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SOFRIMENTO PSÍQUICO DA CRIANÇA AUTISTA Maria Izabel Tafuri [1] INTRODUÇÃO O texto pretende abordar as características peculiares de crianças diagnosticadas como autistas, no sentido de refletir o autismo tanto em relação à síndrome de Kanner quanto às psicoses. Històricamente, o autismo deixou de ser enfocado como sintoma tanto das crianças ditas autistas quanto daquelas denominadas de psicóticas, limítrofes e neuróticas. Para melhor compreender o sintoma autismo tanto na síndrome de Kanner e Asperger quanto em outros distúrbios psicopatológicos na infância são apresentadas vinhetas clínicas de duas crianças encaminhadas para a clínica escola da universidade com os diagnósticos de autismo infantil e síndrome de Asperger. O objetivo maior é o de especificar o sofrimento psíquico da criança ensimesmada a partir do estudo da situação transferencial da criança com o analista. O tema proposto refere-se à pesquisa acadêmica em psicanálise com crianças realizada em universidade pública, há dezessete anos. Essa pesquisa é realizada no Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília-UnB. As crianças são atendidas na clínica escola do Instituto de Psicologia, denominada, CAEP- Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos. Atualmente o grupo de pesquisadores é formado por professores e alunos de graduação e pós- graduação da Universidade de Brasília. Trata-se não apenas de um grupo de pesquisadores que elabora textos, dissertações e teses. Hoje, constituímos uma equipe de

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Page 1: INTRODUÇÃO - Psicopatologia Fundamental · psicogenética para se voltar resolutamente para as perspectivas orgânicas que lhe permitiriam combater as tentações de ver o autismo

SOFRIMENTO PSÍQUICO DA CRIANÇA AUTISTA

Maria Izabel

Tafuri[1]

INTRODUÇÃO

O texto pretende abordar as características peculiares de crianças diagnosticadas

como autistas, no sentido de refletir o autismo tanto em relação à síndrome de Kanner

quanto às psicoses. Històricamente, o autismo deixou de ser enfocado como sintoma

tanto das crianças ditas autistas quanto daquelas denominadas de psicóticas, limítrofes e

neuróticas. Para melhor compreender o sintoma autismo tanto na síndrome de Kanner e

Asperger quanto em outros distúrbios psicopatológicos na infância são apresentadas

vinhetas clínicas de duas crianças encaminhadas para a clínica escola da universidade

com os diagnósticos de autismo infantil e síndrome de Asperger. O objetivo maior é o de

especificar o sofrimento psíquico da criança ensimesmada a partir do estudo da situação

transferencial da criança com o analista.

O tema proposto refere-se à pesquisa acadêmica em psicanálise com crianças

realizada em universidade pública, há dezessete anos. Essa pesquisa é realizada no

Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade

de Brasília-UnB. As crianças são atendidas na clínica escola do Instituto de Psicologia,

denominada, CAEP- Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos. Atualmente o

grupo de pesquisadores é formado por professores e alunos de graduação e pós-

graduação da Universidade de Brasília. Trata-se não apenas de um grupo de

pesquisadores que elabora textos, dissertações e teses. Hoje, constituímos uma equipe de

Page 2: INTRODUÇÃO - Psicopatologia Fundamental · psicogenética para se voltar resolutamente para as perspectivas orgânicas que lhe permitiriam combater as tentações de ver o autismo

trabalho clínico, criamos um lugar de escuta e acolhimento no seio da universidade. O

referencial das nossas pesquisas é, por excelência, a clínica psicanalítica com crianças.

Segundo a nossa experiência clínica no serviço de acolhimento, as crianças que

apresentam sofrimento psíquico grave são sempre encaminhadas de um lado para outro,

desde muito cedo em suas vidas, sem nunca encontrarem atendimento. Assim, a

marginalização passa a ser um lugar a ser ocupado por elas na sociedade. O desafio, a

princípio, foi o de trazer para o interior dos limites de uma instituição universitária o

atendimento clínico psicanalítico de crianças que apresentam sofrimento psíquico grave.

Assim, o acolhimento dessas crianças passou a ser feito no sentido de encontrar um

caminho que possibilitasse o tratamento, evitando o destino da marginalização.

A TÉCNICA PSICANALITICA COM CRIANÇAS ENSIMESMADAS

A utilização de técnicas psicanalíticas com crianças ensimesmadas começou a ser

difundida por Melanie Klein em meios a conflitos com Anna Freud no seio da escola

inglesa de psicanálise. As noções psicanalíticas desenvolvidas por Melanie Klein (1930)

a respeito do quadro clínico do Pequeno Hans caracterizam um tipo de ensimesmamento

hoje reconhecido como um quadro psicopatológico, denominado Transtorno Autista

(DSM-IV) ou autismo infantil precoce. Històricamente, crianças que apresentam os tipos

mais severos de dificuldades de relacionamento e comunicação, combinadas com

déficits de regulação de processos fisiológicos, sensoriais, motores, cognitivos, afetivos

e de atenção, são classificadas na categoria de Transtorno Autista. A descrição original

de Kanner (1943) sobre os “Distúrbios autísticos de contato afetivo” (Autistic

disturbances of affective contact) focalizava um prejuízo básico no desenvolvimento do

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bebê, desde o nascimento: uma falha no relacionamento interpessoal pela ausência de

contato visual e responsividade facial, por indiferença ou aversão a afeto e contato físico

(isolamento autístico). O prejuízo na comunicação é marcante e persistente, afetando as

habilidades tanto verbais quanto não-verbais. As brincadeiras imaginativas em geral

estão ausentes ou apresentam prejuízo acentuado. Essas crianças tendem a não se

envolver nos jogos de imitação ou rotinas simples da infância, ou fazem-no fora de

contexto ou de um modo mecânico.

Cabe ressaltar que o autismo de Kanner foi inicialmente classificado como uma

manifestação precoce das esquizofrenias. O autor traçou semelhanças entre os quadros de

isolamento, desde o início da vida, das crianças observadas por ele e o desligamento da

realidade após um período de desenvolvimento normal das crianças ditas

esquizofrênicas. Para Kanner, a aparência clínica de uma criança autista, que não tem

contato com a realidade, é análoga à de uma criança que se desliga da realidade: “nesse

sentido, é possível estabelecer uma analogia entre os dois termos, autismo e afastamento

da realidade” (Kanner,1949,p.70). Essa visão mudou de forma radical, ao longo dos

anos 1940.

Por meio de um estudo longitudinal de mais de cinqüenta crianças autistas, Kanner

(1948) fez uma comparação mais apurada com os casos de esquizofrenia infantil,

discutidos por Ssucharewa, Grebelskaya-Albatz e Despert (p55). De posse desse estudo

comparativo, Kanner passou a descrever as diferenças básicas entre os dois grupos de

crianças e chegou à conclusão sobre a especificidade da sintomatologia do autismo

infantil precoce.

Na década de 1960 Kanner aproximou os critérios específicos desta síndrome dos

critérios tópicos de uma doença orgânica como a fenilcetonúria, o que se conclui da

seguinte citação:

O autismo serve como um paradigma. Desafortunadamente,

nesse caso, não te tão fácil estabelecer as relações de causa e

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efeito como Fölling o fez para descrever a fenilcetonúria; mas

nós temos um quadro clínico bem definido, desde início das

manifestações dos sintomas até o seu término, os quais, em seu

conjunto, são inigualáveis e, portanto, específicos, no mesmo,

sentido em que a fenilcetonúria é específica. (Kanner, 1965, p.

134)

Segundo Berquez (1983), as considerações de Kanner sobre a univocidade dos

sintomas podem ser vistas como um divisor de águas na obra do autor. Kanner começou

a pensar os sintomas da nova síndrome a partir de uma evolução obrigatória de um

conjunto de sintomas, à moda do pensamento de Kraepelin. Este, relacionado à noção de

“demência”. Essa forma de pensar se contrapõe à idéia revolucionária de Bleuler sobre a

existência de certa independência dos sintomas secundários em relação ao distúrbio

primário da doença, a exemplo do pensamento autístico do esquizofrênico. O que teria

ocorrido na década de 1950 que pudesse justificar, em Kanner, tal mudança de

pensamento?

Uma das justificativas, apontada por Berquez, refere-se ao panorama internacional

da década de 1960, na qual a síndrome estava inserida. Naquela época, a síndrome de

Kanner, já verdadeiramente reconhecida, começara a enfrentar um problema. Havia uma

forte tendência em difundir uma visão psicopatológica do autismo infantil precoce

através de estudos exclusivos, tanto por parte de pesquisadores europeus quanto de

americanos, sobre os determinantes emocionais do isolamento autístico. Para Kanner,

essa tendência acarretaria riscos de diluição da síndrome, transformando-a em um mero

sintoma das esquizofrenias.

Para Berquez, a análise dessa questão dentro do panorama histórico em que a

síndrome estava inserida mostra que Kanner, na sua luta para preservar a especificidade

da síndrome, tentou distanciar o quanto pôde o autismo infantil precoce do grupo das

esquizofrenias, deixando em segundo plano os estudos psicopatológicos referentes a ela,

como se pode ver na seguinte citação: “Kanner abandonou toda a perspectiva

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psicogenética para se voltar resolutamente para as perspectivas orgânicas que lhe

permitiriam combater as tentações de ver o autismo apenas como um sintoma da

esquizofrenia” (Berquez, 1985, p. 39).

A definição da síndrome de Kanner como sui generis é aceita pela grande maioria

dos pesquisadores. O problema está em reduzir o autismo à síndrome e deixar de enfocá-

lo como um sintoma do grupo das psicoses. Se a síndrome de Kanner tem sua

especificidade, como foi demonstrado pelo seu autor e seguidores daí a sua

caracterização como síndrome sui generis o mesmo não se pode dizer do

termo autismo. Oautismo diz respeito a um sintoma presente tanto nas esquizofrenias de

Bleuler quanto no autismo infantil precoce de Kanner, como também em distúrbios

neuróticos. Tendo em vista este fato, é necessário discutir e pesquisar as características

peculiares das crianças chamadas de autistas e, não simplesmente, retratá-las como um

conjunto de sintomas.

Foram escolhidos dois casos clínicos para refletir os sintomas “isolamento

(aloneness) e insistência obsessiva de preservar a mesmice (samness)” considerados por

Kanner (1954) os critérios mais essenciais para o diagnóstico da síndrome do autismo

infantil precoce. Segundo Kanner (1943), existe, na criança autista, “uma necessidade

poderosa de não ser perturbada. Tudo que é trazido do exterior para a criança e tudo que

altera o seu meio externo ou interno representam uma intrusão assustadora. A primeira

intrusão vinda do exterior é a alimentação”. Para o autor, durante o primeiro ano de

vida, os distúrbios alimentares graves são um traço marcante no desenvolvimento da

criança autista. Uma outra intrusão tem origem nos ruídos fortes e nos objetos em

movimento, que desencadeiam uma reação de pavor (enceradeira, liquidificador, secador

de cabelo, brinquedos mecânicos, batedeiras elétricas, etc). Em contrapartida, a criança

autista pode, espontânea e alegremente, fazer barulhos até mais fortes do que aqueles

que teme, concluiu Kanner. Dessa forma, nos autistas, as repetições de ruídos, sons,

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palavras isoladas e gestos são monótonos e regidos por um “desejo ansioso obsessivo

para a manutenção da mesmice” (anxiously obsessive desire for the maintenance of

sameness).

Ninguém pode romper com essas repetições com exceção da criança e apenas em

raras oportunidades, disse Kanner. No caso de John, por exemplo, Kanner (1943)

descreveu como as mudanças em sua vida provocavam transtornos graves. Quando os

pais de John mudaram de casa, ele ficou desesperado ao ver os homens da mudança

enrolarem o tapete do seu quarto. John só saiu do quadro desesperador em que se

encontrava quando viu, na sua nova casa, os móveis do seu quarto serem colocados na

mesma posição que antes. “Toda a ansiedade desapareceu instantaneamente, ele parecia

contente, ficou dando voltas pelo quarto, batendo afetuosamente em cada móvel”

(Kanner, 1943, p. 37).

A surpreendente imprevisibilidade da criança autista foi transformada por

Kanner em sintoma patognomônico a necessidade obsessiva de manter a mesmice

(Kanner, 1946). Kanner (1946) considerou que oisolamento e a necessidade obsessiva de

manter a mesmice seriam os dois sintomas patognomônicos, fundamentais para o

diagnóstico diferencial do autismo infantil precoce em relação à deficiência mental,

surdez e afasias. O isolamento (aloneness) foi considerado inato por constatar que as

crianças observadas demonstraram esse sintoma desde o nascimento.

MARIA E O JOGO DOS SONS

Maria, criança de três anos de idade foi encaminhada à clínica da universidade

com o diagnóstico de autismo (Tafuri, 2003). Ela já havia passado por uma equipe

médica que lhe conferira o diagnóstico de autismo infantil precoce. Nos quatro

primeiros meses de tratamento, Maria demonstrou um isolamento autístico severo.

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Pulava na ponta dos pés de um lado para outro sem nenhum motivo aparente, não me

dirigia o olhar e não explorava os brinquedos. Emitia sons estridentes e tocava os

objetos com a ponta dos dedos. Girava as mãos em frente ao seu rosto com muita

velocidade e leveza. Parecia hipnotizada com o movimento das mãos.

Franzina, agia ligeiro. Não encostava o corpo em quase nada. Ela não pegava os

objetos para explorá-los ou colocá-los na boca, apenas os deixava escorrer pelas mãos.

No banheiro, ela abria a torneira da pia com freqüência e espalhava água por toda parte,

sem dar a essa atividade qualquer conotação de brincar. Estragar ou sujar a sala da

analista não pareciam ser, para ela, atividades destrutivas. Eram, na realidade, ações

mecânicas, vazias de intenções, ou melhor, com intenções desconhecidas para mim.

Depois de algumas sessões, dei-me conta de que Maria havia tocado em quase

todos os objetos, paredes, móveis e brinquedos do consultório. Mas não se aproximara

de mim, em nenhum momento, nem mesmo para me tocar com as pontas dos dedos. Na

verdade, Maria havia me evitado! Concluí que, para ela, eu não era um objeto qualquer

do consultório.

Essa constatação obtida por meio de sentimentos contratransferenciais foi

importante e me levou a refletir sobre o lugar que Maria havia me colocado na relação

analítica que se iniciara. Ela havia percebido a minha presença de forma indireta: com

um olhar periférico, sem se aproximar ou sem apresentar reações afetivas ou agressivas.

O fato de ela não ter tocado em mim, como fizera com os objetos da sala, indicava que

“sabia” que ali existia alguém a ser evitado. Não se tratava de uma reação de angústia

claramente definida, como seria chorar, não se separar da mãe, ser agressiva com a

analista, quebrar os brinquedos, ficar calada ou não brincar. Era uma reação diferente,

essa de não me dirigir o olhar e não me tocar com a ponta dos dedos.

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Estava claro que Maria não podia estabelecer comigo uma relação similar à que

havia experimentado com os objetos e os brinquedos do consultório. Esse fato me

alertou para a presença de um tipo de relação transferencial com Maria. Ou seja, seu

comportamento comigo indicava uma diferenciação em relação ao que ela estabelecera

com os objetos, os brinquedos e as paredes do consultório.

Para Berlinck (1999) podemos caracterizar esse fenômeno clínico como uma

relação transferencial autista, “a libido, por não ser pulsional, ou seja, erótica, não

estabelece ligações. Trata-se, então, de uma transferência autista em que um interlocutor

não se estabelece” (p. 40). Outros analistas já descreveram situações semelhantes àquela

que ocorreu com Maria na situação analítica. Laznik-Penot (1997), recomenda que o

tratamento da criança autista não deva ser realizado apenas por um psicanalista, porque,

ao ocupar o lugar de objeto da transferência, ele apresenta “graves deficiências

sensoriais” que o impedem de perceber uma série de manifestações transferenciais da

criança. Assim, o outro psicanalista, ao ocupar o lugar de observador, pode indicar as

tentativas de ligação do paciente. Por sua vez, Fédida (1990), Rocha (1997), Berlinck

(1999) e Haag (2000) salientam a necessidade de existir um tipo de transferência entre a

criança autista e o psicanalista, como condição para a realização do trabalho analítico. A

discussão engendrada por esses e outros autores se refere também à maneira como o

psicanalista interpreta a relação transferencial com a criança autista, que depende

basicamente do lugar que ele imagina ocupar nessa relação transferencial.

Com Maria, eu me coloquei no lugar daquele que não interpreta. Por quê?

Ela havia evitado me olhar e encostar as pontas dos dedos em mim. Eu também

evitara falar, olhar diretamente para ela ou tocá-la. Interpretá-la, naquele momento, seria

o mesmo que tocá-la com palavras. Isso me pareceu uma atitude clínica apressada

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demais. Segundo minha intuição, para aquela criança, as minhas palavras poderiam ser

uma presença ameaçadora. Daí a decisão de ficar calada e ocupar o lugar do “analista

não intérprete”.

Ficar calada na presença de Maria foi uma experiência nova na minha forma de

clinicar e, ao mesmo tempo, uma atitude difícil de ser implementada. As interpretações

brotavam em minha mente de uma forma tão insistente e automática que me impediam

de vivenciar o insulamento em que Maria me colocava. Na verdade, os meus

pensamentos serviam para preencher o meu mundo interno, pois eu me sentia

extremamente só na presença da pequena. À medida que eu tentava explicar, para mim

mesma, as reações de Maria, eu entrava em contato com um saber que apenas me dava

uma ilusória segurança: a de compreender o seu ensimesmamento. Cheguei à conclusão

de que precisaria de um outro tipo de conhecimento para viver o ensimesmamento,

aquele oriundo de minhas impressões sobre aquela criança, e não o conhecimento

proveniente das interpretações explicativas que me vinham à mente, quase que de forma

automatizada.

Ao longo das primeiras semanas de tratamento, identifiquei em Maria três tipos

distintos de ensimesmamento, o que contrasta com a noção de Kanner (1943) sobre

o isolamento ser um déficit inato de ordem neurológica. Ao primeiro tipo de

ensimesmamento, denominei ensimesmamento vazio, tendo em vista a seguinte

observação. No início do tratamento, Maria passava quase todas as sessões correndo na

ponta dos pés, de um lado para outro, sem motivo aparente. Encostava as pontas dos

dedos nos objetos, tendo sempre a mesma expressão em seu rosto. Havia um sorriso

estático nos seus lábios e uns “grunhidos” sempre estridentes, atonais e arrítmicos.

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Tomando por base as reações de torpor que me invadiam, confirmei a impressão de estar

diante de um ensimesmamento vazio.

O segundo estado de ensimesmamento de Maria era caracterizado por reações

auto-agressivas e desesperadoras. Ela começava a se morder, chegando a abrir feridas

em seu braço e a bater a cabeça na parede sem motivo aparente. Os “grunhidos” se

tornavam mais fortes e ensurdecedores. Esse quadro me dava um sentimento de

impotência, pois não sabia como consolá-la. A esse comportamento denominei

deensimesmamento sofrido.

O pulso esquerdo de Maria estava sempre em carne viva por causa de suas

freqüentes mordidas. Ela não movia um músculo do rosto para expressar dor, nem

mesmo quando mordia o mesmo lugar do seu braço, o que me causava uma grande

estranheza. Com Maria entrando na fase de ensimesmamento sofrido, eu me deparava

com a minha própria dor, resultado das batidas da cabeça de Maria contra meu peito e

abdome. Além disso, sentia-me desarvorada por não poder dar a ela um colo

apaziguador, ou palavras que pudessem trazer alívio ao seu sofrimento. Eu me sentia

intrusa e impotente ao segurar o seu corpo contra o meu, e impotente também para

aplacar ou amenizar o sofrimento de Maria. Mas não tinha outra escolha, pois Maria se

machucava muito nessas ocasiões.

Havia ainda um terceiro tipo de ensimesmamento, que assim acontecia. Nas

sessões iniciais com Maria, o que mais me chamou a atenção foi

o ensimesmamento prazeroso da pequena criança com ela mesma, que contrastava

com a ausência de relação lúdica e exploratória com os brinquedos e com o ambiente

físico da sala de atendimento, além da ausência de relação afetiva com a analista. Isso

era demonstrado principalmente no “estado de excitação” exibido por ela quando

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“grunhia” e balançava as mãos em frente ao seu rosto. Nos momentos

de ensimesmamento prazeroso, Maria ficava mais absorvida com as sensações

oriundas de seu corpo; parava de correr pela sala e de jogar as coisas no chão. Os sons

de seus “grunhidos” eram menos estridentes; “os maneirismos” com as mãos pareciam

ser contemplados por ela e os movimentos do corpo eram ritmados. Um movimento em

que ela balançava o corpo para frente e para trás, em um ritmo cadenciado, como se

estivesse sentada em uma cadeira de balanço invisível.

No ensimesmamento prazeroso, havia uma expressão de tranqüilidade e

“felicidade” no rosto da pequena criança. Utilizo aqui as expressões de Kanner (1943) na

descrição, por serem precisas para o caso deMaria: ela parecia “contente consigo

mesma”, “bastava a si mesma”, “parecia imersa em sensações profundas” e “fechada em

si mesma como em uma concha”.

Nos momentos em que Maria estava no ensimesmamento prazeroso, eu me

sentia interessada em estar com ela, mesmo que fosse apenas para acompanhá-la. Na

verdade, nesses momentos, eu a contemplava!

Observando de forma atenta, era possível reparar que, quando Maria entrava nesse

estado de ensimesmamento prazeroso, seus movimentos corporais obedeciam a um

ritmo cadenciado, completamente diferente daquele apresentado nos estados

de ensimesmamento vazio ou ensimesmamento sofrido. A forma como olhava para

suas próprias mãos era impressionante: ela parecia hipnotizada! Essa característica

contrastava com o olhar fugidio com o qual ela olhava os brinquedos.

Quando Maria entrava nesse ensimesmamento prazeroso, eu passava a escutar

com interesse a sonoridade dos sons que ela emitia. Os sons, que não eram muito

estridentes, me chamavam a atenção. Eram sons mais melódicos do que aqueles emitidos

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durante o ensimesmamento vazio ou o ensimesmamento sofrido. Nesses momentos,

ela parecia se deixar embalar pelos sons e por seus movimentos cadenciados.

Em uma das sessões, comecei a imitar os sons que ela produzia nos momentos

do ensimesmamento prazeroso. Considerei importante repetir os sons de seus

“grunhidos” apenas quando Maria estava extasiada consigo mesma para, de alguma

forma, fazer uma diferenciação entre o estado de absorção completa das sensações do

corpo e os outros comportamentos estereotipados, como os de correr, abrir e fechar a

torneira da pia do banheiro, jogar brinquedos no chão, etc.

Com a evolução do caso, ficou claro, para mim, que as ações de ecoar os

“grunhidos” somente no ensimesmamento prazeroso haviam criado uma

descontinuidade. Ao comparar a sonoridade dos meus sons com os “grunhidos”

de Maria, ficou evidente que, por meio daqueles “sons”, ela se fazia presente. Eram

“sons” que ela produzia de forma criativa e individualizada. Não podiam ser

reproduzidos. De fato, minha experiência de imitá-la ficou parecida com a tentativa de

falar uma língua estrangeira sem sotaque. Ademais, não existiam palavras para dar

sentido e criar a ilusão que era possível imitá-la. Havia apenas a sonoridade singular da

voz de Maria.

Com o passar do tempo, Maria começou a se interessar pela origem dos sons que

ouvia, os meus sons. Passou a olhar para a minha boca assim que eu acabava de proferir

os sons. Ela batia as costas das mãos nas paredes e ia se aproximando da minha boca,

porém, sem me dirigir o olhar. Era como se eu fosse apenas boca. Assim, como fazia nas

paredes, começou a passar as costas das mãos em minha boca. Às vezes, me mordia ou

chutava sem que eu tivesse tempo de prever tais comportamentos. Quando isso

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acontecia, eu me silenciava, parava de emitir sons, respirava profundamente e ficava

quieta. Com as minhas atitudes, ela recomeçava a emitir os sons.

Percebendo esses comportamentos de Maria, considerei que ela começara a entrar

em um “jogo de sons”, onde havia uma seqüência de repetições sonoras, interrompidas

por comportamentos auto-agressivos. Havia algo mais importante. De acordo com a

minha reação, ela continuava ou interrompia a seqüência dos sons. Essa evolução foi

importante, pois assinalou a entrada de Maria em uma atividade lúdica, mesmo que

incipiente. Como analista, percebi que chegara mais próxima de uma clínica usual, tal

como se procede com outras crianças.

No final dos sete primeiros meses de tratamento, Maria começou a demonstrar

uma capacidade importante: durante o “jogo dos sons”, ela parecia esperar por alguma

coisa, pois ficava quieta observando a minha boca assim que eu parava de emitir os sons.

Ela arriscava também alguns olhares fugidios para mim. De forma periférica, fazendo

estrabismos, ela fazia contato olho a olho, por frações de segundos. Eu repetia os sons, e

ela, após ouvi-los, começava a “grunhir” novamente. Ela passou a manifestar capacidade

de antecipar a entrada no jogo dos sons olhando para a minha boca antes de emitir os

sons. Se eu não emitisse os sons ela entravaem desespero. Ficou claro nesta passagem

clínica a manifestação de um comportamento mais organizado, a necessidade imperiosa

de manter a mesmice e, ao mesmo tempo, surgiu a capacidade psíquica de se proteger

das angústias dessa necessidade imperiosa. A espera dos sons que saíam da minha boca,

tornou-se cada vez mais visível. Foi um comportamento também importante para que eu

imaginasse suas necessidades e, muitas vezes, evitasse o rompimento das seqüências dos

sons. A possibilidade de evitar o rompimento da brincadeira por meio das minhas

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respirações e sonorizações surgiu quando Maria passou a demonstrar de forma mais

clara a necessidade imperiosa de manter a mesmice (samness).

Nesse período do tratamento, Maria imprimia uma mesma rotina de ações nas

sessões: chegava sempre correndo e, sem olhar para mim, jogava os brinquedos no chão;

começava a “grunhir” e a esperar pelos meus sons. Quando algo impedia a seqüência

dessas ações, Maria entrava no estado de ensimesmamento sofrido preenchido por

agressões. Às vezes, eu identificava os motivos do sofrimento de Maria. Nesses

momentos, interpretava utilizando poucas palavras. Na maioria das vezes, isso era

impossível. Então eu ficava calada, procurava respirar profunda e pausadamente, não

olhava para os olhos dela e, lentamente, começava a emitir os sons usuais dos seus

“grunhidos”. Com essa forma de agir, Maria voltava à seqüência de suas ações.

Certa vez, logo ao chegar e entrar correndo no consultório, como de costume, sem

me dirigir o olhar, Maria começou imediatamente a se morder e a gritar. Eu a contive

fisicamente, mas ela se rebelou de forma mais violenta do que de costume. Fazendo um

movimento rápido, puxou os meus cabelos com força e me mordeu violentamente. Eu

estava com os cabelos molhados. Era a primeira vez que ela me via assim. Imaginei

queMaria necessitava me ver como nos outros dias, mas falar disso não adiantou nada.

Entrei no banheiro para tentar secar os cabelos com uma toalha e tive uma surpresa.

Ouvi os seus “grunhidos” vindos da sala e os repeti do banheiro. Ela continuou a

responder a seqüência dos sons, mesmo eu estando fora do campo de sua visão. Para ela,

eu estava presente enquanto voz. Isso lhe trazia a possibilidade de dar continuidade ao

“jogo dos sons”, que funcionava como um espelho sonoro.

Nesse episódio, a interpretação verbal pouco adiantou para aplacar a angústia

de Maria. Ela mostrou necessidade de estar comigo desde que eu mantivesse a aparência

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de sempre. Ou seja, como a minha voz era a mesma, Maria continuaria a se relacionar

comigo como nos outros dias, desde que não me visse.

Nessa fase, durante as sessões, os comportamentos agressivos de Maria já não

surgiam a qualquer momento. Passaram a estar localizados no “jogo dos sons”; mais

precisamente, no intervalo entre a interrupção dos seus “grunhidos” e a espera dos meus

sons. Comecei a pensar nesses comportamentos como sendo os primórdios de uma

“reação de angústia”, tal como descrita por Klein (1930), pois os comportamentos

agressivos deMaria serviam para interromper a seqüência dos sons. Ou seja, eles tinham

um objetivo, não surgiam do nada, como parecia anteriormente. Sendo assim, em

algumas ocasiões, tornou-se possível prevenir o surgimento de uma angústia

suficientemente forte que impedisse a continuidade do “jogo dos sons”.

PEDRO E O JOGO DA ADIVINHAÇÃO

Pedro foi encaminhado aos 12 anos com o diagnóstico de autismo e/ou síndrome

de Asperger. Até essa idade ele foi medicado para reduzir os comportamentos

hiperativos. Era um bebê muito mole, sem atitude, demorou a engatinhar, andar e falar.

Mesmo com o surgimento da fala ele não estabelece uma comunicação efetiva. A sua

fala é ecolálica, repetitiva e parece à primeira vista ter a finalidade apenas de indagar

aspectos da vida da outra pessoa. Por exemplo, Pedro aborda pessoas desconhecidas

perguntando se elas têm namorado, onde moram...etc. Ele fala por meio dos

personagens das novelas, cria personagens imaginários e conversa com eles

modificando a entonação da voz. São estórias confusas e repetitivas. Tem dificuldades

em transmitir suas necessidades e vontades. Em casa ele insiste em manter a ordem dos

objetos, quando a mãe arruma a casa de um outro jeito ele reage com angústia. Segundo

a mãe ele é bastante hiperativo e parece isolado na maneira dele de viver. Quando quer

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algo insiste até conseguir. A mãe se queixa de chegar a um estado de esgotamento

nervoso devido às insistências dele que são demasiadamente insistentes.

Ao longo dos primeiros meses de tratamento, Pedro tenta estabelecer contato

físico com a terapeuta segurando-lhe as mãos e acariciando-lhe os cabelos. Ele refere-se

aos cabelos da analista como românticos e bonitos. Diz também que ela é engraçada e

que gosta muito que ela o imite. Em uma das sessões pediu que ela o desenhasse. Ele

estava usando uma blusa de frio com um logotipo escrito com letras brancas. A

terapeuta reproduziu fielmente a blusa que estava usando e Pedro achou graça disso,

demonstrando interesse na brincadeira.

Antes de uma determinada sessão, Pedro telefonou para a analista pedindo a ela,

de forma insistente e repetitiva, para ir ao encontro dele na próxima consulta com uma

blusa branca que ela estava usando na sessão anterior. No dia seguinte a terapeuta foi

com a blusa e ele a desenhou. Enquanto Pedro desenhava a terapeuta se lembrou de um

pedido dele na sessão anterior. Ele queria dançar com ela enquanto esperavam o término

da sessão.

Sempre se valendo dos nomes de atores de novelas, Pedro conduz as sessões, às

vezes brincando de adivinhar os nomes dos familiares da analista o que não a deixa

confortável. Ele coloca todo o alfabeto em uma folha em branco e manda de forma

insistente que ela fale nomes de novelas e atores que comecem com a letra

correspondente. Oferece pouquíssimo tempo para a terapeuta pensar e fala

insistentemente apontando a letra: “diga, diga, diga, um ator com a letra B... Um ator

com a letra B...Letra B...diga um ator com a letra B...se não souber eu posso

pular...vamos...diga”. Nesse sentido, ele se torna um ditador na relação com a analista,

colocando-a no lugar daquele que não tem outra saída a não ser obedecer. Este tipo de

relacionamento transferencial com a analista permite que Pedro evite os perigos

psíquicos da explosão catastrófica, do aniquilamento.

CONCLUSÕES

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A situação transferencial é analisada aqui nos dois casos clínicos como um

índice importantíssimo para a compreensão das noções de autismo e a necessidade

imperiosa de manter a mesmice nos casos de Pedro e o de Maria.

No caso de Maria, a transferência estabelecida foi do tipo autista em que um

interlocutor não se estabelece a principio. Com Maria não havia a possibilidade de

utilizar as palavras para interpretar. A criança não apresentava capacidade psíquica para

se defender das angustias aniquiladoras, ou seja, Maria entrava no ensimesmamento

sofrido sem que a analista pudesse compreender a origem do sofrimento psíquico dela.

Não haviam presença de fantasias associadas ao isolamento, a pequena criança não tinha

fantasias para colorir a realidade externa. Desta forma, a analista não tinha elementos

para compreender o mundo a realidade psíquica da criança. No caso de Pedro as

fantasias surgem, colorem a realidade e fornecem pistas ara a compreensão da realidade

psíquica da criança. No caso de Maria, havia apenas a presença dos sons, a forma

criativa que a criança encontrou para entrar na relação transferencial com a analista. A

capacidade psíquica de evitar as angústias de aniquilamento surgiu com o decorrer do

tratamento a partir do jogo dos sons. Ou seja, não havia a princípio uma relação

transferencial estabelecida por meio das fantasias como no caso de Pedro.

Gostaria de ressaltar que para descrever o isolamento do tipo do apresentado

por Maria é comum se encontrar na literatura “metáforas mortas”, tais como, “tomada

desligada”, “fortalezas vazias”, “conchas”, “carapaças”, etc. Este fato evidencia a noção

de um hermético fechamento autístico, totalmente desligado da realidade, sedimentado,

desvitalizado e despovoado. Quando essas “metáforas mortas” são pensadas à luz das

noções de Freud e Winnicott, ganham uma outra significação, tornam-se “metáforas

vivas”, pois o fechamento autístico é refletido como uma participação ativa que a criança

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autista tem diante da realidade externa. No caso de Maria, os sons produzidos por ela

foram na situação analítica vivenciados como a presença de ser da criança.

Na linguagem fenomenológica de Kanner e seus seguidores, a criança autista não se

fecha de forma global e sedimentada à realidade externa. Na verdade, a criança

autista desdenha, ignora e exclui o que lhe é ameaçador. Diferentemente da concepção

de Kanner, Ana Elizabeth Cavalcanti e Paulina S. Rocha (2001), psicanalistas e autoras

do livro Autismos, também pensaram os autistas como metáforas vivas, da seguinte

forma:

(...) metáforas que nunca se sedimentam, nunca morrem, e a estranheza que

experimentamos diante deles é um efeito de sua surpreendente imprevisibilidade.

Eles agem como se fossem “metáforas vivas” e colocam aqueles que se encontram

ao seu redor frente ao estranho, ao imprevisível e, paradoxalmente, frente ao

estranho familiar. (p. 33)

A analista, no caso do Pedro, sentiu-se incomodada e amedrontada por estar

sendo controlada de forma insistente e invasora, desde o início das sessões. Nas

reuniões de supervisão foi possível conversar sobre a necessidade imperiosa

de Pedro em manter o controle da terapeuta, tanto na sua forma de vestir quanto em

relação aos seus pensamentos. Ao longo das sessões foi possível observar a forma

encontrada por Pedro em colocar em cena um dos sintomas mais determinantes do

autismo infantil precoce, a necessidade imperiosa de manter a mesmice associada aos

distúrbios da linguagem e ao isolamento. Se por um lado a presença desses sintomas nos

leva a pensar no quadro de autismo de Kanner, por outro lado, a situação transferencial

vivenciada com Pedro evidencia um sofrimento psíquico mais condizente às psicoses na

infância. A confusão – fusão apresentada por Pedro entre o self e o objeto fica clara

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quando ele tenta exprimir, via personagens das novelas, um sentimento que para ele é

sinal de perigo desintegrador. Ele cria personagens que impregnam e distorcem o

sentido de realidade tornando confusos e desordenados a fala e os desenhos.

No caso de Pedro a relação transferencial foi estabelecida desde os primeiros

encontros de uma forma diferenciada a de Maria. A analista foi colocada no lugar de

objeto a ser controlado pela criança. Deste lugar, ela tem palavras para interpretar as

necessidades, desejos e conflitos da criança. A criança, por sua vez, tem a capacidade

psíquica de se defender de angústias aniquiladoras a partir da criação de um mundo

fantasioso próprio que caracteriza nesse caso o isolamento autístico.

Finalmente, o isolamento e a necessidade imperiosa de manter a mesmice, tal

como analisados nos casos de Maria e Pedro na situação transferencial vivenciada na

clínica psicanalítica trazem à tona a noção do sintoma, analisável tanto nas neuroses,

quanto nas perversões, psicoses e autismo. O essencial aqui é compreendermos a forma

como o paciente vivencia o sintoma na situação transferencial a partir principalmente

das contratransferências do analista. A descrição da sintomatologia da criança é

insuficiente para conferir um diagnóstico. Do ponto de vista psicanalítico, o isolamento

de uma criança pode ser analisado como sintoma de quadros psicopatológicos distintos,

tanto em relação ao autismo infantil precoce como também as psicoses, neuroses e

outros.

Freud (1937), em seu último trabalho clínico, Construções em análise, afirmou

que o psicanalista sofre de reminiscências quando se vê aprisionado em cadeias de

sentido. O caminho para sair dessa armadilha seria reviver tais reminiscências na

dinâmica da relação transferencial-contratransferencial, para que estas ganhem novas

significações. Segundo Freud, é preciso recuperar a mobilidade das significações e,

sobretudo, a possibilidade de experimentar, uma vez que é a dimensão transferencial-

contratransferencial que confere poder transformador à cena analítica.

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[1]

Doutora em Psicologia Clínica-USP/2002; Master en Integración de Personas com Discapacidad-

Universidade de Salamanca/1999, Professora Adjunta de Psicologia Clínica na UnB; Coordenadora do

Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília;

orientadora de teses de mestrado e doutorado.