in memoriam
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literatices e rascunhos
11 DE DEZEMBRO DE 2014 · 02:42 | EDITAR
In Memoriam
Bruna Castelo Branco
“Tudo o que é imaginário tem, existe, é”, Estamira, 2005
Loucos somos nós.
Estamira Gomes de Souza morreu aos 70 anos, no dia 26 de novembro de 2011, depois de passar dois dias esperando
em uma fila de hospital ser atendida por uma infecção no braço. Logo, o quadro avançou para uma infecção
generalizada e Estamira foi a óbito diagnosticada com septicemia.
Decidi começar esse relato com a sua morte porque é o melhor retrato de como foram os seus 70 – curtos – anos:
solitária e esperando. A vida de Estamira pode ser caracterizada como um grande hiato: esperou Deus, que nunca
veio, esperou o amor de um marido por qual era apaixonada, esperou a compreensão da família – esperou à míngua.
Estamira foi estuprada pela primeira vez quando ainda era criança, por seu avô. Mais tarde, foi estrupada
novamente, enquanto ia para casa. No documentário dirigido por Marcos Prado e lançado em 2005, ela relatou o fato:
contou que gritou, chorou e chamou por Deus. Seu estuprador, muito esperto, apenas respondeu: ele não virá.
A partir desse dia, Estamira parou de acreditar em Deus.
Ainda muito jovem, casouse com um homem com quem teve o seu primeiro filho. O casal se separou e Estamira se
apaixonou por um italiano, com quem casou e teve duas filhas. Depois de algum tempo de casamento, o marido
passou a levar amigas para casa e desaparecer por dias. Estamira, obviamente, sempre soube aquelas mulheres eram
suas amantes. Mas, como mulher, e há 50 anos, o que poderia ser feito? A vergonha e humilhação de tomar uma
atitude eram bem piores do que aceitar uma amante aqui e outra ali. Estamira se calou.
Estamira se calou por tanto tempo que, quando resolveu começar a falar, foi chamada de psicótica. Já depois de
idosa, abandonada pelo marido italiano e pelos filhos, ela começou a trabalhar no aterro sanitário de Jardim
Gramacho, local que recebe os resíduos produzidos pela cidade do Rio de Janeiro. “Eu trabalho aqui porque gosto”
disse para as câmeras do documentário que levou o seu nome.
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Estamira no aterro sanitário de Jardim Gramacho, 2005
O aterro era a segunda casa de Estamira, por mais clichê que o termo “segunda casa” seja. Lá, ela tinha a companhia
que jamais sequer imaginou que poderia ter em casa. Os seus filhos lamentavam a loucura da mãe, “é preciso tirála
de lá, mas ela não quer sair”. O lixão era a sua principal válvula de escape.
Estamira também não gostava muito que questionassem a sua relação conflituosa com o Deus que, para ela, não
existe. “Deus está no seu cu?” perguntou ao neto, depois de tentar ensinála sobre a sua presença onipresente e
onipotente. “Deus nunca chegou”.
A idosa foi diagnosticada como portadora de distúrbios mentais e teve que tomar remédios durante muitos anos para
tratar o problema.
Estamira pode ter distúrbios mentais, mas eu sei que ela não é, e nunca foi louca. Ela não é louca por duvidar das
instituições criadas pelo ser humano e que falharam durante toda a sua vida – a igreja, a família, e Deus –. Ela não é
louca por preferir passar o tempo trabalhando em um aterro sanitário para evitar pensar em todas as tristezas
mórbidas – sim, mórbidas – pelas quais foi obrigada a passar. Ela não é louca revelar toda a sua história para os
ditos sensatos da sociedade. “Me trata com o seu trato, que eu te devolvo o seu trato”, disse ela, certa vez. Loucos
somos nós.
Estamira não é louca.
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