(in moses i. finley. aspectos da antiguidade. são paulo, martins fontes, 1991. p. 192-202.)

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Leia com atenção o texto do historiador inglês contemporâneo M.I. Finley sobre a escravidão na Antiguidade, baseado em relato de Aulo Caprélio Timótero, um mercador de escravos da época, e responda às questões propostas. Inevitavelmente, os gregos e romanos também tentaram justificar a escravião com base numa inferioridade natural dos escravos. A tentativa fracassou por diversas razões. Em primeiro lugar, havia uma minoria muito grande a quem tal teoria não se aplicava. Por exemplo, após derrotarem os cartigineses de Aníbal, os romanos voltaram-se para o leste e conquistaram o mundo grego, trazendo para a Itália centenas de milhares de prisioneiros no decorrer dos dois séculos seguintes. Esta invasão grega involuntária teve como um de seus efeitos uma verdadeira revolução cultural. "A Grécia cativa cativou seu rude conquistador", disse o poeta romano Horácio; e era evidentemente impossível aplicar a doutrina da inferioridade natural (que poderia até servir na caso dos germanos) a um povo que lhes fornecia a maior parte dos professores, e que introduziu a filosofia, o teatro e o que havia de melhor em escultura e arquitetura no seio de uma sociedade que anteriormente não demonstrara possuir virtudes voltadas para tais interesses. Em segundo lugar, a prática de libertar escravos como recompensa pelo serviço fiel era bastante disseminada na Antiguidade, ocorrendo com maior freqüência, talvez, no leito de morte. Não havia leis que regulamentassem a prática, mas podemos ter uma idéia das proporções que atingiu através de um dos decretos do primeiro imperador romano, Augusto. Ele tentou conter as libertações concedidas no leito de morte, provavelmente para proteger os direitos dos herdeiros; estabeleceu então uma escala móvel, segundo a qual nenhum homem poderia libertar mais que cem escravos em seu testamento. Após séculos de contínua alforria, quem poderia distinguir os "naturalmente superiores" dos "naturalmente inferiores" entre os habitantes dos cidades gregas e romanas (especialmente quando não havia nenhuma diferença na cor da pele)? [...] Os escravos, enquanto mercadoria, criavam problemas singulares para os comerciantes. Nas grandes cidades, ao que tudo indica, havia lojas que vendiam escravos: em Roma, na época de Nero, elas se concentravam nas imediações do templo do Castor, no Fórum. Mas eram a exceção. Não era possível ter sempre à mão, como uma mercadoria comum, um estoque de gladiadores, pedagogos, músicos, artesãos especializados, mineiros, crianças novas, mulheres para bordéis ou concubinato. O comércio de escravos sempre foi conduzido de forma especial, e o mundo antigo não foi exceção. Por um lado, havia os grandes mercados de

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Page 1: (In Moses I. Finley. Aspectos da Antiguidade. São Paulo, Martins Fontes, 1991. p. 192-202.)

Leia com atenção o texto do historiador inglês contemporâneo M.I. Finley sobre a escravidão na Antiguidade, baseado em relato de Aulo Caprélio Timótero, um mercador de escravos da época, e responda às questões propostas.

Inevitavelmente, os gregos e romanos também tentaram justificar a escravião com base numa inferioridade natural dos escravos. A tentativa fracassou por diversas razões. Em primeiro lugar, havia uma minoria muito grande a quem tal teoria não se aplicava. Por exemplo, após derrotarem os cartigineses de Aníbal, os romanos voltaram-se para o leste e conquistaram o mundo grego, trazendo para a Itália centenas de milhares de prisioneiros no decorrer dos dois séculos seguintes. Esta invasão grega involuntária teve como um de seus efeitos uma verdadeira revolução cultural. "A Grécia cativa cativou seu rude conquistador", disse o poeta romano Horácio; e era evidentemente impossível aplicar a doutrina da inferioridade natural (que poderia até servir na caso dos germanos) a um povo que lhes fornecia a maior parte dos professores, e que introduziu a filosofia, o teatro e o que havia de melhor em escultura e arquitetura no seio de uma sociedade que anteriormente não demonstrara possuir virtudes voltadas para tais interesses.

Em segundo lugar, a prática de libertar escravos como recompensa pelo serviço fiel era bastante disseminada na Antiguidade, ocorrendo com maior freqüência, talvez, no leito de morte. Não havia leis que regulamentassem a prática, mas podemos ter uma idéia das proporções que atingiu através de um dos decretos do primeiro imperador romano, Augusto. Ele tentou conter as libertações concedidas no leito de morte, provavelmente para proteger os direitos dos herdeiros; estabeleceu então uma escala móvel, segundo a qual nenhum homem poderia libertar mais que cem escravos em seu testamento. Após séculos de contínua alforria, quem poderia distinguir os "naturalmente superiores" dos "naturalmente inferiores" entre os habitantes dos cidades gregas e romanas (especialmente quando não havia nenhuma diferença na cor da pele)?

[...]Os escravos, enquanto mercadoria, criavam problemas singulares para os

comerciantes. Nas grandes cidades, ao que tudo indica, havia lojas que vendiam escravos: em Roma, na época de Nero, elas se concentravam nas imediações do templo do Castor, no Fórum. Mas eram a exceção. Não era possível ter sempre à mão, como uma mercadoria comum, um estoque de gladiadores, pedagogos, músicos, artesãos especializados, mineiros, crianças novas, mulheres para bordéis ou concubinato. O comércio de escravos sempre foi conduzido de forma especial, e o mundo antigo não foi exceção. Por um lado, havia os grandes mercados de escravos onde, provavelmente em datas prefixadas, negociantes e intermediários podiam encontrar grandes estoques à venda. Alguns centros localizavam-se nas cidades maiores, como Bizâncio, Éfeso ou Quios, mas havia mercados menores que também eram importantes, como Titoréia, na Grécia central, onde se realizava a cada seis meses uma grande venda de escravos por ocasião dos festivais em homenagem à deusa Ísis. Por outro lado, mercadores itinerantes levavam seus escravos onde quer que existissem consumidores em potencial: praças fortes, feiras interioranas, e muito mais.

A venda em si dava-se normalmente por meio de leilão. As únicas representações pictóricas ainda existentes estão, mais uma vez, em lápides funerárias, duas lápides, para sermos exatos - uma a Cápua e outra de Arles - , ostentando cenas substancialmente semelhantes. A lápide de Arles apresenta um escravo de pé sobre uma plataforma rotativa, enquanto um homem, possivelmente um comprador, levanta sua vestimenta revelando suas

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musculosas pernas e nádegas, e o braço estendido. Como observou o filósofo estóico Sêneca, "Quando se compra um cavalo, ordena-se que seu manto seja retirado; da mesma maneira, levanta-se as vestimentas do escravo". [...]

Nessa época, porém, a escravidão já estava em declínio, não como resultado de um movimento abolicionista, mas em conseqüência de mudanças sócio-econômicas complexas que substituíram o escravo-mercadoria e, em grande parte, o componês livre, por um outro tipo de trabalhador: o colonus, o adscriptus glebi, o servo. Os valores morais, os interesses econômicos e a ordem social não foram afetados por essas sutis mudanças na condição social da população submetida, tampouco desapareceu completamente a escravidão da Europa. Os problemas jurídicos criados pela existência de escravos tomaram mais espaço que qualquer outro tópico na codificação do imperador Justiniano no século VI A.D. Filósofos, moralistas, teólogos e juristas continuaram a disseminar uma variedade de fórmulas capazes de explicar, a eles e à sociedade em geral, como um homem podia ser um homem e um objeto a um só tempo. O mundo ocidental teve de esperar ainda mil e quinhentos anos depois de Sêneca para dar o passo final, ou seja, propor que a escravidão era tão imoral que devia ser abolida - e mais trezentos anos para que tal abolição se concretizase, pela força e pela violência.

(In Moses I. Finley. Aspectos da Antiguidade. São Paulo, Martins Fontes, 1991. p. 192-202.)

1. Por que muitas vezes as tentativas, tanto gregas como romanas, de justificar a escravidão pela inferioridade natural racial fracassou?

2. Procure analisar as características gerais do comércio escravo.

3. Segundo o autor, apesar de a escravidão entrar em declínio no final do Império Romano, dando lugar ao colonato, o que ocorreu no campo institucional, legal e moral? Discuta as razões desse descompasso.

...a escravidão, segundo Aristóteles

"Alguns pretendem que o poder do senhor é contra a natureza, que se um é escravo, e o outro livre, é porque a lei o quer, que pela natureza não há nenhuma diferença entre eles e que a servidão é obra não da justiça, mas da violência. A família, para ser completa deve compor-se de escravos e de indivíduos livres. Com efeito, a propriedade é uma parte integrante da família, pois sem os objetos de necessidade é impossível viver e viver bem. Não se saberia pois conceber lar sem certos instrumentos. Ora, entre os instrumentos, uns são inanimados, outros vivos...O escravo é um instrumento vivo. Se cada instrumento pudesse, por uma ordem dada ou pressentida, executar por si mesmo o seu trabalho, como as estátuas de Dédalo ou os tripés de Hefaístos, que, segundo Homero, dirigiam-se em marcha automática, às reuniões dos deuses, se as navetas tecessem sozinhas... então os

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chefes de família dispensariam os escravos... O escravo é uma propriedade que vive, um instrumento que é homem.