ingovernabilidade disfunção e quebra estrutural · "congressismo" por imperfeição da...

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1 INGOVERNABILIDADE Disfunção e Quebra Estrutural Omar Guerrero Orozco Universidad Nacional Autónoma de México Publicado en: Brasilia, Brasil, Revista do Serviço Público , ano 47, volume 120, núm. 2, Mai-Ago, 1996, pp. 47-65. Traduzido por Carolina Andrade.

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INGOVERNABILIDADEDisfunção e Quebra Estrutural

Omar Guerrero OrozcoUniversidad Nacional Autónoma de México

Publicado en:Brasilia, Brasil, Revista do Serviço Público, ano 47,

volume 120, núm. 2, Mai-Ago, 1996, pp. 47-65.Traduzido por Carolina Andrade.

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INTRODUÇÃO

O desempenho dos Governos tem sido objeto freqüente dereflexão. Muitos dos tratados de política e administração públicase referem às deficiências do Governo. Entretanto, poucas vezes sedeu tanta atenção aos déficits governamentais como hoje. Este artigotem por objetivo examinar a ingovernabilidade como um esboço dosproblemas do Governo.

Um Governo pode ser qualificado de deficiente se o seu objetivoprincipal não é alcançado, ou seja, se suas receitas não fizeremfrente aos imperativos públicos. As causas das deficiências podemser das mais diversas naturezas, e vão desde a vocação para o"congressismo" por imperfeição da divisão de poderes que beneficiao Legislativo, até a decadência do Estado em seu conjunto. Envolvem,também, os processos de deterioração governamental, que provocamfatos tão dramáticos como as guerras civis e as ditaduras.

Recentemente, contudo, dentro das condições gerais de mudançaacelerada que envolvem as sociedades contemporâneas, observa-se umproblema crítico de Governo, definido como "ingovernabilidade". Sobesse aspecto, a ingovernabilidade foi definida como um diagnósticode invia- bilidade dos Governos para atingir seus objetivos, massomente do ponto de vista do papel do Estado frente a suas atuaisobrigações. Isso significa que o problema é detectado a partir dasresponsabilidades mais recentes do Estado, principalmente asrelativas ao bem-estar social (tais como saúde, educação e trabalho)e as relativas ao grau de civilidade atingido pelos cidadãos(ampliação do sufrágio e exigência de democratização).

Colocado assim o problema, as condições examinadas se limitamaos deveres governamentais considerados prescindíveis etransferíveis para outras opções de satisfação cuja natureza não épública, como, por exemplo, o mercado. Ao mesmo tempo, a análiseaplicada tende a se limitar a um método funcionalista, isto é, aaproximações que restringem a ingovernabilidade dentro de desajustesou inadaptações funcionais nos sistemas políticos.Faremos aqui um exame, relativamente extenso, do problema daingovernabilidade, comparando estas perspectivas disfuncionais eoutras mais, que denominamos de propriamente estruturais.

Gaetano Mosca, no final do século passado, tinha definido oGoverno como a direção da máquina administrativa, financeira,judicial e militar, ou a influência sobre quem a dirige.Recentemente, porém, Karl Deutsch conceituou o Governo com base nasnoções de comunicação e controle, coincidindo com a versãoprecedente, no sentido de que o Governo consiste na arte da direçãoe da autodireção. Estas noções entranham, de forma explícita, o

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1 Bobbio, Norberto. "Gobernabilidad". Diccionario de Política.Siglo XXI Editores. pp. 192-199.

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conceito de governabilidade, cuja natureza consiste em umamais-valia, um valor agregado às práticas meramente contínuas deGoverno. Governabilidade significa, simplesmente, o conjunto dosmecanismos que garantem o desempenho superior da direção e daautodireção da sociedade, isto é, um Governo que não ofereça somenteordem e estabilidade, mas também qualidade de serviço e bem-estarsocial geral. Em contraposição, ingovernabilidade é a incapacidadede produzir bem-estar devido a uma sensível escassez de ordem eestabilidade; dito de outro modo, a ingovernabilidade não é umresultado indesejável de perda de qualidade superior do Governo,mas, sim, dos fundamentos do Governo em si.

Quanto mais as desordens sociais surgem, no seio da sociedade,e maior é o grau de violência introduzido nestas desordens, aingovernabilidade atua como um mecanismo de destruição das condiçõesde vida desta sociedade. A essência da ingovernabilidade é aimpossibilidade do regime para dirigir, e portanto, assegurar ofator político primordial de ordem e de estabilidade como condiçõesnecessárias para promover o bem-estar. Assim, a ingovernabilidadenão se limita à incapacidade de oferecer bem-estar: estende-se àimpossibilidade de criar condições para a ordem e a estabilidade,sem os quais a convivência social é impossível.

1. INGOVERNABILIDADE COMO DISFUNÇÃO

Como vimos, é recente a identificação do termoingovernabilidade com a incapacidade do Governo em responder àsexigências de bem-estar e, em geral, a noção transita dentro deesquemas conservadores e sugere a existência de doenças incuráveise males congénitos, atribuídos o Estado.1 A ingovernabilidade éconcebida de um modo particular, strito e conjuntural, não como umfenômeno geral, uma vez que sua onfiguração epistemológica tem seufundamento na idéia de disfunção. Existem três versões disfuncionaisda ingovernabilidade.

A primeira vê a ingovernabilidade como o resultado de umaobrecarga de exigências sociais, que bloqueiam os processos;overnamentais de resposta do Governo e diminuem a capacidade doserviços públicos. Governabilidade e ingovemabilidade sãoidentificadas lomo parte do mesmo processo político, a primeira comofunção e a egunda como disfunção.

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O segundo enfoque considera ingovernabilidade como um problemadecorrente da insuficiência de ingressos fiscais provenientes laatividade meramente tributária do Estado, diante do aumentoconstante do gasto público, isto é, o aperto financeiro é umadisfunção lo sistema. Sua base é o abandono da vocação do Estadocomo Fisco, endo como objetivo desenvolver as bases econômicas datributação.

Finalmente, a ingovernabilidade é concebida como o produto daIrise de gestão do Governo e da degradação do apoio político doscidadãos. Constitui um vício na relação entre os insumos e osprodutos lo sistema político, derivada da crise de saída como crisede racioialidade e da crise de entrada como crises de legitimidade.A primeira Irise se manifesta na incapacidade da administraçãopública em insrumentalizar o controle da economia e a segundaconsiste na ncapacidade de despertar um nível adequado de lealdadeao Governo. Existe, em suma, uma relação disfuncional entre aeconomia e a administração pública.

1.1. A sobrecarga da demanda como fonte iisfuncional deingovernabilidade

Um dos insumos mais poderosos nas transformações internas noEstado moderno é o crescimento da participação dos cidadãos nosiegócios públicos e, por conseguinte, da extensão e multiplicaçãoda lemanda de bens e serviços públicos. Devido ao conceito desufrágio lomo divisa política e como alimentador da explosão decivilidade, os governantes têm absorvido esta demanda, que tem sidosatisfeita com a Lmpliação de fatores de satisfação pública, cujossaldos são, por um ado, a espiral econômica inflacionária, e, poroutro, paradoxalmente, insatisfação das reivindicações dos cidadãos.Esta sobrecarga de lemanda é definida como uma relação assimétricaentre o crescimento lo produto nacional, o custo dos serviçospúblicos e as reivindicações salariais. Uma das conseqüênciasnegativas é a incapacidade implemenadora do Governo, isto é, suainaptidão para alcançar os objetivos propostos e, portanto, pararesponder positivamente aos compromissos com os cidadãos.

Outra conseqüência é a perda do consenso dos cidadãos, cujoresultado é a diminuição da disposição à obediência, principalmentequando as políticas do Governo vão contra os seus interesses. Ambosos saldos estão relacionados, pois a conservação do consenso sobrea perda da eficiência administrativa deriva irremediavelmente naimprodutividade e, posteriormente, na redução do consenso e naruptura da legitimidade. Concluindo: a qualidade do desempenho doGoverno é definida pela sua capacidade em desenvolver eficiência econsenso, através dos serviços que presta.

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2 Offe, Claus. "Ingovernabilidad". Revista Mexicana deSociologia, número especial. 1981. pp. 1847-1865.

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As soluções propostas para evitar a ingovernabilidade porsobrecarga provêm, geralmente, do neoliberalismo e vêm acompanhadasde uma drástica redução da atividade do Governo e da redução dasexpectativas por serviços da sociedade, especialmente do papel doEstado como o salvador em situações difíceis. Mesmo com os programasantiinflacionários, a terceira solução consiste em sugerir oingresso de mais recursos nos governos. Finalmente, os teóricos dasobrecarga esboçaram uma última solução, que consiste em reorganizarprofundamente o Estado através da simplificação de suasinstituições, para diminuir a complexidade que dificulta a suaeficiência.

O argumento central da tese da sobrecarga é a incapacidadeorganizativa e operacional do Estado em satisfazer um crescimentode reivindicações oriundas de um espaço político expandido ediferenciado, provenientes dos cidadãos e das organizaçõespolíticas: partidos, grupos de pressão e meios de comunicação, quedesfrutam de ampla liberdade de movimento.2 O resultado é umasobrecarga de exigências, perante as quais os governos não têmcapacidade de resposta. Diante desta sobrecarga de exigênciascontínuas e crescentes, as obrigações e deveres públicos aumentamtanto que sua capacidade de resposta decai irrefreavelmente. Dainércia estatal decorrem o inconformismo e a frustração dos setoressociais marginalizados e insatisfeitos, cujas reivindicações oGoverno não pode satisfazer e, por conseguinte, aumentagradativamente o nível de ingovernabilidade.

Para retirar o Estado de uma crise de Governo, outro remédioneoliberal aconselha o desvio das reivindicações sociais cujasrespostas positivas devem ser redimensionadas dentro dos limites dasrelações de mercado. Desta forma, espera-se que o nível degovernabilidade aumente, graças à privatização de setores econômicose sociais controlados pelo Estado, desestatizando uma série deserviços. Este procedimento é mais rentável quando se estende aosnichos nos quais repousam as atividades econômicas estratégicas doEstado, extinguindo-se seus monopólios econômicos e ampliando-se oslimites do mercado.

A alteração das exigências sociais deve ter como limites osdeveres de bem-estar do Estado, reformando-se o regime de segurançasocial, no qual se baseiam os programas de saúde e proteção devastos setores da sociedade, assim como os relativos ao trabalho,à assistência social, à habitação e similares. Perante este métododrástico, reivindicações sociais são sufocadas antes de nascer e se

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3 Manuel Colmeiro, um destacado cientista social do séculoXIX, criticou os arbitraristas, dos quais diz o seguinte: "osarbitraristas ou projetistas, algumas vezes significavamfazendeiros e outras inventores de traçados e quimeras paraauxiliar o rei com o prejuízo do seu reino." Biblioteca de losEconomistas Españoles de los siglos XVI, XVII e XVIII. México,Escuela Nacional de Economia, UNAM. s.d. (Edição fac-símile). pp.38-42.

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consegue uma redução substancial de insumos deflacionários dasreivindicações que geram a sobrecarga. Entretanto, caso surjamreivindicações que não foram sufocadas desta forma, ou desviadas emdireção às relações monetárias, elas devem ser canalizadas parafiltros da administração pública para que as avaliem como possíveisinsumos acessíveis ao Governo. Em resumo, exigências que ultrapassemestas medidas são, simplesmente, situadas fora do limite daracionalidade governamental e são descartadas.

1.2. 0 déficit fiscal como causa disfuncional deingovernabilidade

De acordo com a versão da ingovernabilidade como um produto negativodo déficit fiscal, o Estado, para garantir sua própria reprodução,deve reduzir-se a funções primordiais, particularmente garantir oacúmulo de capital e preservar a legitimidade. A chave para estasfunções é o potencial que o Governo tem para garantir as condiçõesgerais de acumulação, evitando o beneficio de umas classes emprejuízo de outras, reduzindo a taxa de legitimidade. O Governo nãopode ignorar que tais funções são os insumos de sua existência,porque os excedentes da economia são a fonte de suas receitas. Estainterpretação baseia-se na experiência norte-americana e na evoluçãoorçamentária desse país, toda vez que confunde a crise fiscal doEstado com a crise do Estado como Fisco. Esta última consiste em umaredução drástica das atividades econômicas da iniciativa privada e,conseqüentemente, em um esgotamento das fontes tributárias.

A versão da crise fiscal do Estado, simultaneamente, sesustenta na tese da peculiaridade dessa crise como própria daatualidade. Realmente, há dois séculos, a crise fiscal é umacondição permanente da fazenda pública dos estados modernos, nosentido de que, freqüentemente, a proporção entre receita e despesaé assimétrica. Por este ângulo, a teoria da crise fiscal do Estadoé um desvio atual do antigo arbitrismo, que foi uma resposta àsituação deplorável da economia espanhola no século XVII.3 Osarbitraristas se empenharam em destacar, por diversos meios, oestado deprimente da Real Fazenda. Suas observações, porém,

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4 Cipolla, C.M. La Decadencia Económica de los Imperios.Madrid: Alianza Editorial. 1970.

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limitaram-se ao problema da receita, de tal forma que asextrapolações a outros problemas foram circunscritas à área fiscal,assim como o enfoque da ingovernabilidade.

Iniciou-se, recentemente, a elaboração de uma teoria geral dadecadência econômica dos Impérios da Antigüidade, cujas explicaçõesse baseiam em problemas fiscais.4 Atualmente, restringir a crisefiscal como inerente ao Estado moderno carece de fundamentos, assimcomo mostram os inúmeros trabalhos elaborados entre os séculos XVIe XVIII, cujo objetivo foi explicar a decadência do Império Otomanocomo conseqüência do esgotamento das fontes tributárias. Os KanunNama ou Tratados dos Cânones do Governo, pretendem, durante estaépoca, analisar a crise fiscal que afundou o Império.

Portanto, é mais correto nos referirmos à crise do Fisco, istoé, do Estado como titular da Fazenda Pública, do que à crise fiscaldo Estado, no sentido de referente peculiar da ingovernabilidade doEstado moderno na atualidade. Além disso, a concepção do Estadofiscal, que pode se transformar em um Estado interventor, reforçariaas instituições governamentais e ofereceria uma opção de receitasfinanceiras através de meios não-fiscais (produzidas pelas empresaspúblicas, através da obtenção de direitos para a exploração dopatrimônio público, além de outras).

1.3. A insuficiência de racionalidade como insumo disfuncionalda ingovernabilidade

Esta interpretação baseia-se na teoria da expansão do papel doEstado e na extensão de sua intervenção na economia, mas enfatizao intercâmbio de relações entre os valores e as estruturas, no campoda participação, das preferências e das expectativas políticas.Entretanto, transcende estas premissas sob o projeto de uma teoriageral da crise do capitalismo tardio. O centro de seu esquema é umprincípio organizador, cujo primeiro aspecto é a consolidação de umdomínio não-político de classes e o segundo é a ação orientada nomercado, mais para os juros do que para o valor. Este princípio deorganização fundamenta-se na contradição entre o dever do Estado depreservar a propriedade privada e a justificativa de suas funçõessociais.

A tendência da não satisfação destas últimas, fundamentais paraa integração social, resulta em uma crise do sistema social como umtodo. A crise manifesta-se em quatro tendências: a) a incapacidade

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5 Habermas, Jürgen. Problemas de Legitimación en elCapitalismo Tardio. Buenos Aires: Amorrortu Editores. 1975. pp.49-116.

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do sistema econômico para criar, na medida necessária, suficientesvalores consumíveis; b) a inabilidade do sistema administrativo paragerar, na medida necessária, opções racionais, c) a impossibilidadedo sistema de legitimação para gerar, na medida necessária,motivações generalizadas e d) a inviabilidade do sistemasócio-cultural para gerar, na medida certa, um estímulo para aação.5

A ingovernabilidade, como efeito da crise do capitalismotardio, engloba um déficit sensível do rendimento da administraçãopública. O sistema político alimenta-se mediante o insumo delealdade das massas, gerando um produto de decisões administrativasemanadas da autoridade. A crise de insumo manifesta-se como umacrise de legitimidade, enquanto que a crise de produto expressa-secomo crise de racionalidade. Esta última manifesta aincompatibilidade e descumprimento do Governo, em relação àsexigências do sistema econômico. A medida que esta crise progride,a desorganização da administração pública e sua decrescentecapacidade de serviço se transformam em ingredientes adicionais dacrise de legitimidade. A crise de racionalidade é uma conseqüênciada crise econômica, devido ao deslocamento das relações econômicaspara a administração pública. A ingovernabilidade, manifestada nodéficit de racionalidade administrativa, não é inerente àadministração pública, e sim um insumo procedente do sistemaeconômico e a expressão da sua incapacidade para oferecer-lheprodutos necessários de Governo.

A crise de racionalidade manifesta o substrato de contradições,no qual jaz a economia no capitalismo tardio que, ao mesmo tempo,representa a necessidade da socialização e conserva o imperativo dapropriedade privada. A ingovernabilidade reproduz a impossibilidadedo Estado para responder aos imperativos que não tem condições decumprir. Situado entre Caridbis e Escila, o Estado deve representaro papel de capitalista genérico e, ao mesmo tempo, garantir aconcorrência dos capitalistas individuais que não podem abandonara liberdade de investimento. O Estado em atividade, isto é, aadministração pública, se desenvolve dentro do paradoxo de ummovimento oscilatório, entre a espera desta atividade e a renúnciaà sua realização.

Esta colocação expressa o Governo como supradeterminado pelaeconomia, e assim acontece de fato, mas é deixado de lado seucaráter de condutor do capitalismo como um todo. Como qualquer forma

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6 Bobbio, Norberto, op. cit., p. 193.

7 Merton, Robert. Teoría y Estructuras Sociales. México: Fondode Cultura Económica. 1972. p. 61.

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de produção, as contradições do capitalismo são inerentes a seu modode vida. A dissidência entre vida pública e privada é inarredável,mas isso pode ser superado mediante a fórmula proposta por Lorenzvon Stein há mais de um século: a individualidade só pode serdesenvolvida ao máximo na medida em que as relações sociais decomunidade são fortalecidas. Cabe ao Estado preservar e ampliarestas relações da comunidade, garantindo compromissos comuns pormeio de sua vontade (Constituição) e exercendo-os mediante suaatividade (Administração). As contradições não são eliminadas, mastranscendem toda vez que o papel do Governo não se restringe aintroduzir racionalidade à economia, pois deve velar pelo conjuntosistêmico e para isso exige autonomia. A política tem uma amplamargem de autonomia em relação à economia, baseada nos determinanteseconômicos.

Norberto Bobbio considera que, independentemente da fonte deestímulo das interpretações da sobrecarga da crise fiscal e da crisede racionalidade, todas respondem ao fato comum de que os sistemaspolíticos modernos são influenciados pela expansão da política, pelaparticipação dos cidadãos e pela intervenção do Estado. Mesmo queo grau desta expansão não tenha paralelo na História, algumas desuas características não são novas. Muitos dos problemas suscitadosna história política dos países, tais como as guerras civis, golpesde estado e revoluções, têm suas causas em crises fiscais, na faltade legitimidade e na insolvência da administração pública. Bobbioenfatiza: "queremos, então, afastar a pretensão, própria de quem nãopossui uma memória histórica suficientemente ampla, de destacarexcessivamente as peculiaridades da época atual". Conseqüentemente,são outras as características que explicam atualmente aingovernabilidade e entre elas estão as mudanças dentro do Estadoe as relações entre os Estados. Além disso, é evidente que ossistemas políticos atuais são mais difíceis de governar que ossistemas políticos anteriores.6

Os conceitos de ingovernabilidade pela sobrecarga, pela crisefiscal e pea crise de racionalidade, que vimos anteriormente,correspondem mais ao que foi definido pelo funcionalismo estruturalcomo uma disfunção. As funções são as conseqüências observadas quefavorecem a adaptação ou o ajuste de um determinado sistema; asdisfunções, em contrapartida, são as conseqüências observadas queminimizam a adaptação ou ajuste do sistema.7 A sobrecarga deexigências, mais que um problema geral de Governo, consiste em um

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8 Montesquieu (baron de la Brède, Carlos de Secondat). DelEspíritu de las Leyes. México: Editorial Porrúa. 1980. pp. 15-75.

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desajuste entre os insumos de demanda e os produtos de decisão eação, isto é, em uma falha de implementação de políticas públicas.A crise fiscal, de forma semelhante, representa uma desproporçãoentre o montante do produto ou despesa (gasto público) e aquantidade de receita ou entrada (impostos), isto é, consiste em umproblema "homeostático" de desequilíbrio entre os arbítrios e adespesa, que provoca uma tendência à desordem fazendária. A crisede racionalidade, finalmente, corresponde a um déficit dearticulação entre um subsistema (economia) e outro (administraçãopública), que desajusta a integridade do sistema no seu todo.

A sobrecarga de reivindicações sociais, o déficit fiscal e acrise de racionalidade são problemas cuja raiz deve ser procuradana gestão política e administrativa; são problemas de Governo emparticular, e não problemas do Governo em geral, cujas causas podemser atribuídas a deficiências na implementação de políticas. O mesmofato pode ter implicações funcionais e disfuncionais, devendo seravaliado o saldo líquido do conjunto de conseqüências, especialmentena utilização da análise funcional para orientar a elaboração e aimplementação de políticas públicas. Neste sentido, a sobrecarga,o déficit fiscal e a insuficiência de racionalidade constituemincompatibilidades entre os ingredientes funcionais e os elementosdisfuncionais, cujo remanescente é a ineficiência funcional doGoverno, que não é capaz de responder às reivindicações sociais, nemgerar recursos fiscais suficientes e nem oferecer insumos de gestãoà economia. A solução deve ser a reforma do Governo, como jáaconteceu em uma infinidade de casos na história remota e presente,para favorecer os ajustes funcionais.

2. INGOVERNABILIDADE POR CAUSAS ESTRUTURAIS

As perspectivas disfuncionais da ingovernabilidade pecam pelasimplificação. A essência da ingovernabilidade deve ser procuradaem suas próprias bases, ou seja, na sua estrutura e no seudesempenho. Como proposto por Montesquieu, devemos entender aestrutura e o principio do Governo para poder entender sua essência.

A estrutura significa o número de depositários da soberania,"é o que o faz ser". O princípio refere-se às paixões humanas "é oque o faz trabalhar".8 Se um Governo deixa de ser e de trabalhar deuma determinada forma e é e se comporta de uma forma diferente,deixou de ser o que era e de fazer o que fazia. O problema,entretanto, não se limita a uma mera mudança de forma e, sim, à

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qualidade implícita nessa mutação, pois Montesquieu introduz umfator determinante, que estimula a mudança, mas que pode estar ounão presente nela, e que, no nosso caso, é determinante: a corrupçãoda estrutura e princípio do Governo.

Este fator é fundamental, já que explica a ingovernabilidadeatravés de causas estruturais porque, quando um Governo étransformado pela perversão de sua natureza e seu princípio,degenerou-se como Governo em si. Desta forma, tratando-se de regimesdemocráticos degradados pela corrupção de sua natureza e seuprincípio, governam menos e o fazem de forma deficiente,transformando-se potencialmente em indesejáveis ditaduras. Para osregimes democráticos, a ingovernabilidade pode ser suscitada pordegeneração semelhante e deixar de oferecer ordem e estabilidade,com perdas proporcionais de liberdade civil para os cidadãos.

A ingovernabilidade, deste ponto de vista, significa adegeneração do Governo e, conseqüentemente, sua transformação em umregime diferente, degradado pela perversão de sua estrutura. Uma veztransfigurada por degeneração, sua estrutura modifica-se, poisdeixou de ser o que era para se transformar em algo diferente. Amudança na estrutura por ingovernabilidade começa também pelacorrupção do seu princípio. Aqui nos encontramos diante de umproblema de rendimento; o Governo é inapto para responder aos apelossociais através de suas funções, morais e políticas. Não se tratade deficiências específicas, mas sim de uma degradação generalizadade sua atividade em suas diversas modalidades.

O problema central da ingovernabilidade por causas estruturaisé que provoca uma dualidade de efeitos perigosos para a sociedade.Um destes efeitos é direto e imediato e se caracteriza pelo fracassoda ordem e da estabilidade e uma sensível diminuição do regimejurídico. O outro efeito, indireto e mediato, é a evolução até umGoverno apoiado em bases políticas diferentes, cujo sinal freqüente,pela degeneração que envolve, é a falta de legitimidade.Sob esta conotação, ingovemabilidade é a perversão da próprianatureza do Governo, e não significa simplesmente uma mudança deforma de Governo, e sim um transtorno geral do Estado. SegundoThomas Hobbes, seria o trajeto de Leviathan até Behemoth, isto é,de uma ordem estatal a uma situação carente de estatização,caracterizada pelo estado de natureza.

Por outro lado, o princípio de Governo, como o que o faz atuar,constitui uma habilidade humana que se pode adquirir e de cujodesenvolvimento depende, de muitas maneiras, a existência dacomunidade social. Jean-Jacques Rousseau afirmava que o Estadoassegurava a liberdade e o desfrute dos bens terrenos, mas que nemo pacto social e nem o Estado, que dele deriva, são eternos, porque,

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9 Rousseau, Jean-Jacques. El Contrato Social. México:Editorial Porrúa. 1979. p. 48.

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da mesma forma que o corpo humano, o corpo político "começa a morrerdesde o seu nascimento, trazendo consigo os germens da suadestruição".9 A robustez e a saúde do Estado podem ser desenvolvidase fortificadas e, em contraste com o corpo humano, a vida do corpopolítico pode ser prolongada através de um Governo adequado. SegundoRousseau, "a constituição humana é obra da natureza, mas o organismodo Estado é obra da arte". Governar é uma habilidade humana, oGoverno é uma arte do cidadão e do político, adquirida através daaprendizagem e cuja ignorância pode levar à ingovernabilidade.

A ingovernabilidade por motivos estruturais pode se manifestar,entre outras hipóteses, de três formas: por decadência política, porautoclausura dos processos de direção e por explosão decomplexidade.

A ingovernabilidade por decadência política é o resultado daimpossibilidade de capitalizar os processos que são promovidos pelosGovernos modernos como base da organização do Estado, e constituium efeito de insumos de participação política e cultura cívica. Oproblema da ingovernabilidade reside na inabilidade dos regimes emabsorver tipos mutantes de organizações e reivindicações políticasinerentes à modernização.

Por sua vez, a ingovernabilidade por autoclausura dos processosde direção da sociedade, é uma seqüela da autoclausura dos sistemaspolíticos, no sentido de sua falta de aptidão política deaprendizagem. Os canais de comunicação e controle são bloqueados eo Governo perde a capacidade de se autoconhecer, e a capacidade deautodeterminação e aptidão para atuar.

Finalmente, a ingovernabilidade por explosão de complexidadetem o efeito duplo de aumentar a escala organizativa do Governo emultiplicar suas unidades básicas. A ingovernabilidade manifesta-sena brecha existente entre o crescimento organizativo do Governo, porefeito da expansão dos seus deveres e a incapacidade de inovaçãoacelerada na formação de recursos gerenciais e gestão interna.

2.1 Causas da decadência política

A decadência política constitui uma das formas mais dramáticasda ingovernabilidade por causas estruturais. É o resultado datransformação de regimes democráticos em governos autoritários, comoum efeito da incapacidade de capitalizar a modernização. Esta

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10 Eisenstadt, S. N. Ensayos sobre el Cambio Social y laModernización. Madrid: Editorial Tecnos. 1970. p. 44. Verespecíficamente o capítulo IV "Crisis de la Modernización". Domesmo autor, Modernización: Movimientos de Protesta y CambioSocial. Buenos Aires: Amorrortu Editores. 1968. Ver particularmenteo capítulo "La Desorganización Social, la Transformación y laProtesta en la Modernización".

11 Deutsch, Karl. "Social Mobilization and PoliticalDevelopment". American Political Science Review. Vol.55, número 3.1961. pp. 493-514.

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modernização da sociedade e, portanto, de suas organizações efunções, está determinada por sua propensão a mudanças, porque "astendências para as mudanças são inerentes a todas as sociedadeshumanas, na medida em que estas enfrentam problemas essenciais, paraos quais não existe uma solução global permanente".10

O êxito de uma sociedade em sobreviver e perpetuar-se durantea modernização consiste na sua aptidão em absorver a mudançacontinua. Essa capacidade apóia-se na criação e no desenvolvimentode instituições políticas solventes, para introduzir dosescrescentes de novidade. Entretanto, tal solvência baseia-se nadisposição da sociedade em promover sua diferenciação interna e taiscapacidades e aptidões somente podem ser desenvolvidas através damodernização, vista como um tipo de mudança específica, obtidaatravés do crescimento integral.

Um dos maiores incentivos da modernização é o processo demobilidade social, como um ingrediente primordial da mudança em si,e que compreende uma variedade de manifestações expressas pormudanças de residência, ocupação, estabelecimento social,associações, papéis e desempenhos sociais, experiências,expectativas e lembranças, hábitos e necessidades, assim comoincentivos para novos papéis e novas imagens de identidade pessoal.Estas mudanças tendem a influenciar e transformar o comportamentopolítico, mas não necessariamente conduzir à modernização como umamudança progressiva.

"A mobilização social pode, então, ser definida como o processono qual grandes aglutinações de antigos compromissos sociais,econômicos e psicológicos se desgastam ou se rompem e as pessoasficam disponíveis para assumir novos padrões de comportamento".11

Ela tem um impacto decisivo no Governo, porque atinge camadas maisamplas da sociedade. Quantitativamente, o aumento demográfico incidediretamente na transformação das instituições e práticas políticas;qualitativamente, na ordem das necessidades humanas envolvidas no

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12 Huntington, Samuel. El Orden Político en las Sociedades enCambio. BuenosAires: Editorial Paidós. 1972. pp. 13-91.

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processo político. Conseqüentemente, uma sociedade pode ser capaz,ou incapaz, de criar as instituições adequadas para absorver estasmudanças ou se transformar em uma vítima da mobilização social, comoacontece com aquelas que não conseguiram adaptar as instituiçõespolíticas ocidentais como base de seus Governos. A mobilizaçãosocial é uma fonte freqüente de ingovernabilidade, como seqüela dadecadência política, porque libera "paixões humanas" que facilmentetiram a sociedade dos eixos.

O conceito de grau de governo tem sido formulado para aquilataro nível de governabilidade, porém determina também o nível deingovernabilidade, pois existem países cuja política refleteconsenso geral, comunidade, legitimidade, organização, eficácia eestabilidade enquanto outros carecem de tais elementos. Aingovernabilidade pode ser medida pelo subdesenvolvimento dasinstituições políticas com falta de solidez, flexibilidade ecoerência, dentro das quais não foi possível desenvolver umaburocracia eficiente, partidos organizados e uma elevadaparticipação popular nos assuntos públicos, assim como o controlesobre os militares, uma importante intervenção na economia eprocedimentos eficazes para garantir a continuidade e conter oconflito político.12

Os focos do subdesenvolvimento político, com evidentedecadência política, proliferam na América Latina, Ásia e África,embora não sejam exclusivos destas regiões. Estes focos mostram aingovernabilidade como uma deterioração acentuada da autoridade, daeficiência e da legitimidade dos Governos, incapazes de dar sentidoao interesse público. A decadência política é uma expressão daassimetria entre a aceleração do processo de mobilização social ea lentidão no desenvolvimento das instituições políticas, paraapoiar as mudanças econômicas e sociais. A modernização não foiacompanhada pelo desenvolvimento das instituições adaptadas a ela,mas por mecanismos estranhos aos procedimentos políticos decivilidade, tais como o "pretorianismo" desenvolvido por meio degolpes de Estado, guerra civil e movimentos de protesto de massas.Em resumo, os Governos não ofereceram legitimidade, organização eeficácia, nem ordem e estabilidade, porque lhes faltou a"arte"necessária para prolongar a vida civil; e o grau de Governo é o maisbaixo porque não produziu nem bem-estar, nem o mínimo de convivênciasocial, apenas ingovernabilidade.

Uma explicação para as causas da decadência política atualmenteé a existência de Governos incapazes de enfrentar condições sem

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13 Kliksberg, Bernardo. "¿Cómo será la Gerencia Pública en laDécada de 90?" Documento apresentado no encontro de Especialistaspara o Desenvolvimento de Políticas e Critérios Técnicos para aModernização Curricular da Formação de Gerentes PúblicosIbero-americanos, Santafé de Bogotá, Colômbia. Outubro 9-11, 1991.

14 Deutsch, Karl. Los Nervios del Gobierno. Buenos Aires:Editorial Paidós. 1969. pp. 125-126 e 139-146.

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precedentes, marcadas pela mudança acelerada, pelas turbulências epela incerteza. As características destas condições são acontinuidade da mudança, sua elevada taxa de aceleração e atransformação constante do panorama econômico e políticointernacional, que está sendo transformado no que se entende por umplaneta convertido em "aldeia global". Estas condições constituemum estímulo para novas oportunidades e opções de crescimentoeconômico, desenvolvimento político e aumento da civilidade, pelasupressão de fronteiras econômicas e mesmo nacionais e abertura demercados entre os países, cujo caráter é a comunidade.13 Estacircunstância, entretanto, reforça as interdependências entre ospaíses do planeta e bloqueia a eficácia dos cálculos e dasestimativas que eram feitas a médio e longo prazo e que, agora,necessariamente só podem ser realizadas a curto prazo. Estes fatoresdegradaram o potencial de desempenho da administração pública, nosseus esquemas organizativos e funcionais tradicionais, produzindorendimentos decrescentes, que incentivam a ingovernabilidade. Nadecadência política de alguns países, a precariedade institucionalda administração pública é um dos mais fatídicos indícios daingovernabilidade.

2.1 A autoclausura dos processos de comunicaçãoe controle

A decadência política pode estar acompanhada pelos efeitosparalelos de autoclausura dos processos de comunicação e controlegovernamentais. Esta autoclausura costuma significar uma típicaexpressão de deficiências de aprendizagem política, isto é, decapacidade pedagógica sobre a arte do Governo. O comportamento deum Governo pode se diferenciar, em termos positivos, como umaseqüência de decisões que se realimenta de informação por simesma.14 Esta seqüência implica, como resultado benéfico, umprocedimento de correção em relação ao objetivo e uma crescentecapacitação para evitar erros, como conseqüência de sua capacidadeem aprender os processos decisórios.

Em contrapartida, sob condições negativas, a inabilidade em

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15 Mill, John Stuart. Consideraciones sobre el GobiernoRepresentativo. México: Herrero Hermanos. 1958. p. 99.

16 García de Enterría, Eduardo. Revolución Francesa yAdministración Contemporánea. Madrid: Taurus. 1981. Cap. 11.

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aprender e a tendência à autoclausura freqüentemente se manifestamcomo a perda do poder ou a quebra de recursos, que enfraquecem oGoverno diante dos obstáculos colocados pelos problemas sociais.Manifesta-se também como a redução de ingresso de informação ou aquebra da eficácia dos canais de informação provenientes dasociedade, e da capacidade de criar outros, de forma alternativa,assim como a perda de capacidade da condução ou perda do controlesobre a própria ação do Governo e. portanto, da aptidão paramodificá-la com a velocidade e precisãc suficientes. A perda daaptidão para o restabelecimento da ação dc Governo e o desprezo pelahabilidade de externar sua ação perante os problemas sociaisconstituem sintomas de ingovernabilidade por clausura dascapacidades de aprendizagem política e, na mais acessível daslinguagens políticas, significa a perda da autonomia.

A autoclausura dos processos de condução e controle seriaequivalente à perda das faculdades para "indicar necessidades", queJohn Stuart Mill atribuía aos Parlamentos, no sentido em queconstituem "um lugar onde se realiza uma discussão de todas asopiniões relacionadas com grandes ou pequenos assuntos públicos".15

Em tal situação, é possível que um Governo nem sequer sejacapaz de obter um desempenho minimamente incremental.Ingovernabilidadc significa a perda do conhecimento do caudalosocomportamento passado, com um déficit agregado de programaçãofutura. Um Governc "desmemoriado" pode estar condenado a repetir ahistória, e não comc um drama mas sim como uma comédia, tal comoMarx advertiu nc prefácio do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte.

A ingovernabilidade implica perda de capacidade dereorganização interna parcial e de aprendizagem de novos padrõeslimitados de conduta, cuja rigidez e redução da capacidade deaprender, assim como a perda da capacidade de reordenação ampla,impossibilita a reforma dc Governo perante um contexto nacional einternacional dinâmico. Uma das teses mais desafiadoras, e de maiorcontrovérsia, do propósito da Revolução Francesa, mostra que adecomposição da monarquia deveu-se a sua incapacidade de reformar-sesob o projeto municipal dc Controlador Geral de Finanças, o célebreTurgot.16 A autoclausura do Governo pode levar a manifestaçõespatológicas, tais como a automutilação, a autodestruição e aautodifamação, como aconteceu com os programas de privatização de

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17 Kliksberg, Bernardo, op. cit. Os parágrafos seguintes estãobaseados no mesmo autor.

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organismos públicos, perdas dc poder político e campanhasantiburocráticas, como as empunhadas como bandeiras peloneoliberalismo.

2.3. Fator de "Explosão da complexidade"

Uma das principais características da sociedade moderna é ainterdependência e a íntima articulação dos países efetuadas atravésda interlocução de organizações com relações cada vez maisestreitas.

Estamos vivendo a segunda fase da Revolução Organizativainiciada há quatro décadas, que se caracteriza, apesar do resistenteindividualismo apregoado, pela dependência crescente das pessoas emrelação a estas organizações. Estes são pedaços de vidas que,juntos, integram toda a existência dos indivíduos e das sociedades.Ao mesmo tempo, a quota de inovação tecnológica acelerou-seextraordinariamente. Como explicou Bernardo Kliksberg, hoje em diaexistem mais engenheiros, tecnólogos e sábios criando do que emtodas as épocas precedentes. Os progressos abrangem todas as áreasdo avanço científico e tecnológico: microeletrônica, biotecnologia,robótica, genética, informática, telemática e gerência pública. Asorganizações sociais, que não compreendem nem compartilham as novasnoções de mudança, estão se tornando, irremediavelmente,incompetentes e atrasadas.17

Todos estes progressos provocaram uma gama de mutações nosassuntos humanos, derivada no que definimos hoje como uma "explosãode complexidade", sem precedentes na história. Agora, os Governosenfrentam problemas que se entrelaçam com grande velocidade, sobrelações múltiplas e mutáveis, e confrontam âmbitos marcados pelodesconhecimento e pela incerteza constantes. Eles desempenham-se emlapsos nos quais a escala do tempo é mínima e cada vez mais estreitadevido à aceleração dos acontecimentos, que alteram a dimensão dotempo, fazendo com que o futuro se torne presente de imediato e,rapidamente, o presente se transforme em História. Em taiscircunstâncias, o passado perde a eficácia para traçar linhasimediatas de ação organizadora, os métodos genealógicos não sãomuito úteis como instrumentos de gestão e direção governamental. Aprogramação e o planejamento, básicos no desempenho de incrementogovernamental, que se originou com fundamento em aproximações

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18 Lindblom, Charles. "Policy Analysis". The American EconomicReview, n. 3, Jun. 1958. pp. 299-312; "The Science of MuddlingThrough". Public Administration Review, volume XIX, n. 2. Spring,1959. pp. 79-88; "Still Muddling now yet Through". PublicAdministration Review, volume XXXIX. 1979. pp. 317-336; El Procesode Elaboración de Políticas Públicas. Madrid, Instituto Nacional deAdministración Pública. 1991.

19 Pressman, Jeffrey and Aaron Wildawsky. Implementation.Berkley: University Press. 1979. Cap. 5.

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sucessivas, perdeu suas antigas bases de projeção genealógica e seuefeito positivo em prol da governabilidade.18

A forma tradicional de administração pública por acréscimo deexperiência, perante o Direito Administrativo vigente, é necessária,porém insuficiente. As leis dos Ministérios e Secretarias de Estado,seus regulamentos internos e seus manuais de organização, assim comoos guias de procedimentos e os instrutivos, que modelam essaexperiência, funcionam como padrões prescritos através dos quaisflui a atividade de Governo, cujo prospecto confiável é atuar combase na experiência. Isto invoca o mencionado comportamento deincremento governamental, útil para ações em épocas de paz de longaduração, de calma social que reclama por insumos de mudanças porrenovação. Simplesmente, o Governo é sinônimo de ordem pública enada mais.

Provavelmente, a melhor forma de observar o efeito dacomplexidade no Governo moderno é através do Princípio daComplexidade da Ação Conjunta. Tal como foi observado, existe umarelação inversa entre o número de transações necessárias paraimplementar uma decisão e a possibilidade de produzir um efeito,qualquer que seja.19 Conseqüentemente, mesmo que a probabilidade deobter um resultado em cada fase seja elevada, o saldo acumulado donúmero total de transações pode resultar em pouco êxito. Nestastransações, devem ser considerados os atrasos, desvios e dissipaçõesdo efeito das políticas, por parte dos administradores. A medida quepredominem as visualizações formais da organização, o grau decomplexidade será incrementado, complicando os mecanismos deimplantação. Quanto maior a rigidez da hierarquia da organizaçãoadministrativa, e maior exigência de controles e instancias dedecisões para garantir os cumprimentos, mais propícias serão ascondições para favorecer os desvios e atrasos no processo deimplantação, maior a necessidade da tutela dos subordinados e menora capacidade destes para resolver problemas.

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20 Contra a versão incremental de Lindblom, que considerainclinada ao conservadorismo, Yehezkel Dror sugere o "ModeloNormativo Optimo" que se traduz no conceito de inovação. "MuddlingThrough: Science or inertia". Public Administration Review. VolumeXXIV, n.3. September, 1964. pp. 154-157.

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Na medida em que um Governo multiplique as unidadesorganizativas da administração pública, sem um plano de crescimentodevidamente balizado e as referidas unidades sejam regidas de formahierárquica e rígida, o regime tenderá à sua desnaturalização. Logose formará um regime estatal alternativo, marcado por privilégios,imunidades e jurisdições, isto é, um Governo próprio com interessesclientelistas cada vez mais independentes; logo se extinguiráqualquer noção razoável de alcance de controle e unidade de comando,e o Governo terá deixado de reger o próprio Governo.

Conseqüentemente, as capacidades de desenvolvimentoadministrativo devem ser orientadas para produzir governabilidade,através de programas de ação flexíveis e adaptativos, que atuem porinovação, na medida em que o horizonte de desempenho se caracterizepela complexidade, incerteza, contingências e riscos, além dacomplexidade e da propensão à autoclausura, como ingredientes daingovernabilidade, principalmente da ingovernabilidade por irritaçãosocial, desestabilização e violência.20

Sob estas condições, a categoria de Governo já não se reduz ànoção de uma mera organização formal, mas consiste em um processoativo de mobilização de leis e recursos financeiros, por meio dosservidores públicos, com a finalidade, entre outras, de elaborarpolíticas públicas. Entretanto, nas sociedades contemporaneas, amagnitude do Governo é um fator de ingovernabilidade, no sentido deque a multiplicação das suas organizações pode impedir os processosde comunicação e produzir paralisação interna.

Os governantes devem aprender a lidar com a magnitude doGoverno, como um fator inerente ao Estado moderno que pode sedirigir. "O Governo é grande em si mesmo", devido às reivindicaçõesda sociedade; é grande, também, por seu impacto na sociedade; égrande pelo montante de seus recursos. Esta dimensão é um produtodo progresso das sociedades civilizadas do Ocidente. As diferençasde Governo, entre as nações, baseiam-se na escala de sua grandeza,pois ela é inerente à vida social e as causas que a provocaramparecem irreversíveis.

Por outro lado, o problema do Governo não reside na magnitudeem si, mas sim no efeito que pode causar em termos de qualidade de

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21 Rose, Richard. Understanding Big Government. London: SagePublications. 1964. pp. 1-28; "Disaggregating the ConceptGovernment. Lewis, Charles (Edit.) Why Governments Grow: MeasuringPublic Size. London: Sage Publications. 1983. pp. 157-176.

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serviços e,21 conseqüentemente, como causa de ingovernabilidade.Historicamente, o crescimento do Governo representa um triunfo doEstado moderno no Ocidente. Deve-se destacar que este crescimentoaconteceu em menos de um século, a partir da segunda metade doséculo XIX no conceito tradicional de Governo dedicado à ordempública e à defesa. Os ingredientes desse crescimento foram atransformação da sociedade agrária em sociedade industrial, o apoiopopular aos Governos democráticos e a evolução dos regimesrepresentativos. Grandeza governamental e democracia têm caminhadolado a lado.

As causas diretas e imediatas da magnitude do Governo são osbens públicos fornecidos à sociedade, principalmente educação, saúdee segurança social, cujo montante, em grande escala, pode superara capacidade de gestão governamental, produzindo deficiência. Estesbens podem se transformar em ingredientes passivos deingovernabilidade, sem uma gerência pública adequada. Neste sentido,um Governo pode ser criticado como um mau Governo, não por sergrande, pois esta é uma de suas características, a grandeza fazparte da sua natureza, mas não é a única. A importância da magnitudedo Governo reside nas conseqüências políticas que produz,principalmente as de ordem qualitativa, como o grau de eficiênciae o consenso político, cuja redução é fonte ativa deingovernabilidade.

Freqüentemente se confundem a magnitude e o crescimento, quedevem ser diferenciados porque a grandeza não é uma característicainevitável do Governo. Ela está determinada pelo crescimento; e estelhe outorga seu grau e alcance, e explica as proporções adequadaspara favorecer a gestão interna ou as que podem favorecer aingovernabilidade. Em boa parte, a grandeza representa o processode crescimento, tal como se observa nos países ocidentais, cuja taxade crescimento mais elevada caracteriza a dimensão de seus Governosa partir da década de 30. A grandeza não é um elemento estático,está sujeita ao crescimento, de forma que, a partir da década de 80,a taxa de crescimento é menor por ter ocorrido uma mudança naproporção da magnitude do Governo. Em todo caso, a grandeza doGoverno está em proporção direta aos seus deveres para com asociedade.

O crescimento, como insumo da magnitude do Governo, pode sercausa passiva de ingovernabilidade, se a magnitude organizativa do

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22 Kliksberg, Bernardo. ¿Cómo Transformar el Estado? México:Fondo de Cultura Económica. 1989. pp. 91-100.

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Governo não for acompanhada por um projeto adequado de reformacontínua do regime político, configurado por medidas tais como oaprimoramento dos processos decisórios na cúpula dos sistemasdemocráticos, fortalecimento das carreiras administrativas doserviço civil e programas de formação de recursos gerenciais parao setor público, reforma da articulação das empresas públicas como setor central e melhoria de seu desempenho, assim como aimplementação de programas de descentralização. Desta forma,podem-se restabelecer as relações entre o Governo e os cidadãos,constituir programas sociais maciços que incrementem a qualidade dedesempenho da gerência social e melhorar a elaboração de políticaspúblicas.22

ResumoResumenAbstract

Ingovernabilidade, disfunção e quebra estruturalOmar Guerreiro Orozco

O autor manifesta reservas em relação aos conceitos deingovernabilidade informados pelo paradigma funcionalista, os quaisassociam este fenômeno à sobrecarga de demandas sociais resultanteda expansão da participação política, à crise fiscal, gerada peladesproporção entre o montante do gasto público e a receitatributária, e à crise de racionalidade, que corresponde àdesarticulação entre os subsistemas econômico e administrativo. ParaOrozco, há que se procurar as "causas estruturais" daingovernabilidade, relacionadas à essência e aos princípios quefornecem as bases do governo. Este tipo de ingovernabilidade podese manifestar de três formas: por decadência política, porautoclausura dos processos de comunicação e controle, e por explosãoda complexidade.

Ingobernabilidad, disfunciones y quebranto estructuralOmar Guerreiro Orozco

El autor manifiesta cautelas en relación a los conceptos deingobernabilidad defendidos por el paradigma funcionalista, loscuales asocian este fenómeno a la sobrecarga de demandas socialesresultante de la expansión de la participación política, a la crisisfiscal, generada por la desproporción entre la monta de gastos

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públicos e ingresos tributarios, y a la crisis de racionalidad, quecorresponde a la desarticulación entre los subsistemas económico yadministrativo. Para Orozco, hay que buscarse las "causasestructurales" de la ingobernabilidad, relacionadas a la esencia ya los principios que propician las bases del gobierno. Este tipo deingobernabilidad puede manifestarse de tres formas: por decadenciapolítica, por auto-cierre de los procesos de comunicación y control,y por explosión de la complejidad.

Ungovernability, misfunction and structural breakdownOmar Guerreiro Orozco

The author is cautious about the concepts of ungovernability,based in the functionalistic paradigm, which relate this phenomenonto an overload of social demands resulting from the expansion ofpolitical participation, the fiscal crisis brought about by theimbalance between public expenditures and tax collection, and therationality crisis, which corresponds to the breaking down of theeconomi- cal and administrative subsystems. According to Orozco, onemust search for the "structural causes" of ungovernability, relatedto the essential issues and princi- ples, which form the basis ofa government. This kind of ungovernability may appear in threedifferent ways: political decline, the self-locking of communicationand control processes, and the uncontrollable spreading out ofcomplexity.

Artigo publicado na Revista do CLAD — Reforma y Democracia, n3, pp 68-88, em janeiro de 1995. Traduzido por Carolina Andrade, comautorização dos editores.