a imperfeição em charles bukowski

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  • 8/8/2019 A Imperfeio em Charles Bukowski

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    Universidade de So Paulo

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    A Imperfeio em Charles Bukowski

    Orientador: Prof. Dr. Antonio Vicente Seraphim Pietroforte

    Orientando: Fabiano Garcia Baltazar da Silva Alonso

    2006

    Relatrio Final de IniciaoCientfica do Departamento deLingstica

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    ndice

    I. Introduo..........................................................................................................................3

    II. Captulo Um: Semitica, Literatura e Esttica...................................................................6

    Uma breve anlise da teoria semitica.........................................................................7

    Funo Potica............................................................................................................15

    Semi-Simbolismo.......................................................................................................26

    Imperfeio e Apreenso Esttica..............................................................................33

    III. Captulo Dois: A obra de Charles Bukowski...................................................................40

    Vida e Obra.................................................................................................................41

    Bukowski e o Cnone.................................................................................................45

    IV. Captulo Trs: A Imperfeio em Charles Bukowski......................................................51

    Bibliografia.............................................................................................................................66

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    Introduo

    Esta pesquisa ocupa-se da verificao do conceito greimasiano de imperfeio1,

    investigando se a recorrncia da sistematizao do modelo ocorre, na medida em que aplicado obra potica do escritor Charles Bukowski. O que significa no apenas observ-lo

    pontualmente, mas, antes, numa perspectiva que tenta situar o seu alcance junto teoria

    semitica.

    Nesse sentido, nossa proposta tem o intuito de tentar delimitar a contribuio da

    experincia esttica em sua integrao ao projeto semitico. Para tanto, escolhemos como

    ponto de partida, compreender os fatores literrios a partir do ponto de vista da cincia

    lingstica. Dessa maneira acreditamos que possvel legitimar a investigao, esboando

    pensamentos e reflexes crticas com base em fundamentaes tericas e no de modo

    emprico ou fenomenolgico.

    Com isso, trataremos de no desvincular a literatura do estudo lingstico, uma vez

    que esta a arte da linguagem, ou seja, aquela que se expressa pela palavra. Em ltima

    instncia, a Literatura a responsvel por esgotar a lngua em todas as suas possibilidades,

    permitindo criarmos novas construes de sentido tanto na maneira de pensar e sentir, como

    no modo de compreender a formao histrico-social de uma determinada poca.

    Portanto, este trabalho resultado de uma escolha metodolgica pautada na teoriasemitica. Sobretudo, pelo reconhecimento do seu carter cientfico, a partir das pesquisas e

    anlises de A. J. Greimas, fundador do modelo que procura sistematizar a construo do

    sentido.

    Assim, apoiado na obra de Saussure e Hjmeslev, e mais tarde em V. Propp, Greimas

    escreve Smantique Structurale2, onde descreve a teoria narrativa por meio de uma

    abordagem sintxica que organiza e ao mesmo tempo constri o sentido do texto. Em outras

    palavras, o objeto de estudo da semitica greimasiana fundamentalmente a significao e o

    texto. Devendo-se tomar este ltimo no somente em seu aspecto escrito ou falado, mas

    tambm, por exemplo, na forma visual (fotografia), auditiva (msica), plstica (escultura) e

    outros.

    1 GREIMAS, A. J.Da imperfeio . So Paulo, Hacker, 20022________. Smantique structurale. Paris: Larousse, 1966.

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    Desse modo, no primeiro captulo apresentaremos nossas reflexes sobre semitica,

    literatura e esttica; inicialmente nos ocuparemos de uma breve introduo teoria

    semitica, em seguida, discutiremos, baseado nos estudos desenvolvidos por Roman

    Jakobson, a funo potica da linguagem.

    Mais adiante, trataremos da noo de semi-simbolismo aplicado literatura,

    procurando demonstrar os efeitos de sentidos gerados, quando estabelecemos e projetamos

    relaes entre o plano de expresso e contedo. Por fim, examinaremos os arranjos

    narrativos e tensivos que compem o evento esttico, ou seja, o momento da apreenso

    como uma ruptura da conjuno do sujeito com o mundo, em decorrncia de uma expanso

    do sentido que desloca o indivduo de seus parmetros, de suas convices, para um

    rompimento com a situao vigente.

    No segundo captulo, analisaremos o estatuto de Charles Bukowski enquantoescritor, discutindo o seu fazer potico a partir da relao /vida/ versus /obra/, e a

    problematizao da tendncia esttico-romntica, de acordo com Maingueneau3. Com isso,

    nosso principal objetivo neste momento passa a ser investigar o campo literrio onde

    Bukowski est inserido, dimensionando sua singularidade e pertinncia em relao ao

    lugar que ocupa.

    No terceiro e ltimo captulo, de importncia central em nossa pesquisa, levando em

    conta que o acontecimento extraordinrio sempre acontece de forma arrebatadora e

    apresenta-se para o sujeito de modo imprevisvel, procuraremos avanar na compreenso da

    noo de fratura, discutindo o rompimento da continuidade do discurso, figurativizado

    na e pela quebra da relao do sujeito com o estado presente (cotidiano), ou seja, na

    transformao do curso da narratividade.

    Investigaremos se de fato o estado de desesperana, de desencantamento disfrico do

    sujeito ao qual Greimas se refere, o resultado de uma dissemantizao da experincia de

    uma relao desgastada pelo dia a dia que acaba se esvaziando de sentido, na medida em

    que o sujeito percebe-se abalado pela apreenso do novo estado de coisas 4, ou se esta

    noo defratura, que permite entrever uma nova realidade, no um tipo de manipulao

    que estabelece uma mudana de referncia (calcada no objeto-mundo) opondo-se idia de

    que haja um vu recobrindo a realidade.

    3 MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literria. So Paulo: Martins Fontes, 2001.4GREIMAS, op. cit., p. 27.

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    Assim, com esta breve introduo acreditamos revelar as devidas articulaes e

    nexos argumentativos da estrutura geral do trabalho. Contudo, seria impossvel responder

    todas as questes aqui levantadas; tal atitude exigiria outra pesquisa. Desse modo,

    precisamos saber escolher, dentre as dificuldades, qual a que podemos nos impor, se de

    alguma maneira pretendemos demonstrar uma coeso argumentativa capaz de formular as

    perguntas corretas e fecundas.

    Entretanto, se as anlises realizadas neste trabalho, em certo sentido, podem parecer

    muito abrangentes, certamente, com o intuito de proporcionar novos recursos para uma

    produtiva e enriquecedora discusso sobre a abordagem da apreenso esttica, por meio do

    estudo semitico.

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    CAPTULO UM

    SEMITICA, LITERATURA E ESTTICA

    O essencial que o signo verbal e a

    representao visual no so jamais dados de uma vez s.Sempre uma ordem os hierarquiza,indo da forma ao discurso ou dodiscurso forma.

    Michel Foucault

    Antes de comear a tratar, isoladamente, os principais tpicos que compem o

    captulo, faamos um breve comentrio acerca de cada um deles, a fim de poder definir, com

    maior eficcia, o nosso objeto terico. Em primeiro lugar preciso esclarecer que o modelo

    semitico adotado nesta pesquisa o de linha francesa, desenvolvido por A. J. Greimas. Oque j nos afasta, por exemplo, do modelo peirciano, do formalismo russo e da semiologia.

    O segundo passo, entendermos a teoria greimasiana, vinculando-lhe o estudo literrio e

    esttico.

    importante enfatizar que, embora a semitica possa ser aplicada com o intuito de

    interpretar e compreender os textos literrios, ela no se encaixa propriamente como uma

    teoria da literatura. Por outro lado, vemos a teoria literria tomar para si a criao e a

    elaborao do texto verbal, de modo a desenvolver modelos que utilizam mecanismos

    lingsticos no-verbais, em favor da poeticidade. Dessa forma, julgamos legtima a

    aproximao das duas teorias, no sentido de observarmos por exemplo que, quando a

    palavra escrita, ela no s assume relaes de significao no plano de contedo, como

    tambm uma dimenso plstica e sonora no plano expressivo; uma vez que a letra tambm

    uma imagem vinculada ao som5.

    Essa relao sincrtica entre plano de expresso e plano de contedo,

    complexificada, legitima o chamado estudo semi-simblico6. Para nossa abordagem

    literria, tomamos como base o estudo de Roman Jakobson7 sobre a funo potica da

    linguagem, onde o autor diz ser ela a responsvel por criar o efeito de novidade e ruptura do

    5Essa questo pode ser vista detalhadamente em: PIETROFORTE, A. V. S. Os enigmas da imagem e O taoda escrita. In: Semitica Visual os percursos do olhar. So Paulo: Editora Contexto, 2004.6 Voltaremos a abordar este assunto, mais adiante, no item reservado ao estudo do semi-simbolismo.7JAKOBSON, R. Lingstica e Potica . In:Lingstica e comunicao . So Paulo: Cultrix, 1975.

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    emprego normal da lngua, graas superposiodo princpio de equivalncia do eixo de

    seleo sobre o eixo de combinao (Jakobson, 1969: 130).

    Por ltimo, terminamos o captulo verificando como se d a incorporao do estudo

    esttico teoria semitica. Entretanto, no nosso objetivo aqui, dedicar-se a analisar o belo

    e nem o sublime, indo-se mais alm, na tentativa de querer compreender como os objetos,

    artsticos ou naturais, sensibilizam os sentidos, despertando a percepo de seu significado

    essencial e incitando no sujeito sensaes muitas vezes imprevistas.

    Uma breve anlise da teoria semitica

    Em Smantique Structurale, Greimas inaugura os fundamentos da teoria semitica,

    propondo como modelo opercurso gerativo do sentido. Nele so determinadas trs etapas,aonde se vai dos valores mais simples e abstratos: nvel fundamental e narrativo, para o

    mais complexo e concreto: nvel discursivo. Em nvel fundamental temos a teoria pautada

    numa categoria semntica baseada na oposio de valores gerais e abstratos, por exemplo:

    /vida/ versus /morte/ ou /natureza/ versus /cultura/ etc.

    No trecho abaixo extrado do livro AMetamorfose8, de Franz Kafka, podemos

    identificar as categorias semnticas /opresso/versus /liberdade/.

    Acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada, pensou. O

    ser humano precisa ter o seu sono. Outros caixeiros viajantes vivem como mulher

    de harm. Por exemplo, quando voltou no meio da tarde ao hotel para transcrever

    as encomendas obtidas, esses senhores ainda esto sentados para o caf da manh.

    Tentasse eu fazer isso com o chefe que tenho: voaria no ato para a rua. (...) E

    mesmo que pegasse o trem no podia evitar a exploso do chefe. (...) E se

    anunciasse que estava doente? Mas isso seria extremamente penoso e suspeito,

    pois durante os cinco anos de servio Gregor ainda no tinha ficado doente uma

    nica vez. Certamente o chefe viria com o mdico do seguro de sade, censuraria

    os pais por causa do filho preguioso e cercearia todas as objees apoiado no

    mdico, para quem s existem pessoas inteiramente sadias refratrias ao

    trabalhod9

    8 KAFKA, Franz.A Metamorfose. Trad. Modesto Carone, 15 ed., So Paulo, Brasiliense, 1994.9 KAFKA, op. cit., p. 9-10.

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    Em nvel fundamental, a oposio dos valores que circulam no texto, d-se pela

    categoria mnima: /opresso / versus / liberdade/. O sujeito Gregor Samsa vive oprimido

    pela famlia e pelo patro, pois precisa trabalhar muito para pagar a dvida que seus pais

    mantm junto ao empregador. Com isso, a partir desse trecho, percebe-se que Gregor

    considera o chefe um tirano e um explorador. Contudo, ele se sujeita a essa tirania a fim de

    livrar a famlia da dvida; que, por sua vez, tambm o oprime e o explora, pois deixa a

    responsabilidade do pagamento do dbito, somente para Gregor:

    Ah, meu Deus! pensou. Que profisso cansativa escolhi. (...) Me imposta

    esta canseira de viajar, a preocupao com a troca de trens, as refeies irregulares

    e ruins, um convvio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna

    caloroso. (...) Se no me contivesse, por causa dos meus pais, teria pedidodemisso h muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do

    fundo do corao10

    (...) Ora, o pai era na verdade um homem saudvel, porm velho, que no

    trabalhava h cinco anos (...). a velha me, que sofria de asma, a quem uma

    caminhada pelo apartamento j era um esforo (...)deveria ela agora, por acaso

    ganhar dinheiro? E deveria a irm ganhar dinheiro, que com dezessete anos era

    ainda uma criana e cujo estilo de vida at agora dava gosto de ver, consistindoem vestir roupas bonitas, dormir bastante, ajudar na casa, participar de algumas

    diverses modestas e acima de tudo tocar violino?11

    Com relao semntica fundamental, possvel dizer que no texto os valores

    partem da opresso, determinada como negativa, e vo em busca da liberdade, que

    positiva. Entretanto, a busca da liberdade no alcanada, fica apenas no nvel do desejo,

    uma vez que ela no se concretiza. A seqncia opresso no opresso liberdade

    apresenta-se da seguinte maneira: Gregor passa toda sua existncia oprimido; enquanto

    trabalha sente-se desiludido e sonha com a liberdade. Depois da metamorfose, fica

    literalmente preso em seu quarto, olhando a janela e vendo a liberdade do mundo, passar

    pelo lado de fora:

    10 KAFKA, op. cit., p. 8-9.11 Idem, p. 44.

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    (...) Freqentemente passava noites inteiras deitado ali; sem dormir um

    instante, apenas arranhando o couro durante duas horas. Ou ento no refugava o

    grande esforo de empurrar uma cadeira at a janela, para depois rastejar rumo ao

    peitoril e, escorado na cadeira inclinar-se sobre a janela evidentemente em

    nome de alguma lembrana do sentimento de liberdade que outrora lhe dava olharpela janela.12

    somente aps a metamorfose que Gregor liberta-se do patro e da responsabilidade

    familiar, mas, ainda assim, torna-se prisioneiro dentro de seu prprio mundo.

    Destarte, vemos que ao aplicar a negao sobre cada um dos termos citados acima,

    geramos os termos contraditrios e contrrios entre si, prevendo tambm as relaes de

    implicao (ex: /no-liberdade/ e /no-opresso/ /no-liberdade/ implica /opresso/). Tais

    termos e suas relaes resultam em um importante ponto da teoria, o quadrado semitico.

    No caso de A Metamorfose, teramos, ento, o desenho do seguinte quadrado

    semitico:

    Sobrepostos a esses valores h uma categoria tmica denominada /euforia/ versus

    /disforia/, em que se determinam quais os valores que sero considerados positivos ou

    negativos. No caso do romance kafkiano, a liberdade uma categoria eufrica, e a opresso

    disfrica. Porm, em outros textos, tais categorias tensivas podem vir invertidas como

    12 Idem, p. 44.

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    acontece no poema Do Desejo, de Hilda Hilst, em que a opresso eufrica, enquanto a

    liberdade disfrica:

    Do Desejo

    E por que haverias de querer minha alma

    Na tua cama?

    Disse palavras lquidas, deleitosas, speras

    Obscenas, porque era assim que gostvamos.

    Mas no menti gozo prazer lascvia

    Nem omiti que a alma est alm, buscando

    Aquele Outro. E te repito: por que haverias

    De querer minha alma na tua cama?

    Jubila-te da memria de coitos e de acertos.

    Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

    (Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)

    , portanto, no nvel narrativo que se evidenciam as relaes transitivas e reflexivas.

    Ao transformar os valores fundamentais em narrativos, d-se origem aos papis actanciais

    de sujeito e objeto, podendo estar eles em relao conjuntiva ou disjuntiva, assumindo assim

    papis contratuais oupolmicos. Ou seja, uma narrativa organiza-se em torno da circulao

    de um objeto, ao qual dado um determinado tipo de valor (destinador-manipulador), e

    este, por sua vez, passa a circular entre os sujeitos narrativos. O efeito de narratividade est

    justamente nessas transformaesjuntivas, tanto do objeto em relao aos sujeitos, comodesses em relao a si prprios (destinador e destinatrio). Seguindo o percurso:

    manipulao ao julgamento, explica-se, portanto, a circulao que descreve a

    narratividade.

    Em nosso exemplo, a semntica narrativa ocupa-se de dois tipos de objetos: os

    modais e os de valor. Isto , para o sujeito Gregor Samsa, o objeto modal trata-se do

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    emprego necessrio para ele conseguir o objeto de valor dinheiro. por meio do objeto

    modal que Gregor entra em conjuno com o objetodevalor. Contudo, a opresso e a falta

    de considerao provocam em Gregor uma metamorfose, a partir da qual ele entra em

    disjuno com a vida humana e seus valores, perdendo, neste caso, o objeto modal

    (emprego) e conseqentemente o objetodevalor(dinheiro).

    A me concluiu: No como se ns mostrssemos, retirando os mveis, que

    renunciamos a qualquer esperana de melhora e o abandonamos a prpria sorte, sem

    nenhuma considerao?(...) Elas lhe esvaziavam o quarto; privavam-no de tudo que

    lhe era caro13

    Nesse sentido, vemos que a ao baseia-se na relao de competncia eperformance

    dos sujeitos narrativos, modalizados pelo /saber/ ou /poder/, ao passo que a manipulao,descreve o porqu de ter entrado em ao, por meio da modalizao do /dever/ ou /querer/.

    O julgamento, todavia, o reconhecimento ou no do cumprimento do papel contratual

    entre destinador e destinatrio, que aponta para um veredicto positivo (retribuio) ou

    negativo (punio). De modo que, o destinador-manipuladorquem instaura o objeto e o

    sujeito, transmitindo a esse os valores modais necessrios para sua juno com o objeto.

    Assim, na fase de competncia, observa-se que o sujeito Gregor deve-fazer, pode-

    fazere sabe-fazero trabalho para pagar a dvida dos pais; com relao performance, temosque ele realiza o trabalho e, com isso, sustenta toda a famlia. Porm, no veredicto final, o

    sujeito sancionado negativamente, pois se anulou por completo, perdeu sua liberdade, sua

    identidade e no obteve o menor reconhecimento.

    No entanto, para que a ao seja realizada, o sujeito deve antes de tudo crer nos

    valores representados pelo destinador. Se o destinadorexerce um fazer persuasivo sobre o

    sujeito, este tambm exerce um fazer interpretativo sobre aquele. Deste fazer decorre a

    aceitao (relao contratual) ou o rompimento (relao polmica) do contrato proposto.

    Para realizar o seu fazer interpretativo, o sujeito lana mo das modalidades veridictrias:

    /ser/ (imanncia) e /parecer/ (manifestao), que se articulam em verdade, falsidade,

    segredo e mentira.

    13 Idem, p. 50-52.

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    Com isso, a manipulao pode assumir quatro formas principais: a tentao, a

    intimidao, a provocao e a seduo, definidas tanto pela competncia do destinador

    (dotado do /poder/ ou do /saber/ sobre o sujeito) quanto pela modalidade transmitida ao

    sujeito (/querer/ ou /dever/).14 interessante notar que vrios destinadores podem concorrer

    na manipulao do sujeito. Desta forma, podem-se estruturar complexas configuraes

    modais: /querer/ e /dever/, /no-querer/ e /dever/, /no-dever/ e /querer/, etc.

    Desse modo, vemos que num primeiro momento, o destinador-manipulador (a

    famlia e o patro) manipula Gregor por intimidao, pois ele deve realizar o trabalho a fim

    de pagar a dvida e prover a famlia. A manipulao de Gregor comea com a sano

    negativa de sua famlia, que estava falida. Num segundo momento, quem passa a ser o

    destinador-manipulador a prpria vida, que manipula tambm por intimidao a famlia

    de Gregor, devendo esta trabalhar para ganhar dinheiro e sobreviver.

    (...) Entretanto esse dinheiro no bastava de maneira alguma para permitir que

    a famlia vivesse de renda; talvez fosse suficiente para sustent-la um, no mximo

    dois anos, no mais que isso. (...) Mas o dinheiro para viver tinha de ser ganho.15

    Contudo, aps a publicao de Semitica das paixes, foi possvel verificar a

    existncia de um campo passional exercendo um efeito manipulativo sobre o sujeito. De

    modo que, sem a paixo do cime, por exemplo, Iago jamais manipularia Otelo, e Iago, por

    sua vez, sem a paixo da inveja, no faria as intrigas que fez. (Pietroforte, 2002). Temos,

    deste modo, em nvel narrativo dois estados: um de ao e outro de paixo. Todavia, no

    14 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semitica do texto. So Paulo: tica, 1997. p. 45.15 Idem, p. 43-44.

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    nosso objetivo esgotar este item exausto; por isso no abordaremos as possveis questes

    passionais envolvidas neste exemplo.

    Por fim, em nvel discursivo, coloca-se na forma de discurso, por meio do par

    enunciao /enunciado, tudo o que vimos acima. no enunciado, portanto, que se define a

    relao entre enunciador e enunciatrio, projetada nas categorias de pessoa, tempo e

    espao. O percurso narrativo recoberto por um tempo e em um espao, e os actantes

    ganham o estatuto de atores, investidos na categoria de pessoa. Os valores vistos em nvel

    semio-narrativo, aqui, do origem aos percursos temticos e/ou aos investimentos

    figurativos, segundo explica Fiorin em seu livroElementos de anlise do discurso:

    Podem-se revestir os esquemas narrativos abstratos com temas e produzir um

    discurso no figurativo ou podem-se, depois de recobrir os elementos narrativoscom temas, concretiz-los ainda mais, revestindo-os com figuras. Assim,

    tematizao e figurativizao so dois nveis de concretizao do sentido. Todos

    os textos tematizam o nvel narrativo e depois esse nvel temtico poder ou no

    ser figurativizado.16

    Devido s marcas que a enunciao deixa no discurso, aquela pode estabelecer com

    este, relaes de aproximao ou de afastamento, que correspondem aos efeitos de sentido

    de subjetividade e objetividade, respectivamente. So vrias as estratgias disposio do

    enunciadorpara a realizao deste simulacro. Ao instaurar uma primeira pessoa no discurso

    (debreagem enunciativa), o enunciador cria a iluso da presena de algum que fala. Por

    outro lado, a instaurao de uma terceira pessoa (debreagem enunciva) afasta a enunciao

    do discurso, criando uma iluso de neutralidade, promovendo assim o efeito de sentido de

    verdade objetiva.

    N A Metamorfose de Kafka, a debreagem temporal considerada a partir de um

    tempo anterior e posterior metamorfose. Basicamente o que predomina no texto o

    pretrito imperfeito. Existe um passado e um passado em relao a esse passado (que

    anterior metamorfose). Esses tempos so marcados em duas instncias, um antes e depois

    da metamorfose.

    16 FIORIN, J. L. Elementos de anlise do discurso. So Paulo, Contexto, 2002, p.64.

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    Antes da metamorfose:

    (...) Ele achava que daquele negcio no havia sobrado absolutamente nada

    para o pai - pelo menos o pai no lhe dissera nada em sentido contrrio e, seja

    como for, Gregor tambm no havia interrogado a esse respeito17 (p.41)

    Depois da metamorfose:

    (...) Que vida tranqila a famlia levava! Disse Gregor a si mesmo e sentiu,

    enquanto fitava o escuro diante dele, um grande orgulho por ter podido

    proporcionar aos seus pais e sua irm uma vida assim, num apartamento to

    bonito18

    Os valores manifestados no nvel narrativo se organizam no nvel discursivo em

    percursos temticos, que podem ou no ser recobertos por percursos figurativos. Esses

    percursos no s garantem a coerncia do texto, como tambm manifestam mais claramente

    suas intenes e propsitos. Com isso, percebemos que o texto de A metamorfose

    totalmente construdo a partir da decomposio do sujeito Gregor frente sociedade,

    famlia, ao patro, prpria vida, perdendo, diante de tanta opresso, as condies mnimas

    de ser humano transformando-se literalmente num bicho nojento.

    Quando certa manh Gregor Samsa acordou de sonhos intranqilos,

    encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso (...) No

    comeo ela tambm o chamava ao seu encontro, com palavras que provavelmente

    considerava amistosas, como venha um pouco aqui, velho bicho sujo! ou vejam

    s o velho bicho sujo!19

    As figuras do inseto monstruoso e bicho sujo, denunciam a podrido dasociedade humana, o papel desprezvel e nojento que o explorador submete o explorado, que

    se v obrigado, a rastejar para sobreviver.

    17 Idem, p. 41.18 Idem, p. 34-35.19 Idem, p. 68.

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    Funo Potica

    Entre todas as propostas que serviram para ampliar o modelo da teoria da

    comunicao, sem dvida, foram as de Jakobson que mais contriburam para odesenvolvimento desse estudo. Segundo o autor, a linguagem precisava ser estudada, no

    somente a partir da funo informativa (referencial), mas sim, em toda a sua variedade. Para

    nos mostrar isso, o lingista traou um esquema dos fatores presentes no ato de

    comunicao:

    contexto

    mensagem

    Remetente................................Destinatrio

    contato

    cdigo

    Desse modo, cada um dos seis fatores determinam uma funo, segundo a qual, ele

    organiza de acordo com os seus aspectos predominantes:

    ReferencialPotica

    Emotiva....................................Conativa

    Ftica

    Metalingstica

    De fato, no abordaremos nesse estudo todas as funes, no nosso objetivo

    examin-las em profundidade. O que nos interessa, verificar somente a funo potica da

    linguagem. Sendo assim, partiremos da justificativa do prprio autor, acerca do processolingstico, em relao ao estudo potico:

    O pendor (Einsfellung) para a mensagem como tal, o enfoque da mensagem por

    ela prpria, eis a funo potica da linguagem. Essa funo no pode ser estudada

    de maneira proveitosa desvinculada dos problemas gerais da linguagem, e, por outro

    lado, o escrutnio da linguagem exige considerao minuciosa da sua funo

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    potica. Qualquer tentativa de reduzir a esfera da funo potica poesia ou de

    confinar a poesia funo potica seria uma simplificao excessiva e enganadora.

    A funo potica no a nica funo da arte verbal, mas to somente a funo

    dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais, ela

    funciona como um constituinte acessrio, subsidirio.20

    No h dvida de que o efeito potico surge quando ligado a certos procedimentos

    que ajustam a funo potica lngua. Mas, por outro lado, tambm verdade que essa

    funo capaz de intervir em comportamentos verbais cuja finalidade no esttica 21. Diz o

    lingista:

    (...) a noo de poesia instvel e varia com o tempo, mas a funo potica, a

    poeticidade, como assinalavam os formalistas, um elemento sui generis, um

    elemento que no pode reduzir-se mecanicamente a outros elementos. (A

    poeticidade) um componente que transforma necessariamente os demais

    elementos e determina o comportamento do conjunto.22

    Resultado, portanto, de dois arranjos bsicos, utilizados no comportamento verbal,

    Jakobson diz:

    A funo potica projeta o princpio de equivalncia do eixo de seleo sobre o

    eixo de combinao. A equivalncia promovida condio de recurso constitutivo

    da seqncia. 23

    Retomando a dicotomia saussuriana: paradigma versus sintagma24, o autor percebe

    que nas mensagens, cujo aspecto preponderante o referente, os eixos lingsticos mantm

    20 JAKOBSON, R. Lingstica e Potica . In: Lingstica e comunicao. So Paulo: Cultrix, 1975, p. 127-128.21Conforme afirma Jakobson: os numerosos traos poticos pertencem no apenas cincia da linguagem,mas a toda teoria dos signos, vale dizer, Semitica Geral.22 JAKOBSON, R. O que a poesia? In: CLPEstruturalismo e Semiologia. p. 27.23________. Lingstica e Potica . In:Lingstica e comunicao . So Paulo: Cultrix, 1975, p. 130.24 No Curso de lingstica geral (Saussure, 1969), o autor afirma que todo signo implica em dois modos dearranjo. O primeiro modo, diz respeito s relaes sintagmticas, baseadas na combinao. O segundo modo,diz respeito s relaes baseadas na seleo dos elementos combinados. Dessa forma, o lingista mostra que osigno, uma vez associado a outros signos, apresenta pelo menos trs maneiras de ligar-se entre si. Uma por

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    dominante, a seqncia usada para construir uma equao, com o intuito de explicar o

    cdigo da lngua, no texto de funo potica, a seqncia seleciona a seqncia seguinte,

    codificandoa prxima, de maneira a criar entre elas uma auto -referencializao que no

    encontra sentido seno ali mesmo, no prprio texto. Com isso, torna-se impossvel separar

    os dois processos: h uma relao dialtica que os implica e os define. por meio da funo

    metalingstica, ento, que o texto se olha no espelho, provocando o efeito de sentido

    potico. Ou seja, tudo o que a funo potica faz, com o auxlio da funo

    metalingstica.

    At esse momento, o que fizemos foi ento verificar do que Jakobson chamou

    enfoque da mensagem dirigido a ela prpria. Contudo, outra questo se coloca: a

    classificao da arte verbal. Devido ao carter linear do significante lingstico, no

    podemos produzir dois tipos de sons ao mesmo tempo, ou seja, s possvel enunciar um decada vez, obedecendo a um alinhamento temporal e espacial. No seu estudo, o autor cita a

    experincia de Saussure sobre os anagramas. Esta observao mostra que, contrariamente

    linguagem habitual, as estruturas poticas rompem com o princpio da consecutividade no

    tempo, de modo a distribuir-se com maior liberdade.

    (...) as oposies fnicas podem chegar a evocar relaes com sensaes

    musicais, cromticas, olfativas, tteis, etc. A oposio dos fonemas agudos e graves,

    por exemplo, capaz de sugerir a imagem do claro e do escuro, do agudo e do

    arredondado, do fino e do grosso, do leve e do pesado, etc. Este simbolismo

    fontico, como lhe chama o seu explorador Sapir, este valor intrnseco, ainda que

    latente, das qualidades distintivas, reanima-se assim que encontra uma

    correspondncia no sentido de determinada palavra, na nossa atitude afetiva ou

    esttica para com essa palavra e ainda mais para com palavras de significaes

    polares. Na lngua potica, em que o signo como tal assume um valor autnomo,

    este simbolismo fontico atinge a sua atualizao e cria uma espcie de

    acompanhamento do significado.26

    Assim, verificamos que a relao fundamental estabelecida na arte verbal entre o

    som e o sentido. Naturalmente, esta no uma descoberta feita por Jakobson. Se

    consultarmos a tradio dos estudos literrios que data desde a poca de Aristteles, nos

    26 JAKOBSON, R. Seis Lies sobre o Som e o Sentido . Lisboa, p. 87-88.

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    depararemos, volta e meia, com essa questo. De fato, o mais importante a ser observado na

    proposta de Jakobson, que esta uma relao dialtica entre som e sentido, mas com

    diferentes manifestaes conforme sejam os textos, isto , a dominncia de um sobre o

    outro, depender do objetivo que se quer alcanar. claro que, a relao entre som e sentido

    comum a todos os textos, porm existem aqueles que os recursos sonoros aparecem em

    maior evidncia, predominando sobre os sentidos que eles veiculam. Enquanto que, em

    outros, o arranjo sonoro mais diludo, menos opaco, sobressaindo, ento, o sentido. De

    modo que, a primeira questo que se coloca, diz respeito to explorada classificao da

    arte verbal em: prosa e poesia. Porm, no nos interessa, aqui, discutir a histria destas

    definies, mas sim a posio defendida por Jakobson.

    Vejamos o que diz Paul Valry:

    A poesia uma arte da linguagem. A linguagem, contudo, uma criao da

    prtica. Observemos primeiramente que qualquer comunicao entre os homens s

    adquire alguma firmeza na prtica e atravs da verificao que nos dada pela

    prtica.Eu peo fogo a vocs. Vocs me do fogo: vocs me compreenderam.

    Continua:

    Mas, ao pedir-me fogo, vocs puderam pronunciar essas poucas palavras sem

    importncia com uma certa entonao e um certo timbre de voz com uma certainflexo e uma certa lentido ou certa precipitao que pude observar. Compreendi a

    suas palavras, j que, sem mesmo pensar, estendi-lhes o que pediam, o fogo. E,

    contudo, eis que o assunto no acabou. Coisa estranha: o som e como que a imagem

    de sua pequena frase reaparecem em mim, repetem-se em mim, como se estivessem

    se divertindo em mim; e eu gosto de me escutar repetindo-a, repetindo essa pequena

    frase que quase perdeu o sentido, que deixou de servir e que, no entanto, quer viver

    ainda, mas uma vida totalmente diferente. Ela adquiriu um valor; e adquiriu-o em

    detrimento de seu significado finito. Criou a necessidade de ser ouvida ainda...Eis-nos s prprias margens do estado de poesia.27

    O que h, portanto, so dois extremos: o mximo e o mnimo de poesia. Nesse sentido,

    encontraremos a figurativizao do mximo representado pelo poema, e a do mnimo pela

    27 VALRY, P. Variedades. So Paulo: Iluminuras, 1991, p. 208.

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    linguagem prtica. Assim, teremos o discurso, por um lado, dominado pela funo potica e,

    do outro, pela funo referencial. S que entre eles h uma matizao das variedades

    literrias. Para o prprio Jakobson, a classificao da prosa, por exemplo, como um

    fenmeno literrio intermedirio, no diminui a sua importncia, uma vez que os extremos,

    como formas absolutas, no existem. O que existe, de fato, so dois pontos virtuais, criados

    de maneira a nos ajudar a pensar num mximo e num mnimo potico. Desse modo, pensada

    como ponto extremo, a poesia reflete o mximo de tenso, e a prosa, quanto mais literria

    ela parecer, mais prxima estar do extremo potico.

    No trecho abaixo extrado do primeiro captulo de Lolita, podemos ver que Nabokov

    aproxima-se muito mais da prosa potica quando tenciona a linguagem, logo nas primeiras

    linhas do romance, do que no restante da obra:

    Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama.

    Lo-li-ta: a ponta da lngua descendo em trs saltos pelo cu da boca para tropear de

    leve, no terceiro, contra os dentes. Lo.Li.Ta.28

    Todavia, para Jakobson, a classificao do texto literrio entre prosa e poesia, ainda

    uma postura frgil; sendo assim, o autor prefere pensar o texto como um todo que se orienta

    em duas direes: a metfora e a metonmia. Durante muito tempo, consideradas como

    figuras poticas, tropos, dentro de uma retrica que as via como uma simples substituio,

    num determinado contexto, de uma palavra por outra, com Jakobson que essa questo

    ganha o estatuto de procedimento artstico. O lingista deixa claro, portanto, desde o

    comeo, que a sua preocupao inicial com a arte verbal, isto , com o procedimento

    lingstico que a caracteriza. Desse modo, no se trata apenas de substituir uma

    classificao por outra. Em sua teoria, o autor mostra que h uma tendncia do texto

    literrio em se dirigir, seja para um lado ou para outro. Contudo, claro que isso no exclui

    a possibilidade de encontrarmos tanto poesia com tendncia metonmica, como tambmprosa com aspectos metafricos.

    Conforme dissemos acima, tanto a metfora como a metonmia no so somente

    figuras discursivas, elas so diretrizes que organizam a linguagem, acionam o seu processo

    de funcionamento. Com isso, verifica-se que na poesia existe certa tendncia

    28 NABOKOV, Vladimir.Lolita. So Paulo: Folha de S. Paulo, 2003, p.11.

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    simultaneidade; ao contrrio do que ocorre, por exemplo, na prosa, onde o que prevalece a

    sucessividade.

    De acordo com Jakobson, o que existe na verdade, um processo de metaforizao e

    metonimizao, na medida em que estes indicam uma tendncia aos efeitos de sentido de

    simultaneidade e sucessividade, respectivamente. Assim, ambos os processos pressupem

    um paradigma de substituies que ocorre, quer por similaridade (ou contraste) quer por

    contigidade. Nesse sentido, o que aciona esses processos, os coloca em funcionamento, o

    princpio do paralelismo, cuja funo projetar sobre a seqncia o princpio da

    equivalncia, ou seja, manter a simultaneidade no lugar da contigidade.

    Como princpio geral, evidente que a projeo do eixo paradigmtico (seleo) no

    sintagmtico (combinao) est presente em todo o discurso, mas a construo regida por

    tal paralelismo, no qual este fica sendo o princpio estruturador fundamental, que subjaz aqualquer artifcio ou procedimento, o que legitima a construo do discurso literrio.

    Desse modo, encontraremos textos com tendncia simultaneidade, onde o paralelismo se

    apresenta de forma contnua, e a dominncia do som sobre o sentido surge como uma

    oposio acentuada, de maneira a construir composies versificadas. E, por outro lado,

    textos com tendncia a sucessividade, cujo paralelismo se dilui, e a dominncia passa a ser

    do sentido sobre o som, gerando, assim, composies no-versificadas. Entretanto, em

    ambos os casos, a relao paralelstica que ir estabelecer o processo de significao.

    Vejamos no poema Dana do Ventre, de Cruz e Souza, como essa equivalncia

    orienta tanto o plano de expresso quanto o plano de contedo:

    Dana do Ventre

    Torva, febril, torcicolamente

    numa espiral de eltricos volteios

    na cabea, nos olhos e nos seios

    fluam-lhe os venenos da serpente.

    Ah! Que agonia tenebrosa e ardente!

    que convulses, que lbricos anseios,

    quanta volpia e quantos bamboleios,

    que brusco e horrvel sensualismo quente.

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    O ventre, em pinchos, empinava todo

    como rptil abjeto, sobre o lodo,

    espolinhando e retorcido em fria.

    Era a dana macabra e multiformede um verme estranho, colossal, enorme,

    do demnio sangrento da luxria!

    (Poesias Completas /Cruz e Souza. So Paulo,BibliotecaFolha, 1997, p.46.)

    No plano expressivo, trata-se de um soneto em que h repeties de consoantes

    oclusivas; isso confere ao texto, um efeito aliterativo. Alm do mais, todos os versos sodecasslabos, acentuados sempre na quarta, na sexta e nas ltimas slabas (vvv-v-vvv-), de

    modo que essa equivalncia permite articular iteraes que so usadas para organizar as

    seqncias dos versos. Por sua vez, o plano de contedo formado por equivalncias

    semnticas. Nesse sentido, h no mnimo duas leituras possveis para o poema. Segundo a

    anlise de Affonso Romano de Santanna:

    No poema (...) a mulher se assemelha ao verme, quando surge numa dana

    macabra e multiforme / de um verme estranho, colossal, enorme / do dmonio

    sangrento da luxria. H um evidente sentido flico nessa simbolizao. O corpo

    feminino esse colossal e estranho verme que exterioriza a sensualidade do

    macho de maneira complexa e invertida. O objeto do desejo uma extenso fbica,

    e o que seria a dana sedutora dos sete vus, uma dana de morte.29

    Desse modo, o que vimos no exemplo acima, foram uma prosdia e uma significao

    prprias da poeticidade, que, embora seja o resultado de uma operao lingstica sobre a

    forma, esta no estranha ao aparato do sistema semitico verbal. Sendo assim, a projeo

    do eixo da seleo sobre o da combinao, permite que exploremos tais recursos

    lingsticos, de maneira a produzir um efeito de sentido potico.

    29 SANTANNA. Affonso Romano de. O canibalismo Amoroso. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 139.

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    enxuto de rosto, madrugador, e amigo da caa. Querem dizer que tinha o

    sobrenome de Quijada ou Queseda, que nisto discrepam algum tanto os autores

    que tratam na matria; ainda que por conjeturas verossmeis se deixava entender

    que se chamava Quijana. Isto, porm, pouco faz para a nossa histria; basta que,

    no que tivermos de contar, no nos desviemos da verdade nem um til.31

    Se na poesia, h a dominncia do som sobre o sentido, na narrativa o fenmeno

    inverso acontece. Ou seja, so as unidades semnticas que prevalecem. Desse modo, um dos

    efeitos de sentido da prosa simular uma enunciao expressiva, onde o enfoque no seja a

    reiterao fonolgica. Note que, habilmente, Miguel de Cervantes constri seu texto com

    muito cuidado. fcil perceber que sua prosa no nem de longe, um tipo voltado

    conversao; uma vez que seu valor literrio no est resumido somente ao plano de

    contedo. Isso demonstra que a boa prosa , portanto, aquela que consegue em certa

    medida, ofuscar o seu alto grau de elaborao.

    Assim , tambm, com as relaes temticas. No plano de contedo, em nvel

    discursivo, as descries semntico-figurativas, recobertas sobretudo pelo processo

    metonmico, so as responsveis por estabelecer tanto a contigidade dos significantes (o

    modo como certas palavras, expresses, construes sintticas, enfim, at mesmo como a

    prpria maneira de narrar os fatos percebida a partir de uma determinada poca e/ou

    escola literria) quanto contigidade dos significados. Com isso, as figuras emblemticas

    transformam os signos lingsticos que as veiculam, tornando-os menos transparentes; ou

    seja, deixam de encar-los apenas como simples instrumentos que servem para a circulao

    do sentido, passando ento a valoriz-los em si mesmos. o caso, por exemplo, de

    acrescentar outro significado s palavras; quando mencionamos leite para denotar brancura,

    ou leo para falar de coragem, etc.

    Com isso, o leitor menos atento pode cair na armadilha de achar que a narrativa trata,

    simplesmente, do aspecto referencial da linguagem, uma vez que o trabalho paralelsticoencontra-se, aqui, ocultado. Nesse sentido, o texto conserva o aspecto denotativo das

    palavras, mas, no entanto, o sistema simblico formado por elas adquire um carter

    autnomo, ou seja, no instrumental. De acordo com a interpretao de Bernardo Gustavo:

    31 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de.Don Quijote de la Mancha. So Paulo: Abril Cultural, 1981, p.29.

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    O personagem se apresenta, primeiro, como uma metonmia da Espanha e da

    decadncia espanhola, para a seguir crescer como uma metfora da dignidade e da

    fico. O sobrenome Mancha designa determinada regio da Espanha,

    reforando o aspecto metonmico, mas tambm aponta para uma zona de sombra,

    de indefinio e de indeterminao, que ajudar a construir a metfora dopersonagem.

    Continua o autor:

    O nome Quixote designa, metonimicamente, uma parte da armadura de um

    cavaleiro, aquela que protege a coxa. A prpria palavra quixote deriva, como se

    percebe sem esforo, de coxa. A desimportncia dessa parte da armadura refora

    o carter cmico do cavaleiro que, mais adiante, tambm aceitar ser chamado

    como o Cavaleiro da Triste Figura, vinculando o cmico ao trgico.32

    Conclumos esse item, imaginado que foi possvel satisfazer uma exigncia

    necessria generalizao da teoria proposta, a fim de que possamos seguir adiante em

    nosso trabalho. Deste modo, nada melhor, para encerrarmos esta discusso, do que retomar

    as prprias palavras de Jakobson:

    Todos ns que aqui estamos (...) compreendemos definitivamente que um

    lingista surdo funo potica da linguagem e um especialista de literatura

    indiferente aos problemas lingsticos so, um e outro, flagrantes anacronismos. 33

    Semi-simbolismo

    No item destinado compreenso da teoria semitica, vimos que opercurso gerativo

    define a construo do sentido, desde os elementos mais gerais e abstratos, at a sua

    manifestao concreta e especfica. Desse modo foi possvel verificar como Greimas,

    apoiado inicialmente nas definies saussurianas sobre significante e significado, prprio do

    conceito lingstico acerca do signo, pde desenvolver uma teoria capaz de elaborar um

    modelo que buscasse na significao o seu objeto de anlise.

    32 TROUCHE, A. & REIS, L. (orgs).Dom Quixote: Utopias. Niteri: Ed.UFF, 2005.33 JAKOBSON, R. Lingstica e Potica. In:Lingstica e comunicao . So Paulo: Cultrix, 1975, p. 162.

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    Entretanto, no basta definir a semitica como uma cincia que estuda o sistema dos

    signos lingsticos. Isso implicaria dizer que este surgiu antes mesmo do processo de

    significao, o que estaria errado; pois se justamente a gerao dessa grandeza o nosso

    objeto de estudo. Sendo assim, podemos afirmar que a semitica estuda a construo da

    existncia do signo, em uma fase anterior sua prpria constituio.

    , portanto, a partir das propostas de Hjelmslev em Prolegmenos a uma teoria da

    linguagem, que Greimas situa a semitica nos domnios do plano de contedo. Com isso,

    estudos sobre o plano de expresso so deixados de lado, em um primeiro momento,

    passando a ser reconhecido como objeto de estudo pertinente, somente mais tarde, quando

    os semioticistas comeam a questionar como possvel relacionar formas da expresso

    formas do contedo. Assim, passa-se a investigar como os efeitos de sentido que so

    prprios da expresso, podem estar vinculados ao contedo; dessa forma o estudioso desemitica comea procurar a estabelecer correlaes entre os planos, no intuito de tentar

    compreender as novas relaes de sentido que so estabelecidas, e as simbolizaes dela

    provenientes.

    Essa relao, portanto, entre o plano de expresso e o plano de contedo, realizado

    em semitica, dentro da teoria dos sistemas semi-simblicos. De acordo com o semi-

    simbolismo, um texto pode ser construdo em torno de relaes entre categorias do plano de

    contedo e categorias do plano de expresso. Um nome bastante importante no mbito dos

    estudos semi-simblicos o de Jean-Marie Floch34. Em suas pesquisas, ele investigou tais

    conceitos, trabalhando sobretudo com as artes plsticas e visuais, entre outras.

    Tomemos a capa do CD:As cidades, de Chico Buarque, como exemplo:

    34 FLOCH, J. M. Petites mythologie de loielet de lespirit. Paris: Hads-Benjamins, 1985.

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    No encarte que acompanha o disco As cidades, de Chico Buarque de Holanda,

    podemos observar a figura do artista dividida em quatro imagens diferentes 35. O que nos

    permite verificar em seu plano de contedo uma categoria fundamental pautada

    semanticamente na relao: /identidade/versus /alteridade/ estabelecida a partir da categoria

    topolgica: /concentrao/ versus /difuso/. Neste sentido, entendemos que o ttulo as

    cidades, localizado na base inferior da capa, produz discursivamente pelas imagens e pela

    representao potica, o aspecto heterogneo das populaes citadinas e o espao polifnico

    da cidade.

    Torna-se explcito, por meio destas quatro imagens, o carter multicultural da

    enunciao presente no texto. O discurso tem a marca evidente da topologia das cidades

    como espao das diferenas e, ao mesmo tempo, do lugar de luta de grupos sociais

    minoritrios; na medida em que as imagens simulam quatro representaes tnicasdiferentes: o europeu, o africano o japons e o rabe. O que nos permite afirmar e garantir

    que a representao alterada pela computao grfica se trata da identidade do compositor

    Chico Buarque, o seu nome escrito no centro, na interseo das imagens, vazado em

    branco e em caixa baixa.

    Assim, a partir da concentrao do texto verbal, ancorado estrategicamente no meio

    do encarte, que estas imagens podem ser visualizadas tanto em conjunto, como

    separadamente. De modo que no podemos retirar uma ou outra, sem lhes alterar o sentido,

    pois estas so imagens construdas a partir de seus respectivos fundos semnticos: o Chico

    negro representa uma raa, no um negro determinado no mundo real. O Chico branco

    representa uma raa, no o prprio Chico Buarque ou outro branco qualquer, conhecido. E

    assim, o Japons e o rabe. Mas, o conjunto representa o Chico Buarque de Holanda, do

    modo como ele se descreve para ns neste trabalho. Com isso, temos representado o

    multiculturalismo, a miscigenao, o amlgama de culturas heterogneas e antagnicas,

    simbolizadas pelo plurilingismo com a qual as cidades so representas.

    Podemos dizer ento, que este encarte assume um efeito de poeticidade, na medida

    em que h uma relao semi-simblica entre as formas plsticas e as formas semnticas.

    Embora, nem todo semi-simbolismo possa implicar em uma semitica plstica, a relao

    inversa verdadeira. Ou seja, de acordo com Jean-Marie Floch, a semitica plstica est

    35 So quatro imagens de tipo posadas, como foto para documento. Destacam-se as expresses alegres dobranco europeu e do nipnico. O negro africano visivelmente melanclico e o rabe assume um sentido dedesafio, mas muito dbio.

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    vinculada ao semi-simbolismo, que, no entanto, est ligado semitica potica. Com isso, o

    semioticista delimita os domnios semi-simblicos, a partir da semitica potica.

    Vimos que Roman Jakobson ao definir a funo potica da linguagem, por meio das

    projees no eixo paradigmtico e sintagmtico, com base na dicotomia saussuriana de

    significante / significado, situa os efeitos da poeticidade no mbito da lingstica. A

    semitica, por sua vez, ao aplicar tais conceitos, define a poeticidade do mesmo modo

    (PIETROFORTE, 2004: 9). Nesse sentido, tomando o texto potico como exemplo,

    verificamos que o plano de expresso no serve apenas como um veculo de manifestao

    do plano de contedo, mas tambm um novo modo de poder recri-lo em sua organizao.

    Assim, podemos visualizar como a expresso colocada em funo do contedo.

    O rond dos cavalinhos

    Os cavalinhos correndo,

    E ns, cavales, comendo...

    Tua beleza, Esmeralda,

    Acabou me enlouquecendo.

    Os cavalinhos correndo,

    E ns, cavales, comendo...

    O sol to claro l fora,

    E em minhalma anoitecendo!

    Os cavalinhos correndo,

    E ns, cavales comendo...

    Alfonso Reyes partindo,

    E tanta gente ficando...

    Os cavalinhos correndo,

    E ns, cavales, comendo...A Itlia falando grosso,

    A Europa se avacalhando...

    Os cavalinhos correndo,

    E ns, cavales, comendo...

    O Brasil politicando,

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    Nossa! A poesia morrendo...

    O sol to claro l fora,

    O sol to claro Esmeralda.

    E em minhalma anoitecendo!

    (Estrela da ManhRio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2000.)

    Na conhecida anlise dO rond dos cavalinhos, de Antonio Candido (Candido,

    1985: 71-72), o terico da literatura acompanha o movimento dos cavalinhos, mostrando-

    nos como o ritmo dos versos sugere a interpretao de um galope. Nesse sentido, segundo o

    autor, existe assim uma correlao entre a redondilha maior (7 slabas) e o tema do

    movimento. Tomemos os dois primeiros versos como exemplo:

    1 2 3 4 5 6 7

    Os / ca / va / li / nhos / co / rrendo / do

    E / ns / ca / va / les / co / men / do.

    Se ao ler o poema, ns obedecermos rigorosamente sua pontuao, a primeira coisa

    que nos saltar vista a conjuno do ritmo corredio com um ritmo entrecortado:

    Os cavalinhos correndo //

    E ns // cavales // comendo.

    Desse modo, torna-se fcil observar o movimento de galope. como se o poeta

    estivesse num primeiro momento, a contemplar o cavalo a correr (continuidade), e mais

    tarde, depois que o ritmo interrompido pelo surgimento das vrgulas (descontinuidade),

    voltasse a contemplar o animal, s que dessa vez a galopar. evidente que no poema existeo intuito de negar o estatuto denotativo da linguagem em seu aspecto de unicidade, para

    afirmar a difuso de outros sentidos, sugerindo, assim, a noo da metfora: homens =

    cavales.

    Na anlise de Antonio Candido, notamos o efeito de sentido de aproximao e

    distanciamento. Uma vez observados de longe, os cavalos a deslizar no prado, assemelham-

    se queles do carrossel, prprio dos parques de diverso. Os homens, por sua vez, vistos de

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    perto, assumem a postura de cavales, quando participam de um almoo em uma reunio

    social. Quer dizer, eles so diretamente comparados aos animais que esto l longe, a

    passear no pasto. Mas, no entanto, diferente do modo dos cavalinhos se comportarem, a ao

    dos homens ao comerem modalizada por um fazer caricato, ou seja, sancionada

    negativamente pelo destinador-enunciador.

    Essa interpretao parece estar correta, se imaginarmos que na natureza o cavalo

    quem galopa, e o homem no. Com isso, veremos que por meio da significao rtmica do

    poema, esta ordem invertida. Evidencia-se, portanto, nesta contradio, uma troca de

    isotopia entre o plano semntico e o plano de enunciado. Pois, na medida em que

    complexificamos por meio do ritmo: /homem/versus /cavalo/, necessariamente, estamos a

    pensar em /natureza/ versus /cultura/. De modo que pela aproximao sugerida, os

    cavalinhos assumem ento um ritmo mais humano, enquanto que os homens apropriam-sede um ritmo cavalar.

    Conclumos a anlise dO rond dos cavalinhos, verificando tratar-se de um poema

    que pautado pelo ritmo; ou seja, se apia num elemento prprio da expresso para

    desenvolver, por meio do plano de contedo, o tema da contradio. Assim, o efeito de

    sentido conseguido pelo poema, pode ser explicado como uma correlao semi-simblica

    entre o plano da expresso e o plano do contedo lingstico.

    Evidentemente que o exemplo acima, no tem o objetivo de enquadrar o poeta

    Manuel Bandeira entre os representantes da poesia concreta no Brasil. Neste movimento

    literrio, a principal idia era intensificar e carregar de poeticidade a relao entre palavra e

    imagem, de modo que fosse possvel encarar o poema, inicialmente, a partir de dois pontos

    de vista. Ou seja, num primeiro momento possvel conceb-lo no mbito literrio, uma vez

    que trabalha com as palavras; por outro lado, tambm poderamos situ-lo entre as artes

    plsticas, na medida em que utiliza o recurso da imagem. Contudo, reduzir a dimenso

    potica do poema concreto, tanto a uma como outra esttica, seria um equvoco; pois esse

    tipo de poesia no uma sntese entre o literrio e o plstico, mas sim uma complexificao

    entre estas duas semiticas. Segundo Pietroforte:

    Para fazer a anlise de um poema concreto, portanto, no basta somar anlise

    literria e anlise plstica, mas deve-se analisar a complexificao que combina

    literariedade e plasticidade na construo do texto. As relaes semi-simblicas (...)

    podem ser articuladas entre categorias semnticas e categorias lingsticas e

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    plsticas, prprias do plano de expresso da poesia concreta, o que faz, da semitica

    um bom instrumento de estudo para sua anlise.36

    Quando verificamos no item anterior a funo potica da linguagem, observamos

    que na prosa a elaborao fontica deixada de lado, em detrimento da estruturao

    fonolgica. Assim, tanto o leitor como o ouvinte, no instante que compreende a mensagem

    veiculada, acaba por fazer uma imediata transposio do plano da expresso ao plano do

    contedo. Por outro lado, vimos tambm no exemplo acima, que o material sonoro pode

    contribuir para produzir um efeito de significao. De modo que, em O rond dos

    cavalinhos, os elementos do plano de expresso esto colocados em funo do contedo.

    Porm, quando na poesia concreta, o poeta rompe a dimenso fonolgica do plano

    expressivo da linguagem, o que ele est buscando fazer, na verdade, reorientar osignificado e o significante da palavra. Assim, por meio do sincretismo grfico presente na

    escrita, o seu principal intuito justamente complexificar a relao entre expresso

    lingstica e imagem, de modo a deixar exposto, no prprio texto do poema, a manifestao

    da projeo categrica plstica (semitica visual) e escrita (semitica verbal).

    No poema extrado do livro Poetamenos, de Augusto de Campos, podemos

    visualizar como esses conceitos aplicam-se poesia concreta:

    eis os amantes

    (PoetamenosSo Paulo, SP: Edies Inveno, 1973.)

    36PIETROFORTE, A. V. S. Os enigmas da imagem . In: Semitica Visual os percursos do olhar. So Paulo:Editora Contexto, 2004, p.142.

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    interessante observar que a prpria disposio dos elementos na pgina, j inclui o

    espao no qual o poema construdo como um signo; na medida em que as aberturas, as

    linhas, as distncias, so tambm responsveis pelo efeito de significao. Assim, ao

    valorizar o som e o timbre das palavras, slabas e letras, Augusto de Campos retoma o

    modelo fonolgico a partir das suas unidades distintivas, ou seja, os fonemas. Uma vez que

    estes, quando tomados sozinhos, so desprovidos de significado, mas, passam a t-lo

    conforme so combinados e permutados com os outros. Como nossa finalidade no

    discutir o percurso semi-simblico da poesia de vanguarda brasileira, recomendamos a

    leitura do trabalho de Iniciao Cientfica: A angstia em Augusto, de Juliana Di Fiori

    Pondian. Neste, a autora analisa a proposta esttica da poesia concreta brasileira,

    encontrando, a partir dos poemas de Augusto de Campos, uma aproximao entre as artes:

    potica, musical e visual. De modo que, em seu trabalho, verifica-se como a explorao dosignificante verbal , totalmente, revestido de significado, a ponto da expresso e o contedo

    no poderem mais ser vistos de maneira dissociada; contribuindo para que o estudioso de

    semitica possa, a partir da, compreender melhor a construo do sentido no texto, graas a

    complexificao dessas duas categorias.

    Para finalizar, segundo as prprias palavras de Floch:

    Os sistemas simblicos so as linguagens cujos dois planos esto em

    conformidade total: a cada elemento da expresso corresponde um e somente

    umelemento do contedo, a tal ponto que no mais produtivo para a anlise

    distinguir ainda o plano da expresso e o plano do contedo, visto que tm a

    mesma forma.37

    37FLOCH, J. M. Alguns conceitos fundamentais em semitica geral, In: Documentos de Estudo do Centrode Pesquisas Sociossemiticas. Vol. 1. So Paulo: Centro de Pesquisas Sociossemiticas, 2001, p. 28.

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    Imperfeio e apreenso esttica

    (...) a prpria apreenso concebida como uma relao part icular estabelecida, no quadro

    actancial, entre um sujeito e um objeto de valor. Essa relao natural; sua condio primeira a

    parada do tempo, marcada figurativamente pelo silncio que bruscamente sucede ao tempo

    cotidiano, representado como um rudo ritmado. A esse silncio corresponde uma parada repentina

    de todo movimento no espao, uma imobilizao do objeto-mundo (...)38. assim que Greimas

    define, logo nas primeiras pginas Da imperfeio, o que o texto de Michel Tournier lhe

    permitiu concluir sobre os elementos constitutivos da apreenso esttica.

    Para analisar esses procedimentos, o semioticista pautou seu estudo sobre cinco

    textos literrios. Contudo, abrimos mo de coment-los aqui, para seguirmos diretamente s

    generalizaes que os elementos dessas anlises tm permitido. Com isso, mantemos nossoobjetivo principal, conforme j havamos dito no incio do captulo, que compreender o

    momento de apreenso esttica nos termos propostos pelo autor. Desse modo, iniciamos

    abordando a questo da esttica do sujeito e do objeto e, por ltimo, a fuso de ambos.

    A esttica do sujeito e do objeto

    A partir de um olhar subjetivo sobre o modo de existncia dos valores e da

    significao diante do mundo, o sujeito descobre o vu que oculta a realid ade, mostrando

    que por trs dele existe uma tela com aspectos sensveis do parecer, de onde podemos

    depreender novos valores e sentido. Ou seja, no contato direto entre o sujeito e sua nova

    realidade, ento revelada, h uma apreenso cognitiva que o modifica.

    Ao romper a isotopia da significao inteligvel, passamos da esttica, e tal

    mudana, como afirma o autor, no s transforma a construo do sentido como a da prpria

    vida. Verifica-se, portanto, a ocorrncia de uma esttica que concebe o momento de sua

    apreenso como uma ruptura da conjuno do sujeito com o mundo, em decorrncia de uma

    expanso do sentido que desloca o indivduo de seus parmetros, de suas convices, para

    um rompimento com a situao vigente. A apreenso de tal evento esttico sempre acontece

    de forma arrebatadora e apresenta-se para o sujeito de modo imprevisvel.

    38 GREIMAS, A. J.Da imperfeio . So Paulo, Hacker, 2002, p.25.

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    por meio da noo de fratura que Greimas enuncia as bases dessa esttica,

    conforme diz neste trecho:

    No se trata aqui, ento, de uma simples troca de istop ia textual, mas de uma

    verdadeira fratura entre a dimenso da cotidianidade e o momento de inocncia. A

    passagem a esse novo estado de coisas se manifesta como a ao de uma fora que

    vem do exterior (...) 39.

    No fragmento de Michel Tournier, por exemplo, o autor nos mostra como a figura de

    uma gota dgua ao tentar cair de uma clepsidra apropria -se das funes do sujeito e

    transforma-se em um ator modalizado e patmico, levando Robinson Cruso a deslumbrar-

    se e a visualizar outra realidade, ao v-la em tal movimento. Esse duplo fazer: o do objeto

    que faz o sujeito senti-lo, e o fazer do sujeito sentindo o fazer do objeto, refora a ao do

    evento esttico; sob as condies de uma suspenso do tempo e de uma paralisao do

    espao, indicadores que apontam o desconectar do sujeito em relao ao seu curso prvio, o

    que se experimenta um outro ritmo em descompasso e dissimtrico ao ritmo anterior.

    como se tivssemos um plano cartesiano: o eixo das abscissas representando a

    espacialidade e o das coordenadas, a temporalidade. No eixo espacial, encontramos o

    movimento suprimido no instante de apreenso e no eixo da temporalidade, a estagnao do

    tempo. nesse exato momento, em que o sujeito tomado por uma viso extraordinria,

    deixa entrever por alguns segundos, graas aos buracos, as brechas que existem nesta tela do

    parecer, uma nova realidade.

    A fratura surge, portanto, como uma espera antecedente ao evento esttico, e, que

    mais tarde, torna-se estudo das mais diversas interpretaes, obrigando o sujeito a lanar-se

    sobre seu objeto-mundo em uma completa fuso. E sendo esta uma fuso breve, na medida

    em que torna insustentvel para o sujeito manter o xtase envolvido na apreenso de tal

    sentido, ocorre um gradual desaparecimento do evento extraordinrio, levando o indivduoa guardar para si uma lembrana nostlgica que mais tarde vm a produzir ressemantizaes

    no prprio sentir-se, sentir o mundo, a vida diria, etc.

    Para concluir, devemos notar que o objeto esttico diferentemente do objeto terico,

    definido at este momento pela teoria semitica, caracteriza-se por uma seqncia de papis

    39 GREIMAS, op. cit., p.26.

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    actanciais, na medida em que assume um estatuto prprio dentro da teoria. Num primeiro

    momento, apresenta-se como um destinador-manipulador, modalizando os afetos e as

    percepes do sujeito, que, por sua vez, passa a reconhecer neste, sua parte complementar.

    Da que somente depois, j em uma segunda etapa, que assumir a funo de objeto

    propriamente dito, ou seja, aquele que recebe as determinaes do sujeito.

    Por sua vez, o sujeito da vivncia esttica, tambm apresenta caractersticas prprias.

    No incio, demonstra caractersticas passivas, o que tpico da funo de objeto. Ao passo

    que, somente ir reconhecer-se como um sujeito em si, quando o objeto esttico entrar em

    cena, atuando como destinador. Desse modo, o objeto que vem trazer ao sujeito o saber

    sobre a sua prpria condio.

    Assim, nos resta deduzir que o contrato da fuso entre sujeito e objeto estticos,

    no produto da ao do sujeito. Muitas vezes ela o resultado de uma ao bilateral entreos actantes; ou seja, um vai direo do outro: o sujeito aparece sensibilizado pela presena

    do objeto e o objeto ressaltado pela percepo do sujeito.

    Analisemos o contoA Serpente40 do Marqus de Sade para compreender melhor tal

    processo:

    A Serpente

    Todo o mundo conheceu no incio deste sculo a sra. presidenta de C..., uma das

    mulheres mais amveis e a mais bonita de Dijon, e todo o mundo a viu afagar e manter

    publicamente em sua cama a serpente branca, que o tema desta anedota.

    - Este animal o melhor amigo que possuodizia um dia a uma senhora estrangeira

    que veio visit-la e se mostrou curiosa da razo dos cuidados que a bela presidenta tinha

    por sua serpente. Outrora amei com paixo prosseguiu um jovem encantador,

    forado a se afastar de mim por obrigaes militares. Fora outros modos de nos

    comunicarmos, exigiu que fizesse como ele em determinadas horas, cada um por si,

    fosse para um lugar solitrio para pensar exclusivamente em nosso afeto recproco. Uma

    vez, s cinco da tarde, indo me fechar numa estufa de flores ao fundo do jardim,mantendo o nosso trato, percebi de repente a meus ps este animal, embora nenhuma

    espcie semelhante pudesse entrar na propriedade. Quis fugir, a serpente se estendeu

    diante de mim como a pedir misericrdia e me jurar que estava longe da idia de me

    fazer mal.

    40 SADE, Marqus de. O marido complacente. So Paulo: L&PM POCKET, 1997.

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    Parei, observei-a. vendo-me tranqila, se aproximou, fez cem voltas muito geis a

    meus ps, no pude me impedir de toc-la, passou delicadamente a cabea na minha

    mo, peguei-a, pus sobre os joelhos, onde ela se enrolou e pareceu dormir. Uma

    preocupao me veio, lgrimas me subiram aos olhos sem que sentisse e molharam o

    belo animal. Despertado por minha dor, me observou, gemeu, ergueu a cabea at meuseio, acariciando-o, e voltou a descer, desfeito. cu sagrado, aconteceu, gritei, meu

    amante morreu! Deixei o funesto lugar, levando comigo a serpente a que um sentimento

    oculto parecia me ligar, a despeito de mim mesma. Fatais advertncias de uma voz

    desconhecida de que interpretar como quiser os sinais, sra., mas oito dias depois soube

    que meu amigo tinha sido morto na hora em que a serpente me apareceu. Nunca quis me

    separar dela, e j no me deixar enquanto viver. Depois me casei, mas com a expressa

    condio de a no tirarem de mim.

    Terminando de falar, amvel presidenta agarrou a serpente contra o peito e a fez darcem belas voltas ante a dama que a interrogava.

    Como so inexplicveis teus desgnios, Providncia, se essa histria real como

    assegura toda a provncia de Borgonha!

    O sujeito da narrativa (figurativizado no texto como presidenta) faz do cotidiano,

    uma seqncia esperada de acontecimentos. Isto , tem como hbito se masturbar todos os

    dias, em determinadas horas, pensando em seu amante que tivera de partir. De modo que,

    assim, ela cumpre o contrato defidcia estabelecido entre os dois:

    Fora outros modos de nos comunicarmos, exigiu que fizesse como ele em

    determinadas horas, cada um por si, fosse para um lugar solitrio para pensar

    exclusivamente em nosso afeto recproco. Uma vez, s cinco da tarde, indo me

    fechar numa estufa de flores ao fundo do jardim, mantendo o nosso trato, percebi de

    repente a meus ps este animal (...)

    Contudo, o sujeito surpreendido pela presena de um animal na cena, o que em

    termos semiticos, trata-se de um objeto actorializado na figura de uma serpente. Mas,

    antes, importante observar que quando o sujeito tenta fugir, fica claro estar em jogo os

    valores da descontinuidade; pois tal valor figurativizado no texto pela imagem da fuga.

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    Quis fugir, a serpente se estendeu diante de mim como a pedir misericrdia e me

    jurar que estava longe da idia de me faze mal.

    Ao repetir sempre a mesma ao, a presidenta se dispe ao previsvel. Entretanto,

    continuidade dessa situao coloca-se uma outra, inesperada: a serpente que surge no campo

    visual do sujeito, atraindo-lhe a ateno de expectante. Desse modo, dizemos que h uma

    nova isotopia, na medida em que esta rompe com a antiga. Se quisermos aderir categoria

    frico/tensiva do quadrado semitico41 a essa isotopia, no intuito de melhorar a

    compreenso, veremos que a cotidianidade assume o papel de continuao e a durao da

    vida do sujeito nesse estado continuao da continuao, o que gera o seguinte quadrado

    semitico:

    Do ponto da atividade / passividade estticas, perceba que a serpente, a princpio,

    surge como sujeito e destinador-manipulador, e a presidenta como objeto; uma vez que o

    animal que visa entrar em conjuno com o sujeito, manipulando-o por meio da paixo da

    misericrdia, para depois, quando a presidenta assumir a funo ativa, tornar-se objeto.

    Assim, ela surge inicialmente apassivada; mais tarde, ao sofrer a manipulao, reconhece a

    serpente como objeto e passa a agir ativamente.

    Ainda assim, importante perceber que a funo de destinador, algo marcante no

    objeto esttico, muito mais presente na figura da serpente, embora a presidenta tambm

    figure nesse papel. Isso se deve ao fato de que a ao dela decorrente da manipulao da

    serpente. Porque at ento, a presidenta se caracteriza como um ser expectante e passivo.

    41 Para as relaes temporais implicadas nessa verso do quadrado semitico, ver TATIT, L. Gerao. In:Semitica da cano: melodia e letra. So Paulo, Escuta, 1994.

    continuao da parada continua o da continua o

    parada da continuao parada da parada

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    a serpente que fornece dinamismo cena; portanto, somente a ela podemos atribuir a

    plenitude dessa funo.

    O fato de os dois actantes terminarem em plena conjuno, no pode ser atribudo a

    nenhum deles com exclusividade, mas sim a ambos:

    Terminando de falar, amvel presidenta agarrou serpente contra o peito e a fez

    dar cem belas voltas ante a dama que a interrogava.

    Desse modo, conclumos que a alterao nos hbitos do actante presidenta rompe a

    continuidade narrativa e gera o que Greimas definiu como fratura, ou seja, uma acelerao

    do objeto em direo ao sujeito. A fratura pe em cena um sujeito surpreso, mas que no

    entanto, quer agora a desacelerao para poder fruir com o objeto (percebida comocontinuao da parada). Esse querer se manifesta, no texto, pela espera que antecede o

    encontro, como podemos ver no trecho abaixo:

    Parei, observei-a. vendo-me tranqila, se aproximou, fez cem voltas muito

    geis a meus ps, no pude me impedir de toc-la, passou delicadamente a cabea

    na minha mo, peguei-a, pus sobre os joelhos, onde ela se enrolou e pareceu

    dormir.

    Modalizado pela espera, o sujeito torna-se predisposto ao encontro, e por meio da

    manipulao sofre uma mudana em seu ser. Essa mudana a responsvel por levar o

    sujeito a um fazer peguei-a, pus sobre os joelhos e gera, no seu ser, a paixo da

    felicidade42. Seguindo esse momento de estase, podemos pensar que na medida em que o

    conto no prope a extino plena do evento extraordinrio no retorno cotidianidade,

    possvel imaginarmos uma ressemantizao do dia a dia, ou seja, a possibilidade de o sujeito

    guardar para si as marcas dessa nova experincia, alterando a sua relao usual com omundo para alm do momento da parada. Com isso, teramos pela quebra do simulacro da

    cotidianidade a fratura transformada em uma escapatria.

    42 evidente que ao longo do texto, a serpente vai assumindo um papel metafrico, na medida que representa odesejo sexual do enunciatrio, afastado e separado de seu amante. Nesse sentido, a palavra serpente s adquireseu total sentido, quando interpretada dentro de um discurso ertico. Desse modo, o significado de serpentepassa a ser plural, e pode ser interpretada como ofalo do amante em sua ausncia.

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    CAPTULO DOIS

    A OBRA DE CHARLES BUKOWSKI

    eu tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitaisque no me deixar fingir que sou

    uma coisa que no sou -o que seria um duplo fracasso: o fracasso de uma pessoa

    na poesiae o fracasso de uma pessoa

    na vida.e quando voc falha na poesia

    voc erra a vida,e quando voc falha na vida

    voc nunca nasceuno importa o nome que sua me lhe deu.

    Charles Bukowski

    Nesta primeira parte, tomaremos a histria de Charles Bukowski, a partir do ponto de

    vista do escritor que, em meio ao cenrio norte-americano, nos anos 70, desperta a ateno

    dos leitores, quando comea a revelar-se descontente com relao aos rumos que a literatura

    tomava naquele instante; ou seja, vai ganhando cada vez mais notoriedade, na medida em

    que passa a criticar as convenes e os modelos que possibilitaram, segundo o autor, a

    produo literria a tornar-se algo tedioso e pouco criativo. Assim, desejando relatar por

    meio de uma viso bastante particular a realidade ignorada pela grande maioria dos leitores

    comuns, Bukowski choca as massas ao retratar, com o seu estilo irnico e linguagem

    chula, o dia a dia da sociedade americana. Desse modo, o pblico-leitor acostumado as

    formas literrias cannicas, encontrar em Bukowski outro tipo de referncia.

    No incio, o autor encontra repercusso somente no meio underground, sendo que a

    maior parte das publicaes era bancada por ele prprio. Contudo, os escritos foram se

    espalhando rapidamente entre o pblico, de modo que cada vez mais surgiam pessoas

    interessadas naquele novo tipo de literatura. Assim, o interesse pela obra de Bukowskicomeava a crescer. Mas, apesar da popularidade, j inegvel nos meios marginais, e, da

    grande influncia junto aos outros escritores, que tambm estavam surgindo naquele

    momento, muitos crticos, jornalistas, professores de literatura, enfim, parte da chamada

    classe intelectual americana, ainda recusava a reconhec-lo como um escritor de prestgio.

    Foi ento, somente depois da sua morte, que os primeiros artigos e resenhas acerca da

    herana artstica do autor, comearam a ser escritos. A partir da, inmeras sries e

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    publicaes sobre a vida e a obra de Bukowski, passaram a ser divulgadas e reunidas nas

    mais diversas antologias.

    , portanto, junto com personalidades como: Walt Whitman, William Carlos

    Williams, e Allen Ginsberg, todos figuras de destaque dentro do cenrio literrio norte-

    americano, que a carreira de Charles Bukowski vista hoje como paradigma entre

    escritores.

    Vida e Obra

    Nascido em 16 de agosto de 1920, em Adernach, na Alemanha, Bukowski veio

    morar nos Estados Unidos quando tinha ainda apenas dois anos de idade. Em Los Angeles,

    cresceu em meio pobreza. Na sua obra autobiogrfica, o escritor afirma que o perodo dainfncia foi um dos mais tristes e assustadores do qual j tivera recordao. Com a chegada

    da adolescncia, comea a escrever pequenos contos, passando a envi-los para as revistas e

    jornais literrios espalhados pelo pas.

    Em 1946, Bukowski conhece Jane Cooney Baker. Durante este relacionamento,

    apaixonado e turbulento, o autor escreve os poemas que o deixariam famoso nos anos 60.

    Depois da publicao do seu primeiro livro de poesias Flower, Fist and Bestial Wail,

    Bukowski se torna ento uma figura bastante conhecida no circuito undergroundda poca.

    A partir da, utilizando-se do mito de bebedor duro, como forma de auto se

    promover, o escritor comea a dedicar todo o seu tempo escrita. No total, entre prosa e

    poesia, chegou a escrever mais de cinqenta e cinco livros, sendo que a maioria desses

    foram quase todos publicados por pequenas editoras. Traduzido para diversos pases, o autor

    acabou fazendo mais sucesso na Europa do que no prprio EUA.

    Assim, em 1972, publica uma coletnea de contos intitulada Erections, Exhibitions

    and General Tales of Ordinary Madness, seguida por outras que renem uma seleo de

    suas melhores e mais importantes poesias como:Love is a Dog from Hell (1977) e Play the

    Piano Drunk Like a Percussion Instrument Until the Fingers Begin to Bleed a Bit(1979). J

    os romances: Post Office (1971), Factotum (1975), Women (1978), Ham on Rye (1982) e

    Hollywood(1989) so aqueles em que o escritor se descreve autobiograficamente atravs do

    alter-ego Henry Chinaski, contando histrias de sua infncia, adolescncia, da vida em Los

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    Angeles, enfim, de sua constante andana pelos mais variados empregos, e de seus inmeros

    casos amorosos.

    Porm, nunca deixando de lado a produo potica, realiza leituras de alguns textos

    nas diversas universidades americanas, o que mais tarde culminar na coletnea Last Night

    of Earth Poems de 1992. O livro inclui os poemas da fase mais madura de Bukowski,

    falam de uma infncia reconstruda idilicamente, contendo imagens muito ricas, como por

    exemplo a lembrana de gotas de chuva caindo logo aps um temporal, na poca quando

    ainda era jovem:

    and then, at once, it would

    Stop.

    and it always seemed tostop.

    around 5 or 6 a.m.

    peaceful then,

    but not an exact silence

    because things continued to

    drip

    drip

    dripand there was smog then

    and by 8 a.m.

    there was a

    blazing yellow sunlight,

    Van Gogh yellow

    crazy, blinding!

    and then

    the roof drainsreliev of the rush of

    water

    began to expand in

    the warmth:

    PANG! PANG! PANG!

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    42

    e a, na mesma hora, ela

    parava.

    e ela sempre parecia

    parar l

    pelas 5 ou 6 da manh,depois a calma,

    mas no um silncio total

    porque as coisas continuavam a

    pingar

    pingar

    pingar

    e no havia nvoa

    e l pelas 8 da manhvinha a

    luz do Sol brilhante e amarela,

    o amarelo de Van Gogh

    insano, incandescente!

    e ento as calhas do telhado

    aliviadas da pressa da

    gua

    comeavam a dilatar como calor:

    PANG! PANG! PANG!

    Segundo Howard Sounes:

    O estilo em que estivera trabalhando por anos, escrevendo um verso aps o

    outro, com o mnimo de adornos possvel, foi perfeitamente atingido. Alguns

    poemas consistiam em palavras arrumadas, uma, duas ou trs em um verso,como uma lista, mas Bukowski escolhia a mudana de um verso para o outro

    com cuidado, e conseguia juntar imagens e idias interessantes. Eles quase

    sempre tambm eram engraados.43

    43 SOUNES, Howard. Vida e loucuras de um Velho Safado. So Paulo: Conrad Editora, 2000, p.231.

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    43

    Em pulled down shade, por exemplo, uma mulher reflete sobre os defeitos de seu

    parceiro:

    Ive

    Know you for

    6 months

    but I have

    no idea

    who you are.

    youre like

    some

    pulled down shade

    a woman can

    drop

    out of your

    life and

    forget you

    real fast.

    a woman

    cant go anywhere

    but UP

    after

    living you,

    honey.

    eu

    lhe conheci h

    6 meses

    mas no tenho

    idia de

    quem voc .

    voc como

    uma

    sombra do passado

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    44

    ...

    uma mulher pode

    sair

    da sua

    vida eesquec-lo

    muito rpido.

    uma mulher s pode

    MELHORAR

    depois que deixa voc,

    amor.

    Bukowski faleceu em So Pedro, na Califrnia, aos setenta e trs anos de idade. Seultimo trabalho foi uma novela policial chamada Pulp (1994), que ele terminou poucos

    meses antes de morrer. Aps a sua morte ainda foi publicada uma coletnea de crnicas

    retirada de seu dirio nos anos precedentes, de 1991 a 1993, chamada: The Captain is out to

    lunch and the sailors taken over the ship.

    Bukowski e o Cnone

    Um dos grandes obstculos incluso definitiva de Charles Bukowski no cnone da

    literatura ocidental contempornea o fato de a crtica, ainda hoje, no conseguir localizar o

    verdadeiro espao que a sua obra ocupa no mbito literrio. Nesse sentido, surgem aqueles

    que, por exemplo, tentam buscar em Henry Miller, devido ao carter obsceno e

    autobiogrfico de seus romances, a raiz do estilo bukowskiano. Outros, porm, vem no

    lirismo decadente de John Fante, a maior inspirao do escritor. E, com isso, h tambm os

    que insistem em coloc-lo ao lado de Jack Kerouac, de modo a tentar classific-lo como um

    escritor pertencente ao movimento beatnik, cuja idia era adaptar para o estilo de vida

    americano, as propostas do surrealismo francs.

    Entretanto, o que a literatura de Charles Bukowski sempre retratou foi a decadncia

    daquilo que se convencionou chamar american way of life. Foi a partir desse ponto de vista

    que o escritor comeou a narrar o dia a dia da classe mdia norte-americana, passando a

    criar personagens cujas histrias eram totalmente baseadas na vida de pessoas comuns, e

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    pautadas em torno de temas transgressivos como: sexo, alcoolismo, drogas, ressacas, brigas,

    prostituio, etc. Desse modo, o autor nos demonstra que o ideal americano de cultura e

    exaltao do indivduo, possui um efeito contrrio, ou seja, transforma todos numa grande

    massa homognea e despersonalizada.

    Uma vez analisada criticamente, a literatura bukowskiana apresentar-se- como um

    tipo que est a todo o momento se repetindo; seja a partir do prprio estilo tosco de

    descrever os acontecimentos, ou mesmo pelas histrias, que sempre narram um modo de

    vida marginalizado. Assim, tentar localizar um lugar pertinente para o trabalho artstico de

    Charles Bukowski, torna-se uma tarefa difcil, na medida em que o prprio autor

    problematiza a sua insero no campo literrio. Com isso, dizer que Bukowski, por

    exemplo, fez parte do movimento vanguardista, tambm cometer um grave equvoco; pois

    diferentemente do que as vanguardas haviam proposto at ento, no foi nem a buscadesenfreada pelo novo, e nem a noo de ruptura esttica, pronta a servir como atividade de

    engajamento poltico e/ou social, o que estava por trs da obra do escritor.

    Nesse sentido, ainda poderamos concluir, dizendo que a literatura de Bukowski,

    reduzir-se-ia a categoria dos gneros confessionais (memrias, dirios, autobiografia, etc). O

    prprio autor, em entrevistas e cartas aos amigos, chegou a dizer que noventa e trs por

    cento de sua obra eram autobiogrficos, sendo que os outros sete por cento restantes tambm

    eram sobre sua vida, porm, desta vez, escritos de maneira melhorada.

    Contudo, para muitos crticos, os acontecimentos da vida de um autor, quase sempre

    se mostram irrelevantes para entender a sua produo intelectual. Numa poca em que o

    artista radicalmente exposto, possuindo sua vida to vasculhada quanto praticamente a sua

    obra, discutir o ponto onde uma termina e a outra comea, o desafio que o crtico se

    impe.

    Antonio Cndido avalia, com muita habilidade, a questo de se colocar a biografia

    do escritor em um patamar elevado e sobre as consideraes de canonizar o escritor como

    gnio, dizendo:

    (...) nosso modo de ser ainda bastante romntico, temos uma tendncia

    quase invencvel para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e

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    ostensiva de sofrimento e drama, pois a vida normal parece incompatvel com o

    gnio.44

    Vejamos tambm o que diz Maingueneau a respeito de tal fenmeno:

    A tendncia da esttica romntica foi privilegiar a singularidade do escritor e

    minimizar o carter institucional do exerccio da literatura. Ora, no possvel

    produzir enunciados reconhecidos como literrios sem se colocar como escritor,

    sem se definir com relao s representaes e aos comportamentos associados a

    essa condio. Os trabalhos de certos socilogos da literatura, em particular os de

    P. Bourdieu, tiveram o grande mrito de mostrar que o contexto da obra literria

    no somente a sociedade considerada em sua globalidade, mas, em primeiro

    lugar, o campo literrio, que obedece a regras especficas.45

    Se nos lembrarmos das consideraes traadas pelo ponto de vista do materialismo

    histrico, veremos em Luckcs46, por exemplo, que toda obra de valor discute intensamente

    a totalidade dos grandes problemas de sua poca. Com isso, percebe-se rapidamente que o

    valor de uma grande obra reside na sua capacidade de conter tenses e contradies

    prprias da sociedade na qual ela est inserida, isto , situada a partir de um dado momento

    histrico. No entanto, tentar inserir o campo literrio de uma dada obra junto sociedade,muitas vezes, se mostra uma tarefa rdua, na medida em que o enunciado ao assumir a

    forma de discurso, passa a se definir em relao a uma vasta rede interdiscursiva, de modo

    que sua localizao social, s pode ocorrer a partir da definio do lugar q ue ela ocupa no

    mbito coletivo. Em outras palavras, para poder veicular uma mensagem, a enunciao da

    obra precisa trazer nela prpria a marca e/ou o problema que a tornou possvel.

    ,