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Campo Grande, 25 a 28 de julho de 2010, Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural 1 INTERFACES ENTRE DESENVOLVIMENTO RURAL, POLÍTICAS PÚBLICAS E ATORES SOCIAIS PARA O DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL [email protected] APRESENTACAO ORAL-Desenvolvimento Rural, Territorial e regional MARCO ANTÔNIO VERARDI FIALHO. UFSM, SANTA MARIA - RS - BRASIL. INTERFACES ENTRE DESENVOLVIMENTO RURAL, POLÍTICAS PÚBLICAS E ATORES SOCIAIS PARA O DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL Grupo de Pesquisa: Desenvolvimento Rural, Territorial e Regional Resumo O objetivo deste trabalho foi compreender as relações entre desenvolvimento territorial, políticas públicas e atores sociais. As informações utilizadas referem-se aos documentos institucionais do poder público federal e as entrevistas com representantes das organizações que participam como articuladoras no Território Sul do RS. A análise baseia- se em três grupos de atores sociais: organizações públicas oficiais, movimentos sociais articulados e representações dos agricultores familiares. O trabalho analisa e interpreta as diferentes noções sobre desenvolvimento rural e políticas públicas, identificando as possíveis articulações entre os diferentes atores na promoção do desenvolvimento territorial. O estudo possibilitou identificar o poder oligárquico tradicional local, a restrita apropriação sobre a noção de desenvolvimento territorial, as disputas ideológicas entre organizações e a deficiente articulação dos atores sociais locais, entre outros, como exemplos de fatores que limitam a participação ativa da sociedade civil no processo de desenvolvimento. Palavras-chave: Agricultura Familiar, Território Sul do RS, Análise do Discurso. INTERFACES BETWEEN RURAL DEVELOPMENT, PUBLIC POLICY AND SOCIAL ACTORS FOR THE TERRITORIAL DEVELOPMENT Abstract The objective was to understand the relationship between regional development, public policy and social actors. Information used to refer to institutional documents of federal and interviews with representatives of organizations participating in the “Territory South of the RS”. The analysis is based on three groups of stakeholders: public official organizations, social movements and representations of family farmers. The paper analyzes and interprets the different notions about rural development and public policies, identifying possible connections between the different actors in the promotion of territorial development. The study identified the traditional oligarchic power location, ownership restricted to the concept of territorial development, the ideological disputes between organizations and poor

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Campo Grande, 25 a 28 de julho de 2010,

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INTERFACES ENTRE DESENVOLVIMENTO RURAL, POLÍTICAS P ÚBLICAS E ATORES SOCIAIS PARA O DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

[email protected]

APRESENTACAO ORAL-Desenvolvimento Rural, Territorial e regional MARCO ANTÔNIO VERARDI FIALHO.

UFSM, SANTA MARIA - RS - BRASIL.

INTERFACES ENTRE DESENVOLVIMENTO RURAL, POLÍTICAS PÚBLICAS E ATORES SOCIAIS PARA O DESENVOLVIMENTO

TERRITORIAL

Grupo de Pesquisa: Desenvolvimento Rural, Territorial e Regional

Resumo O objetivo deste trabalho foi compreender as relações entre desenvolvimento territorial, políticas públicas e atores sociais. As informações utilizadas referem-se aos documentos institucionais do poder público federal e as entrevistas com representantes das organizações que participam como articuladoras no Território Sul do RS. A análise baseia-se em três grupos de atores sociais: organizações públicas oficiais, movimentos sociais articulados e representações dos agricultores familiares. O trabalho analisa e interpreta as diferentes noções sobre desenvolvimento rural e políticas públicas, identificando as possíveis articulações entre os diferentes atores na promoção do desenvolvimento territorial. O estudo possibilitou identificar o poder oligárquico tradicional local, a restrita apropriação sobre a noção de desenvolvimento territorial, as disputas ideológicas entre organizações e a deficiente articulação dos atores sociais locais, entre outros, como exemplos de fatores que limitam a participação ativa da sociedade civil no processo de desenvolvimento. Palavras-chave: Agricultura Familiar, Território Sul do RS, Análise do Discurso.

INTERFACES BETWEEN RURAL DEVELOPMENT, PUBLIC POLICY AND SOCIAL ACTORS FOR THE TERRITORIAL DEVELOPMENT

Abstract The objective was to understand the relationship between regional development, public policy and social actors. Information used to refer to institutional documents of federal and interviews with representatives of organizations participating in the “Territory South of the RS”. The analysis is based on three groups of stakeholders: public official organizations, social movements and representations of family farmers. The paper analyzes and interprets the different notions about rural development and public policies, identifying possible connections between the different actors in the promotion of territorial development. The study identified the traditional oligarchic power location, ownership restricted to the concept of territorial development, the ideological disputes between organizations and poor

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articulation of local social actors, among others, as examples of factors that limit the active participation of civil society in development. Key Words: Family Farmers, Territory South of the RS, Discourse Analysis. 1 INTRODUÇÃO A intervenção do poder público no desenvolvimento de determinadas sociedades ou grupos sociais, quando caracterizada pela reduzida compreensão sobre o contexto local, pode restringir o desenvolvimento pleno da sociedade ou do grupo social, atrofiando setores da vida que não foram contemplados ou mal dimensionados no desenrolar do processo. Entretanto, há situações que a intervenção de organismos externos é necessária para quebrar certos ciclos, muitas vezes de longa duração. Também conta-se com a capacidade de adaptabilidade do ser humano, a cada novo acontecimento a sociedade reordena-se em equilíbrio (flutuante e elástico).1 Talvez as atribuições do poder público, quanto ao desenvolvimento, deveria simplesmente garantir as condições adequadas para que o processo se desenvolvesse normalmente.2

Partindo dessa perspectiva, o poder público, representado pelas organizações públicas oficiais, deve ser um instrumento acessório na promoção do desenvolvimento. Desta forma o desenvolvimento rural estaria vinculado ao maior grau de liberdade, empoderando a população, de acordo com as contribuições de Sen (2000), para realizar escolhas e determinar o futuro. A limitação ou dependência, por vezes imposta ou estimulada pelo poder público, resulta em populações sem personalidade e autonomia para conduzir seu desenvolvimento. Por conseguinte, as populações podem estar suscetíveis aos ditos pacotes prontos, tendo em vista que as organizações públicas precisam justificar sua existência, seja por demanda (talvez o ideal) ou imposição. Não estamos nos referindo a uma perspectiva de redução da participação/intervenção do poder público, mas a uma inversão no grau de importância dado tanto ao poder público como aos beneficiários (agricultores familiares). Identifica-se, na relação poder público e agricultura familiar, assimetria de poder; configuração em que o primeiro impõe/oferta e o segundo acessa (adequando-se) ou não as políticas públicas, respectivamente.

Entretanto, essa relação desigual de poder vem, ao longo das últimas décadas, num processo de equalização com a introdução de programas de desenvolvimento que valorizam aspectos característicos da região e da sociedade local, primando pela participação direta da população no planejamento e coordenação dos projetos. Conforme Salama e Destremau (2001, p. 102), expondo idéias do PNUD, os indivíduos devem se engajar nas lutas sociais, “(...) ativar suas capacidades para a construção de seus próprios direitos e orientar o crescimento no sentido de seus próprios interesses”. Algumas experiências do poder público brasileiro refletem essa preocupação com a inserção dos próprios interessados (agricultura familiar) na elaboração e execução das políticas públicas para o rural, mas ainda apresentam limitações que impedem o desenvolvimento natural das populações rurais.

1 Elias (1999), ao discutir configurações mutáveis, refere-se a um equilíbrio flutuante e elástico, distinto do equilíbrio (das sociedades) apresentado por Talcott Parsons. Ver também Elias (1994). 2 Talvez na perspectiva de Sen (2000).

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As limitações podem estar relacionadas com a nossa pretensão de pensar que conhecemos as aflições do outro e que, consequentemente, sabemos o que é melhor para amenizar ou solucioná-las. É, mais ou menos, o que expressam as palavras de Salama e Destremau (2001, p. 18): “(...) finos conhecedores da pobreza no papel são incapazes de compreendê-la na vida cotidiana e, chamados à responsabilidade, seja nas organizações internacionais ou nos governos, preconizam políticas no mínimo inadequadas.” As inadequações das políticas públicas refletem, relativamente, o despreparo dos formuladores e a imposição de interesses e visões de mundo. O despreparo dos formuladores está relacionado ao restrito conhecimento, desses, da realidade cotidiana das populações que são objetos das políticas públicas. A principal fonte de informação e inspiração para a elaboração de políticas públicas vem dos dados secundários fornecidos, em grande parte, por instituições públicas de pesquisa, informações genéricas e de caráter preponderantemente descritivo e pouco explicativo, incapazes de refletir sentimentos de angústia e ansiedade das populações. As políticas públicas retratam interesses e visões de mundo dos que estão no governo, são expressões de poder político e consequentemente, num estado democrático, aceito pela maioria da população. Aceito pela maioria da população não é sinônimo de unanimidade e não subtrai a diversidade, há conflitos de interesses tanto internos do governo como com a sociedade civil, impondo fóruns ou arenas em que conflitos, mobilizações e negociações produzem disputas pelo poder e interferências nas políticas públicas.

Nos últimos anos as políticas de desenvolvimento do rural passaram por algumas transformações resultantes, relativamente, da pressão dos movimentos sociais, originando, em certa medida, maior participação dos interesses das populações locais. Os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDR) são exemplos dessas transformações, contando com a participação dos representantes da sociedade local, e a profusão desses, conforme as palavras de Abramovay (2003, p. 57), “(...) é a mais importante inovação institucional das políticas públicas no Brasil democrático”. Como em qualquer âmbito das relações pessoais há disputas pelo poder ou imposição de interesses, os conselhos municipais não podem ser identificados, ingenuamente, como expressões das vontades ou anseios da sociedade local abrangente, tendo em vista que parte das deliberações encontra-se, relativamente, subjugada a poderes locais dominantes. A ampliação dos espaços públicos de participação é expressão de uma nova institucionalidade democrática que intenta aproximar a sociedade civil e a autoridade estatal. Essa aproximação tem como âmbito o município, local, como destaca Delgado et al., (2007, p. 08), em que “as oligarquias tradicionais tinham arraigados seu poder e sua capacidade de arregimentação política”.

Os poderes locais configuram-se em redes, segundo Paulillo (2000), construídas sob influência ou reflexo das características dos atores sociais (legitimidade, reputação e informação) e das conexões (regras e intensidade da interação), configurando-se em determinada densidade institucional. Conforme esse mesmo autor salienta, a formulação e implementação de políticas públicas são resultado de arranjos institucionais, constituídos por organizações de interesses privados específicos, agências públicas governamentais e não governamentais. Levando em consideração as reflexões de Abramovay (2003), Delgado et al. (2007) e Paulillo (2000), pode-se inferir que as políticas de desenvolvimento

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rural refletem, em certa medida, mais os interesses dos grupos dominantes, agora locais (oligarquias tradicionais), do que daqueles que são, inicialmente, os principais beneficiados pelos programas de desenvolvimento rural.

A discussão sobre desenvolvimento rural e políticas públicas está, relativamente, inserida na problemática sobre pobreza rural, desigualdade regional e sustentabilidade; ambicionando a compatibilidade dessas com o desenvolvimento econômico e social. A discussão sobre como solucionar tal equação permeia questões como participação, ação coletiva, articulação e compartilhamento de poder. A maior discussão e aprofundamento sobre essas questões constituirão a base para o desenvolvimento natural da sociedade, valorizando ambições da população, traduzindo anseios veementes de alcançar determinado objetivo e/ou obter sucesso nos aspectos afetivos e profissionais. A intervenção do poder público a partir de políticas públicas, concebidas sem a participação da sociedade civil, pressupõe profanar essas ambições da sociedade civil. Traduz anseios e ambições do poder público, introduzindo forçosamente visões de mundo, talvez repletas da mais pura magnanimidade, daqueles que não conhecem as agruras da vida cotidiana de uma determinada população. Nessa perspectiva, o problema de pesquisa, que emerge dessa discussão, busca compreender como as representações da sociedade civil local podem conquistar autonomia dos espaços públicos de participação em relação às instâncias de poder estatal. Para essa compreensão, exigi-se a exploração das interações entre desenvolvimento territorial, políticas públicas e atores sociais. A reflexão sobre estas três questões, desenvolvimento territorial, políticas públicas e atores sociais, produziu inquietações que, em certa medida, motivaram o presente estudo. As três questões estão compreendidas na proposta do Governo Federal de desenvolvimento territorial (integrando espaços, atores, mercados e políticas públicas) e podem ser observadas nas relações entre organizações representantes do poder público (federal, estadual e municipal) e da sociedade civil local. Para apreender a interação entre desenvolvimento territorial, políticas públicas e atores sociais, objetivou-se estudar essas organizações. Mas como ou onde captar a interação entre essas três questões? Como passo inicial, para dispormos de material de análise, foi conhecer as distintas concepções sobre desenvolvimento rural e políticas públicas das representações das organizações do poder público (federal, estadual e municipal) e da sociedade civil local. Como essas concepções, sobre desenvolvimento rural e políticas públicas, expressam, relativamente, relações de poder, tínhamos então a interface entre as três questões. Ou seja, as relações de poder são expressões dos atores sociais e o amalgama deste último com a concepção sobre desenvolvimento rural e políticas públicas. A partir deste pressuposto, um dos objetivos da pesquisa passou a ser a identificação dos distintos entendimentos ou concepções sobre desenvolvimento rural e políticas públicas das organizações envolvidas, direta ou indiretamente, com o projeto de desenvolvimento territorial/rural do poder público. Concomitante a este objetivo procurou-se conhecer a idealização do papel dos distintos atores na promoção do desenvolvimento territorial/rural.

Para encontrar respostas para as inquietações apresentadas e para alcançar os objetivos elencados anteriormente, o estudo partiu, inicialmente, das referências do Governo Federal para o desenvolvimento rural sustentável, analisando os documentos oficiais disponíveis no sítio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

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Subsequente ao exame dos documentos oficiais, a pesquisa prosseguiu com entrevistas aos representantes das organizações relacionadas com a proposta de desenvolvimento territorial/rural do Governo Federal. As declarações coligidas foram obtidas junto aos representantes legais das organizações do poder público e da sociedade civil localizadas nos municípios de Canguçu, Pelotas e São Lourenço do Sul. A escolha destes municípios para o estudo pautou-se principalmente no conhecimento prévio da região e dos atores locais, pela fragilidade no que diz respeito às condições econômicas e sociais e por estarem inseridos dentro do “Território Sul do RS”3 do Programa Territórios da Cidadania do Governo Federal. O “Território Sul do RS” está localizado na região denominada de Metade Sul do Rio Grande do Sul, região na qual se identificam áreas de pobreza rural (Campanha, Planalto Sul-Riograndense e parte da Depressão Central). Nas últimas décadas, principalmente de 1980 e de 1990, a Metade Sul passou por momentos de crise, acentuando gradativamente a desigualdade regional. Concomitante a esses momentos de crise, há observação de processos avançados de degradação ambiental e precariedade das condições de vidas da população situada nas periferias urbanas e no meio rural. Aspectos que constituem a essência da problemática sobre pobreza rural, desigualdade regional e sustentabilidade e intrinsecamente ligados a discussão atual sobre desenvolvimento rural e políticas públicas.

Pelos aspectos rapidamente apresentados da região de estudo pode-se, grosso modo, destacar que a mesma constitui-se num ambiente de profusão de problemas e de discussões sobre as questões referidas anteriormente. Esse ambiente proporciona um instigante fórum de debate sobre questões identificadas com o desenvolvimento rural e, consequentemente, com a agricultura familiar. O fórum de discussão abrange um representativo número de atores de diversos segmentos da sociedade, contando com organizações públicas oficiais4, representações dos movimentos sociais articulados5 e representações dos agricultores familiares.6 Chamamos a atenção para ordem de apresentação dos atores sociais, em que o elemento de ordenamento está relacionado, em certa medida, com o grau de poder (do maior para o menor) que cada um desses tem na defesa de interesses, ora prevalecendo interesses próximos, ora particulares. A relação de interesses entre os atores sociais, que discutem a problemática do desenvolvimento territorial/rural, está mediada, em algum grau, pelo entendimento que cada um deles tem sobre desenvolvimento rural, políticas públicas e sobre o seu papel na promoção destes.

Utilizamos a mesma diferenciação, apresentada logo acima (organizações públicas oficiais, representações dos movimentos sociais articulados e representações dos

3 Sobre o Território Sul do RS ver Brasil- MDA/SDT (2006). 4 Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA; Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA; Instituto Rio Grandense do Arroz - IRGA; Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária - FEPAGRO; Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural - ASCAR – EMATER/RS; Universidades, etc. 5 Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor - CAPA; União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu – UNAIC; Associação de Produtores Agroecológicos da Região Sul do Estado do Rio Grande do Sul - ARPA-SUL; Cooperativa Sul Ecológica de Agricultores Familiares - SUL-ECOLÓGICA, etc. 6 Associações e Cooperativas de Produtores e Agricultores Familiares, Sindicatos Rurais e de Trabalhadores Rurais, etc.

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agricultores familiares), para estruturar a análise das informações obtidas nas entrevistas com os interlocutores.7 Essa estrutura permitiu identificar com maior clareza as distintas concepções sobre desenvolvimento rural e políticas públicas, revelando, em algum grau, as disputas de interesses, tanto internas como entre grupos. As entrevistas constituíram-se o principal objeto de análise deste trabalho. Foram 21 declarações de representantes de organizações (chefes, coordenadores, diretores, presidentes) localizadas no meio rural e urbano dos três municípios, entre o período de 2006 e 2009. Os temas abordados nas entrevistas estavam inicialmente relacionados ao desenvolvimento rural, pobreza rural e políticas públicas, e mais recentemente (2009) à problemática do planejamento (elaboração e implementação de políticas públicas).

A interpretação e análise das declarações procuraram identificar as noções e concepções (entendimentos) dos entrevistados sobre os temas apresentados acima, mas também possibilitaram identificar, em certa medida, aspectos psicológicos relacionados ao desempenho do processo social, subentendendo-se, neste, a diversidade de áreas do viver. A diversidade de áreas do viver mostra distintas formas de pensar ou idealizar a realidade. No discurso dos entrevistados podemos observar essa diversidade, principalmente quando estão em relação, já que é nesta que aflora os diferenciais de poder. A partir dessa perspectiva analítica, a pesquisa também tinha por objetivo observar e pensar sobre o comportamento das pessoas. Para este objetivo tivemos que recorrer, em certa medida, as contribuições de Norbert Elias8 e Clifford Geertz9. 2 DESENVOLVIMENTO RURAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: difer entes percepções A origem das informações apresentadas e analisadas nesta seção é resultado de entrevistas realizadas com representantes de organizações ligadas aos poderes públicos (federal, estadual e municipal), movimentos sociais e agricultores familiares. A escolha desses três grupos de organizações permitiu identificar distintas concepções sobre desenvolvimento rural e políticas públicas, revelando, em certo grau, apegos e interesses. Como a perspectiva analítica e interpretativa está sob influência das contribuições de Elias e Geertz, optamos por entrevistar somente os representantes de cada organização (chefes, coordenadores, diretores, presidentes), por entendermos, subsidiado pelos autores referenciados, que os depoimentos dos representantes das organizações podem trazer interpretações que refletem as concepções das suas organizações, mas também as pessoais. Para as entrevistas com os distintos representantes foi elaborado um roteiro único10 que abordou, inicialmente, três temas: desenvolvimento rural, políticas públicas e pobreza rural. O roteiro de entrevistas objetivou obter informações dos representantes das organizações, relativo a cada um dos temas, sobre: entendimento/concepção, tipos de

7 Em trabalho anterior, essa diferenciação foi utilizada para a análise dos resultados. Ver Fialho e Waquil (2008). 8 Ver Elias (1994, 1999) e Elias e Scotson (2000). 9 Ver Geertz (1997). 10 O roteiro único foi uma opção metodológica para identificar o grau de conhecimento e aprofundamento das distintas organizações sobre cada um dos temas. Desta forma, obtemos depoimentos com forte influência da literatura contemporânea e relativo aprofundamento e outros que expressaram quase total desconhecimento.

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ações, gestão e participação e, por fim, o papel da organização no que diz respeito a cada um dos temas. A análise e interpretação das informações apresentam-se estruturadas em três grupos de atores sociais (organizações públicas oficiais, movimentos sociais articulados e representações dos agricultores familiares). Em cada um dos grupos serão apresentados, separadamente, os resultados sobre os temas desenvolvimento rural e políticas públicas, respectivamente. Cabe salientar que, por princípios éticos, não serão identificadas as organizações e seus respectivos representantes. 2.1 Desenvolvimento Rural e Políticas Públicas na Visão das Organizações Públicas Oficiais

O material de análise, referente às declarações dos representantes das organizações públicas oficiais, apresentou formulações, idealizações e entendimentos que expressam o papel institucional das organizações, mas, também, opiniões pessoais (julgamentos ora favoráveis ora divergentes com o que defendem institucionalmente). Comportamento legítimo, já que as pessoas têm a liberdade de examinar seus pontos-de-vista, através do exercício de críticas e autocrítica, objetivando aprimorar concepções sobre determinado tema ou assunto. As declarações apresentaram divergências também em relação as demais organizações pares; divergências que expressam disputas, por vezes ocultas, de espaço, visibilidade ou poder. Corroborando com os apontamentos do relatório de pesquisa Delgado et al. (2007, p. 25), as disputas (dimensão conflitiva) são próprias do processo de constituição do desenvolvimento territorial, apesar de dificultar, relativamente, o processo de articulação dos atores sociais. 2.1.1 Desenvolvimento Rural: influências teóricas e empíricas no discurso das organizações públicas oficiais

Para inicia esta seção destacamos parte do depoimento entusiasmado, sobre desenvolvimento rural, do representante de uma organização pública oficial:

A idéia vigente na literatura ou nas academias brasileira é de crescimento econômico e de aumento de produtividade, é essa a idéia que vigora na questão do agronegócio. É exportar e incorporar bens e serviços. Eu tenho uma visão que o desenvolvimento rural não é só isso, mas é importante para o país, nos temos que gerar divisas, temos que gerar emprego, renda, tem que ter toda uma dinâmica econômica que está por traz disto. Agora, se as pessoas que estão lá no meio rural não tiverem mais qualidade de vida, não tiverem mais felicidade, não tiverem a preservação da cultura, não existe desenvolvimento. (Organização Pública Oficial “A”)

As palavras do representante da organização pública oficial “A” refletem dois momentos ou modos de pensar desenvolvimento rural, expressando num primeiro momento o entendimento amplo e talvez institucional e no segundo a sua visão pessoal, mas que não está totalmente desvinculada do primeiro. No rápido passar de olhos sobre esta fala, observa-se que ela está em consonância com as diretrizes do poder público federal sobre desenvolvimento territorial, demonstrando certa preocupação de conjugar interesses do governo federal (geração de divisas) com o da sociedade (qualidade de vida, preservação da cultura, felicidade). Para articular tais interesses, inspira-se nas contribuições de Amartya Sen (2000), numa perspectiva de empoderamento da sociedade. Exercício de compor uma noção de desenvolvimento rural capaz de conjugar velhos e novos desafios. Para o interlocutor a idéia de desenvolvimento rural está contida, em certa

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medida, numa perspectiva maior (territorial), compreendendo aspectos além do econômico, mas submisso a este.

No depoimento do representante da organização pública oficial “B” observamos um discurso mais próximo das ambições da população local, mas sob influência do debate teórico/prático quando referir-se ao termo segurança alimentar. A noção de desenvolvimento rural deste entrevistado (“B”) expressa especial atenção a qualidade de vida das famílias rurais, conforme destaque:

Desenvolvimento rural são várias ações que acontecem num determinado local, numa determinada região que visam a melhoria da qualidade de vida das pessoas, onde se movimentam projetos, atividades em prol da melhoria da qualidade de vida. Na verdade, o desenvolvimento rural proporciona para as famílias rurais é a qualidade de vida, envolvendo questões de saúde, saneamento básico, da renda da agricultura, da alimentação, da segurança alimentar. (Organização Pública Oficial “B”)

Para o representante da organização pública oficial “B”, desenvolvimento rural inicia na família rural, destacando o bem-estar das pessoas (qualidade de vida). A renda é incorporada ao discurso como apêndice necessário para o desenvolvimento e, consequentemente, para o alcance da qualidade de vida. A distinção, referindo-nos a renda, entre o grau de importância (posicionamento no discurso) dado pelo primeiro (“A”) em relação ao segundo (“B”) entrevistado pode indicar distanciamento ou proximidade com a realidade e, também, manifestar o objeto principal de sua ação, resultados quantitativos (renda) ou qualitativos (qualidade de vida), respectivamente. Entretanto, as duas organizações pensam desenvolvimento rural como resultado da intervenção do Estado com a movimentação de projetos e atividades. As comparações entre urbano e rural são usuais e traduzem, quando são realizadas por representantes do poder público oficial, julgamentos de valores em que o urbano é expressão de qualidades e o rural aquém destas, como o observado no depoimento do representante da organização pública oficial “C”:

Desenvolvimento rural é uma maneira que nós possamos proporcionar ao nosso morador do meio rural uma vida digna, e dar facilidade que tem o homem da cidade. Que ele viva dignamente, que ele consiga se desenvolver de uma maneira sustentável, que ele não degrade sua propriedade e consiga se desenvolver mantendo a capacidade produtiva da propriedade e que ele, além de viver bem, possa levar uma vida social digna. Que ele tenha momentos para diversão, para lazer, para ele e sua família, e se nós não promovermos esse desenvolvimento rural sustentável vai acabar, a cada vez, aumentando o êxodo rural. (Organização Pública Oficial “C”)

Inicialmente observamos no discurso do representante da organização pública oficial “C” que a produção e a geração de renda encontram-se num grau de importância inferior ao demonstrado nos discursos anteriores, mas necessárias para garantir as facilidades que tem o homem da cidade. A questão ambiental é tratada com atenção, referindo-se a ela principalmente como meio para garantir a capacidade produtiva da propriedade e de geração de renda. O emprego da palavra sustentável, pelo entrevistado, expressa a necessidade de relacionar desenvolvimento rural com a preservação ambiental e, consequentemente, com a manutenção ou melhoramento das condições de reprodução das famílias a partir da produção agrícola. O relativo destaque a preservação das condições de produção da terra pelo entrevistado pode ser justificado por dois aspectos. O entrevistado representa uma organização que tem significativa importância para a

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economia local, visto que a região dependente economicamente do setor agrícola e que mais da metade da população do município reside na área rural. Ou seja, garantir resultados favoráveis para a economia da região e a permanência da população no meio rural, já que as cidades da região não têm condições de absorver uma nova aceleração do êxodo rural. O segundo aspecto está relacionado às características da realidade rural da região, principalmente pelo significativo número de propriedades rurais familiares, pelos níveis de pobreza rural e pelas características do relevo da região (acidentado), entre outros. O estudo de Finco et al. (2004) demonstra que há relação entre problemas de degradação ambiental e pobreza rural, justificando, em certa medida a preocupação expressa pelo entrevistado sobre degradação ambiental. De modo geral, podemos perceber nos discursos que a noção de desenvolvimento rural está fortemente ligada ao ambiente institucional. Nesse sentido, a construção da noção ou idéia de desenvolvimento rural depende, significativamente, dos interesses e da forma de atuação que caracteriza cada organização pública oficial. Os discursos, grosso modo, estão relacionados com o grau de distanciamento (físico – extensão, acompanhamento e pesquisa) da realidade, quanto mais próximo da ação prática, mais aplicado está a noção de desenvolvimento rural e reflete, relativamente, os anseios da sociedade civil local. 2.1.2 Políticas Públicas e Organizações Públicas Oficiais: dialogar é preciso A discussão sobre políticas públicas para o meio rural, em boa parte dos casos, está relacionada com os problemas da agricultura, especificamente com a produção e comercialização dos produtos. Os problemas da agricultura, segundo Pinheiro e Carvalho (2003), podem ser classificados em quatro grupos que tratam dos baixos rendimentos da atividade agrícola, da variabilidade dos preços e das produções, dos problemas estruturais e, por fim, da dilapidação dos recursos naturais.11 Entretanto, quando a discussão amplia horizontes, incorpora âmbito territorial, necessitamos abordar, no rural, outros problemas, além dos agrícolas, que exigem certa generalização dos conteúdos referentes à intervenção do poder público, passando de políticas agrícolas para públicas. Neste sentido, de acordo com as contribuições de Oszlak e O`Donnell (1976), política pública constitui um conjunto de ações, sob intervenção do Estado, direcionada a uma questão de interesse da sociedade. Para os autores, a política pública também pode caracterizar-se pela omissão do Estado e que, consequentemente, dada orientação normativa, afetará processo social de desenvolvimento. Com base nas contribuições acima, entre outras, iniciamos a análise e interpretação dos depoimentos, sobre políticas públicas, dos representantes das organizações públicas oficiais. O exame dos depoimentos desses atores sociais mostrou, grosso modo, identificação com a literatura especializada, como observado nos depoimentos a seguir:

Políticas públicas são aquelas que satisfazem a necessidade de quem necessita delas. A política pública pode ser bem intencionada, mas se não tiver conexão com o meio real, onde as necessidades existem, ou com as necessidades dos grupos sociais, elas ficam descoladas da realidade. (Organização Pública Oficial “A”)

11 Sobre a intervenção do poder público na agricultura, ver Delgado (2001).

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Para o representante da organização pública oficial “A”, a intervenção do poder público deve atender os anseios da população para adequar-se a realidade e alcançar melhores resultados. A noção de política pública, desse entrevistado, leva a inferir que não está identificando o rural unicamente com o agrícola, mas com um contexto mais amplo em que questões sociais, de modo geral, também são relevantes para o processo de desenvolvimento. Contrapondo essa perspectiva de política pública, destacamos o depoimento do representante da organização pública oficial “B”. Para este, a política pública está diretamente relacionada a políticas de governo, partidárias, e numa perspectiva produtivista. Entretanto, os dois depoimentos destacam, em maior grau no segundo, que há uma determinação do poder público (perspectiva top-down) quanto à política pública. Salienta-se que a diferenciação entre os depoimentos tem relação com a proximidade do primeiro com o poder público federal e do segundo com a população local. Diferenciação que mostra, no primeiro, um discurso mais próximo dos ideais do poder público federal (noção de território) e, no segundo, como poderemos observar nos depoimentos dos representantes das representações dos agricultores familiares, com os aspectos relacionados à atividade agrícola produtiva.

Políticas públicas são políticas dos governos. Refletem a maneira de ver do governo, dos deputados, destinação de verbas (...). O próprio crédito não deixa de ser política pública, programas do governo, isso são políticas né! (Organização Pública Oficial “B”)

As perspectivas de intervenção e, relacionada diretamente a esta, de imposição são expressas nas opiniões dos representantes das organizações públicas oficiais “B” e “D”, obedecendo hierarquias e interesses alheios aos da população. Pelo menos na perspectiva desses representantes, podemos identificar uma distância entre o que o poder público federal prega institucionalmente, a partir da análise dos documentos oficiais, e a prática.

Não sei, a participação da sociedade às vezes fica um pouquinho a margem da elaboração dessas políticas, mas muitas vezes o governo na pressa em colocar em ação um tal política eles mesmos decidem lá por Brasília e vem baixando para as capitais e vem para os municípios. (Organização Pública Oficial “B”)

O depoimento do representante da organização pública oficial “D” corrobora com as afirmações do relatório de pesquisa IICA-OPPA/CPDA/UFRRJ (DELGADO et al., 2007) no que diz respeito aos espaços públicos de participação como expressão de uma institucionalidade democrática. Não obstante, está relacionada à identificação dos conselhos municipais com as oligarquias tradicionais locais, mantendo o poder e capacidade de arregimentação política.

Geralmente vem pelo governo federal, depois pelo estadual e municipal. Ela vem descendo as hierarquias. São programas que são pensados e produzidos por técnicos do governo e que são aplicados dentro do município. E os conselhos municipais é que fazem a distribuição, dessas políticas públicas, dentro do município. São os responsáveis pela distribuição e administração dessas políticas públicas dentro do município. Mas infelizmente, às vezes, a atuação do conselho está muito ligada ao governo e acaba fazendo de uma política pública uma política de governo ou até partidária. Infelizmente acontece isso aí. (Organização Pública Oficial “D”)

As oligarquias locais são expressão de um passado que ainda, apesar dos esforços, continua presente nas relações entre poder público, sociedade civil e interesses políticas partidários. Essas oligarquias alimentam disputas de poder que objetivam a permanência no governo, negligenciando interesses da sociedade em favor dos próprios. Talvez o relato

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do representante da organização pública oficial “B”, expondo a dificuldade de articulação dos conselhos, seja expressão das disputas de poder entre as oligarquias locais.

Agora isso precisa muito de organização, os conselhos precisam se conversar, por que cada conselho atua no seu “mundinho” e as vezes não conversa com outro tipo de conselho para que essas ações sejam integradas. Cada um quer atuar, por exemplo, na saúde e na educação, separadamente e isso acaba atrapalhando o desenvolvimento de muitas comunidades. (Organização Pública Oficial “B”)

Talvez o caminho para o desenvolvimento com maior participação da sociedade civil esteja no planejamento, mas num planejamento em políticas públicas visto, de acordo com as contribuições de Oliveira (2006), como um processo e não como um produto técnico. Na nossa perspectiva, planejamento é o elo entre pensar desenvolvimento e resultados das políticas públicas. O planejamento como um processo de participação dos atores sociais na construção política e social de uma visão de mundo comum (da sociedade, distinta das pessoais), possivelmente o comprometimento da sociedade será maior ao longo do caminho e, consequentemente, em cada etapa (pensar e idealizar o futuro, elaboração das ações, implementá-las e apropriar-se dos resultados). Há nesse processo a assinatura da sociedade civil e se há autoria, há orgulho pelo que realizou. Apesar do empenho do poder público federal, com a elaboração do documento “Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável” (BRASIL/MDA/SDT, 2005b), alguns depoimentos identificam o planejamento como um limitador para o desenvolvimento:

(...) deveria começar na comunidade, deveria ter um plano de desenvolvimento, fazer um planejamento, colocar isso no papel (...) e esse plano deveria direcionar todas as ações e principalmente as políticas públicas para a maior necessidade dentro da sua comunidade. (Organização Pública Oficial “P”)

Outro entrevistado, no destaque seguinte, chama as universidades à responsabilidade, mas destaca a limitação de diálogo entre os diversos atores sociais e impondo ao poder público municipal a responsabilidade de criar fóruns. Perspectiva que idealiza uma relação de trocas entre as organizações, favorecendo, relativamente, a aproximação e a cumplicidade.

Também as universidades têm um papel fundamental por que elas detêm muito conhecimento e esse conhecimento contribui muito para o desenvolvimento das políticas públicas. (...) Na nossa região a gente tem percebido que temos um pólo de conhecimento com várias universidades atuando e as Embrapas, e às vezes, isso, não reflete no desenvolvimento das comunidades rurais. É preciso mais união das entidades, a prefeitura trazer mais essas entidades para o município e dar o seu suporte para que isso dê desenvolvimento com maior naturalidade. (Organização Pública Oficial “M”)

Para finalizar esta seção, destacamos o depoimento do representante da organização pública oficial “A” que, apesar de estar relativamente afinado com as referências teóricas sobre desenvolvimento rural, expressa certo conservadorismo no sentido de identificar a capacidade da instituição que representa de interpretar a realidade. Também propõe pensar e discutir desenvolvimento no modelo identificado, pelos estudiosos e agências de desenvolvimento, como ultrapassado (dentro dos ministérios). E para não contrapor seu discurso, pensa em inverter um pouco a flecha da relação entre poder público e sociedade civil.

Nós não podemos ser unicamente beneficiários de políticas públicas, mas nós devemos ajudar a formular políticas públicas, ajudar aos ministérios (...). Pela capacidade de articulação e pela capacidade de estar presente em várias regiões, nós temos condições e competência de

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interpretar o que está acontecendo nas regiões. E nossa pretensão é que, ao invés de esperar que os editais ou que as políticas sejam formuladas no âmbito dos ministérios, a gente participe junto com essas pessoas que organizam isso, dentro dos ministérios (...). É inverter um pouco a flecha, não esperar que ela desça para poder apropriar (...). (Organização Pública Oficial “A”)

2.2 Desenvolvimento Rural e Políticas Públicas: o dilema, dos movimentos sociais articulados, de estar entre o céu e a terra

Os movimentos sociais são peças importantes para o ideal de desenvolvimento rural que objetiva o poder público oficial, principalmente pela capacidade de mediar relações entre poder público e sociedade civil. As observações de campo e os depoimentos dos representantes dos movimentos sociais ratificam essa atribuição do poder público federal, mas há, entre os movimentos sociais, ruídos que restringem, em certo grau, o desempenho dos mesmos como atores sociais dedicados, relativamente, a mediação e articulação. 2.2.1 Desenvolvimento Rural: ideologias e movimentos sociais articulados

Os depoimentos dos representantes dos movimentos sociais articulados caracterizaram-se, grosso modo, por certa indecisão sobre qual perspectiva trabalhar (institucional ou pessoal). Outra observação mostra uma representativa disputa no âmbito ideológico entre os pares, repercutindo na dificuldade de articulação para a promoção daquilo que idealizam com desenvolvimento rural. O exame das falas desse grupo de atores sociais permitiu identificar como emblemática a declaração do representante dos movimentos sociais articulados “E”.

Desenvolvimento rural é quando uma comunidade (...) toda ela se desenvolve sem exclusão de alguns. Muitas vezes ocorre crescimento de alguns, enquanto que alguns ficam na submissão. Então desenvolvimento, para mim, é quando toda uma comunidade alcança qualidade de vida de uma maneira geral, consegue ter direitos respeitados, consegue ter cidadania. (Movimento Social Articulado “E”)

Podemos observar na declaração do representante do movimento social articulado “E” relativa preocupação com a questão da distribuição de recursos de forma igualitária entre grupos sociais e pessoas. Concepção que, em certa medida, atenta para questões que estariam vinculadas as distorções produzidas pelo processo de desenvolvimento caracterizado pelo favorecimento de poucos no passado. Conjectura-se que a significativa relação entre desenvolvimento rural e igualdade, expressa nas palavras do entrevistado, é reflexo das experiências do passado e de um posicionamento previdente. Provavelmente, no passado, determinados grupos sociais (excluídos), principalmente de regiões marginalizadas, não possuíam reconhecimento, condições e nem direitos assegurados para participar da vida em sociedade, quanto mais ter acesso a políticas públicas. Outro aspecto deste discurso é que desenvolvimento rural, nas palavras do entrevistado, não está diretamente vinculado às condições de reprodução econômica, ou seja, não impõe responsabilidade ao poder público de produzir condições para o desenvolvimento, como, por exemplo, disponibilizar linhas de crédito para atividade agrícola ou outras políticas com objetivos de fomentar o aumento da produção. Talvez imponha, indiretamente, responsabilidade ao poder público de assegurar igualdade de condições a todos os segmentos sociais, fornecer o básico para alcançar qualidade de vida digna (por exemplo: saneamento, saúde, educação) e, consequentemente, serem reconhecidos como cidadãos. A utilização da palavra crescimento porventura indique que o econômico tem espaço

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(importância) na concepção de desenvolvimento rural do entrevistado, mas não como problema premente. Nesse sentido, suspeita-se que, de acordo com as possíveis interpretações sobre as palavras do entrevistado, há segurança e reconhecimento da capacidade produtiva da população (pouca dependência do poder público), desde que os direitos e as condições sejam igualmente garantidos a toda sociedade. Essa interpretação vem corroborar com o que expressamos, no início do trabalho, ao reproduzirmos a parábola da mariposa/borboleta. Ou seja, uma compreensão de desenvolvimento que visualize nas pessoas (agricultores familiares) a capacidade de determinar suas expectativas quanto ao futuro, talvez na perspectiva de desenvolvimento de Sen (2000), e não, simplesmente, adaptá-las às disponibilidades/intervenções do poder público. Percebe-se, haja vista as “Diretrizes para o Desenvolvimento Rural Sustentável” (BRASIL/MDA/CONDRAF, 2006), elevado grau de importância do aspecto econômico na promoção do desenvolvimento rural. Levando em consideração essa óptica, o desenvolvimento rural e a satisfação da população rural são, grosso modo, conseqüência dos resultados econômicos. Desta forma, há simplesmente um esforço em agregar ao econômico outros aspectos para alcançar o desenvolvimento rural. O caminho para alcançar o desenvolvimento rural, na perspectiva de boa parte dos entrevistados, pode ser descrito da seguinte forma: inicia com a questão econômica, passa pelo aspecto ambiental/ecológico e, por fim, introduz a questão cultural, como conseqüência desta miscelânea chega-se a qualidade de vida e ao desenvolvimento rural. Não é uma crítica específica, mas uma constatação que perpassa pelo emaranhado de idéias ou noções sobre desenvolvimento rural. A análise dos depoimentos permitiu constatar que a noção de desenvolvimento rural passa por um processo de transformação em que a tônica foi a adaptação. Adaptação caracterizada pela introdução, conforme exigências do momento, de elementos que possibilitassem dar uma nova roupagem a noção de desenvolvimento rural. Não há uma noção nova de desenvolvimento rural, mas transformada. Talvez, por isto, que pensar em desenvolvimento rural sem revisitar os velhos elementos dos discursos, sobre progresso, crescimento e desenvolvimento,12 seja tão difícil.

A investigação baseada nos depoimentos dos representantes dos movimentos sociais articulados permitiu identificar alguns elementos que demonstram certo embate ideológico. Embate ideológico constituído por sistemas de idéias sustentados por determinados grupos sociais, refletindo compromissos institucionais, políticos ou econômicos distintos. Esse campo de disputa, principalmente numa perspectiva de desenvolvimento rural, produz conseqüências nem tanto positivas, visto que no meio desse embate estão populações que não consideram os mesmos aspectos ideológicos que as organizações que estão interessadas no fomento do desenvolvimento rural. As populações rurais, em boa parte, imbuem de significativo grau de importância aspectos ideológicos vinculados a princípios morais e religiosos, refletindo preceitos socialmente estabelecidos pela sociedade ou por determinado grupo social. As diferentes posições ideológicas se entrelaçam e se influenciam mutuamente, constituindo, conforme Schubert (1991) apud

12 Paula (1993) e Favareto (2006) apresentam extensa discussão referente à trajetória sobre a idéia de desenvolvimento.

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Frey (2000, p. 217), uma ordem política a partir de estratégias políticas de conflito e de consenso.13 Identificamos na literatura dedicada a questão do desenvolvimento rural/territorial e em boa parte das noções elaboradas pelos representantes das organizações, o princípio da articulação ou relação (exemplo de expressões relativas ao princípio: ações articuladas, processo sistêmico, processos vinculados, processo de interação das relações, atuação combinada e complementar, conjunto de relações, entre outros). Esse princípio pode ser o mecanismo ou a engrenagem potencial para o desenvolvimento rural. A articulação se dá num ambiente de disputas ideológicas e de permanente cultivo das diferenças entre as organizações, emperrando ou dificultando o funcionamento dessa engrenagem e, por conseguinte, comprometendo o processo de desenvolvimento. Entretanto, não podemos esquecer que o desenvolvimento é resultado, em certa medida, de uma atmosfera em que a profusão de mobilizações e alianças constitui a essência da articulação. 2.2.2 Políticas Públicas: movimentos sociais articulados As concepções de políticas públicas dos diferentes representantes dos movimentos sociais articulados são muito próximas entre eles e com o discurso das organizações públicas oficiais, mas subsidiadas pela experiência empírica. O termo políticas públicas, nos depoimentos analisados, parece estar ligado ao econômico (recurso), há um aporte financeiro que o poder público tem obrigação de disponibilizar, refletindo uma perspectiva distributiva das políticas públicas e, talvez, sugestiva de uma prática clientelista. Estas observações podem ser identificadas no depoimento do representante da organização “E”.

Políticas públicas é todo o serviço que o poder público tem a obrigação de manter ou de prestar para a sociedade. A gente acha que as políticas públicas são muito pensadas no âmbito federativo, muito pouco locais, não respeita muito as comunidades locais (...). (Movimento Social Articulado “E”)

O grupo identificado como movimentos sociais articulados é heterogêneo, mostrando diferentes opiniões ou visões sobre políticas públicas. Observamos que aquelas organizações não-governamentais que trabalham diretamente com o meio rural, mas os recursos humanos, apesar de competentes, não tem vínculo direto com a terra (são, em boa parte, de origem urbana), estruturam suas lógicas de ação direcionadas à disponibilidade de recursos financeiros pelo poder público, principalmente, federal. Entretanto, independente da organização, há uma crítica a necessidade de adaptabilidade dos agricultores familiares a política pública ofertada. Não há uma cultura da demanda, talvez pela incapacidade do poder público de escutar e identificar os anseios dos agricultores familiares, repercutindo no aumento do risco da atividade produtiva e da restrição, conforme depoimento abaixo, da capacidade de decisão do agricultor:

O banco tende a dizer “tenho crédito pra isso”, e o agricultor, que precisa de recurso, vai lá e pega o dinheiro pra plantar milho, muito embora o crédito que o banco te libere é só para plantar feijão. A gente acha que não se pode esperar que os outros digam em que que a gente deve investir, nós é que devemos saber disso. (Movimento Social Articulado “E”)

Observamos também que há representações dos movimentos sociais que tem maior aproximação, e conseqüente legitimidade, com os agricultores e outras com o poder público; característica que diferencia a percepção delas sobre a capacidade de diálogo com 13 Ver as contribuições de Frey (2000) sobre “policy analysis”.

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o poder público. Os depoimentos dos representantes dos movimentos sociais articulados “N” e “F” são amostras dessa diferenciação de relação com o poder público federal. O primeiro, representante do movimento social articulado “N”, destaca que a sua organização não tem liberdade de diálogo com o poder público, mas confirma que as intervenções governamentais são boas, mas aquém da expectativa, principalmente por que são pensadas em outras instâncias.

Eu falo por mim, pela minha organização, pela minha cooperativa, e ela participa muito pouco e deveriam participar mais. (...) não houve espaço para a minha organização participar, acho que os programas são bons, mas pensados em outras instâncias. (...) no momento que dão espaço a gente vai participar, vai contribuir e, com certeza, os projetos vão andar melhor. (Movimento Social Articulado “N”)

O discurso do representante do movimento social articulado “F” é distinto do anterior, para não dizer antagônico. Não parecem que estejam no mesmo território e município, mas estão. O discurso do representante “F” talvez represente o que o poder público federal concebe como ideal. Nesse sentido, o discurso abaixo pode refletir uma estratégia de sobrevivência e de garantia da manutenção do aporte financeiro disponibilizado pelo poder público federal, expressando o que o outro deseja escutar. Reportando aos fragmentos do depoimento do representante do movimento social articulado “F” apresentados neste trabalho, percebemos que o aspecto econômico (ou recurso) esteve em evidência e o conteúdo do discurso também estava em sintonia com as diretrizes do poder público oficial. Apenas uma constatação que mostra um comportamento estratégico para localizar-se numa posição estratégica, tendo em vista as disputas destacadas na seção anterior e a priorização de interesses próprios.

Aqui nós temos muito claro, nós temos organização, nós não temos nenhum problema de participar. Tanto que quando aparece, o PAA14, nós fomos uns dos primeiros, na agroindústria também. Por quê? Porque é isso, tem cooperativa, tem rede, tem movimento, e a gente dialoga, tem esse espaço de discussão territorial. O território não veio de cima para baixo né? (...) Muitos (territórios) foram comentados pelo Governo, mas nós já tínhamos essa articulação há doze anos. (Movimento Social Articulado “F”)

2.3 Desenvolvimento Rural e Políticas Públicas: o econômico arraigado na percepção das representações dos agricultores familiares

As representações são a linha de frente ou a tropa de choque dos agricultores familiares e que estão imbuídas de legitimidade, tendo em vista que são constituídas pelos mesmos. São associações, cooperativas e sindicatos de agricultores ou produtores rurais constituídas, inicialmente, com o objetivo de defender interesses principalmente frente ao mercado. A essência da agricultura familiar está, relativamente, na atividade agrícola produtiva e esta identificada como principal objeto de intervenção do poder público. Essas intervenções, em boa parte, caracterizam-se por um viés produtivista e, consequentemente, utilizam indicadores econômicos como parâmetros de avaliação. Aspectos que, ao longo dos tempos, estabeleceram-se como representações, para os agricultores familiares, de crescimento e desenvolvimento.

14 Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar.

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2.3.1 Desenvolvimento Rural: a prática como inspiração das idealizações das representações dos agricultores familiares

Os representantes das representações dos agricultores familiares, principais interessados (ou beneficiários) no desenvolvimento rural, mostraram discursos distintos das demais representações, identificados, em certa medida, como diretos e práticos. Os depoimentos destacam a questão econômica, em segundo plano os demais aspectos da vida rural. A análise dos discursos indica que esses aspectos, na percepção dos agricultores familiares, pouco se identificam com a questão do desenvolvimento rural. Podemos inferir que a auto-imagem dos agricultores esteja, basicamente, relacionada à produção de alimentos, e identificando essa mesma percepção quanto à imagem que as pessoas da cidade e o poder público têm sobre eles. Justificamos, por um lado, pela dependência da cidade pelos alimentos produzidos no campo e, por outro lado, pelo governo interferir no rural, quase que exclusivamente, para fomentar a produção agrícola. Isso pode produzir um aumento de importância, na percepção dos agricultores, da questão produtiva e, consequentemente, agrícola, como pode ser observado no depoimento do representante da representação dos agricultores familiares “H”:

Desenvolvimento rural depende de cada um né, força na plantação, e tendo apoio das entidades, prefeitura, sindicato, associação. (Representação dos Agricultores Familiares “H”)

A concepção de desenvolvimento rural está calcada, inicialmente, num determinado individualismo no sentido de depender quase que exclusivamente dos próprios meios para a produção agrícola (“depende de cada um”). Individualismo, talvez, potencializado pelo isolamento que, segundo as contribuições de Marx (1968) ao discutir a luta de classes, deve-se a má condição do sistema de comunicações, o modo de produção e a condição de pobreza. O papel do poder público, na percepção do entrevistado, é assessório, um apoio para o melhor desempenho do agricultor. A relação entre atividade agrícola e desenvolvimento rural é muito forte para o agricultor. A questão da produção está presente no pensamento do agricultor diariamente e permanentemente, fortalecida pelo isolamento das famílias, pela má condição do sistema de comunicações e pelo modo de produção. Outro exemplo que expressa demasiada importância para a questão da produção agrícola é observa na definição de desenvolvimento rural verbalizada pelo representante da representação dos agricultores familiares “J”:

Há 21 anos atrás, para nós termos uma vaca leiteira de 5 litros de leite (ao dia) era boa! Mas hoje em dia já tem vaca de 30 e não tão contente, 30 litros de leite (ao dia). E uma vaca que ia para gado de corte com 160 quilos, 150, hoje tem vaca leiteira que tiram 400 quilos de carne. Como mudou na criação pecuária! Aumentou muito o melhoramento! E isso é o desenvolvimento rural. (Representação dos Agricultores Familiares “J”)

A partir das constatações sobre concentração de atenção do agricultor na questão da produção e dos fatores de isolamento das famílias, de modo geral, pôde-se identificar a relação entre desenvolvimento rural, atividades de lazer e qualidade de vida destacadas por alguns entrevistados. Esta relação é relevante para a qualidade de vida da população rural e um problema que inspira dedicação, como se observa na fala do representante da representação dos agricultores familiares “J”:

Primeiro causo é a luz. A luz aqui (...) é muito fraca, a noite ela não chega aos 115 (volts). (...) Tem muita coisa que tinha que se melhorada no interior. Porque que a criançada do interior vão

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pra cidade? Falta muito lazer pra colônia! (...) Na cidade isso é bem mais fácil passar (o tempo). (Representação dos Agricultores Familiares “J”)

Comparando os diferentes entendimentos ou concepções pode-se inferir que o diálogo não se estabelece de forma harmoniosa entre os diferentes atores. Esse universo de profusão de formas de pensar desenvolvimento rural caracteriza-se por disputas de interesses que, por vezes, não refletem as ambições ou necessidades dos que realmente são os principais beneficiários (ou atores) desse processo identificado como desenvolvimento rural. Há, aparentemente, necessidade premente de qualificar e ajustar o entendimento sobre desenvolvimento rural para realmente atingir os objetivos elencados, primeiramente, pelos agricultores e, posteriormente, das demais representações que estão inseridas no rural. Qualificar os agricultores e seus representantes diretos para que possam participar da discussão com iguais condições de debate, conhecendo detalhadamente o que cada segmento da sociedade, que está incluso nesse campo de disputa, pensa sobre desenvolvimento rural, para que possam impor ao invés de se submeter a idéias ou concepções. A partir do momento que os agricultores se conscientizarem que as organizações presentes no seu meio só existem porque eles existem, e não o contrário, provavelmente as transformações no rural serão mais adequadas aos interesses deles. 2.3.2 Políticas Públicas: representações dos agricultores familiares As entrevistas com os representantes das representações dos agricultores familiares permitiram identificar, grosso modo, dois diferentes tipos de discursos. Esses dois tipos podem ser classificados em representantes das representações dos agricultores familiares de abrangência local e regional. O primeiro refere-se aos representantes de associações de agricultores ou produtores rurais, caracterizados por dedicarem-se preferencialmente a atividade agrícola e, quando necessário, dispõem de alguns momentos para discutir questões relacionadas à organização que representam. Não expressam muito conhecimento sobre as questões propostas na entrevista, são objetivos, evasivos e frequentemente recorrem a exemplos práticos para responder as perguntas. O segundo tipo de discurso é observado nos representantes de organizações que, em boa parte, tem sua sede localizada no urbano e dedicam-se preferencialmente as atividades relacionadas à organização que representam. Nesses depoimentos observamos uma capacidade de discussão, sobre os temas propostos, significativamente melhor do que os representantes do primeiro tipo. A diferenciação entre os dois tipos de discurso, no nosso entendimento, está relacionada ao conhecimento sobre o tema e a participação em espaços de discussão. O depoimento em destaque, logo abaixo, é exemplo do primeiro tipo de discurso:

Muitas vezes eles prometem e não cumprem, a gente vota na pessoa, prometem uma coisa, mas no fim eles acabam esquecendo. (...) Acho que não tem muito problema nessas políticas públicas, mas o único problema é que atrasa às vezes. (Representação dos Agricultores Familiares “J”)

Observa-se que o representante da representação dos agricultores familiares “J” expressa certa confusão entre políticas públicas e partidárias. Após esclarecimentos, ressalta apenas a irregularidade quanto ao cumprimento dos prazos de liberação dos recursos. A relação entre poder público executivo e legislativo é recorrente, como podemos observar, logo abaixo, nas palavras do representante da representação dos agricultores

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familiares “O”. O entrevistado também destaca relações de clientelismo e compadrio como práticas comuns de barganha. Comportamentos dessa natureza são potencializados pela dominação das oligarquias tradicionais e pelo desconhecimento dos procedimentos necessários para acessar políticas públicas. Conforme destaca o relatório de pesquisa IICA-OPPA/CPDA/UFRRJ (DELGADO et al., 2007), a redução de práticas dessa natureza pode ser alcançada com a criação de esferas públicas capazes de modificar as estruturas de poder, redefinindo os padrões de relacionamento entre poder público e sociedade civil.

(...) pela desilusão acabam elegendo pessoas que não tem nada haver com o desenvolvimento e as políticas públicas. Acabando, muitas vezes, elegendo alguém que se preocupa muito mais consigo mesmo do que com aquele que lhe elegeu. (...) Então, essas políticas públicas não refletem as necessidades da população e que, muitas vezes, é conseqüência do voto a cabresto, por voto por obrigação, por troca de um favor. (Representação dos Agricultores Familiares “O”)

Outra questão está na apropriação de uma nova concepção de desenvolvimento e de intervenção do poder público pela sociedade civil, incluindo dimensões como, por exemplo, inclusão social e preservação ambiental. Alguns segmentos da sociedade estão começando a reconhecer o instrumento de poder que está adormecido, instrumento que precisa da união, do comprometimento e da coesão para ser potencializado. As palavras do representante da representação dos agricultores familiares “Q” são expressões de reconhecimento do poder da ação coletiva, demonstrando segurança e autoridade por falar em nome do grupo.

Uma das coisas boas que a gente tem é que quando tu vai pedir algum recurso e tu entra lá (secretaria da agricultura municipal) em nome de uma associação, automaticamente, praticamente tu é atendido. Se não imediato, mas em breve a reivindicação é atendida. (...) A associação tem muita força política! O povo que ainda não se deu conta da arma que tem nas mãos. O Trabalho associativismo dentro do município é uma das armas de mais poder e de força. (Representação dos Agricultores Familiares “Q”)

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desenvolvimento, políticas públicas e atores sociais representam a essência do processo civilizatório da sociedade. A interdependência destas três questões dá-se pela articulação entre os atores sociais, num processo em que as relações entre esses são mediadas por diferenciais de poder. Nesse sentido, a valorização dada, por este estudo, a concepção dos atores sociais aos termos desenvolvimento rural e políticas públicas possibilitou evidenciar expressões de poder nas relações entre os mesmos, identificando possíveis restrições para o processo de desenvolvimento. A construção de uma noção sobre um determinado termo não evidencia somente expressões de poder, mas traduz, relativamente, visões de mundo e percepções de futuro, elementos necessários para a compreensão do atual estágio do processo de desenvolvimento e da identificação da posição (autor ou espectador) do formulador da concepção.

Os depoimentos dos diferentes representantes das organizações estudadas neste trabalho permitiram identificar relativa profusão de interpretações, noções, entendimentos e idéias sobre desenvolvimento rural e políticas públicas, concepções que contribuem para melhor compreender o processo de desenvolvimento de uma sociedade. A análise das concepções sobre desenvolvimento rural e políticas públicas proporcionou a diferenciação

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das compreensões sobre os termos pelos entrevistados, possibilitando a identificação de elementos valorizados na elaboração da noção.

A análise dos discursos evidenciou, inicialmente, duas questões recorrentes nas falas dos entrevistados identificadas com o agricultor familiar e a sua relação com a problemática do desenvolvimento rural e com a concepção de políticas públicas. A primeira questão evidencia que a conexão entre agricultor e desenvolvimento rural está relacionada diretamente com o comportamento, imputando ao agricultor a responsabilidade de ator principal do processo e determinando a coadjuvação para as organizações representantes do poder público e da sociedade civil. Ao tratar da relação entre comportamento e desenvolvimento estamos evidenciando aspectos como interesse, iniciativa e vontade de desenvolver, elementos de um conjunto de qualidades (características) que define a personalidade do agricultor ou de um grupo de pessoas. O interesse, a iniciativa e a vontade se traduzem em motivação para o desenvolvimento, estimulados por um conjunto de processos que dará ao comportamento uma determinada intensidade, que levará os agricultores familiares a um processo de desenvolvimento próprio. Nesse sentido, as organizações públicas oficiais e da sociedade civil incorporam o papel de fomentadoras do processo a partir de ações que promovam a elevação da auto-estima e, consequentemente, da confiança dos agricultores familiares em seus atos.

A segunda questão destaca a percepção dos representantes das representações dos agricultores familiares sobre as políticas públicas, evidenciando uma forte relação entre políticas públicas e partidárias e, consequentemente, valores arraigados a uma determinada cultura do clientelismo em que as políticas públicas transformam-se em objeto de troca para imputar o favor ao beneficiário. Observamos que, para os representantes (agricultores familiares) das representações dos agricultores familiares, o pouco conhecimento sobre os mecanismos de concepção e acesso às políticas públicas restringe a atuação dos agricultores familiares, segundo suas percepções, a simples demandantes, necessitando se adequarem a essas (políticas públicas). O processo de desenvolvimento rural, segundo depoimentos dos representantes das organizações, deve compreender ações que priorizem o conhecimento aprofundado sobre a realidade, o reconhecimento e a valorização do público (agricultor familiar), a identificação das perspectivas futuras (vontades) e a encontrar mecanismos que despertem a motivação da sociedade civil para o desenvolvimento. Nesse sentido, o desenvolvimento rural pressupõe a necessidade da participação, num processo dinâmico, relacional e interdependente, das organizações do poder público e da sociedade civil como um todo. Por fim, este estudo ressalta a importância dos atores locais no processo de desenvolvimento por vivenciarem as conquistas e os fracassos e por saberem o quanto representa um momento de felicidade ou infelicidade. Para a atuação efetiva dos agricultores familiares no processo de desenvolvimento, a formação e qualificação destes é condição sine qua non. Formação e qualificação são expressões de autoridade e sem esta o agricultor familiar continuará a margem do processo de desenvolvimento. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, R. O Futuro das Regiões Rurais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

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