saquarema: histÓria de sua urbanizaÇÃo pela funÇÃo

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www.professores.uff.br/seleneherculano SAQUAREMA: HISTÓRIA DE SUA URBANIZAÇÃO PELA FUNÇÃO-VERANEIO E A DISPUTA POR SUAS TERRAS PÚBLICAS (1955-1980): ANALISANDO UM CASO DE DESENVOLVIMENTO LOCAL NA REGIÃO DOS LAGOS (RJ) 1 Selene Herculano [email protected] Resumo : Saquarema, município da Região dos Lagos, RJ, é uma cidadezinha de veraneio, de ocupação sazonal desde 1955. Este artigo conta a história da urbanização de seu distrito-sede, que se originou da função-veraneio e do parcelamento e privatização de terras públicas na sua restinga, o que envolveu conflitos variados e processos judiciais. Além de registrar essa história, a proposta do artigo é provocar uma reflexão sobre os impactos sociais e ambientais, positivos e negativos, do desenvolvimento local experimentado, que teve a função-veraneio e a privatização de terras públicas como vetores. O artigo tem por base a dissertação de mestrado da autora para a COPPE/UFRJ, em 1981. Palavras-chave : desenvolvimento local, urbanização, veraneio, terras públicas, Saquarema, turismo, residências secundárias, Região dos Lagos Introdução : Saquarema é um município da Região dos Lagos ou “Costa do Sol.” (RJ), a 100 km da cidade do Rio de Janeiro. Divide-se em três distritos: o distrito-sede de Saquarema, Bacaxá, ou segudo distrito e Sampaio Corrêa (antigo Mato Grosso), terceiro distrito. A autodenominada “Capital do Surf” compreende três praias (Itaúna, Saquarema e Jaconé) e três lagoas (Saquarema, Jaconé e Jacarepiá). Até o final dos anos 50, sua população (18.880 pessoas pelo Censo de 1950) dedicava- se à pesca artesanal, ao cultivo de cítricos e de cana de açúcar e à produção de farinha de mandioca para subsistência. Segundo o Censo do IBGE de 2010, passou a ter uma população fixa de 73.796. SAQUAREMA EVOLUÇÃO POPULACIONAL: 1 Artigo feito com base na dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional da autora para a COPPE/UFRJ, 1981, intitulada A cidade sazonal: a urbanização pela função-veraneio e pela privatização de terras públicas um estudo de caso de Saquarema (RJ).

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SAQUAREMA: HISTÓRIA DE SUA URBANIZAÇÃO PELA FUNÇÃO-VERANEIO E

A DISPUTA POR SUAS TERRAS PÚBLICAS (1955-1980): ANALISANDO UM CASO

DE DESENVOLVIMENTO LOCAL NA REGIÃO DOS LAGOS (RJ)1

Selene Herculano

[email protected]

Resumo: Saquarema, município da Região dos Lagos, RJ, é uma cidadezinha de veraneio, de ocupação sazonal desde 1955.

Este artigo conta a história da urbanização de seu distrito-sede, que se originou da função-veraneio e do parcelamento e

privatização de terras públicas na sua restinga, o que envolveu conflitos variados e processos judiciais. Além de registrar essa

história, a proposta do artigo é provocar uma reflexão sobre os impactos sociais e ambientais, positivos e negativos, do

desenvolvimento local experimentado, que teve a função-veraneio e a privatização de terras públicas como vetores. O artigo

tem por base a dissertação de mestrado da autora para a COPPE/UFRJ, em 1981.

Palavras-chave: desenvolvimento local, urbanização, veraneio, terras públicas, Saquarema, turismo, residências

secundárias, Região dos Lagos

Introdução:

Saquarema é um município da Região dos Lagos ou “Costa do Sol.” (RJ), a 100 km da

cidade do Rio de Janeiro. Divide-se em três distritos: o distrito-sede de Saquarema, Bacaxá, ou

segudo distrito e Sampaio Corrêa (antigo Mato Grosso), terceiro distrito. A autodenominada

“Capital do Surf” compreende três praias (Itaúna, Saquarema e Jaconé) e três lagoas

(Saquarema, Jaconé e Jacarepiá).

Até o final dos anos 50, sua população (18.880 pessoas pelo Censo de 1950) dedicava-

se à pesca artesanal, ao cultivo de cítricos e de cana de açúcar e à produção de farinha de

mandioca para subsistência. Segundo o Censo do IBGE de 2010, passou a ter uma população

fixa de 73.796.

SAQUAREMA – EVOLUÇÃO POPULACIONAL:

1 Artigo feito com base na dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional da autora para a

COPPE/UFRJ, 1981, intitulada “A cidade sazonal: a urbanização pela função-veraneio e pela privatização de

terras públicas – um estudo de caso de Saquarema (RJ)”.

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A Igreja de N.S. de Nazaré, erguida em 1534 em um promontório do distrito-sede,

é um centro religioso regional, sendo a festa da sua padroeira celebrada no dia 8 de

setembro.

A IGREJA DE N.S. DE NAZARÉ

Tela do pintor José Maria de Almeida, anos

60 (acervo da autora)

Tela da pintora Vera Dracinski, anos 60 (acervo da

autora)

Até 1955, a restinga do distrito-sede era apenas uma diminuta aldeia de pescadores e

um centro religioso de romarias (a Igreja de Nossa Senhora de Nazaré), com praias vazias e

extensos areais intocados. Em Bacaxá, à beira da Rodovia Amaral Peixoto (RJ-106), havia um

pequeno centro comercial, uma estação da Estrada de Ferro Maricá e “portos de roça”, de onde

tropeiros transportavam a produção local de cítricos que seguia por via férrea. Sampaio Corrêa,

à beira da mesma rodovia, na serra do Mato Grosso, era local de plantação de cana de açúcar,

processada pela Usina Santa Luzia. A cana, por sua vez, havia substituído os arrozais plantados

bem anteriormente pelo fazendeiro Sampaio Corrêa.

Tela do pintor Antenor de Oliveira, anos 60 (acervo da autora)

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A partir de 1955, Saquarema começou a se transformar, passando de um município agro-

pesqueiro e centro religioso de romarias para local de veraneio das camadas médias e médias

baixas metropolitanas. Deflagrou-se um processo de urbanização baseado na doação de terras

públicas do distrito-sede (terrenos de marinha, da União Federal e terras devolutas, do estado-

membro na qual se situem) a veranistas metropolitanos de classes médias, que ali edificaram

residências secundárias, de veraneio. Através de tais doações a Prefeitura buscava desenvolver o

local, baseada na premissa de que urbanização significa desenvolvimento. Os donatários

metropolitanos, por sua vez, além do gozo da natureza, buscavam, através do terreno doado e da

construção paulatina e informal, acessibilidade à casa própria: para muitos veranistas a

construção da casa própria em Saquarema foi um meio de ter acesso, via negociação posterior, a

um imóvel metropolitano, inacessível em uma conjuntura inflacionária, ainda sem correção

monetária, e de poupança inviável.

Cartão-postal da Praia de Saquarema, anos 70

A conversão do município ao veraneio se deu por etapas:

1- acessibilidade muito restrita, por via aérea, com a construção de um campo de

pouso da FAB em 1937, no contexto da segunda guerra mundial;

2- acessibilidade ampliada com a pavimentação da Rodovia Amaral Peixoto (RJ-106)

em 1954;

3- urbanização do distrito-sede, via parcelamento e doação de terras públicas (terrenos

de marinha e terras devolutas) pela municipalidade a metropolitanos, para a construção

de residências secundárias para veraneio;

4- expansão da urbanização de ocupação sazonal, após 1974, através de ação judicial

que deu à municipalidade a posse definitiva de 5 km² da restinga do distrito-sede; fim

da agricultura, com a praga “fumagina” nos cítricos e o fechamento da Usina Santa

Luzia, em 1974; uso posterior das terras rurais para a pecuária eqüina); expansão do

perímetro urbano.

Detalharemos a seguir cada etapa.

Fase 1 – o campo de pouso da FAB

Em 1937 a Força Aérea Brasileira – FAB construiu um campo de pouso na restinga do

distrito-sede, com o propósito de ser utilizado como ponto de defesa e vigilância da costa na

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guerra que se anunciava (Segunda Guerra Mundial). Após o término desta guerra, o campo de

pouso e as duas casas da Aeronáutica construídas na praia então absolutamente deserta,

passaram a ficar subordinados à Escola de Cadetes da FAB e a serem utilizados para o

treinamento de pilotos. Desta forma, Saquarema, que não contava com estradas de acesso, à

exceção da ferrovia Marica e de estradas vicinais precárias para o escoamento dos cítricos em

seus portos de roças de tropeiros, começou a ser conhecida entre a oficialidade da FAB, tendo

sido eles os primeiros veranistas a receber da Prefeitura doação de terrenos ali sediados.

Fase 2- acessibilidade ampliada com a pavimentação da Rodovia Amaral Peixoto (RJ-106) em

1954

Com a pavimentação da rodovia Amaral Peixoto, em 1954, o município tornou-se

acessível à população metropolitana. Foi a partir de então que a Prefeitura Municipal iniciou

um processo de concessão de lotes de terras públicas a veranistas metropolitanos, com o

objetivo declarado de promover o desenvolvimento local.

Fase 3 - parcelamento e doação de terras públicas (terrenos de marinha e terras devolutas)

pela municipalidade a metropolitanos, para a construção de casas de veraneio; acessibilidade

ampliada para a Região dos Lagos pela inauguração da ponte Rio-Niterói, em 1975

O parcelamento e privatização de lotes na restinga do distrito-sede de Saquarema se deu

em momentos diferentes e bem demarcados, com a presença de conflitos:

3.1- a “doação por despacho” de terras devolutas e terrenos de marinha;

3.2 - a pretensão de uma ordem religiosa em fazer valer uma sesmaria em seu nome;

apropriando-se das terras o que gerou disputa judicial;

3.3 - a disputa judicial que acabou por conceder à Prefeitura o domínio pleno de

terras;

3.4 - os conflitos e denúncias sobre a troca de lotes de terrenos por votos.

Vejamos um pouco cada um desses momentos conflituosos que se inserem na Fase 3:

3.1 A doação por despacho:

A questão sobre quem teve a idéia de lotear e conceder terras públicas a veranistas é

nebulosa e vários dos ex-prefeitos entrevistados chamaram a si tal iniciativa, embora fossem

todos reticentes a respeito do amparo legal para tal:

“Quem teve a idéia de lotear fui eu. Fui ao Serviço de Patrimônio do Estado,

procurei me informar de quem era, se era deles, ninguém respondeu, não era de

ninguém, loteei. Pensei que era uma forma de fazer, como realmente fez, o lugar

prosperar. Isso tudo aqui, minha filha, era mato” (Ex-Prefeito Gentil Mendonça)

A julgar pelo Código Tributário Municipal da época (Deliberação Municipal 15/55)

tais doações se tornavam freqüentes, pois já se previra uma sistemática tributária pertinente.

Assim, a Deliberação dispunha que “os terrenos pertencentes ao Patrimônio Municipal não

serão dados em aforamento sem que o enfiteuta se obrigue a edificá-lo, desde que a isso se

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prestem, dentro de 6 meses contados da data da concessão. Findo esse prazo, considera-se

extinto o aforamento se o terreno não estiver edificado”.

Assim começaram as doações, que tiveram dois estágios: em um primeiro momento

loteou-se a orla marítima, os terrenos de marinha. Terrenos de marinha estão legalmente

definidos como sendo aqueles que ficam em uma profundidade de até 33 metros da linha de

preamar-médio de 1831, segundo o Decreto-Lei 9760, de 5/9/46. Os terrenos de marinha são

da União Federal e estão sob domínio do Serviço de Patrimônio da União, do Ministério da

Fazenda). Vale lembrar que, nos termos do Decreto-Lei 9760/46, é permitida a ocupação por

aforamento de bens da União, mediante autorização do Presidente da Republica. Em um

segundo momento, a praia já ocupada, começou o parcelamento e privatização das terras do

interior da restinga.

Os documentos que serviam de comprovante da doação feita pela Prefeitura

Municipal eram recibos referentes ao pagamento de taxas de nivelamento e arruamento,

guias de recolhimento de taxas de fiscalização, licença para construção, em cujo verso se

declarava que o terreno havia sido obtido “por despacho”. Era o interessado no terreno que o

requeria à Prefeitura, era ele que usava o termo “concessão”. O Prefeito limitava-se ao

despacho, deferindo ou não o requerimento. Não havia aforamento municipal, apesar do

disposto no Código Tributário Municipal então vigente.

E assim começou a ocupação física da restinga, de forma paulatina, casuística,

informal, sem planejamento urbano, via parcelamento das terras em lotes de 15 x 30 metros,

tendo o beneficiário 6 meses para construir um alicerce e 2 anos para concluir sua casa. Tais

concessões eram feitas antes da Prefeitura traçar e abrir as ruas que delimitariam e dariam

acesso aos lotes já doados. A expectativa das autoridades municipais era a de desenvolver

Saquarema através da sua urbanização pelo veraneio, concedendo terrenos a uma classe

média metropolitana formada por militares e funcionários públicos. Paulatinamente as

poucas vendinhas de gêneros básicos iam se transformando em lojinhas de ferragens e de

material básico de construção. E as famílias de pescadores (que na verdade nunca ocuparam

a orla devido ao forte vento sudoeste, e sim as terras distantes cerca de uns 200 metros da

linha d’água) foram se mudando adentrando a restinga ou indo para o outro lado da lagoa.

3.2 A disputa com os carmelitas: terras devolutas ou sesmarias?

Em 1931 fora assinado um decreto estadual (Decreto nº 2666 de 26 de setembro de

1931, conhecido como o Regulamento de Terras). Tal decreto ordenava a medição e

demarcação das terras devolutas no Estado do Rio de Janeiro. Terras devolutas são aquelas

que não estão aplicadas a algum uso público federal, estadual ou municipal e que não estão

legitimamente incorporadas ao domínio privado. Na sua origem, terras devolutas viriam a

ser todas as terras da Coroa não-utilizadas e não privatizadas em sesmarias, capitanias ou

instrumento similar, e também aquelas que, embora tendo sido doadas em sesmarias, foram

devolvidas na prática à Coroa, por terem caído “em comisso”, isto é sem uso. As terras

devolutas, desde a Constituição Federal de 1891, artigo 64, passaram para o domínio do

estado da federação onde se situassem. Após o Decreto-Lei nº 271, de 28 de setembro de

1967, do governo federal, as terras devolutas passaram a ter sua privatização regulada por lei

federal que instituía a figura da Concessão de Uso.

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Em 1956, mais precisamente em 26 de setembro de 1956, publicou-se na imprensa

oficial do Estado do Rio de Janeiro um edital sobre a demarcação de terras devolutas, com

base no decreto de 1931.

Foi aí que a Província Carmelitana Fluminense, atendendo ao edital, apresentou uma

pública-forma das páginas 282 e 684 do volume 57 dos Anais da Biblioteca Nacional,

referentes ao “Tombo” dos bens pertinentes ao Convento Nossa Senhora do Carmo, cujo

Prior teria recebido em sesmaria, nos idos de 1670, terras do primeiro distrito de Saquarema.

Tal pública-forma foi transcrita no cartório de Registro de Imóveis do município em 29 de

setembro de 1956, Livro 3B, fls 184 e 185, número 1215. A Província Carmelitana,

(sucessora do Convento do Carmo) deu início a um processo judicial pedindo o domínio da

restinga, ganhando uma sentença favorável em primeira instância, pois entendeu a Justiça

que as terras conferidas em sesmaria não haviam caído em comisso. Tal sentença foi

confirmada pela Colenda Segunda Câmara e o acordo transitou em julgado.

Quando, já em meados dos anos 60, a pretensão dos padres às terras chegou ao

conhecimento da população, houve celeuma e forte comoção entre o povo habitante do local

e os veranistas donatários. A imprensa metropolitana registrou o caso em reportagens sobre

“a cidade despejada” (O Fluminense, fevereiro de 1966, série de reportagens de Carlos Ruas

e Jorge Ventura). Houve passeatas ao som do hino nacional2, procissões contra a sentença

prolatada e um abaixo-assinado foi enviado ao governador do Estado, Paulo Torres, onde se

dizia:

“Os abaixo-assinados, proprietários e moradores naturais da região, ou elementos

que aqui possuem residências de veraneio, homens de todas as classes e categorias

sociais – generais de nossas Forças Armadas a humildes pescadores e modestos

agricultores, vendo-se ameaçados nos seus patrimônios pelas absurdas pretensões

da Província Carmelitana de St. Elias, ex-Província Carmelitana Fluminense [...]

vêm a Presença de V. Excia. apelar para que sejam tomadas as enérgicas e urgentes

medidas que, encerrando essa demanda, devolvam a tranqüilidade ao município,

garantindo a preservação do sagrado direito da propriedade legalmente constituída,

a manutenção da economia particular e pública, hoje abaladas com a paralisação

dos negócios e investimentos de todos os tipos [...].”3

Instado pela evocação de tais valores e pelo clamor público de uma população em

pânico e em revolta, o Estado do Rio de Janeiro, depois litisconsorciado com a Prefeitura de

Saquarema, moveu uma ação rescisória, pedindo o cancelamento da transcrição do traslado

de 1670, baseado na nulidade dos documentos apresentados. Segundo o Dr. Irineu da Costa

Carvalho, advogado da Prefeitura de Saquarema, era também muito estranha a publicação,

em 1956, de um edital referido a decreto de 25 anos antes, sem dar ciência à Prefeitura

Municipal, à comunidade já instalada no local e reconhecida pelo IBGE como núcleo

urbano. Corria à boca pequena que teria havido um acordo entre a Província Carmelitana,

2 Lideradas pelo Coronel Teixeira Pinto, da FAB, que havia liderado o chamado “levante de Aragarças”,

tentativa de depor o Presidente Juscelino Kubitschek. 3 Segundo entrevista do advogado Irineu da Costa Carvalho à autora e consulta aos seus arquivos.

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uma autoridade do governo estadual e uma empresa hoteleira internacional, para a

construção de um complexo hoteleiro de grande porte na região.

Finalmente, em 5 de março de 1969, os juízes desembargadores do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgaram procedente a ação rescisória, por unanimidade

de votos, ordenando o cancelamento da transcrição feita no cartório local. Segundo seu

relator, o Desembargador Paulo Castilho:

“É até perceptível que a Província Carmelitana Fluminense de Santo Elias não

demonstrou muito boa-fé em tal negócio ou foi mal assessorada, certo que, só com o

advento do Decreto 2666 de 29/9/1931, resolveu acordar do sono de 200 anos, sem

nunca haver se apossado das terras.”

Cancelada a inscrição, entendeu-se que as terras em litígio voltavam à situação de

terras devolutas, portanto sob o domínio do Estado do Rio de Janeiro. A Prefeitura

Municipal de Saquarema moveu então uma Ação Declaratória contra o Estado do Rio, a

Ação nº 1449, cuja Carta de Sentença do Juízo da Segunda Vara da Justiça Federal, de 2 de

agosto de 1974, a beneficiou. A municipalidade de Saquarema entrou no domínio pleno,

proprietária inconteste de 5 km² da bela restinga.

3.3 Conflitos e denúncias sobre a troca de lotes por votos – o Processo Judicial 2240/74, do

Ministério da Justiça

Em 1974, enquanto a municipalidade ganhava o domínio pleno da restinga, uma

denúncia de um ex-prefeito e seus correligionários contra o grupo político então no poder

tomou a forma de um Processo no Ministério da Justiça. A denúncia dizia respeito a um

suposto enriquecimento ilícito de membros do grupo ocupante do poder, através da venda de

bens imóveis municipais. Segundo tais denunciantes, as doações de terrenos, que dantes

teriam sido executadas de forma parcimoniosa e bem conduzida, escolhendo-se os

donatários entre pessoas de bem, passaram a serem feitas de forma ilícita e inconveniente,

para proveito individual de integrantes de um grupo:

“Eu só trouxe gente boa para cá: doutores, militares. Hoje, com essa política de

trocar lotes por votos, estão trazendo uma gente braba de Caxias, Nova Iguaçu.”

(ex-prefeito Hélio Bernardino de Mattos)

Entretanto, segundo a Promotora que se manifestou pelo arquivamento do Processo

2240/74, não havia clareza se os fatos aludidos se restringiam a apenas uma ou outra gestão

e, em sendo praticamente impossível arrolar a todos, melhor seria dar o caso por encerrado.

Uma breve transcrição de trechos das páginas 20 a 29 deste Processo 2240/74 é interessante,

pois facilita entender a lógica do jogo de forças que deu preferência à privatização das terras,

assim como definiu o traçado específico extremamente retalhado e amontoado que a

cidadezinha do distrito-sede tomou:

“Os terrenos eram concedidos mediante requerimento ao Prefeito [...] Tratando-se

de pessoas ligadas por amizade pessoal, ou de funcionários policiais, militares e

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altos funcionários do governo, o requerimento é deferido sem nenhum problema e

logo é indicado o sr ... ou ... para fazerem a demarcação do lote a ser adquirido.

Depois, cumprem-se as exigências do Código Tributário Municipal [...] Todavia,

tratando-se de turistas sem as prerrogativas aqui mencionadas, dificilmente o

requerimento é despachado; somente se houver a interferência do senhor B., que

nem sequer é funcionário da Prefeitura, mas é voz corrente que é quem manobra

todo o esquema montado. Por tal interferência, o turista tem que pagar. A prova

material desta irregularidade é difícil, pois existe a torpeza bi-lateral, um vendendo

e outro comprando por preço que não justifica seu valor [...] Segundo declarações

do Sr x., todos os funcionários da Prefeitura recebem lotes nas condições acima, com

a finalidade de venda posterior, tendo como contrapartida votar nos candidatos que

lhes são indicados. Concluímos que houve uma permuta do domínio útil dos

respectivos terrenos, o que, em se tratando de bens dominicais, não é defeso em lei.

[...] Previamente um concessionário combina com um terceiro para adquirir a

concessão de um lote de terra. Adquirida a concessão e construído um alicerce, o

beneficiário doa ou simula venda para aquele que não pode mais receber

concessão, o qual, por sua vez, a revende, obtendo-se assim lucros significativos,

dada a progressiva valorização da terra. Em síntese, presume-se que certas pessoas

vem enriquecendo ilicitamente, valendo-se de bens públicos municipais.”

(Ministério da Justiça: Processo nº 2240/74, fls. 20 a 29)

3.4 Expansão do perímetro urbano e decadência rural: Com a expansão da urbanização de

ocupação sazonal da restinga (veraneio metropolitano), após 1974, através de ação judicial

acima descrita e com o fim da agricultura (praga nos cítricos e fechamento da usina Santa

Luzia que processava cana de açúcar) a área rural caiu em progressivo abandono e foi se

tornando oficialmente urbana, através de progressivos decretos municipais que expandiam

seu perímetro urbano, embora continuassem os amplos espaços verdes. Algumas áreas se

mantiveram como fazendas para pecuária eqüina, uns poucos sítios praticavam agricultura

mínima de sobrevivência. Mas começava nesta época o desmantelamento das casas de

farinha rurais e a emigração da população.

Fase 4 - A Carta de Aforamento e a venda das terras

Após o ganho judicial do domínio pleno da restinga do distrito-sede, as autoridades

municipais decidiram legalizar a ocupação já efetivada. Para tanto, elaboraram uma Carta de

Aforamento, através da Deliberação Municipal 12/75 de 25/4/1975. Contudo, com a fusão

dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, novas leis estaduais (Constituição Estadual

de 1975, em seu artigo 169 e a Lei Orgânica dos Municípios (L.O.M.), Artigos 59, 130, 132

e 136) passaram a proibir que os municípios praticassem o aforamento (que é não-resolúvel,

isto é, tem perenidade). Em seu lugar, instituía-se a figura da concessão de uso, de direito

real resolúvel. Pretendia a legislação estadual dar às municipalidades instrumento jurídico

hábil para melhor administração de suas terras, preservando-as para planos urbanos futuros

sem prejuízo de uso atual por particulares. Havia uma intenção de política urbana, criando-se

mecanismos ágeis que permitissem resgatar a terra para uso futuro, para uma racionalidade

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de traçado e já mencionando a preservação ecológica. Este espírito estava subjacente no

parágrafo primeiro do artigo 130 daquela L.O.M. que transcrevemos abaixo:

“O Poder Executivo delimitará e regulará a utilização de bens de uso comum, não

passíveis de permissão ou concessão de uso, com vistas à preservação do interesse

turístico, paisagístico e ecológico” (grifo nosso)

Em obediência, a municipalidade saquaremense criou a Lei 52/1977, pela qual toda

Carta de Aforamento porventura existente se transformaria “automaticamente” em concessão

de uso, como vimos, uma figura de direito real resolúvel criada por legislação federal com o

intuito de disponibilizar terras e facilitar planos urbanísticos futuros, reforma urbana, etc.

(Entretanto, encontramos depoimentos de veranistas que apresentaram à Caixa Econômica

Federal ao final dos anos 70 – e foi aceita por ela! – a carta de aforamento municipal como

documento para a tramitação de empréstimos para compra e venda imobiliária.)

Quanto aos lotes das terras recém-conquistadas, então ainda vazios, a Prefeitura

preferiu aliená-las definitivamente e fazer caixa:

“Depois que a Prefeitura entrou na posse dos 5 milhões de metros quadrados da

área questionada, os terrenos foram vendidos inicialmente a 1.300 cruzeiros, por

volta de 1974/75; a 4.800 cruzeiros em 1976 e agora [era o ano de 1977] a 18 mil

cruzeiros”. (ex-prefeito Porfírio Nunes de Azeredo, entrevista à autora)

A valorização das terras era algo expressivo, como o demonstra o depoimento de um

veranista:

“Comprei esse terreno por 12 mil cruzeiros, em 1969. Hoje (1979) acredito que um

terreno desses, em rua calçada, com água e luz, próximo à praia, deve estar por uns

400 mil cruzeiros.” (Ou seja, teria aumentado seu valor 33 vezes em 10 anos. Tais

cifras, atualizadas pelo IGP da FGV, mostram que os preços dos terrenos cresceram

12 vezes em 10 anos).

Em 1977, o Projeto CIATA, do Ministério da Fazenda4, promoveu um cadastramento

de imóveis urbanos para fins de atualização de cobrança de impostos e listou 17.500

propriedades urbanas (tanto casas quanto terrenos cercados) em Saquarema. Nesta época,

observação direta da autora contabilizou cerca de 2000 casas na restinga do município sede,

80% das quais de ocupação sazonal). O número significava um crescimento expressivo em

relação às poucas dezenas de casas observadas em 1957. Por conta da atualização cadastral

do Projeto CIATA, o município ocupou em 1978 a rara posição de um município brasileiro

de pequeno porte cujas rendas próprias auferidas eram superiores ao montante transferido. O

crescimento urbano veio a se refletir positivamente no orçamento municipal da época

(1978), quando, diferentemente de municípios similares em porte, Saquarema teve suas

4 CIATA – Convênio de Incentivo ao Aperfeiçoamento Técnico-Administrativo das Municipalidades, da

Secretaria de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda, operacionalizado pelo SERPRO – Serviço

Federal de Processamento de Dados.

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receitas próprias mais elevadas do que as receitas transferidas, ou seja, viveu um momento

de autonomia financeira.

De uma receita geral então estimada em três milhões de cruzeiros, Saquarema

realizava um orçamento de nove milhões, segundo relato do Prefeito da época. Sr. Porfírio.

Na Prestação de Contas de 1976 que o município encaminhou ao então Conselho de Contas

Municipais (órgão estadual, hoje substituído pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de

Janeiro), o prefeito assim se expressava sobre a diferença entre o orçamento previsto e o

realizado:

“Alcançamos índices de crescimento nunca dantes atingidos. Assim é que, de uma

receita estimada de 3 milhões de cruzeiros atingimos, no final do exercício, um total

de 9 milhões, novecentos e vinte e um mil quatrocentos e quarenta cruzeiros e trinta

e um centavos, o que equivale a um crescimento de 332%”.(Ex-prefeito

P.N.Azeredo)

Tais receitas, oriundas da concessão, aforamento e venda de terras municipais,

tinham um registro de difícil entendimento: eram lançadas na rubrica “Exercício de Poder de

Polícia, cujo item previa 900 mil cruzeiros e apontava como realizados mais de Cr$ 4

milhões, segundo o Relatório de Inspeção Especial do Conselho de Contas Municipais -

CCM.

Ganhas as terras, a municipalidade providenciou ao final dos anos 70 plantas com

vistas à gestão dos bens recém-incorporados. Estudando este conjunto de plantas chegamos

ás seguintes conclusões:

Dividindo-se a cifra lançada como exercício de poder de polícia, mas oriunda da

concessão, aforamento e venda de terras municipais pelo preço declarado em 1976 para cada

lote, estimamos uma média de 1000 lotes negociados naquele ano. Isso significa que em um

único ano ter-se-ia privatizado uma área equivalente a 9,3% da área total ganha

judicialmente pela Prefeitura ou 32% da parcela daquela área ainda não ocupada.

Tabela 1 - PARCELAMENTO DE TERRAS DA RESTINGA DE SAQUAREMA EM 1976:

Áreas LOTES M²

Área total ganha pela Prefeitura na Justiça 5.701.250

Zona “alodial” (de ocupação antiga, a

leste da Rua Prefeito Raposo)

2.310.273

Zona de ocupação recente 3.390.977

Áreas de ruas (abertas e projetadas) 465.032

Áreas parceladas (apropriadas) 4492 lotes 2.021.495

Áreas projetadas para praças 170.050

Áreas sem designação (mato) 1266 lotes 569.800 Fonte: pesquisa da autora a partir de cálculos sobre mapas produzidos pela Prefeitura local

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Observe-se que a área reservada para praças alcançava 2,98% da área total apenas

devido à existência do campo de pouso, cujas normas de segurança técnica exigem

cabeceiras sem edificação. Não houvesse tal necessidade, as áreas de praças não atingiriam

1% da área total da restinga.

Em 1978, técnicos estaduais da SECPLAN/FIDERJ5 escolheram Saquarema como

um dos municípios a receber um planejamento físico-territorial, a fim de dar um

ordenamento urbano e mitigar a degradação ambiental que já se notava: nessa época, a

Prefeitura aterrava trecho da Lagoa de Saquarema com lixo, com o propósito de criar solo

para um clube, o que gerou denúncia de ativistas ambientais à SERLA (Superintendência

Estadual de Rios e Lagoas); sambaquis eram destruídos6; a verticalização começava, em uma

cidadezinha sem esgotos; inexistia previsão de áreas reservadas para praças na zona em

expansão. Novos projetos de zoneamento e parcelamento do solo, código de obras e

definição do perímetro urbano foram elaborados pela SECPLAN/FIDERJ, mas não foram

aproveitados pela Prefeitura e o que passou a predominar foi a construção de mais de uma

casa em um único lote, para aluguel a veranistas.

Não se encontrou nos livros de Atas da Câmara de Vereadores registro de debates

sobre o parcelamento e privatização das terras. Tampouco houve memória, dentre a

população entrevistada, de plebiscito ou alguma consulta similar à população local a respeito

da destinação deste bem público, nem na primeira etapa (quando as terras eram consideradas

devolutas e, como tais, estatais, e, se estatais, públicas), tampouco na segunda etapa, quando

as terras passaram a ser bem municipal de domínio pleno. Para aqueles nativos que cediam

suas áreas ocupadas aos veranistas, havia doação de outros locais, sim, mediante política

personalista.

O desenvolvimento de Saquarema: um balanço

Considerados os patamares iniciais (serviços inexistentes), Saquarema teve melhora

expressiva no período em foco. A melhoria dos equipamentos urbanos foi absoluta: de uma

total inexistência de serviços de abastecimento de água e de energia elétrica (havia, em 1957,

um gerador a diesel que, das 18 às 22 horas, provia de luz as casas em torno da pracinha

central da restinga, enquanto os pescadores usavam lampião e lamparina) passou-se em

1967, por atuação estadual, para a inauguração da primeira rede elétrica e em 1973, a

inauguração de uma rede estadual de água da então CEDAE para o que se chamou de “zona

alodial” (a zona de ocupação mais antiga da restinga e da orla).

No que diz respeito a iniciativas municipais, as aplicações em educação e saúde, embora

presentes, ficaram aquém das receitas oriundas da venda de terras municipais nos anos 70.

(Em 1978 a Prefeitura de Saquarema gastou com educação e saúde, respectivamente 188,73

e 32 cruzeiros novos per capita (dados da SECPLAN do Estado do Rio de Janeiro). Embora

5 A extinta Fundação de Desenvolvimento do Rio de Janeiro – FIDERJ e FUNDREM – Fundação do

Desenvolvimento da Área Metropolitana do Rio de Janeiro estavam afetas à Secretaria Estadual de

Planejamento 6 A antropóloga Lina Knaap especialista em sambaquis e também veranista, fez protestos e escreveu a respeito.

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o aumento de recursos municipais para educação e saúde fosse da ordem de 33 e 45 vezes

mais o que se gastava em 1958, representou apenas 39% das receitas oriundas da venda de

terras, enquanto que 60% da receita arrecadada iam para a abertura e calçamento de ruas). A

abertura e calçamento de ruas vicinais ganharam prioridade: se em 1959 o orçamento da

prefeitura se propunha a gastar 6,6% da sua receita total com arruamento e calçamento, em

1978 tais atividades consumiram quase 60% da receita total, em uma clara opção pela

política de valorização de terras, sobretudo terras particulares no segundo distrito, Bacaxá.

Da total inexistência de assistência médica, o município passou a contar, a partir de

meados dos anos 70, com um hospital público municipal e postos de saúde. Farmácias,

consultórios médicos e clínicas particulares se instalaram. O número de escolas aumentou

(expressivamente na rede estadual).

A construção civil gerou um comércio próspero e propiciou a formação autodidata de

parte da população local (agricultores e pescadores que se tornavam mestres de obras).

O aumento da oferta de serviços, contudo, foi contrabalançado pelo crescimento

populacional, principalmente por migração (operários atraídos pela construção civil; classe

média metropolitana aposentada; classe média baixa metropolitana atraída por empregos e

oportunidade de pequenos negócios próprios, etc.) e conseqüente aumento da demanda. A

população fixa se adensou e se urbanizou: nas duas décadas entre 1957 e 1977 o crescimento

mais expressivo foi em Bacaxá: este segundo distrito e núcleo comercial à beira da Rodovia

Amaral Peixoto, aumentou em 36% sua população fixa, enquanto que no distrito-sede o

crescimento populacional foi de 7% (as casas, como vimos, eram de ocupação sazonal, de

veraneio). O terceiro distrito – Sampaio Correa – eminentemente rural, perdia sua

população. Tal esvaziamento rural se mesclou com o inicio do parcelamento de sítios e

fazendas (38 loteamentos aprovados; em 1978 o perímetro urbano foi ampliado por decreto 8

vezes.)

Segundo o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, TCE-RJ7, o município

melhorou sua posição em relação ao IDH–M (índice que mede o desenvolvimento humano

ou bem-estar da população municipal através da sua longevidade, escolaridade e renda),

passando de 0,438 em 1970 para 0,627 em 1991. Porém a melhora nos índices teve a ver

com parcela da população metropolitana que lá foi residir, enquanto faltavam empregos para

a população nativa mais jovem. Ainda segundo levantamento do Tribunal de Contas, havia

um expressivo déficit habitacional, ao mesmo tempo em que 76% das casas ficavam vazias.

Com efeito, as zonas urbanizadas da restinga do distrito-sede têm o aspecto de cidade-

fantasma, com suas casas fechadas, feias e mal-cuidadas, expostas à ação da maresia,

enquanto as favelas se tornam presentes: em 1998 a Secretaria Municipal de

Desenvolvimento Social enumerou seis favelas (Morro do Sabão, Buraco Quente, Morro da

Chatuba, Basiléia, Tufa, Galo) para onde destinava 3752 cestas básicas.

Hoje, 2010, Saquarema está ligada à rede de energia elétrica da AMPLA (ex-CERJ),

e à rede de águas da Concessionária Águas de Juturnaíba. É um abastecimento ainda com

7 TCE- Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro: Estudo Sócio-Econômico 1997-2001 – Secretaria Geral de

Planejamento.

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alguns problemas nos meses de alta temporada de veraneio. Há coleta de lixo, cuja

destinação final continua polêmica e que já havia gerado protestos dos ambientalistas, por ter

se dado em margens de lagoa (para criar solo, como vimos) e em áreas de preservação

permanente. Houve aplicação de verbas federais na abertura permanente da lagoa e obras

municipais de paisagismo em torno. Ficou bonito, as águas estão límpidas, mas

ambientalistas receiam que a lagoa tenda a secar. O município se verticaliza: pequenos

edifícios, alguns por autoconstrução, substituíram casas de veraneio demolidas. Assim os

estreitos lotes da praia vão se verticalizando e são ocupados por construções coladas

lateralmente e sem recuo. Uma dúvida se coloca: para onde vão seus esgotos? Fossas

sépticas como as das casas? De que porte? Ou haverá lançamento clandestino das águas

servidas?

O turismo incentivado pelos pequenos comerciantes nos quiosques cria atrito com

sua vizinhança, pois tem como suposta atração som de funk e pagodes, espalha lixo pelas

ruas e praias e é praticado por um veranista de baixo poder aquisitivo e que não dá retorno

em impostos. Muitos veranistas se queixam de serem os únicos a pagar IPTU, enquanto a

prefeitura seria tolerante com a inadimplência dos nativos. A Prefeitura vem tentando

investir e incentivar um turismo mais glamourizado, através dos campeonatos de surf, que

efetivamente tem influenciado a construção de pousadas e restaurantes na Praia de Itaúna

(uma área do distrito-sede fora da restinga, onde existiam nos anos 50 três a quatro casas de

famílias muito abastadas da cidade do Rio de Janeiro e que começou a ser loteada por

particulares apenas a partir dos anos 80).

Houve melhoras inegáveis: há um hospital municipal e postos de saúde onde não

havia serviço algum nos anos 50, quando caixões de “anjinhos” adentrando o cemitério eram

uma visão freqüente. Há bancos, telefonia fixa e móvel, comércio diversificado, mas muitos

residentes se queixam dos transtornos causados pela pressão da “invasão turística” e pela

perda de uma qualidade de vida que dizia respeito à identidade cultural, paz, segurança,

convivialidade e limpeza.8 A Escola de Samba Preto e Encarnado e o Rancho Verde e

Branco, que se digladiavam nos anos 50 em disputas acesas e pitorescas, deram lugar aos

blocos e trios elétricos contratados. As serenatas noturnas na praia foram substituídas pelas

caixas de som de dezenas de quiosques enfileirados9. Em outras palavras, a cultura local se

apassivou, tornou-se consumidora de eventos da indústria cultural metropolitana de massa.

Olhando o passado em perspectiva, é de se pensar se não teria sido menos impactante

para Saquarema se a Ordem Carmelita e seus presumidos sócios hoteleiros europeus

tivessem ganhado o domínio das terras da restinga. Cogita-se que em lugar da concentração

de milhares de casas mal-cuidadas, vazias e inadimplentes em IPTU, Saquarema poderia ter

tido hotéis de belo traçado e cuja ocupação mais dispersa da restinga teria conservado a bela

8 SOARES, Cristiane de Souza (2009). “Qualidade de vida – realidades e conflitos do turismo na paisagem

litorânea: o caso de Saquarema-RJ”. Campinas: UNICAMP-NEPAM, Tese de Doutorado, 2009. 9 Ficaram na memória composições locais, como o samba da Escola Preto e Encarnado – “deixa essa gente

falar, que o samba é a nossa tradição, devemos cantar e sambar e cultivar a boa união” - e a canção de louvor

à Saquarema – “Por trás do monte, cruzando a ponte, surge um poema, lugar tão lindo, seja bem-vindo à

Saquarema...Lá no alto uma igrejinha para a gente ir rezar, cá embaixo uma pracinha pequenina,

engraçadinha, para a gente namorar...Saquarema, Saquarema, uma rede, um luar, o tempo voa quando saio

de canoa na lagoa pra pescar.”

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vegetação nativa praiana. Haveria um turismo de hotelaria e de restaurantes, que empregaria

a população nativa e a manteria no local, em lugar das residências secundárias de veraneio,

cuja oferta de trabalho se concentrou na fase da construção dessas casas. Segundo o TCE-RJ,

a maior fonte do PIB local é o aluguel por temporada das casas (cerca do triplo do valor

movimentado pela construção civil em 2006)10

. Tal renda de aluguéis vai para a metrópole e

só de forma indireta e precária repercute no comércio local de bens e serviços. O grande

empregador é a Prefeitura.

Saquarema tende a ser cidade-dormitório de estratos profissionais que buscam locais

amenos e cujo deslocamento não precisa ser diário (aeronautas, professores, advogados,

artistas) e para profissionais que trabalharão nas atividades petrolíferas do COMPERJ, em

Itaboraí.

A rigor, a situação fundiária real da restinga poderia possibilitar a retomada das terras

dantes públicas para lhes dar outros usos, mas tal coisa provocaria confrontos e um desgaste

político impensável. (Em alguns países europeus, a terra urbana, embora ocupada

privadamente, é sempre pública, o que facilita projetos de renovação urbanística). No final

dos anos 80 circulou a notícia de um plano turístico-urbanístico feito por consultoria

estrangeira e que propunha altas torres de apartamentos compensadas por áreas sem

edificação. Não sabemos da sua repercussão.

Na atualidade, uma ampla área da restinga, ocupada pelo campo de pouso que era da

Aeronáutica, foi doada por esta à Prefeitura (embora se tenha notícia de um litígio antigo,

movido pela família que se dizia dona daquelas terras antes da chegada da FAB). O que se

planeja para esta área dará bem a medida da sensibilidade urbana e ambiental dos

administradores locais: será parcelada de forma eleitoreira? Será mantida como parque? Será

repassada a empreendimentos imobiliários? Empreendimentos de que tipo: edifícios

adensados? Grandes empresas de hotelaria? Como sua destinação será decidida? A

população será ouvida, terá voz e voto? E quem é esta população em uma cidadezinha de

casas de veraneio de ocupação sazonal?

10

BRASIL, Marcelo Lyra de Souza. “Turismo pode ser sustentável? O caso de Saquarema (RJ)”. Niterói:

UFF/PPGAU. Dissertação de Mestrado, 2009.