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Interação homem-cultura: contribuições da antropologia do consumo à interação homem-computador1
Gabriel Darcin Alsouza2 Rodolfo Rorato Londero3
Rosane Fonseca de Freitas Martins4 Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR
RESUMO A cultura é pouco explorada nos estudos de interface homem-computador. Nesse sentido, esse artigo discute os efeitos da cultura sobre o desenvolvimento e consumo de interfaces. A pesquisa apresenta finalidade pura, opera no nível descritivo, possui abordagem qualitativa e faz uso da comparação e discussão teórica entre os autores de interface, design e antropologia do consumo como método investigativo. Os resultados encontrados reconhecem que as interfaces são capazes de carregar valores culturais e que esses valores podem ser internalizados pelos sujeitos por meio do consumo. Sendo assim, os designers devem se atentar a responsabilidade que carregam, visto que não dão forma apenas a função, mas também a cultura, impactando diretamente nas dinâmicas sociais e na percepção do sujeito.
PALAVRAS-CHAVE: consumo digital; antropologia do consumo; interface; design; comunicação. INTRODUÇÃO
Indivíduos utilizam diariamente interfaces gráficas para realizar as mais variadas
funções, seja retirar dinheiro de um caixa eletrônico ou descobrir o que o vizinho jantou
por meio do Instagram. No âmbito dos computadores, “a noção de interface remete a
operações de tradução, de estabelecimento de contato entremeios heterogêneos” (LÉVY,
1993, p. 108). A interface gráfica possibilita usuários se comunicarem com sistemas
informatizados de forma intuitiva.
1 Trabalho apresentado no GP Comunicação e Cultura Digital, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestrando do Curso de Comunicação da UEL, e-mail: [email protected]. 3 Professor do Curso de Jornalismo da UEL, e-mail: [email protected] 4 Professora do Curso de Design Gráfico da UEL, e-mail: [email protected]
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Ao analisar a literatura científica sobre a produção de interfaces, percebe-se que
os profissionais da área se preocupam principalmente em como os sujeitos se relacionam
com a máquina, sendo o estudo de uso (usabilidade) a principal frente da interação
homem-computador. A preocupação com a relação homem-objeto precede as interfaces,
sendo possível identificá-la na primeira metade do século XX (modernismo), com o
avanço das pesquisas em design que buscavam mudar radicalmente o mundo,
transformando-o em um sistema coerente, organizado e simples. Atualmente, as
discussões sobre design se tornaram mais complexas, considerando outros aspectos além
da forma/função; no entanto, as discussões sobre interface permanecem centradas no
valor de uso dos objetos, demonstrando um retorno ou mesmo uma estagnação no design
moderno.
Acreditar que homens utilizam interfaces apenas pela sua funcionalidade, ou seja,
pelo seu valor de uso, seria muito ingênuo. A interface é um bem de consumo assim como
qualquer outro, o qual está inserido em um contexto cultural indispensável para a sua
compreensão. Acerca do papel da cultura, Lewis (2014) reconhece que um dos desafios
das discussões sobre interação homem-computador é o aprofundamento sobre o efeito da
cultura na análise de tarefas (testes com usuário para verificar a usabilidade). Não
obstante, Lewis não compreende que a cultura exerce um papel muito maior sobre os
objetos.
Nesse sentido, este artigo busca discutir os efeitos da cultura sobre a produção e
consumo de interface. Para isso, este trabalho busca mapear as discussões sobre
usabilidade e design funcionalista, criticar o funcionalismo, apresentar uma nova
abordagem para o design por meio da cultura e esquematizar a atuação dos designers de
interface na construção de significado cultural para usuário.
A pesquisa apresenta finalidade pura, operando no nível descritivo e com
abordagem qualitativa. A coleta de dados se realizou por meio de pesquisa bibliográfica
sobre os tópicos design, interface e antropologia do consumo. O método investigativo
contemplou a comparação e discussão teórica entre os autores. Os resultados encontrados
demonstram que a cultura é indispensável na produção de interfaces, visto que ela
determina tanto como os sujeitos percebem o mundo como as dinâmicas de ação social.
Para produzir interfaces que falem a língua do usuário, é preciso que as soluções de uso
derivem dos princípios e categorias comuns aos usuários, buscando assim compreender
o usuário como produto de uma cultura.
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DESIGN, INTERFACE E FUNCIONALISMO
A revolução industrial produziu mudanças radicais na sociedade, como o processo
de urbanização, intensificação da divisão de trabalho e mudanças econômicas profundas.
Designers, assim como outros profissionais, foram beneficiados nesse processo, passando
por uma rápida expansão com o desenvolvimento e crescimento de áreas como criação
de produtos, embalagem, publicidade, livros e jornais. Com o tempo, tais ofícios
demandaram uma formação técnica específica (MEGGS; PURVIS, 2009).
Tempos depois, em 1919, é fundada na Alemanha a escola de design Bauhaus,
com o intuito de instrumentalizar profissionais na criação de produtos e comunicação para
uma sociedade que se reorganizava após a Primeira Guerra Mundial. A escola buscava
unir arte e tecnologia, sendo influenciada por diversas vanguardas da arte moderna como
o suprematismo e o de stijl. O construtivismo russo exerceu uma grande influência por
não buscar uma arte pela arte, mas sim a sua aplicação na sociedade como mecanismo de
transformação social. A conexão com tais ideais, de cunho transformador social,
despertou polêmica, visto que eram contrárias à ideologia política hegemônica. Embora
a escola tenha operado por pouco tempo (1919-1933), ela exerceu influência decisiva
sobre o imaginário de designers no mundo, visto que contribuiu para a formação técnica
e ideológica de futuros profissionais, impactando diretamente a produção de bens e
comunicação no século XX. Dentre as contribuições da Bauhaus, destaca-se a ideologia
funcionalista da escola, na qual a forma material dos objetos (estética) deve seguir a
funcionalidade racional. A escola buscava bens materiais que superavam um gosto
pessoal, desejava alcançar uma essência racionalista e matemática do mundo. A Bauhaus
buscava uma forma pura, racional, leis universais, limpeza visual e harmonia matemática,
sendo que a comunicação sempre estava comprometida com o futuro e o progresso
(MEGGS; PURVIS, 2009).
Para Helen Armstrong (2015), os modernistas buscavam mudar o mundo, criando
ordem e sentido em um mundo caótico, repleto de transformações políticas, sociais e
tecnológicas. Com inspiração na máquina, negavam a estética tradicional, eliminando o
ornamento e concentrando a atenção na função. Rafael Cardoso (2013) defende que os
modernistas queriam, além de objetos funcionais, uma estética que desse aos objetos e a
comunicação uma visualidade funcional. Influenciados pelo pensamento da Gestalt, eles
buscavam uma estética técnica, associada a princípios e racionalização da forma. Objetos
funcionais, mas que apresentassem ornamentação, eram comumente rejeitados pelos
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modernistas, o que demonstra que suas preocupações não residiam apenas na
funcionalidade prática dos objetos.
A Bauhaus produziu materiais gráficos, produtos e revistas que foram exportados
para o mundo. Além disso, formou muitos profissionais que, assim como os professores,
se espalharam pela Europa e Estados Unidos em decorrência da Segunda Guerra Mundial.
Assim, pouco a pouco, os ideais da Bauhaus ganharam espaço na Europa e Estados
Unidos. O pensamento modernista foi amadurecido ao longo dos anos e mais escolas
destinadas ao ensino do design foram criadas (MEGGS; PURVIS, 2009)
Na década de 1950, na Suíça e na Alemanha, o modernismo chegou ao ápice e
recebeu o nome de “estilo tipográfico internacional”, o qual exerce influência gráfica até
o momento. O estilo internacional consistiu em composições assimétricas organizadas
por meio de um grid matematicamente construído. Tanto a fotografia como o texto eram
objetivos e claros, se distanciando das técnicas persuasivas da publicidade. A tipografia
sem serifa, legível e harmoniosa, foram priorizadas, remetendo ao espírito modernista. O
alinhamento era feito à esquerda, sem justificação, para não interferir no ritmo
tipográfico. De forma geral, buscava-se clareza e ordem na comunicação. Os profissionais
se percebiam como agentes de uma atividade útil e importante. O design buscava uma
abordagem universal e científica, descartando a subjetividade e excentricidade dos
projetos. O designer se esforçava para se desvincular da figura do artista e se projetava
como um cientista, promovendo um canal objetivo e imparcial para a disseminação de
informações (MEGGS; PURVIS, 2009).
Os designers do estilo tipográfico internacional transformaram o pensamento
vanguardista moderno em metodologias estruturadas, retirando ideologias sociais. A
profissão ganhou mais objetividade e reconhecimento na indústria, principalmente nas
décadas de 1950, 60 e 70. No entanto, a medida que o estilo internacional se consagrava,
uma nova geração surgia com ideias pós-modernistas e contrárias à universalidade,
rigidez e apelo estético técnico. Embora o modernismo tenha cedido espaço para novas
discussões, ele ainda é referência no design, visto que seus princípios básicos continuam
a definir os padrões de um design eficaz. O funcionalismo – a forma segue a função –
voltou a ganhar destaque nas discussões do design, especialmente nos tópicos de interface
e usabilidade, a fim de lidar com o grande número de dados das redes digitais
(ARMSTRONG, 2015).
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A engenharia, assim como o design funcionalista, também se interessava por
tornar os objetos mais fáceis de usar, seja por um ideal ou por uma questão mercadológica.
Muitas pesquisas, sejam elas em universidades, órgão públicos ou empresas privadas,
contribuíram para o desenvolvimento de conhecimento científico sobre questões
referentes ao uso. No âmbito das interfaces digitais, destaca-se o surgimento do campo
da interação homem-computador (IHC), que investiga maneiras de transformar o código
binário dos computadores em interfaces mais intuitivas, que demandavam menos
conhecimento técnico para serem utilizadas e visavam assim diminuir as chances de erro.
Myers (1998) comenta sobre a importância da IHC na democratização e expansão dos
computadores por meio de tecnologias como a manipulação direta de objetos gráficos,
mouse, sistema de Windows (cascata), edição de textos, hipertextos, conhecimento de
gestos, entre outros. Tais tecnologias, antes de serem transformadas em bens de consumo,
foram objeto de pesquisa por décadas, sendo o campo da interação homem-computador
imprescindível para o desenvolvimento desses bens. Inserido nesse contexto, a
engenharia, ergonomia, design e ciências cognitivas foram alinhadas por meio do estudo
da usabilidade. Embora o IHC tenha surgido no âmbito das pesquisas de engenharia, os
designers exerceram e exercem grande influência nos estudos de usabilidade,
especialmente em derivações mais recentes, como a experiência do usuário e design
centrado no usuário.
De acordo com Dias (2007, p.25), o termo usabilidade surgiu como substituto da
expressão “user-friendly” (amigável), visto que esse termo era excessivamente subjetivo.
Uma interface amigável para determinado usuário pode não ser amigável para outro,
posto que usuários possuem necessidades diferentes. A ISO (2018) define usabilidade
como capacidade de um sistema, produto ou serviço ser utilizado por usuários específicos
para atingir metas especificadas com eficácia, eficiência e satisfação em um contexto de
uso especificado. Tal definição, embora bastante técnica, contempla a maioria dos
aspectos discutidos pelos autores de interface. Dias (2007) apresenta um recorte dessa
definição, dividindo-a em quatro grupos: características ergonômicas dos produtos,
esforço mental do usuário, desempenho do usuário e o contexto de uso. Sobre o produto,
ele destaca a utilização da ergonomia visual, derivada do design funcionalista,
apresentando teorias da forma como a Gestalt, grids matemáticos, clareza visual, fonte
legível, redução de cores, contraste e design responsivo. Esse recorte específico está
bastante relacionado a produção de interfaces gráficas desenvolvidas por designers. Sobre
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o esforço mental, destaca-se a ergonomia cognitiva, os estudos sobre psicologia e emoção
de Norman (2013) e a regra de ouro de Krug (2014), “evitar que o usuário pense”. Sobre
o desempenho do usuário, destaca-se as heurísticas de Nielsen e Loranger (2007) e testes
com usuários. O contexto de uso se aproxima do desempenho, no entanto, busca avaliar
a interface sem retirar o usuário de seu ambiente natural, por meio da análise de dados e
ferramentas emergentes como o eyetracking.
Lewis (2014) apresenta o seguinte recorte sobre as discussões de usabilidade: a
usabilidade formativa que busca identificar e resolver problemas locais e emergências
durante o desenvolvimento do projeto e a usabilidade somativa, que se preocupa com o
desempenho global da interface e sua relação com as tarefas associadas ao usuário. Para
ele, com o desenvolvimento das discussões sobre interface, surgiram extensões do estudo
da usabilidade como o design centrado no usuário e, mais recentemente, a experiência do
usuário. Enquanto o design centrado no usuário busca integrar todos os aspectos do ciclo
de uso de um sistema, a experiência do usuário apresenta uma preocupação maior com o
apelo emocional da interface
Lewis (2014) se esforça para elencar as principais discussões sobre usabilidade,
apresentando a situação atual e principalmente os desafios a serem superados. Dentre os
desafios, destaca-se a necessidade de aprofundamento nas questões culturais,
especialmente seus efeitos na avaliação de tarefas.
DESIGN ALÉM DA FUNÇÃO
Ao analisar a situação atual dos estudos de usabilidade e suas derivações, nota-se
um compromisso com o “uso”, principalmente decorrente do funcionalismo modernista.
É evidente que as interfaces evoluíram e hoje são mais democráticas e intuitivas que antes,
no entanto, expandir a perspectiva da interface e da relação homem-computador para além
da funcionalidade pode proporcionar um terreno mais fértil para pensar a tecnologia.
Cipiniuk (2014) é crítico em relação ao funcionalismo. Para ele, a noção
funcionalista se baseia na utilização de uma metodologia projetual que visa tornar um
objeto industrial – com problemas – em um objeto melhor ou mais amigável,
principalmente por meio da ergonomia e de uma estética alinhada à técnica, como a
Gestalt, a utilização da lógica matemática e a racionalização da forma. No entanto, o autor
afirma que “nada garante que essa estética seja mais funcional, amigável ou ‘comunique’
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mais informações que outra desenhada em outro gênero ou estilo” (CIPINIUK, 2014, p.
40). Cipiniuk contesta a argumentação de que o design funcionalista apresenta vantagens
sobre o design formalista por utilizar uma metodologia capaz de garantir resultados, pois,
para ele, essa exposição “não é verdadeira e funda-se em uma crença ingênua, uma fábula
que ilustra elogiosamente a sociedade industrial como um sucesso na história da
humanidade” (CIPINIUK, 2017, p. 23). A metodologia projetual resolve apenas o que já
foi estabelecido como solução, não sendo possível resolver todos os problemas. Cipiniuk
(2014) esclarece que o pensamento funcionalista é idealista neoplatônico. Busca
encontrar a ideia essencial sobre determinado objeto (no caso da interface, o uso) para
então materializá-lo, sendo assim, para construir uma cadeira, deve-se antes identificar
qual a essência de uma cadeira para então dar a ela uma configuração material.
O uso é fundamental para as interfaces, contudo, é possível identificar outros
aspectos importantes sobre os bens de consumo. Em um sistema econômico onde o valor
de troca antecede o valor de uso (resumindo, paga-se para depois usufruir), “o que é
apenas algo, mas não parece um ‘ser’, não é vendável” (HAUG, 1997, p. 26-27). Sendo
assim, como “o capitalismo necessita radicalmente do mundo das aparências” (HAUG,
1997, p. 70), a aparência estética invade a mercadoria, configurando-se como “o valor de
uso prometido pela mercadoria” (HAUG, 1997, p. 27). A aparência estética da mercadoria
mostra que a utilidade de uma coisa já não transforma essa coisa em um valor de uso, pois
é preciso primeiramente prometer essa utilidade, chamar a atenção para as qualidades
sensíveis da mercadoria. Sem promessa, é como se não existisse valor de uso
Embora muitas interfaces permitam que o usuário as utilize antes de pagá-las ou
mesmo não demandem um pagamento direto para serem utilizadas, a relação uso/troca
proporciona um rico cenário para o debate sobre a construção de interfaces. É possível
relacionar a forma ao valor de troca e a função ao valor de uso. Quando o designer projeta
uma interface, ele deve tomar diversas decisões, algumas delas extremamente subjetivas,
como, por exemplo, qual combinação de cores utilizar. O balanço forma/função é sempre
muito delicado, pois cada elemento adicionado à composição a modifica, acarretando em
mudanças nos valores de uso e troca. Para o discurso funcionalista, a forma segue a
função, consequentemente, a promessa de uso (valor de troca) é limitada a opções que
não prejudiquem a função do objeto. Tal fenômeno é visível principalmente no estilo
tipográfico internacional, contrário aos discursos publicitários. Nesse contexto é possível
perceber uma incoerência, pois, por mais que a literatura sobre IHC indique um caráter
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funcionalista, é visível que as interfaces, mesmo aquelas não pagas, investem em uma
estética capaz de seduzir os usuários. Caso a função fosse de fato prioritária, dever-se-ia
seguir uma gramática visual de interfaces. Portanto, por mais que a literatura indique que
o valor de uso na produção de interfaces seja absoluto e superior à estética, ele não se
demonstra na prática.
Embora o valor de troca seja negligenciado nos estudos acadêmicos de IHC, é
possível identificar que eles estão sendo inseridos nas discussões de IHC, especialmente
por meio do mercado, em fóruns e revistas de experiência do usuário. Cybis, Betiol e
Faust (2015) defendem que a estética deve interessar o usuário, não apenas para
proporcionar uma resposta cognitiva positiva, mas para comunicar aspectos de sua
própria identidade. Os estudos sobre estética em interface ocupam um papel ainda muito
esquecido e pouco aprofundado. Embora seja possível importar as discussões sobre
estética do campo das artes, design e publicidade, é vital que novos estudos sejam
conduzidos para compreender as especificidades das interfaces, visto que estão em um
meio muito particular, sujeito à hibridização das mídias.
DESIGN ENQUANTO MATERIALIZAÇÃO DA CULTURA
Em oposição ao idealismo do funcionalismo, Cipiniuk (2014, 2017) defende a
noção social do design, que leva em consideração indivíduos históricos, ou seja, pessoas
inseridas em um determinado local, em uma determinada época, pertencente a uma certa
classe social, exposto a certos referenciais e valores culturais, donos de uma própria
vivência que produzem em resposta a esse cenário existente. Nesse sentido, ao analisar
determinado design, é mais válido considerar todos esses ao invés de analisar unicamente
o uso. O design enquanto produção social se preocupa em examinar “[...] a maneira como
os produtos culturais que a sociedade produz se se relacionam com o modo de produção
capitalista” (CIPINIUK, 2014, p. 80). Portanto, pode-se entender o design como o “[...]
estudo de como valores sociais são materializados em objetos manufaturados”
(CIPINIUK, 2014, p. 80).
Assim como Cipiniuk (2014, 2017), McCracken (2003, 2007) compreendem que
os bens de consumo carregam um valor utilitário, comercial e cultural. A fim de
compreender a relação entre cultura, bens materiais e sujeitos, o autor desenvolveu um
modelo apresentando a movimentação de sentido que ocorre entre mundo cultural, bens
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de consumo e indivíduos. A figura 1 (abaixo) sintetiza o processo descrito por
McCracken: “o significado cultural é absorvido do mundo culturalmente construído e
transferido para um bem de consumo. O significado é, então, absorvido do objeto e
transferido para um consumidor individual” (MCCRACKEN, 2007, p. 100). Assim
sendo, é possível identificar o significado cultural em três estancias: “no mundo
culturalmente constituído, no bem de consumo e no consumidor individual, movendo-se
uma trajetória com dois pontos de transferência: do mundo para o bem e do bem para o
indivíduo” (MCCRACKEN, 2007, p. 100)
Figura 1 – Movimentação do significado
Fonte: Adaptado de McCracken (2007, p.100)
Para McCracken (2003, 2007), a cultura envolve o indivíduo de duas formas:
como uma espécie de lente, estabelecendo como o indivíduo entende os fenômenos; e
como uma planta baixa da “atividade humana, determinando as coordenadas de ação
social e atividade produtiva, e especificando os comportamentos de objetos que derivam
de uma ou de outra” (MCCRACKEN, 2007, p. 101). Nessa perspectiva, a cultura cria
significados, seja como categorias culturais ou princípios culturais. As categorias estão
relacionadas a divisão dos fenômenos em conceitos, como a noção de tempo, gênero e
classes sociais. Tais categorias criam um sistema que categoriza o mundo. Por sua vez,
os princípios culturais estão correlacionados a “ideias ou valores que determinam como
os fenômenos culturais são organizados, avaliados e interpretados” (MCCRACKEN,
2007, p. 103). Tanto as categorias culturais como os princípios são materializados nos
bens de consumo, como no sistema de moda que “distingue homens de mulheres ou a
classe alta da baixa” (MCCRACKEN, 2007, p. 103), demonstrando tanto as categorias
culturais na separação como os princípios de natureza e posse que promovem essas
separações.
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A cultura é materializada nos bens de consumo por meio dos instrumentos de
transferência de significado. McCracken (2003, 2007) apresenta duas instituições capazes
de imprimir significado nos bens de consumo: a publicidade e o projeto de produto no
âmbito da moda. A publicidade imprime o significado por meio dos seguintes passos: o
publicitário deve identificar quais significados culturais serão impressos no produto;
posteriormente, deve se compreender onde esses significados habitam no mundo
culturalmente constituído, como se apresentam e quais serão utilizados; por ultimo, deve-
se unir as características do produto aos significados culturalmente constituídos.
O projeto de produto no âmbito da moda apresenta mais complexidade.
McCracken (2007) destaca três maneiras de transferir o significado por essa instituição:
a própria publicidade comentada no parágrafo anterior; os formadores de opinião que
"ajudam a moldar e refinar os significados culturais existentes, encorajando as reformas
de categorias e princípios culturais" (MCCRACKEN, 2007, p.103); as mudanças
culturais radicais que consistem em transformações culturais promovidas por grupos
comumente a margem da sociedade como os hippies, punks e gays. McCracken (2007)
também comenta sobre os agentes responsáveis por essa transformação: projetista de
produto (designers) que imprime o significado cultural no produto e
jornalistas/observadores sociais responsáveis por filtrar e disseminar os valores culturais.
O autor alerta que o sucesso desses instrumentos depende da habilidade do consumidor
de relacionar o produto ao significado cultural.
Os bens “são tanto as criações como os criadores do mundo culturalmente
constituído” (MCCRACKEN, 2007, p. 103). Embora os bens estejam carregados de
significado cultural, eles não necessariamente são percebidos pelos consumidores. A
existência dos significados culturais nos bens pode ou não ser transmitida para o
consumidor pelo consumo.
Os rituais de consumo são os instrumentos de transferência de significado do bem
de consumo para o indivíduo. Para McCracken, “o ritual é uma oportunidade de afirmar,
evocar, atribuir ou rever os símbolos e significados convencionais da ordem cultural”
(MCCRACKEN, 2007, p. 108). O autor destaca quatro rituais: troca, posse, cuidados
pessoais e desapropriação. O ritual de troca contempla a oferta de um bem de consumo a
alguém, sendo utilizado como um convite para que o indivíduo presenteado se defina nos
valores simbólicos materializados no bem. O ritual de posse possibilita a extração dos
valores culturais do objeto para si, sendo assim, o consumidor é capaz de se definir, tanto
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em uma escala social como individual, em categorias relacionadas ao produto. Os rituais
de cuidados pessoais ocorrem quando o valor cultural do objeto é efêmero, sendo
necessário que o consumir realize o consumo com frequência para que os significados
sejam sempre reincorporados. O ritual de desapropriação ocorre em duas situações:
quando o indivíduo adquire um item que já pertenceu a alguém e busca esvaziá-lo de
qualquer significado que remeta ao dono anterior; ou quando ele repassa o bem e busca
esvaziar o item de significado pessoal.
O consumidor individual é a última escala da movimentação do significado.
Embora o autor destaque problemas advindos do consumo de significado, McCracken
afirma que, “em situações normais, contudo, o indivíduo usa os bens de maneira livre de
problemas para constituir partes cruciais de si mesmo e do mundo” (MCCRACKEN,
2011, p. 108). Em uma análise do sucesso dos carros de estilo forward look da década de
1950, McCracken (2012) deixa evidente o que acontece com os consumidores quando
eles desenvolvem e concluem o ritual de posse: “Eles não veem nenhuma diferença entre
eles e o carro. Você cospe no carro, você está cuspindo neles” (MCCRACKEN, 2012, p.
62). Além disso, o autor completa:
Pessoas se identificam com seus carros. Às vezes, elas têm dificuldade para falar da diferença entre o “quem” dá personalidade e o “quê” do objeto. Para os jovens do vale, Fords encerados e reconstruídos significavam tenacidade, virulência, poder e estilo. Eles expressavam domínio do mundo, mobilidade, independência. Significavam potência e sexualidade. Significavam “pegar” as meninas. Significava a autonomia dos adultos. Significavam estar prontos para a maioridade (MCCRACKEN, 2012, p. 62).
As interfaces, assim como os carros, são bens de consumo que transmitem valores
culturais que reproduzem ou alteram como a sociedade percebe os indivíduos e como eles
próprios se percebem. Independente desse processo ocorrer de forma intencional ou não
intencional, é importante que os designers tenham ciência de seu trabalho e compreendam
a responsabilidade que carregam. Ao materializar cultura, o designer recorta
determinados princípio e categorias, podendo criar novas relações culturais entre eles.
Esse processo, por sua vez, exerce um papel formador na sociedade na qual o bem é
inserido, sendo assim, o designer reproduz ou altera a cultura, pois desempenha um papel
na manutenção ou rompimento de valores e categorias.
No âmbito de interface, é fundamental que haja ciência e responsabilização dos
produtores sobre as situações sociais que promovem. Ao produzir ou avaliar interfaces, é
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necessário que o designer compreenda a interface de forma mais abrangente, percebendo
o valor de uso, troca e cultural. Antes de especificar uma função ou produzir uma estética
técnica, o designer deve identificar no mundo culturalmente constituído quais valores
serão impressos na interface e quais os impactos nas dinâmicas sociais. Só após isso será
possível fazer um balanço entre forma/funções capaz de tanto seduzir o usuário como
auxilia-lo no desenvolvimento de tarefas ou atividades. Destaca-se ainda a importância
do designer em dar uma materialidade digital a esses valores, pesquisando em
profundidade os aspetos culturais que os usuários estão inseridos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura sobre IHC apresenta um compromisso idealista com o valor de uso
dos objetos. Embora o uso deva ser discutido em profundidade, é vital que designers
aprofundem as discussões de outros aspectos dos produtos, como a estética (valor de
troca) e a cultura, aproximando as discussões sobre IHC ao design pós-moderno que é
crítico sobre verdades universais.
Ao produzir uma interface, é vital que os designers mudem o foco da utilidade
para a cultura, visto que é a cultura que proporciona ao sujeito as estruturas da dinâmica
social e as lentes com as quais ele observa o mundo, identifica beleza e utilidade. A cultura
precede o sujeito, fazendo dele quem ele é. Sendo assim, o usuário precisa ser observado
a partir da cultura e nunca isolado dela.
Compreender o design enquanto materialização da cultura proporciona um terreno
fértil para a investigação científica, na qual é necessária uma reinterpretação dos discursos
da forma que partem de uma racionalização e universalização inexistente de como
indivíduos compreendem o mundo. A cultura é quem dá sentido ao mundo, não a
matemática ou mesmo a ciência, sendo a ciência a própria derivação da cultura e da
linguagem.
Nesse sentido pensar em interface como um instrumento para materializar cultura
proporciona uma nova interpretação. A interface não é apenas função ou diálogo entre
homem-computador, mas a própria cultura que dá sentido a uma função. Por que sujeitos
utilizam redes sociais? Existe função em fotografar o jantar e publicá-lo para o mundo?
É evidente que é possível identificar utilidades nessas tarefas, mas será que as enxergamos
porque elas existem ou porque a cultura permite que elas se tornem utilidade? O design
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moderno se preocupava com uma função pura, associada a um invidio racional. Mas será
que essa função pura de fato existiu em algum momento histórico?
Dentro desse contexto é primordial que designers tomem consciência do impacto
que a produção de interfaces adquire no mundo. Ao ser materializado na interface, os
valores culturais parecem ganhar mais força e influenciarem mais os indivíduos por meio
dos rituais. Sendo assim, a seleção de valores deve ser feita de forma cuidadosa, visto que
a cultura já se provou, inúmeras vezes, promover desfavores a humanidade como a
aniquilação e exploração de etnias por meio de um processo de uma naturalização da
superioridade de certos grupos.
O sistema de McCracken (2003, 2007) auxilia a compreender os processos globais
envolvidos no processo de movimentação de significado do mundo culturalmente
constituído para os bens e produto e indivíduo, no entanto é necessário que mais estudos
sejam desenvolvidos nessa área, para compreender em mais detalhes tantos os
instrumentos de transferência da cultura para o bem como do bem para o sujeito a fim de
compreender os efeitos e problemas acerca da assimilação de valores.
REFERÊNCIAS
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