático-formalista, o resgate da ética no direito – bem como a volta à axiologia ou

filosofia dos valores – e a consideração dos princípios com força normativa. Em

apertada síntese, desejamos apresentar o pensamento destes autores, começando

com VIEHWEG.

154 Cf. THEODOR VIEHWEG, Tópica e jurisprudência, &4, “Tópica e ius civile”, pp. 45-57.

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THEODOR VIEHWEG, no seu Tópica e Jurisprudência, discute a

cientificidade do direito. VIEHWEG questiona o programa positivista que tentou

converter o direito em ciência, a Juris-prudência em Juris-ciência nos moldes das

ciências naturais. Ele procura demonstrar que o pensamento jurídico – que o modo

de pensar do jurista –, ao longo da história, nunca foi um pensamento sistemático –

um pensamento apodítico.

O raciocínio do jurista é um raciocínio prudencial, problemático, aberto,

dialético e não – como desejam os positivistas – um raciocínio formal, lógico-

dedutivo, necessário e conclusivo. Ao discutir o modo de pensar do jurista,

VIEHWEG ensina que este modo de pensar não é o mesmo do cientista. O que o

jurista procura é a solução de um problema valendo-se para isso dos topois, isto é,

dos lugares-comuns (ou, das opiniões aceitas).155

Outro pensador, CHAIM PERELMAN – que desenvolveu seus estudos sobre

a teoria da argumentação e a nova retórica – procurou demonstrar não apenas a

legitimidade mas a própria superioridade dos raciocínios dialéticos sobre os

apodíticos.

GIOVANNI REALE e DARIO ANTISERI explicam o pensamento de

PERELMAN nestes termos:

“Perelman y Olbrechts-Tyteca escriben: ‘Nuestro método diferirá (...)radicalmente del de los filósofos que se esfuerzan por reducir

155 Cf. Tópica e jurisprudência, passim. Ver também TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., A ciência do direito, pp. 18-21. Para um estudo histórico da tópica em Roma e na Idade Média, consulte-se, também, OLNEY QUEIROZ ASSIS, Interpretação do direito: estilo tópico retórico x método sistemático-dedutivo, pp. 17-49.

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75

los razonamientos en matéria social, politica o filosofía a aquellos modelos proporcionados por las ciências deductivas y experimentales, y que rechazan como carente de valor todo lo que no se ajusta a esquemas previamente impuestos.’ Por lo tanto, la ‘nueva retórica’ rompe con ‘una concepción de la razón y del razonamiento nacida con Descartes, (y) que ha marcado con su impronta la filosofía accidental de los últimos tres siglos’. Dicha ruptura, sin embargo, también significa otra cosa, significa’reemprender(...) una antiga tradición: la de la retórica y la dialéctica griegas’.” 156

E, LUIS RECASENS SICHES, no prefácio do livro De la Justice de

PERELMAN, afirma:

“Perelman combate a opinião de tantos filósofos que consideraram – e continuam considerando – que toda forma de raciocínio que não se assemelhe ao matemático não pertence à lógica. Contra esta opinião injustificada e caduca sustenta Perelman que há mesmo formas de raciocínio mais elevadas, que não constituem propriamente cálculos nem tampouco podem ser formuladas como ‘demonstrações’, pertencendo, em contrapartida, à ‘argumentação’. E é este precisamente o tipo de raciocínio empregado pelo jurista...” .157

Também KARL ENGISCH, seguindo uma direção moderada do pensamento

jurídico, “afasta-se do normativismo kelseniano, mas, por outro lado, e ainda mais

decididamente, rejeita também a orientação da Escola do Direito Livre”.158

156 Cf. Historia del pensamiento filosófico y científico, pp. 801-802. 157 A citação é de PLAUTO FARACO DE AZEVEDO na introdução do livro de LON FULLER, O caso dos exploradores de cavernas, nota 1, pp. XII-XIII. Para uma demonstração do poder sedutor da palavra no discurso jurídico, consultar GABRIEL CHALITA, A sedução do discurso nos tribunais do júri, passim. 158 Cf. JOÃO BAPTISTA MACHADO, ‘Prefácio do Tradutor’, in KARL ENGISCH, Introdução ao pensamento jurídico, p. X.

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ENGISCH afirma que “a ciência do direito é uma ciência prática. O Direito e

o seu conhecimento estão ao serviço da vida(...),e têm um valor vital, não um valor

didático ou de representação”.159

Nesse quadro de crise da ciência jurídica – e de ineficácia social dos direitos

fundamentais – resta-nos indagar: No que resultaram tais criticas ao positivismo e à

metodologia kelseniana? Que pensadores, no Brasil, seguiram nessa linha crítica e

que propostas formularam para a efetividade dos direitos fundamentais?

Deter-nos-emos, em seguida, ainda que de forma pasageira – pois não

constitui o objeto específico deste trabalho –, na apresentação das propostas de

apenas alguns autores, a partir da retomada axiológica da filosofia jurídica

contemporânea.

2.2.3. Algumas propostas para a efetividade dos direitos fundamentais

Em seu Direito Comunitário Europeu, LAFAYETTE POZZOLI adverte sobre os

perigos da marginalização e miséria que a globalização acarreta, apesar de todo

avanço tecnológico que temos assistido. Diante da ameaça que estamos a enfrentar

afirma a importância da luta pelo direito como forma de minorar o quadro de pobreza

159 Ibid., p. LXIII.

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que se observa, pois, “parece inequívoco que direito incerto é direito ineficaz,

elemento perturbador das relações jurídicas”. 160

Conclui então que, ao invés de seguir o caminho da lei do mais forte, deve-se

pensar em um direito como instrumento de promoção da pessoa humana.161

Na mesma linha de análise, depois da apresentação de um quadro um tanto

pessimista, JOSÉ EDUARDO FARIA leva-nos à proposta de um direito promocional

no lugar do direito repressivo, lembrando que “os direitos sociais não configuram um

direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento

formalmente uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das

desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios;

um direito descontínuo, pragmático e por vezes até mesmo contraditório, quase

sempre dependente da sorte de determinados casos concretos” 162

Consideremos agora o pensamento do constitucionalista INGO SARLET. Que

saída encontra para o ‘perene e agudo problema da ineficácia’?163 Que saídas ele

propõe?

160 Cf. Direito Comunitário Europeu, pp. 56-57. 161 Ibid., pp. 59-60 e 160-161. No mesmo sentido, inspirado no neotomismo de JACQUES MARITAIN – cujas idéias tiveram grande influência na elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, pois teria preparado antecipadamente seu ‘rascunho’ – FRANCO MONTORO defende o retorno à ética e uma nova concepção do direito: o direito promocional. Cf. ‘Retorno à ética na virada do milênio’, in: MARIA LUIZA MARCÍLIO & ERNESTO LOPES RAMOS(coords.), Ética na virada do milênio. Busca do sentido da vida, pp. 17-30. Para uma relação da ética com o princípio da eficiência na Administração Pública, consulte-se MARCIA CRISTINA DE SOUZA ALVIM, O princípio da eficiência na Constituição Federal de 1988, pp. 172-174. 162 Cf. ‘O Judiciário e os direitos humanos e sociais: notas para uma avaliação da Justiça brasileira’, in Direitos humanos, direitos sociais e justiça, p. 105. 163 A eficácia dos direitos fundamentais, p.23.

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78

Em primeiro lugar, sua conclusão é a de que não podemos ter a ilusão de

encontrar nos direitos fundamentais a panacéia de todos os males da

humanidade.164

Por outro lado, se queremos levar a sério os direitos fundamentais, como

preconizava DWORKIN,165 devemos – no âmbito da dogmática jurídica – considerar

a importância de uma teoria geral dos direitos fundamentais na qual fique clara a

posição e significado desses direitos na arquitetura constitucional, e – no âmbito da

aplicação do direito – os órgãos estatais devem considerar o caráter principiológico

da norma do art. 5º, §1º, que lhes impõe o dever de outorgar-lhes a máxima eficácia

e efetividade.166

Considera finalmente SARLET que, se tivermos que pecar, que pequemos

pelo excesso e não pela timidez ou omissão na busca da concretização dos direitos

fundamentais.

Numa perspectiva otimista ainda, JOSÉ ADERCIO LEITE SAMPAIO acredita

que embora o quadro de violência social seja preocupante, apesar de uma nova

ordem internacional mais econômica que jurídica e “o texto da Constituição pareça,

às vezes, ausente das práticas políticas e do cotidiano, há horizontes de esperança.”

167

164 Ibid., p. 398. 165 SARLET reporta-se “à celebre formulação do filósofo RONALD DWORKIN, Los derechos em serio, p.303, de que o governo que não leva a sério os direitos, não toma a sério o Direito”. Cf. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 397. 166 Ibid., pp. 397-8. 167 Cf. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, ‘prefácio’, p. vii.

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Para ele, a vida pública não é figura de retórica. Seu sonho é ver o valor da

dignidade humana projetada “na geografia das avenidas e dos campos, para que a

Constituição ausente venha à luz, materializando-se...” 168

CLÉMERSON CLÉVE, por sua vez, faz uma proposta revolucionária para a

efetividade dos direitos fundamentais. CLÉVE propõe uma revolução na

dogmática constitucional. Seu interesse é discutir o controle de

constitucionalidade a partir da efetividade da Constituição. Qual o papel do direito

constitucional nestes tempos de crise? 169

CLÉVE demonstra, num primeiro momento, sua preocupação pela erosão

da normatividade constitucional produzida pelo revisionismo e conclui que talvez já

não tenhamos a Constituição de 1988.

Contudo, apesar disso, – e diante da fragmentação social, diante da

desordem jurídica em que vivemos nesta sociedade pós-moderna –, acredita em um

novo papel para a Constituição e para o Direito Constitucional.

A Constituição não deve mais ser encarada apenas como um conjunto de

normas na pirâmide normativa, mas o centro ordenador de um direito dilacerado,

desordenado, fragmentado, estraçalhado (por causa da inflação normativa).

168 Ibid., p. viii. 169Cf. CLÉMERSON M. CLÉVE, ‘O controle de constitucionalidade e a efetividade dos direitos fundamentais’, in, JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO(org.), Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, pp. 385-393.

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Nessa situação de desordem normativa, ocupa lugar de destaque, na visão

de CLÉVE, a hermenêutica-ontológica, pois, através do trabalho hermenêutico

busca-se uma unidade, um fio de ouro que oriente e coloque alguma diretriz no caos

jurídico – já que a Constituição estabelece um projeto existencial para a sociedade

brasileira.

Não se pode esquecer, por outro lado, que a Constituição é razão utópica –

afinal, o constitucionalismo teve origem no movimento iluminista –, porque anuncia a

possibilidade de um mundo novo.

Na nova perspectiva hermenêutico-constitucional assim proposta, o Estado “é

uma máquina concebida pelo constituinte para buscar a plena efetividade, a plena

concretização dos princípios, dos objetivos e dos direitos fundamentais. É para isto

que se presta o Estado, é para isso que o Legislativo legisla, é para isso que o

Ministério Público atua, é para isso que o Judiciário judica, é para isso que o

Executivo administra(...) Quando o Estado se desvia disso ele está, do ponto de

vista político, se deslegitimando, e do ponto de vista jurídico, se

desconstitucionalizando...” 170

Causando alguma surpresa, CLÉVE defende que a Constituição tem uma

dimensão política mas, também, uma dimensão despolitizadora porque não permite

que o Estado discuta politicamente os fins, os princípios fundamentais e os direitos

que foram estabelecidos pelo constituinte como cláusulas pétreas. No plano político,

só lhe cabe discutir e estabelecer o ‘como’ aqueles princípios e direitos serão

170Ibid., p. 388.

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concretizados. O papel do Estado está definido constitucionalmente, independente

da posição política de liberais e socialistas.

CLÉVE finaliza sua proposta lembrando as grandes batalhas que foram

travadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

A primeira foi uma batalha hermenêutica de defesa intransigente pela plena

eficácia dos direitos fundamentais, pois surgiu a tese de que os direitos de segunda

geração não eram propriamente direitos (por necessitarem de regulamentação),

constituindo-se em meras normas programáticas. Para isso tornava-se necessária

uma interpretação “com boa vontade, sem malícia; uma interpretação prospectiva e

não retrospectiva; uma interpretação com a mentalidade pós-1988 e não com a

mentalidade pré-1988 ”171

Com o avanço do discurso neoliberal, porém, a luta se arrefeceu e mudou de

foco. Ao invés de lutar apenas pelos direitos e sua plena efetividade, urgia lutar pela

própria Constituição, que se via ameaçada nos próprios fundamentos.

A segunda batalha foi a batalha pela nova concepção dos direitos

fundamentais, o que provocou, segundo CLÉVE, a viragem paradigmática dos

direitos fundamentais, pois, a partir daí, os direitos têm eficácia imediata, podendo

ser invocados, desde logo, mesmo sem regulamentação.

171 Ibid., p. 390.

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Em outras palavras, os direitos fundamentais estão acima da lei: “A idéia de

que os direitos fundamentais serão aplicados nos termos da lei sofre uma viragem

e, a partir daí, tem-se que as leis é que haverão de ser editadas nos termos dos

direitos fundamentais” . 172

E, a terceira batalha é aquela pelo fortalecimento do Poder Judiciário, aquela

para que o juiz possa ser um delegado do poder constituinte para concretização

dos direitos, contra os interesses majoritários do Parlamento, mas em defesa dos

interesses permanentes da república.173

CLÉVE finaliza sua defesa, com a crítica do saber jurídico tradicional que põe

em risco os direitos fundamentais e faz a proposta de uma dogmática

constitucional emancipatória.174

Assim, ao encerrarmos este capítulo, constatamos que o espírito científico

dominou o saber jurídico nos tempos modernos. Contudo, vimos, por outro lado, que

o direito sempre foi um saber prático-retórico (prudencial) e não teórico-científico

(lógico), como foi o desejo da modernidade.

Portanto, do exposto até aqui, resulta que, além da globalização capitalista,

no plano histórico-social (objeto de desenvolvimento no primeiro capítulo), também o

positivismo jurídico, estribado na metodologia científica da modernidade, não

contribui para a solução do problema da inefetividade dos direitos fundamentais.

172 Ibid., p. 391. 173 Ibid., p. 392. 174 ibid., p. 393.

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Diríamos mais que, pelo contrário, constituem na verdade obstáculos à

concretização desses direitos, o que torna necessária a busca de novos caminhos.

Já consideramos, ainda que sumariamente, algumas propostas para a

eficácia social dos direitos fundamentais, a partir da retomada axiológica que ocorreu

desde a crise do positivismo jurídico no pós-guerra: direito promocional e dogmática

emancipatória.

No entanto, perseguindo o objetivo deste trabalho, chegou o momento de

verificar a contribuição da filosofia hermenêutica de GADAMER para a efetividade

dos direitos fundamentais. Concluiremos examinando a proposta de três autores:

GUERRA FILHO, MÁRTIRES COELHO e, finalmente, LENIO STRECK, que espera

que a partir de uma análise hermenêutica da crise, poderíamos sair do atual quadro

de crise da hermenêutica dando efetividade aos direitos.175

175 STRECK, ‘A crise da hermenêutica e a hermenêutica da crise: A necessidade de uma nova crítica do direito(NDC)’, In: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais, pp. 103-137.

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3. DO MÉTODO À VERDADE: A CONTRIBUIÇÃO DA

HERMENÊUTICA ONTOLÓGICA PARA A EFETIVIDADE DOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.1. Resgate do Ser na Hermenêutica de Gadamer

3.1.1. A influência de Heidegger e o propósito da obra176

Como foi dito no início do capítulo precedente, a filosofia moderna, desde

DESCARTES, foi dominada por cogitações de natureza epistemológico-

metodológica. Todas as correntes de pensamento debateram sobre o método que

pudesse garantir, com certeza e segurança, o conhecimento da verdade.

A revolução, porém, da qual nos falou THOMAS KUHN,177 no âmbito

científico, só ocorrerá, no plano filosófico, com um filósofo que rompe com o debate

epistemológico-metodológico que dominou o pensamento moderno. Trata-se de

MARTIN HEIDEGGER.

HEIDEGGER – aproveitando o método fenomenológico de HUSSERL – dará

seu grito proclamando a volta ao ser e, portanto, à ontologia em vez de teoria do

176 Utilizamos neste trabalho a tradução de Verdade e Método para o espanhol, publicada pela editora Siguene de Salamanca; há, todavia, tradução brasileira publicada pela editora Vozes, em 1997. 177 Cf. A estrutura das revoluções científicas.

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conhecimento.178 Precisamos, pois, perguntar pelo sentido do ser, diz

HEIDEGGER. Qual é o sentido da ciência, da técnica, da nossa existência, enfim, do

ser em geral?

HEIDEGGER percebeu o desvio que sofreu o pensamento ocidental. É

preciso buscar o sentido do ser antes de tudo. Esta é a tarefa urgente e principal da

filosofia – seu propósito fundamental. Há, assim, um deslocamento da questão

epistemológico-metodológica para a questão ontológico-hermenêutica.

Foi nesse deslocamento de questão que a hermenêutica adquiriu seu estatuto

fundamental. A filosofia heideggeriana provocou uma mudança na história da

hermenêutica, fazendo dela o centro das atenções e do debate filosófico

contemporâneo. A filosofia, para HEIDEGGER, é hermenêutica, isto é, a filosofia é

interpretação – interpretação do ser.

Mais que isso ainda, a hermenêutica é fundamental do ponto de vista ôntico

(e não apenas ontológico), isto é, o ser humano é o ente que em seu ser interpreta

– ou que, sendo, já está, por isso, numa pré compreensão do seu ser. Para

HEIDEGGER, a filosofia é ontologia – mas ontologia hermenêutica. Portanto, quer

do ponto de vista ôntico, quer do ontológico, a hermenêutica será fundamental.

Na mesma trilha de HEIDEGGER, na mesma direção ontológica por ele

estabelecida. GADAMER(1900-2002) – esse filósofo centenário que foi aluno e

178.Cf. VERA CRISTINA DE ANDRADE BUENO, ‘Ontologia em vez de teoria do conhecimento. Sobre a interpretação heideggeriana da ‘Crítica da Razão pura’ de Kant’, in MARIA CECÍLIA MARINGONI DE CARVALHO(org.), Paradigmas filosóficos da atualidade, Campinas, Papirus, 1989, Capítulo VIII, pp. 167-184.

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discípulo de HEIDEGGER – desenvolve sua teoria hermenêutica. Ele constrói sua

teoria sobre o solo ontológico de HEIDEGGER e não sobre o solo epistemológico-

metodológico. Está, assim, na linha de ruptura com o pensamento moderno,

inaugurada por HEIDEGGER. 179

A influência heideggeriana manifesta-se na pedra de toque da teoria

hermenêutica de GADAMER: o conceito de pré-juízo (ou pré-compreensão). Para

ele – que foi um crítico da filosofia iluminista – o juízo-prévio é uma recuperação da

autoridade e da tradição como fontes de verdade.180

De início, GADAMER esclarece, no prefácio de Verdade e Método, que sua

intenção não é “ desenvolver um sistema de regras para descobrir ou inclusive guiar

o procedimento metodológico das ciências do espírito.” 181 Embora reconheça a

aplicação dos métodos científicos nas investigações do mundo social, seu propósito

não é “reavivar a velha disputa metodológica entre as ciências da natureza e as do

espírito.” 182

Portanto, a investigação hermenêutica levada a cabo por GADAMER não se

situa no âmbito restrito das ciências em geral. Seu plano de investigação é o da

experiência humana do mundo e sua práxis vital. Trata-se, assim, de uma

investigação no plano ontológico – em que HEIDEGGER trabalhou – e que precede

179 Para uma breve cronologia da vida de GADAMER, v. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA, Vol. LII, Fasc. 206, abril - junho de 2002, pp. 135-140. 180 Cf. Verdade e método, especialmente os capítulos nove e dez, onde o autor desenvolve sua teoria hermenêutica. 181 Ibid., p. 10. 182 Ibid., p. 11.

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o metodológico. Cuida-se do fenômeno da compreensão como o modo de ser da

pessoa humana e não como um dos modos de comportamento entre outros.

RICHARD PALMER183 adverte-nos que é essencial percebermos, desde o

início, a distinção entre a hermenêutica filosófica de GADAMER e a hermenêutica

metodológica, lembrando-nos que é justamente quando GADAMER afirma ser a

experiência humana do mundo o que pretende interpelar que sua definição de

hermenêutica se liga à de HEIDEGGER.

Verdade e Método está, pois, na direção de confronto com o pensamento

moderno ao romper com o plano epistemológico-metodológico da reflexão filosófica,

isto é, com toda a discussão que se travou na modernidade sobre os fundamentos

do conhecimento científico. Segundo PALMER, “o título do livro, aliás, é irônico, pois,

o método não é o caminho para a verdade. A verdade zomba do homem metódico.”

184

O propósito de GADAMER parece ser confrontar o que foi estabelecido pelos

modernos, especialmente a partir do iluminismo. O lugar da verdade não é o método

científico – e, portanto, não é o pensamento, nem a razão, nem a lógica – mas a

experiência que temos do mundo.

Seu objetivo é, assim, mostrar que não se atinge a verdade através do

método científico, que é por ele criticado. O método, pelo contrário, é uma bitola que

183 Cf. Hermenêutica, p.168. 184 Ibid., mesma página. Também neste mesmo entendimento, PAUL RICOEUR defende que o título do livro poderia ser Verdade OU Método, ao invés de Verdade E Método. Cf. Interpretação e ideologias, p.38.

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impede a verdade. GADAMER estabelece, então, o confronto entre ‘verdade’, de um

lado, e ‘método’, de outro.

A experiência é para GADAMER um encontro. E é no encontro que a

verdade se mostra. No nosso encontro com uma obra de arte, por exemplo; ou num

encontro histórico com as tradições. Tais encontros são mediados pela linguagem e,

por isso, são encontros hermenêuticos. A experiência hermenêutica a que

GADAMER se refere é um encontro hermenêutico em que a verdade se manifesta

(aflora).185

Podemos, pois, dividir sua obra, composta de catorze capítulos, em três

partes: a verdade na experiência da arte (cinco capítulos); a verdade na experiência

histórica (seis capítulos) e, finalmente, a linguagem como meio de transmissão da

verdade (mais três capítulos). Nosso enfoque principal será sobre a segunda parte,

com destaque para os capítulos nove, dez e onze.

3.1.2. A verdade na experiência histórica

Na primeira parte de Verdade e Método, GADAMER procura mostrar como

as ciências humanas pertencem à herança humanista e como estas ciências se

aproximam de experiências extracientíficas, como é o caso da experiência da arte.

GADAMER começa com uma discussão sobre o que ele chama de ‘conceitos

humanistas condutores’.

185 Cf. Verdade e método, pp. 24 e 25.

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O encontro com a obra de arte é hermenêutico, diz GADAMER. É, portanto,

um encontro dialético, isto é, um diálogo em que a obra fala de si mesma ao seu

admirador, ou receptor. GADAMER defende então, que a experiência da arte é uma

experiência na qual a verdade manifesta-se melhor do que na experiência

científica, por ser um encontro que modifica o sujeito.

GIANNI VATTIMO186 esclarece o objetivo de GADAMER, nesta primeira parte

de sua obra, mostrando o caráter transformador que a verdade opera no sujeito:

“O objectivo de Gadamer é recuperar a arte como experiência de verdade, contra a mentalidade cientista moderna, que limitou a verdade ao campo das ciências matemáticas da natureza, relegando todas as outras experiencias mais ou menos explicitamente, para o dominio da poesia, da pontualidade estética, do Erlebnis. Para realizar esta recuperação, é preciso substituir a noção de verdade, como conformidade da proposição à coisa, por uma noção mais compreensiva que se fundamenta no conceito de Erfahrung, de experiência como modificação que o sujeito sofre quando encontra algo de verdadeiramente relevante para si. Pode dizer-se que a arte é experiência de verdade se é autentica experiência, isto é, se o encontro com a obra modifica realmente o observador.”

É na segunda parte de Verdade e Método, contudo, que GADAMER

desenvolve os fundamentos para uma teoria da experiência hermenêutica. Partindo

da idéia do círculo hermenêutico de HEIDEGGER, defende que a compreensão de

algo depende de uma compreensão prévia ou pré-compreensão.187

186 O fim da modernidade, p. 101. 187 Cf. Verdade e método, pp. 331-332.

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Para ele, essa pré-compreensão não é algo negativo. Pelo contrário, devemos

entendê-la no sentido positivo, pois toda e qualquer compreensão só é possível por

causa dela.

O erro do iluminismo foi procurar eliminar a pré-compreensão, como algo

negativo, em busca de uma consciência vazia que pudesse, a partir da razão pura,

atingir a verdade. GADAMER diz que com o iluminismo formou-se um preconceito

indevido contra a pré-compreensão que acabou impedindo a possibilidade de

reconhecer que existem ‘pre-conceitos’ válidos, legítimos, que devem ser

conscientemente aceitos. GADAMER cita como exemplo o preconceito principal do

iluminismo: contra a BÍBLIA.188

Através da reabilitação da idéia de ‘pré-compreensão’, GADAMER leva a

cabo também, em conformidade com HEIDEGGER, a reabilitação da autoridade e

da tradição como fontes de verdade. Não se deve negar a priori a possibilidade da

verdade ser transmitida pela autoridade ou pela tradição.

Importante salientar que a autoridade não constitui necessariamente uma

abdicação da razão, nem obediência cega a um comando. “Na realidade”, diz

GADAMER, “não tem nada a ver com obediência cega se não com

conhecimento(...). Seu verdadeiro fundamento é também aqui um ato da liberdade e

da razão que concede autoridade ao superior basicamente porque tem uma visão

mais ampla ou está mais consagrado, isto é, porque sabe mais.” Em nota de

188 Ibid., pp. 338 ss.

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rodapé, GADAMER acrescenta que “a verdadeira autoridade não necessita mostrar-

se autoritária” 189

Falando, por outro lado, especificamente sobre a tradição, GADAMER

assevera: “Não creio, entretanto que entre tradição e razão tenha que se supor uma

oposição tão incondicional e irredutível.” 190

Evidentemente, não é toda pré-compreensão, nem toda autoridade, ou

qualquer tradição, que têm legitimidade. GADAMER reconhece a existência de pré-

compreensões ilegítimas ou de falsas tradições. É preciso, pois, estabelecer a

diferença ou discernir entre pré-compreensão legítima e pré-compreensão ilegítima.

Para GADAMER, a distância temporal, isto é, a distância no tempo é o fator

que nos permite distinguir a pré-compreensão e as tradições legítimas das

ilegítimas.191 Ele diz que – como ocorre com o método histórico – a distância

temporal permite desconectar certas fontes de erro que com a proximidade no tempo

não conseguimos distinguir, embora advirta que “o verdadeiro sentido de um texto

ou uma obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, mas é

um processo infinito.” 192

Enfim, é só com o tempo que ocorre a filtragem daquilo que está errado na

pré-compreensão, nas tradições ou na interpretação dos textos. Mas a filtragem,

189 Ibid., pp. 347-348. 190 Ibid., p. 349. 191 Ibid., p. 369. 192 Ibid., p. 368.

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contudo, nunca é conclusiva. È um processo infinito. Neste sentido, portanto, a

hermenêutica cumpre uma missão crítica.

A distância temporal permite ao intérprete conhecer as mudanças de sentido

que um texto sofreu no tempo. O intérprete está, pois, em posição melhor que o

próprio autor do texto ou da obra, eis que conhece todo desenvolvimento histórico

que o produtor da obra ou da teoria não pôde ver. Daí que, a distância temporal não

constitui um obstáculo para a compreensão do texto. Pelo contrário, quanto maior for

a distância no tempo, melhor poderá ser sua compreensão.

A consciência hermenêutica está, assim, em condições de perceber ou de

conhecer o que GADAMER chama de ‘história efetual’ – ‘história dos efeitos’, ou

ainda, ‘história operativa’.

A consciência hermenêutica, para GADAMER, é a consciência da ‘história

efetual’. A consciência da ‘história efetual’ (ou dos efeitos da história) indica a

consciência que o intérprete tem da mudança de sentido de um texto, que ocorre por

força da conjuntura cultural em que foi e/ou está sendo interpretado.

O reconhecimento ou a consciência dos efeitos do tempo sobre a

compreensão GADAMER chama de ‘consciência histórica efetiva`. Esse

reconhecimento dos efeitos do tempo é o reconhecimento da historicidade da

compreensão como princípio hermenêutico.

Page 93: INTRODUÇÃO - PUC-SP

93

Isso quer dizer que não pode haver nunca uma consciência pura, isto é, uma

consciência transcendental que não esteja sujeita aos efeitos da história, aos efeitos

da cultura. Não há possibilidade da consciência libertar-se dos efeitos da história, da

cultura, das tradições. Compreendemos sempre a partir da nossa situação, do nosso

contexto histórico, da nossa cultura, das nossas tradições. A consciência histórica é

uma consciência de pertença, ou seja, consciência de pertencer à história e não

poder compreender ‘de fora ’.

GADAMER afirma: “Quando pretendemos compreender um fenômeno

histórico a partir da distância histórica que determina nossa situação hermenêutica

em geral encontramo-nos sempre sob os efeitos desta história efetual.” 193

Não existe, portanto, um ponto arquimédico do intérprete a partir do qual ele

compreende ou conhece uma obra. Estamos sempre situados. Compreendemos

sempre de um determinado lugar. “A consciência da história efetual é em primeiro

lugar consciência da situação hermenêutica” 194

E não é possível para a consciência ‘escapar’ do poder dos efeitos da história.

Esse poder se impõe “inclusive onde a fé no método quer negar a própria

historicidade.”. Por isso, diz GADAMER, é urgente “a necessidade de tornar

consciente a história efetual: a própria consciência científica necessita disso.” 195

193 Verdade e método, p. 371. 194 Ibid., p. 372. 195 Ibid., p. 371.

Page 94: INTRODUÇÃO - PUC-SP

94

GADAMER adverte, entretanto, que não é tarefa fácil ter consciência da

nossa situação, pois essa situação nunca pode ser objetivada. Encontramo-nos nela,

mas nunca a conhecemos por inteiro. GADAMER afirma, porém, que: “...esta

inacababilidade não é um defeito da reflexão se não que está na essência mesma

do ser histórico que somos. Ser histórico quer dizer não esgotar nunca o saber.”

.196

GADAMER liga então a idéia de situação que limita toda compreensão ao

conceito de horizonte. O horizonte indica os limites, a finitude do nosso

conhecimento, da nossa compreensão. Que é um horizonte?: “Horizonte é o âmbito

de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado

ponto.” 197

GADAMER esclarece – contra o objetivismo metodológico – que

compreender é sempre um processo de fusão de horizontes. Isto quer dizer que

não é possível objetivar o passado (ou uma obra) para um sujeito que se coloca fora

das influências desse passado. Nossa situação hermenêutica – o presente –sempre

carrega atrás de si o passado, com suas tradições. Não podemos, pois, destacar o

passado; não podemos separá-lo do presente; não podemos objetivá-lo. O velho e o

novo andam sempre juntos e não podem ser destacados a não ser por um exercício

de abstração. Não existem, assim, horizontes fechados em si mesmos.198

PAUL RICOEUR esclarece que:

196 Ibid., p. 372. 197 Ibid., mesma página. 198 Ibid., p. 374.

Page 95: INTRODUÇÃO - PUC-SP

95

“... a condição de finitude do conhecimento histórico exclui todo sobrevôo, toda síntese final à maneira hegeliana, essa finitude não é tal que eu fique fechado num ponto de vista. (...) Este conceito [o de fusão dos horizontes] significa que não vivemos nem em horizontes fechados, nem num horizonte único...” 199

A compreensão – e a interpretação – nunca é, pois, objetiva e nem tampouco

subjetiva. Compreender-interpretar não é nunca uma operação de conhecimento na

qual uma consciência vazia(pura) apreende um texto (convertido em objeto). Mas

não é, também, uma operação na qual uma consciência plena de ‘pré-compreensão’

se imponha ao texto (ou objeto). A compreensão não é, assim, nem objetiva, nem

subjetiva. É uma fusão. Por isso, toda compreensão-interpretação opera uma

transformação naquele que compreende, ensina GADAMER.

Mas a transformação não é de uma vez para sempre. É um processo no qual

em cada encontro surgem transformações.

Por outro lado, a fusão de horizontes formando um todo entre o horizonte do

texto – passado – e o horizonte do intérprete – presente – não desconsidera a

tensão que pode haver – e há – entre esses horizontes. Essa tensão entre os

horizontes (entre o passado e o presente) é o que GADAMER considera ser o

‘problema hermenêutico fundamental’, isto é, ‘o problema hermenêutico da

aplicação’.200

199 Cf. Interpretação e ideologias, p.41. 200 Ibid., p. 377.

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96

3.1.3. O caráter paradigmático da hermeneutica jurídica (e teológica): a unidade do fenômeno hermenêutico

GADAMER dedica o capítulo dez da sua obra à essa questão da aplicação, e

defende a unidade do fenômeno hermenêutico. Houve, diz GADAMER, na história

da hermenêutica, uma separação indevida entre compreender, interpretar e aplicar

como momentos distintos. A partir do romantismo, entretanto, já se reconhece a

unidade entre compreender e interpretar. “A interpretação não é um ato

complementar e posterior ao da compreensão mas, compreender é sempre

interpretar e, conseqüentemente, a interpretação é a forma explícita da

compreensão”.201

Contudo, acrescenta, “compreender é sempre, também, aplicar.”. 202 Ficou

faltando, assim, o terceiro elemento – tão essencial á hermenêutica quanto os outros

dois – que permaneceu desconectado: a aplicação. GADAMER resgata, pois, a

aplicação como um elemento fundamental do processo hermenêutico,

restabelecendo, por isso, o conceito pleno de hermenêutica que envolve também a

aplicação. “A aplicação é um momento do processo hermenêutico tão essencial e

integral como a compreensão e a interpretação”. E aduz: “Na compreensão sempre

tem lugar algo como uma aplicação do texto que se quer compreender à situação

atual do intérprete”. 203

Não tem sentido, então, pensar no processo hermenêutico sem a inclusão –

nesse processo –, da aplicação. Não há algo como compreender por compreender

ou interpretar por interpretar, sem qualquer referência do texto que se quer

201 Ibid., p. 378. 202 Ibid., p. 380. 203 Ibid., p. 379.

Page 97: INTRODUÇÃO - PUC-SP

97

compreender-interpretar. Seja um tradutor, no plano filológico, um juiz, no plano

jurídico, ou ainda um pregador, no âmbito teológico, em qualquer dos casos há

necessidade de conhecimento da linguagem dos respectivos textos – uma obra

literária, uma lei, uma passagem das Escrituras – e da situação presente. O

intérprete é sempre um mediador e conhecedor da tensão entre duas linguagens – a

do texto e a do presente.

A mensagem bíblica, por exemplo, para ter sentido, precisa ter efeito redentor

hoje. Daí as traduções bíblicas na linguagem de hoje. É assim que o texto bíblico

ganha vida e pode cumprir sua missão redentora-tranformadora.

GADAMER critica, por isso, a teoria hermenêutica de EMÍLIO BETTI que

estabelece a distinção entre interpretação científica, normativa e reprodutiva. “A

distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva cinde definitivamente o

que claramente é uno.” 204

Mesmo no caso das chamadas interpretações reprodutivas – casos da música

e da poesia – há necessidade de considerar, diz GADAMER, “as exigências de uma

reprodução estilisticamente justa em virtude das preferências de estilo do próprio

presente.”.205 Portanto, conclui: “O problema hermenêutico se aparta evidentemente

de um saber puro, separado do ser.” 206

Em seguida, GADAMER faz uma análise da ética aristotélica que distingue

entre episteme (o saber teórico), tekne (o saber técnico) e phronesis (o saber

204 Ibid., p. 382. 205 Ibid., mesma página. 206 Ibid., p. 385.

Page 98: INTRODUÇÃO - PUC-SP

98

moral), relacionando a descrição aristotélica do fenômeno ético com a sua análise do

problema hermenêutico fundamental, isto é, o problema da aplicação.

Para GADAMER, “a análise aristotélica se mostra como uma espécie de

modelo dos problemas inerentes à tarefa hermenêutica.”.207 O intérprete que deseja

compreender o sentido e significado de um texto não pode “ignorar a si mesmo e a

situação hermenêutica concreta em que se encontra. Está obrigado a relacionar o

texto com esta situação, se é que deseja entender algo nele”. 208

GADAMER conclui que “a aplicação não é uma parte última e eventual do

fenômeno da compreensão, se não que determina a este desde o princípio e no seu

conjunto.” 209

Mas, por que a hermenêutica jurídica constitui um paradigma da hermenêutica

em geral? Em conclusão ao capítulo dez de Verdade e Método, GADAMER utiliza,

como exemplo paradigmático do momento essencial da aplicação, a hermenêutica

jurídica e a hermenêutica teológica, pois são dois casos claros em que o sentido – a

compreensão do texto – só ocorre quando ele é aplicado, isto é, quando é trazido da

sua estranheza passada para o caso concreto que o ilumina. O texto é assim

vivificado na sua atualização. Só na aplicação é que o direito aparece e, assim, é

conhecido, é compreendido.

207 Ibid., p. 386. 208 Ibid., mesma página. 209 Ibid., mesma página.

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99

GADAMER afirma que, mesmo no caso do historiador do direito, a tarefa que

se cumpre é a de “mediar a aplicação originária da lei com a atual. Seria insuficiente

limitar a tarefa do historiador do direito à ‘reconstrução do sentido original do

conteúdo da formula legal’ e qualificar, pelo contrário, o jurista como ‘o que deve por

em consonância aquele conteúdo com a atualidade presente da vida”.210

3.1.4. Análise da consciência histórica – ou – a consciência dos nossos limites

No capítulo onze de Verdade e Método, GADAMER retoma a ‘análise da

consciência da história efetual’ e esclarece que essa ‘consciência’ tem a estrutura da

experiência.

A ‘consciência da história efetual’ não é propriamente uma reflexão, mas é

uma experiência que transforma o eu no encontro que ele tem com uma obra – um

‘tu’ – e, portanto, é uma espécie de ‘conhecimento’ do poder transformador da obra –

o ‘tu’ –sobre o eu.

Depois de explicar que o conceito de experiência estabelecido pela ciência

moderna não considera a “historicidade interna da experiência”, 211 acreditando na

possibilidade do emprego ‘puro’ da nossa razão, – livre de qualquer pré-

compreensão –, 212 GADAMER diz que o sentido autêntico de ‘experiência’ – a sua

essência – é a concreticidade na nossa existência.

210 Ibid., p. 397. 211 Ibid., p. 421. 212 Ibid., p. 422.

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100

A verdadeira ‘experiência’ são aquelas experiências amargas da vida em que

aprendemos pela dor, quando sofremos um dano ou somos enganados, traídos, e,

“na decepção chegamos a conhecer mais adequadamente as coisas.” 213

GADAMER acrescenta:

“Lo que el hombre aprendera por el dolor no es esto o aquello, sino la percepcion de los limites de ser hombre, la comprension de que las barreras que nos separan de lo divino no se pueden superar. Em ultimo extremo es um conocimiento religioso, aquel que se situa em el origen de la tragedia griega.” 214

E conclui:

“La experiencia es, pues, experiencia de la finitud humana. Es experimentado em el autentico sentido de la palavra aquel que es consciente de esta limitacion, aquel que sabe que no es senor ni del tiempo ni del futuro; pues el hombre experimentado conoce los limites de toda prevision y la inseguridad de todo plan. En el llega a su plenitud el valor de verdad de la experiencia.(...)La verdadera experiencia es aquella em la que el hombre se hace consciente de su finitud.” 215

É esta experiência – a experiência da própria historicidade, isto é, das

próprias limitações – que GADAMER chama de experiência hermenêutica. Por

outro lado, esclarece também que a experiência hermenêutica tem a ver com a

tradição. E como a tradição é linguagem, GADAMER conclui que a experiência

hermenêutica é a ‘experiência do tu’, pois, a tradição sendo linguagem “fala por si

mesma como o faz um tu” e não é um “simples acontecer que possa conhecer-se e

dominar-se pela experiência.” 216

213 Ibid., p. 432. 214 Ibid., p. 433. 215 Ibid., mesma página. 216 Ibid., p. 434.

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3.1.5. Eu-tu – ao invés de sujeito-objeto – na teoria do conhecimento e a lógica da pergunta

A consciência da história efetual é análoga à relação EU-TU. Trata-se de uma

relação dialógica entre o intérprete e o texto. É nesta relação dialógica entre o

intérprete e o texto que surge a fusão de horizontes. A fusão de horizontes – o

horizonte do presente e o do passado, ou então, o horizonte do texto (ou do autor) e

o horizonte do intérprete – corresponde a um tipo de relação EU-TU e não ao tipo de

relação que é a relação sujeito-objeto do conhecimento científico.

A tradição nunca pode converter-se num ‘objeto’ mudo que não nos afeta e

não tem nada a dizer-nos. Por isso, é mais próprio para tentar explicar o tipo de

relação que surge na experiência hermenêutica, a relação EU-TU e não a relação do

tipo sujeito-objeto da experiência científica. A relação é, na verdade, entre ‘sujeito-

sujeito’, porque é uma relação dialógica.

Assim, o ‘tu’ nunca pode ser um ‘objeto’. Nunca pode ser um instrumento

disponível em nossas mãos que pretendemos dominar, ou escravizar. Esse tipo de

relação – de dominação – é o que ocorre na relação do conhecimento científico, na

qual um sujeito domina um objeto para os seus próprios fins.

Ao invés disso, na relação EU-TU, o ‘tu’ sempre tem algo a dizer-nos, e nós

precisamos, assim, estar dispostos a ouvi-lo. É neste escutar, é neste ouvir que

surge a verdadeiro conhecimento de que necessitamos. Não temos tanto que

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dominar o ‘tu’ mas, pelo contrário, servi-lo, pois o ‘tu’ pretende comunicar-nos algo

através da fala. Não temos que ser senhores, mas servos.

Além disso, se a relação é do tipo pessoal (EU-TU), pretender conhecer uma

pessoa com a intenção de prever seu comportamento, apenas como meio de atingir

nossos próprios fins é repugnante do ponto de vista moral. A atitude científica pode

ser assim questionável por esse ângulo.217

A relação de servos do ‘tu’, entretanto, não “limita a liberdade de conhecer se

não que a torna possível” 218 Quando nos colocamos perante o ‘tu’ para ouvi-lo – e

não dominá-lo, repita-se – abrimo-nos a ele para compreender sua fala. Ouvir, aqui,

tem o sentido de abrir. E é nessa nossa abertura ao ‘tu’ que podemos compreendê-

lo (conhecê-lo).219

A verdade surge nessa nossa abertura ao ‘tu’. Se nos fechamos

dogmaticamente ao ‘tu’, já não o escutamos. Rompemos o “diálogo que nós somos”

e perdemos a oportunidade de verdadeiramente conhecer. Nessa atitude, a verdade

se oculta.220

Ainda no capítulo onze de Verdade e Método, GADAMER analisa a ‘estrutura

lógica da abertura’ que caracteriza a consciência hermenêutica, recordando o

conceito de pergunta na análise da situação hermenêutica, pois, é claro que “em

toda a experiência está pressuposta a estrutura da pergunta.” 221

217 Verdade e método, p.435. 218 Ibid., p. 437. 219 Ibid., p. 438. 220 Ibid., mesma página. 221 Ibid., p. 439.

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GADAMER esclarece que o abrir-se ao ‘tu’ – pretendendo escutá-lo ou ouvi-

lo – implica a pergunta sobre se alguma coisa é assim ou de outra maneira. É uma

atitude prudente e de cautela de quem reconhece a finitude e as limitações do seu

conhecimento.

A atitude hermenêutica é, pois, uma atitude humilde, de quem sabe que não

sabe e, portanto, precisa sempre estar perguntando pelo sentido do que nos fala o

‘tu’. “É a famosa docta ignorantia socrática que descobre a verdadeira superioridade

da pergunta” 222

A pergunta autêntica é aquela formulada por quem não conhece alguma

coisa, pois, “o que está seguro de saber tudo não pode perguntar nada. Para poder

perguntar é preciso querer saber, isto é, saber que não se sabe”. Portanto, “todo

saber passa pela pergunta”, e, “perguntar quer dizer abrir. A abertura do perguntado

consiste em que não está fixada a resposta (...) A verdadeira pergunta requer esta

abertura, e quando falta não é no fundo mais que uma pergunta aparente que não

tem o sentido real de pergunta. Algo disto é o que ocorre, por exemplo, nas

perguntas pedagógicas, cuja especial dificuldade e paradoxo consiste em que nelas

não há alguém que pergunte realmente.” 223

A essência do conhecimento é, pois, dialética – a dialética do sim e do não

possíveis na resposta a uma pergunta. É em virtude da “primazia da pergunta para a

222 Ibid., mesma página. 223 Ibid., p. 440.

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104

essência do saber que se mostra de maneira mais originária o limite que impõe ao

saber a idéia de método”, pois, “não há método que ensine a perguntar” 224

GADAMER esclarece, enfim, que a arte de perguntar na dialética socrático-

platônica “é a arte de pensar”, e, “chama-se dialética porque é a arte de levar uma

autêntica conversação” 225 e, por isso, conclui que “a tarefa da hermenêutica se

concebe como um entrar em diálogo com o texto (...) O que é transmitido em forma

literária é assim recuperado da estranheza em que se encontrava, ao presente vivo

do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e responder.” 226 A lógica,

pois, das ciências do espírito é a lógica da pergunta. 227

3.1.6. Diálogo e linguagem

A partir do conceito de experiência hermenêutica como conversação,

GADAMER passa, na terceira parte de Verdade e Método, 228 à sua análise sobre a

linguagem.

GADAMER rejeita a teoria do ‘signo’ quanto à natureza da linguagem e,

assim, rejeita o caráter instrumental da linguagem. A linguagem não pode ser

reduzida a um mero ‘signo’, ou instrumento.

Ao contrário disso, para GADAMER, a linguagem é o meio através do qual a

experiência hermenêutica é possível. É o meio em que as tradições são

224 Ibid., p. 443. 225 Ibid., p. 444. 226 Ibid., p. 446. 227 Ibid., p. 448. 228 Cf. pp. 461 ss.

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transmitidas. Nós nos movemos nesse meio; nós pertencemos a ele. A linguagem é

o espaço do ser.

É, pois, a linguagem comum que possibilita a experiência hermenêutica do

encontro, da fusão de horizontes. Em outras palavras, a experiência hermenêutica é

uma fusão de horizontes possível – apenas e tão-somente – por meio da linguagem.

Por isso, a experiência hermenêutica é uma experiência de escuta, de audição e não

de visão (ou de observação) propriamente dita. ‘Abrimo-nos’ à linguagem e, assim,

ouvimos a mensagem que por ela é transmitida. Ouvindo-a, somos afetados, somos

modificados nesse encontro.

O encontro não seria possível, todavia, sem a linguagem, isto é, não seria

possível sem esse ‘chão comum’ em que nos movemos.

Por outro lado, se, como GADAMER afirma no capítulo catorze de sua obra, a

linguagem é o ‘horizonte de uma ontologia hermenêutica’, isto é, se a linguagem é o

limite do sentido do ser, então, fora da linguagem não há compreensão. GADAMER

afirma expressamente: “ser que pode ser compreendido é linguagem”, e, “a relação

humana com o mundo é lingüística e portanto compreensível em geral e por

princípio. Neste sentido a hermenêutica é, como já temos visto, um aspecto

universal da filosofia e não apenas a base metodológica das chamadas ciências do

espírito.” 229 (grifo do autor).

GADAMER conclui assim a universalidade do fenômeno hermenêutico e as

limitações do método científico. Esclarece, no entanto, que o limite do ‘método’ não

229 Ibid., pp. 567-569.

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106

significa o limite da ciência, necessariamente. Se o método não nos pode conduzir à

verdade, a hermenêutica poderá fazê-lo: “A hermenêutica é relevante igualmente

para a teoria da ciência”, diz, “porque, com sua reflexão, descobre também dentro da

ciência condições de verdade que não estão na lógica da investigação mas que a

precedem.” 230

Eis aí, segundo GADAMER, a atualidade de Verdade e Método, porque:

“numa época em que a ciência está penetrando cada vez com mais força na práxis

social, a mesma ciência não poderá por sua vez exercer adequadamente sua função

social a menos que não se oculte a si mesma seus próprios limites e o caráter

condicionado do espaço da sua liberdade” 231

3.1.7. Notícia sobre a repercussão da obra e o debate que se travou:

A obra de GADAMER suscitou a crítica de HABERMAS e de outros

autores.232

Concluiremos esta primeira parte deste capítulo, apresentando, com a

brevidade que os limites do trabalho impõe, o questionamento de HABERMAS à

hermenêutica de GADAMER.

230 Ibid., pp. 585 e 642. 231 Ibid., p. 642. 232 ALVARO L. M. VALLS apresenta os seguintes protagonistas do debate, entre outros: K. O. APEL, CLAUS v. BORMANN, RUDIGER BUBNER e HANS JOACHIM GIEGEL. Cf. JÜGEN HABERMAS, Dialética e hermenêutica, ‘Introdução’, p.10.

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Sublinhamos três das críticas de HABERMAS à filosofia hermenêutica de

GADAMER. Em primeiro lugar, HABERMAS, contra GADAMER, sai em defesa da

metodologia científica, da herança iluminista de confiança na razão. Por outro lado,

critica a reabilitação da autoridade e a recusa de GADAMER para aceitar a herança

iluminista. Finalmente, critica também o irracionalismo da reflexão hermenêutica.233

Apesar das críticas, a conclusão da posição de HABERMAS é que há mais

pontos em comum do que divergência em relação à hermenêutica de GADAMER.

Reconhece, por exemplo, que nas atuais circunstâncias seja mais urgente apontar

para a universalidade da hermenêutica do que para a universalidade da crítica. 234

Por outro lado, analisando o debate travado entre HABERMAS E GADAMER,

ERNILDO STEIN não vê oposição entre dialética habermasiana e hermenêutica

gadameriana. Pelo contrário, vê aproximação, uma relação de complementaridade

necessária entre ambas.235

PAUL RICOEUR, por sua vez, apresenta o debate entre HABERMAS e

GADAMER como um ‘gesto filosófico de base’ ultrapassando assim “os limites de

uma discussão sobre o fundamento das ciências sociais” 236

Para ele tanto a crítica das ideologias quanto a hermenêutica das tradições se

justificam. Cada uma delas fala de um lugar diferente, não havendo

233 JÜGEN HABERMAS, Dialética e hermenêutica, pp. 13-25. 234 Ibid., p. 69. 235 ERNILDO STEIN, ‘Dialética e hermenêutica: uma controvérsia sobre método em filosofia’. In: JÜRGEN HABERMAS, op. cit., pp. 99-107. 236 PAUL RICOEUR, Interpretação e ideologia, p.99.

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108

incompatibilidade entre ambas. Considera que verdade e método constituem um

processo dialético.

Conclui que não pode haver separação entre dialética e hermenêutica como

não deve haver – em termos teológicos – separação entre a escatologia da

emancipação e a dos atos de libertação no passado, como o Êxodo e a

Ressurreição. Caso contrário, tanto uma quanto outra, serão meras ideologias.237

A que conclusão chegar, então, após o debate que se travou em torno do

pensamento gadameriano? Apontamos, pelo menos, duas, que acreditamos

necessárias.

Em primeiro lugar, devemos concluir pela importância do seu pensamento,

que mereceu a atenção de tantos autores, reconhecidamente qualificados para o

debate filosófico.

Em segundo lugar, parece-nos que uma das importantes contribuições de

GADAMER foi a crítica feita ao iluminismo. Nesta crítica, ao glorificarem a razão (e a

metodologia científica) como única e exclusiva fonte da verdade – rejeitando a

possibilidade de recebermos a verdade que também pode ser-nos transmitida pela

tradição e autoridade – jogaram fora o bebê junto com água do banho.238

Uma das grandes lições de GADAMER, portanto, é que nós não podemos nos

fechar àquilo que as tradições e as autoridades podem revelar-nos como verdade.

237 Ibid., pp. 145-146.

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109

Cumpre-nos agora extrair as conseqüências dessa filosofia para a efetividade

dos direitos fundamentais. Que frutos rendeu a filosofia de GADAMER no âmbito

jurídico?

3.2. Hermenêutica Filosófica e Interpretação Constitucional

3.2.1. A especificidade da interpretação constitucional

Uma das primeiras necessidades que deve ser reconhecida, no plano jurídico,

a partir da obra de GADAMER, é que a hermenêutica jurídica deve ser deslocada do

plano epistemológico-metodológico para o ontológico.

Para o propósito deste trabalho, contudo, interessa-nos examinar a influência

de GADAMER no âmbito da nova hermenêutica constitucional. Por esta razão,

dedicaremos mais atenção a estes autores. A questão nuclear que se apresenta é:

Como a filosofia hermenêutica pode contribuir para a efetividade dos direitos

fundamentais? 239

No âmbito jurídico-constitucional a filosofia gadameriana tem recebido

especial atenção de vários constitucionalistas.

238 A expressão é utilizada por SUSAN HEKMAN para referir-se à crítica que faz ao pensamento niilista de FOUCAULT e DERRIDA. Cf. Hermenêutica e sociologia do conhecimento, p.269. 239 Sobre as conseqüências da hermenêutica de GADAMER para o direito cf.: ANTONIO OSUNA FERNANDES-LARGO, Hermenéutica jurídica, pp. 85-123; GREGORIO ROBLES MORCHON, Introduccion a la teoria del derecho, pp. 133-149; KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, 3ª ed., pp. 282-297 e JEANNETTE MAMAN, Fenomenologia existencial do direito, pp. 97-103. Para uma abordagem clássica e tradicional da hermenêutica jurídica, consultar CARLOS MAXIMILIANO, Hermenêutica e aplicação do direito.

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110

Na doutrina nacional, é preciso destacar, porém,de início, o pioneirismo de

WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO que, pelo menos desde 1995, alertava para a

especificidade da interpretação constitucional.

GUERRA FILHO destaca a necessidade de uma interpretação

especificamente constitucional, advertindo em primeiro lugar que o objeto

‘Constituição’ não é algo pronto e acabado mas, pelo contrário, “algo em movimento,

que diuturnamente se faz, desfaz e refaz, à medida em que vai sendo aplicado”.240

Lembra, entretanto, que se a Constituição pode assim ser concebida como

um processo, de outra lado, é também constituída de uma parte estática que são os

princípios.

Distinguindo regras de princípios, esclarece que, se os juristas estão

acostumados a lidar mais com regras, valendo-se dos métodos da hermenêutica

jurídica tradicional, é preciso considerar a interpretação constitucional de outra

maneira, uma vez que a Constituição é composta, em geral, por normas-princípio.241

Quando apresenta o primeiro e principal cânone de interpretação – o da

unidade da Constituição – GUERRA FILHO recorda a tese de GADAMER da pré-

compreensão, ao referir-se à fórmula política ou decisão fundamental, que deve

condicionar previamente o entendimento das normas constitucionais. Partindo-se do

pressuposto de que a Constituição é um sistema uno, sua interpretação deverá

240 Cf. Da interpretação especificamente constitucional, p.256. Ver também, do mesmo autor, A filosofia do direito aplicada ao direito processual e à teoria da constituição, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2002, p.103.

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111

chegar necessariamente ao mais alto dos valores consagrados por suas normas-

princípio a que PABLO LUCAS VERDU chama de fórmula política.242

Relativamente à eficácia das normas constitucionais, o referido autor

menciona ainda os princípios da máxima efetividade e o da força normativa da

Constituição.

Conclui, por fim, seu artigo, explicando aquele princípio que procura resolver

o problema crucial de toda hermenêutica constitucional, a saber, o principio da

proporcionalidade.243

GUERRA FILHO acredita que: “o emprego dessa hermenêutica diferenciada...

há de ser visto como um fator (intelectual) de fundamental importância, para que ela

[a Constituição] venha a ser concretizada, tal como anseia a Nação”. 244

Outro jurista pátrio, que aplica a filosofia hermenêutica de GADAMER à

interpretação da Constituição – para que esta alcance plena eficácia social – é

INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO.

MÁRTIRES COELHO aponta, de saída, a pré-compreensão ou pré-

conhecimento como uma das mais importantes contribuições da hermenêutica

filosófica contemporânea para a teoria do conhecimento.245

241 Ibid., mesma página. 242 Ibid., p.257. 243 Ibid., pp. 257-258. 244 Ibid., p. 259.

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112

Observa, também, os limites, os condicionamentos da compreensão, pelo ser

do intérprete – isto é, pela sua existência – citando ORTEGA Y GASSET: “Eu sou eu

e as minhas circunstâncias”.246

Diante dessa limitação, conclui que a busca da verdade depende de

cooperação, sendo assim “uma tarefa necessariamente compartilhada sob a lógica

e a ética da diferença (...) uma lição de humildade e sabedoria...”. 247

Acrescenta a esses condicionamentos, o condicionamento ideológico do

interpréte-aplicador do direito, já que “ao fim e ao cabo somos todos animais

ideológicos, como ideológica é a sociedade em que vivemos”.248

Mais a frente, ao explicar o conceito de Constituição, afirma que “toda pré-

compreensão possui algo de irracional porque (...) ela resulta de pré-juizos, pré-

suposições ou pré-conceitos”, havendo assim uma pré-compreensão da Constituição

que deverá ser submetida ao tribunal da razão para distinguir os pré-juízos legítimos

dos ilegítimos, os falsos dos verdadeiros. Daí a necessidade da Teoria da

Constituição, “para racionalizar e controlar a pré-compreensão constitucional” 249

245 Cf. ‘Elementos de teoria da Constituição e de interpretação constitucional’, in: GILMAR FERREIRA MENDES; INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO & PAULO GUSTAVO BRANCO, Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, p.15. 246 Ibid., p. 16. 247 Ibid., p. 17. 248 Ibid., p. 18. 249 Ibid., pp. 25, 26. A tese da necessidade da Teoria da Constituição para controlar a pré-compreensão é de GOMES CANOTILHO, como recorda INOCÊNCIO COELHO.

Page 113: INTRODUÇÃO - PUC-SP

113

Ao tratar da hermenêutica filosófica de GADAMER, concorda que a

interpretação só se consuma na aplicação, isto é, só compreenderemos o texto

quando ele for aplicado – e a cada aplicação amplia-se a sua compreensão.250

Neste processo infinito, contudo, não há condenação das interpretações

realizadas anteriormente (no passado), como interpretações erradas. O processo

hermenêutico é sempre uma necessidade para que se possa garantir a força

normativa da Constituição, pois, através dele, os sistemas jurídicos são atualizados

e regenerados, preservando-se-lhes a força normativa.251

O Poder Judiciário, então, – detendo o poder de interpretar-aplicar – detém o

poder de criação jurídica, ao atribuir novos significados aos termos jurídicos.

MÁRTIRES COELHO ousa afirmar, inclusive, que os Tribunais Constitucionais

funcionam como verdadeiras ‘constituintes de plantão’, tamanho o poder que

possuem para criar direito novo.252

A produção do direito pelo Judiciário, por outro lado, não estaria violando o

dogma da separação de poderes, pois há um ‘acordo tácito’ (ou cumplicidade?)

entre legisladores e juízes (com o aval da doutrina) para a interpretação criativa.253

250 Ibid., pp. 56 e 65. Lembrando ensinamento de KARL LARENZ – com apoio em GADAMER – o autor afirma que a aplicação constitui aspecto imanente da interpretação jurídica. Cf. p. 62. 251 Ibid., pp. 57 e 59. 252 Ibid., pp. 58-59. 253 Ibid., p. 60.

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114

MÁRTIRES COELHO sublinha ainda que, ao atualizar o texto normativo, a

hermenêutica contribui para o prestigio da Constituição já que o seu texto continua

inalterado, mudando apenas o sentido normativo – ao contrário das revisões que a

desgastam.254

A respeito, finalmente, da questão que mais nos importa, – relativa à

necessidade da interpretação-aplicação do direito para alcançar a sua eficácia social

ou efetividade – o autor sob comento conclui que:

“Sob essa perspectiva, pode-se dizer que a constante adequação das normas aos fatos apresenta-se como requisito indispensável ou condição sine qua non da própria efetividade do direito, o qual só funciona à medida em que se mantém sintonizado com a realidade social, da qual emerge e sobre a qual atua (...) 255

É, pois, da correlação entre ser e dever ser – ao contrário de KELSEN – que

surge a força normativa da Constituição.

3.2.2. Hermenêutica filosófica e jurisdição constitucional

Além das posições e propostas apresentadas por WILLIS SANTIAGO

GUERRA FILHO e INOCENCIO MÁRTIRES COELHO, desejamos concluir este

capítulo retomando algumas conseqüências da obra de GADAMER para a nova

hermenêutica constitucional, a partir da obra de STRECK, Jurisdição Constitucional

e Hermenêutica.

254 Ibid., p. 63. 255 Ibid., mesma página.

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115

Como já foi adiantado anteriormente256 STRECK aplica GADAMER quando

da sua análise sobre as causas da inefetividade dos direitos. O que aqui se

pretende, mais especificamente, é saber como a hermenêutica filosófica pode

contribuir para a efetividade dos direitos fundamentais, segundo este autor.

A tese central de LENIO LUIZ STRECK, é a de que todo ato interpretativo –

todo ato judicial, portanto – é um ato de jurisdição constitucional.257

Ao cuidar do controle difuso de constitucionalidade, STRECK nos lembra, em

primeiro lugar, que o Brasil adotou o modelo misto de controle de

constitucionalidade, isto é, o controle difuso que já existia desde os tempos da

proclamação da República (Constituição de 1891) e o controle concentrado que foi

introduzido em 1965 e adotado pela atual Constituição de 1988. Ele afirma que:

“A Constituição de 1988 manteve a fórmula de controle misto de constitucionalidade(controle direto, abstrato, e incidental, concreto) agregando apenas a ação de inconstitucionalidade por omissão... Pelo controle difuso de constitucionalidade, permite-se que, no curso de qualquer ação, seja argüida/suscitada a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo...” 258

STRECK destaca, de início, a importância do controle difuso de

constitucionalidade. Embora o controle concentrado tenha seu valor, sua posição é a

de que o controle difuso continua a ocupar um lugar importante no controle da

constitucionalidade das leis, porque “retira do órgão de cúpula do Poder Judiciário o

monopólio do controle de constitucionalidade, servindo de importante mecanismo de

256 Ver capítulo 1.2.2.3. 257 Cf. Jurisdição constitucional e hermenêutica, pp. 385 e 456/457. 258 Ibid., p.455.

Page 116: INTRODUÇÃO - PUC-SP

116

acesso à justiça e, conseqüentemente à jurisdição constitucional”.259 Ele critica,

entretanto, seu uso rarefeito, apontando como uma das causas a crise da dogmática

jurídica que confunde vigência com validade e o forte apego – ainda – à legislação

infraconstitucional que não é confrontada com a Constituição.260

3.2.2.1. O controle concentrado e os institutos da interpretação conforme e da nulidade parcial sem redução de texto

Tratando, em seguida, do controle concentrado de constitucionalidade, passa

à análise da Lei 9868/99. Sua primeira observação é sobre a natureza jurídica da

referida lei. Conclui que não se trata de uma lei de direito processual, como possa

parecer. Muito mais que isso, sua natureza é a de uma norma ligada à jurisdição

constitucional.261

E por que tal conclusão? Porque suas características o demonstram, pois:

1- Estabelece efeito vinculante: “Conforme dispõe o parágrafo único do art. 28, da

Lei 9.868/99, a declaração de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade),

inclusive a interpretação conforme a Constituição e a nulidade parcial sem

redução de texto têm eficácia contra todos e efeito vinculante...” 262

2- Institucionaliza a interpretação conforme;

259 Ibid., p.456. 260 Cf. pp. 462 e 497. 261 Ibid., p. 542. 262 Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 571.

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117

3- Institucionaliza a nulidade parcial sem redução de texto;

4- Prevê efeito avocatório em sede de liminar em ação declaratória de

constitucionalidade e,

5- Prevê a inversão dos efeitos em ambas as ações;

Ao analisar os institutos da interpretação conforme e da nulidade parcial

sem redução de texto, estabelecidos pela Lei 9868/99, sob a ótica da ontologia

fundamental, STRECK observa, na mesma linha de autores como PAULO

BONAVIDES, ELIAS DIAZ, FÁBIO COMPARATO, EROS GRAU, GOMES

CANOTILHO e JORGE MIRANDA, que esses institutos confirmam a nova

concepção do papel do Poder Judiciário, pois,

“...os institutos (mecanismos) da interpretação conforme e da nulidade (inconstitucionalidade) parcial sem redução de texto enquadram-se na contemporânea concepção de justiça constitucional entendida sob a ótica do Estado Democrático de Direito, onde a função do Poder Judiciário perpassa, de longe, a concepção de ‘legislador negativo’ própria do judiciário do Estado Liberal Absenteísta.” 263

Nesse novo paradigma, a função do Direito não é mais a de mera ordenação-

conservação das relações sociais, mas, ao contrário, assume o novo papel de

promoção-tranformação, no Estado Democrático de Direito.

A lei 9868/99 estabelece, assim, mecanismos que permitem ao Judiciário

cumprir sua nova missão “político-intervencionista”, para concretização das

263 Ibid., mesma página.

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118

promessas da modernidade através desses mecanismos “corretivos” da

atividade legislativa, à sua disposição, que garantem a força da Constituição contra

a vontade da maioria Parlamentar.264 Cairia por terra então o princípio da

separação de poderes?

A resposta de STRECK é afirmativa. Para ele, o princípio da interpretação

conforme rompe com o clássico princípio da separação de poderes. Para efeito de

exame da constitucionalidade o legislador admitiu (explicitamente), com esta lei, que

a nova função do Judiciário não se limita mais à de “legislador negativo”, como o era

na sua clássica concepção.265

Isso não significa, contudo, adverte STRECK, que o Judiciário esteja acima

da Constituição ou que se transformará em legislador positivo, mas que ao “adaptar

o texto legal à Constituição... o juiz ou tribunal estará tão-somente cumprindo sua

tarefa de guardião da constitucionalidade das leis”.266

O mecanismo da interpretação conforme constitui, portanto, um princípio. Mas

não um princípio qualquer; não um princípio estabelecido pelo legislador; mais ainda

do que isso, para STRECK...

“...a interpretação conforme a Constituição é mais do que princípio, é um princípio imanente da Constituição, até porque não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obrigação de que todos os textos normativos do sistema sejam interpretados de acordo com ela. Desse modo, em sendo um

264 STRECK lembra que a Constituição, “mais do que outra coisa, é um remédio contra maiorias. Caso contrário, perder-se-ia a noção de rigidez constitucional’, Cf. p.572. 265 Cf. pp. 574, 582,595,596,609 e 610. 266 Ibid., pp. 574-575.

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119

princípio (imanente), os juizes e tribunais não podem (continuar a (só)negar a sua aplicação, sob pena de violação da própria Constituição.” 267

3.2.2.2. A interpretação conforme e a aplicação da hermenêutica-ontológica de Gadamer

Mas, como STRECK aplica a ontologia hermenêutica de GADAMER, ao

analisar esses institutos ora sob comento?

Tendo apontado a crise por que passa a hermenêutica jurídica, 268 LENIO

STRECK esclarece que – de acordo com a matriz teórica por ele adotada – a

interpretação é um processo complexo que não se faz por etapas, mas que ocorre

em um círculo hermenêutico. Valendo-se da ontologia de HEIDEGGER, explica

que no processo interpretativo há uma antecipação de sentido, pois “o intérprete, a

partir de sua situação hermenêutica e, portanto, de seus pré-juízos, conformará o

sentido do texto a partir de seu confronto com o texto constitucional”. O processo

hermenêutico ocorre em um círculo hermenêutico que é um círculo virtuoso “no

interior do qual temos sempre um ter prévio, um ver prévio e um pré-conceito .” 269

A Constituição, portanto, não é um conjunto de conceitos abstratos a partir do

qual se possa deduzir um sentido. Não se pode transformar a Constituição em um

objeto de conhecimento se queremos compreender seu sentido. Essa postura é o

que acaba sendo uma das causas da sua inefetividade, porque congela um sentido

267 Ibid., pp. 573 e 574. 268 Ibid., p. 499, nota de rodapé. 269 Ibid., p. 576.

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abstrato impedindo o aparecer da singularidade concreta que constitui a diferença

ontológica.

Que significa isso? Como nos lembra VILLALIBRE, significa que a ontologia

fundamental quer permanecer ligada ao “anunciar-se das coisas”.270 Fica

estabelecida, portanto, a abertura para o ser das coisas que, por sua vez, é

determinado pelo tempo.271

A hermenêutica filosófica provocou o que se pode chamar de revolução

copernicana (J. MIRANDA) na história da hermenêutica. Houve um salto

paradigmático a partir daí; a hermenêutica clássica cede lugar às hermenêuticas

concretizantes; a epistemologia, até então predominante, cedeu lugar à ontologia-

fenomenológica.272

Nesse salto paradigmático, já não há a distinção clássica entre interpretar e

aplicar, pois a interpretação é sempre aplicação. A compreensão do texto

constitucional ocorre apenas no momento da sua aplicação. Assim, no plano

jurídico-constitucional, “o intérprete não se depara com o texto da Constituição

separado da realidade social e dos textos normativos infraconstitucionais”. 273

Por isso é que STRECK, nesta perspectiva ontológica da hermenêutica (e não

epistemológico-metodológica), insiste que já não se pode mais separar o processo

270 VILLALIBRE, apud LENIO STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p.577. 271 Ibid., p. 646. 272 Ibid., pp. 597 e 610. 273 Ibid., p. 578.

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hermenêutico em fases ou etapas, procurando um método que nos assegure o

caminho para uma interpretação correta.

Conforme a crítica de HESSE – por ele lembrada – os métodos “tomados um

por um, não oferecem qualquer orientação para o intérprete”.274 E, como assevera

EROS GRAU, “não há uma norma que especifique como se deve interpretar as

normas”. 275

Daí a sua crítica ao tecnicismo hermenêutico (métodos) e a sua proposta de

que a hermenêutica deve ser analisada do ponto de vista filosófico-ontológico (e não

metodológico/tecnológico, como tem sido feito pela dogmática).276

Com base ainda na filosofia ontológica, STRECK propõe uma rediscussão da

nomenclatura do instituto da interpretação conforme, sugerindo que, ao invés de

‘interpretação conforme a Constituição’, seria mais adequado (ou conveniente) se o

instituto fosse denominado de ‘atribuição de sentido conforme a Constituição’,

porque “os Tribunais Constitucionais, ao lançarem mão desses

mecanismos...elaboram consideráveis redefinições do texto infraconstitucional,

para adaptá-lo ao conteúdo material da Constituição.” 277

Justifica sua proposta lembrando a ruptura entre a hermenêutica filosófica e a

hermenêutica clássica e suas variantes

274HESSE, apud STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p.578. 275 EROS GRAU, apud, STRECK, op. cit., p.579. 276 Ibid., p. 579. 277 Ibid., p. mesma página.

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Explica que a hermenêutica clássica, de origem bettiana, considera a

interpretação como reprodução do sentido do texto. Entretanto, para a nova

hermenêutica, o que ocorre quando interpretamos é uma produção ou atribuição

de sentido ao texto. Por isso, STRECK propõe que o referido instituto – para melhor

expressar o novo paradigma hermenêutico – passe a ser denominado de

atribuição de sentido conforme a Constituição:

“..a nova hermenêutica, aqui trabalhada como Nova Crítica do Direito – de matriz fenomenológica (ontologia fundamental) –rompe com as concepções da assim chamada hermenêutica clássica e suas variantes, mormente a hermenêutica de matriz bettiana, ao passar da reprodução do sentido para a produção do sentido.” 278

Que significa, então, interpretar uma lei conforme a Constituição? Não

significa declará-la inconstitucional necessariamente ou afirmar sua

constitucionalidade, mas atribuir/adjudicar um novo sentido (que foi autorizado pela

Lei 9868/99) ao sentido de base. Significa que toda legislação anterior à CF/88,

dever ser reinterpretada à luz das novas normas e princípios. Este não é apenas um

poder mas um dever dos aplicadores do direito (qualquer que seja ele).279

A interpretação conforme é instituto da terceira fase do

constitucionalismo, sendo o instituto construído pela tradição jurídica visando a

otimização dos textos mediante a agregação de sentidos.280 Nessa nova

perspectiva, modifica-se a noção de lacuna “uma vez que a lacuna ocorre a partir da

faticidade e da historicidade do intérprete”.281 E, por outro lado, ainda, não se deve

confundir hermenêutica com filologia pois “fazer hermenêutica não é um mero

278 Ibid., pp. 579-581. 279 ibid., p.593. 280 ibid., p.580. Cf. tb., p. 617, para saber sobre o surgimento do instituto.

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trabalho de análise de discurso.” 282 Daí não ser possível ao intérprete reproduzir

sentidos – conclui.

Nessa mesma linha de pensamento crítico, STRECK defende a tese de que

os textos legais podem ser redefinidos (atribuindo-se sentido novo) a partir dos

princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que, embora não explicitados na

Constituição, “servem para conformar a interpretação de um texto infraconstitucional

ao Texto Maior, além de servir como elemento integrador dos próprios preceitos da

Constituição.” 283

A posição de CANOTILHO, no entanto, é divergente. Para o mestre português

o intérprete não pode produzir um sentido além dos sentidos possíveis do texto, sob

pena de transformar o juiz em legislador ativo.284

Mas a tese é refutada por STRECK, que levanta a seguinte questão: “Quais

são os sentidos possíveis de um texto?”, e explica:

“...Os sentidos dos textos não estão à disposição do intérprete, como se fossem significantes primordiais fundante à espera de uma acoplagem subsuntiva ( o fundamento do Direito ou do caso a ser examinado não pode ser uma proposição, uma frase que poderia ser falsa ou verdadeira, adverte Stein)....Portanto, a partir de uma situação hermenêutica, e de um sentido que já vem antecipado pela pré-compreensão, o intérprete produzirá esse sentido. É evidente que ele não é livre para dizer o sentido que melhor lhe aprouver, o que o lançaria no autoritário mundo da relativização sofística. O sentido necessariamente exsurgirá na conformidade do texto constitucional, entendido no seu todo principiológico, isto é, no seu sentido ontológico-existencial...” 285

281 ibid., p.581. 282 ibid., p.581. 283 ibid., p.582. 284CANOTILHO, Direito Constitucional, pp. 275 e segs., apud, STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p.583. 285 Ibid., p. 583.

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Caímos com isso no relativismo? STRECK esclarece que não:

“..o intérprete não poderá construir um novo texto, espécie de nova lei, que não guarde, nem de longe, relação com aquilo que se possa entender como desvelamento do sentido decorrente da síntese hermenêutica exsurgente da copertença Constituição – texto infraconstitucional. O limite é a Constituição, enquanto manifestação ontológico-existencial. Por isso, entendo que a interpretação conforme, assim como a nulidade parcial sem redução de texto e os diversos tipos de sentenças ‘construtivas’, por serem mecanismos de adaptação/correção da legislação, estarão sempre no limite da tensão legislação - jurisdição.” 286

STRECK diverge frontalmente também de RUI MEDEIROS que diz que a

interpretação conforme só prevalece quando não for possível reconhecer a vontade

do legislador.287

Buscando apoio em TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR e PAULO DE BARROS

CARVALHO, conclui que, para a Nova Crítica do Direito, “fica extremamente

dificultado o apelo tanto à intenção do legislador como à vontade objetivada na

norma, que perdem terreno em face dos novos rumos que assume a interpretação

do Direito...” 288 Por isso, para STRECK, o que importa não é a “intenção do

legislador de 1940; importa a ‘intenção’ do legislador constitucional de 1988.” 289

Fundado em GADAMER – e contra o historicismo jurídico-hermenêutico –

STRECK explica que o efeito da distância temporal é algo positivo para a

286 Ibid., p. 592. 287 ibid., p.586. 288Ibid., p.591.

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125

compreensão (e não algo negativo que precisa ser vencido como ensinava o

historicismo).

Conclui, então, sustentando que “não há como buscar o sentido

originário/literal do texto normativo”, mas que esse sentido será atribuído pelo

intérprete a partir da sua faticidade e temporalidade, isto é, a partir do seu ser-no-

mundo, a partir dos seus pré-juízos. E, arremata: “É inexorável, pois, que a

interpretação conforme a Constituição será um procedimento corretivo da lei,

exsurgindo uma nova norma de um determinado texto” 290

Em seguida – com apoio ainda na filosofia de GADAMER – STRECK

assevera que a interpretação é sempre uma fusão de horizontes e explica que:

“..quando o juiz aplica a lei, estará aplicando não o texto-em-si, mas o sentido que esse texto adquiriu na tradição, exsurgindo sua interpretação a partir da necessária fusão de horizontes.... E Hermes tornou-se poderoso; na verdade, nunca se soube o que os deuses diziam; somente se soube o que Hermes disse que os deuses diziam. Eis aí a hermenêutica. O ente não está em questão. O que está em questão é o sentido do ser do ente!” 291

Sendo assim, toda interpretação é criadora de sentido e, conseqüentemente,

a jurisprudência é fonte de direito – o que de resto é admitido pela dogmática jurídica

e pela Súmula 400 do STF. STRECK defende então o que poderíamos chamar de

289Ibid., p.593. 290Ibid., p.594. A partir daí STRECK conclui, fundado em EROS GRAU e FRIEDRICH MÜLLER, que o direito é alográfico, isto é, “a norma é sempre o resultado da interpretação de um texto(...) o texto normativo não contém imediatamente a norma; esta é construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do Direito. Na norma há sempre uma adição/atribuição de sentido(...).” Cf. p.701 e tb. pp. 581,594,640,693. Sobre a diferença entre texto e norma, cf. pp. 610 e 700-701. 291 Ibid., p.595.

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126

batismo constitucional das leis, quando propõe a necessidade de um banho de

imersão dos textos infraconstitucionais. 292

Para demonstrar sua tese de que a interpretação é produção (ou adjudicação)

de sentido, STRECK apresenta vários exemplos em que da interpretação do texto

normativo foram produzidas uma enorme diversidade de decisões até mesmo à

revelia da Constituição.293

A revolução ocorrida, assim, no plano hermenêutico-filosófico, também se

operou no direito constitucional, embora ainda não tenha se tornado visível para os

juristas.294

É por isso que diante da tradição da baixa constitucionalidade e da perda da

força normativa há que se continuar a luta para uma resistência constitucional, pois

a Constituição tornou-se o espaço ético-político-axiológico que estabeleceu os

valores fundamentais da sociedade brasileira que precisa pois de uma defesa

intransigente por parte da comunidade jurídica ou pelo menos por parte daqueles

juristas que estão engajados na proposta de um Estado de Direito, promocional

dos direitos humanos fundamentais.

A proposta de STRECK é, pois, para uma nova teoria constitucional – que

supere a inautêntica – garantindo a efetividade da Constituição, a concretização dos

direitos e impedindo a retaliação do seu texto.295

292 Ibid., pp. 595-596 e 649. Para conferir a proposta de constitucionalização do direito penal e processual, ver pp. 667, 668 e 687. 293 Ibid., pp. 597-609 e 652. 294 Ibid., p.707.

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127

Por todo o exposto, resulta claro que a obra de GADAMER produziu seus

frutos na doutrina pátria e que não é na formalização da linguagem jurídica que

encontraremos o conhecimento do direito nem a sua verdade (a isso, segundo

GADAMER nos leva a metodologia científica que ele rechaça), mas na sua

aplicação, na sua concretização.

Então, se realmente quisermos garantir a força normativa da Constituição, e,

se desejamos, por conseqüência, dar efetividade aos direitos fundamentais nela

consagrados, necessitamos de nova postura metodológica; necessitamos interpretá-

la, vale dizer, aplicá-la. Por isso, parafraseando KANT, diríamos que já e hora de

despertarmos do sono dogmático, e abrir-nos para a verdade do texto

constitucional procurando, via hermenêutica ontológica, vivificar estes direitos.

CONCLUSÃO

Partimos da construção histórica dos direitos fundamentais – através de

marchas e contramarchas, de avanços e retrocessos – até o presente em que se

espera, através da interpretação ontológica, assegurar a força normativa da

295 Ibid., pp. 708-709.

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128

Constituição e, conseqüentemente, a efetividade dos direitos. Restou confirmada,

pois, a hipótese formulada inicialmente.

Então, após a pesquisa, enumeramos as seguintes conclusões:

A) - Sobre a metodologia científica aplicada ao direito:

1. A metodologia científica fragmenta o ser ao convertê-lo em ‘objeto’ de

conhecimento (separação entre ser e dever ser); o direito, convertido em ‘objeto’,

perde, assim, suas referências históricas, eis que foi descontextualizado; nesta

descontextualização perde, então, o seu sentido, pois já não se refere a nada;

2. A fragmentação produzida nos ‘objetos do conhecimento’, isolando-os, encobre o

conhecimento da sua verdade. Ficamos, por isso, impedidos de compreender o

sentido destes ‘objetos’, que permanece oculto pela falta de referências; é

preciso, pois, reintegrar os ‘objetos’ fragmentados pela metodologia científica,

para que recuperem o sentido perdido;

3. Concluimos, portanto, que o direito produzido metodologicamente – o direito

lógico – não é o verdadeiro direito. É apenas a sua aparência. Pois, o direito

lógico é um direito abstrato, sem ser, completamente indiferente à nossa

existência, um direito puramente conceitual. O método nos leva a este direito: o

direito formal, vazio, destituído de mundo. O direito, então, não pode ser

convertido num objeto manipulável de que dispomos.

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129

B) - Sobre a hermenêutica filosófica aplicada ao direito:

1. Não há interpretação objetiva, fundada num ‘eu puro’, num ‘sujeito lógico do

conhecimento. Quem compreende e interpreta somos nós, sujeitos históricos, de

carne, osso e espírito. E este sujeito histórico, este eu histórico que somos nós,

conhecemos, compreendemos e interpretamos a partir do nosso ser, da nossa

existência, da nossa finitude;

2. Assim, a consciência histórica (não a consciência pura, do conhecimento

científico) esta imersa na tradição. Já recebemos, portanto, um acervo da

tradição, e não podemos nos libertar dela para – ‘de fora’ – realizarmos o ato de

conhecimento ou hermenêutico;

3. Não há, pois, conhecimento jurídico – nem interpretação – sem pressupostos,

não-ideológica, ou sem valores, isto é, neutra. Pensar o contrário foi a

ingenuidade iluminista. Consciente ou inconscientemente, toda interpretação é

ideológica. Não existe um ponto arquimédico do qual possamos falar – um

lugar neutro, fora do espaço e do tempo. Precisamos, então, reconhecer os

pressupostos, ideologias e valores que condicionam a interpretação jurídica e

que são transmitidos pela tradição;

4. A verdade jurídica só se manifesta através da experiência concreta do jurídico

(que é histórica) e não através da metodologia científica. Daí que o direito apenas

é conhecido no momento da sua interpretação-aplicação – quando é conhecido

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130

pela libertação ou opressão –, nunca devendo haver separação entre estes dois

momentos;

5. Na aplicação das normas ocorre um encontro jurídico cuja relação é do tipo eu-

você e não uma relação do tipo sujeito-objeto. Neste sentido ontológico, o direito

é uma voz humana e deve ser considerado uma obra de arte, que fala, e não um

objeto científico, mudo;

6. Não havendo diálogo, a metodologia jurídica não renova a pergunta sobre o

significado das normas quando estabelece um sentido como único. Mas, numa

relação dialógica, a interpretação jurídica nunca é definitiva, pois, novos

significados sempre vão sendo aduzidos na espiral hermenêutica; novas

perspectivas acrescentadas. Esta atualização separa o fosso entre a criação e a

aplicação do direito;

7. Portanto, só pelo deslocamento da hermenêutica para o plano ontológico – ao

invés do metodológico – é que os direitos fundamentais podem ser salvos, já

que o sentido da Constituição é atualizado pela ‘constituinte de plantão’. A tarefa

da hermenêutica jurídica, pois, não pode ser apenas a de encontrar regras para a

melhor interpretação. É preciso considerar a diferença ontológica do caso

concreto, para compreender os sentidos possíveis das normas, buscando sua

máxima efetividade;

8. A timidez dos tribunais em não adotarem uma hermenêutica transformadora tem

levado à ineficácia social dos direitos fundamentais e, em conseqüência à uma

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131

situação de crise da dogmática jurídica e da sociedade contemporânea.

Portanto, cabe ao Poder Judiciário uma mudança de postura diante desse

quadro. A proposta é, pois, pela adoção da hermenêutica ontológica como

meio de vivificar o(s) direito(s), através da jurisdição constitucional, cumprindo os

tribunais, heroicamente, sua missão constitucional, ainda que contra a corrente

globalizante que frustra a efetivação dos direitos. A tarefa é urgente!

De todo o exposto, concluimos que a efetividade dos direitos fundamentais

deve ser garantida não através da hermenêutica tradicional (metodológica) mas

através da hermenêutica filosófica, conforme o magistério de GADAMER.

Esta conclusão, no entanto, não deve ser definitiva. De GADAMER, todos

nós aprendemos que é “mau hermenêuta aquele que crê que pode ou deve

ficar com a última palavra”. Não vamos, então, ser presunçosos e arrogantes

diante do enigma do ser. Como nos lembra PAUL RICOEUR, o gesto da

hermenêutica – ao contrário do científico – é um gesto humilde, que reconhece a

finitude de toda compreensão humana. E, além disso, os Evangelhos ensinam que

é preciso humildade para herdar o reino.

(Alea jacta est !)

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