charles chaplin

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  • EVERTON LUIS SANCHES

    O PENSAMENTO HUMANITRIO DE CHARLES CHAPLIN: OS

    INTERLOCUTORES NO-EXCLUDOS

    FRANCA, 2008.

  • UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    JLIO DE MESQUITA FILHO

    FHDSS FACULDADE DE HISTRIA, DIREITO E SERVIO SOCIAL

    O PENSAMENTO HUMANITRIO DE CHARLES CHAPLIN: OS

    INTERLOCUTORES NO-EXCLUDOS

    Tese apresentada por Everton Luis

    Sanches como exigncia para a obteno do

    ttulo de Doutor em Histria

    Universidade Estadual Paulista Jlio de

    Mesquita Filho, sob orientao do Prof.

    Dr. Pedro Geraldo Tosi.

    Franca, 2008.

    2

    2

  • Sanches, Everton Luis O pensamento humanitrio de Charles Chaplin: os interlocu- tores no-excludos / Everton Luis Sanches. Franca: UNESP, 2008

    Tese Doutorado Histria Faculdade de Histria, Direito e Servio Social UNESP.

    1.Cinema Histria. 2.Carles Chaplin Crtica e interpreta- o. 3.Direitos humanos. 4.Pensamento humanitrio Cinema.

    CDD 791.43092

    3

    3

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus, por todos os dias de minha vida, inclusos aqueles que

    permitiram a concluso desta pesquisa. Aos meus amigos de sempre que me

    acompanharam nesta trajetria Ricardo Melo, Cristiane Demarchi, aos casais Vilma e

    Luiz, Ktia e Cabral, querida Maria Aparecida e minha esposa Gisele Pereira Barbosa

    Sanches, que contribuiu imensamente comigo ao longo de todo o percurso de pesquisa.

    Sou grato aos colegas do grupo de estudos de cinema e teatro Cine em cena (Adriana,

    Denlson, Daniel, Gilmar e Paulinho) por persistirem com os nossos sonhos. Aos meus

    colegas de trabalho do Centro Universitrio Claretiano de Batatais e ao estmulo oferecido

    pelos alunos dos cursos presenciais e dos realizados distncia (on-line). Gostaria de

    manifestar estima pela ajuda oferecida por minha irm Elizabete Sanches Rocha e pelo

    respeito de meus pais Gilda e Alcidino, alm do carinho to valioso dos meus sobrinhos e

    pelos bons pressgios de meu cunhado Joo Batista Rocha. Agradeo tambm aos

    membros do Instituto Jacques Maritain, que me ofereceram indicaes de livros e

    orientaes valiosas para o meu estudo e aos professores Antonio Alberto Machado e

    Mariza Saenz Leme, que deram suas contribuies na ocasio da apresentao pblica do

    Relatrio de Qualificao.

    Gostaria de agradecer ainda especialmente aos dindos Pedro Geraldo Tosi e

    Lmia Jorge Saadi pela confiana que depositaram em mim e no meu trabalho, qual

    procurei corresponder altura.

    4

    4

  • Finalmente, sou grato a todos aqueles que acreditam no potencial do ser humano

    para edificar.

    Ficam as minhas estimas de afeto e fortuna a todos vocs!

    5

    5

  • RESUMO

    Este trabalho procura identificar o pensamento humanitrio de Charles Chaplin

    usando a seqncia que encerra o seu filme O grande ditador (The great dictator, 1940

    EUA) como principal fonte de estudo. Prope-se ainda confrontar o pensamento do ator e

    cineasta com o Humanismo Integral de Jacques Maritain, bem como com a Declarao

    Universal dos Direitos Humanos, estabelecendo relaes entre as partes.

    PALAVRAS-CHAVE: Pensamento Humanitrio, Interlocuo, Cinema, Charles Chaplin,

    Jacques Maritain, Direitos Humanos.

    ABSTRACT

    This work try to identify the Charles Chaplins humanitarian thought using the

    final sequence of the film The great dictator (ditto, 1940 USA) like principal fountain

    of study. It propose yet to confront the actors thought with the Integral Humanism of

    Jacques Maritian, just as with the Human Rights Universe Declaration, make

    acquaintance between the parts.

    KEYWORDS: Humanitarian Thought, Interlocution, Cine, Charles Chaplin, Jacques

    Maritain, Human Rights.

    6

    6

  • Dedico esta pesquisa aos fs e

    aos filhos de Charles Chaplin.

    7

    7

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................. 07

    Captulo 1 SUBSDIOS, DIRETRIZES E PROCEDIMENTOS DA PESQUISA:

    PRESSUPOSTOS CORRELATOS DE INTERLOCUO ............................................ 19

    1.1 Um pouco mais sobre a linha historiogrfica adotada .............................................. 20

    1.2 Mtodos e procedimentos de anlise das fontes ........................................................ 26

    Captulo 2 UMA CONCEPO HUMANIZADA DA HISTRIA .............................. 51

    2.1 O pensamento humanitrio nos filmes de Charles Chaplin ...................................... 52

    2.2 Chaplin filma a sua primeira verso da guerra .......................................................... 71

    Captulo 3 CHAPLIN, MARITAIN E DIREITOS HUMANOS: O PENSAMENTO

    HUMANITRIO EM O GAROTO E TEMPOS MODERNOS ................................ 94

    3.1 O pensamento humanitrio de Chaplin articulado em O garoto ............................... 95

    3.2 O pensamento humanitrio de Chaplin articulado em Tempos modernos .............. 131

    Captulo 4 O LEGADO: A CONCEPO HUMANITRIA NO-EXCLUDA ..... 172

    4.1 A interlocuo de Chaplin em O grande ditador ..................................................... 173

    4.2 Charles Chaplin, Jacques Maritain e os Direitos Humanos no discurso de Carlitos 201

    8

    8

  • CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................... 240

    BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................. 252

    FONTES ........................................................................................................................... 259

    9

    9

  • INTRODUO

    A linguagem da tese uma metalinguagem,

    isto , uma linguagem que fala de outras

    linguagens.1

    Umberto Eco

    1 Extrado de ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Editora Perspectiva, So Paulo, 1996, p. 116.

    10

    10

  • Gostaria de destacar, para abrir as cortinas de meu trabalho, como fazem os

    artistas nos espetculos de teatro, ou ainda, para compor a seqncia de apresentao,

    como os cineastas fazem em seus filmes, qual foi a perspectiva da escrita e que mtodo de

    abordagem analtica dos elementos relacionados (filme O grande ditador [The great

    dictator Charles Chaplin, EUA, 1940], Declarao Universal dos Direitos Humanos

    [1948] e o livro Humanismo integral [1936], de Jacques Maritain) foram adotados nesta

    tese. Antemo, parti do princpio de que tais elementos integram o que chamei de

    pensamento humanitrio de Charles Chaplin, sobre o qual discorro a seguir.

    Pensamento humanitrio foi a terminologia escolhida para referir-me de forma

    objetiva e direta a um conjunto de idias e postulados no acadmicos que Charles Chaplin

    aglutinou em seus filmes e que, conforme defendo ao longo desta tese, esto condensados

    na ltima seqncia do filme O grande ditador. Diferentemente de humanismo, que

    remete a um vertente de estudo filosfico previamente delimitado e com representantes

    especficos, a expresso pensamento humanitrio proporcionou a abordagem daquilo que

    flua de fontes diversas diante de uma tumultuada passagem da histria.

    Tal terminologia foi adotada diante da reflexo sobre os impasses previamente

    abordados por outros autores a respeito daquilo que defendeu Charles Chaplin e levando

    em conta o que o prprio Chaplin asseverou sobre os seus filmes, conforme discorro na

    seqncia.

    11

    11

  • Charles Chaplin foi imensamente discutido por poetas, estudiosos do teatro e

    cinema e considerado por historiadores sob a perspectiva do valor artstico de sua obra, de

    sua importncia como um dos maiores cones do cinema, de sua conturbada vida amorosa

    e outros aspectos de sua vida pessoal (infncia miservel em Londres, sua famlia, filhos

    etc.) entre outras abordagens.

    Vilar comparou Chaplin a Cervantes e Carlitos a Dom Quixote2; Benjamim e

    Kracauer, respectivamente, relacionaram as cenas dos filmes de Chaplin como anlises

    cinematogrficas da descontinuidade perceptiva e das relaes estilhaadas entre pessoas e

    coisas, soldando loucura e alegria.3 Para Bazin, Chaplin soube usar e at rejeitar os

    recursos disponibilizados pela tecnologia de produo cinematogrfica, privilegiando as

    tcnicas que as situaes filmadas exigiam.4 Segundo Knight, aps dois anos da primeira

    apario de Chaplin nas telonas havia bonecos Chaplin, brinquedos Chaplin, concursos

    Chaplin, imitadores de Chaplin e caricaturas dele nos jornais. Chaplin estava por toda

    parte.5

    2 VILAR, Pierre. O tempo do Quixote in Desenvolvimento econmico e anlise histrica. Editora Presena, Lisboa, 1982, p. 255-268.3 CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (org.) O cinema e a inveno da vida moderna. Cosac & Naify Edies, So Paulo, 2001, p. 513-525.4 ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introduo. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1989, p. 168.5 KNIGHT, Arthur. Uma histria panormica do cinema: a mais viva das artes. Lidador, Rio de Janeiro, 1970, p. 33.

    12

    12

  • So inumerveis os trabalhos que remeteram a Charles Chaplin, seja por tratarem

    da histria contempornea e da histria do cinema, seja para colher dados biogrficos e

    levantar mais informaes sobre um dos maiores mitos do cinema.

    Quanto s concepes de Chaplin e a coerncia interna de seu pensamento,

    existem tambm vrios trabalhos publicados, os quais levando at concluses bastante

    especficas e discrepantes entre si. Todos eles usaram como fontes de estudo os filmes de

    Chaplin e sua autobiografia, alm de dados jornalsticos, jurdicos (processos que ele

    sofreu), depoimentos de pessoas prximas a ele e bibliogrficos. Pelo menos duas

    discusses foram recorrentes: os relacionamentos afetivos de Chaplin e a sua indefinio

    quanto posio poltica (socialista ou liberal?).

    A jornalista estadunidense Joyce Milton escreveu em 1996 que Chaplin sofria de

    uma enfermidade manaco-depressiva (patologia bipolar), de modo que se sua vida pessoal

    estivesse em descontrole, ele poderia tornar-se imensamente criativo no seu trabalho com

    cinema. Ela descreveu-o como uma pessoa complexa, contraditria, envolvida em

    escndalos pessoais e aclamada pelo trabalho com o cinema. Segundo Milton, Chaplin

    tinha uma atrao pelos comunistas porque se identificava com as classes oprimidas e

    porque os comunistas se arvoravam em ter a resposta certa para qualquer pergunta. Em

    suas palavras: Na prtica, Chaplin era fortemente influenciado por qualquer pessoa com

    quem tivesse falado por ltimo.6

    6 MILTON, Joyce. Chaplin: contraditrio vagabundo. Editora tica, So Paulo, 1997 p. 09-11. Citao da p. 332.

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  • Em meu trabalho de mestrado qualifiquei a afirmao da doena de Chaplin

    como irresponsvel, j que a jornalista no apresentou nenhum tipo de documento ou laudo

    mdico que pudesse comprovar a sua hiptese.

    J Cony abalizou que o socialismo contemplado pelos filmes de Chaplin um

    socialismo em estado primitivo, um socialismo utpico e elementar que se confunde com o

    cristianismo tambm primitivo. Tal ideal poderia, segundo Cony, ser traduzido no amor

    aos homens, confiana nos homens e dio sociedade.7 Ele considerou ainda que Chaplin

    foi alm daquilo que pode ser denominado de cinema, pois abordou temas, assuntos e

    experimentaes que tradicionalmente pertenciam literatura. Cony resumiu o seu

    trabalho nos seguintes termos: Numa palavra: Carlitos a nossa LUTA.8

    Chaplin afirmou em sua autobiografia:9

    No sigo nenhum roteiro de existncia, nenhuma filosofia... Sbios ou tolos, temos todos que trabalhar com a vida. Oscilo em meio de contradies; exasperam-me s vezes fatos mnimos e catstrofes podero deixar-me indiferente. (Chaplin 1965:495)

    Deste modo, ficou cada vez mais aparente que no era adequado atribuir a

    Chaplin um rumo to especfico, o que desqualificou a hiptese do artista ser humanista,

    conforme aquilo que a filosofia humanista e seus diversos representantes propem.

    Estando ou no Chaplin oscilando ao gosto daqueles que se aproximaram dele e mesmo

    7 CONY, Carlos Heitor. Charles Chaplin. Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, 1967 p. 04.8 Idem, p. 123-126. Citao da p. 133.9 CHAPLIN, Charles. Histria da minha vida. Livraria Jos Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965.

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    14

  • sem perseguir qualquer filosofia; fazendo seu trabalho no cinema ou o seu anti-

    cinema; socialista primitivo ou simpatizante daqueles que propunham a defesa das

    classes menos favorecidas pode-se afirmar com segurana que Chaplin, em meio s

    suas contradies, era um homem imerso e em dilogo com as contradies de seu

    tempo e que tal dilogo aconteceu, sobretudo mediado pelos seus filmes.

    Destarte, o que me proponho a investigar : qual foi a discusso de que

    Charles Chaplin participou de maneira mais objetiva e quais foram os seus

    interlocutores? A idia de que o seu pensamento poderia ser tomado como parte

    integrante do pensamento humanitrio do perodo foi resultado da anlise de seu

    trabalho e da discusso realizada sobre ele, bem como se valendo de algumas lacunas

    observadas na referida discusso.

    Para Matos-Cruz10 a noo do personagem Carlitos tinha como alvo dissuadir

    a compreenso do pblico:

    Nas suas inquietaes, nas suas quimeras, nos seus dissabores, nas suas contradies, Charlot11 convocar a identificao do espectador, apesar do embarao de nos sentirmos cmplices, familiares, irmos ou personalizados no homenzinho, o vagabundo. Muitas vezes no um simples escape: no seu sem-rumo por todas as estradas, Charlot pode indicar-nos uma direo. A sua sorte corresponde de todos os marginalizados: do incio a Monsieur Verdoux12, o mundo que est em guerra com

    10 MATOS-CRUZ, Jos de. Charles Chaplin: a vida, o mito, os filmes. Editora Veja, Lisboa, 19? p. 92-93.11 Em portugus, Carlitos.12 Este foi um personagem de Chaplin, do filme homnimo, lanado em 1947 e que gerou, entre vrias polmicas, a seguinte pergunta: Verdoux tambm o vagabundo? Para Matos-Cruz, sim.

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  • Charlot, no o contrrio. Perante a sua integridade ameaada, ele limita-se a reagir. Desejando uma integrao na sociedade, preza mais a sua liberdade. Para ele no tem sentido as convenes nem o conformismo, e rejeita os compromissos. Aspirando a que o aceitem como , tal como ele respeita o prximo e todos os outros, torna-se um mrtir, cavando a sua solido. (Matos-Cruz 19?:92-93)

    Assim, a dissuaso consistiu na abordagem que Chaplin fez da sociedade em seus

    filmes, uma sociedade que rejeitou Carlitos; este, por sua vez, no aceitou a sociedade na

    mesma medida em que no rejeitou a prpria noo de si e de sua conjuntura. O seu

    personagem (um vagabundo), ao manter a prpria rigidez de carter e inadequao ao

    conjunto scio-cultural que o cercava, remeteu a todos aqueles cujas leis, regras, religies,

    sistemas e regimes da vida contempornea no estavam prontos ou at dispostos a

    contemplar.

    Apesar da maneira informal e artstica com que Charles Chaplin elaborou as suas

    crenas, o artista conseguiu ao longo de sua trajetria no cinema e, sobretudo na

    seqncia final do filme O grande ditador reunir argumentos que remontaram s

    hostilidades e misrias que lhe foram contemporneas e necessidade de humanizar a

    sociedade, esta tomada por ele no apenas como um povo, um pas, uma cultura ou uma

    civilizao, mas como um conjunto de homens e mulheres heterogneo e universal.

    Em O grande ditador, quando Carlitos falou pela primeira vez, Chaplin remeteu

    arbitrariedade dos Estados Nacionais e dos regimes polticos sobre a pessoa humana

    16

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  • usando a imagem e a palavra para manifestar uma preocupao que tambm figurava no

    mbito jurdico, filosfico e cristo, entre outros possveis de serem analisados.

    Ou seja, apesar dele no ter dialogado diretamente com um campo de pesquisa e

    comprovao cientficas trabalhando, outrossim, no domnio esttico, o discurso do

    personagem Carlitos que encerra o filme citado projetou uma discusso ampla j

    anteriormente contemplada em diversos filmes de Chaplin e que se fundamentou nas

    tenses do perodo em que ele viveu.

    No obstante, o pensamento humanitrio de Charles Chaplin coadunou com um

    pensamento de defesa humanitria que evoluiu historicamente e remonta defesa de

    direitos humanos feita pela Declarao de Virgnia (EUA, 1776) e Declarao dos

    Direitos do Homem e do Cidado (Frana, 1789), que se fundaram numa perspectiva

    liberal dos direitos humanos, priorizando a liberdade por meio dos direitos civis e polticos;

    defesa da promoo de direitos humanos objetivada pela Declarao do Povo

    Trabalhador e Explorado (URSS, 1918), que priorizou os direitos sociais, econmicos e

    culturais na busca de igualdade, assim como a Constituio Mexicana (1917) e a

    Constituio Russa (1919).

    Acrescenta-se ainda que do ponto-de-vista religioso possvel identificar a defesa

    de direitos humanos e o pensamento humanitrio nas doutrinas propostas por Krishna

    17

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  • (cerca de 3000 a.C.), Abrao (2000 a.C.), Buda (cerca de 600 a.C.) e Jesus Cristo, assim

    como entre os seus seguidores.13

    Ou seja, a expresso pensamento humanitrio bastante genrica e pode referir-

    se a diferentes momentos da histria e diversas fontes, no se restringindo apenas ao

    pensamento de Chaplin. Contudo, o perodo abrangido por esse trabalho abarcou a

    deflagrao da Segunda Guerra Mundial (1939-45) e o perodo que lhe anterior,

    envolvendo uma conjuntura em que houve fascismo, campos de concentrao, genocdios,

    idealizao e uso da bomba atmica. No que concerne a este perodo, a promulgao da

    Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948) expressou a indignao consensual

    diante de tais eventos e marcou a reunio de direitos civis e polticos com os econmicos,

    sociais e culturais num s documento, tendo sido orientada ainda pelo cristianismo social.14

    Esta, abarcando a proposio conjunta de tais ordens de direitos humanos e com

    forte orientao crist deu origem concepo contempornea dos direitos humanos e

    destinou-se a um conjunto de homens e mulheres heterogneo e universal, a despeito de

    barreiras tnicas, sociais, polticas, religiosas ou de Estados nacionais.

    Destarte, ao usar a expresso pensamento humanitrio quando referimo-nos s

    fontes desta pesquisa, abarcamos o conjunto especfico de idias humanistas que foram

    formuladas ou emergiram no perodo de 1936 a 1948, que so identificadas no discurso do

    13 Veja o artigo Os profetas da paz no site www.dhnet.org.br.14 Veja o artigo TOSI, Giuseppe. Direitos humanos, direitos "humanizantes", p. 02, no site www.dhnet.org.br.

    18

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  • filme O grande ditador (1940) de Charles Chaplin e que possuem suas razes mais

    profundas em diferentes perodos da histria e advm de diversas fontes. Tambm

    importante reconhecer que estas fontes foram compostas por grupos sociais bastante

    dspares e muitas vezes discordantes entre si.

    Os interlocutores do pensamento humanitrio de Chaplin podem ser reconhecidos

    na medida em que, sendo contemporneos a ele, procuraram reunir partes aparentemente

    estanques da poltica e de diferentes grupos sociais para a consecuo de um caminho que

    respeitasse a heterogeneidade e que amparasse as necessidades especficas de cada

    membro da sociedade humana.

    Do ponto de vista historiogrfico, podemos considerar que a totalidade do que se

    passa na sociedade em dados espao e tempo escapa atravs de nossos fundamentos,

    mtodos, racionalidade, esttica e percepo por ser intangvel e no figurar como objetivo

    plausvel para a nossa compreenso, pois a interao humana em si e com o meio

    constituem a experincia histrica, no a sua transfigurao em seqncias de fatos pelos

    postulados cientficos. O historiador pode discutir e retratar o passado, mas nunca poder

    reviv-lo. E ao retrat-lo ele seleciona aquilo que lhe parecer importante ou indispensvel e

    refuta fontes, eventos ou pessoas que parecerem menos importantes conforme os critrios

    historiogrficos adotados, permanecendo sempre a noo especfica de um recorte.

    Assim, a inteligibilidade de tal dimenso humana e histrica fica, portanto,

    circunscrita a um campo definido, organizado, sistematizado e representado pelo

    19

    19

  • especialista, referindo-me aqui ao historiador. Contudo, podemos considerar que quanto

    mais restrito for o campo definido e menor for o seu dilogo com outras modalidades do

    conhecimento, maior ser a possibilidade de discrepncia entre os seus postulados e a parte

    da jornada humana a que se referiu ou qual pretendeu se referir.

    Tal qual acontece com um espelho quebrado, religar o conhecimento histrico

    que j uma parcela especfica entre os diversos domnios do saber humano em suas

    reas de especificidades para refletir de forma coesa o complexo de fatos, idias e

    sentimentos significa construir um novo espelho ou localizar a totalidade refletida pelo

    recorte feito.

    Nesta perspectiva, considerou-se aqui que grupos sociais se organizaram e a

    partir dos mesmos destacaram-se alguns indivduos que tinham como bagagem moral e

    intelectual as suas experincias pessoais vividas dentro destes grupos, as quais

    estimulando-os de modo tal que estes reunissem a preocupao com os acontecimentos

    sociais, com as ocorrncias pessoais e de mbito psquico. Portanto, deste ponto-de-vista

    no se descola a pessoalidade dos sujeitos histricos da histria dos grupos e nem de seu

    conjunto social em determinados espao e tempo, tal qual propunha Lucien Febvre ao

    historiador.

    A histria escrita por Lucien Febvre ocupou-se com aqueles que refletiram e

    pretenderam intervir sobre o seu tempo, considerando a complexidade da conscincia do

    sujeito histrico e de sua interao com a conjuntura, situando o trabalho do historiador e a

    20

    20

  • sua parcela de subjetividade. Ele contemplou a relao entre a pessoa (ou as pessoas) e os

    fatos relevantes de um dado perodo, tomando como ponto de vista a afinidade entre os

    fenmenos de ordem psicolgica e histrica, adentrando assim o campo que hoje

    destinado sociologia ou, mais ainda, psicologia social.15 Para Febvre a histria feita

    de indivduos e grupos. O indivduo que toca o grupo faz a histria.16 Todavia, no s o

    indivduo que ao tocar o grupo faz a histria, mas tambm o grupo se manifesta pelo

    julgamento do indivduo, pois todos integram aquilo que Febvre chamou de mentalidade.

    Tal qual Fernand Braudel17 descreveu:

    No confia o historiador demasiado nas aparncias quando pensa ter em frente de si, retrospectivamente, indivduos cujas responsabilidades pode examinar vontade? A sua tarefa, na verdade, no s encontrar o homem, frmula de que se abusou bastante, mas reconhecer os grupos sociais de grandezas diversas que esto todos comprometidos uns com os outros. Lucien Febvre lastimava que os filsofos, ao criarem a palavra sociologia, tivessem evitado o nico ttulo que convinha a uma histria segundo ele pensava. (Braudel 1985:415)

    Os filsofos usaram a expresso sociologia para delinear uma rea do

    conhecimento humano, que por sua vez atendeu quilo que se propunha a uma forma

    especfica de escrever a histria de pessoas que estavam de alguma maneira

    comprometidas com os diversos grupos sociais dos quais participavam ou um dia

    15 Esta discusso realizada em REIS, Jos Carlos. Nouvelle Histoire e tempo histrico: a contribuio de Febvre, Bloch e Braudel, principalmente nas pginas 12-43.16 Idem, citado na pgina 43.17 BRAUDEL, Fernand. Civilizao material e capitalismo: sculos XV-XVIII os jogos das trocas. Veja o Captulo V A sociedade ou o conjunto dos conjuntos, p. 415.

    21

    21

  • participaram. Ou, simplesmente, comprometiam-se estas pessoas com certas tenses

    contemporneas a elas e pelas quais mantinham certo respeito, fascnio ou afinidade.

    Conforme o arcabouo cultural desenvolvido pelo sujeito histrico em seu

    movimento no tempo e espao e de acordo com sua bagagem moral, intelectual e

    psicossocial ele adquire a forja de suas expectativas e delineia qual o seu campo de luta

    interno e externo, suas motivaes e objetivos. E sua rea de conflito, por conseguinte,

    mesmo quando situada numa vertente aparentemente nica no caso de Charles Chaplin, o

    cinema sofreu interferncias constantes ao longo de sua interao com a sociedade,

    projetando-se atravs dos conceitos, disciplinas, regulamentos, tratados e postulados

    cientficos para abranger a atmosfera que lhe foi contempornea.

    Segundo elucidou Braudel:

    Pero, cualquera que sea la palabra clave, esta historia particular llamada de la civilizacin o de la cultura, de las civilizaciones o de las culturas, es en primera instancia un cortejo, o ms bien una orquestacin de historias particulares: historia de la lengua, historia de las letras, historia de las ciencias, historia del arte, historia del derecho, historia de las instituiciones, historia de la sensibilidad, historia de los costumbres, historia de las tecnicas, historia de las superticiones, de las creencias, de las religiones (e incluso de los sentimientos religiosos), de la vida cotidiana, para no hablar de la historia, pocas veces abordada, de los gustos y recetas culinarias. (...) Sin embargo, marchen o no esas historias al mismo ritmo, no quiere decir que sean indiferentes unas as otras. (...) Lucien Febvre reclamaba, con toda razn, los derechos de la historia general, atenta al conjunto de la vida que nada puede dissociarse si no es que arbitrariamente. Pero,

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    22

  • reconstituir la unidad equivale a buscar sin fin la cuadratura del crculo. (Braudel 1991:216)18

    Deste modo, h diante do historiador da cultura um novelo de l embaraado,

    cheio de pontas soltas e entrecortadas que so caminhos para se tentar chegar ao seu centro

    o centro da discusso histrica ou para desembara-lo, procurando estabelecer uma

    espcie de linha do tempo. Suas fontes so vestgios deixados por pessoas e grupos

    sociais, constituindo suas obras e seus modos de vida que, de maneira intrincada, formaram

    um conjunto de eventos a que chamamos de Histria e que pode situar-se mais

    declaradamente no campo que evocamos como Histria da Cultura.

    Portanto, situando o filme de Charles Chaplin, a Declarao Universal dos

    Direitos Humanos e o livro Humanismo integral de Jacques Maritain em conjunto eu

    procurei descortinar uma trama factual absorta no pensamento de Chaplin, que a

    emergncia de uma tal necessidade de humanizar a sociedade e de um pensamento que lhe

    ou ao menos procura ser equivalente.

    Tal suposto apresentado por Chaplin em todo o seu trabalho concomitantemente

    a interlocutores que tratei como os no-excludos, reforando antemo o olhar integrado

    que procurei estabelecer neste estudo. Os no-excludos so contemporneos a Chaplin,

    esto em campos diferentes de atuao e participando de diversos grupos e/ou classes

    sociais, ou mesmo possuindo etnias distintas. O estudo do pensamento humanitrio de

    Chaplin leva a eles da mesma maneira que podemos tomar o conhecimento sobre o

    18 A primeira edio em Francs de 1969.

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    23

  • individual como expresso do roteiro despercebido dentro do script maior.19 Assim,

    coube tornar mais claro e apercebido tal roteiro envolvido e comprometido com o

    script maior.

    Seguindo a perspectiva historiogrfica na qual me situo, ao investigar o

    pensamento humanitrio de Charles Chaplin, averigei quais foram os grupos ou linhas de

    pensamento com os quais ele manteve relaes de maior empatia para conseguir abarcar o

    seu pensamento, estabelecendo as aproximaes que se mostraram mais pertinentes na

    conjuntura.

    19 FREITAS, Marcos Csar de. Da micro-histria histria das idias. Cortez, So Paulo, 1999 p. 24.

    24

    24

  • Captulo 1

    SUBSDIOS, DIRETRIZES E PROCEDIMENTOS DA PESQUISA: PRESSUPOSTOS

    CORRELATOS DE INTERLOCUO

    A utopia substitui a profecia. No fim da

    histria, a espera outra: no mais o apocalipse,

    mas uma sociedade moral e racional.20

    Jos Carlos Reis

    20 REIS, Jos Carlos. Nouvelle Histoire e tempo histrico: a contribuio de Febvre, Bloch e Braudel. Editora tica, So Paulo, 1994, p. 12.

    25

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  • 26

    26

  • 1.1 Um pouco mais sobre a linha historiogrfica adotada

    Ao estudar o pensamento de Chaplin, deparei-me com diversas formas de

    elaborar qual era a sua posio diante do mundo contemporneo, previamente expostas por

    crticos de arte, escritores e historiadores, alm de diferentes selees de aspectos da

    sociedade em que ele vivia e diante da qual se posicionou. Foram estabelecidas conforme

    pude observar com a leitura da bibliografia fronteiras de anlise distintas, como a

    confrontao entre fico e histria, no caso de Pierre Vilar que o comparou a Cervantes e

    qualificou a ambos como intrpretes de diferentes lugares e momentos de crise da vida

    moderna.

    Outros objetos de estudos foram a simultaneidade entre a trajetria do cinema e o

    decurso da vida moderna, como fizeram Bazin e Kracauer, tendo para isso relacionado

    inclusive o trabalho de Chaplin; a vida desregrada das celebridades, a genialidade do artista

    e suas contradies com a poltica e com os valores da sociedade, conforme fez Joyce

    Milton; o alcance da indstria cultural e seu significado social, relacionando como o

    talento de Chaplin preservou a estrutura de seus filmes sem deslizar pelo caminho do tdio,

    que foram objetos de estudo de Dieter Prokop.

    Todas essas formas de abordar a vida e obra de Charles Chaplin que so

    algumas entre inmeras possibilidades abarcaram diferentes preocupaes e por isso

    mesmo valeram-se de fundamentos distintos para problematizar e dar sustentao s

    argumentaes. Assim, as concepes do espao e tempo contemporneos a Charles

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  • Chaplin, bem como a seleo de determinados aspectos da vida do artista foram definidos

    para que se conseguisse cercar o tema antecipadamente escolhido. Destarte, podemos

    considerar que toda pesquisa precisa servir-se de conhecimentos prvios para demarcar o

    seu campo de anlise e de conceitos que arregimentem tal demarcao, tratando o

    historiador da perspectiva da relao entre tempo e espao na formao da cultura e da

    sociedade.

    Posto isso, na minha abordagem sobre o pensamento humanitrio de Charles

    Chaplin decidi adotar como objeto de estudo um debate que insurgiu dentro de uma

    conjuntura scio-cultural e que buscou integrar-se nessa conjuntura, usando para tanto

    formas de representao e legitimao.

    O pensamento humanitrio de Chaplin est situado, entre outras formas de pensar

    a sociedade contempornea, como uma manifestao do desejo compartilhado por certos

    grupos sociais e que ganhou fora com a deflagrao da Segunda Guerra Mundial. Tal

    desejo era de que a integridade das pessoas fosse priorizada pelos Estados, pelos regimes

    polticos e econmicos, conforme podemos ver a seguir e ao longo deste estudo.

    Como determinou o artigo 5 da Declarao Universal dos Direitos Humanos

    Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a

    lei e, ainda, conforme o artigo 22 Todo homem, como membro da sociedade, tem direito

    segurana social e realizao, pelo esforo nacional, pela cooperao internacional e

    de acordo com a organizao e recursos de cada Estado, dos direitos econmicos, sociais

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  • e culturais indispensveis sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua

    personalidade.

    Ou segundo Jacques Maritain, que definiu o seu ideal humanista e de uma

    comunidade fraterna como sem medida comum com o humanismo burgus, e tanto mais

    humano quanto menos adora o homem, mas respeita realmente e efetivamente a dignidade

    humana e d direito s exigncias integrais da pessoa.21

    Em palavras mais simples, Chaplin descreveu em O grande ditador que se tratava

    de lutarmos por um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que d futuro

    mocidade e segurana velhice.

    Este desejo referiu-se, podemos dizer, busca de um tipo de compreenso do

    papel de cada um no conjunto scio-cultural, de modo que as pessoas fossem consideradas

    um valor maior a ser preservado, objetivo para o qual todos os regimes polticos e sistemas

    econmicos deveriam se ater. Isso praticado diferentemente, sobretudo, da classificao

    das pessoas como que engrandecidas atravs da entrega espria aos desgnios do Estado, s

    crenas religiosas ou aos postulados cientficos por estarem estas pessoas tomadas pelo

    sentimento nacionalista exacerbado e com descaso pela vida humana inclusive a prpria

    como ocorreu entre muitos no perodo que circunda as duas guerras mundiais.

    21 MARITAIN, Jacques. Humanismo integral, p. 6.

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  • Conforme observou Reich em 194422, ao analisar o conjunto psicossocial que

    envolveu as guerras da primeira metade do sculo XX:

    Os conceitos sociais do sculo XIX, com sua definio puramente econmica, j no mais se aplicam estratificao ideolgica que vemos nas lutas culturais da sociedade humana do sculo XX. Hoje, as lutas sociais, para reduzi-las frmula mais simples, se travam entre os interesses de segurana e afirmao da vida e os interesses de destruio e represso da vida. (...) Est inteiramente claro que a questo social bsica, posta de tal forma concreta, o funcionamento vivo de cada membro da sociedade, inclusive o mais pobre. (Reich 1966:18)

    Tudo isso significa uma alterao de julgamento, de modo que o guia norteador

    da sociedade fosse o aprimoramento da racionalidade e das tecnologias, incorporando o

    sentimento de preservao do humano e de suas manifestaes culturais, desde que estas

    no contrafizessem a prpria integridade humana ou atuassem contra tal interesse comum.

    Alm disso, remete a um compromisso internacional, a despeito das fronteiras nacionais,

    costumes e demais diferenas possveis entre os povos do mundo.

    Portanto, foi plausvel considerar do ponto de vista psicossocial que:

    O que estamos vivendo uma real e profunda revoluo cultural, a qual ocorre sem desfiles, uniformes, medalhas, rufar de tambores ou salvas de canhes; mas suas vtimas no so em menor nmero do que as das guerras civis de 1848 ou 1917. (...) A reviravolta em nossa vida atinge a raiz de nossa existncia emocional, social e econmica. (Reich 1966:20)

    22 Publicado em 1945, escrito em novembro de 1944 para o prefcio da terceira edio do livro A revoluo sexual.

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  • O discurso de encerramento do filme O grande ditador foi um evento que

    alcanou naquele contexto a relevncia de um fato histrico, pois constituiu a manifestao

    de um pensamento da poca expressado pelo sentimento humanitrio de Chaplin, mas no

    s por ele.

    Como j afirmou Lucien Febvre:

    No h pensamento religioso (nem pensamento), por muito puro e desinteressado que seja, que no tenha na sua prpria substncia a atmosfera de uma poca ou, se se prefere, a aco secreta das condies de vida que uma mesma poca cria a todas as convenes, a todas as manifestaes de que ela constitui o lugar-comum. (Febvre 1970:15)

    Deste modo, podemos considerar que as fontes relacionadas constituram a

    elaborao e a objetivao de um pensamento emergente, no apenas idias isoladas e sem

    dilogo entre si. Ou seja, as fontes possuem como referente o objeto de estudo destacado

    neste: a defesa das pessoas em geral diante do flagelo da guerra e da arbitrariedade dos

    Estados nacionais (bem como de diversas formas de abuso em questo no perodo).

    Todavia, as fontes usam diferentemente em cada caso o som e a imagem em movimento, a

    palavra falada ou texto escrito; a filosofia no formato de um livro ou um tratado jurdico

    para se posicionarem, prescreverem e legitimarem tal discusso.

    Como Maritain e Chaplin partiram da elaborao do pensamento cristo, e

    principalmente porque Chaplin fez em alguns de seus filmes aluses a personagens e

    trechos bblicos, foi importante recuperar na anlise alguns recortes do evangelho cristo.

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  • Todavia, ao tratar com o texto religioso e dogmtico, foi importante considerar que o seu

    entendimento parte de diferentes credos ou doutrinas religiosas, de modo que cada uma

    delas defende uma linha interpretativa ou ainda, que no existe interpretao, mas apenas

    um entendimento correto e outro inadequado da bblia. O problema aumenta se levarmos

    em conta que Charles Chaplin foi educado segundo o protestantismo e que Jacques

    Maritain tambm era protestante, havendo se convertido ao catolicismo j adulto para

    tornar-se um de seus mais proeminentes pensadores no sculo XX.

    Deste modo, a opo que me pareceu mais cabvel foi interpelar o texto bblico

    conforme a acepo dada pelo pensamento humanitrio, ou seja, de acordo com a sua

    contribuio para a anlise e construo da defesa dos direitos humanos, mantendo assim a

    compreenso dos interlocutores que se afinam num determinado contexto. Herkenhoff

    asseverou sobre esse assunto que:

    As maiores religies e sistemas filosficos da Humanidade afinam, em seus grandes postulados, com as idias centrais que caracterizam este conjunto de princpios que denominamos Direitos Humanos. Assim acontece com o cristianismo, o Judasmo, o Islamismo, o Budismo, o Taosmo, o Confucionismo, o Marxismo e as tradies religiosas e filosficas dos povos indgenas da Amrica Latina, que interessam particularmente a um pesquisador latino-americano.

    Fernand Comte, numa pesquisa cuidadosamente realizada debrua-se sobre os livros sagrados de algumas das religies que maior influncia tiveram na Histria. assim que estuda os livros sagrados budistas, confucionistas, hindustas, muulmanos, judaicos e cristos.

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  • Uma linha tica, conforme demonstra Fernand Comte, aproxima essas fontes do sagrado, muito alm do que idias preconcebidas poderiam supor. (Herkenhoff 1994)23

    Mantendo, destarte, como pressuposto a interlocuo enunciada entre os textos

    religiosos na busca de elevar a tica humana e resolver as suas contradies, tratou-se do

    lugar de origem do discurso, ou seja, de sua fonte direta e da sua inteno inicial. Todavia,

    faz-se necessrio ao considerar os objetos de estudo desta pesquisa entender o seu uso por

    Chaplin e o significado deles no perodo em que ele (Chaplin) est circunscrito, incluso o

    uso feito por Jacques Maritain. Deste modo, voltamos a anlise para a consecuo da bblia

    em Chaplin, para a sua apropriao do texto bblico e de como tal apropriao referenciou

    o seu pensamento humanitrio j que o texto religioso prescrito como uma contribuio

    para evoluo histrica dos direitos humanos e, portanto, est includo em tal pensamento.

    Entretanto, foi realizada uma breve considerao sobre a conjuntura em que a

    bblia foi tomada, de maneira geral, pelos cristos, assseverando sobre aquilo que aceito e

    rejeitado de acordo com os postulados de diferentes credos religiosos catolicismo e

    protestantismo com o intuito de referenciar a importncia do texto religioso cristo e de

    seu uso na conjuntura em que Chaplin estava inserido. Tal considerao das questes que

    envolveram a bblia (usos e interpretaes dos textos, sua relao com o espao-tempo) foi

    inserida no desenvolvimento da tese, conforme se tornou necessria para a anlise dos

    filmes de Chaplin em que aparecem aluses ao texto religioso.

    23 Disponvel em http://www.dhnet.org.br/inedex.htm, acesso em 25/01/2008.

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  • Assim, imprescindvel abordar mais claramente sobre os mtodos e

    pressupostos que envolveram a interlocuo, conforme vemos na continuidade.

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  • 1.2 Mtodos e procedimentos de anlise das fontes

    A interlocuo um dos pontos de coeso de tal anlise, pois envolve diferentes

    tipos de fontes conforme as suas regularidades, de acordo com aquilo que elas

    compartilham. Seu pressuposto de que a linguagem no fechada em si mesma e sua

    compreenso no deve ser feita apenas utilizando a anlise interna de sua constituio

    formal. A linguagem de modo geral s inteligvel, segundo a linha de estudo adotada

    nesta pesquisa, na interao social, estabelecendo confrontos e fazendo mediaes entre

    diferentes vozes da sociedade para defender idias e compor um discurso.

    Assim, entende-se que a linguagem possui uma dualidade que lhe inerente,

    atravessando com os seus signos subjetividades e iderios que emergiram socialmente e

    que contaram com a atuao de seus interlocutores ao longo da histria para formar uma

    arena de luta e buscar o espao para concretizar idias, saciar sentimentos e acolher

    angstias vividas.

    Podemos concluir, deste modo, que:

    O interlocutor no um elemento passivo na constituio do significado. Da concepo de signo lingstico como sinal inerte que advm da anlise da lngua como sistema sincrnico abstrato, passa-se a uma outra compreenso do fenmeno, de signo dialtico, vivo, dinmico.

    Essa viso da linguagem como interao social, em que o Outro desempenha papel fundamental na constituio do significado, integra todo ato de enunciao individual num contexto mais amplo, revelando as relaes intrnsecas entre o lingstico e o

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  • social. O percurso que o indivduo faz da elaborao mental do contedo, a ser expresso objetivao externa a enunciao desse contedo, orientado socialmente, buscando adaptar-se ao contexto imediato do ato da fala e, sobretudo, a interlocutores concretos. (Brando 1995:10)

    Equivale isso a dizer que quando Charles Chaplin d voz a Carlitos ele o faz

    objetivando algum e que ele alcana objetivamente queles que queiram participar de sua

    proposta, que concordem ou discordem de suas idias.

    Ao filmar em preto e branco, mesmo depois do surgimento do filme em cores,

    Chaplin reafirmava entre os seus colegas de ofcio ser ortodoxo em suas tcnicas; porm,

    usando movimentos de cmera como grua e a tecnologia do sonoro, mesmo tardiamente24,

    sem dispensar a pantomima ou a presena de Carlitos, ele mesclava caractersticas

    fundamentais de seus filmes anteriores incorporando as inovaes tecnolgicas do cinema.

    Ao fazer uma homilia humanitria em O grande ditador (The great dictator EUA, 1940),

    ele opinava diante das principais lideranas do mundo quanto guerra, aos totalitarismos,

    ao comunismo, ao fascismo e democracia liberal, ressaltando a sua concepo religiosa.

    Finalmente, temos de lembrar que o nome de sua me Hannah foi atribudo

    personagem que fazia par romntico com Carlitos / Barbeiro (interpretado por Chaplin).

    Ao longo do filme Carlitos encontrou em Hannah (e vice-versa) estmulo para continuar

    buscando felicidade e uma fonte de esperana em meio improvvel jornada. Quando

    24 Chaplin incorporou o sonoro em seus filmes desde a sua criao, usando msicas e efeitos. Todavia, o cinema falado s foi usado por ele de maneira mais objetiva cerca de 13 anos aps a inveno do cinema sonoro.

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  • Carlitos / Barbeiro referiu-se diretamente a ela no final da alocuo humanitria, Chaplin

    dizia sua falecida me que ainda tentava respeitar os seus melhores exemplos e

    Paullette Goddard ento esposa de Chaplin e atriz que interpretava Hannah que a

    distncia havia acometido a relao dos dois.

    Nesta perspectiva devemos considerar que Hannah Hill Chaplin como Charles

    Chaplin relatou em sua autobiografia explicou-lhe sobre tcnicas de teatro, contou-lhe

    anedotas e corrigiu a sua dico, apegando-se religio e bblia nos tempos mais difceis.

    Ela chegou a interpretar para o pequeno Charlie a paixo de Cristo e no trecho em que

    Jesus pergunta: Meu Deus, por que me abandonastes? Hannah teria, em prantos, traado o

    seguinte comentrio: Voc v como Ele era humano; como todos ns, tambm padecia de

    dvidas. Chaplin descreve ter manifestado o desejo de morrer para encontrar-se com

    Jesus, mas Hannah teria o corrigido, dizendo: Jesus quer que voc primeiro viva e

    cumpra o seu destino neste mundo.25 Assim, uma simbiose entre riso, arte, sentimento

    religioso e compromisso com o mundo figuraram no imaginrio de Chaplin desde cedo,

    eternizados em sua vida pelo modelo de sua me.

    Outro fator importante que Chaplin j vivia separado de Paullette Goddard

    durante as gravaes de O grande ditador e estava envolvido com Oona ONeill, com

    quem se casaria e passaria o resto de sua vida. Este foi o ltimo filme que os dois atores

    (Paullette e Chaplin) realizariam juntos.

    25 CHAPLIN, Charles. Histria da minha vida, p. 17.

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  • Todavia, sua atitude foi orientada socialmente e dotada de um sentimento

    profcuo para dadas pessoas, camadas ou grupos sociais contemporneos a ele. Mesmo que

    este sentimento ou razo comum no tenha construdo um escopo terico ou semntico

    ordinrio a todos esses grupos, eles dialogaram na medida em que se referiram ao mesmo

    campo de batalha e contra os mesmos tipos de misria que lhes foram igualmente

    contemporneos.

    Considerando a delimitao dada em cada um dos casos especficos, podemos

    dizer que a anlise da obra de arte precisa ser empreendida levando em conta as relaes

    entre a circunstncia representada na obra e aquilo que ocorria na sociedade em que a obra

    surgiu. Desta maneira, tomando a descrio de Bakhtin quanto a Rabelais, temos um

    diagnstico de que procedimento adotar.

    muito simples: por trs de cada uma das personagens, cada um dos acontecimentos de Rabelais, figura uma personagem e um acontecimento histrico ou da vida da corte perfeitamente identificvel, sendo o romance no conjunto apenas um sistema de aluses histricas; o mtodo procura decifr-las, apoiando-se por um lado sobre a tradio vinda do sculo XVI, e por outro, sobre a confrontao das imagens de Rabelais com os fatos histricos da sua poca e sobretudo da espcie de suposies e comparaes. (Bakhtin 1987:97)

    Ao pensarmos o filme O grande ditador, temos as figuras de Mussolini e de Hitler

    representadas, bem como a invaso da Polnia, o fascismo, os guetos, a ostentao do

    poder dos Estados diante da pequenez da mulher, do soldado, do operrio e do

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  • comerciante. Tal qual na descrio sobre Rabelais, identificamos no filme aluses a atores

    e atitudes presentes na vida de Charles Chaplin e no perodo histrico que o cerca.

    O mesmo pode ser dito se tomarmos a conjuntura histrica em que Jacques

    Maritain escreveu a sua filosofia de defesa da pessoa humana. O seu Humanismo integral

    constituiu a procura integral do humano que no deve ser diminudo nem mesmo diante da

    palavra e grandeza de Deus, tampouco pelas instituies polticas e religiosas, sendo,

    outrossim, engrandecido por Ele. Tratou-se, conforme o prprio Maritain descreveu26, do

    humanismo que dispe o homem ao sacrifcio por amor humanidade e a si mesmo (tal

    qual Jesus Cristo foi exemplo), no contra os seus membros (da humanidade) e nem

    tomado insanamente por fundamentalismos religiosos, doutrinas de pureza tnica ou

    regimes polticos. Consistiu em um humanismo que considera o resgate do humano

    proporcional ao esforo das pessoas de transcenderem a si mesmas, retomando assim a sua

    origem comum num mundo espiritual que vai alm do tempo e espao histrico e, desta

    maneira ou seja, ao ir alm deixa as suas marcas na histria, na construo humana do

    espao e tempo.

    A insurgncia desse pensamento coincidiu com o crescente ceticismo filosfico e

    uma forte negao do cristianismo feita especialmente por Nietzsche, que adquiriu grande

    importncia para a histria da filosofia.

    26 Veja MARITAIN, Jacques. Humanismo integral, p. 03-04.

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  • Nietzsche fez oposio ao cristianismo, devido s suas proibies e conforme o

    filsofo considerou sua exigncia ao conformismo que, segundo ele, sufocaram o

    impulso humano pela vida. Deus est morto, dizia Nietzsche; Ele uma criao do

    homem, no existindo mundos superiores ou verdades metafsicas e transcendentes, nem

    tampouco moral proveniente de Deus ou da natureza, nem direitos naturais, socialismo

    cientfico ou progresso inevitvel, como propunha o racionalismo moderno. Entretanto, o

    ser humano poderia criar novos valores e alcanar um nvel superior, constituindo o super-

    homem (em alemo bermensch, do qual mensch um termo neutro, coletivo sem

    relao de gnero a indicar ser humano e, portanto, recomendando o super ser

    humano).27 Assim:

    Segundo Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de lgrimas, em oposio ao mundo da felicidade eterna do alm. Essa concepo constitui uma metafsica que, luz das idias do outro mundo, autntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensvel, o corpo, como o provisrio, o inautntico e o aparente. (...) So os escravos e os vencidos da vida que inventaram o alm para compensar a misria; inventaram falsos valores para se consolar da impossibilidade de participao nos valores dos senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvao da alma porque no possuam o corpo; criaram a fico do pecado porque no podiam participar das alegrias terrestres e da plena satisfao dos instintos da vida. (Nietzsche 1983:XII)28

    27 As tradues de Nietzsche para o ingls e o portugus apagam essa distino entre mann que em alemo significa homem para mensch citado originalmente pelo autor. Sobre o assunto, leia o artigo BERNARDO, Gustavo. O poder do conceito: do bermensch nietzschiano ao Superman americano. Disponvel no site: http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/editor27.htm.28 Veja a obra da coleo Os pensadores NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas / Friedrich Nietzsche. Abril Cultural, So Paulo, 1983.

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  • Tal pensamento de Nietzsche ganhou relevncia com a presena do avano da

    tecnologia de guerra, crescente a partir do final do sculo XIX e durante o sculo XX, com

    o acirramento das disputas entre as doutrinas polticas e com os nacionalismos.

    Consecutivamente, as anlises de Nietzsche foram reorientadas para servirem de suporte

    das idias nazistas de Hitler (o livro Minha luta, de Adolf Hitler, data de 1934), bem como

    o seu elogio da fora entusiasmou os nacionalistas

    Todavia, segundo Perry, recuperando o final do sculo XIX e as mudanas a

    partir de ento, o que ocorreu foi que:

    Interpretando a poltica com a lgica das emoes, os nacionalistas extremados insistiam em que tinham a misso sagrada de recuperar os territrios que outrora possuam na Idade Mdia, de unir-se a seus parentes de outras terras ou de dominar os povos considerados inferiores. A lealdade ao Estado-nao era colocada acima de todas as outras fidelidades. O Estado tnico tornou-se objeto de reverncia religiosa; as energias espirituais antes dedicadas ao cristianismo eram agora canalizadas para o culto do Estado-nao. (Perry 1999:457)

    Isso significa que ao se formarem os Estados modernos, sob a gide do

    estabelecimento inevitvel do capitalismo suplantando o regime feudal, forjou-se

    organicamente o campo de discrdia que lhe seria posterior e que assumiria determinadas

    propores e fundamentos especficos a partir do sculo XIX.

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  • Importante lembrar que Maritain traou os postulados de seu humanismo integral

    na mesma poca em que Hitler compunha as bases do nazismo, assim como Chaplin

    manifestava as suas opinies em seus filmes. Assim, do ponto de vista histrico, podemos

    considerar que tais proposies engendraram as profundezas do pensamento e da prtica do

    homem do entre guerras, diante das quais Maritain procurou resgatar certo valor filosfico

    cristo desapoiado, porm adaptado pelo autor s condies de seu tempo, pois estava a

    travar uma nova discusso dentro de uma conjuntura especfica. Ele buscou no tempo de

    aparecimento das bases de conflito os fundamentos para responder s inquietaes de seu

    tempo presente, em que o conflito configurava-se.

    Conforme assinalou Perry:

    A extrema e violenta denncia de Nietzsche contra os princpios democrticos ocidentais, inclusive a igualdade, seu elogio ao poder, seu apelo liberao dos instintos, seu elitismo que denigre e desvaloriza qualquer vida humana que no seja forte e nobre e seu desdm pelos valores humanos propiciaram um terreno frtil para movimentos violentos, anti-racionais, antiliberais e desumanos. Sua filosofia, que inclua um discurso impreciso sobre as virtudes dos guerreiros impiedosos, a criao de uma raa superior e a aniquilao dos fracos e mal constitudos, conduz a uma poltica de extremos, que desconhece limites morais. (Perry 1999:487)

    Mesmo que consideremos um pouco desmedida a proposio de Perry, podemos

    afirmar que foi empreendida depois da morte de Nietzsche ao menos uma apropriao do

    seu pensamento pelo movimento anti-semita, distorcendo-o no perodo subseqente ao

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  • gosto dos interesses do nacional-socialismo. Nietzsche afirmou desprezar o anti-semitismo.

    Contudo sua irm foi casada com Herr Foster, um agitador anti-semita, e tambm

    contribuiu para a promoo do seu pensamento na Alemanha fascista.29 No obstante, a

    atmosfera nacionalista tambm se alimentou do inconformismo e obstinao dos escritos

    do filsofo.

    Circunscrito no perodo aquinhoado e refletivo da atmosfera mental do entre

    guerras, Maritain asseverou:

    Um humanismo desembaraado por si mesmo e consciente de si, que conduz o homem ao sacrifcio e a uma grandeza verdadeiramente superhumana, pois ento a dor humana desvenda os olhos, e suportada por amor no na renncia alegria, mas em uma sede maior, e na exultao da alegria. Pode haver um humanismo herico?

    Quanto a mim, respondo que sim. E me pergunto se no esta questo (e das consideraes que se acrescentam) que dependem antes de tudo as diversas posies tomadas por uns e outros em face do trabalho histrico que se efetua aos nossos olhos, e as diversas opes prticas s quais se sentem obrigados. (Maritain 1936:3-4)

    Assim, a grandeza humana para Maritain no demonstrada apenas pela fora

    pessoal, social ou pela bravura, mas conforme a superao das dores cotidianas motivada

    pelo amor a si mesmo e ao outro na busca pela alegria que se faz de maneira consolidada

    em ambos. O seu humanismo integral, ao qual atribuiu tambm o ttulo de humanismo

    herico, Maritain denomina como aquele pressuposto que acolhe e explica diversas

    29 Idem, p. X, http://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Nietzsche, pesquisado em 20/02/2007 e http://www.culturabrasil.org/nietzsche.htm, pesquisado em 25/03/2007.

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  • escolhas em curso na Histria, as quais pondo diante do sacrifcio homens e mulheres que

    no gostariam de faz-lo e que igualmente no cultuam o sofrimento, mas que se sentem

    obrigados a enfrent-lo diante das agruras que os solaparam e que afligem a todos.

    Deste modo, considero importante abalizar que de certa forma Maritain sobreps

    no campo da filosofia e em sua contemporaneidade mesmo sem cit-la diretamente e no

    se sabe ao certo se com essa mesma inteno o seu humanismo herico idia do super-

    homem de Nietzsche, conforme ela foi apropriada no referido perodo, que foi tomada do

    contexto do final do sculo XIX pelo incio do XX. Todavia, enquanto a segunda

    denominao (de Nietzsche) serviu de esteio para as atrocidades e separatismos pondo de

    lado o pensamento cristo, a primeira (de Maritain) resgatou a noo de dignidade da

    pessoa humana animada por valores humanitrios e religiosos (de cunho cristo).

    Podemos considerar que foi traada, por esses critrios em oposio, uma arena de luta.

    Sucessivamente, na primeira metade do sculo XX os horrores de duas guerras de

    propores internacionais tiveram como uma espcie de efeito colateral o avano das

    discusses sobre um cdigo internacional para a busca dos direitos humanos para todos os

    povos, indistintamente considerados como integrantes da famlia humana, tal qual seria

    proposto na Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948.

    Devemos considerar que no prembulo da referida Declarao est definido que:

    Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da

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  • famlia humana30 e seus direitos iguais e inalienveis o fundamento da liberdade, da

    justia e da paz no mundo e que no artigo 1 da mesma Declarao est posto que Todos

    os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que ela prope no seu artigo 2

    que Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas

    nesta Declarao sem distino de qualquer espcie, seja de raa, cor, sexo, lngua,

    religio, opinio poltica ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,

    nascimento, ou qualquer outra condio.

    Levando em conta tais postulados jurdicos e aquilo que foi filmado por Chaplin

    e escrito por Maritain, podemos concluir que a defesa do humano diante de um ataque ao

    humano implementado pelas instituies que deveriam organizar a sociedade ataque este

    por sua vez respaldado nas cincias tecnolgicas e na filosofia o impulso comum que

    anima as partes relacionadas no estudo (Pensamento humanitrio de Chaplin, Humanismo

    integral de Maritain e Declarao Universal dos Direitos Humanos). Estas partes, por sua

    vez, constituram diferentes formas de manifestao de um mesmo juzo sobre uma

    determinada fase da histria da organizao das relaes internas ao Estado e entre as

    naes, bem como do pensamento relativo s mesmas e, principalmente, reavaliando o

    lugar do homem dentro do processo da vida na sociedade e na Histria.

    O significado do discurso de Carlitos / Barbeiro no filme de Chaplin e a sua

    interao ou dilogo com outras formas de discurso mediante um nimo nico e na

    30 Grifo meu.

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  • mesma direo exigiu da pesquisa um esforo interpretativo sob a perspectiva da histria

    da cultura. Esta preocupao por parte do historiador revela um caminho mais recente de

    anlise histrica, de modo que temos diante de ns um campo de estudo mais especfico

    com critrios que lhe so peculiares, ao passo que:

    Com efeito, o debate acerca da cultura, da significao da Histria e da natureza da escrita da Histria que o ps-modernismo veio a despertar estava estreitamente relacionado questo de nossa representao lingstica do mundo, e esse assunto foi o que trouxe para o primeiro plano um fenmeno que anterior, de carter filosfico em sua origem, ligado tambm semitica, e sem o qual no se pode entender desenvolvimentos como o ps-estruturalismo e a transformao na concepo das cincias sociais. Esse fenmeno a que nos referimos conhecido como giro lingstico. (Arstegui 2006:182)

    Considerando tambm tal orientao na medida em que ela mostrou-se til ao

    presente estudo, foram aplicados mtodos e procedimentos de anlise como ferramentas de

    manejo para a apreenso do discurso de Chaplin, aceitando contribuies daquele

    movimento que podemos situar dentro do que Arstegui chamou de giro lingstico, porm

    mantendo as preocupaes de conjunturas conforme os autores previamente discutidos

    neste propuseram.

    Numa perspectiva interdisciplinar, foi necessrio acolher as contribuies de

    representantes da discusso acerca da linguagem dentro do cinema e da filosofia,

    especialmente da filosofia jurdica e da evoluo dos direitos humanos para levar em conta

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    46

  • cada uma das formas lingsticas utilizadas, de modo a abalizar e apreender a discusso

    desenvolvida em cada uma das fontes relacionadas e a relao entre as partes, fazendo uso

    de procedimentos de anlise pertinentes a cada um dos campos discursivos.

    Primeiramente, considerei o panorama traado por J. Dudley Andrew quanto s

    principais teorias do cinema, localizando assim o meu escopo na histria da teoria do

    cinema e determinando os autores conforme a sua adequao anlise pretendida e a

    possibilidade de acesso a seus livros. Deste modo, para a anlise do filme tomei o

    instrumental trabalhado por Paul Virilio, Siegfried Kracauer e Christian Metz, conforme

    discorro na seqncia.

    Virilio considerou que o cinema contribuiu para a mistificao psicolgica, como

    um instrumento de percepo que, assim como as armas, estimulou e provocou

    fenmenos qumicos e neurolgicos sobre rgos do sentido e sobre o sistema nervoso

    central, afetando as reaes e a identificao e diferenciao dos objetos percebidos.31

    Com a percepo alterada, todavia, as reaes das pessoas tambm se modificaram e, no

    limite, Mesmo que subitamente nossos atos escapem s referncias habituais, no se

    tratam de atos gratuitos, mas de atos cinematogrficos.32 Esse recurso serviu e viabilizou,

    contudo, prtica de guerra em todo o sculo XX.

    Para Virilio a tecnologia e os debates do cinema aproximaram-se da prtica de

    guerra e, muitas vezes, serviram-na diretamente. Exemplo dado foi o caso das cmeras que

    31 VIRILIO, Paul. Guerra e cinema, p. 12.32ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introduo, p. 154.

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  • foram colocadas nos avies de guerra, durante a Segunda Guerra Mundial, para registrar os

    momentos de destruio dos combates e os filmes patriticos realizados nos Estados

    Unidos. Deste modo, o alcance da imagem em movimento o condicionamento das

    pessoas a um determinado olhar sobre a vida cotidiana, ou seja, o filme estabelece um

    horizonte perceptivo que ao ser analisado revela uma forma de compreenso efetiva ou

    pretendida de um determinado tema.

    Do ponto de vista terico, podemos relacionar igualmente que a apreenso do

    alcance do cinema de Charles Chaplin (bem como do cinema de modo geral) e, dentro

    dele, de seu filme O grande ditador (assim como qualquer filme), est ligada a e ensejando

    determinados eventos histricos. Nos casos debatidos pelo autor, os filmes relacionados

    conectam-se com a guerra, mediante a relao comum com a tecnologia, s discusses

    realizadas e preservando do mesmo modo o prprio impulso blico. A tecnologia que

    viabilizou o cinema, todavia, tambm auxiliou a prtica de guerra, de modo que ambos

    mantiveram uma relao intrnseca entre si.

    No que tange a mtodos de anlise, Virilio compara cenas de diferentes filmes

    com fatos e discursos polticos pertinentes guerra, estabelecendo as relaes possveis.

    Assim, ele delineia aquilo que se repete em ambos, tanto no que se refere s informaes

    dadas quanto aos nomes espetaculares usados como signos de identificao do

    experimentado e do imaginado, alterando a percepo sobre os eventos e sua importncia.

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  • Alguns generais afirmam hoje que, antes de mais nada, um conflito nuclear no seria o fim do mundo, repetindo, vinte anos depois, a afirmao do general Buck Turgdison, personagem principal do Dr. Fantstico, de Stanley Kubrik: senhor presidente, eu no diria que ns no nos chamuscaremos, mas acredito que s sofreremos dez ou vinte milhes de baixas, dependendo do impacto das exploses. (...) O presidente Reagan compreendeu perfeitamente o novo contexto e reabriu o debate em um discurso de 23 de maro de 1983, quando exps seu projeto de um sistema balstico espacial de defesa antimssil baseado em laser e espelhos a ser executado at o ano 2000. A maioria dos especialistas consultados falou imediatamente em Guerra nas Estrelas e em cinema de fico cientfica, ainda que, por trs do espetculo necessrio, se delineie um programa bem concreto no qual o Pentgono gastar em torno de um bilho de dlares por ano. (Virilio 1993:13)

    Trata-se, sobretudo, de utilizar o cinema para conquistar o imaginrio, ensejando

    e legitimando eventos histricos, relevando acima de qualquer tipo de valor moral e tica

    poltica o espetculo de luzes e cores, bem como uma forma ldica com que a tecnologia

    pode manifestar as suas conquistas.

    Porm, no caso de Chaplin, a forma esttica e as proposies de seus filmes

    produzem efeito semelhante, mas em sentido contrrio. O carter humanista de sua obra

    elaborado em oposio poltica de guerra e a um tipo de cinema que incorpora as

    inovaes tecnolgicas sem avali-las e fazer sobre elas a devida reflexo. Ele contrariava

    os diretores e produtores que estivessem anestesiados pelos efeitos da evoluo tcnica do

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  • cinema, que no repensassem a prpria arte cinematogrfica e que no reagissem nem

    refutassem a nada que decorresse dessa origem.

    Para os grandes estdios e produtoras de Hollywood, todavia, a tecnologia do

    sonoro e, posteriormente, do colorido no estavam em discusso, sendo apenas

    incorporadas como complementos indispensveis ao novo tipo de cinema que nascia a

    partir da evoluo tecnolgica, com o fim ltimo de contagiar ainda mais o pblico

    aumentando as possibilidades do negcio.

    Assim, seguindo o exemplo de Virilio, realizada neste uma comparao entre o

    que dito no discurso de encerramento do filme O grande ditador e o contedo das demais

    fontes, de modo a expor os argumentos e planos humanitrios defendidos

    simultaneamente, ainda que em diferentes tipos de linguagens e discursos distintos, pelo

    filme de Chaplin, pela filosofia humanista crist de Jacques Maritain e pela Declarao

    Universal dos Direitos Humanos, sendo que a ltima constituiu uma proposta efetiva de

    mudana e foi aceita como um conjunto de metas a serem cumpridas em mbito

    internacional.

    Adotei tambm como baliza para a anlise, conforme afirmei anteriormente, as

    assertivas do historiador alemo Siegfried Kracauer. Para Kracauer, o cinema mistura

    assunto e tratamento do assunto; o cinema consegue, de forma nica no mbito da esttica,

    retomar o mundo material de onde surgiu. Contudo, uma anlise do contedo que

    caracterstico do cinema deveria ser capaz de estabelecer a essncia desse veculo, pois ele

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  • considerou haver uma relao direta entre o assunto e o tratamento do assunto. O cinema,

    alm disso, para ele, no est desligado daqueles que o operam e, por isso, os cineastas de

    alguma maneira deixam escapar as suas prprias vises de realidade, o que possibilita ao

    cinema abordar uma realidade humana, um realismo no de fato, mas de inteno,

    incluindo a pessoalidade que lhe pode ser atribuda.33

    Ainda, na perspectiva de entender a funo e o efeito do cinema na sociedade,

    Kracauer afirmou que os filmes de uma nao refletem a mentalidade desta, de uma

    maneira mais direta do que qualquer outro meio artstico e estabeleceu para isso duas

    razes: uma, que os filmes so produtos de trabalho e da criatividade coletivos, envolvendo

    diretor, roteirista, atores, tcnicos das mais diversas reas etc.; outra, que os filmes so

    destinados a multides annimas e, portanto, so feitos com vistas para satisfazer os

    anseios do grande pblico. Ele considerou que Hollywood no pode se dar ao luxo de

    ignorar a espontaneidade do pblico e mesmo os filmes de guerra oficiais nazistas,

    produtos de propaganda como eram, espelharam algumas caractersticas nacionais que

    no poderiam ser fabricadas.34 Deste modo, os filmes refletem, sobretudo, mecanismos

    psicolgicos que configuraram camadas profundas da mentalidade.

    Kracauer elucidou que o cinema alemo do entre guerras expressou o terror

    crescente diante da ameaa perceptvel ao inconsciente de uma nova grande guerra; o

    significado flmico e a psique coletiva so considerados sincrnicos. O efeito visual

    33 Idem, p.113-121.34 KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma histria psicolgica do cinema alemo, p. 17-18.

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  • produzido revela a autoridade que absolutamente contraposta e, como num sonho que

    confessa o seu sentido contrrio, busca algum a quem possa acatar cegamente.

    Todavia, podemos considerar que Chaplin refletiu em seus filmes aspectos

    psicolgicos profundos da conjuntura que o cercava, resgatando a busca cada vez mais

    inconformada e indispensvel por melhores condies de vida na Terra para todos, em

    oposio competio ferrenha entre naes e entre regimes polticos que pressupunha a

    guerra, desigualdades e o sacrifcio. A sobriedade de seu filme est concentrada na stira

    que acontece em virtude da rigidez mrbida de seus personagens, estes por sua vez lderes

    polticos que ao cultuarem as prprias vaidades reafirmam a ignorncia prpria e de seus

    povos e encaminham o mundo para a carnificina e a guerra. Em contrapartida, um barbeiro

    e ex-combatente perturbado mentalmente pela guerra, diante de uma situao fortuita,

    travesti-se de liderana e abre mo do anonimato para alimentar a esperana em si mesmo

    e naqueles que o rodeiam, a fim de alcanarem paz e de coexistirem em paz, exercendo

    adequadamente o prprio ofcio.

    conveniente frisar que, conforme a descrio de Kracauer, foi atribudo

    mentalidade um sentido nacional e, no entanto, nessa pesquisa sobre Charles Spencer

    Chaplin entendeu-se que h caracteres peculiares ao contexto nacional que perpassam toda

    a atmosfera mental de um perodo, este, por sua vez, considerado internacionalmente.

    guisa de explicao, quando me referir mentalidade, deve-se entender que se tratou de

    um sinnimo para eventos de ordem psicossocial da conjuntura internacional.

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  • J Christian Metz, segundo Andrew, foi uma espcie de divisor de guas para a

    teoria do cinema. Ele buscou uma semitica do cinema, empreendendo um estudo

    rigoroso das condies materiais e do processo de significao. Adotou a posio de que

    existem dois tipos de anlise: a flmica e a cinemtica, sendo que a primeira refere-se aos

    aspectos que interferem e dos quais depende a feitura de um filme como tecnologia,

    organizao industrial, reao da platia, lei de censura, a prpria biografia dos diretores

    etc., apoiando-se nos dados no mtodos oferecidos pela histria, economia, sociologia

    e psicologia para a sua acepo; a segunda envolveu as caractersticas especficas de cada

    filme e que, portanto, constituem o arcabouo do cinema.35

    Para Metz, filme e cinema opem-se na mesma medida em que o fazem o

    enunciado e o idioma, ou seja, o segundo o conjunto idealizado de possibilidades que s

    podem ser consideradas reais quando tomadas de forma mais especfica no primeiro. Ele

    considerou que existem cdigos especficos do cinema, vistos no(s) filme(s) e que o

    conjunto de todos esses cdigos cinematogrficos, gerais e especficos, demarca a

    linguagem cinematogrfica.36

    Sua contribuio permite a elaborao de duas ordens de anlise a serem

    reconhecidas e devidamente atendidas na apreenso do filme e do cinema de Chaplin, ou

    seja, tanto a ateno ao uso feito da linguagem, aos recursos semnticos utilizados pelo

    cinema de Chaplin, sua tecnologia e as suas condies de realizao (anlise apoiada

    35 ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introduo, p. 211-217.36 METZ, Christian. Linguagem e cinema, p. 19-81.

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  • tambm em outras disciplinas), quanto o alcance especfico das possibilidades exploradas

    no encerramento de O grande ditador e que caracterizam este filme.

    Entretanto, at 1925 as acepes a respeito do cinema ainda tentavam defini-lo e

    atribuir-lhe autonomia do ponto de vista esttico, diferenciando-o principalmente do teatro,

    a sua singularidade em relao a outras artes e o uso do seu aparato tcnico; e mesmo aps

    1925 permanecia o debate37. Tal informao importante porque permite identificar a

    discusso entre Chaplin e seus interlocutores no cinema, cada qual tentando situ-lo da

    forma que considerasse mais acertada. Chaplin classificou o cinema como uma arte

    pictrica, mas com a evoluo tcnica posterior a 1925 no pde deixar de fazer filmes

    sonoros (ainda que os fizesse da sua maneira e mais de dez anos depois de seu

    surgimento), pois estava organicamente envolvido nas tenses de seu grupo de ofcio.

    Quanto ao humanismo de Jacques Maritain foram relacionados brevemente a sua

    trajetria e aspectos gerais da sua filosofia para situar a oposio que ele prope aos abusos

    ocorridos contra a pessoa humana, a comear pela prpria definio deste conceito

    efetuada por ele. Conforme Maritain afirmou:

    O homem um indivduo que se sustenta e se reconduz pela inteligncia e pela vontade; no existe apenas de maneira fsica, h nele uma existncia mais rica e mais elevada, que o faz superexistir espiritualmente em conhecimento e amor. assim de algum modo um todo, e no somente uma parte, em si mesmo um universo, um micro-cosmo, no qual o grande

    37 ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introduo, p. 22.

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  • universo pode dar-se livremente a seres que so como outras tantas encarnaes de si prprio. impossvel encontrar equivalente dessa relao por todo o universo. (...) Asseverar que o homem uma pessoa, quer dizer que no fundo de seu ser ele um todo maior que a parte, e mais independente que um servo. (Maritain 1943:16-17)

    Assim, o autor conclui que cada um de ns possuidor de tal grandeza que

    transcende aquilo que somos para a sociedade e nos faz indivduos com aspiraes e

    conflitos individuais. Contudo, prope ele que a sociedade deve voltar-se para os homens e

    mulheres em seus objetivos, beneficiando-os na medida em que busca de um bem humano

    que prprio para o todo da sociedade.

    A sociedade um todo cujas partes so em si mesmas outros todos, e um organismo feito de liberdades, no de simples clulas vegetativas. Visa um bem que lhe prprio e tambm uma obra, distintos do bem e da obra dos indivduos que a compem. Bem e obra estes, porm, so e devem ser por essncia humanos, e por conseguinte pervertem-se caso no contribuam para o desenvolvimento e o aperfeioamento das pessoas humanas. (Maritain 1943:19-20)

    Todavia, Maritain manifestou-se por esta via contra a exigncia de submisso dos

    indivduos ao Estado proposta pelos governos autoritrios e noo de seres humanos

    diminudos diante da grandeza da nao, tomados como engrenagens de um sistema

    socialmente compartilhado que precisa funcionar a qualquer custo, noo esta que foi

    contemplada por democracias capitalistas no perodo abordado, principalmente ao

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  • considerarmos a prtica comum dos pases de estimularem o sentimento patritico de seus

    soldados para que eles se proponham a morrer pela nao.

    Outro fator importante que considerado na anlise a referncia constante nos

    escritos de Maritain ao espao e tempo e ao decorrer dos eventos e do pensamento

    humanista desenvolvendo-se conforme o percurso histrico.

    Tambm neste sentido, o embasamento terico dentro da filosofia do direito que

    permitiu analisar a Declarao Universal dos Direitos Humanos partiu de alguns

    referenciais especficos que o relacionam conforme a Histria. Deste modo, podemos

    salientar que:

    Os fatos que compem a filosofia esto entrelaados com a histria da humanidade, com os seus sentimentos, com as suas relaes de amor, prazer, dio, riso, choro, misria, guerras, despotismo, poder, violncia... Como seria possvel filosofar ou entender um filsofo sem conhecer as mltiplas vises dos homens, ao longo da histria da humanidade, sobre relaes desta natureza? (Oliveira 1996:14)

    Logo, o direito e a sua discusso acerca da filosofia encaminharam reflexes que

    perfizeram o caminho da histria. Tal percepo do direito e da filosofia articulados no

    tempo foi uma das balizas do percurso de pesquisa, elaborado no campo da Histria.

    Tratou-se, todavia, de uma anlise da significao social dos postulados de

    Maritain e da Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948), naturalmente tendo em

    vista uma noo de espao e tempo, levando em conta, conforme elucidou Warat, que Na

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  • verdade, as linguagens no se esgotam nas informaes transmitidas, pois elas

    engendram uma srie de ressonncias significativas e normalizadoras das prticas

    sociais.38

    Por esse prisma, significa avaliar como os postulados de Maritain estiveram

    vinculados filosofia crist, referenciando ainda um determinado pensamento jurdico.

    Defendendo o direito natural39 e, sobretudo, os direitos humanos, dos quais a referida

    Declarao de 1948 constitui uma espcie de divisor de guas, ele props uma forma de

    organizao dos sistemas polticos, apontando suas falhas e contribuies para uma

    sociedade mais humana segundo a sua filosofia concebia.

    Quanto linguagem jurdica, sua anlise e problemtica, tambm temos o

    mbito da cultura e do ambiente social que a compuseram. Assim, podemos definir uma

    forma de anlise e de compreenso de seus postulados endgena, ou seja, percebendo o

    direito voltado para si mesmo e, contraditoriamente, integrado na sociedade. Contudo, a

    integrao na sociedade se faz mediante as proposies de um contexto, de modo que o

    jurista visto dessa maneira est voltado para si mesmo e para a sua compreenso do que

    ou deveria ser a vida em sociedade e a sua regulamentao, deixando de lado o interesse

    de diversas camadas da sociedade, sua complexidade e diversidade.

    Trata-se, portanto, da seguinte problemtica:

    38 Warat, Luis Alberto. O direito e sua linguagem, p. 15.39 Para Maritain o direito natural aquele conjunto de direitos no escritos e que todos ns temos, cujos cdigos escritos devem respeitar e proferir de forma objetiva.

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  • Observando a maneira como a cultura juridicista resolve as questes lingsticas do direito, percebe-se que ela amarra as suas crenas e representaes ideolgicas a partir de um postulado que poderamos denominar egocentrismo textual. Ou seja, um princpio que internaliza nos juristas a idia de que as significaes veiculizadas pela lei esgotam-se e determinam-se em sua prpria textualidade. (Warat 1984:32)

    Em outras palavras, segundo o autor convencionou-se no meio jurdico tratar a

    lei, o seu texto como domnio restrito dos juristas obedecendo, portanto, sobretudo

    compreenso de mundo deste grupo de ofcio, suas crenas e suposies acerca da

    realidade, bem como a uma forma especfica de expressar os seus postulados endgenos, j

    comum em sua cultura. Assim, para os juristas, a resoluo das questes lingsticas se

    tornaria muito simples, resumindo-se na assertiva dogmtica de que deve ser seguido o que

    posto no texto legal, deixando deste modo a responsabilidade do texto ao prprio texto

    jurdico.

    Para Warat, tal determinao jurdico-cultural resolve-se nos seguintes termos:

    No se pode fazer cincia social ou jurdica sem sentido histrico, sem nenhum compromisso direto com as condies materiais da sociedade e com os processos mediante os quais os sujeitos sociais so dominados e coisificados. (Warat 1984:47)

    Deste modo, a forma textual, a linguagem jurdica e as suas orientaes devem

    respeitar e dirigirem-se s demandas da sociedade num certo espao-tempo, o que lhe

    atribu no apenas um sentido jurdico pertinente, portanto, apenas histria da cincia

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  • jurdica mas tambm um sentido histrico que lhe correlato. Para o autor, no existe

    cincia jurdica apartada do conhecimento histrico social.

    Entretanto, cabe do ponto de vista metodolgico reconhecer a que parte da cultura

    jurdica os direitos humanos pertencem e esmiuar as suas preocupaes ao longo de seu

    percurso histrico recente. Assim, ao analisar a Declarao Universal dos Direitos

    Humanos e as tenses polticas, econmicas e sociais que a orientaram na conjuntura

    internacional em que ela foi elaborada, importante considerar a cultura jurdica que lhe

    foi compatvel. seguro afirmar que a cultura jurdica que engendrou a Declarao se

    norteou nas demandas constitudas histrica e internacionalmente na primeira metade do

    sculo XX, especialmente com a deflagrao de duas guerras mundiais.

    A fim de atender a tal perspectiva de anlise e permitir o entendimento do texto

    da Declarao, foi preciso esquadrinhar alguns dos principais momentos da discusso

    sobre direitos humanos, traando resumidamente a sua trajetria.

    Traando brevemente a sua gnese, temos que ao ser elaborada dentro do campo

    jurdico e filosfico e no contexto do ps Segunda Guerra Mundial, a Declarao precisou

    propor (ou ao menos tentar propor) a interao de antigos inimigos de guerra e diferentes

    culturas e religies, alm de buscar amenizar o mximo possvel as contradies polticas

    entre os blocos socialista e liberal, o que no foi conseguido a contento de todos os

    envolvidos. A Assemblia Geral da ONU aprovou a Declarao com 48 votos a favor,

    porm com as abstenes da Polnia, Ucrnia, Iugoslvia, Unio Sovitica, Bielo-Rssia,

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  • Tchecoslovquia, frica do Sul e Arbia Saudita. Entre estes oito pases, os motivos de

    absteno variaram: segundo os pases socialistas a Declarao no contemplou de maneira

    satisfatria os direitos sociais, econmicos e culturais; a Arbia reclamou a ausncia dos

    princpios mulumanos e a frica do Sul defendeu a poltica racista do apartheid.40

    Entre os redatores da Declarao Universal dos Direitos Humanos promulgada

    em 10 de dezembro de 1948 em Paris estavam a norte-americana Eleanor Roosevelt (viva

    do ex-presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt, que morreu em 1945), junto de

    uma comisso que incluiu Charles Malik do Lbano, P. C. Chang da China, o canadense

    John Humphrey, o sovitico Bogmolov, o brasileiro Austregsilo de Athayde, o

    embaixador da Frana Jacques Maritain e o jurista francs Ren Cassin, entre outros. O

    filsofo humanista Jacques Maritain teria dado a sua contribuio Organizao das

    Naes Unidas (ONU), sendo encarregado pela Unesco de consultar as correntes

    intelectuais de todo o mundo para discutir o teor da Declarao.41

    Assim como o prprio conceito de direitos humanos, a Declarao constituiu o

    resultado de uma evoluo dos pensamentos filosfico, jurdico e poltico da humanidade,

    de modo que sua histria remonta a diversos movimentos sociais e polticos, correntes

    filosficas e doutrinas jurdicas bastante remotas.

    Para Silva:42

    40 DORNELLES, Joo Ricardo W. O que so direitos humanos. Editora Brasiliense, So Paulo, 1989, p. 40-41.41 PITTS, David. A nobre tarefa. Disponvel em: http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/1098/ijdp/noble.htm.

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  • Pelo que se v, no h propriamente uma inspirao das declaraes de direitos. Houve reivindicaes e lutas para conquistar os direitos nelas consubstanciados. E quando as condies materiais da sociedade propiciaram, elas surgiram, conjugando-se pois, condies objetivas e subjetivas para a sua formulao. (Silva 1990:155)

    Deste modo, podemos asseverar que as declaraes, especialmente a Declarao

    Universal dos Direitos Humanos, resultaram de um processo histrico em que estavam

    inseridos movimentos sociais e atores histricos diversos que atuaram em diferentes

    domnios da vida e do conhec