intersubjetividade e desejo nas relações sociais: o caso dos jogos de representação de papéis....
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOINSTITUTO DE PSICOLOGIA
DANILO SILVA GUIMARES
Intersubjetividade e desejo nas relaes sociais:
O caso dos jogos de representao de papis
So Paulo
2007
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DANILO SILVA GUIMARES
Intersubjetividade e desejo nas relaes sociais:
O caso dos jogos de representao de papis
Dissertao apresentada ao Instituto dePsicologia da Universidade de So Paulo comoparte dos requisitos para obteno do ttulo deMestre em Psicologia.
rea de concentrao: PsicologiaExperimental
Orientadora: Profa. Dra. Lvia Mathias Simo
So Paulo2007
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FOLHA DE APROVAO
Danilo Silva GuimaresIntersubjetividade e desejo nas relaes sociais:O caso dos jogos de representao de papis
Dissertao apresentada ao instituto dePsicologia da Universidade de So Paulo comoparte dos requisitos para obteno do ttulo de
Mestre em Psicologia.
rea de concentrao: Psicologia Experimental
Orientadora: Profa. Dra. Lvia Mathias Simo
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Instituio Assinatura:
Instituio Assinatura:
Instituio Assinatura:
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Ao meu irmo Marcelo Silva Guimares, com quem partilhei muitas conversas sobre os
mistrios da vida e que, inexplicavelmente, veio a falecer em 20/07/2003.
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AGRADECIMENTOS
minha orientadora, professora Lvia Mathias Simo, que me acompanha de perto
desde o primeiro semestre da graduao, com quem estabeleci, ao longo dos anos, uma
convivncia transparente, sempre preocupada com a formao profissional e em pesquisa.
Ao professor Jaan Valsiner, que mesmo distante tem manifestado interesse e apoio ao
meu trabalho, bem como a diversas produes de pesquisadores no Brasil e em diversas partes
do mundo.
Ao professor Nelson Ernesto Coelho Junior, pelo convvio e pela confiana em
apresentar aos seus alunos os fundamentos epistemolgicos e ticos da psicologia, cuja
apreenso por vezes difcil, mas muito valiosa.
professora Marilene Grandesso, por suas contribuies relevantes para a elaborao
do texto final, por sua ateno na recomendao de leituras e por disponibilizar materiais de
difcil acesso.
A todos os professores da graduao e da ps-graduao que acreditam nos seus alunos
e que promovem formao em psicologia comprometida com a tica.
Ao amigo e colega de laboratrio, Nilson Guimares Dria, interlocutor de muitas
questes terico-epistemolgicas e companheiro, tanto em momentos felizes quanto em
momentos angustiantes.Aos amigos que conheci ao longo da graduao, com quem partilhei diversas
experincias de vida, dilogos sobre a psicologia e sobre nossa formao.
Ao meu pai, Vitor Ferreira Guimares, que sempre incentivou meus estudos em
psicologia, por sua abertura ao dilogo e por me instigar com seus questionamentos.
minha me, Eliene Silva Guimares, pelo apoio, dedicao e carinho, trazendo alegria
e conforto nas horas difceis.
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Ao meu irmo, Renato Silva Guimares, que apesar de distante me estimula a seguir em
frente, problematizando opes e provocando reflexes.
Aos demais familiares e amigos, que estiveram presentes em diversos momentos,
oferecendo seu apoio, trazendo questes ou apenas caminhando ao meu lado.
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo pela concesso da bolsa de
mestrado e pelo apoio financeiro para a realizao dessa pesquisa.
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RESUMO
GUIMARES, D. S. Intersubjetividade e desejo nas relaes sociais: O caso dos jogos de
representao de papis. 2007. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidadede So Paulo, So Paulo, 2007. 186 p.
Uma das principais vias de transformao no desenvolvimento humano ocorre atravs
da busca pela intersubjetividade. O objetivo deste trabalho foi compreender alguns processos
de construo de conhecimento acerca do outro e de si atravs de um estudo de relaes
intersubjetivas grupais. Para tanto, trabalhamos com a perspectiva construtivista semitico-
cultural, focalizando especialmente as aes simblicas dos sujeitos ao buscarem momentos
de protagonismo e de reconhecimento uns pelos outros. Procuramos estabelecer uma relao
entre essa busca dos sujeitos e a noo levinasiana de desejo, entendido como um movimento
da subjetividade ao buscar abrigar o que a excede na direo da alteridade. No processo de
investigao, tomamos para exame uma situao emprica envolvendo interaes de natureza
ldica, quais sejam, sesses de Role-Playing Game (RPG), que possuem uma dinmica
particular na construo de objetivos e desejos dos jogadores. A dinmica das relaes eu -
outro nos jogos de RPG foi analisada a partir da assimetria de posies subjetivas,
dialogicamente definidas. Realizamos um mapeamento dessas posies e vimos que nos jogos
de representao de papis h fruio de um mundo imaginrio reduzido e presentificado no
pensamento. Finalmente, chegamos proposio de que o significado essencial dasconstrues pessoais est no mbito de outrem, presente ou ausente, real ou imaginrio, em
relao ao qual o eu procura constituir um plano de compartilhamento.
Palavras-chave: Intersubjetividade, Interaes dialgicas, Alteridade, Desejo, Role playing.
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ABSTRACT
GUIMARES, D. S. Intersubjectivity and desire in social relationships: The Role-Playing
Game case. 2007. Dissertation (Masters) Institute of Psychology, University of So Paulo,So Paulo, 2007. 186 p.
One of the main sources of transformation in human development is through the
subjects quest for intersubjectivity. The objective of this work was to understand some
aspects of the processes of knowledge construction concerning the self and the other. It was
developed through a study focusing intersubjective group relationships. In order to achieve
that, we worked with semiotic-cultural constructivist perspective, focusing specially, on the
symbolic actions of subjects searching for moments of protagonism and of recognition of one
by the others. We tried to establish a link between this search of the subjects and the
levinasian notion of desire, though as a subjective movement trying to shelter what exceeds
itself on the alterity direction. On the investigation process, we examined an empirical
situation involving ludic interactions of Role-Playing Game (RPG) sessions. This game has a
particular dynamic towards building objectives and desires by its players. The I-other
dynamic relations in Role-Playing Games was analyzed observing the asymmetry of
subjective positions, dialogically defined. We did a mapping of these positions and saw that in
the role-playing games there is the fruition of an imaginary world reduced and made present
in the thought. Finally, we arrived to the assertion that the essential meaning of personalconstructions is related to otherness, either present or absent, real or imaginary, in relation to
which the self tries to constitute a shared setting.
Keywords: Intersubjectivity, Dialogical interactions, Alterity, Desire, Role playing.
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SUMRIO
1 INTRODUO 9
1.1 A ESCOLHA DO RPG COMO SITUAO EMPRICA PARA ESTUDO DARELAO EU OUTRO DESEJO 12
1.2 UMA PERSPECTIVA DE COMPREENSO DA RELAO EU-OUTRO 16
2 DIALOGISMO E INTERSUBJETIVIDADE 22
2.1 O DIALOGISMO DE BAKHTIN E A CONSTRUO DO SENTIDO 24
2.2 MONOLOGIA E BIDIRECIONALIDADE 30
2.3 OPOSIES DIALGICAS NO MUNDO DA VIDA 35
2.4 DESASSOSSEGOS, RUPTURAS E INQUIETAES 42
2.5 DIFERENTES MODOS DE INTERSUBJETIVIDADE 48
2.6 O UNIVERSO INTRASUBJETIVO 56
2.7 SNTESE DE UM MODELO DE COMPREENSO DA RELAO EU-OUTRO 61
3 O CASO DOS JOGOS DE REPRESENTAO DE PAPIS 643.1 UM ENQUADRE PARA ESFOROS PESSOAIS 69
3.2 A NEGOCIAO INTERSUBJETIVA DE SIGNIFICADOS 74
3.3 EXPOSIO DO CASO: UMA SESSO DE ROLE-PLAYING GAME 79
4 DISCUSSO: O DESEJO NAS SESSES DE RPG 88
4.1 PARA ALM DO COMPARTILHAMENTO: ANARQUIA ESSENCIAL 100
4.2 EU, OUTRO E DESEJO EM LVINAS 109
4.3 REFLEXES SOBRE A CONSTRUO INTERSUBJETIVA DO SENTIDO 116
5 CONSIDERAES FINAIS: O OUTRO E A IMAGINAO 123
5.1 O DESEJO E A CONSTRUO DO SIGNIFICADO 125
5.2 DESDOBRAMENTOS QUANTO QUESTO DA IMAGINAO 129
REFERNCIAS 134ANEXOS 140
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1 Introduo
Uma das principais vias de transformao no desenvolvimento humano ocorre atravs
da busca do sujeito pelo compartilhamento de experincias com o outro, isto , atravs da
busca pela intersubjetividade. O domnio da intersubjetividade marcado pela negociao e
renegociao de proposies entre os interlocutores, que funcionam como balizas1
organizadoras de suas experincias pessoais.
O objetivo da pesquisa que aqui ser relatada busca compreender processos de
construo de conhecimento acerca do outro e de si atravs de um estudo de relaes
intersubjetivas grupais, focalizando especialmente as aes simblicas2 dos sujeitos ao
buscarem momentos de protagonismo e de reconhecimento pelos outros na relao.
Essa busca dos sujeitos relaciona-se, por sua vez, com o que entendemos por desejo, tal
como na acepo de Figueiredo (1997), para quem o desejo um movimento da
subjetividade, buscando abrigar o que a excede. Trata-se, como discutiremos mais
detidamente adiante, de um movimento na direo da alteridade.
No processo de investigao, tomamos para exame uma situao emprica envolvendo
interaes de natureza ldica, quais sejam, situaes de Role-Playing Game (RPG). Esse jogo
propicia um tipo de relao social sobre a qual possuamos um conhecimento prvio, que
demonstrava um potencial para a compreenso de transformaes do eu em sua relao comos outros.
Nos jogos de RPG, mas no apenas neles, o desejo da emergncia de um espao ldico
central e fundamenta sua prpria existncia com peculiaridades que foram objeto de estudo
da pesquisa realizada. Essas peculiaridades, inerentes aos RPGs, apontavam para uma
dinmica particular na construo de objetivos e desejos dos jogadores, que foi analisada a
1 Optamos aqui por traduzir o termo constraint, do ingls por baliza, em portugus, conforme Valsiner (2006b).2Ao simblica est sendo aqui entendida na acepo de Boesch (1991).
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partir da assimetria de posies subjetivas, dialogicamente definidas, que compem o jogo:
narrador/juiz e a de jogador/personagem. Nos RPGs, um dos jogadores chamado de mestre ,
ao mesmo tempo, juiz e narrador. Ao iniciar o jogo, ele descreve uma situao e diz aos
jogadores o que seus personagens percebem, vem, ou ouvem, etc. Ao fazer essa descrio, o
mestre adiciona algo um objeto, ou algum que os jogadores podero perceber como um
problema. Os demais jogadores, por sua vez, descrevem as aes que seus personagens
intencionam fazer para vencer o desafio emergido a partir da construo do enquadre
ficcional. Em seguida, o mestre expressa os resultados conseguidos atravs das aes dos
personagens, e assim por diante.
Conforme observaes que realizamos das sesses de RPG, estas se apresentaram como
palco de disputas pelo poder, em relao aos recursos simblicos3 do jogo e ao
reconhecimento desse poder de uns pelos outros, tanto no mbito da fico co-construda,
quanto da interao entre os jogadores. Por exemplo, as disputas de poder entre narrador e
jogadores deram-se, de modo evidente, pela determinao de elementos da narrativa,
enquanto que as disputas entre personagens no cenrio deram-se pelo domnio de elementos
do cenrio de jogo; a disputa por reconhecimento, entre os jogadores, permeava a busca por
interpretaes de seus personagens que fossem tacitamente apercebidas como boas pelos
participantes do jogo. Nesse sentido, o narrador demandava, em relao aos jogadores, uma
boa elaborao e conduo de aventuras, e os personagens disputavam entre si peloreconhecimento de figuras de competncia e autoridade no cenrio.
Poder e reconhecimento foram, portanto, objeto de desejo dos personagens e alvos a
serem alcanados nas interaes entre si e com o narrador. O prprio jogo, enquanto estrutura
de regras, estabelece, por sua vez, mecanismos mediadores dessa relao.
3 Discutiremos, posteriormente, neste texto, a noo de recursos simblicos adotada por Zittoun et al. (2003).
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No caso desse jogo, o privilgio da construo do mundo imaginrio assenta-se na voz
de poder delegada ao narrador (mestre) do jogo. O narrador exerce seu papel a partir da
formao de um compromisso com os jogadores, visando manter a dimenso ldica no
contexto interativo. Nesse sentido, o mestre procura convergir suas proposies acerca da
narrativa em andamento com o desejo dos jogadores, reconhecendo-os tacitamente, como
co-construtores do cenrio.
Consideramos, contudo, que o desejo de poder e reconhecimento ainda que imbricado
nas relaes constituintes do jogo no o nico nem o mais importante aspecto para
compreender a interao ldica. A relao ldica est implicada no que , simultaneamente,
simulao e engajamento na vida. As manifestaes de prazer durante as sesses de jogo so
tambm importantes. As mais evidentes ocorreram quando a conquista dos objetivos do jogo
se deu a partir da emergncia de uma soluo surpreendente, inovadora, fora do campo
precedente de perspectivas, isto , das expectativas dos sujeitos que participavam da
interao.
A interao entre os jogadores esteve, dessa maneira, voltada para possibilitar
reconstrues das aes simblicas dos jogadores, podendo criar momentos de tenso e o
surgimento de novas opes na aventura ludicamente vivida acompanhada de sentimentos
de alegria e divertimento.
Quando a produo de novidade, atravs das aes simblicas durante as interaes, eraconsiderada, tcita e grupalmente, bem encaixada na cena, o grupo passava a dar, ao
jogador que a fez, maior poder de influir na narrativa, na direo por ele desejada. Assim, a
produo de novidade, legitimada pelo grupo, tornavam narrador e jogadores, mais
permeveis ao desejo e alteridade do jogador que fora capaz de produzir a ruptura atravs da
novidade. A autoria do evento criativo atuava em uma dimenso importante da relao eu
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outro desejo, que a dimenso da identidade pessoal e de seu personagem, ficando cada um
reconhecido pela sua produo no campo simblico da ao ldica.
Diante do exposto, procuramos dar continuidade ao estudo, focalizando as relaes
entre as dimenses do desejo e da alteridade, abertas pelas aes simblicas que os
participantes da pesquisa projetavam, em sua futuridade.
1.1 A escolha do RPG como situao emprica para estudo da relao eu outro
desejo
Desde estudos preliminares4, constatamos que a anlise de situaes de RPG pode gerar
compreenses e reflexes interessantes sobre relaes eu-outro e eu - eu, onde as intenes do
outro so sempre supostas, questionadas e confrontadas com as intenes do eu. Essa
possibilidade parece se abrir por duas razes que, de certa forma, so ao mesmo tempo
complementares e antagnicas: por um lado, sendo parte da vida cotidiana dos jogadores, o
jogo no se destaca como acontecimento espordico, tendo sua insero na vida rotineira das
pessoas que o praticam; por outro lado, por ser um espao ldico, fantasioso, o jogo pode
permitir descontextualizao da prpria vida real. Nesse sentido, as relaes eu-outro podemser vivenciadas em ambos os nveis, real e imaginrio.
De acordo com Malaby (2007) o jogo um domnio semi-aberto e socialmente
legitimado de contingncia limitada que gera resultados interpretveis. Ele destaca, assim
como o faz Huizinga (1993), que os jogos so acontecimentos relativamente independentes da
4
Em estudos realizados ao longo da graduao do primeiro autor como projeto de Iniciao Cientfica intituladoUm estudo das relaes de alteridade nos jogos de representao de papis (RPG) (FAPESP, proc. n.03/12190-7), sob orientao da segunda autora. Disponibilizamos o relatrio de concluso de uma etapa dessetrabalho no Anexo B.
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vida cotidiana, e que, em seu cerne, variam muito pouco com relao ao que existe material,
social e culturalmente. Os jogos produzem alm de prazer, muitos outros estados emocionais,
vinculados carga de significado atribuda ao jogo em cada contexto particular.
Malaby (2007) aponta para algumas proposies importantes de Huizinga acerca da
experincia ldica, como a de que a palavra jogo, originria do latim jocus, jocari, tem um
sentido original de fazer piada, humor, ao passo que o termo ludus se vincula s noes de
simulao e iluso. Diz ainda que h nos contextos ldicos uma espcie de conscincia
situacional os jogadores estariam ao mesmo tempo conscientes e iludidos. No se trata,
contudo, de um falseamento da realidade, mas a prpria realizao de uma aparncia pela
ao no campo imaginado (HUIZINGA, 1993).
O jogo enseja, portanto, um conjunto de aes dramticas que se do em um contexto
inerentemente instvel, seja por possveis impactos de contextos exteriores ao jogo, seja por
uma quebra das regras, ou ainda por uma espcie de desiluso em que o compartilhamento da
realidade imaginada se desfaz.
Considerando o campo do RPG um espao de interao marcado pelo carter ldico,
poder-se-ia tom-lo em seu carter de experincia supostamente frvola por parte dos
participantes, sem tanta importncia para suas vidas. Seria algo prximo ao carter do jogo tal
como apontado por Lvinas (1998), uma situao que careceria de seriedade, assemelhando-
se s artes cnicas, pela irrealidade sob a qual se constitui. Sob esse ponto de vista, pode-sedizer que o jogo possui uma dimenso a histrica, uma vez que seu comeo no
verdadeiro, desimplicado e, aps a representao, tudo se esvai.
Embora no sejam poucas, nem pouco importantes, as aproximaes entre jogo e teatro,
especialmente no caso do RPG, cabe considerar, no entanto em contraposio s colocaes
de Lvinas a importncia do processo criativo que se d, em ambos os casos, segundo
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diversas perspectivas psicolgicas. Valsiner (2006a, p. 605-606), por exemplo, enfatiza a
importncia de refletirmos sobre as relaes entre pesquisa psicolgica e teatro:
No h nada de demeritrio em comparar o que os pesquisadoresfazem com teatro. O teatro tem sido importante no entendimento humanopor sculos. Os personagens fictcios Hamlet, Othelo ou Godotpossivelmente tm sido maiores guias sociais para a psique humana que amirade de livros de auto-ajuda nas livrarias contemporneas. possvelconhecer algo que no experimentamos observando atravs da ao (Sawyer,2003) ou, vicariamente, pela observao da ao dos outros (Vygotsky,1971). Assim, teatro uma configurao psicolgica da experincia depossibilidades de sentir e pensar sem a atuao na vida real.
Cabe apontar, analogamente a posio de Valsiner (2006), que nossa escolha do estudo
de relaes entre jogadores de RPG no parte da idia da veracidade ou de paralelismo entre a
vida real e a vida do personagem em jogo. Queremos enfatizar que os dilogos ocorridos nas
sesses de RPG so parte do viver das pessoas que participam do jogo, denotando que o
processo de constituio de uma situao no caso do RPG, a cena vai para alm da prpria
vivncia e fruio da mesma.
O jogar margeado por instantes de esforos para viabilizar sua realizao. Aps uma
sesso de RPG, notamos que os personagens e jogadores no so mais os mesmos,
permanecem atravessados pelos momentos vividos nas sesses.
Como expusemos em outra ocasio (GUIMARES; SIMO, 2007), os acontecimentos
de uma sesso de RPG deixam marcas nos recursos simblicos do jogo (sistema, cenrio,
personagens e campanha) e, inclusive, na subjetividade dos jogadores, j que as marcas, em si
mesmas, so criaes relacionadas ao significado subjetivo dos acontecimentos em jogo.
Essas marcas apontam para um processo de construo de conhecimento, nunca
suficientemente completado, em que os jogadores tentam explorar o que est subjacente
exposio que o narrador realiza de seu universo criativo. Ao mesmo tempo, o narrador
realiza tal exposio de modo atraente e desejvel aos jogadores. Para faz-lo, preciso
inferir sobre o desejo dos jogadores, levando em conta cada jogador. Durante os momentos
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em que os RPGistas no esto participando do jogo, a experincia significativa que viveram
com o RPG pode continuar a fazer parte deles, na medida em que passem a fazer parte da
memria pessoal de cada participante.
Os jogadores de RPG, segundo nossa perspectiva, so como que operadores semiticos
provendo uma orientao genrica de seus personagens para o futuro. Cada jogador cria
expectativas do que pretende de seu personagem, seja no decorrer da campanha proposta pelo
narrador, seja no decorrer de uma aventura especfica, selecionando alguns aspectos do
presente para atingir um determinado objetivo co-construdo. Ademais, o prprio jogo impe
balizas s possibilidades de construes dos jogadores.
As balizas impostas pelo jogo so reguladores dinmicos e temporrios do
desenvolvimento, sendo produtos de acordos entre os membros do grupo. Entendemos como
balizas, por exemplo, os sistemas de regras do jogo e dos cenrios, que atravessam a
composio das aventuras pelo mestre e na relao com os outros participantes do grupo.
Outra caracterstica importante para a compreenso do RPG a cooperao que se
estabelece entre os jogadores e entre seus personagens no desenrolar de uma aventura para
que seus intentos sejam realizados (JACKSON, 1994). Durante o jogo, os interesses de cada
jogador so coordenados com os interesses do restante do grupo, de modo que os
participantes do jogo so ao mesmo tempo coletiva e individualmente orientados.
O sistema de personalidade, que compe um personagem, por exemplo, fornecediretrizes para a organizao de suas predisposies motivacionais, com uma seleo de
propsitos para aes. Para que uma ao ocorra em cooperao, cada sujeito deve passar por
um processo de diferenciao e especializao, comunicao e explorao mtua.
Nesse sentido, cada jogador, dentro de um grupo, explora habilidades diferenciadas para
seus personagens, resultando numa integrao entre os vrios sistemas, tornando o grupo
capaz de superar adequadamente uma grande variedade de problemas surgida no jogo.
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Dessa maneira, os jogos de RPG esto imbricados nos dilogos, nas relaes
intersubjetivas entre seus jogadores. Isto que implica transformao ativa das mensagens
comunicativas. Esta transformao se d graas a tenso presente no dilogo, que se impe
como condio de sua existncia (SIMO, 2003). Sendo a tenso gerada no prprio dilogo,
ela leva a reconstrues afetivo-cognitivas nos atores, que continuaro ou no dialogando,
numa determinada direo, gerando tais ou quais tenses, e assim por diante.
Dessa perspectiva, a tenso, quando presente no dilogo entre os jogadores, poder
conduzir reconstruo das propostas de ao do grupo em uma determinada direo da
narrativa ou, a depender do caso, a propostas de ao fragmentadoras do grupo.
Para que os participantes de um dilogo coordenem os mltiplos cursos de reconstruo
das mensagens em uma ao grupal eficaz, precisam volta-se para uma relao com o outro
como diferente de si: isso s possvel a partir de uma disposio ao dilogo ou uma atitude
dialgica.
1.2 Uma perspectiva de compreenso da relao eu-outro
O processo de desenvolvimento individual vem sendo estudado, segundo umaperspectiva dialgica, pelo construtivismo semitico-cultural, abordagem que adotaremos
para a compreenso da relao eu-outro-desejo. A seguir, apresentaremos alguns princpios
tericos que orientam a compreenso que essa abordagem oferece acerca do funcionamento
semitico humano e do processo de desenvolvimento dos elementos semioticamente
organizados.
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Em nossa investigao das relaes intersubjetivas, partiremos da perspectiva
psicolgica do construtivismo semitico-cultural cujas bases terico-metodolgicas se
assentam nas idias de Lev Vygotsky, Mikhail Bakhtin, George Hebert Mead, Pierre Janet,
Jean Piaget e, mais recentemente, Ernst Boesch e Jaan Valsiner, entre outros (SIMO, 2003,
2005, 2007b).
Segundo a abordagem construtivista que aqui adotamos, a cincia entendida como
um conjunto de regras e prticas social e historicamente construdas (DURAN, 1999, 2004).
Esta compreenso torna irredutvel a relao entre a dimenso epistemolgica e a pesquisa em
psicologia, com destaque para a psicologia do desenvolvimento.
De acordo com Simo (1989), as questes metodolgicas dizem respeito
consistncia e plausibilidade de relaes emprico-tericas bidirecionais, engendradas na
atividade interativa do pesquisador que, por sua vez, colocam questes cientficas e ticas
pesquisa psicolgica.
O modelo de transmisso cultural bidirecional, baseado na idia de dialogicidade,
basal para o construtivismo semitico-cultural. Considera-se, segundo essa perspectiva, que
todos os participantes da cultura a transformam ativamente. A transmisso cultural implica a
emergncia da novidade, tanto em quem comunica, quanto em quem recebe a comunicao,
bem como no mundo.
Concebemos que toda mensagem implica rudo e as lacunas de comunicao sopreenchidas pelo receptor de modo a compor o sentido da expresso. A percepo do mundo,
desse modo, tende a organizar o caos existente (VALSINER, 1994; 2001). Valsiner (2001),
apontando constituio cultural da mente humana, afirma que a ao de comparar diferentes
experincias o ponto inicial de qualquer conhecimento (p. 15). A inevitabilidade das
comparaes, para este autor, est fundada no reino da percepo, que abordamos
anteriormente com as noes de figura e fundo e nas idias de Vygotsky.
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Ao estudar os tipos de comparao, podemos perceber os propsitos das mesmas e as
diferentes implicaes em que o domnio comparativo configurado pelo autor. As
comparaes levam a um tipo de conhecimento simbolicamente codificado, cientfico ou no,
capaz de orientar as condutas (VALSINER, 2001). De acordo com Simo (2005, p. 550), os
estudos contemporneos do construtivismo semitico-cultural focalizam:
[...] especialmente o processo de desenvolvimento individual, no qual asinteraes eu-outro que se desdobram do espao cultural assim como oformam, tendo a um papel primordial. Deve-se ter claro desde o incio que ortulo construtivismo semitico cultural tem somente o carter orientador,temporrio e flexvel de um instrumento para pesquisa psicolgica, isto , ele
no visa uma tipologia epistemolgica.
O desenvolvimento humano, a partir deste ponto de vista, entendido como algo que
acontece em meio a uma multiplicidade de trajetrias possveis (VALSINER, 1994). No curso
da vida, as pessoas atualizam uma das mltiplas possibilidades, num movimento que se
caracteriza pela mtua constituio do passado ao futuro.
Dentre os temas de destaque, contemporaneamente, na abordagem semitico-
construtivista esto as dimenses estrangeiras, inquietantes e de tenso das relaes eu-outro.
Encontramos, dentre os conceitos-chave analticos dessa abordagem, os de intersubjetividade,
dialogia, assimetria, nebulosidade, tenso, afeto, futuridade e novidade.
Discusses no campo da psicologia sobre a questo da intersubjetividade e suas
vicissitudes tm aumentado recentemente, com o reavivar de questes ticas implicadas no
reconhecimento do outro e a importncia do no-eu na constituio psicolgica de si
(COELHO JR.; FIGUEIREDO, 2003). Nesse cenrio, o fenmeno da intersubjetividade vem
ganhando interesse, quase que paradoxalmente, pelas situaes em que no ocorre, isto , pelo
fosso entre eu e outro quando da ausncia do compartilhamento intersubjetivo.
De acordo com Valsiner (2001), as relaes humanas dialgicas podem ser
compreendidas como relaes entre sistemas semi-abertos, cuja dinmica ocorre em um
tempo irreversvel. Valsiner (1989) distingue dois tipos de sistema: o sistema fechado, tal qual
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um objeto ou dispositivo mecnico, existe sem realizar trocas com o ambiente e sem
modificar-se em uma configurao mais complexa; os sistemas abertos, por outro lado,
desenvolvem-se durante as relaes com o ambiente, transformando-se e modificando seu
entorno. Nas palavras de Valsiner (1989, p. 20) [...] se os sistemas fechados podem ser
definidos como livres do contexto, os sistemas abertos so dependentes do contexto.
O potencial para emergncia da novidade na relao do sistema semi-aberto com o
contexto em que se encontra, nos remete a um tipo de relao eu-outro em que, tanto eu
quanto o outro se apreendem como sujeitos. A interao verbal pode se constituir como um
campo privilegiado para esse tipo de relao. Os dilogos podem estabelecer campos de
possibilidades de trocas de experincias singulares, demandando o reconhecimento da
especificidade da perspectiva do outro, ou seja, os dilogos tornam evidentes lacunas entre a
experincia singular de cada sujeito.
Quando a relao eu - outro se d numa atitude em que, tanto o eu quanto o outro se
recusam busca de um compartilhamento, consideramos que, de partida, o dilogo estar
destinado a no acontecer. De acordo com Simo (informao pessoal)5, o dilogo um
acontecimento que depende da busca de interlocuo entre os sujeitos da interao, ao
buscarem interlocuo, eu e outro passam a formar um sistema semi-aberto, cuja interao
pode ser geradora de tenso intersubjetiva, transformadora do sistema eu - outro e do sistema
afetivo-cognitivo de cada um dos sujeitos:[...] nem todo dilogo, no sentido extenso (estendido) necessariamentedialgico. O dialogismo uma perspectiva, um olhar ao dilogo, comdesdobramentos para a compreenso das aes simblicas humanas e para aprtica do dilogo. Nos termos de Markov (2003) uma epistemologia euma ontologia.
5 SIMO, L. M. Relatrio de Pesquisa referente Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, texto empreparao para publicao. Mensagem recebida por [email protected] em 01 nov. 2007.
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A tenso que pode emergir num dilogo se expressa como inquietao decorrente de
uma ruptura de expectativas, exigindo dos sujeitos em interao a modificao ativa das
mensagens comunicativas recebidas do outro. A modificao realizada no dilogo est
implicada em uma tentativa de integrao afetivo-cognitiva das mensagens expressas
(SIMO, 2004).
Rommetveit (1979) aponta que a intersubjetividade s possvel a partir de alguma
descentrao do eu, que acontece quando o sujeito tenta fazer o papel de outra pessoa. Essa
descentrao implica que o sujeito assuma no apenas o ponto de vista de seu interlocutor,
mas tambm que ele acredite que o interlocutor est se esforando para entend-lo, tanto
quanto para ser entendido. Nesse sentido, ambos sujeito e interlocutor transcendem seus
mundos individuais, um em direo ao outro.
Esse processo ocorre no dilogo entre sujeitos que tentam compartilhar suas construes
pessoais. Concomitantemente, desentendimentos, reparos, reiteraes habitam o dilogo, pois
o significado de uma expresso depende da posio dos interlocutores no contexto em que ela
se desenvolve (BAKHTIN, 1992; FOPPA, 1995; LINELL, 1995). O dilogo, portanto,
demanda um esforo para que algum compartilhamento ocorra, e ele s ocorrer se seus
participantes estiverem motivados a realizarem tal esforo.
Para esta dissertao, selecionamos algumas compreenses tericas do construtivismo
semitico-cultural acerca das relaes intersubjetivas, que consideramos importantes para acompreenso do fenmeno de estudo: intersubjetividade e desejo nas relaes sociais. Uma
dessas compreenses diz respeito prpria noo de dilogo e de interao verbal que,
segundo essa abordagem, est implicada num entrejogo polifnico de vozes em relao
dinmica.
Discutiremos o processo dialgico baseado nas idias de Bakhtin e em autores
contemporneos ligados a ele. Em seguida, exploraremos a noo de self-dialgico,
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desenvolvida por Hermans, Kempen e van Loon (1992) no que diz respeito internalizao
intrapsquica da realidade social e as noes de recurso simblico, rupturas e transies nas
interaes sociais, que sero discutidas em relao abordagem de Zittoun et al (2003). O
objetivo da discusso terica que estamos propondo o de ajudar a compreender o processo
de negociao intersubjetiva das construes pessoais.
A investigao do processo de compartilhamento e rupturas intersubjetivas no caso das
sesses de jogos de RPG tambm nos levou a pensar em alguns desdobramentos acerca da
construo do sentido compartilhado, aproximando-nos da obra do filsofo Emmanuel
Lvinas (1906-1995), especialmente acerca das relaes de alteridade e da noo de desejo
do infinito. Interfaces propiciadoras de dilogo entre construtivismo(s) e fenomenologia(s)
tm sido exploradas recentemente com vigor6.
Partimos da suposio de que a obra filosfica de Lvinas, discpulo de Husserl, pode
trazer contribuies para o aprofundamento da reflexo acerca de experincias psicolgicas de
intersubjetividade e alteridade. Ela aponta para uma dimenso da intersubjetividade, que se
relaciona questo tica e da futuridade (COELHO JUNIOR; FIGUEIREDO, 2003; SIMO,
2007b).
Na abordagem do construtivismo semitico-cultural, a noo de separao inclusiva
entre eu e outro se aproxima das interpretaes que Simo e Valsiner (2007a) fazem da
relao eu outro desde a perspectiva levinasiana, distinguindo, no todo relacional, umaseparao inerente entre eu e outro.
Comearemos nosso percurso discutindo as noes de polifonia e dilogo, que abriro
caminho em direo a uma apresentao da dinmica dos jogos de RPG e as relaes
intersubjetivas que propicia.
6 A esse respeito, por exemplo, a revista Culture & Psychology (volume 9, nmero 3, de 2003) e o livroorganizado por Simo e Valsiner (2007b).
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2 Dialogismo e intersubjetividade
Jogar RPG se constitui como uma tarefa intersubjetiva na qual participam interaes
verbais e dilogos essas noes, como veremos, no so equivalentes. Conforme
assinalamos, nas sesses do jogo o narrador representa um ambiente virtual e cada jogador um
sujeito diante de outros personagens. A constituio de um horizonte comum de
compartilhamento, pela criao de um contexto, necessria para que algum dilogo se
estabelea entre interlocutores.
Nos dilogos, dentro e fora das situaes de jogo, as pessoas constroem horizontes
comuns, assentados nas dimenses espaciais e temporais, de relao entre os elementos
discursivamente elaborados. Os elementos selecionados para compor o plano espao-temporal
supem a seletividade de uma subjetividade que recorta e descreve aspectos da realidade em
que vive. As narrativas, por exemplo, descrevem relaes entre elementos em um tempo e
espao definidos, de modo a sustentar alguma coerncia a partir da conexo entre eventos,
essa coerncia percebida e experimentada pelo interlocutor, que poder romp-la e
transform-la na relao eu-outro.
Desse modo, o compartilhamento de experincias na relao eu-outro est vinculado a
um campo polifnico, em que mltiplas vozes se expressam e se relacionam criativamentenos espaos intersubjetivos e intrasubjetivos.
A noo de novela polifnica foi proposta pelo lingista russo Mikhail Mikhailovich
Bakhtin (1895-1975), como decorrncia de suas anlises literrias da obra de Dostoievski, que
apresentam uma pluralidade de perspectivas e mundos, ao invs de simplesmente um conjunto
de personagens em um mundo iluminado pela viso do autor. A noo de polifonia, em
Bakhtin, diz respeito a um tipo de lgica que se distingue das compreenses lgico-causais
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fortemente presentes nas cincias clssicas e que seguem, por exemplo, os princpios lgicos
aristotlicos (WERTSCH, 1991; MARKOV, 2006a; HERMANS; KEMPEN; VAN LOON,
1991).
Nascido em Orel, filho de uma famlia economicamente arruinada, de antiga nobreza,
estudou na universidade de Obedea, em So Petersburgo, onde, em 1918 formou-se em
histria e filologia. Trabalhou como professor e constituiu, na dcada de 20, um crculo de
discusso composto por intelectuais e artistas, conhecido como crculo de Bakhtin. Consta
que suas primeiras obras foram assinadas por dois de seus amigos e discpulos (P. N.
Medvidiev e V. N. Volochnov), por motivos de intransigncia e censura editorial. Dentre
essas obras iniciais esto Marxismo e filosofia da linguagem, de 1929, assinada por
Volochnov. No incio dos anos 30 Bakhtin foi obrigado a ir viver na fronteira da Sibria com
o Cazaquisto, quando seus companheiros desapareceram por obra da perseguio stalinista.
Deu aulas em colgios locais numa cidade prxima a Moscou, de 1941 a 1946, defendendo
uma tese sobre Rabelais em 1946. De 1946 a 1961 foi professor na universidade de Saransk,
onde se aposentou. Comeou a ganhar certa notoriedade a partir de 1963, com a reedio de
alguns de seus livros (Problemas da obra de Dostoievski, em 1963 e sua tese sobre a obra de
Fraois Rabelais e a cultura popular na Idade Mdia e na Renascena, em 1965). Bakhtin
morreu em Moscou em 1975 aps um longo perodo doente (YAGUELLO, 1995;
HOLQUIST, 2002, 2004).O trabalho de Bakhtin considerado influente na rea de teoria literria, crtica
literria, anlise do discurso e semitica. Ele considerado um filsofo da linguagem e sua
lingstica considerada uma trans-lingstica porque ela ultrapassa a viso de lngua como
sistema. Segundo Holquist (2004), as proposies centrais da obra de Bakhtin no vo no
sentido de uma formalizao estrita do processo comunicativo, portanto, no se pode entender
a lngua isoladamente. Qualquer anlise lingstica deve incluir fatores extralingsticos como
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contexto de fala, inteno do falante, a relao do falante com o ouvinte, momento histrico,
etc.
Faz-se necessrio aprofundarmos em algumas idias centrais presentes na obra de
Bakhtin, por considerarmos seu pensamento relevante abordagem do construtivismo
semitico-cultural. Bakhtin foi um dos primeiros pensadores do dialogismo a assinalar a
existncia do eu orientada de acordo com a linguagem do outro e o mundo do outro
(MARKOV, 2006a, p. 126). Seu trabalho, portanto, se encaixa com os propsitos de nossas
investigaes.
2.1 O dialogismo de Bakhtin e a construo do sentido
Em sua discusso da filosofia da linguagem Bakhtin, considera central a noo de
dilogo. Os caminhos propostos por Bakhtin para o entendimento da atividade dialgica
levam a uma proposta epistemolgica peculiar para as cincias humanas, dando origem, na
psicologia, a uma abordagem scio-cultural das aes mediadas, que tambm est apoiada nas
proposies de Vygotsky.
Conforme salienta Wertsch (1991) discutindo a centralidade do conceito de ao paraa abordagem scio-cultural da mente a ao, reciprocamente orientada (ao interativa) a
categoria analtica bsica da qual emergem o ambiente e o funcionamento mental. Dada a
relao fundamental entre ao e meios mediacionais, o indivduo considerado um
indivduo-agindo-com-meios-mediacionais.
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Um ponto central na filosofia da linguagem de Bakhtin (1992, p. 289) est assentado em
sua critica concepo da lingstica clssica do sculo XIX, segundo a qual a linguagem
considerada como se o locutor estivesse sozinho:
A lingstica clssica do sculo XIX a comear por W. Humboldt -,sem negar a funo comunicativa da linguagem, empenhou-se em releg-laao segundo plano, como algo acessrio; passava-se para o primeiro plano afuno formadora da lngua sobre o pensamento, independente dacomunicao. Eis a clebre frmula de Humboldt: Abstraindo-se anecessidade de comunicao do homem, a lngua lhe indispensvel parapensar, mesmo que tivesse de estar sempre sozinho.
Assim, mesmo na lingstica que est apoiada na distino entre locutor e receptor,
como em Saussure, h uma distoro do processo comunicativo real uma vez que a atividade
est depositada no locutor e o ouvinte considerado um receptor passivo das mensagens.
Bakhtin (1992), por sua vez, destaca que o ouvinte possui uma atitude responsiva ativa, cuja
ao poder ser uma resposta imediata ou retardada (no caso de uma produo textual, por
exemplo), o prprio locutor, segundo Bakhtin (1992), sempre respondente de algum que o
antecedeu, o enunciado, portanto, se insere numa cadeia complexa de enunciados.
Ao enfatizar o papel ativo do outro como princpio essencial da lingstica (WERTSCH,
1991; MARKOV, 2006a), Bakhtin desloca o campo de estudo da retrica para a
compreenso do enunciado claramente delimitado pela fronteira entre os sujeitos falantes. O
filsofo russo parte da compreenso do que chama dilogo real no qual distingue as
posies de quem fala e quem responde7 para compreender as variadas situaes da
comunicao.
De maneira diferente ao enunciado, as fronteiras da orao no so marcadas pela
alternncia entre sujeitos falantes. A orao um pensamento relativamente acabado
relacionado com outros pensamentos e oraes do mesmo locutor. Elas participam na
7 Optamos por usar os termos quem fala e quem responde ao invs de locutor e responsiva (como osencontramos nas tradues dos textos de Bakhtin) porque esses termos, na psicologia brasileira, esto carregadosde significaes de abordagens tericas diferentes da qual este texto se insere. A noo de responsividade, porexemplo, muito trabalhada na anlise experimental do comportamento.
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determinao de uma atitude responsiva do outro apenas em sua relao com o todo do
enunciado, ou seja, possuem uma natureza gramatical.
O enunciado, entretanto, possui uma relao direta com a realidade, com a situao
transverbal e a alternncia entre os falantes (BAKHTIN, 1992). O locutor ao se expressar,
articula as oraes de modo a constituir um sentido para o outro, em uma dimenso contextual
que excede tanto um quanto o outro. A perspectiva que adota a compreenso da linguagem
como transverbal ou extra-textual, implica, necessariamente, a condio social da obra e da
expresso (BAKHTIN, 1992; WERTSCH, 1991). A alternncia entre sujeitos falantes, por
sua vez, compe o contexto do enunciado. O acabamento do enunciado comumente
marcado por uma totalidade expressiva de algum, que nos remete possibilidade de
respond-lo.
Comparando novamente o enunciado com a orao, observamos que a inteligibilidade
de uma orao, que se encontra no nvel da lngua e aponta para uma entidade de sentido, por
sua vez, no se identifica com a totalidade do enunciado, que proporciona a possibilidade de
compreender de modo responsivo.
Em sua argumentao, Bakhtin (1992) aponta trs fatores indissociavelmente ligados ao
todo orgnico do enunciado: 1) o tratamento exaustivo do objeto de sentido; 2) o intuito do
locutor e 3) as formas tpicas de estruturao dos gneros do discurso. Assim, aprender a falar
corresponde a aprender a estruturar enunciados, a realizar diferenciaes a partir da percepode sua totalidade, relacionando o contedo da fala aos gneros do discurso j existentes. Essas
idias se distanciam da concepo de que o que central na comunicao so os fundamentos
sintticos, lexicais ou morfolgicos. Segundo Bakhtin (1992, p. 326):
[...] a orao como unidade da lngua, de natureza gramatical e temfronteiras, um acabamento, uma unidade que se prendem gramtica ( nointerior de todo enunciado e do ponto de vista desse todo que a oraoalcana propriedades estilsticas). Onde a orao figura a ttulo de enunciadocompleto, parece encravada num material de natureza totalmente estranha.Ao se ignorar esses fatos na anlise da orao, deforma-se a natureza daorao (e, portanto, do enunciado que se gramaticaliza). Muitos lingistas
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(no campo da sintaxe) so prisioneiros dessa confuso: o que estudam comoorao , na verdade, uma espcie de hibrido da orao (unidade da lngua)e do enunciado (unidade da comunicao verbal). As pessoas no trocamoraes, assim como no trocam palavras (numa acepo rigorosamentelingstica), ou combinaes de palavras, trocam enunciados constitudoscom a ajuda de unidades da lngua palavras, combinaes de palavras,oraes; mesmo assim, nada impede que um enunciado seja constitudo deuma nica orao, ou de uma nica palavra, por assim dizer, de uma nicaunidade da fala (o que acontece, sobretudo na rplica do dilogo), mas no isso que converter uma unidade da lngua numa unidade da comunicaoverbal.
Ao propor o enunciado como unidade de anlise do processo comunicativo, estamos
assumindo que o processo comunicativo se vincula ao ponto de vista de cada interlocutor.
Cada enunciado caracterizado por uma peculiaridade de contedos permeados pelo
referencial emocional do falante, quando ele enderea a fala ao ouvinte. Desse modo, para
compreender o processo comunicativo, importante levar em conta quem fala, o que dito,
para quem se est falando, e quando esta fala est sendo endereada (WERTSCH, 1991;
SIMO, 2003). Isso implica que cada fala pode produzir mltiplas interpretaes, ao invs de
apenas uma interpretao correta, porque o correto depender dos modos de questionamento
da relao intersubjetiva do falante e do ouvinte, atravs das negociaes que acontecem no
encontro polifnico das vrias vozes envolvidas na conversao.
O significado da fala , nesse sentido, dialgico. Segundo essa perspectiva, o enunciado
pode ser entendido como fronteira entre o eu e o outro, sendo que seus elementos constitudos
pelos recursos da lngua encontram sentido na relao com os enunciados dos outros
(BAKHTIN, 1992; WERTSCH, 1991). A relao eu-outro, portanto, assume centralidade
nesta compreenso sobre a comunicao humana, que nos leva a pensar o lugar da
intersubjetividade no dilogo. De acordo com Bakhtin (1992), fundamental a compreenso e
o bom uso dos elementos recursos da lngua. Entretanto, um tratamento da linguagem que
lide apenas com seus recursos sistmicos (palavras, oraes, ou mesmo suas posies de teor
e veculo, no caso de metforas) no suficiente. O que caracteriza a comunicao verbal a
predeterminao de posies na relao eu-outro.
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As colocaes de Bakhtin (1992) culminam em propostas para uma epistemologia das
cincias humanas, apontando uma perspectiva de compreenso de obras literrias e
cientficas. Para ele, o pensamento, seja ele filosfico, cientfico ou artstico, nasce e forma-
se em interao e luta com o pensamento alheio (BAKHTIN, 1992, p. 317).
Em sntese, compreendemos que o enunciado do outro incute no sistema da lngua uma
irracionalidade, do ponto de vista da sintaxe. A inter-relao dos discursos no se vincula nem
sintaxe, nem aos objetos de sentido, mas se refere resposta de outrem, ao fenmeno de
alternncia entre os sujeitos falantes, marcado por uma dupla expressividade: a de quem fala e
a de quem acolhe. Os enunciados possuem, desse modo, uma complexidade e polimorfia, uma
vez que para serem compreendidos, faz-se necessrio a busca de seus elos anteriores na cadeia
de comunicao verbal, alguns deles distantes e esquecidos. Nessa medida, na produo
autoral de qualquer enunciado est tambm implicado um destinatrio que ir produzir os elos
comunicativos que se sucedero a ele.
Bakhtin (1992) estabelece uma classificao dos atos da comunicao em gneros de
discurso. Os gneros do discurso so tipos relativamente estveis de enunciados marcados
pela especificidade de uma esfera de comunicao ou atividade humana, sendo classificados
em primrios e secundrios: os gneros secundrios so da ordem de uma comunicao
cultural mais complexa (romance, teatro, discurso cientfico e ideolgico etc.); os gneros
primrios so mais simples, correspondem a uma comunicao verbal espontnea. O processode composio dos gneros secundrios diz respeito a uma transmutao dos gneros
primrios, que perdem sua relao imediata com a realidade existente e com os enunciados
alheios, passando a se relacionarem mais proximamente com a gestalt da composio em que
se inserem.
As interaes verbais que ocorrem em gnero primrio correspondem a uma interao
simultnea com o outro, ao passo que a formulao de gneros secundrios suporia uma
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idealizao dos contextos primrios de experincia, procurando constituir um plano de
compartilhamento na relao eu-outro segundo suposies imaginadas de interlocutores que
no se encontram presentes. O gnero canaliza uma direo para a compreenso de seus
contedos e, por outro lado, a prpria organizao dos contedos em oraes internas ao
campo, realizada pela seletividade daquele que o expressa, cria redundncias em torno de uma
formao de sentido que se pretende compartilhar.
Os gneros do discurso enquanto padres orientadores da expresso verbal
comportam uma entonao expressiva, podendo conferir maior ou menor grau de liberdade
para a produo discursiva (os gneros oficiais so muito estveis e prescritivos enquanto os
gneros das reunies sociais e da intimidade so mais livres e criativos). Assim, a partir do
domnio dos gneros, os falantes podem descobrir aspectos de sua individualidade, expressa,
por exemplo, nas peculiaridades do uso de um determinado tipo de discurso. Na construo de
enunciados, os gneros podem se combinar de maneira singular, porm no absolutamente
livre. A combinao criativa guarda relaes com os discursos previamente constitudos
(Bakhtin 1992). Desse modo, a escolha de oraes e palavras se vincula ao todo do enunciado
completo, ao contexto que se apresenta composio verbal e orienta as opes de quem se
expressa.
A noo de interao dialgica, portanto, pressupe um processo cuja natureza
particular a de complementaridade e mtua interdependncia das entidades interatuantes.Conforme nos aponta Linell (2003, p. 226), a partir das proposies de Bakhtin, podemos
pensar que todos os textos e discursos so dialgicos, na medida em que respondem a uma
situao ou interlocutor, e so endereados a algum (ainda que esta pessoa no esteja
claramente definida). Podemos, contudo, utilizar a linguagem de modo a circunscrever
entidades relativamente independentes entre si. A seguir, discutiremos os diferentes modos de
construo discursiva a partir da compreenso dialgica da comunicao.
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2.2 Monologia e bidirecionalidade
O trabalho pessoal sobre os recursos da lngua e os gneros do discurso engendram
algumas aes daquele que se expressa, ao articular as vozes em interao. A expresso que
resulta dessa articulao pode explicitar, por exemplo, a seletividade de um sujeito que se
apresenta com diferentes pontos de abertura e fechamento em relao s vozes com as quais
entra em contato. Assumimos, portanto, que o monlogo e o dilogo habitam o processo
comunicativo.
Ao tomarmos a relao eu - outro e eu - mundo, no processo comunicativo, como uma
relao dialgica, ou seja, de complementaridade e interdependncia, nem eu, nem outro e
nem mundo podem ser teoricamente concebidos um priori do outro, pelo contrrio, eles vm
existncia juntos, tal qual uma relao figura-fundo: o que se torna figura pode ser
distinguido apenas em relao ao que se torna fundo. A alterao da figura implica
modificao no fundo e vice-versa. A comparao do dilogo com a relao figura-fundo se
aplica-se, no apenas relao de comunicao imediata, mas tambm ao processo de
comunicao em suas diversas dimenses e gneros do discurso.
A metfora da relao figura-fundo apia-se nas experincias dos tericos da gestalt,
que apontam a existncia de uma tenso na fronteira do campo perceptivo, entre a figura e ofundo da imagem, entre o interior e o exterior de um crculo, como no exemplo apresentado
por Herbst (1995):
Figura 1: A fronteira entre o interior e o exterior do crculo define um campo de tenso quecaracteriza a forma da imagem.
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Ao comparar metaforicamente o dilogo com a relao figura-fundo assinalamos a
distino e concomitante interdependncia entre os elementos constituintes da relao (eu e
outro). Esse modelo utilizado pela abordagem da psicologia scio-cultural para explicar
transformaes particulares no desenvolvimento psicolgico e social (Valsiner, 1994). Por
outro lado, para o estudo de rupturas, transies e continuidades no processo comunicativo,
conforme destaca Valsiner (1998, 2001), essa abordagem enfatiza a distino entre opostos,
permitindo tornar compreensvel a relao entre os elementos interatuantes.
A produo simblica expressa no ato comunicativo, conforme essa perspectiva, no
emerge por predicao nem por analogias, mas a partir de uma cadeia discursiva que se
vincula a uma realidade transverbal comum entre os sujeitos falantes. O enunciado, por se
dirigir a algum, estabelece um elo real na cadeia de comunicao verbal, no interior de uma
dada esfera da realidade humana ou vida cotidiana, possuindo completude de significao
(preciso de sentido) em sua relao com esse elo. A expressividade do locutor na produo
do enunciado destitui a neutralidade da palavra e da orao.
Bakhtin (1992), ao supor um sistema da lngua puramente abstrato, afirma que a
entonao expressiva seria inexistente, pois as palavras poderiam adquirir uma significao
extra-emocional desvinculada da realidade. Tambm o gnero, como forma ou superestrutura
tpica de expresso do enunciado que possui uma expressividade impessoal. O enunciado, por
sua vez, se vincula poca, meio social e micromundo ao qual o indivduo pertence. Oenunciado estabelece um contato entre a palavra e a realidade, na medida em que impregna as
palavras com a expressividade individual do locutor numa determinada situao real
discursiva. na interao contnua e permanente com o enunciado dos outros, que um
indivduo assimila criativamente as palavras dos outros, reestruturando-as e modificando-as.
De acordo com Bakhtin (1992, p. 317, grifo do autor):
[...] A expressividade de um enunciado nunca pode ser compreendidae explicada at o fim se se levar em conta somente o teor do objeto do
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sentido. A expressividade de um enunciado sempre, em menor oumaior grau, uma resposta, em outras palavras: manifesta no s suarelao com o prprio objeto do enunciado, mas tambm a relao dolocutor com os enunciados do outro [...]
Assentado nas idias de Bakhtin e no modelo de transmisso cultural bidirecional a
abordagem dialgica segue um caminho de compreenso do desenvolvimento humano muito
diferente dos modelos psicolgicos unidirecionais (VALSINER, 1994; WERTSCH, 1991). O
modelo unidirecional, segundo Wertsch (1991), est baseado numa metfora da linguagem
como condutor que supe a linguagem como um canal de comunicao de sinais entre o
emissor e o receptor. Para Wertsch (1991, p. 71, grifos do autor):
Durante as ltimas dcadas, uma viso particular dacomunicao passou a dominar a maioria das pesquisas em psicologiado desenvolvimento e em outras cincias sociais. De acordo com essaviso, a comunicao humana pode ser conceitualizada em termos detransmisso de informao. Esse modelo de transmisso envolve atraduo (ou codificao) de uma idia em um sinal pelo remetente,a transmisso desse sinal para um recebedor, e a decodificao dosinal em uma mensagem pelo recebedor.
H, contudo, uma maneira de conciliar a perspectiva dialgica com o modelo de
transmisso unidirecional ao se compreender que o interesse central da metfora da
linguagem como condutor (modelo unidirecional) a suposio de coincidncia entre o
locutor e o respondente, produzindo o maior grau de univocalidade possvel (Wertsch, 1991).
O outro, nesse caso, no existe enquanto tal. A funo univocal dos textos tem prevalecido
nas teorias da linguagem e nas cincias, ofuscando novas possibilidades de compreenso.
Segundo Wertsch (1991), o texto comporta ambas as funes: o transporte adequado de
significados (mais prxima ao modelo unidirecional) e a produo de novos significados,
enquanto uma ferramenta do pensamento.
Os discursos, por sua vez, podem diferir em seu grau de dialogicidade, de modo a se
apresentarem com maior ou menor abertura ao outro. De acordo com Linell (2003, p. 226).
alguns textos so monolgicos, no sentido em que eles tentam aplicar uma perspectiva
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autoritria acerca das coisas que tratam. Os textos podem ser apreendidos como expresso de
discursos autoritrios em oposio aos discursos mais flexveis. O discurso autoritrio
compreendido, nessa abordagem, como baseado na concepo que as expresses e seus
significados so fixos e no modificveis no contato com outras vozes (BAKHTIN, 2004).
Como exemplo de discurso autoritrio, Bakhtin (2004) e Wertsch (1991) apontam os
textos religiosos, polticos e morais, bem como possivelmente as palavras de um pai, de
adultos, de professores etc. importante destacar que, conforme Bakhtin (2004), os discursos
autoritrios no podem ser representados, mas apenas transmitidos: s podem ser aceitos em
sua completude, sem a possibilidade de negociao de partes de seu contedo.
A noo de significado literal tambm entendida por Bakhtin (2004) como um tipo
de padronizao autoritria, problemtica, por algumas razes: est ligada a segmentos
lingsticos fora de contexto e parte do senso-comum, segundo o qual a palavra isolada possui
um significado bsico (WERTSCH, 1991). As noes de voz e dialogismo no so
compatveis com a noo de linguagem literal. O significado literal corresponde a uma
ideologia da linguagem que privilegia um ponto de vista particular da atividade comunicativa.
Nos discursos dialgicos, a estrutura semntica aberta ao encontro com outras vozes do
campo polifnico em que se insere, ou seja, o tecido dialgico sempre construdo em co-
autoria.
Voltando nossa anlise para a dimenso da relao eu-outro, percebemos que nodilogo ocorre um processo de significao temporria do outro a partir de um ponto de vista
particular. O destinatrio, na apercepo do autor de um discurso, por exemplo,
compreendido a partir de um padro que o determina como gnero. Na produo do
enunciado, os determinantes da escolha dos recursos da lngua se vinculam a uma tentativa de
previso da resposta do outro (BAKHTIN, 1992). Essa tentativa de presumir a resposta se d
de modo pluridimensional: leva-se em conta o grupo cultural a que pertence o destinatrio,
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sua classe social, idade, notoriedade pblica, etc. Essas diferenciaes so complexas e
influenciam a estrutura e o estilo do enunciado, entretanto, sua compreenso no pode
subestimar a relao entre o locutor e o outro para o qual ele se dirige. Ou seja, para alm da
universalidade do gnero, a relao eu-outro se encaixa na particularidade de uma
ocorrncia sui-generis intra-gnero.
Destacamos, portanto, algumas implicaes dos aspectos apresentados para a
epistemologia da psicologia e das cincias humanas. A relao eu-outro, para Bakhtin (1992),
caracteriza a principal distino entre cincias humanas e cincias exatas, encontramos em seu
texto fundamentos dessa distino (BAKHTIN, 1992, p. 403, grifos do autor):
As cincias exatas so uma forma monolgica de conhecimento:o intelecto contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. H umnico sujeito: aquele que pratica o ato de cognio (de contemplao)e fala (pronuncia-se). Diante dele, h a coisa muda. Qualquer objetodo conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido econhecido a ttulo de coisa. Mas o sujeito como tal no pode serpercebido e estudado a ttulo de coisa porque, como sujeito, no pode,permanecendo sujeito, ficar mudo; conseqentemente, oconhecimento que se tem dele s pode ser dialgico.
Seguindo a proposta polifnica de Bakhtin, estudos psicolgicos da abordagem
construtivista semitico-cultural tm compreendido a subjetividade como espao de dilogo
intrasubjetivo (HERMANS; KEMPEN; VAN LOON, 1992). Segundo esses autores, o
universo intrapsquico comparado ao cenrio de vozes sociais e o modelo da interao social
polifnica pode ser usado para compreender os processos subjetivos.
A proposta de Hermans, Kempen e van Loon (1992), est baseada na idia de que
certos aspectos do funcionamento mental humano so vinculados ao processo comunicativo,
bem como de que os processos elaborados por um indivduo isolado envolvem processos de
natureza interativa, comunicativa, levados a cabo intrasubjetivamente (WERTSCH,1991). A
noo de espao mental est, portanto, na fronteira entre o processo psicolgico individual e o
processo comunicativo social, caracterizados pelo dilogo de vozes heterogneas. Segundo a
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tica aqui adotada, os processos intrasubjetivos correspondem a uma internalizao
reconstrutiva do processo social que prolonga o dilogo de vozes socialmente interativas em
um plano mental, no qual a interao e desenvolvimento entre vozes tambm possvel.
No decorrer do texto, procuraremos refletir acerca dos processos de internalizao e
externalizao de vozes sociais, levando em conta a articulao entre intersubjetividade e
desejo. Iremos explicitar algumas idias de Schutz e de Hermans por consider-las
importantes nessa investigao. Ambos os autores investigam processos que se encontram na
fronteira entre os planos sociais e psicolgicos. Para Schutz (1979), por exemplo, a dimenso
do mundo da vida compreende o mundo das experincias comuns continuamente
desenvolvidas e confirmadas intersubjetivamente.
2.3 Oposies dialgicas no mundo da vida
Iremos apresentar relaes entre o que se compreende como mundo da vida a partir de
idias oriundas da fenomenologia das relaes sociais e uma compreenso sistmica dos
processos psicolgicos, pautada na noo de sistema semi-aberto, do construtivismo
semitico-cultural.Assentados nas dimenses espao-temporais da existncia humana, Schutz e Luckmann
(1973) concebem o mundo da vida como o mundo das experincias comuns continuamente
desenvolvidas e confirmadas intersubjetivamente. Essa noo se remete a um plano de
idealizaes pragmticas, cujo processo de simbolizao realizado pelo sujeito ir constituir
um plano estruturado de elementos plurais, subjetivamente construdos. Discutiremos, a
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seguir, algumas implicaes de categorias de compreenso do mundo da vida, definidas por
Schutz (1979), para compreenso do contexto social.
Tentaremos nos aproximar da concepo da fenomenologia das relaes sociais, para
pensar o mundo intrasubjetivo a partir das caractersticas do mundo da vida, como uma
internalizao criativa do mesmo.
Alfred Schutz (1889-1959) foi estudioso de Husserl que procurou constituir a
estrutura de uma sociologia baseada nas consideraes fenomenolgicas (WAGNER, 1979).
Em suas discusses e anlises da intersubjetividade, Schutz priorizou o papel do ator no
mundo da vida. Ele nasceu na ustria e estudou direito em Viena. Mudou-se para os Estados
Unidos em 1939 onde passou o resto de sua vida.
As idias de Schutz situam-se simultaneamente nos campos da Filosofia e da
Sociologia, aproximando-se teoricamente das proposies de Henri Brgson, Willian James,
George Hebert Mead e de Willian James, dentre outros (WAGNER, 1979). Da a suposio
de que suas idias podem se encaixar bem com as questes trazidas pelo construtivismo ao
qual este trabalho se vincula.
Segundo Schutz (1982), a experincia vivida passa por um processo em que
transformada em imagem com significado, e se torna sujeita a constantes transformaes ao
longo de sua simbolizao. Entre o dilogo comum dos sujeitos humanos e os recursos
simblicos disponibilizados nesse dilogo encontra-se uma dimenso reflexiva, que provocaum processo de idealizao no qual esto implicados simbolizao, memria,
racionalizao, representao, etc. das experincias do mundo da vida. Esses processos, por
sua vez, transformam a experincia viva dos homens em objeto de compreenso do mundo
vivido, e mesmo de estudo, atravs das cincias ditas humanas.
Na raiz do processo de simbolizao Schutz (1982) aponta a memria da experincia
espao-temporal, que preserva imagens significativas transformadas em um fluxo temporal
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subjetivo. Assim, sob a experincia humana significativa, que vivida como pura durao,
so executados atos de interpretao que produzem, para a subjetividade, imagens
aperceptivas hispostasiadas (SCHUTZ, 1982). Essas imagens se encaixam na constituio
subjetiva de quem as produz.
Para Schutz e Luckmann (1973), as idealizaes realizadas na relao social instauram a
atitude natural segundo a qual pressuposto que os outros no campo social so dotados de
conscincia e que os outros com os quais nos relacionamos experimentam os elementos do
mundo de modo similar ao eu. Essas consideraes culminam naquilo que Schutz e
Luckmann (1973) chamaram de tese geral da reciprocidade de perspectivas. Segundo essa
tese, cada um assume a existncia dos outros homens como um dado inquestionvel, [...] de
modo inteiramente social, a atitude natural tomada como a garantia de que o mundo da vida
aceito como dado a mim e tambm aceito como um dado para voc, decerto para ns,
fundamentalmente para todos (SCHUTZ; LUCKMANN, 1973, p. 61).
Usando como critrio as dimenses espaciais e temporais da existncia, esses autores
delinearam quatro tipos possveis de relaes sociais com o outro, que identificam, em ltima
instncia, os outros possveis para o eu no mundo da vida: os face-a-face, os contemporneos,
os predecessores e os sucessores.
A investigao desses tipos de relao importante, para ns, uma vez que expressam
a dinmica entre convergncia espao-temporal (equifinalidade) e divergncia espao-temporal (multifinalidade) nas relaes intersubjetivas. A noo e equifinalidade nos remete a
constituio de uma regio de similaridade no curso temporal de diferentes trajetrias de
vida, ou seja, a partir de diferentes percursos dos sistemas semi-abertos, h a possibilidade de
que duas ou mais trajetrias se encontrem em um determinado momento (VALSINER, 2001,
VALSINER; SATO, 2006).
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Na relao face-a-face, primeira regio social definida por Schutz e Luckmann (1973),
os sujeitos apreendem uns aos outros em sua particularidade de gestos coerentemente
estruturados; nesse caso o outro pode ser pensado em termos de reciprocidade em relao a
mim, na medida em que tambm sou experimentado por ele como um eu. Esta relao
possibilita processos de significao e ressignificao fluentes no contexto da durao da
experincia.
O segundo lugar social definido por Schutz e Luckmann (1973) o mundo dos
contemporneos. Esta regio social compreende os indivduos, grupos e entidades sociais
abstratas que existem ao mesmo tempo em que o eu. O eu, entretanto, encontra-se afastado,
momentnea ou definitivamente, da experincia espacial com essas pessoas ou grupos sociais
(CROSSLEY 1996, SCHUTZ; LUCKMANN, 1973).
Na constituio do mundo de interaes contemporneas, os smbolos que
representam os outros generalizados, bem como as tecnologias de massa, tm papel
fundamental. Dada a distncia dos contemporneos na realidade social e, conseqentemente, a
impossibilidade de relao face-a-face, os sujeitos nesse tipo de interao precisam imaginar
algo acerca do outro e tomam essa imaginao como base de sua relao. A relao com o
outro se d enquanto um sujeito que se constitui para o eu como objeto de seus pensamentos e
reflexes, encaixado em suas interpretaes. Esse fenmeno, denominado como tipificao do
outro, no elimina completamente a possibilidade de mtua afetao entre os sujeitos. Deacordo com Crossley (1996), a relao com os elementos tipificados se d de modo
semelhante ao mim, definido por Mead, e cada subjetividade pode se relacionar com vrios
outros generalizados, de maneira dinmica.
Na constituio do mundo de interaes contemporneas, os smbolos que
representam os outros generalizados, bem como as tecnologias de massa, tm papel
fundamental. Dada a distncia dos contemporneos na realidade social e, conseqentemente, a
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impossibilidade de relao face-a-face, os sujeitos, nesse tipo de interao, precisam imaginar
algo acerca do outro e tomam essa imaginao como base de sua relao. O processo
imaginativo, agora caracterizado como tipificador do outro, o modo como os sujeitos
restauram a ordem em uma relao extremamente flexvel e anrquica com o outro e com o
mundo.
A tipificao e as rotinas de interao esto presentes em qualquer sociedade enquanto
uma necessidade pragmtica para liberdade, organizao e inteligncia dos indivduos e
preservao de algum nvel de organizao (CROSSLEY, 1996, p. 87-88). Na experincia
com os contemporneos Schutz e Luckmann (1973) apontam a possibilidade de formao de
um tipo de relao em que o sujeito no se abre para a alteridade do outro, para sua
singularidade espontnea. Eles destacam, contudo, a possibilidade de alternncia de um modo
de relao tipificado para uma orientao aberta ressignificao, e vice-versa. O encontro
com o outro marcado por uma polivalncia de significaes construdas, de diversas
naturezas origem social, cultural ou grupos da vida, por exemplo em concomitncia a uma
abertura para novas significaes (SCHUTZ; LUCKMANN, 1973).
A terceira categoria de relao intersubjetiva, no sistema terico proposto por Schutz e
Luckmann (1973), situa os predecessores enquanto mais afastados das relaes face-a-face.
Neste lugar social no h coincidncia temporal entre os interatuantes, mas h um tipo de
presena do outro, ainda que no seja direta nem concreta. O que est em jogo aqui queimaginar o contemporneo ausente no espao e no no tempo diferente de imaginar o
antepassado ausente no espao e no tempo. A abertura para um dilogo com os
predecessores, por sua vez, possvel, a partir de um acesso ao passado realizado pela
memria, pela histria e por elementos constituintes do mundo deixado por eles (Crossley
1996). A abertura a este tipo de dilogo pode implicar uma transformao de si e da prpria
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histria, enquanto um discurso tambm composto de lacunas. Estas questes tocam aos
mbitos da cultura e da tradio.
A ltima regio social definida por Schutz e Luckmann (1973) o mundo dos
sucessores, existentes em um futuro indeterminado. H aqui tambm uma disjuno no
horizonte espao-temporal. A projeo de um futuro para os sucessores nos aponta para a
dimenso da futuridade, tem implicaes morais e atua na estruturao de campos de ao
para os sujeitos no mundo da vida.
Em sntese, desde a concepo de Schutz e Luckman (1973), na relao face-a-face, a
interao eu-outro marcada pela ausncia de disjunes espao-temporais; por uma
disjuno espacial na relao com os contemporneos e por disjunes espao-temporais nas
relaes com os predecessores e sucessores.
A diferenciao cultural e de grupos da vida, de acordo com Crossley (1996), emerge
permeada por diferentes conjuntos relativamente distinguveis de contemporneos,
predecessores e sucessores. Atrelada a eles, est a noo de identidade e de pertencimento
social. Grupos ou comunidades, famlias ou sociedades manifestam formas culturais distintas
com conhecimentos compartilhados.
A partir do ponto de vista desses autores, coexistem no campo de relaes sociais
intersubjetivas, a possibilidade de tipificao, ordenao e controle do outro, ao lado de uma
passividade ou acolhimento de sua expresso relativamente livre e inesperada. Afirmar essa
dualidade coloca o sujeito num contexto social marcado por regras e relaes de poder que
balizam as possibilidades de interao, exigindo que consideremos o complexo campo de
assimetrias nas relaes intersubjetivas.
Nas interaes dialgicas, de que tratamos previamente no texto, a assimetria est
sempre presente, ao menos porque aquele que fala/age tem o privilgio da iniciativa e pode
mostrar sua viso. A interao, por um lado, pode seguir padres rgidos, tornando-se pouco
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sujeita emergncia da novidade. O privilgio da expresso, por outro lado, no uma posse
permanente de um dado sujeito, pois os lugares de poder podem se alternar nos turnos da
interao. Nas relaes intersubjetivas, encontramos padres rgidos com padres mais
criativos, caracterizados por improvisaes co-ativas, com um amplo conjunto de
possibilidades de descobertas do self(HERMANS, 2002).
As tradies culturais, por exemplo, esto presentes naquilo que os sujeitos acham
normal e que, conseqentemente, permanece irrefletido (CROSSLEY 1996). A familiaridade
tambm pode criar tipificaes e emerge vinculada a mitos centrais de interpretao, daexistncia de um ns. Para Crossley (1996) os mitos culturais so associados histria do
grupo, passam a coincidir com a histria pessoal dos sujeitos e a definir os modos usualmente
aceitos de pensar. Os mitos, nas acepo de Schutz e Luckmann (1973), por exemplo,
preenchem lacunas da experincia dos sujeitos em relao uns com os outros. Aliadas aos
mitos, esto tipificaes acerca do que estrangeiro, que podem o no serem quebradas num
campo de relaes mais intimas.
Prosseguiremos a exposio terica explicitando como rupturas no compartilhamento
dos planos intersubjetivos orientam transformaes em recursos simblicos continuamente
internalizados e externalizados nas relaes com o outro. Iremos focar especialmente, os mal-
entendidos que emergem no contato eu-outro e eu - eu, no processo de simbolizao no
mundo da vida.
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2.4 Desassossegos, rupturas e inquietaes
A relao eu-outro, como vimos, est sujeita a um processo de generalizao
tipificadora, segundo a qual o outro apreendido dentro de uma ordem compreensiva
estabelecida pelo eu, com pouca possibilidade de abertura para ressignificaes. O fenmeno
da tipificao descrito por Schutz e Luckmann (1973) como tentativa de ordenao e
controle do outro. Caso a ordenao e controle assumam uma rigidez intensa a interao eu-
outro se tornar pouco sujeita emergncia de novidades. Compreendemos, portanto, que
nem todas as relaes eu-outro so dialgicas.
Ainda que elementos simblicos estejam envolvidos na relao entre diferentes
pessoas, possvel que a relao assuma a forma de relaes entre objetos impessoais do
mundo fsico (relao objeto-objeto). possvel, tambm, um tipo de relao em que o eu
afirma o outro (relao sujeito-objeto). O dilogo, por sua vez, tem como condio a posio
ativa de quem fala e quem responde. Dada essa condio, desassossegos e inquietaes
podem emergir, especialmente quando acontece algo que rompe com as expectativas de
algum, ou seja, quando acontece algo gerador de estranhamento.
Assumimos que a abertura ao outro no dilogo intersubjetivo, como j exposto
anteriormente, caracteriza os sistemas humanos como sistemas semi-abertos. Nos jogos deRPG, por exemplo, a representao do mundo da vida dos personagens, mediada pelas
descries do narrador. As descries e aes simblicas realizadas no plano imaginrio so
comunicadas, no jogo, atravs da linguagem.
O dilogo com o outro abre ao sujeito um campo de possibilidades relacionadas
experincia de algo que no deveria ser e, contudo parece ser. Ou seja, o dilogo com o outro
pode trazer ruptura de expectativas e inquietao para o sujeito porque as vozes do eu e do
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outro, no dilogo, so heterogneas. Isto se d devido ao inquietante, que se contrape s
expectativas de algum, afetar algo co-construdo na relao desse algum com o outro com o
qual est se relacionando segundo um processo que constituinte da cultura pessoal (SIMO,
2003). No mesmo sentido, conforme aponta Linell (1995), o mal-entendido e o reparo,
inevitavelmente, habitam o dilogo, de modo que o inquietante tambm.
Os significados produzidos na relao com o outro, portanto, possuem excedentes de
sentido.
De acordo com o construtivismo semitico-cultural, a linguagem e a representao,
presentificam a realidade, de modo que o mundo que nos aparece como possibilidade o
mundo que dito, compreendido (DURAN, 2004). A linguagem, inclusive, permite que o
sujeito constitua a realidade. Por exemplo, o conhecimento construdo por um pesquisador
dar origem a um texto, a partir de sua experincia emprica e terica. A construo de um
texto indica a existncia de um processo comunicativo no qual o pesquisador expressa seu
recorte da realidade imbricada no prprio processo de investigao. O que est fora do
universo simblico do pesquisador est fora de seu mundo. Em outras palavras, o texto
produzido pelo pesquisador co-constri uma realidade, um contexto vivido. Esse contexto
vivido tem sentido e significao porque expressa a condio humana inerentemente
intersubjetiva. O pesquisador, por sua vez, estabelece um modo de lidar com um campo
determinado da realidade, primeiramente definindo essa dimenso a partir de um recorte queconfere finitude ao objeto de investigao e, em seguida, propondo uma descrio do
fenmeno delimitado, permitindo compreende-lo. Isso feito a partir dos recursos simblicos
disponibilizados pelo pesquisador em sua ao comunicativa, com a produo de um texto
que, por exemplo, pode se estruturar de modo complexo operando com os recursos da lngua.
Os recursos simblicos, na concepo de Zittoun et al. (2003), so como que
instrumentos utilizados para se agir sobre ou a partir do mundo fsico, do mundo social e da
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realidade psquica. O seu uso orientado para o futuro e pode ocorrer em diferentes nveis de
reflexividade. Esses autores compreendem que o uso dos recursos simblicos, na relao eu-
outro, os sujeitos podem construir os objetivos das aes. Eles so um tipo especial de baliza
que oferece enquadres simblicos temporalmente estveis, de que o sujeito constri e lana
mo para resolver tenses geradas por diferenas entre o que se percebe como sendo agora
e o alvo da ao, pautado pelo desejo de algo a vir a ser8. Como exemplo de recursos
simblicos esto a elaborao de limites para uma relao intersubjetiva (as regras), a criao
de textos ou objetos cientficos, artsticos e culturais.
Os recursos simblicos atuam para reorganizar o caos e a incerteza da situao
presente, tal como ela se apresenta a cada sujeito em sua relao com o mundo a includo o
outro sugerindo possveis aes, gerando novos problemas e novos recursos simblicos.
Cabe ressaltar que o uso dos recursos simblicos ocorre na interao com o outro
numa durao temporal. No processo de tentativa de integrao entre as percepes e as
imaginaes do eu e do outro, estes dispositivos semiticos suportam a reorganizao, sendo
internalizados, modificando entendimentos de experincias e disponibilizando um reajuste a
partir de novas experincias (ZITTOUN et al., 2003; ZITTOUN, 2006). Os elementos
simblicos so, desse modo, padres estabilizados de interao e o que os torna um recurso
o fato de serem usados por algum, com determinado objetivo, no contexto de uma transio.
Esse processo resulta numa re-contextualizao significativa do prprio recurso,possibilitando o direcionamento de problemas abertos por rupturas e sua resoluo.
Os recursos simblicos produzidos e externalizados ficam vinculados pessoa que os
produziu, tornando-se veculos que, dentre outras caractersticas, identificam quem o produtor
. Desse modo, o outro apercebe, momentaneamente, a identidade do interlocutor, que se v,
por isso, engajado em uma constante negociao da sua prpria identidade co-construda. Os
8 Essa definio relaciona-se tambm com os conceitos de valor visado e valor real (BOESCH, 1991), que nosero abordados em detalhe nesta dissertao (SIMO, 2002, 2008).
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significados produzidos por algum necessariamente excedem o produtor, produzindo
dissonncias em relao sua compreenso do recurso simblico em questo, e a pessoa tem
que lutar para ter o controle daquilo que ela mesma produziu. Esse excedente de sentido, que
provoca tambm inquietao, exige aes reparatrias que se do por meio do uso,
modificao e criao de recursos simblicos (ZITTOUN et al. 2003; SIMO, 2003).
Nos momentos de ruptura intersubjetiva, a partir do referencial que estamos adotando
para compreend-los, importante a observar de elementos simblicos em oposio dialgica
(ZITTOUN et al., 2003), bem como ponderar acerca dos valores de poder e reconhecimento
anexados a cada um desses elementos. Esse ltimo aspecto ir caracterizar a posio de
dominncia implcita ou explcita que esses