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OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2011

SAQUAREMAS & LUZIAS

CHRISTIAN EDWARD CYRIL LYNCHADVOGADO E CIENTISTA POLÍTICO

OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2011

A sociologia do desgosto com o Brasil

Existem diversas maneiras de pensar o Brasil. Mas entre os letreiros de maior destaque, aqueles avisos iluminados a indicar-nos certos percursos, há, em especial, duas formas mais con-sistentes reveladas em nossa história.

Ambas dizem respeito a uma maneira de encarar o problema do atraso da sociedade brasileira, ou, como se dizia antigamente, o retardo do Brasil no concerto das nações. Ou ainda o subdesen-volvimento, a emergência, a barbárie – todos di-ferentes nomes e expressões, apresentados em diferentes épocas, mas destinados a designar o mesmo problema: o nosso atraso. Essas duas vi-sões oferecem distintos diagnósticos para expli-car o retardo da sociedade brasileira e, por con-seguinte, prescrevem dois diferentes remédios. Uma dissonância e uma dualidade essenciais de

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discursos no âmbito político, que reverberam no campo acadêmico, ou o contrário. Essas duas formas de pensar o Brasil são os saquaremas e luzias. Elas nos são úteis para apresentar e ana-lisar as raízes do desconforto com o Brasil que uma parte considerável do nosso pensamento social e político revela. Entender esse desconfor-to exige olhar para a história.

“Saquarema” é a denominação dada aos con-servadores do Império. “Luzia” é o apeli-

do dedicado aos liberais da época. Chamavam-se assim por duas razões. Saquarema era o nome do município do Rio onde um dos líderes conserva-dores, o Visconde de Itaboraí, tinha uma fazen-da. Ali o grupo se reunia com frequência. Luzia era uma referência a uma pequena cidade de Mi-nas Gerais, Santa Luzia, onde ocorreu a maior derrota dos liberais nas revoltas de 1842. Essa percepção de que existem dois discursos no pen-samento social e político brasileiro foi primeiro detectada por Oliveira Viana em 1924, quando escreveu um texto muito famoso, intitulado “O idealismo da Constituição”, que ganhou mais duas edições, ampliadas. Ele voltaria ao assunto em 1949, ao publicar o livro “Instituições políti-cas brasileiras”. Os saquaremas, conservadores, defendiam a centralização do poder; os luzias, li-berais, pregavam a monarquia federativa, opon-do-se ao Poder Moderador e ao Senado vitalício, dominado pelos conservadores.

O diagnóstico saquarema informa: somos um país enorme, sem meios de comunicação, com povoamento inorgânico e população profunda-mente decaída do ponto de vista da instituição, da riqueza, da falta de saneamento básico. Com isso, chega-se à conclusão categórica de que não temos nação. Com um Estado muito fraco des-de sempre, o país ficou nas mãos dos grandes proprietários rurais, os mandões, os senhores feudais, homens que mantêm a população su-balternizada e dependente. Esse senhor feudal se pensa cidadão e, quando diz que precisamos de democracia ou que precisamos de que o Esta-

do dê voz à sociedade civil, significa que preci-samos de democracia “para ele”. O senhor feudal se considera a própria sociedade civil. Esta seria a parte esclarecida da população. No diagnósti-co saquarema, como temos sociedade mas não uma nação, é impossível esperar que a própria elite crie a nação. Afinal, ela só pensa em si e nos seus familiares. Não tem virtude pública. É preciso, portanto, uma elite instalada no coração do Estado, que, de cima para baixo, seja capaz de reformar essa sociedade.

Essa nova elite vai remodelar a sociedade e elevá-la, mas, para tanto, tem de enfrentar os man-dões, os senhores feudais, os proprietários de terra que se pensam os únicos cidadãos, que reivindi-cam para si a condição de sociedade civil. Esses proprietários de terra são, no fundo, uma meia dú-zia de egoístas, afirma o diagnóstico saquarema. Não é possível criar uma sociedade de baixo para cima, mas o seu inverso, através do Estado. Afinal, a ordem de baixo para cima é um pântano; resul-tará em guerra civil e atraso ainda maior. A obses-são saquarema é a unidade territorial. Esta tem de ser garantida por um Estado forte; não um Estado qualquer, não um Estado província, mas um Esta-do nacional. Essa ordem não pode ser construída pelos grandes proprietários de terra, pois a iden-tidade destes é local. Eles não têm sentimento de nação ou unidade nacional. Por isso, o Estado – forte e centralizado – é a solução. Os saquaremas observam o exemplo da Europa e lembram que os Estados-nação foram criados no tempo do Absolu-tismo por meio da centralização, sem a qual não há como fazer valer a Constituição. E sem Cons-tituição, não há liberdade. Não é possível tornar efetivos os dispositivos legais se o Estado não esti-ver presente no conjunto do país. A centralização, portanto, não significa opressão. Significa liberda-de, ordem e unidade.

Revolução pelo alto com uma monarquia centralizadaConvém recuar mais um pouco. Na Améri-

ca Latina, a necessidade de criar repúblicas ou países independentes, no contexto de uma socie-

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Os saquaremas, co

nservadores,

defendiam a cen

tralização

do poder; os luzias, lib

erais, pregavam a monarquia

federativa, opondo-se ao Poder M

oderador e ao Senado

vitalício, dominado pelos conserv

adores

dade muito mais atrasada do que a europeia, fez com que ganhasse corpo a ideia do despotismo ilustrado como ideologia de construção nacional. No século XVIII, países como Portugal, Espanha e Prússia haviam percebido que algo ocorrera com França e Inglaterra. Estes estavam muito mais à frente, tinham exércitos muito maiores, suas economias apareciam muito mais desenvol-vidas. Aqueles começaram a se preocupar com os meios de resolver seu atraso. Perceberam que cabia ao Estado enfrentar os senhores feudais e a Igreja. Pensemos, então, no Marquês de Pombal em Portugal; em Frederico, o Grande, na Prússia; em Catarina na Rússia. São todos exemplos de despotismo ilustrado. Voltaire, o grande arauto iluminista do despotismo ilustrado, dizia: um bom rei é a melhor coisa que um céu pode dar ao país. O rei ilustrado, claro, orientado pelo bem comum, eliminará o poder da Igreja e da gran-de propriedade rural para modernizar o país. O despotismo ilustrado é a primeira manifestação, fora do Brasil, do que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de autoritarismo instrumental. É um discurso de modernização de países periféri-cos que se acreditam atrasados. Uma revolução pelo alto.

Quando a América ibérica se tornou indepen-dente, o grande debate começou: monarquia ou república? Ocorreu então um fenômeno curioso. A independência dos países foi feita em nome da liberdade. A liberdade, por sua vez, estava associada à descentralização. Os patriotas eram todos pertencentes às camadas dirigentes, às eli-tes sociais. Mas havia um problema. Quando, metaforicamente, cortou-se a cabeça do rei da Espanha, e as oligarquias se libertaram dos espa-nhóis, elas se olharam e se perguntaram: quem mandará a partir de agora? Todas as oligarquias reivindicaram o posto. E começou a guerra civil. Afinal, não havia mais a autori-dade legítima que mantinha o centro e a unidade. Eis a desgraça: no dia seguinte ao

movimento de independência, feito em nome da liberdade, esses países foram obrigados a cons-truir Estados em nome da ordem, e passaram a restringir essa mesma liberdade. Percebeu-se que era preciso granjear a ordem pública em tor-no de uma autoridade vista como legítima, que detivesse o monopólio dos meios de coerção, para usar os termos de Weber. Obrigatoriamente foi preciso dar a marcha a ré.

No processo de independência brasileiro, quase todos os estados se dividiam entre as cor-rentes liberais, que desejavam o modelo america-no, de república federativa, e os conservadores, que preferiam centralização e unidade. Luzia e saquarema foi a nossa maneira de ver o proble-ma, mas a mesma questão foi enfrentada pelos nossos vizinhos latino-americanos. Argentina, México e Chile tiveram a mesma discussão. Por exemplo, no Chile, os conservadores eram cha-mados pelucones, alusão ao anacrônico uso de perucas [peluca, em castelhano]. Os liberais, pipiolos [inexperientes]. Em outras palavras, de-pois da independência, em todos os países apa-receu o problema da construção da ordem. No Brasil, porém, houve um feliz acidente com o fato de o príncipe regente estar aqui. Não houve a independência sem quebra da ordem legítima. Não houve guerra civil, cisão ou separatismo. Isso ocorreria mais tarde, quando a oligarquia tomaria conta do poder, com o imperador ainda pequeno. É quando surgem as revoltas, jus-tamente quando a figura do governo antes legítimo desapareceu.

O Brasil se tornou um caso único na América, por-

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que teve aqui um protótipo de burocracia estatal, que nenhum país hispano-americano teve. Ao retornar para Portugal, D. João não só deixou o príncipe, como foram promovidos todos aqueles que compunham o segundo escalão do seu mi-nistério. E praticamente todos eram brasileiros. Haviam estudado em Coimbra e achavam impor-tante manter os vínculos com Portugal, pois um Reino Unido a Portugal significava manter os vínculos também com a Europa e, portanto, com a civilização. Na época, não havia nenhum seg-mento social, fora da burocracia, que conseguis-se ver o país como uma unidade. Sua cidade era sua pátria, depois vinha sua província e, em se-guida, a condição de português-americano. Nin-guém tinha a identidade de brasileiro. Brasil era simplesmente um nome genérico que designava o conjunto de possessões de Portugal na Améri-ca. Um oligarca cearense de 1820, se queria in-dependência, liberalismo e Constituição, estava pensando em ficar com Portugal, mas garantindo autonomia à província, ou ficar independente de Portugal, mas com a mesma autonomia. De um jeito ou de outro, pensava em se governar. Não havia nas elites locais um sentimento de que aquele conjunto de possessões portuguesas na América pudesse se tornar uma entidade políti-ca por si mesma. Ou era português ou era cearen-se, fluminense, paulista, rio-grandense, mineiro. Existe, nesse campo, uma grande mitificação. A Inconfidência Mineira, por exemplo, não de-sejava emancipar o Brasil, e sim Minas Gerais. Quem quisesse, viesse junto com os mineiros.

A burocracia, no entanto, via o Império por-tuguês como uma coisa só, unido em torno da dinastia de Bragança. Angola, Moçambique, Bra-sil, Portugal, Algárvia, tudo isso representava a mesma unidade. Havia uma hierarquia, claro, mas de alguma maneira esses burocratas luso--brasileiros – todos mais ou menos discípulos de Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares, sobrinho do Marquês de Pombal e ministro de D. João – viam o Brasil e o Império como uma uni-dade. Eram reformistas, defendiam a Coroa, mas

lembravam que a Coroa não faria o que quises-se; não se tratava de absolutismo ou despotismo, mas de um despotismo ilustrado. Isso significa-va que o rei seguiria as recomendações de um conjunto de intelectuais, conhecedores das leis da Natureza e imbuídos da razão. Não era a mo-narquia como o primado dos caprichos. Essa bu-rocracia conseguia enxergar o bem comum, eles acreditavam. Abaixo da Coroa estavam as fac-ções, os interesses privados, os egoísmos de toda ordem. Somente a Coroa, que estava no alto, no centro, no Estado, conseguia ver o bem comum. Não havia, portanto, uma associação imediata e clara entre pensar a monarquia e centralização com o autoritarismo, o absolutismo e a ditadura. O governo poderia ser autoritário ou não.

Quando a independência se tornou irreversí-vel, essa burocracia luso-brasileira, chefia-

da por José Bonifácio – um ilustrado, membro da Academia de Ciências de Lisboa, um típico iluminista –, reconheceu a conveniência de en-trar na ordem constitucional, instituir um Esta-do liberal, ter uma Constituição, separação de poderes, declaração de direitos civis e governo representativo. Mas a burocracia percebeu, de maneira muito lúcida, que no Brasil não havia sociedade, mas apenas uma população e um con-junto de territórios. Um terço do país era formado por escravos, bárbaros, iletrados. Na visão desses burocratas, a grande lavoura só pensava em seus lucros e, por isso mesmo, queria manter a escra-vidão. Para os burocratas, o político prevaleceria sobre o econômico. O Estado, portanto, teria de moldar a sociedade. Reside aí uma curiosidade: no liberalismo clássico ocorre o oposto; a socie-dade cria o Estado. No Brasil, não. Aqui a socie-dade não existia e, portanto, era necessário inver-ter o processo, daí o despotismo ilustrado, dentro do quadro constitucional. Não que a realidade seja pior do que a teoria, mas o que tínhamos era de responder aos problemas existentes aqui.

Um texto de José Bonifácio deixa isso mui-to claro. Mostra que o governo tem de ser uno,

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centralizado e enérgico, com muito poder para enfrentar as dificuldades que serão impostas pe-las elites, pelos interesses privados ou pela natu-reza. Ressalta também a importância da burocra-cia, braço da Coroa e do Estado. Diz ele:

“Do que é necessário, pois? Precisa-se o quanto antes de uma boa administração, única e enérgica. “Precisa-se de novos regulamentos, assim gerais como particulares, acomodados às circunstâncias do Estado e às localidades parti-culares de cada distrito, em que se aproveitem as boas ideias antigas e se corrijam as más por outras menores, fundadas em princípios científi-cos e na experiência dos séculos, cuja execução seja acometida somente a uma diretoria única e poderosa, que dirija e vigie com a mais sisuda atenção sobre os administradores particulares, que se devam conservar, e sobre os novos que se devam criar. Só assim se realizarão os mag-nânimos desejos de nossos príncipes, sem des-

graçar os empates, as rivalidades e as oposições; só assim haverá economia e responsabilidade; só assim finalmente, com o andar do tempo, haverá oficiais instruídos e capazes, que obrando de-baixo de princípios certos e harmônicos hajam de tirar ramos tão importantes do abatimento e da miséria em que ora jazem, e de os aproximar gradualmente do ideal de perfeição que devem ter. Permita o Céu que o bom príncipe, que como pai nos governa, livre dos cuidados da guerra, possa dar a esse mal o remédio de que tanto se precisa.”

Quando veio a independência, os burocratas reconheceram a necessidade de acompanhar o movimento do mundo – ter um Estado liberal, representativo, com separação de poderes e de-claração de direitos – mas, como já foi dito, per-cebem que no Brasil não há sociedade. Caberia ao Estado criá-la. Acham que o Brasil é muito decaído. A única coisa grande que tem é o seu

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território. Ou seja, perderá seu território se não houver ordem e centralização na capital. É como se fôssemos um analfabeto, barrigudo, comedor de farinha que herdará uma gigantesca fazenda aos 18 anos de idade. É preciso cuidar da fazen-da, pois a única garantia de futuro glorioso está no território da Natureza. Porém, se a Natureza é grande, o homem é pequeno. Por isso, o Esta-do tem de ser forte, centralizado e atuante. Daí, para essa burocracia luso-brasileira, era funda-mental atacar o problema da escravidão. Não à toa José Bonifácio defende a abolição do tráfico e a escravidão tanto quanto possível, imigração em massa, proteção dos índios e mistura das ra-ças destinada a criar uma outra, como resultado do cruzamento de todas elas. Diz ele: “Introduzir brancos e mulatos para ligar os interesses recí-procos com a nossa gente e fazer deles todos um só corpo da nação, mais forte, instruída e empre-endedora.” Essa era a ideia. Ele entra no campo dos direitos, fazendo uma espécie de CLT dos escravos. Para açoitá-los, por exemplo, era preci-so ser em público, diante de uma autoridade pú-blica. No fundo, quer acabar com o privatismo. O Estado tem de crescer para implantar a ordem e a civilização. Sem um Estado nacional uno e centralizado, não há liberdade.

A esquerda conservadora, direita progressista

Os adversários de José Bonifácio são aque-les que anacronicamente chamo de luzias.

(Anacronicamente porque este nome não exis-te ainda nesse momento.) Os luzias pensam o contrário dos saquaremas. Segundo eles, exis-tia, sim, sociedade civil. Essa sociedade civil é composta por eles próprios – a elite. Ela é forte, brava, corajosa, virtuosa. O Estado, por sua vez, não pode ter autonomia, e sim um leal servidor, representante dos interesses da sociedade. Do contrário, não há liberdade, mas autoritarismo e ditadura – despotismo, como se dizia. Dando nome aos bois luzias: Gonçalves Ledo, no Rio; Diogo Antonio Feijó, em São Paulo; Frei Caneca,

em Pernambuco. Para eles, o Estado precisa cor-responder fielmente aos desígnios da sociedade (a grande propriedade rural). São também fede-ralistas. Não veem utilidade em se criar um Es-tado constitucional liberal que não lhes conceda autonomia provincial.

Não havia nos luzias uma associação muito forte entre república e federalismo. O ideal re-publicano era muito fraco. Tornaram-se eventu-almente republicanos somente depois de perde-rem a esperança de uma monarquia federalista. Na história do Império, até 1870, não há projeto de República unitária. São todos separatistas. O ideal republicano apareceu como reação à cen-tralização, mas eles não eram federalistas por se-rem antimonárquicos. O problema, para eles, não estava na monarquia, mas na centralização. Ti-nham receio da República, imaginando que, com ela, chegaria também a insurreição dos escravos. Ou seja, queriam a república restrita ao âmbito da elite. Com a democracia, a mesma coisa. Eles achavam que, se falassem muito em liberdade, democracia ou república, isso começaria a vazar para os setores subalternos, por isso preferiam uma monarquia descentralizada, ou uma monar-quia federativa. Seria mais seguro. Ao mesmo tempo, eram orientados pelo ideal americano, diferentemente dos saquaremas. O ideal ameri-cano, é claro, era o do progresso baseado no cres-cimento econômico, no primado da sociedade sobre o Estado, da economia sobre o político. Era o ideal do liberalismo clássico, mas que naquele momento se revelava no Brasil profundamente oligárquico.

Eis o traço brasileiro singular no Primeiro Reinado, se comparado com a Europa. Entre os europeus havia o liberalismo, e também o setor de direita, que eram os senhores feudais de ver-dade – aqueles com vínculos hereditários sobre a terra. Do lado esquerdo, uma grande população urbana – cerca de 20% da Europa Ocidental já eram urbanizados. No meio disso havia as clas-ses altas das cidades, atingidas pelo liberalismo: profissionais liberais e altos burocratas do Esta-

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do. No Brasil era diferente. Havia os grandes pro-prietários rurais e quase não havia cidades. Mas essa grande propriedade rural não era feudal. Ao mesmo tempo, havia uma burocracia, aquela que D. João deixou aqui. Essa propriedade rural se pensava como a classe urbana na Europa. Uma “burguesia”. Em outras palavras, o discurso era liberal, mas a prática, necessariamente oligárqui-ca. O ideal era moderno, mas a prática era atrasa-da. Queriam uma nação de senhores. Ao mesmo tempo, os atrasados feudais, para eles, eram os burocratas, os altos funcionários públicos. E es-tes não eram senhores feudais; muitos deles nem donos de terra eram. Na Europa, a direita conser-vadora estava no campo feudal. No Brasil, não. E o pessoal da burocracia era obrigado a ser pro-gressista. Em outras palavras, em relação à Euro-pa, tínhamos uma “esquerda” liberal que tendia a ser mais conservadora e uma direita que tendia a ser mais progressista. Isso explica por que na nossa história não houve muitos radicalismos. Simplesmente nunca houve segmento social in-teressado no radicalismo. Resultado: aquilo que parece mais moderno é mais atrasado, e o que parece mais atrasado é mais moderno. Por essa razão, quem passou todas as leis de abolição dos escravos foram os conservadores. Não quero di-zer que os nossos conservadores são mais pro-gressistas dos que os liberais, mas certamente há algo estranho aí.

Como afirmei, a burocracia luso-brasileira veiculou o discurso do despotismo ilustrado, que depois seria constitucionalizado e se torna-ria o principal discurso conservador do Segun-do Reinado. Anacronicamente estou chamando de saquarema o apelido do Partido Conservador fundado em 1837. Como os luzias, transformo-os em categorias universais, para tentar designar um tipo de ideologia política brasileira, que não é conservadora em si mesma, mas aquela que tem o diagnóstico da sociedade como decaída, que pensa na necessidade de formar um Estado forte, atuante, intervencionista e centralizado. A isso chamamos de saquaremas.

Diferentes nomes para uma mesma categoriaComo afirmei, a percepção de que existem

duas maneiras diferentes de pensar o Brasil foi primeiro sentida por Oliveira Viana. O que chamo de saquarema, ele chamou de idealistas orgânicos. Os luzias, Oliveira Viana classificou de idealistas utópicos. Essa dicotomia foi reiterada depois no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), nas décadas de 50 e 60, por Guerreiro Ramos. A ideia é a mesma: a convicção de que o outro lado – os luzias – é americanista, gosta de importa-ções e rejeita aproveitar a tradição nacional, que é sempre autoritária, atrasada, ibérica. Essa mesma divisão será reiterada por Raymundo Faoro, para quem havia no Brasil um liberalismo que não se realiza, uma tradição ibérica que vem do tem-po de D. João e um estamento burocrático. Ideia trabalhada também por Wanderley Guilherme dos Santos, que do ponto de vista acadêmico foi quem, na minha visão, melhor delineou a divisão nos estudos sobre a práxis liberal. Ele os dividiu entre autoritarismo instrumental e liberal doutri-nários. Bolívar Lamounier trabalhou o tema na análise do pensamento autoritário. Luiz Werneck Vianna falou em iberistas e americanistas. Gildo Marçal Brandão retomou as categorias de Olivei-ra Viana, chamando-os de idealistas orgânicos e idealistas constitucionais. O problema dessas ca-tegorizações é que ou as palavras empregadas sus-citam problemas, ou dão asas à discussão ou são impregnadas de valor. Esses acadêmicos que men-cionei – e não só eles – também são saquaremas ou luzias. No fundo, identificam-se com um lado ou com o outro, mal disfarçadamente.

Por que saquaremas e luzias e não outras terminologias? Autoritarismo instru-

mental, a melhor delas, será atacada porque há autores que não são autoritários. Entendo o que Wanderley Guilherme quis dizer: aquilo que era considerado autoritário em 1974/1975, quando ele estava escrevendo; qualquer coisa que não fosse claramente uma democracia, como EUA, Inglaterra e França, era autoritária. Werneck

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Vianna fala em iberismo ou americanismo, mas no Império havia muita gente defendendo a mo-narquia constitucional inglesa, o que eliminaria o enquadramento no americanismo. Teríamos de recorrer a uma via anglo-saxã, que é tipica-mente um interesse do luzia. Já iberismo é ques-tionável porque pressupõe que nosso problema está no atraso ibérico, caindo numa linha segui-da por Raymundo Faoro: uma herança maldita, que vem da colonização portuguesa. Este é outro tema luzia, a crença de que o atraso do Brasil vem dessa herança maldita deixada pelo Estado português – um Estado intervencionista, sufo-cante, fiscalista, com seu exército de burocratas parasitários. Isso está em “Donos do poder”, mas não se originou nele. Vem de Diogo Feijó, Tava-res Bastos – o grande liberal doutrinário, o gran-de luzia do Império – e Campos Salles.

Desconfortos diferentesOs saquaremas têm uma espécie de episte-

mologia: antes de procurar alterar a realidade e promover reformas institucionais, é preciso co-nhecer a realidade nacional, olhar para o país e fazer as adaptações do que se deseja importar. É um argumento tipicamente saquarema, ou, se quiser, autoritário instrumental, ou idealis-ta orgânico, ou iberista. O luzia, não. O luzia sustenta que, se você adaptar determinada ins-tituição, estará deformando-a, e as ideias ficam fora do lugar – para usar a expressão de Rober-to Schwartz, um luzia de esquerda. Para evitar a deformação e a corrupção, é preciso fazer o transplante perfeito. Esse tipo de visão está em Rui Barbosa e Tavares Bastos: convém fazer um transplante perfeito das instituições democráti-cas liberais estrangeiras. O incrível é que – em algum momento teríamos de chegar à USP – a série de discussões entre Guerreiro Ramos, do Iseb, e Florestan Fernandes, da USP, sobre o modo de institucionalização da sociologia no Brasil seguirá os mesmos termos. O primeiro

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afirma que há uma tradição nacional a ser se-guida; cada país tem a sua. Relativiza a ideia de ciência social e seu universalismo. Lembra que é preciso aproveitar as discussões feitas preteri-tamente para criar uma ciência social brasileira. Florestan Fernandes pensa o inverso. Diz que é preciso fazer um transplante perfeito das insti-tuições, justamente o plano seguido pela USP. Daí a frase meio debochada dita por Michel Foucault, quando esteve no Brasil certa época: “A USP é um departamento francês de ultra-mar.” Muita gente achou aquilo um elogio, mas ele quis dizer que a USP era uma cópia de uma universidade francesa de província. Não quero dizer que a USP seja isso, mas transparecem aí essas diferenças de ver o Brasil, fazer o diagnós-tico da sociedade brasileira e prescrever os seus remédios. Isso nada tem com ser de direita e es-querda.

Se há, porém, um elemento invariável no pensamento político brasileiro é essa divi-

são genérica entre saquaremas e luzias. Nessa di-visão, o desconforto com o Brasil é geral. Trata--se de um desconforto percebido nos dois lados e resulta da percepção do atraso do país. Ambos sabem que o Brasil é periférico. Atrasado, peri-férico e doente. A diferença é que o saquarema exibe o desconforto, mas tem uma visão mais nacionalista, acha que é menos universalista na proposição dos remédios e sustenta que cada país tem sua tradição, seu jeito de ser. Em suma, acredita que é possível resolver o problema do atraso sem desnaturar aquilo que seria autênti-co do Brasil. O luzia, por outro lado, é orienta-do mais por teorias que vêm de fora, tem menos tolerância com a adaptação e vê nela a corrup-ção e a deformação. O que o saquarema vê como peculiaridades do Brasil é visto pelo luzia como desvio. O pensamento uspiano, ou aquilo que entendemos como pensamento político e social uspiano, é muito guiado pelo entendimento do Brasil a partir da categoria do desvio e da defor-mação. Seu desconforto, portanto, é maior.

Domínios luzias e saquaremasHá duas épocas paradigmáticas do domínio

saquarema e do domínio luzia. O Segundo Rei-nado é a apoteose do saquarema. O começo da regência e, mais tarde, a República Velha, são a apoteose do luzia. Desde o Império, jamais hou-ve separação entre pensamento e discursos polí-ticos. Parece uma coisa separada da outra, mas não é. Como a elite era muito pequena, quem produzia pensamento eram os próprios políti-cos, na forma de discursos parlamentares, arti-gos de jornal, livros, brochuras, panfletos. Essas duas maneiras de pensar o Brasil que já podiam ser identificadas no Império vão se adaptando e continuam existindo.

Veio a República e chegou o momento luzia, que teve ali dois representantes paradigmáticos. Um deles, Rui Barbosa. Ele era o chefe dos lu-zias progressistas, enquanto Campos Salles era o chefe dos luzias conservadores. São as figuras mais representativas do período, que chefiarão a oposição liberal ao pensamento conservador da Primeira República. Quando a República Velha começou a fazer água, voltou o domínio saqua-rema: a federação arruinando o Brasil, o país exposto à intervenção estrangeira, a ameaça de recolonização, o imperialismo à vista, tudo isso fez parte do discurso de retorno saquarema, que reapareceu em autores como Alberto Torres e Oliveira Viana. O movimento tenentista, che-fiado por Juarez Távora, era saquarema. (Távora era leitor de Alberto Torres.) Retomou-se a ideia do Estado forte e interventor e, com ele, o mesmo diagnóstico passado: sociedade decaída, inexis-tência de nação e necessidade, portanto, de um Estado forte. E o núcleo burocrático do Estado que podia executar a tarefa era o Exército. Alber-to Torres não diz isso com todas as letras, mas é natural que o Exército se veja no direito de pen-sar que era o núcleo ilustrado cívico patriótico do país. E, naquele momento, pode-se dizer que o movimento tenentista era profundamente pro-gressista e antioligárquico.

O que desejo mostrar é que, na História do

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Brasil, não faltam luzias e saquaremas andando por aí, mostrando suas garras, difundindo suas visões, apresentando suas críticas, desfiando seus ataques mútuos. Quando um saquarema vê um luzia, afirma: “Elitista! Oligárquico! Quan-do você fala em povo, está olhando para a elite. Sociedade civil para você é um eufemismo.” O luzia, por sua vez, responde: “Autoritário! Caudi-lhista! Liberticida! Chavista! (na versão contem-porânea).”

Como já foi possível perceber, essa divisão tem um componente fortemente geográfico. O Rio de Janeiro tende a ser geograficamente pró-ximo do pensamento saquarema, pois aqui era a capital monarquista do Império, que conti-nuou monarquista por pelo menos 10 anos da República. Era a forma de valorização do Estado centralizado. Já as províncias eram os focos do pensamento luzia. Quando São Paulo começa a crescer muito, depara-se com um problema: era uma província rica num Império centralizado. Ali os paulistas se tornam federalistas. Eviden-temente, se fossem a capital, provavelmente seriam centralizadores. Ou seja, defendem a fe-deralização ou a separação do Brasil. A ideia de que São Paulo é uma locomotiva que carrega 15 ou 20 vagões vazios vem do Império. Trata-se de uma propaganda republicana da época. Carica-turas que mostram a Bahia como a mulher gorda e preguiçosa, ou o nordestino em geral como al-guém decadente, também são desse período. Al-berto Salles, irmão de Campos Salles, escreveu um livro separatista, “A pátria paulista”, no qual defendeu tirar São Paulo do restante do Brasil. Esse tipo de pensamento vinha sempre acom-panhado de uma visão muito dura do Nordes-te e do Rio. Segundo Alberto Salles, São Paulo cresceu porque não houve mistura com índios e negros. O Nordeste afundou porque se misturou com os índios. Rio e Minas, com sangue negro.

A elite paulista parece, para a história, mui-to progressista, mas no fundo é profundamente conservadora. Joaquim Nabuco – de início um luzia e depois um ultramonarquista que com-

bateu a propaganda republicana – dizia que a única maneira de fazer reforma social seria com o Estado forte e autônomo em relação às elites. Daí a necessidade de manter a monarquia. Com a república, haveria a federalização. Com a fede-ralização, viria a oligarquização do país, o que impediria a reforma social. Foi exatamente o que ocorreu. Passamos a entender algumas coisas que parecem incongruentes a partir dessa chave de interpretação, tanto política quanto social. É um debate que começa nas lutas partidárias e só depois passa a se intelectualizar, a partir das pre-missas dadas antes.

Condomínio oligárquicoPrincipal bastião dos luzias, a cidade de São

Paulo ganhou força com o federalismo vigente na República Velha. Campos Salles, um dos princi-pais luzias, era ultrafederalista. Para ele, o papel do Estado nacional e do presidente é ser uma espécie de soldado das oligarquias estaduais. O Brasil enfrentava uma crise econômica grave. Os primeiros 10 anos da República se mostraram uma década perdida: inflação galopante, câmbio deteriorado, dívida pública crescente. Campos Salles teve a convicção de que é preciso sair da crise com uma reforma econômica. A obsessão estava no progresso material, no dinheiro, no mercado, na economia. Mas viabilizar a reforma econômica exigia antes uma reforma política. O Congresso é o lugar do pluralismo político, e isso lhe criaria problemas. Era preciso um Congres-so transformado em rebanho. E Campos Salles resolveu fazer um pacto com os governadores. Como as eleições eram fraudadas, os governado-res se comprometiam a mandar para o Congres-so apenas deputados e senadores afinados com a política federal; o presidente, por outro lado, assegurava-lhes que jamais decretaria qualquer intervenção em seus estados. Com as fraudes eleitorais, as oligarquias se perpetuavam no po-der. Sua única ameaça era a intervenção fede-ral, e esta passava a estar fora do horizonte por promessa de Campos Salles. Foi desse modo que

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Campos Salles conseguiu um Congresso de cor-deiros. Praticamente não enfrentou a oposição e, criando esse grande condomínio oligárquico, conseguiu passar as reformas que quis – todas elas liberais ortodoxas. Enxugou o meio circu-lante, provocou recessão, renegociou a dívida externa, aumentou brutalmente os impostos para refinanciar os estados. Enfim, o mesmo receituá-rio que, mais tarde, repetiria Fernando Henrique Cardoso. Aparentemente deu certo. A crise foi resolvida. Rodrigues Alves encontrou uma casa saneada, reurbanizou o Rio, reequipou os portos, e o país avançou.

A política se viu aí submetida a uma lógica econômica, que é a lógica do mercado,

a lógica da sociedade. Mas a sociedade, nesse caso, são os empresários, os jornalistas, os ad-vogados. As eleições são fraudadas? O sistema é oligárquico? Não importa. Isso não pode ser resolvido pela ação do Estado, mas pelo cresci-mento da economia. O crescimento trará o en-riquecimento dos empresários, que permitirá o enriquecimento do povo e, naturalmente, tudo vai se resolvendo no caminho. Com dinheiro para construir escola, o povo passará a votar me-lhor. Um luzia chamado Gilberto Amado fez, na época, um sensacional discurso na Câmara, no qual afirmou que a eleição nada tem a ver com representação. As eleições podem ser fraudadas, mas justamente por isso o povo estará bem re-presentado no Congresso. Afinal, se o povo es-colher os seus próprios candidatos, o Congresso terá uma multidão de tiriricas. Essa é a utopia liberal: o desejo de uma sociedade que tenha um Estado mínimo, que todos votem e, ainda assim, o Estado continue mínimo. Trata-se de uma uto-pia porque o Estado liberal é oligárquico, um Estado de elite. Analfabetos, mulheres e pesso-as dependentes em geral não votam. Eles não percebem que, quando o sistema começa a se democratizar, os trabalhadores passam a exigir escola pública, hospital público, intervenção do Estado, redução dos lucros das grandes empre-

sas. Mantém-se o liberalismo político, mas não há como manter o liberalismo econômico.

Essa utopia liberal estava na cabeça de Rui Barbosa, mas para Campos Salles o Estado era oligárquico mesmo, e a eleição tinha de ser frau-dada, sim, senhor. A UDN repetiu o modelo adiante. Mas a tragédia udenista foi tentar rea-lizar o sonho de Rui Barbosa em 1950, e não em 1920. Vem dessa visão o ódio udenista a Getulio – o homem que traiu o sonho de implantação de um liberalismo autêntico no Brasil. A Primeira República brasileira é liberalismo, luzia, con-servadora, oligárquica e fraudada. Depois de 30 viria a República maravilhosa pensada por eles, com eleições autênticas. Por isso Getulio é o cau-dilho, o populista, a categoria analítica preferen-cial da USP, dedicada a Getulio.

A USP, São Paulo e o RioA identidade de São Paulo foi forjada como

o avesso do Rio. O Rio era a cidade de gente que não trabalha. A cidade de uma burocracia imensa e parasitária, pendurada no Estado, que sangra os cofres da nação para sustentar sua con-dição de nababos. A cidade dos funcionários pú-blicos ociosos, do clima quente de estufa, onde é impossível trabalhar. A cidade demasiadamente bonita, que desvia os funcionários brasileiros do trabalho. A cidade de cosmopolitismo falsifica-do, de povo ignorante e mestiço. O Rio é o atra-so, enquanto São Paulo é o progresso. São Pau-lo é a grande imigração branca, italiana, alemã e japonesa. O Rio, português e preto. O Rio é a máquina inchada. São Paulo é o trabalhador de verdade. O ideal paulista são os EUA. O Rio é a Ibéria. São Paulo é a modernidade. Essa imagem é repetida por Simon Schwartzman, que não é paulista mas é tucano, no livro “As bases do au-toritarismo no Brasil”. Parece um manifesto de FHC, ao afirmar que o único lugar moderno do Brasil que superou o patrimonialismo foi São Paulo. É uma imagem antiga, que vem do final do Império.

A USP foi criada numa década muito ruim

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para a política paulista. Com a intervenção fe-deral depois da revolução de 1932 – logo a inter-venção, o grande pesadelo da elite paulista – a oligarquia local, pelas mãos de Armando Sales Oliveira (um interventor, mas um paulista), de-cidiu criar a Universidade de São Paulo. A ideia era: se não se pode dominar pela política, domi-ne-se pelo intelecto. Formem-se elites, pessoas preparadas – uma expressão tipicamente oligár-quica. A USP foi criada, portanto, para ser um celeiro de formação das elites. Chega-se perto do ideal udenista. Cria-se a FFLCH, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, com li-nha marcadamente luzia. Ou seja, seu foco está na sociedade. Aos poucos, ela deixa de ser oli-gárquica, para se diferenciar da Faculdade de Direito, que é elitista e oligárquica, uma luzia de direita. Com Florestan Fernandes e Antonio Candido e ligada à intelectualidade paulistana profundamente antigetulista, a FFLCH vai para a esquerda, especialmente depois do Estado Novo.

Ser antigetulista, na época, significava ser, aci-ma de tudo, contrário ao primado do Estado na-cional, à intervenção federal em São Paulo e ao autoritarismo.

Encerrada a guerra, surgiu a divisão entre sa-quaremas e luzias de esquerda e de direita, coisa que não havia antes. A direita luzia era obviamen-te a UDN, prolongamento dos partidos oligárqui-cos anteriores e a grande frente antigetulista. A esquerda luzia era democrática e se transforma no PSB, com Antonio Candido e outros na USP. Politicamente era insignificante, mas começou a produzir um discurso acadêmico a partir de uma perspectiva política. O PSB era também antige-tulista: Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, João Mangabeira, todos tinham uma origem liberal e seguiram para uma linha socialista e progressis-ta. Surgiram também os saquaremas de esquerda, instalados no seio do trabalhismo. Pensemos em figuras como Guerreiro Ramos, Hélio Jaguaribe, os nacional-desenvolvimentistas, o Iseb – todos

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com suas diferenças se observados mais de per-to, mas certamente comprometidos com a ideia de desenvolvimento a partir do Estado nacional. A diferença desse saquarema de esquerda para o anterior é que agora há o sindicato no meio do caminho. Já o saquarema de direita aparece no PSD e no grupo militar linha-dura e nacionalista. A partir dessa chave é possível entender o golpe de 1964 como uma aliança entre os luzias e os saquaremas de direita, contra os saquaremas e luzias de esquerda.

A legitimação uspiana

Por que Lula pôde dizer que admirava Gei-sel e, ao mesmo tempo, Getulio? Porque

ambos tinham em comum o estadocentrismo. Os luzias, ao contrário, são sociocêntricos. Num, o Estado tem papel ativo na modelação da socie-dade. Noutro, a própria sociedade põe arreio no Estado. Os luzias falam de sociedade, mas não falam de povo. Povo, para eles, quer dizer outra coisa. Povo é Getulio, é Lula, é o caudilho, é o populista. Pegue-se o magnífico artigo publicado por Fernando Henrique Cardoso no ano passado, “Para onde vamos?” É uma pérola do luzianismo. Fala de uma sociedade civil sufocada pelo Esta-do e de um povo que segue o César. Diferencia, portanto, sociedade civil de povo. Sociedade ci-vil são os jornalistas, os empresários, os advoga-dos; enfim, a elite. E o povo são os iletrados, que seguem César, ou seja, Lula. O discurso permite voltar aos anos 1950 e compará-lo ao discurso da UDN. Permite também voltar ao regime logo após a abolição da escravatura e compará-lo ao discurso republicano federalista, segundo o qual a princesa Isabel era idolatrada pelo povo, fato desprezado pelos republicanos.

Convém lembrar que Lula era, na origem, um luzia de esquerda. O saquarema de esquer-da era Brizola, herdeiro do trabalhismo. O PT surgiu contra o trabalhismo, em defesa de uma forma de esquerda não pelega, não populista. Lembremo-nos que o populismo foi uma catego-

ria consagrada por Francisco Weffort na USP. E que Lula dizia: a CLT era o AI-5 dos trabalhado-res. Aquilo era, portanto, um movimento luzia de esquerda, que negava Vargas, a tradição do Estado e a relação estabelecida entre Estado e sindicatos. Basta lembrar quem subscreve a fun-dação do PT: Sérgio Buarque de Holanda, Anto-nio Candido e Florestan Fernandes. Brizola era o velho caudilho. E, mais adiante, o PSDB era um partido luzia social-democrata. Com o tem-po, acabou a transição, caiu o Muro de Berlim e as coisas começaram a voltar para seus leitores naturalmente. O PSDB se transformou num par-tido luzia de direita, liberal, americanista, socio-cêntrico. Brizola desapareceu, e o trabalhismo morreu. E o PT virou um partido saquarema. Foi nesse momento que se deu a virada de Lula fa-lando do desenvolvimentismo, fazendo elogios a Geisel e a Getulio, a sua mão preta saindo do poço de petróleo.

Enquanto isso, a sociologia do Rio era centra-da na política e no Estado. Leia Guerreiro Ramos e Wanderley Guilherme dos Santos. Em São Pau-lo, a sociologia nega o político e o Estado nacio-nal. O que explica o Brasil na USP não é o Esta-do, mas a sociedade. No Rio se estuda Estado; em São Paulo, classes sociais. Ali só se estuda o Esta-do a partir das conexões com a burguesia ou com o proletariado. Não se reconhece a possibilidade de autonomia do Estado como agência pública. Na USP, enraizou-se a ideia de que o Estado des-via a correta conduta da democratização no Bra-sil. Criada com a mentalidade luzia, que busca fazer um transplante perfeito das instituições es-trangeiras, a USP espera que seus professores se comportem como franceses, americanos ou coi-sas do gênero. Com o mesmo vigor com que vê no populismo a chaga mais evidente nascida do ventre do Estado forte e centralizado.

Como o exemplo mais bem-acabado de uma universidade feita de transplantes, a FFLCH fez uma espécie de negação da tradição brasileira. Uma tradição que vem de Visconde de Uruguai, Oliveira Viana, Alberto Torres, Azevedo Amaral

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– todos eles passam a ser vistos como autoritários e defensores do Estado centralizado. Numa con-ferência do início da década de 1950, Florestan Fernandes afirma: “Não me filio a Oliveira Viana e Alberto Torres. Filio-me, ao contrário, a Nestor Duarte, a Sérgio Buarque de Holanda, a Antonio Candido.” Os uspianos inventam, assim, um ou-tro cânone do pensamento social brasileiro. A célebre briga de Guerreiro Ramos com o Flores-tan Fernandes passava por aí também. Euclides da Cunha, Silvio Romero – tudo isso aí, dizia Florestan Fernandes, é pensamento autoritário e pré-científico. Guerreiro Ramos respondia que não; era um formalismo ridículo jogar fora todas as reflexões pretéritas pelo fato de que, quando eles produziram, não existia faculdade de ciên-cias sociais. Guerreiro Ramos chamou isso de so-ciologia consular, ou sociologia enlatada.

Hoje a USP é hegemônica, e o cânone inte-lectualizado produzido por ela também é

hegemônico. Mas nos anos 1950 a universidade não tinha a visibilidade de hoje. Essa visibilidade estava no Iseb. Para se legitimar, o pensamento us-piano buscou criar seu próprio cânone. E quando conseguiu inverter, o Iseb passou a ser visto como a fábrica de ideologia, uma coisa pelega cravada com as mãos do Estado. Florestan Fernandes di-zia: quem produzirá pensamento científico somos nós da USP. Havia uma vontade de legitimar a USP como o verdadeiro celeiro do conhecimento no Brasil, e para essa legitimação era fundamental a desqualificação dos outros centros.

O cânone da USP é obviamente um cânone luzia. Há uma rejeição do pensamento político, ou aquilo que era tido como o pensamento po-lítico brasileiro, identificado com o autoritaris-mo entre os autores do Rio. A USP tinha de criar um cânone sociocêntrico. E essa tarefa coube a Antonio Candido. Florestan Fernandes negou a possibilidade de um pensamento social científi-co válido no Brasil porque tudo era autoritário pré-científico. Por isso, os estudos do pensamen-to político brasileiro começam no Rio. Primeiro,

com Guerreiro Ramos, depois com Wanderley Guilherme dos Santos. O departamento de So-ciologia da USP não é o lugar para estudar pensa-mento social, e sim para produzir teoria social, ou pesquisas de cunho científico. Não à toa que, na USP, a história do pensamento social começou a ser estudada na literatura. Roberto Schwartz não surge do nada. A porta havia sido fechada no departamento de Sociologia. O marco teórico dos estudos sociais no departamento de Letras foi Antonio Candido, com “Formação da literatura brasileira”. Para quem o nosso pensamento não passa de um ramo da árvore portuguesa, que por sua vez já é subalterna no concerto das nações.

Em 1967, Antonio Candido escreveu o pre-fácio da quinta edição de “Raízes do Brasil”, quando o livro de Sérgio Buarque de Holanda realmente estourou. No prefácio, ele afirma: “‘Raízes do Brasil’ foi uma das principais obras da minha geração. Três livros formaram a minha geração.” Antonio Candido não queria saber de Oliveira Viana, um velho autoritário. Dos três li-vros que formaram sua geração, segundo ele, um representava o passado, outro o presente, outro o futuro. O passado é “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, personagem muito adorado na época pelos luzias de esquerda paulistas, que somente depois descobriram que ele era conser-vador. A primeira edição de “Raízes do Brasil” - livro que representava o presente - é repleta de referências a Gilberto Freyre. E representava o futuro “Formação do Brasil contemporâneo”, de Caio Prado Júnior, comunista, também luzia. Ou seja, uma frente inteiramente antigetulista e so-ciocêntrica. O livro de Sérgio Buarque não fez tanto sucesso até essa quinta edição. Coube a Antonio Candido a responsabilidade de alçá-lo aos píncaros, assim como a esse cânone que pas-sa sobretudo pela USP. Eis a grande trinca fun-dadora do pensamento social uspiano: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. No ano passado, observando o programa de graduação de pensamento social no Brasil do departamento de Sociologia da USP, vi os auto-

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res lidos. Eram os mesmos. No segundo momen-to, vinham Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni e Florestan Fernandes. Ou seja, o pensa-mento social do Brasil é o pensamento sociológi-co do departamento de Sociologia da USP. Uma máquina de reprodução e autoelogio.

A sinistrose luzia paulistaToda a literatura canônica produzida na USP

tem uma ideia central: a defesa do transplante perfeito. Florestan, Fernando Henrique e We-ffort pecaram por isso. Seus textos mostrarão a fórmula. Se a realidade não está de acordo com o livro, está errada. A realidade brasileira se tor-na um grande desvio. É onde chegamos no maior desconforto deles com o Brasil. A visão livresca, a fidelidade às fórmulas teóricas, decorrente do universalismo luzia, e a convicção de que tudo é igual em toda parte, somente no Brasil é diferen-te, resultam na convicção de que isso pode ser explicado como deformação ou desvio. Não há caminho próprio. Não é possível entender os fe-nômenos sociais ou políticos através de uma aná-lise da trajetória do Brasil entendida como outra qualquer, feito a da Inglaterra, da França ou dos EUA. Diferentemente disso, tenta-se ver a traje-tória desses países e encaixar no Brasil. Não há jeito, vira desvio. Eles não conseguem entender o processo de democratização no Brasil começan-do com Vargas, com o modelo corporativo, com a unicidade sindical, com os sindicatos atrelados ao Ministério do Trabalho. Aquele processo era uma via da nossa democratização. Claro que os trabalhadores eram gratos a Getulio no Estado Novo. Claro que achavam a liderança dele fun-damental para que adquirissem direitos sociais. Caiu o Estado Novo e veio a UDN dizer que Var-gas montou uma máquina de tutela sobre os tra-balhadores, instrumentalizando-os para os seus desígnios pessoais, que Vargas desviou a trajetó-ria comum, de sindicatos livres e independentes na luta contra a burguesia. Essa visão torna pejo-rativo o sistema democrático entre 1946 e 1964 e dá vigor à ideia de República populista, categoria

academicizada na USP mais tarde por Francisco Weffort. Não era uma chave udenista, por se tra-tar de um luzia de esquerda, mas era uma chave segundo a qual houve um desvio aí, uma vez que o proletariado ou as massas foram instrumenta-lizadas por Vargas. Essa visão não consegue en-tender a trajetória brasileira por ela própria. Ao contrário, enxerga aquilo que devia ser e não era. Por isso o PT surgirá para resolver o problema, para rejeitar a tutela do Estado e colocar as coisas no lugar com o socialismo democrático. Esse é o luzianismo de esquerda na USP. Um luzianismo segundo o qual o Brasil entrará na sua senda na-tural, da qual foi desviado por esse modelo auto-ritário corporativo surgido a partir de Vargas. Não entendem que era do interesse dos trabalhadores seguir aquela política? Não entendem que os sin-dicatos eram ativos e atuantes? Curiosamente, esse discurso se repetirá no governo Lula, também pelos luzias, na análise de que os sindicatos foram cooptados pelo lulismo.

A USP trabalha em nome do progresso com categorias normativas encobertas de científicas que, paradoxalmente, desqualificam o povo real e o movimento democrático real e empírico em nome do ideal, amparando-se na ideia do sin-gular. O problema do Brasil é que é singular. Por que é diferente dos EUA, da Inglaterra e da França? Por causa da herança maldita da colo-nização ibérica, que trouxe esse maldito Estado fiscalista e interventor, que impede a sociedade de se desenvolver livremente. Eis o desvio. Vis-to assim, a constituição do percurso se torna in-teligível. Vira a sociologia da falta. A sociologia do desconforto. É preciso sempre romper com o passado e com a tradição, porque a herança será sempre maldita. Com isso, ou se parte para uma perspectiva revolucionária, como foi Florestan no fim da vida, ou para o desencanto total, a vi-são de que estamos num beco sem saída.

[email protected] articulista é professor da Universidade Federal Fluminense

Depoimento a Rodrigo de Almeida

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