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Mesa 100: La ciudad y lo urbano como problemas históricos, Argentina siglos XX-XXI (Diego Roldán e Joaquín Perrén) Título: A Pirámide de Mayo em meio ao centenário da independência: a construção simbólica da retórica nacionalista em Buenos Aires através de um monumento Ponente: Ana Carolina Oliveira Alves - mestranda em História pela UNICAMP, com financiamento CAPES "PARA PUBLICAR EN ACTAS" Nos festejos e comemorações do Centenário da Independência Argentina de 1910; nas bombas estouradas no bombardeio de 1955; nas rondas das madres que buscam a memória de seus filhos desde a década de 70. Nas recorrentes imagens que compõe o repertório visual da história argentina a presença da Pirámide de Mayo, monumento em forma de obelisco de aproximadamente dezenove metros de altura, é constante. Sua própria localização reforça esse fato já que se encontra na praça homônima, aquela considerada central da cidade de Buenos Aires e que concentrou, desde sua criação, grandes acontecimentos do país por estar historicamente rodeada de importantes instituições políticas, administrativas, religiosas e econômicas. 1 Apesar da praça também configurar uma memória 1 Derivada do espaço que desde a colonização e conquista espanhola foi dedicado à praça principal da cidade, a Plaza de Mayo passou por intensas modificações além de acontecimentos históricos relevantes tais como a própria Revolución de Mayo. Construída na segunda fundação de Buenos Aires ainda como Plaza Mayor, em 1580, concentrara edificações como o Forte, a Igreja além de residências privadas e, com o passar dos anos, da Bolsa de valores, do Teatro, do Banco além de outras instituições, tendo se constituído, portanto, em torno do governo local além de um centro financeiro e uma instituição religiosa e é percebida como um espaço urbano plural com o qual diversos agentes interagem diariamente. A

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Mesa 100: La ciudad y lo urbano como problemas históricos, Argentina siglos XX-XXI

(Diego Roldán e Joaquín Perrén)

Título: A Pirámide de Mayo em meio ao centenário da independência: a construção

simbólica da retórica nacionalista em Buenos Aires através de um monumento

Ponente: Ana Carolina Oliveira Alves - mestranda em História pela UNICAMP, com

financiamento CAPES

"PARA PUBLICAR EN ACTAS"

Nos festejos e comemorações do Centenário da Independência Argentina de

1910; nas bombas estouradas no bombardeio de 1955; nas rondas das madres que

buscam a memória de seus filhos desde a década de 70. Nas recorrentes imagens que

compõe o repertório visual da história argentina a presença da Pirámide de Mayo,

monumento em forma de obelisco de aproximadamente dezenove metros de altura, é

constante. Sua própria localização reforça esse fato já que se encontra na praça

homônima, aquela considerada central da cidade de Buenos Aires e que concentrou,

desde sua criação, grandes acontecimentos do país por estar historicamente rodeada de

importantes instituições políticas, administrativas, religiosas e econômicas.1 Apesar da

praça também configurar uma memória constante dos acontecimentos da história

argentina – com força, possivelmente, maior que a da própria pirâmide –, sua

nomenclatura oriunda do mês da Revolución pela independência é posterior à do

monumento que tem sua história atrelada a este evento, ao qual presta homenagem.2

Na Argentina, ao longo de mais de dois séculos, a história do monumento da

Pirámide de Mayo esteve atrelada com a própria história política da República,

1 Derivada do espaço que desde a colonização e conquista espanhola foi dedicado à praça principal da cidade, a Plaza de Mayo passou por intensas modificações além de acontecimentos históricos relevantes tais como a própria Revolución de Mayo. Construída na segunda fundação de Buenos Aires ainda como Plaza Mayor, em 1580, concentrara edificações como o Forte, a Igreja além de residências privadas e, com o passar dos anos, da Bolsa de valores, do Teatro, do Banco além de outras instituições, tendo se constituído, portanto, em torno do governo local além de um centro financeiro e uma instituição religiosa e é percebida como um espaço urbano plural com o qual diversos agentes interagem diariamente. A construção, em 1811, do primeiro monumento pátrio – a Pirámide de Mayo – formalizou a praça como lugar cívico e cenário arquitetônico e urbano em constantes transformações. Ainda naquele período, o atual espaço da praça era ocupado pelas Plaza 25 de Mayo e a Plaza de la Victoria que eram separadas pelo edifício da Recova que foi demolido apenas em 1884 unindo as praças que, agora com superfície ampliada passaram a chamar-se Plaza de Mayo. Ver: BERJMAN, S. La plaza espanola en Buenos Aires, 1580-1880. Buenos Aires: Kliczkowski, 2001; BERJMAN, S., GUTIERREZ, R. La Plaza de Mayo: Escenario de la vida Argentina. Cuadernos del Aguila. Buenos Aires, Fundación Banco de Boston, 1995.2 A Revolução de Maio foi um movimento ocorrido no início do século XIX que visava a emancipação do vicereinado do Prata da Coroa espanhola e responsável pelo nome concedido tanto à pirâmide quanto à praça. Ver: LLANES, Ricardo. Antiguas Plazas de la Ciudad de Buenos Aires. Cuadernos de Buenos Aires 48. Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires. Buenos Aires, 1977.

atravessando conjunturas de transformações jurídicas, políticas e administrativas

sofridas pela Argentina e também pela cidade de Buenos Aires em meio ao processo de

organização nacional que sucedeu maio de 1810. Situada atualmente na exata área

central da Plaza de Mayo, a proposta de construção do monumento surge logo que o

processo de independência argentina se encerra. Sua construção data do ano seguinte da

consolidação desse processo, acompanhando a própria fundação das bases republicanas

e do entendimento e construção da identidade nacional.

O 25 de maio na Argentina, representa uma das efemérides consideradas mais

importantes, comemorando a proclamação da independência a partir da série de eventos

iniciada no dia 18 daquele quase mítico ano de 1810. A Revolución de Mayo, primeira

revolta bem-sucedida inserida no processo mais amplo de independência da América do

Sul, resultou na remoção do antigo vice-rei que garantia a submissão à coroa espanhola,

estabelecendo um governo local a partir da Primeira Junta de Governo que, a partir do

reconhecimento de sua autoridade, consolidou o primeiro governo nacional,

inaugurando um sistema político novo.3 Para Felipe Pigna, a relevância deste

acontecimento da história do país torna difícil designá-lo como um ato apenas de ordem

política, econômica ou até mesmo militar.4 Para o autor, esse seria melhor caracterizado

como um ato escolar por atravessar as vidas dos indivíduos argentinos de forma a ser

cristalizado constantemente como um ato fundador da própria nacionalidade.

Muitas pesquisas historiográficas demonstram a heterogeneidade de discursos

envolvidos nesse processo, que se configura como um dos fenômenos mais complexos

da história argentina pela grande variedade de correntes e interpretações mobilizadas

para compreendê-lo, bem como seus antecedentes e os usos e recuperações feitas deste a

posteriori. Não nos ocuparemos neste trabalho de caracterizar esse debate de forma mais

extensa. Ao contrário, o que nos interessa aqui é a forma específica que esse evento foi

recuperado, em distintos momentos, a partir da Pirámide de Mayo de maneira

pedagógica considerando seus protagonistas, contexto e feitos não só em seu aspecto

3 A chamada Primeira Junta de Gobierno foi a junta surgida em 25 de maio de 1810 em Buenos Aires como consequência do triunfo da Revolução de Independência que destituiu o vice-rei Baltasar Hidalgo de Cisneros. A soberania popular, o princípio representativo e a publicidade dos atos governamentais eram os princípios que regiam a junta e entre seus integrantes figuram os nomes de Cornelio Saavedra, Juan José Castelli, Manuel Belgrano, Miguel de Azcuénaga, Manuel Alberti, Domingo Matheu, Juan Larrea, Juan José Paso e Mariano Moreno. Ver: Actas Capitulares del Extinguido Cabildo de Buenos Aires, anos 1810-18114 PIGNA, Felipe. Los mitos de la historia argentina. La construcción de un pasado como justificación del presente. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2004.

sociocultural, mas também no político, a partir do qual este ganha e agrega novos

sentidos.

Nesse sentido, não propomos o estudo do acontecimento em si, mas sim de sua

construção no tempo e o ressurgimento de seus sentidos, Não no passado, mas em suas

constantes recuperações, usos e faltas de uso, suas imposições e sua forma de

transmissão. Acompanhar o seu percurso historiográfico seria tarefa demasiado extensa

para esse trabalho, mas se faz necessário o retorno a algumas abordagens para que seja

possível compreender os ideais responsáveis por cristalizar essa data como um lugar de

memória.5

Bartolomé Mitre enxergou na volta ao passado a possibilidade de atualização da

origem da nação, afirmando a tese da sua preexistência. Os eixos sobre os quais baseia

sua explicação são os princípios liberais e democráticos presentes na história argentina

caracterizando, portanto, o processo como um feito popular, manifestação da vocação

democrática. Mitre reivindica a vontade popular como força decisiva do processo

silenciando o poder da elite e instaurando a ideia de revolução popular que constituiu

um dos pilares sobre os quais se representou desse acontecimento no imaginário

popular.

A Nova Escola Histórica na segunda década do século XX se ocupará de

respaldar e difundir as ideias mitristas. Entre seus membros, com importante inserção

institucional, destacamos a figura de Ricardo Levene cuja visão sobre o processo

revolucionário de 1810 completará a de Mitre constituindo uma perspectiva decisiva

para construção deste como lugar de memória. O autor apresenta a revolução como

criolla, pacífica, de caráter social e origem popular sendo dela que nasce o regime

representativo e republicano congregando ideais de liberdade e independência. Essa

visão corrobora, em grande parte, com as ideias de Mitre e reitera o processo começado

com ele de definição desse processo como momento fundante da nacionalidade lhe

conferindo sentido particular.

Buscamos refletir sobre essa reinterpretação constante dos sentidos desse evento

a partir do espaço da cidade que atualiza percepções e memórias a todo momento,

gerando comemorações que monumentalizam ou celebram determinados eventos,

lugares ou personagens. Analisaremos essas interpretações através da Pirámide de

Mayo acompanhando sua trajetória até o momento do Centenário da Independência

5 PILIA DE ASSUNCAO, Nora; RAVINA, Aurora (eds.). Mayo de 1810. Entre la Historia y la Ficción Discursivas. Buenos Aires: Biblos, 1999.

Argentina, escolhido como momento simbólico dos usos paradigmáticos que são feitos

da Revolución de Mayo. Nos dedicaremos a compreender os elementos simbólicos e

alegorias que estiveram envolvidos em alguns momentos da história desse monumento

bem como acompanhar discursos que interferem em sua materialidade. Esses discursos

não são hegemônicos e, ao contrário, seus embates e negociações definem os rumos da

cidade conjecturando sobre o que se efetiva ou não enquanto mudanças físicas na

cidade. Cabe acrescentar que, embora consideremos que uma análise mais detalhada das

simbologias e significados carregados pelas diversas alegorias presentes na pirâmide e

suas constantes mudanças, não nos deteremos a isso nesse texto. Essa extensa análise

não seria possível de forma detalhada e, portanto, deixamos aberta essa alternativa como

uma futura possibilidade. Privilegiamos, por outro lado, compreender as mudanças

pelas quais o monumento passou e suas ligações com momentos e embates que se

efetivavam no campo político e definiam o que acontecia materialmente com o espaço

da cidade de Buenos Aires partindo de nossa consideração de que política e cidade são

esferas que se encontram intrinsecamente relacionadas e utilizando a pirâmide para

desvendar aspectos dessa relação.

Analisar o processo de construção dos monumentos públicos celebrativos e suas

intenções nos auxilia a compreender narrativas oficiais e as disputas envolvidas em

torno destas a partir de discursos com distintos interesses. Segundo a categoria criada

por Aloïs Riegl no início do século XX para analisar os monumentos, o que

caracterizaria os celebrativos seria o fato de surgirem com uma intenção específica de

memória, já estabelecida no momento de sua idealização, sendo, portanto, já projetados

com a ideia de fixar uma memória específica através do tempo. 6 É nesse sentido que,

mais uma vez, destacamos sua dimensão pedagógica, tendo em vista que são produzidos

com o intuito de ensinar, estabelecendo um discurso que se corporifica na cidade

objetivando despertar um sentimento nacional que, por não ser espontâneo, precisa ser

cultivado.

Françoise Choay, ao buscar compreender as razões que conduziram ao culto

contemporâneo pelo patrimônio, recupera referências históricas sobre o termo

monumento que se origina, afirma a autora, do latim monumentum, que deriva de

monere – advertir, lembrar – sendo compreendido como aquilo que traz algo à

memória.17 A autora ressalta a dimensão afetiva do propósito desses artefatos que não 6 RIEGL, Alois. Le culte moderne des monuments: son essence et sa genèse. Paris, Éditions du Seuil, 1984.7 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 4. ed. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006.

buscam apresentar ou dar uma informação de maneira neutra e desinteressada, mas, ao

contrário, tocar através da emoção e da memória viva. A especificidade do monumento

se deve ao seu modo de atuação sobre a memória já que ele mobiliza pela mediação da

afetividade de forma que “lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente”.8

Esse passado invocado, para Choay, não é um passado qualquer: é localizado e

selecionado para seus fins na medida em que pode contribuir para manter e preservar a

identidade de uma comunidade. Assim, independentemente de suas formas e seu

gênero, o monumento assume diretamente uma relação com o tempo e com a memória.

A partir de 1810 se criou uma liturgia cívica que abarcava a instauração de um

aparato simbólico, para substituir o espanhol existente até então, constituído por

monumentos comemorativos como a pirâmide, e contava também com a apropriação de

espaços públicos agora identificados com o feito revolucionário como a praça e o

cabildo. O universo simbólico eleito para a conservação da memória de tal feito

constituiu o caminho para gestar os elementos atribuídos à nação. A pirâmide,

construída em 1811 e considerada primeiro monumento público da cidade, terá papel

central para compreensão da construção dessas ficções históricas acerca do 25 de maio.

Essa obra foi iniciativa da Junta provisória governativa buscando celebrar o primeiro

aniversário da revolução da melhor forma, a partir de um ofício de março do mesmo

ano. Reunidos, os membros do antigo Cabildo9 consideraram “ser indisipensables

demontraciones del mayor júbilo para solemnizar um día de tanto honor e glorias a la

América del Sud”.10 Na ocasião, foram designados alguns desses membros para se

ocupar da formulação do plano da dita comemoração dando origem, ainda no mês

seguinte, na proposta de levantar “en media plaza uma Pirámide figurada, com

jeroglíficos alusivos al assunto de la celebridad”.

Na exposição do projeto para aprovação de suas inscrições, a ideia era que

fossem rememoradas datas como a da Reconquista, a da Defesa e a da instauração da

própria Junta em conjunto com armas da cidade, localizada em seus ângulos. A proposta

da ocasião que sua legenda fizesse referência a feitos gloriosos da cidade anteriores ao

da revolução, entretanto, foi rejeitada pela Junta por ser considerada inadequada ao

confundir o objetivo essencial do monumento.11 Ainda que os fatos anteriores

8 CHOAY, op. Cit, p. 189 Os Cabildos coloniais eram as instituições municipais que foram instituídas na América Espanhola se encarregando da administração geral das cidades coloniais bem como de questões econômicas e políticas.10 Acuerdos del Extinguido Cabildo de Buenos Aires, Serie IV, Tomo IV, p. 432.11 ZABALA, Rómulo. Historia de la Pirámide de Mayo. Buenos Aires: Academia Nacional de la Historia, 1962.

merecessem lembrança, a pátria nascente teria sua origem nos gloriosos dias de maio.

Com essa restrição a Junta dava à pirâmide um sentido particular que teria sido

desvirtuado pela proposta anterior: ser uma expressão simbólica da Revolución de

Mayo.

Até a sua construção, iniciada ainda em abril logo após a resolução, não havia

estátuas nem monumentos na cidade sendo as representações rememorativas restritas

aos espaços privados. A ereção de monumentos comemorativos em Buenos Aires está

ligada a criação de novos espaços simbólicos para sustentar as ideias de nacionalidade.

A pirâmide foi o primeiro monumento pátrio e público erguido para celebrar a ocasião

do primeiro aniversário da Revolução de Maio. Seu simbolismo é inegável não de forma

valorativa, mas por afirmar-se enquanto uma construção retórica que adquire distintos

significados ao longo do tempo tornando necessário compreender porque tais

construções foram e são constantemente atreladas a esse artefato.

Os ideais de defesa da pátria e da liberdade representados pela conquista da

independência deveriam ser expressos na cidade a esse monumento fora resposta a tais

desejos. Entretanto, ao longo de sua história, passou por debates acerca de sua

manutenção tendo em vista que, em diversos momentos, foram defendidas ideias que

demandavam a sua demolição em prol da construção de uma nova alegoria

representativa. Esses embates reforçam seus significados desvelando uma série de

dinâmicas na qual se insere constantemente ao longo da sua história, reiterando seu

simbolismo, de maneira cíclica. Gradativamente, esse monumento iria converter-se em

um marco urbano de referência bem como um meio visível de identificação do

indivíduo argentino com os valores da história pátria no qual o Estado exerceria um

papel de construção de memória a partir da seleção de feitos nos quais o presente

deveria se basear, constituindo uma organização própria dos fatos em uma operação

historiográfica.

Os relatos dos acordos do antigo Cabildo revelam a ritualística envolvida no

momento que se deu início à sua construção. O povo, congregado na praça,

acompanhava esses momentos. Há registros de tambores e bandas de música que

completavam tal cenário reiterando os princípios que simbolizavam o monumento. A

obra finalizou-se nas vésperas do aniversário da data. Ainda de acordo com a resolução

do Cabildo, foram estregues 6.000 pesos para serem investidos nessa construção, o que

determinou – além do pouco tempo disponível para sua execução – a não utilização de

alvenaria compacta que resultou em um espaço central oco desde a base até a parte

maior. Na ocasião de sua inauguração foram colocados ao pé da pirâmide bandeiras de

diversos regimentos militares que participaram de campanhas durante o processo

revolucionário. Tanto a pirâmide quanto a Catedral foram fortemente iluminadas assim

como a Recova que constou com 1.141 velas em meio a quatro dias de comemoração.

O que hoje se sabe do monumento inicial, construído por Francisco Canete, tem

como fonte alguns desenhos, aquarelas ou litografias. O mais antigo desses registros

gráficos data de 1817 e é a do pintor inglês Emeric Essex Vidal em uma aquarela na

qual pode-se observar, nitidamente, a silhueta da primitiva pirâmide. Através do exame

atento desses materiais, é possível perceber que o monumento passou por mudanças ao

longo de sua história que alteraram significativamente seu aspecto físico. Desde o

princípio, entretanto, possuía o formato de coluna que, enquanto elemento artístico e

alegórico, foi frequentemente utilizado na ibero américa para corporificar os

monumentos a liberdade e a independência.

Fora fabricada em adobe cozido, uma espécie de tijolo feito artesanalmente,

tendo 13 metros de altura – alcançando os 15 com o pedestal quadrangular. Possuía

ainda uma base em dois níveis, um pedestal simples com quatro ângulos de entrada e

uma faixa horizontal destacada ao redor. Um globo decorativo arrematava o conjunto.

Era rodeada por uma cerca sustentada por doze pilares. Em cada uma das quatro

esquinas da dita cerca, foram colocados postes com iluminação. Nos dias

comemorativos, todo o aparato era adornado com faróis de papel, luzes e legendas

alusivas. Até o ano de 1834 não aparecem em arquivos referências a modificações na

pirâmide que, até dito ano, só havia sido limpa e pintada para corroborar com a

dinâmica comemorativa ano após ano.

A pirâmide foi, em diversas ocasiões, decorada com inscrições dos mais diversos

tipos. À inicial data foram acrescentadas, ano após ano, distintos escritos que faziam

alusão direta a elementos nacionais ou vontades específicas de cada governante. As

inscrições – datas, nomes, palavras de ordem, valores nacionais e republicanos

encarnados em alegorias e até décimas poéticas carregadas de significados – revelam as

distintas relações estabelecidas para com o monumento já que estas são modificas,

recuperadas, apagadas e reescritas em um processo constante de produção e construção

de significado. Por exemplo, a associação do monumento com a ideia de liberdade é

reforçada durante o governo de Juan Manuel de Rosas no qual foram agregadas

inscrições alusivas a independência nacional e também a datas comemorativas da

atuação de seu próprio governo. Nelas encontramos a primeira alusão escrita a

liberdade, em 1853, quando se grafa em um seu lado sul: “La Libertad / La Libertad

siempre renace / 25 de mayo de 1810 / La república independiente.”. As inscrições

eram acompanhadas de escritor sobre a esperança, a justiça e a força nas outras faces do

monumento.

A pirâmide original manteve sua fisionomia até 1856 quando foi modificada

pelo artista e arquiteto Prilidiano Pueyrredón. Também nessa reforma é incorporada a

figura que alude a liberdade, localizada no cume da pirâmide, obra do escultor francês

Joseph Dubourdieu. A motivação para essas transformações foi a consideração, por

parte de alguns governantes, de que a obra original não estava em condições estéticas de

representar o feito histórico que comemorava por se encontrar descascada, oxidada, com

a cerca retorcida, dentre outros fatores. Dubourdieu dedicou-se a tarefa de moldar a

estátua da liberdade que coroaria a pirâmide e Pueyrredón alteraria seu pedestal original

aumentando, consequentemente, sua altura e largura. Antes das comemorações daquele

ano, a figura da liberdade já se encontrava em seu lugar. Entretanto, críticas construtivas

à visão do autor acabaram determinando que quando terminadas as celebrações, se

introduziriam reformas a figura além da construção das quatro esculturas que

adornariam os ângulos de seu pedestal.

A pirâmide foi transformada a partir da construção de uma nova sobre os

cimentos da anterior que foi revestida com ladrilhos e argamassas mas continuou

compondo a base do monumento – o que causou certa confusão a partir do pensamento

de algumas pessoas de que o antigo monumento estaria dentro daquele reformado. A

nova pirâmide agora incluía uma alegoria da liberdade protegendo as ciências, as ates, o

comércio e a agricultura, que se encontravam representadas no formato de estátuas. Foi

colocada em sua parte superior uma estátua da liberdade, de 3,6 metros de altura, cujos

cabelos foram cobertos com um gorro frígio.

Em sua face virada para o lado Leste – para a casa rosada – foi escrita a legenda

“25 de Mayo de 1810” acompanhada do desenho de um sol nascente em dourado – o

Sol de Mayo. Nas três faces restantes foram colocadas coroas de louro em alto relevo.

Nos quatros lados da base foram colocadas representações do escudo nacional argentino

além da instalação de uma nova cerca que, em seus vértices, possuía um farol a gás. Os

pilares foram demolidos e a antiga cerca foi substituída por uma construída em ferro. As

quatro figuras ornamentais foram posteriormente substituídas por novas quatro: a

Geografia, a Mecânica, a Astronomia e a Navegação, em 1875. A substituição ocorreu

porque as primeiras encontravam-se em mal estado o que motivou a decisão de

substituir o material anterior – terra – por mármore.

Demolir ou não? Discussões sobre a validade estética da pirâmide

Data de 1826, sob a presidência de Bernardino Rivadavia, a primeira tentativa

governamental de construir um novo monumento ao processo revolucionário sem,

entretanto, suprimir a antiga pirâmide já que a nova proposta localizar-se-ia na Plaza 25

de Mayo que era formada apenas por parte do que hoje.12 Entretanto, posteriormente a

fonte de bronze é pensada para a própria Plaza de la Victoria entrando em conflito com

a pirâmide que deveria ser demolida. Uma série de debates começam a envolver desde

então, a permanência de tal alegoria na praça. Um constante antagonismo envolve essas

discussões que oscilam entre aqueles que acreditam na insuficiência e imperfeição da

pirâmide para representar a revolução e dos que, por outro lado, sustentam sua

relevância como primeiro monumento pátrio. Em meio a essas questões, um ano depois

da sanção da lei, Rivadavia renunciara a presidência sem, entretanto, cumprir suas

disposições e mantendo, portanto, a pirâmide inalterada.

Durante o processo de transformação de Buenos Aires em capital, consolidado

no ano de 1880, a cidade se configurou como centro do espaço nacional com a

formalização de seu predomínio administrativo. A partir de então, consolidou-se a

idealização de um projeto civilizatório que transformaria a Capital e englobaria o país

de forma mais geral – buscando uma modernização pautada na construção simbólica de

uma capital. As transformações urbanas e materiais da cidade nesse momento seguiram

esse ímpeto de construção ideológica de um imaginário corporificando esses ideais na

cidade. Devemos compreender essa materialidade identificando os discursos que se

expressam a partir dela. A pirâmide é encarada por nós como um monumento inserido

na dinâmica de lutas entre grupos e subgrupos envolvidos nas tentativas de moldar a

política em mudanças. Esses conflitos, aparentemente ocultos na cidade, são essenciais

em sua constituição. Nesse artefato, assim como na materialidade urbana como um

todo, projetam-se reivindicações de poder e também valores culturais que devem ser

analisados.

12 Ainda naquele período, o atual espaço da praça era ocupado pelas Plaza 25 de Mayo a leste e a Plaza de la Victoria a oeste, que se separavam a partir do edifício da Recova

Nesse contexto, desde 1883, surge um projeto de unificação das duas praças

além da necessidade de contar com um monumento digno do 25 de Mayo. A reforma

mais significativa da gestão envolveu a Plaza de Mayo a partir de uma tentativa de dar

forma ao desejo de comemoração da nacionalidade argentina através de monumentos

públicos. A praça, criada a partir da unificação de dois espaços, representa papel

simbólico materializando esse discurso e corroborando com a necessidade de novos

espaços para essa capital. Mais uma vez, a questão da pirâmide volta a ser centro dos

debates. Uma nota do intendente ao Conselho Deliberante demonstra sua visão negativa

sobre o monumento ao afirmar que “el pensamiento de Mayo merecía algo más que una

mezquina construcción de mampostería cuyo origen no es bien conocido”.

No último ano dessa gestão, 1887, as memórias municipais anunciam a comoção

em torno da gerência de um concurso para a confecção de planos e projetos para um

novo momento, que ocuparia lugar central na dita praça, como forma de “conmemorar

la entidade política del Pueblo argentino”.13 Em carta ao intendente da capital percebe-

se a intencionalidade por trás deste projeto ao solicitar total atenção do poder nacional

no emprego de recursos para que a capital seja “dignamente representada em la

realizacion de um pensameiento destinado á honrar y perpetuar el recuerto del

glorioso movimento que dió origem á la Independencia Argentina”.14

A criação deste novo monumento, entretanto, a partir da destruição da pirâmide

não era consensual. Após a solicitação de Alvear para sua destruição, teve início uma

divergência entre progressistas e preservacionistas que era facilmente notada nas

páginas de periódicos, escritos de época ou documentos oficiais. Por isso, o Conselho

achou oportuno diante de reações e críticas que poderiam motivar a execução de tal lei

solicitar a opinião de distintos cidadãos, como Mitre, Sarmiento e Avellaneda.15 Mesmo

com as opiniões majoritariamente inclinadas pela demolição – argumentando,

principalmente, que com a reformar de 1857 a pirâmide teria perdido sua origem

histórica – o Conselho decide, diante da diversidade de pareceres, suspender qualquer

ação impondo à Intendência o dever de tomar medidas para conservar o monumento de

futuros danos. Enquanto a municipalidade remodelava, de maneira integral, a praça, o

13 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires 1887, p. 12714 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1887, p. 13515 Mitre concordara com a demolição considerando que a forma atual do monumento não correspondia ao inicial, mas fazia uma ressalva de que devia ser conservada sua pedra fundante. Sarmiento rechaçava a adoração ao que considerava ser um símbolo sem significado. Avellaneda opinava que a pirâmide devia ser conservada e, ainda, restaurada em suas formas iniciais. Para ele, haveria espaço suficiente também para a construção de um novo monumento no vasto perímetro das praças agora reunidas.

governo nacional optara por não seguir o mesmo caminho em relação à pirâmide,

postergando a execução do monumento projetado pela intendência.

Novamente cabe aqui retomar as ideias de Riegl que, dissertando sobre os

monumentos intencionais, considera-os obras destinadas, pela vontade de seus

criadores, a comemorar um momento preciso ou um evento do passado enquanto a

concepção de monumentos históricos se alarga para abarcar àqueles que apresentam

ainda um momento particular cuja escolha é determinada por preferências subjetivas. Os

monumentos comemorativos, portanto, encarados como artefatos pensados

intencionalmente para passar uma ideia à posterioridade envolvem atos públicos

consagratórios que buscam legitimar seus efeitos a partir de seu caráter de atualidade.

Nestes, a presença de alegorias que se referem a determinadas ideias e/ou

conceitos tem relação direta com esses feitos do passado que foram escolhidos para

serem neles celebrados. Além disso, essa relação também se estabelece com a

intencionalidade daqueles que efetuam as escolhas acerca dos monumentos buscando

que essas ideias sejam atualizadas na posterioridade, construído um passado segundo

seu próprio arbítrio. Por isso se mostra tão importante a análise crítica desses

monumentos públicos buscando reconstruir o clima das ideias no momento de sua

construção e durante sua história, de forma a compreender a evolução destas a partir de

mudanças artísticas e também políticas, como buscamos destacar aqui.

A pirâmide, entretanto, não foi destruída. Prevaleceu a ideia de que tal

monumento era ponto de partida da história argentina e estava também vinculado com

suas vitórias e, para tanto, deveria ser preservada para perpetuar tal memória. Em 1899

se retoma a ideia de um grande monumento solicitando permissão ao governo nacional

para proceder com a transferência da pirâmide para o centro da praça. Essa iniciativa

será efetivamente realizada vários anos depois quando a Comissão Nacional do

Centenário se dispôs a abrir um concurso para designar o novo monumento que,

segundo suas bases, deveria conter a antiga pirâmide em seu interior.

Os centenários de independência na América Latina foram eventos marcados por

uma evocação de um determinado passado, específico e cristalizado, configurando

oportunidades de manifestação de tradições forjadas a partir de escolhas. O caráter

cívico de algumas cidades amalgamou em praças, ruas, avenidas e outros espaços da

cidade diversos meios de tornar público este discurso nacionalista buscando

monumentalizar o progresso pretendido.16 A comemoração do centenário da Revolução

de Maio foi um acontecimento de extraordinárias projeções nacionais. Desde anos

antes, o governo e seus organismos representativos, bem como o povo e outras

instituições de distintas índoles envolveram-se em atividades e iniciativas que pudessem

conceder uma rememoração digna de tal episódio da emancipação política em seu

primeiro aniversário com um século. Essa comemoração teria funcionado como uma

espécie de caixa de ressonância de um conjunto de tópicos na época já que um conjunto

de valores, ideias e projetos, que vinham dando forma ao que genericamente

denominamos identidade nacional, assumiram modos públicos e visíveis.17 Carla Lois

sugere que a densidade de eventos como esse, que celebram a argentinidade a partir de

narrativas coerentes em torno de um conjunto de tópicos considerados positivos – como

a modernidade, o progresso econômico e a civilidade –, solidificam certo imaginário

nacional a partir de certa articulação entre passado, presente e futuro.

A dinâmica comemorativa para essa data começou a ser estabelecida

anteriormente, ao longo da primeira década do século XX. Seguindo pistas desse ímpeto

de monumentalização detectado na cidade nesse período, uma lei do Congresso de

Nação autorizou a ereção de um monumento comemorativo visando perpetuar a

recordação e a homenagem a tal revolução. A Comissão Nacional do Centenário,

designada pelo governo para se encarregar do cumprimento do programa de festejos, em

sessão no dia 16 de agosto de 1906 abriu um concurso que seria realizado entre artistas

argentinos e estrangeiros para que se criasse o monumento, em bronze ou em mármore,

resolução aprovada pelo Poder Executivo Nacional por decreto do 19 de março de 1907,

de acordo com as bases estabelecidas pela Comissão.

A hierarquia entre esses distintos atores não descaracteriza a ocorrência de

interferências entre esses projetos que são determinantes na concepção final da obra –

como nesse caso, cujo monumento não chegou a se concretizar. Nas fontes analisadas

por nós observamos um interessante debate de elaboração de narrativas calcadas em

eventos históricos por meio de metáforas ou imagens – buscando a representação de

personagens ou cenários específicos utilizando recursos alegóricos que devem ser

problematizados. Assim, a análise do processo de construção – ou tentativa – desse

16 GUTIÉRREZ, Ramón. Las celebraciones del centenario de las independencias. Apuntes, Facultad de Arquitectura y Diseno, Bogotá, Colombia, v. 19, n. 2. p. 176-183, 2006. 17 LOIS, Carla. El mapa del Centenario o un espectáculo de la modernidad argentina en 1910. Araucaria: Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades. Sevilla, v. 12, n. 24, p. 176-196. 2010.

monumento deve ser feita conservando os diálogos, trocas e negociações que permeiam

essa obra pensando como fruto de um processo e de distintas práticas.

O concurso e os projetos apresentados nos permitem compreender toda uma

conflituosa negociação estabelecida entre a própria Comissão e os artistas, bem como

outras dinâmicas de conflito que se estabelecem a partir das propostas de monumento e

suas críticas e/ou revisões. Não iremos, entretanto, nos deter, nesse trabalho, na análise

específica do concurso e das propostas enviadas. Tendo a pirâmide como foco de nossas

investigações, o concurso nos interessa aqui como forma de contraposição. Em meio ao

momento celebratório da própria revolução evocada pela pirâmide a proposta de um

novo monumento para substituí-la pareceria, no mínimo, contraditória.

O concurso, difundido amplamente também no exterior, atraiu a atenção de

artistas nacionais e estrangeiros tendo o número de projetos alcançado setenta e quatro

apresentações, distribuídas por países da seguinte maneira: argentina com 8; Alemanha

com 6 Áustria com 2; Bélgica com 3; Inglaterra com 3; França com 21; Espanha com

10; Itália com 17; Estados Unidos, Chile e Uruguai com 1 cada. O júri se reuniu para

arbitrar os projetos apresentados e a votação para decidir o primeiro prêmio acabou

empatada entre o projeto dos artistas italianos, arquiteto Gaertano Moretti e escultor

Luigi Brizzolara, apresentado sob o título “Pro Patria e Libertate” e o do escultor Julio

Lagae. Cada um deles foi submetido a uma nova votação e, ao produzir-se um segundo

empate, a eleição foi decidida pelo presidente da Comissao, Dr. Marco Avellaneda, que

votou em favor dos italianos.18

O projeto do monumento premiado deveria conter em seu interior a pirâmide e,

para tal, a pirâmide deveria ser transportada até o centro da praça. Para isso, em 1912,

foi alijada das quatro estátuas que adornavam seus ângulos que passaram para o

depósito municipal. Com a ajuda de escoras para evitar qualquer alteração estrutural

eventualmente provocada pelo movimento, o monumento percorreu um total de

aproximadamente 63 metros desde sua primeira localização – onde, ao contrário do que

muitos acreditavam, não foi encontrada nenhuma pedra inicial.

Alguns debates na época ocorreram pela circulação de uma versão que dizia que

a antiga pirâmide não existia dentro daquela reformada em 1857. Entretanto, um

extenso informe realizado por uma comissão Junta de Numismática Americana – 18 Os belgas que obtiveram o segundo premio acabaram beneficiados pois seu projeto foi executado e localizado em frente ao edificio do Congresso Nacional, com variações da proposta inicial, enquanto o projeto vencedor não saiu do papel. MÉNDEZ, Patricia, GUTIÉRREZ Vinuales, Rodrigo. Buenos Aires en el Centenario: Edificación de la nación y la nación edificada. Apuntes, Facultad de Arquitectura y Diseno, Bogotá, Colombia, v. 19, n. 2. p. 2016-22, 2006.

antecedente da Academia Nacional de História – em 1913 comprovava a existência da

primeira pirâmide afirmando que existia grande possibilidade de explicar o fato a partir

do tempo e soma disponível para realização da obra. Da leitura realizada por essa

instituição fica claro que a alusão à primitiva pirâmide como “escondida” dentro da

nova significada que essa não tinha sofrido grandes alterações tais como sua completa

demolição. A ambiguidade do texto explica, em grande parte, porque se proliferou o

pensamento de que o monumento de 1811 estivesse realmente dentro daquele novo

quando na verdade a estrutura foi modificada em 1856 a partir de um aumento da altura

de sua agulha e retoques superficiais em seu reboco e molduras.

Por razões econômicas e pelo começo da Primeira Guerra Mundial o

monumento previamente aprovado e selecionado, não chegou a ser construído e a

pirâmide continuou no centro da praça, em seu novo posto, aonde se encontra até os

dias atuais. Após seu translado e com a decisão de não construção do novo monumento,

foi solicitado a partir de periódicos que as placas de homenagem que haviam sido

retiradas fossem recolocadas e, quando atendida tal reivindicação, a pirâmide voltou a

estar como antes exceto por suas novas coordenadas geográficas e pela perda das quatro

figuras alegóricas. No ano de 1941, a Comissão Nacional de Museus e Monumentos e

Lugares Históricos refletiu sobre o tema da pirâmide dando origem ao decreto 120412

de 21 de maio de 1942 através do qual essa foi declarada monumento histórico.

Entretanto, a dinâmica de realização desse concurso coloca em movimento

muitas questões dentre os quais se destaca a questão da conformação da nação e o

debate entorno do nacional. Já anteriormente, muitas haviam sido as tentativas de

substituir a pirâmide histórica. Parece até mesmo irônico, em certo ponto, que a

proposta de construção de um monumento homenageando a revolução de 1810 envolva

a destruição desse primeiro artefato pátrio. Entretanto, cabe buscar compreender como

se configura esse jogo de poder e as representações imbuídas nestas obras já que essas

ações configuram uma disputa clara entre grupos distintos uma vez que,

concomitantemente, se apresentam ideais de conservação desse monumento por ter sido

o primeiro representante da nacionalidade argentina.

Para Paulo Knauss, a lógica monumental se constitui a partir de uma estrutura

narrativa que a define como produto de representação do passado ordenando

determinada leitura da história insistindo em uma organização temporal que apresenta o

processo histórico como univocidade da nação, simbolicamente representada.19 Essa

estrutura se define, portanto, em torno de uma pedagogia do civismo no qual as imagens

urbanas de tipo escultórico evidenciam como se constituíram em instrumentos de dada

pedagogia social caracterizada pela promoção do civismo – ou seja, baseada nos feitos

dos grandes homens e capaz de fazer germinar um certo orgulho pela história

fomentado pela nacionalidade. O autor revela assim, a existência do que denominou

pedagogia do civismo, entendendo objetos urbanos e suas imagens como elementos de

mediação. A ritualização das imagens urbanas ganha, assim, atributos específicos sendo

o emblema escultórico incorporado como recurso didático para a promoção do civismo.

Considerações Finais

Uma tentativa de restauração da pirâmide foi iniciada ainda no final do ano de

2016 tendo como objetivo recuperar a aparência que esta portava a 105 anos atrás – em

1912, quando foi transportada até o local que ocupa atualmente, no centro da praça.

Esse fato elucida a argumentação que propomos aqui de que este monumento está

imerso entre os tempos históricos, participando de dinâmicas em constante mudança que

exigem sua transformação física ou o retorno à condições anteriores de acordo com

interesses fluídos. Como monumento, este propõe uma leitura específica dos fatos a

partir de sua estrutura narrativa – que articula tempo e espaço – organizando uma

explicação conduzida e sistematizada. É assim que funciona como imaginária urbana,

segundo Paulo Knauss, realizando sua própria operação historiográfica a partir da

monumentalização do passado e da sacralização da cidade e dos fatos da história. O

passado se torna matéria da escultura, se inserindo no próprio ambiente construído.

19 O autor desenvolveu tais ideias a partir de uma escultura a Pedro Álvares Cabral, retratando-o como herói e celebrando o ato do descobrimento na ocasião das comemorações do quarto centenário do descobrimento. Para ele, essa iniciativa de comemoração de um evento histórico associada à promoção de um monumento acompanhou uma tradição iniciada no Brasil em 1864 com uma estátua de D. Pedro I que deve continuidade em 1872 com uma de José Bonifácio. Esse mesmo modelo teria se expandido por todo Brasil inovando as tipologias, distribuindo imagens de caráter histórico em centros urbanos. Ainda segundo Knauss, esse movimento de celebrar grandes personagens da história nacional a partir de esculturas pública teria seguido o modelo francês originário da Revolução Francesa e tendo seu ápice na virada do século. As estátuas assumem novas conotações simbólicas e, nessa trajetória de transformação de valores sociais, a se tornam emblemas políticos, derivados do culto laico à nação. O recurso das cerimônias e símbolos conferiam ao povo um papel ativo na criação da mística nacional transformando a representação política em uma dramática que o colocava como ator da história. Dessa forma, para Knauss, os monumentos se confundiram com os próprios processos de fundação simbólica da nação. Ver: KNAUSS, Paulo. O Descobrimento do Brasil em escultura: imagens de Civismo. Revista Projeto História, São Paulo: PUC, 200, p-175-192

Ao longo desses mais de dois séculos de vida enquanto república, a Argentina

foi construindo representações de seu presente, passado e futuro a partir de suas festas

cívicas. A revolução de 1810 bem como suas sucessivas comemorações, que tiveram

como principal expressão o Centenário da Independência, têm sido objetos de distintas

reflexões e revisões em meio a historiografia e outros campos. É uma constante a

considerar que os distintos governos buscaram se legitimar tendo o mito de origem da

republica como momento épico imortalizando. Esses rituais fluídos se produzem

segundo a época e pela seleção e elaboração de imagens da nação identitária, que se

configura como uma construção. Esse episódio, entendido como o primeiro passo no

caminho até a independência argentina se cristaliza como paradigma tendo seu sentido

simbólico constantemente rememorado, como no caso da Pirámide de Mayo.

A monumentalidade atua diretamente na dimensão simbólica, concedendo

visualidade, representando e valorizando determinadas ideias e concepções. Essa tem

um sentido em si, que pode ser explicito ou não, mas que vale a pena ser analisado de

maneira mais profunda. Assim, se proliferam emblemas, heróis, discursos, arquiteturas,

cerimonias que forjam e reiteram esses sentidos. Essas são pedagogias cruciais na

criação de um tipo de comunidade imagina como é a identidade nacional da américa

latina. Retomamos a ideia de Pigna destacando que devemos atentar para os usos que

são feitos do processo de 1810 que, muitas vezes, funciona como um mecanismo efetivo

para despolitizar e reduzir pontos da história nacional. A visão difundida continua

reforçando esse mito fundador tornando quase impossível dissociar o país das batalhas

de 1810. Essa imagem, alheia à realidade, é útil para esse discurso de poder que busca

legitimar-se a partir de uma despolitização da história que, ao deixar de lado seus

múltiplos elementos, é acompanhada da exaltação de determinados protagonistas e

datas.

Conscientes de que não conseguiríamos abarcar todas as modificações sofridas

pela pirâmide ao longo de sua história, optamos por compreender sua trajetória e,

principalmente, suas tentativas de demolição, encarando o momento do centenário como

profícuo para compreender os discursos em debate. Nesse momento são recuperadas

tentativas anteriores de supressão do monumento que revelam muito das vontades de

distintos atores para com esse e, para o espaço da cidade como um todo. Pela pirâmide

ser um monumento localizado em um espaço público, retomamos o caráter conflitivo da

composição desse espaço bem como das apropriações – ininterruptas – da cidade. Os

conflitos, inerente à definição do próprio espaço público como afirmou Adrian Gorelik,

evidenciam as representações feitas sobre o espaço e, acompanha-los, nos permite

perceber como operam na cidade em constante transformação. O monumento envolveu

uma serie de polêmicas acerca de sua validade histórica, material e estética como

símbolo da revolução. Esse permanece até hoje na praça, tendo sofrido modificações

posteriores, mas não desaparecido completamente uma retórica de glorificação de certos

símbolos sem, entretanto, estar livre de disputas e negociações que permearam, como

tentamos destacar aqui, vários pontos de sua execução.

As reflexões realizadas neste trabalho visam estabelecer um diálogo entre

historicidade e espacialidade – questões com intrínseca relação, mas, por muitas vezes,

separadas para fins analíticos. Seguimos a tendência notada por Diego Roldán20 iniciada

por alguns autores na década de 1990 que se expressa em uma persistente preocupação

pelas ações políticas do estado e da sociedade civil sobre a trama urbana e suas

transformações incorporando, entretanto, uma inclinação pela abordagem de temáticas

referenciadas à história intelectual que trata dos distintos projetos de cidade e das

apropriações subjetivas do espaço. A história urbana argentina, para o autor, incorporou

e revalorizou fontes que estavam, até então nas margens das considerações das ciências

sociais nos anos anteriores – literatura, técnica, discursos urbanistas, expressões

artísticas, por exemplo – e que permitiram reconstruir esse objeto atentando para as

representações da cidade como férteis campos de estudo.

Ao historicizar problemas debatidos em torno das questões urbanas buscamos

incorporar fontes e interpretações que permitam compreender a cidade a partir da

complexa maneira como essa se delineia, considerando imaginários e representações

urbanas. Integramos os discursos como forma de compreender o elemento urbano por

serem produtores de significados culturais. Lidamos também com referenciais da

história política buscando atentar para as dinâmicas em constante mudança e sua

materialização no espaço da cidade como ambiente construído onde se projetam

reivindicações e valores. A política, para além da sua dimensão cognitiva, tem aspectos

simbólicos e afetivos e é entendida por nós como um conjunto de signos que

transbordam das tradicionais instituições que abrigaram. A incorporação dessas

tendências em nosso trabalho incidiu significativamente sobre as formas de leitura do

passado permitindo decifrar novos elementos a partir de uma perspectiva analítica que

nos permite compreender os diversos âmbitos circunscritos no espaço da cidade. 20 ROLDÁN, Diego. La construcción de la urbe y de la ciudad em la historiografia argentina. Um vistazo del último medio siglo. In: BARRIERA, Darío e ROLDÁN, Diego. Territorios, espacios y sociedades: agenda de problemas y tendencias de análisis. Rosario: UNR, 2004.