saquarema: histÓria de sua urbanizaÇÃo pela funÇÃo
TRANSCRIPT
www.professores.uff.br/seleneherculano
SAQUAREMA: HISTÓRIA DE SUA URBANIZAÇÃO PELA FUNÇÃO-VERANEIO E
A DISPUTA POR SUAS TERRAS PÚBLICAS (1955-1980): ANALISANDO UM CASO
DE DESENVOLVIMENTO LOCAL NA REGIÃO DOS LAGOS (RJ)1
Selene Herculano
Resumo: Saquarema, município da Região dos Lagos, RJ, é uma cidadezinha de veraneio, de ocupação sazonal desde 1955.
Este artigo conta a história da urbanização de seu distrito-sede, que se originou da função-veraneio e do parcelamento e
privatização de terras públicas na sua restinga, o que envolveu conflitos variados e processos judiciais. Além de registrar essa
história, a proposta do artigo é provocar uma reflexão sobre os impactos sociais e ambientais, positivos e negativos, do
desenvolvimento local experimentado, que teve a função-veraneio e a privatização de terras públicas como vetores. O artigo
tem por base a dissertação de mestrado da autora para a COPPE/UFRJ, em 1981.
Palavras-chave: desenvolvimento local, urbanização, veraneio, terras públicas, Saquarema, turismo, residências
secundárias, Região dos Lagos
Introdução:
Saquarema é um município da Região dos Lagos ou “Costa do Sol.” (RJ), a 100 km da
cidade do Rio de Janeiro. Divide-se em três distritos: o distrito-sede de Saquarema, Bacaxá, ou
segudo distrito e Sampaio Corrêa (antigo Mato Grosso), terceiro distrito. A autodenominada
“Capital do Surf” compreende três praias (Itaúna, Saquarema e Jaconé) e três lagoas
(Saquarema, Jaconé e Jacarepiá).
Até o final dos anos 50, sua população (18.880 pessoas pelo Censo de 1950) dedicava-
se à pesca artesanal, ao cultivo de cítricos e de cana de açúcar e à produção de farinha de
mandioca para subsistência. Segundo o Censo do IBGE de 2010, passou a ter uma população
fixa de 73.796.
SAQUAREMA – EVOLUÇÃO POPULACIONAL:
1 Artigo feito com base na dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional da autora para a
COPPE/UFRJ, 1981, intitulada “A cidade sazonal: a urbanização pela função-veraneio e pela privatização de
terras públicas – um estudo de caso de Saquarema (RJ)”.
www.professores.uff.br/seleneherculano
A Igreja de N.S. de Nazaré, erguida em 1534 em um promontório do distrito-sede,
é um centro religioso regional, sendo a festa da sua padroeira celebrada no dia 8 de
setembro.
A IGREJA DE N.S. DE NAZARÉ
Tela do pintor José Maria de Almeida, anos
60 (acervo da autora)
Tela da pintora Vera Dracinski, anos 60 (acervo da
autora)
Até 1955, a restinga do distrito-sede era apenas uma diminuta aldeia de pescadores e
um centro religioso de romarias (a Igreja de Nossa Senhora de Nazaré), com praias vazias e
extensos areais intocados. Em Bacaxá, à beira da Rodovia Amaral Peixoto (RJ-106), havia um
pequeno centro comercial, uma estação da Estrada de Ferro Maricá e “portos de roça”, de onde
tropeiros transportavam a produção local de cítricos que seguia por via férrea. Sampaio Corrêa,
à beira da mesma rodovia, na serra do Mato Grosso, era local de plantação de cana de açúcar,
processada pela Usina Santa Luzia. A cana, por sua vez, havia substituído os arrozais plantados
bem anteriormente pelo fazendeiro Sampaio Corrêa.
Tela do pintor Antenor de Oliveira, anos 60 (acervo da autora)
www.professores.uff.br/seleneherculano
A partir de 1955, Saquarema começou a se transformar, passando de um município agro-
pesqueiro e centro religioso de romarias para local de veraneio das camadas médias e médias
baixas metropolitanas. Deflagrou-se um processo de urbanização baseado na doação de terras
públicas do distrito-sede (terrenos de marinha, da União Federal e terras devolutas, do estado-
membro na qual se situem) a veranistas metropolitanos de classes médias, que ali edificaram
residências secundárias, de veraneio. Através de tais doações a Prefeitura buscava desenvolver o
local, baseada na premissa de que urbanização significa desenvolvimento. Os donatários
metropolitanos, por sua vez, além do gozo da natureza, buscavam, através do terreno doado e da
construção paulatina e informal, acessibilidade à casa própria: para muitos veranistas a
construção da casa própria em Saquarema foi um meio de ter acesso, via negociação posterior, a
um imóvel metropolitano, inacessível em uma conjuntura inflacionária, ainda sem correção
monetária, e de poupança inviável.
Cartão-postal da Praia de Saquarema, anos 70
A conversão do município ao veraneio se deu por etapas:
1- acessibilidade muito restrita, por via aérea, com a construção de um campo de
pouso da FAB em 1937, no contexto da segunda guerra mundial;
2- acessibilidade ampliada com a pavimentação da Rodovia Amaral Peixoto (RJ-106)
em 1954;
3- urbanização do distrito-sede, via parcelamento e doação de terras públicas (terrenos
de marinha e terras devolutas) pela municipalidade a metropolitanos, para a construção
de residências secundárias para veraneio;
4- expansão da urbanização de ocupação sazonal, após 1974, através de ação judicial
que deu à municipalidade a posse definitiva de 5 km² da restinga do distrito-sede; fim
da agricultura, com a praga “fumagina” nos cítricos e o fechamento da Usina Santa
Luzia, em 1974; uso posterior das terras rurais para a pecuária eqüina); expansão do
perímetro urbano.
Detalharemos a seguir cada etapa.
Fase 1 – o campo de pouso da FAB
Em 1937 a Força Aérea Brasileira – FAB construiu um campo de pouso na restinga do
distrito-sede, com o propósito de ser utilizado como ponto de defesa e vigilância da costa na
www.professores.uff.br/seleneherculano
guerra que se anunciava (Segunda Guerra Mundial). Após o término desta guerra, o campo de
pouso e as duas casas da Aeronáutica construídas na praia então absolutamente deserta,
passaram a ficar subordinados à Escola de Cadetes da FAB e a serem utilizados para o
treinamento de pilotos. Desta forma, Saquarema, que não contava com estradas de acesso, à
exceção da ferrovia Marica e de estradas vicinais precárias para o escoamento dos cítricos em
seus portos de roças de tropeiros, começou a ser conhecida entre a oficialidade da FAB, tendo
sido eles os primeiros veranistas a receber da Prefeitura doação de terrenos ali sediados.
Fase 2- acessibilidade ampliada com a pavimentação da Rodovia Amaral Peixoto (RJ-106) em
1954
Com a pavimentação da rodovia Amaral Peixoto, em 1954, o município tornou-se
acessível à população metropolitana. Foi a partir de então que a Prefeitura Municipal iniciou
um processo de concessão de lotes de terras públicas a veranistas metropolitanos, com o
objetivo declarado de promover o desenvolvimento local.
Fase 3 - parcelamento e doação de terras públicas (terrenos de marinha e terras devolutas)
pela municipalidade a metropolitanos, para a construção de casas de veraneio; acessibilidade
ampliada para a Região dos Lagos pela inauguração da ponte Rio-Niterói, em 1975
O parcelamento e privatização de lotes na restinga do distrito-sede de Saquarema se deu
em momentos diferentes e bem demarcados, com a presença de conflitos:
3.1- a “doação por despacho” de terras devolutas e terrenos de marinha;
3.2 - a pretensão de uma ordem religiosa em fazer valer uma sesmaria em seu nome;
apropriando-se das terras o que gerou disputa judicial;
3.3 - a disputa judicial que acabou por conceder à Prefeitura o domínio pleno de
terras;
3.4 - os conflitos e denúncias sobre a troca de lotes de terrenos por votos.
Vejamos um pouco cada um desses momentos conflituosos que se inserem na Fase 3:
3.1 A doação por despacho:
A questão sobre quem teve a idéia de lotear e conceder terras públicas a veranistas é
nebulosa e vários dos ex-prefeitos entrevistados chamaram a si tal iniciativa, embora fossem
todos reticentes a respeito do amparo legal para tal:
“Quem teve a idéia de lotear fui eu. Fui ao Serviço de Patrimônio do Estado,
procurei me informar de quem era, se era deles, ninguém respondeu, não era de
ninguém, loteei. Pensei que era uma forma de fazer, como realmente fez, o lugar
prosperar. Isso tudo aqui, minha filha, era mato” (Ex-Prefeito Gentil Mendonça)
A julgar pelo Código Tributário Municipal da época (Deliberação Municipal 15/55)
tais doações se tornavam freqüentes, pois já se previra uma sistemática tributária pertinente.
Assim, a Deliberação dispunha que “os terrenos pertencentes ao Patrimônio Municipal não
serão dados em aforamento sem que o enfiteuta se obrigue a edificá-lo, desde que a isso se
www.professores.uff.br/seleneherculano
prestem, dentro de 6 meses contados da data da concessão. Findo esse prazo, considera-se
extinto o aforamento se o terreno não estiver edificado”.
Assim começaram as doações, que tiveram dois estágios: em um primeiro momento
loteou-se a orla marítima, os terrenos de marinha. Terrenos de marinha estão legalmente
definidos como sendo aqueles que ficam em uma profundidade de até 33 metros da linha de
preamar-médio de 1831, segundo o Decreto-Lei 9760, de 5/9/46. Os terrenos de marinha são
da União Federal e estão sob domínio do Serviço de Patrimônio da União, do Ministério da
Fazenda). Vale lembrar que, nos termos do Decreto-Lei 9760/46, é permitida a ocupação por
aforamento de bens da União, mediante autorização do Presidente da Republica. Em um
segundo momento, a praia já ocupada, começou o parcelamento e privatização das terras do
interior da restinga.
Os documentos que serviam de comprovante da doação feita pela Prefeitura
Municipal eram recibos referentes ao pagamento de taxas de nivelamento e arruamento,
guias de recolhimento de taxas de fiscalização, licença para construção, em cujo verso se
declarava que o terreno havia sido obtido “por despacho”. Era o interessado no terreno que o
requeria à Prefeitura, era ele que usava o termo “concessão”. O Prefeito limitava-se ao
despacho, deferindo ou não o requerimento. Não havia aforamento municipal, apesar do
disposto no Código Tributário Municipal então vigente.
E assim começou a ocupação física da restinga, de forma paulatina, casuística,
informal, sem planejamento urbano, via parcelamento das terras em lotes de 15 x 30 metros,
tendo o beneficiário 6 meses para construir um alicerce e 2 anos para concluir sua casa. Tais
concessões eram feitas antes da Prefeitura traçar e abrir as ruas que delimitariam e dariam
acesso aos lotes já doados. A expectativa das autoridades municipais era a de desenvolver
Saquarema através da sua urbanização pelo veraneio, concedendo terrenos a uma classe
média metropolitana formada por militares e funcionários públicos. Paulatinamente as
poucas vendinhas de gêneros básicos iam se transformando em lojinhas de ferragens e de
material básico de construção. E as famílias de pescadores (que na verdade nunca ocuparam
a orla devido ao forte vento sudoeste, e sim as terras distantes cerca de uns 200 metros da
linha d’água) foram se mudando adentrando a restinga ou indo para o outro lado da lagoa.
3.2 A disputa com os carmelitas: terras devolutas ou sesmarias?
Em 1931 fora assinado um decreto estadual (Decreto nº 2666 de 26 de setembro de
1931, conhecido como o Regulamento de Terras). Tal decreto ordenava a medição e
demarcação das terras devolutas no Estado do Rio de Janeiro. Terras devolutas são aquelas
que não estão aplicadas a algum uso público federal, estadual ou municipal e que não estão
legitimamente incorporadas ao domínio privado. Na sua origem, terras devolutas viriam a
ser todas as terras da Coroa não-utilizadas e não privatizadas em sesmarias, capitanias ou
instrumento similar, e também aquelas que, embora tendo sido doadas em sesmarias, foram
devolvidas na prática à Coroa, por terem caído “em comisso”, isto é sem uso. As terras
devolutas, desde a Constituição Federal de 1891, artigo 64, passaram para o domínio do
estado da federação onde se situassem. Após o Decreto-Lei nº 271, de 28 de setembro de
1967, do governo federal, as terras devolutas passaram a ter sua privatização regulada por lei
federal que instituía a figura da Concessão de Uso.
www.professores.uff.br/seleneherculano
Em 1956, mais precisamente em 26 de setembro de 1956, publicou-se na imprensa
oficial do Estado do Rio de Janeiro um edital sobre a demarcação de terras devolutas, com
base no decreto de 1931.
Foi aí que a Província Carmelitana Fluminense, atendendo ao edital, apresentou uma
pública-forma das páginas 282 e 684 do volume 57 dos Anais da Biblioteca Nacional,
referentes ao “Tombo” dos bens pertinentes ao Convento Nossa Senhora do Carmo, cujo
Prior teria recebido em sesmaria, nos idos de 1670, terras do primeiro distrito de Saquarema.
Tal pública-forma foi transcrita no cartório de Registro de Imóveis do município em 29 de
setembro de 1956, Livro 3B, fls 184 e 185, número 1215. A Província Carmelitana,
(sucessora do Convento do Carmo) deu início a um processo judicial pedindo o domínio da
restinga, ganhando uma sentença favorável em primeira instância, pois entendeu a Justiça
que as terras conferidas em sesmaria não haviam caído em comisso. Tal sentença foi
confirmada pela Colenda Segunda Câmara e o acordo transitou em julgado.
Quando, já em meados dos anos 60, a pretensão dos padres às terras chegou ao
conhecimento da população, houve celeuma e forte comoção entre o povo habitante do local
e os veranistas donatários. A imprensa metropolitana registrou o caso em reportagens sobre
“a cidade despejada” (O Fluminense, fevereiro de 1966, série de reportagens de Carlos Ruas
e Jorge Ventura). Houve passeatas ao som do hino nacional2, procissões contra a sentença
prolatada e um abaixo-assinado foi enviado ao governador do Estado, Paulo Torres, onde se
dizia:
“Os abaixo-assinados, proprietários e moradores naturais da região, ou elementos
que aqui possuem residências de veraneio, homens de todas as classes e categorias
sociais – generais de nossas Forças Armadas a humildes pescadores e modestos
agricultores, vendo-se ameaçados nos seus patrimônios pelas absurdas pretensões
da Província Carmelitana de St. Elias, ex-Província Carmelitana Fluminense [...]
vêm a Presença de V. Excia. apelar para que sejam tomadas as enérgicas e urgentes
medidas que, encerrando essa demanda, devolvam a tranqüilidade ao município,
garantindo a preservação do sagrado direito da propriedade legalmente constituída,
a manutenção da economia particular e pública, hoje abaladas com a paralisação
dos negócios e investimentos de todos os tipos [...].”3
Instado pela evocação de tais valores e pelo clamor público de uma população em
pânico e em revolta, o Estado do Rio de Janeiro, depois litisconsorciado com a Prefeitura de
Saquarema, moveu uma ação rescisória, pedindo o cancelamento da transcrição do traslado
de 1670, baseado na nulidade dos documentos apresentados. Segundo o Dr. Irineu da Costa
Carvalho, advogado da Prefeitura de Saquarema, era também muito estranha a publicação,
em 1956, de um edital referido a decreto de 25 anos antes, sem dar ciência à Prefeitura
Municipal, à comunidade já instalada no local e reconhecida pelo IBGE como núcleo
urbano. Corria à boca pequena que teria havido um acordo entre a Província Carmelitana,
2 Lideradas pelo Coronel Teixeira Pinto, da FAB, que havia liderado o chamado “levante de Aragarças”,
tentativa de depor o Presidente Juscelino Kubitschek. 3 Segundo entrevista do advogado Irineu da Costa Carvalho à autora e consulta aos seus arquivos.
www.professores.uff.br/seleneherculano
uma autoridade do governo estadual e uma empresa hoteleira internacional, para a
construção de um complexo hoteleiro de grande porte na região.
Finalmente, em 5 de março de 1969, os juízes desembargadores do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgaram procedente a ação rescisória, por unanimidade
de votos, ordenando o cancelamento da transcrição feita no cartório local. Segundo seu
relator, o Desembargador Paulo Castilho:
“É até perceptível que a Província Carmelitana Fluminense de Santo Elias não
demonstrou muito boa-fé em tal negócio ou foi mal assessorada, certo que, só com o
advento do Decreto 2666 de 29/9/1931, resolveu acordar do sono de 200 anos, sem
nunca haver se apossado das terras.”
Cancelada a inscrição, entendeu-se que as terras em litígio voltavam à situação de
terras devolutas, portanto sob o domínio do Estado do Rio de Janeiro. A Prefeitura
Municipal de Saquarema moveu então uma Ação Declaratória contra o Estado do Rio, a
Ação nº 1449, cuja Carta de Sentença do Juízo da Segunda Vara da Justiça Federal, de 2 de
agosto de 1974, a beneficiou. A municipalidade de Saquarema entrou no domínio pleno,
proprietária inconteste de 5 km² da bela restinga.
3.3 Conflitos e denúncias sobre a troca de lotes por votos – o Processo Judicial 2240/74, do
Ministério da Justiça
Em 1974, enquanto a municipalidade ganhava o domínio pleno da restinga, uma
denúncia de um ex-prefeito e seus correligionários contra o grupo político então no poder
tomou a forma de um Processo no Ministério da Justiça. A denúncia dizia respeito a um
suposto enriquecimento ilícito de membros do grupo ocupante do poder, através da venda de
bens imóveis municipais. Segundo tais denunciantes, as doações de terrenos, que dantes
teriam sido executadas de forma parcimoniosa e bem conduzida, escolhendo-se os
donatários entre pessoas de bem, passaram a serem feitas de forma ilícita e inconveniente,
para proveito individual de integrantes de um grupo:
“Eu só trouxe gente boa para cá: doutores, militares. Hoje, com essa política de
trocar lotes por votos, estão trazendo uma gente braba de Caxias, Nova Iguaçu.”
(ex-prefeito Hélio Bernardino de Mattos)
Entretanto, segundo a Promotora que se manifestou pelo arquivamento do Processo
2240/74, não havia clareza se os fatos aludidos se restringiam a apenas uma ou outra gestão
e, em sendo praticamente impossível arrolar a todos, melhor seria dar o caso por encerrado.
Uma breve transcrição de trechos das páginas 20 a 29 deste Processo 2240/74 é interessante,
pois facilita entender a lógica do jogo de forças que deu preferência à privatização das terras,
assim como definiu o traçado específico extremamente retalhado e amontoado que a
cidadezinha do distrito-sede tomou:
“Os terrenos eram concedidos mediante requerimento ao Prefeito [...] Tratando-se
de pessoas ligadas por amizade pessoal, ou de funcionários policiais, militares e
www.professores.uff.br/seleneherculano
altos funcionários do governo, o requerimento é deferido sem nenhum problema e
logo é indicado o sr ... ou ... para fazerem a demarcação do lote a ser adquirido.
Depois, cumprem-se as exigências do Código Tributário Municipal [...] Todavia,
tratando-se de turistas sem as prerrogativas aqui mencionadas, dificilmente o
requerimento é despachado; somente se houver a interferência do senhor B., que
nem sequer é funcionário da Prefeitura, mas é voz corrente que é quem manobra
todo o esquema montado. Por tal interferência, o turista tem que pagar. A prova
material desta irregularidade é difícil, pois existe a torpeza bi-lateral, um vendendo
e outro comprando por preço que não justifica seu valor [...] Segundo declarações
do Sr x., todos os funcionários da Prefeitura recebem lotes nas condições acima, com
a finalidade de venda posterior, tendo como contrapartida votar nos candidatos que
lhes são indicados. Concluímos que houve uma permuta do domínio útil dos
respectivos terrenos, o que, em se tratando de bens dominicais, não é defeso em lei.
[...] Previamente um concessionário combina com um terceiro para adquirir a
concessão de um lote de terra. Adquirida a concessão e construído um alicerce, o
beneficiário doa ou simula venda para aquele que não pode mais receber
concessão, o qual, por sua vez, a revende, obtendo-se assim lucros significativos,
dada a progressiva valorização da terra. Em síntese, presume-se que certas pessoas
vem enriquecendo ilicitamente, valendo-se de bens públicos municipais.”
(Ministério da Justiça: Processo nº 2240/74, fls. 20 a 29)
3.4 Expansão do perímetro urbano e decadência rural: Com a expansão da urbanização de
ocupação sazonal da restinga (veraneio metropolitano), após 1974, através de ação judicial
acima descrita e com o fim da agricultura (praga nos cítricos e fechamento da usina Santa
Luzia que processava cana de açúcar) a área rural caiu em progressivo abandono e foi se
tornando oficialmente urbana, através de progressivos decretos municipais que expandiam
seu perímetro urbano, embora continuassem os amplos espaços verdes. Algumas áreas se
mantiveram como fazendas para pecuária eqüina, uns poucos sítios praticavam agricultura
mínima de sobrevivência. Mas começava nesta época o desmantelamento das casas de
farinha rurais e a emigração da população.
Fase 4 - A Carta de Aforamento e a venda das terras
Após o ganho judicial do domínio pleno da restinga do distrito-sede, as autoridades
municipais decidiram legalizar a ocupação já efetivada. Para tanto, elaboraram uma Carta de
Aforamento, através da Deliberação Municipal 12/75 de 25/4/1975. Contudo, com a fusão
dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, novas leis estaduais (Constituição Estadual
de 1975, em seu artigo 169 e a Lei Orgânica dos Municípios (L.O.M.), Artigos 59, 130, 132
e 136) passaram a proibir que os municípios praticassem o aforamento (que é não-resolúvel,
isto é, tem perenidade). Em seu lugar, instituía-se a figura da concessão de uso, de direito
real resolúvel. Pretendia a legislação estadual dar às municipalidades instrumento jurídico
hábil para melhor administração de suas terras, preservando-as para planos urbanos futuros
sem prejuízo de uso atual por particulares. Havia uma intenção de política urbana, criando-se
mecanismos ágeis que permitissem resgatar a terra para uso futuro, para uma racionalidade
www.professores.uff.br/seleneherculano
de traçado e já mencionando a preservação ecológica. Este espírito estava subjacente no
parágrafo primeiro do artigo 130 daquela L.O.M. que transcrevemos abaixo:
“O Poder Executivo delimitará e regulará a utilização de bens de uso comum, não
passíveis de permissão ou concessão de uso, com vistas à preservação do interesse
turístico, paisagístico e ecológico” (grifo nosso)
Em obediência, a municipalidade saquaremense criou a Lei 52/1977, pela qual toda
Carta de Aforamento porventura existente se transformaria “automaticamente” em concessão
de uso, como vimos, uma figura de direito real resolúvel criada por legislação federal com o
intuito de disponibilizar terras e facilitar planos urbanísticos futuros, reforma urbana, etc.
(Entretanto, encontramos depoimentos de veranistas que apresentaram à Caixa Econômica
Federal ao final dos anos 70 – e foi aceita por ela! – a carta de aforamento municipal como
documento para a tramitação de empréstimos para compra e venda imobiliária.)
Quanto aos lotes das terras recém-conquistadas, então ainda vazios, a Prefeitura
preferiu aliená-las definitivamente e fazer caixa:
“Depois que a Prefeitura entrou na posse dos 5 milhões de metros quadrados da
área questionada, os terrenos foram vendidos inicialmente a 1.300 cruzeiros, por
volta de 1974/75; a 4.800 cruzeiros em 1976 e agora [era o ano de 1977] a 18 mil
cruzeiros”. (ex-prefeito Porfírio Nunes de Azeredo, entrevista à autora)
A valorização das terras era algo expressivo, como o demonstra o depoimento de um
veranista:
“Comprei esse terreno por 12 mil cruzeiros, em 1969. Hoje (1979) acredito que um
terreno desses, em rua calçada, com água e luz, próximo à praia, deve estar por uns
400 mil cruzeiros.” (Ou seja, teria aumentado seu valor 33 vezes em 10 anos. Tais
cifras, atualizadas pelo IGP da FGV, mostram que os preços dos terrenos cresceram
12 vezes em 10 anos).
Em 1977, o Projeto CIATA, do Ministério da Fazenda4, promoveu um cadastramento
de imóveis urbanos para fins de atualização de cobrança de impostos e listou 17.500
propriedades urbanas (tanto casas quanto terrenos cercados) em Saquarema. Nesta época,
observação direta da autora contabilizou cerca de 2000 casas na restinga do município sede,
80% das quais de ocupação sazonal). O número significava um crescimento expressivo em
relação às poucas dezenas de casas observadas em 1957. Por conta da atualização cadastral
do Projeto CIATA, o município ocupou em 1978 a rara posição de um município brasileiro
de pequeno porte cujas rendas próprias auferidas eram superiores ao montante transferido. O
crescimento urbano veio a se refletir positivamente no orçamento municipal da época
(1978), quando, diferentemente de municípios similares em porte, Saquarema teve suas
4 CIATA – Convênio de Incentivo ao Aperfeiçoamento Técnico-Administrativo das Municipalidades, da
Secretaria de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda, operacionalizado pelo SERPRO – Serviço
Federal de Processamento de Dados.
www.professores.uff.br/seleneherculano
receitas próprias mais elevadas do que as receitas transferidas, ou seja, viveu um momento
de autonomia financeira.
De uma receita geral então estimada em três milhões de cruzeiros, Saquarema
realizava um orçamento de nove milhões, segundo relato do Prefeito da época. Sr. Porfírio.
Na Prestação de Contas de 1976 que o município encaminhou ao então Conselho de Contas
Municipais (órgão estadual, hoje substituído pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de
Janeiro), o prefeito assim se expressava sobre a diferença entre o orçamento previsto e o
realizado:
“Alcançamos índices de crescimento nunca dantes atingidos. Assim é que, de uma
receita estimada de 3 milhões de cruzeiros atingimos, no final do exercício, um total
de 9 milhões, novecentos e vinte e um mil quatrocentos e quarenta cruzeiros e trinta
e um centavos, o que equivale a um crescimento de 332%”.(Ex-prefeito
P.N.Azeredo)
Tais receitas, oriundas da concessão, aforamento e venda de terras municipais,
tinham um registro de difícil entendimento: eram lançadas na rubrica “Exercício de Poder de
Polícia, cujo item previa 900 mil cruzeiros e apontava como realizados mais de Cr$ 4
milhões, segundo o Relatório de Inspeção Especial do Conselho de Contas Municipais -
CCM.
Ganhas as terras, a municipalidade providenciou ao final dos anos 70 plantas com
vistas à gestão dos bens recém-incorporados. Estudando este conjunto de plantas chegamos
ás seguintes conclusões:
Dividindo-se a cifra lançada como exercício de poder de polícia, mas oriunda da
concessão, aforamento e venda de terras municipais pelo preço declarado em 1976 para cada
lote, estimamos uma média de 1000 lotes negociados naquele ano. Isso significa que em um
único ano ter-se-ia privatizado uma área equivalente a 9,3% da área total ganha
judicialmente pela Prefeitura ou 32% da parcela daquela área ainda não ocupada.
Tabela 1 - PARCELAMENTO DE TERRAS DA RESTINGA DE SAQUAREMA EM 1976:
Áreas LOTES M²
Área total ganha pela Prefeitura na Justiça 5.701.250
Zona “alodial” (de ocupação antiga, a
leste da Rua Prefeito Raposo)
2.310.273
Zona de ocupação recente 3.390.977
Áreas de ruas (abertas e projetadas) 465.032
Áreas parceladas (apropriadas) 4492 lotes 2.021.495
Áreas projetadas para praças 170.050
Áreas sem designação (mato) 1266 lotes 569.800 Fonte: pesquisa da autora a partir de cálculos sobre mapas produzidos pela Prefeitura local
www.professores.uff.br/seleneherculano
Observe-se que a área reservada para praças alcançava 2,98% da área total apenas
devido à existência do campo de pouso, cujas normas de segurança técnica exigem
cabeceiras sem edificação. Não houvesse tal necessidade, as áreas de praças não atingiriam
1% da área total da restinga.
Em 1978, técnicos estaduais da SECPLAN/FIDERJ5 escolheram Saquarema como
um dos municípios a receber um planejamento físico-territorial, a fim de dar um
ordenamento urbano e mitigar a degradação ambiental que já se notava: nessa época, a
Prefeitura aterrava trecho da Lagoa de Saquarema com lixo, com o propósito de criar solo
para um clube, o que gerou denúncia de ativistas ambientais à SERLA (Superintendência
Estadual de Rios e Lagoas); sambaquis eram destruídos6; a verticalização começava, em uma
cidadezinha sem esgotos; inexistia previsão de áreas reservadas para praças na zona em
expansão. Novos projetos de zoneamento e parcelamento do solo, código de obras e
definição do perímetro urbano foram elaborados pela SECPLAN/FIDERJ, mas não foram
aproveitados pela Prefeitura e o que passou a predominar foi a construção de mais de uma
casa em um único lote, para aluguel a veranistas.
Não se encontrou nos livros de Atas da Câmara de Vereadores registro de debates
sobre o parcelamento e privatização das terras. Tampouco houve memória, dentre a
população entrevistada, de plebiscito ou alguma consulta similar à população local a respeito
da destinação deste bem público, nem na primeira etapa (quando as terras eram consideradas
devolutas e, como tais, estatais, e, se estatais, públicas), tampouco na segunda etapa, quando
as terras passaram a ser bem municipal de domínio pleno. Para aqueles nativos que cediam
suas áreas ocupadas aos veranistas, havia doação de outros locais, sim, mediante política
personalista.
O desenvolvimento de Saquarema: um balanço
Considerados os patamares iniciais (serviços inexistentes), Saquarema teve melhora
expressiva no período em foco. A melhoria dos equipamentos urbanos foi absoluta: de uma
total inexistência de serviços de abastecimento de água e de energia elétrica (havia, em 1957,
um gerador a diesel que, das 18 às 22 horas, provia de luz as casas em torno da pracinha
central da restinga, enquanto os pescadores usavam lampião e lamparina) passou-se em
1967, por atuação estadual, para a inauguração da primeira rede elétrica e em 1973, a
inauguração de uma rede estadual de água da então CEDAE para o que se chamou de “zona
alodial” (a zona de ocupação mais antiga da restinga e da orla).
No que diz respeito a iniciativas municipais, as aplicações em educação e saúde, embora
presentes, ficaram aquém das receitas oriundas da venda de terras municipais nos anos 70.
(Em 1978 a Prefeitura de Saquarema gastou com educação e saúde, respectivamente 188,73
e 32 cruzeiros novos per capita (dados da SECPLAN do Estado do Rio de Janeiro). Embora
5 A extinta Fundação de Desenvolvimento do Rio de Janeiro – FIDERJ e FUNDREM – Fundação do
Desenvolvimento da Área Metropolitana do Rio de Janeiro estavam afetas à Secretaria Estadual de
Planejamento 6 A antropóloga Lina Knaap especialista em sambaquis e também veranista, fez protestos e escreveu a respeito.
www.professores.uff.br/seleneherculano
o aumento de recursos municipais para educação e saúde fosse da ordem de 33 e 45 vezes
mais o que se gastava em 1958, representou apenas 39% das receitas oriundas da venda de
terras, enquanto que 60% da receita arrecadada iam para a abertura e calçamento de ruas). A
abertura e calçamento de ruas vicinais ganharam prioridade: se em 1959 o orçamento da
prefeitura se propunha a gastar 6,6% da sua receita total com arruamento e calçamento, em
1978 tais atividades consumiram quase 60% da receita total, em uma clara opção pela
política de valorização de terras, sobretudo terras particulares no segundo distrito, Bacaxá.
Da total inexistência de assistência médica, o município passou a contar, a partir de
meados dos anos 70, com um hospital público municipal e postos de saúde. Farmácias,
consultórios médicos e clínicas particulares se instalaram. O número de escolas aumentou
(expressivamente na rede estadual).
A construção civil gerou um comércio próspero e propiciou a formação autodidata de
parte da população local (agricultores e pescadores que se tornavam mestres de obras).
O aumento da oferta de serviços, contudo, foi contrabalançado pelo crescimento
populacional, principalmente por migração (operários atraídos pela construção civil; classe
média metropolitana aposentada; classe média baixa metropolitana atraída por empregos e
oportunidade de pequenos negócios próprios, etc.) e conseqüente aumento da demanda. A
população fixa se adensou e se urbanizou: nas duas décadas entre 1957 e 1977 o crescimento
mais expressivo foi em Bacaxá: este segundo distrito e núcleo comercial à beira da Rodovia
Amaral Peixoto, aumentou em 36% sua população fixa, enquanto que no distrito-sede o
crescimento populacional foi de 7% (as casas, como vimos, eram de ocupação sazonal, de
veraneio). O terceiro distrito – Sampaio Correa – eminentemente rural, perdia sua
população. Tal esvaziamento rural se mesclou com o inicio do parcelamento de sítios e
fazendas (38 loteamentos aprovados; em 1978 o perímetro urbano foi ampliado por decreto 8
vezes.)
Segundo o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, TCE-RJ7, o município
melhorou sua posição em relação ao IDH–M (índice que mede o desenvolvimento humano
ou bem-estar da população municipal através da sua longevidade, escolaridade e renda),
passando de 0,438 em 1970 para 0,627 em 1991. Porém a melhora nos índices teve a ver
com parcela da população metropolitana que lá foi residir, enquanto faltavam empregos para
a população nativa mais jovem. Ainda segundo levantamento do Tribunal de Contas, havia
um expressivo déficit habitacional, ao mesmo tempo em que 76% das casas ficavam vazias.
Com efeito, as zonas urbanizadas da restinga do distrito-sede têm o aspecto de cidade-
fantasma, com suas casas fechadas, feias e mal-cuidadas, expostas à ação da maresia,
enquanto as favelas se tornam presentes: em 1998 a Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social enumerou seis favelas (Morro do Sabão, Buraco Quente, Morro da
Chatuba, Basiléia, Tufa, Galo) para onde destinava 3752 cestas básicas.
Hoje, 2010, Saquarema está ligada à rede de energia elétrica da AMPLA (ex-CERJ),
e à rede de águas da Concessionária Águas de Juturnaíba. É um abastecimento ainda com
7 TCE- Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro: Estudo Sócio-Econômico 1997-2001 – Secretaria Geral de
Planejamento.
www.professores.uff.br/seleneherculano
alguns problemas nos meses de alta temporada de veraneio. Há coleta de lixo, cuja
destinação final continua polêmica e que já havia gerado protestos dos ambientalistas, por ter
se dado em margens de lagoa (para criar solo, como vimos) e em áreas de preservação
permanente. Houve aplicação de verbas federais na abertura permanente da lagoa e obras
municipais de paisagismo em torno. Ficou bonito, as águas estão límpidas, mas
ambientalistas receiam que a lagoa tenda a secar. O município se verticaliza: pequenos
edifícios, alguns por autoconstrução, substituíram casas de veraneio demolidas. Assim os
estreitos lotes da praia vão se verticalizando e são ocupados por construções coladas
lateralmente e sem recuo. Uma dúvida se coloca: para onde vão seus esgotos? Fossas
sépticas como as das casas? De que porte? Ou haverá lançamento clandestino das águas
servidas?
O turismo incentivado pelos pequenos comerciantes nos quiosques cria atrito com
sua vizinhança, pois tem como suposta atração som de funk e pagodes, espalha lixo pelas
ruas e praias e é praticado por um veranista de baixo poder aquisitivo e que não dá retorno
em impostos. Muitos veranistas se queixam de serem os únicos a pagar IPTU, enquanto a
prefeitura seria tolerante com a inadimplência dos nativos. A Prefeitura vem tentando
investir e incentivar um turismo mais glamourizado, através dos campeonatos de surf, que
efetivamente tem influenciado a construção de pousadas e restaurantes na Praia de Itaúna
(uma área do distrito-sede fora da restinga, onde existiam nos anos 50 três a quatro casas de
famílias muito abastadas da cidade do Rio de Janeiro e que começou a ser loteada por
particulares apenas a partir dos anos 80).
Houve melhoras inegáveis: há um hospital municipal e postos de saúde onde não
havia serviço algum nos anos 50, quando caixões de “anjinhos” adentrando o cemitério eram
uma visão freqüente. Há bancos, telefonia fixa e móvel, comércio diversificado, mas muitos
residentes se queixam dos transtornos causados pela pressão da “invasão turística” e pela
perda de uma qualidade de vida que dizia respeito à identidade cultural, paz, segurança,
convivialidade e limpeza.8 A Escola de Samba Preto e Encarnado e o Rancho Verde e
Branco, que se digladiavam nos anos 50 em disputas acesas e pitorescas, deram lugar aos
blocos e trios elétricos contratados. As serenatas noturnas na praia foram substituídas pelas
caixas de som de dezenas de quiosques enfileirados9. Em outras palavras, a cultura local se
apassivou, tornou-se consumidora de eventos da indústria cultural metropolitana de massa.
Olhando o passado em perspectiva, é de se pensar se não teria sido menos impactante
para Saquarema se a Ordem Carmelita e seus presumidos sócios hoteleiros europeus
tivessem ganhado o domínio das terras da restinga. Cogita-se que em lugar da concentração
de milhares de casas mal-cuidadas, vazias e inadimplentes em IPTU, Saquarema poderia ter
tido hotéis de belo traçado e cuja ocupação mais dispersa da restinga teria conservado a bela
8 SOARES, Cristiane de Souza (2009). “Qualidade de vida – realidades e conflitos do turismo na paisagem
litorânea: o caso de Saquarema-RJ”. Campinas: UNICAMP-NEPAM, Tese de Doutorado, 2009. 9 Ficaram na memória composições locais, como o samba da Escola Preto e Encarnado – “deixa essa gente
falar, que o samba é a nossa tradição, devemos cantar e sambar e cultivar a boa união” - e a canção de louvor
à Saquarema – “Por trás do monte, cruzando a ponte, surge um poema, lugar tão lindo, seja bem-vindo à
Saquarema...Lá no alto uma igrejinha para a gente ir rezar, cá embaixo uma pracinha pequenina,
engraçadinha, para a gente namorar...Saquarema, Saquarema, uma rede, um luar, o tempo voa quando saio
de canoa na lagoa pra pescar.”
www.professores.uff.br/seleneherculano
vegetação nativa praiana. Haveria um turismo de hotelaria e de restaurantes, que empregaria
a população nativa e a manteria no local, em lugar das residências secundárias de veraneio,
cuja oferta de trabalho se concentrou na fase da construção dessas casas. Segundo o TCE-RJ,
a maior fonte do PIB local é o aluguel por temporada das casas (cerca do triplo do valor
movimentado pela construção civil em 2006)10
. Tal renda de aluguéis vai para a metrópole e
só de forma indireta e precária repercute no comércio local de bens e serviços. O grande
empregador é a Prefeitura.
Saquarema tende a ser cidade-dormitório de estratos profissionais que buscam locais
amenos e cujo deslocamento não precisa ser diário (aeronautas, professores, advogados,
artistas) e para profissionais que trabalharão nas atividades petrolíferas do COMPERJ, em
Itaboraí.
A rigor, a situação fundiária real da restinga poderia possibilitar a retomada das terras
dantes públicas para lhes dar outros usos, mas tal coisa provocaria confrontos e um desgaste
político impensável. (Em alguns países europeus, a terra urbana, embora ocupada
privadamente, é sempre pública, o que facilita projetos de renovação urbanística). No final
dos anos 80 circulou a notícia de um plano turístico-urbanístico feito por consultoria
estrangeira e que propunha altas torres de apartamentos compensadas por áreas sem
edificação. Não sabemos da sua repercussão.
Na atualidade, uma ampla área da restinga, ocupada pelo campo de pouso que era da
Aeronáutica, foi doada por esta à Prefeitura (embora se tenha notícia de um litígio antigo,
movido pela família que se dizia dona daquelas terras antes da chegada da FAB). O que se
planeja para esta área dará bem a medida da sensibilidade urbana e ambiental dos
administradores locais: será parcelada de forma eleitoreira? Será mantida como parque? Será
repassada a empreendimentos imobiliários? Empreendimentos de que tipo: edifícios
adensados? Grandes empresas de hotelaria? Como sua destinação será decidida? A
população será ouvida, terá voz e voto? E quem é esta população em uma cidadezinha de
casas de veraneio de ocupação sazonal?
10
BRASIL, Marcelo Lyra de Souza. “Turismo pode ser sustentável? O caso de Saquarema (RJ)”. Niterói:
UFF/PPGAU. Dissertação de Mestrado, 2009.