importÂncia das doenÇas reumÁticas. · sugerindo que são independentes da vontade,da...

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1.1 REUMATOLOGIA PRÁTICA IMPORTÂNCIA DAS DOENÇAS REUMÁTICAS. 1.

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1.1REUMATOLOGIA PRÁTICA

IMPORTÂNCIADAS DOENÇAS REUMÁTICAS.

1.

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Da satisfação de cuidar destes doentes.

AReumatologia é a especialidade médica que lida com a prevenção, o tratamento e a

reabilitação de doentes portadores de afecções articulares e músculo-esqueléticas,

incluindo as doenças difusas do tecido conjuntivo e excluindo apenas a traumatolo-

gia. As doenças reumáticas constituem o mais comum dos sofrimentos crónicos da espécie

humana, induzindo dor, sofrimento e incapacidade física. A sua prevalência é máxima entre os

idosos, mas todos os grupos etários podem ser afectados.

Estudos independentes indicam que 30% a 40% da população sofre, em cada momento, de

sinais e sintomas músculo-esqueléticos, como dor, tumefacção ou limitação de mobilidade.

A maioria das pessoas com mais de 70 anos de idade tem sintomas reumatismais crónicos ou

recorrentes.

Estudos realizados em Portugal e noutros países demonstram que cerca de um quarto de

todas as consultas realizadas em Medicina Geral e Familiar é justificado por queixas múscu-

lo-esqueléticas e que estas estarão presentes em cerca de 40% de todos os doentes que fre-

quentam estas consultas.

As doenças reumatismais representam a principal causa de incapacidade para o trabalho e

de reforma antecipada, facto que acresce, sobremaneira, a sua importância social e económi-

ca. Incluem mais de 150 entidades nosológicas diferentes, cada uma dotada de patogenia, clí-

nica, terapêutica e prognóstico diversos. A identificação criteriosa de cada entidade e das suas

variações em cada paciente constitui uma condição indispensável ao sucesso terapêutico.

O Médico tem hoje à sua disposição uma ampla variedade de meios terapêuticos que, apli-

cados com critério, garantem, na esmagadora maioria dos doentes, um impacto extrema-

mente positivo não só no alívio das dores e do sofrimento, mas também na preservação da

estrutura e da função articular a longo prazo. É certo que raramente as doenças reumáticas têm

cura definitiva, mas todas têm tratamento útil e eficaz. Esta é, aliás, uma característica comum

a todas as áreas da Medicina. Desde que bem informado, o médico que lida com doentes reu-

máticos pode estar certo de oferecer ao seu doente um contributo decisivo tanto para a dura-

ção como para a qualidade de vida, objectivos maiores do exercício da Medicina. O reconhe-

cimento pelos doentes do benefício da intervenção médica constitui uma enorme fonte de rea-

lização profissional, sentida por todos os que se dedicam a esta patologia.

Importa, por isso, afastar do léxico médico e popular o termo “reumatismo”, não só porque

é portador de uma noção generalista e imprecisa do conhecimento médico nesta área, mas

sobretudo porque lhe está associado um conceito fatalista de sofrimento e progressão inape-

lável, que em nada corresponde à verdade actual. Assim, sugere-se que as várias entidades ante-

riormente englobadas sob a designação comum de reumatismo sejam designadas no seu con-

junto como doenças reumáticas, o que tem a vantagem de relembrar que se trata de várias

doenças e não de uma única entidade.

A satisfação profissional em estudar e oferecer bons cuidados aos doentes reumáticos resul-

ta ainda da própria natureza desta área da patologia. A sua abordagem é essencialmente clí-

nica e é na capacidade clínica do médico, no seu rigor e no detalhe semiológico que reside o

REUMATOLOGIA PRÁTICA1.2

1. IMPORTÂNCIA DAS DOENÇAS REUMÁTICAS.

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segredo do diagnóstico certeiro, base para uma terapêutica altamente compensadora. Os exa-

mes complementares são, aqui, meramente subsidiários ao saber do Médico que, assim, domi-

na o exercício da sua arte. As doenças reumáticas são, com frequência, de natureza multissis-

témica, podendo envolver praticamente todos os órgãos e sistemas. O médico que dedica espe-

cial atenção a esta patologia não tem, por isso, de abandonar (nem pode) o gosto pela apre-

ciação global do doente e pelo raciocínio fisiopatológico, que constitui a motivação maior

dos que amam realmente a Medicina. Não pode, nem deve, abandonar o interesse humanitá-

rio pela pessoa doente, tendo em conta a sua situação patológica, mas sobretudo o impacto

da doença na sua capacidade de usufruir da vida.

Finalmente, a Reumatologia tem assistido nos últimos anos a um extraordinário progres-

so no conhecimento científico das bases etiopatogénicas das doenças reumáticas, com rami-

ficações que vão da regulação do metabolismo ósseo e energético à imunologia e à genética

mais avançadas. O Médico pode aqui encontrar uma excepcional oportunidade para exerci-

tar a sua curiosidade científica, o gosto pela técnica, pela investigação e pelo saber molecular

mais avançado, sem perder de vista o doente concreto.

1.3REUMATOLOGIA PRÁTICA

1. IMPORTÂNCIA DAS DOENÇAS REUMÁTICAS.

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2.1REUMATOLOGIA PRÁTICA

DOR, DOENÇA E SOFRIMENTO.UMA PERSPECTIVA INTEGRADA.

2.

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As doenças reumatismais oferecem um modelo ideal para estabelecer as diferenças entre

doença (a anomalia biológica ou estrutural evidenciável – disease) e o impacto global

que esta tem sobre o doente (illness).

Num extremo, poderemos considerar o doente com fibromialgia, descrevendo dores violentas,

incapacitantes e contínuas para as quais não há substrato patológico, num contexto de ansie-

dade e desadaptação social. No outro, o doente com artrite reumatóide evoluída, com des-

truição maciça das articulações, incapacidade funcional notória, que mantém, mercê de uma

boa adaptação ao seu estado, boa qualidade de vida.

A doença dos dois não tem comparação, quer na sua natureza, quer na sua intensidade.

O sofrimento, ao contrário da doença, parece muito maior no doente fibromiálgico. Poderá

o Médico separar estes dois aspectos e empenhar-se apenas num deles?

A ESPECIFICIDADE SEMIOLÓGICA DA DOR.

A dor constitui o sintoma dominante nas doenças reumáticas. Representa não só a maior causa de

sofrimento e, logo, da procura de apoio médico, mas também a principal chave para o diagnós-

tico. A semiologia da dor é absolutamente nuclear à estratégia diagnóstica em Reumatologia.

Parecendo, à partida, um sintoma monótono e pouco passível de exploração fina, veremos que,

bem apreciada, apresenta variações finas de inestimável valor diagnóstico.

Trata-se, contudo, de uma manifestação exclusivamente subjectiva, apreciável em todas as

suas dimensões apenas por quem a experimenta, inacessível a verificação objectiva e a quan-

tificação. A expressão verbal da dor, indispensável naturalmente ao processo clínico, depende

de variadíssimos factores, incluindo o nível cultural, a riqueza de vocabulário e a facilidade

de expressão de quem a sofre.

Para um mesmo indivíduo, há dores mais facilmente descritíveis do que outras, como será da

experiência de quase todos nós. Acresce que, por mecanismos biológicos bem esclarecidos, a dor

crónica, inicialmente conduzida por vias nociceptivas específicas da localização de origem, tende,

com o tempo, a tornar-se mais difusa, alargada e imprecisa. Este processo deve-se a mecanismos

de amplificação a nível medular, que levam a que zonas periféricas à lesão orgânica se tornem, com

o tempo, origem adicional de estímulos nociceptivos, percebidos como dor onde não existe alte-

ração física detectável. Estes processos estão bem demonstrados em animais de experimentação,

sugerindo que são independentes da vontade, da personalidade e das emoções do sujeito. Assim,

quando o doente reumático tem dificuldade em precisar a localização das suas dores, está, com

toda a probabilidade, a fazer a descrição possível do que efectivamente sente!

Aspectos psicológicos, nomeadamente emocionais, assumem aqui um papel decisivo. O esta-

do depressivo aumenta a intensidade percebida da dor e diminui a sua definição, já que o sofri-

mento doloroso é inseparável das suas implicações emocionais. Estas, por sua vez, estarão

dependentes de aspectos de personalidade, mas também das circunstâncias sociais do doen-

te (como o emprego, por exemplo) e ainda da interpretação que dá às suas dores, atribuin-

do-lhes significados mais ou menos perniciosos. É compreensível que uma lombalgia recente

REUMATOLOGIA PRÁTICA2.2

2. DOR, DOENÇA E SOFRIMENTO. UMA PERSPECTIVA INTEGRADA.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 2.2

2. DOR, DOENÇA E SOFRIMENTO. UMA PERSPECTIVA INTEGRADA.

corresponda a significações completamente distintas, consoante as experiências anteriores

dos doentes: por exemplo, um paciente cuja mãe sempre sofreu de lombalgia sem, no entan-

to, ter provocado qualquer limitação funcional, comparativamente a outro cujo pai faleceu de

neoplasia que, inicialmente, se manifestara através de lombalgia provocada por metástases.

Confrontados com dificuldades em apreciar a natureza e a intensidade da dor que o doen-

te nos descreve, importa ter também presente que o sistema de comunicação é extremamente

passível de erros: o doente tenta descrever uma experiência complexa, difusa e muitas vezes

indefinível, utilizando palavras que escolhe de entre as que conhece e influenciado pela sua cul-

tura, pelas suas emoções e pela sua experiência de vida. O Médico descodifica, utilizando a sua

cultura e o seu vocabulário, influenciado também, importa ter presente, pela sua própria per-

sonalidade e emoções. É já notável, nestas circunstâncias, que consigamos sequer comunicar!

Exigir precisão ao processo é utópico.

A semiologia da dor reumática exige, por tudo isto, metodologia segura e rigorosa, flexi-

bilidade, paciência, tempo e capacidade de integração biopsicossocial.

A DOR COMO EXPERIÊNCIA BIOPSICOSSOCIAL.

Enquanto centrado no diagnóstico músculo-esquelético causal, o Médico terá de procurar ava-

liar a natureza e a origem da dor de forma tão precisa e rigorosa quanto possível, despindo-a

das componentes emocionais que perturbam a sua descrição. Contudo, o objectivo do Médico

é compreender o seu doente como um todo e não apenas a sua doença orgânica. O propósito

final é melhorar o seu doente e a sua qualidade de vida, aliviar-lhe o sofrimento e não apenas

a dor orgânica ou a doença que a causa. Do sofrimento faz parte também, por exemplo, o medo

de perder o emprego, o prejuízo da independência, a fragilização dos sonhos e projectos pes-

soais, as dificuldades sexuais, etc., etc.

É o sofrimento e não a doença que traz o doente ao Médico!

A dor deve ser vista sempre como uma experiência biopsicossocial.

Cabe ao Médico apreciá-la como um todo, dando atenção equilibrada a todas as com-ponentes. Desta forma, embora o Médico procure apreciar separadamente as compo-nentes orgânicas e psicológicas da dor, para melhorar a sua eficácia diagnóstica e tera-pêutica, não pode deixar de as considerar como partes integrantes de um mesmo pro-cesso, igualmente relevantes e dignas de atenção e cuidado, porque ambas constituema base do sofrimento que procura diminuir.

É fundamental afastarmos a noção de que nos cabe apenas a vertente orgânica da dor, como

se os aspectos emocionais não passassem de uma manipulação mais ou menos voluntária e

consciente do doente.

2.3REUMATOLOGIA PRÁTICA

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 2.3

Porque a cultura médica e geral dominante pode tornar este conceito algo difícil de assi-

milar, sublinhamos que está cientificamente estabelecida uma variedade de mecanismos, tão

biológicos e “orgânicos”, como o metabolismo da glucose, que explicam a relação intrínseca

entre estas diversas dimensões da experiência dolorosa, retirando ao doente a suspeição que

a noção exclusivamente biológica acarreta.

OBJECTIVOS DO DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO.

Os objectivos últimos do médico perante um doente reumático poderão resumir-se da seguin-

te forma:

a) aliviar a dor e o sofrimento;

b) preservar a função;

c) prolongar a vida.

Nada distingue estes objectivos daqueles que deveremos ter em mente em todas as áreas

da Medicina. O objectivo do tratamento é a qualidade e a duração da vida, não a normalida-

de biológica a qualquer preço.

Tratamos a hipertensão arterial não porque é uma doença, mas sim porque constitui uma

ameaça à duração e à qualidade de vida do doente no futuro. Procurar, por todos os meios,

incluindo por exemplo o uso de corticosteróides, normalizar uma velocidade de sedimentação

elevada, sem causa aparente e sem sofrimento relevante, seria um erro grosseiro, orientado

pelas preocupações do médico e não pelos interesses do doente.

Todos os processos de diagnóstico e de terapêutica, incluindo a investigação clínica e com-

plementar, servem apenas como meios indispensáveis à prossecução daqueles objectivos: não

poderemos tratar eficaz e seguramente se não conhecermos exactamente o problema. Mas, por

outro lado, deveremos, em benefício do doente, restringir as nossas investigações ao que possa,

presumivelmente, ter impacto naqueles desideratos. São verdades de La Palisse, mas devem,

contudo, estar sempre presentes.

PARTICULARIDADES DA DOENÇA CRÓNICA.

Em geral, as doenças reumáticas são processos crónicos, de causa frequentemente desconhe-

cida, para as quais não existe cura. Salvo raras excepções, o doente terá de viver com a sua con-

dição durante o resto da sua vida. Na ausência de tratamento adequado, muitas destas doen-

ças decorrerão com dor e sofrimento acentuados, deformação progressiva, prejuízo das capa-

cidades de trabalho e de ganho, perturbação do relacionamento social, impacto psicológico por

vezes dramático, etc.

REUMATOLOGIA PRÁTICA2.4

2. DOR, DOENÇA E SOFRIMENTO. UMA PERSPECTIVA INTEGRADA.

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O processo, mesmo na fase inicial do diagnóstico, terá de ser perspectivado em todas estas

dimensões e a longo prazo. Teremos de aliviar o nosso doente tão rapidamente quanto possí-

vel, mas manter em mente os objectivos de sobrevida, qualidade de vida e preservação da estru-

tura e da função para os próximos 20, 30 ou mais anos.

Estes factos colocam sobre o médico e a relação “médico-doente” exigências particulares.

O sintoma dominante, a dor, é, desde logo, exigente. O doente tratado inadequadamente

tem dor, sofre e, justificadamente, exige medidas imediatas. Por outro lado, a preservação da

estrutura e da sobrevida impõe, com frequência, o recurso prolongado a medicamentos agressi-

vos, como citostáticos e corticosteróides que, sendo indispensáveis, acarretam, por si mes-

mos, riscos elevados de toxicidade potencialmente fatal. Este aspecto coloca sobre o médico

uma exigência de extremo critério na utilização dos recursos terapêuticos, tentando, a cada

momento, o difícil equilíbrio entre a maior eficácia e a máxima segurança e tolerabilidade.

Os conhecimentos científicos e a experiência que detenha serão decisivos.

A preservação da função e o alívio do sofrimento (no sentido lato da palavra) são os objec-

tivos primordiais, tomando primazia sobre a normalização biológica e a preservação estrutu-

ral, se incompatíveis. É fundamental, por exemplo, procurarmos preservar a estrutura articu-

lar porque a perda de movimento implica perda de função e de qualidade de vida. Contudo,

não se justificará fazer com que o doente corra os riscos de uma terapêutica ou cirurgia de

resultado incerto, se a função que exige de uma dada articulação não é significativamente

prejudicada pela doença.

É muito importante que estejamos atentos, em cada momento, à capacidade funcional do

doente e que tenhamos em conta o impacto que cada lesão tem para o mesmo, individualmente

considerado. Um derrame crónico e indolor do joelho poderá não perturbar demasiado um

trabalhador de escritório, mas representar um prejuízo decisivo para um modelo! O dedo míni-

mo poderá ser pouco relevante para o pedreiro, mas é essencial ao pianista. A subluxação da

interfalângica do primeiro dedo da mão tem muito mais impacto funcional do que a anqui-

lose das interfalângicas distais dos restantes dedos. Um pé deformado não carece de cirurgia se

não causa dor nem impede o doente de deambular.

As implicações sociais e pessoais da doença reumática, associadas ao seu carácter crónico,

determinam uma enorme sobrecarga e exigência psicológica sobre o doente. Para o com-

preendermos basta fazer o exercício de nos colocarmos no seu lugar por alguns segundos e ima-

ginar a limitação funcional, o prejuízo das capacidades de trabalho e de relacionamento social,

o espectro se não a realidade da deformação e da incapacidade e a morte dos sonhos de reali-

zação pessoal, que constituem um sofrimento extraordinário a somar à dor. Um doente con-

frontado com estas perspectivas, que tenderá a apreender sob o ponto de vista negativo, nem

que seja pela observação de doentes em fases mais avançadas da sua doença, dispensa um médi-

co pessimista, que descrê da eficácia do tratamento, que o proíbe de exercer, sem alternativa,

as actividades que aprecia, que lhe aponta o futuro com uma cadeira de rodas.

Tendo consciência destes aspectos, facilmente compreendemos que a doença reumática

exige especial cuidado na relação “médico-doente”, de forma a acomodar na abordagem clí-

nica e terapêutica os momentos de desalento e depressão, as necessidades sociais do doente, a

procura de focos alternativos de satisfação pessoal. É fundamental, neste contexto, que o médi-

co esteja atento ao estado psicológico do paciente e que o envolva de forma activa no seu próprio

2.5REUMATOLOGIA PRÁTICA

2. DOR, DOENÇA E SOFRIMENTO. UMA PERSPECTIVA INTEGRADA.

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tratamento. É decisivo promover o seu empenhamento em exercício físico adequado e na frui-

ção integral das capacidades restantes, ao invés do desalento pelas capacidades perdidas. É fun-

damental promover a distinção entre ter uma doença e ser doente. É imperioso ajudar o doen-

te a focar a sua atenção e energia nos resultados positivos do tratamento, não nas lesões irre-

cuperáveis, a procurar a máxima qualidade de vida possível apesar das limitações. Está clara-

mente demonstrado que a atitude psicológica do doente, a sua relação com a doença e as suas

limitações são decisivas no prognóstico a longo prazo, não só no que respeita à sua função e

qualidade de vida, mas também no que concerne à preservação da estrutura articular.

O médico atento não poderá deixar de evitar, a todo o custo, o pior dos efeitos secundários:

a iatrogenia da palavra.

REUMATOLOGIA PRÁTICA2.6

2. DOR, DOENÇA E SOFRIMENTO. UMA PERSPECTIVA INTEGRADA.

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3.1REUMATOLOGIA PRÁTICA

ESTRUTURA E FUNÇÃODO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.FISIOPATOLOGIA DA DOR REUMÁTICA.

3.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 3.1

Osistema músculo-esquelético tem por objectivo permitir e controlar o movimento, tão

importante à existência humana. Algumas partes do sistema são especializadas em ofe-

recer estrutura e suporte: ossos, articulações, cápsula e ligamentos. Outras estão mais

relacionadas com a função: movimento e o seu controlo. Incluem-se neste grupo os múscu-

los e tendões (que também contribuem para a estabilidade), bem como o sistema nervoso cen-

tral e periférico, servidos por uma miríade de receptores proprioceptivos e nociceptivos, que

permitem controlar a suavidade, a fluidez e a potência dos movimentos e ainda alertar para a

existência ou risco de lesão. A alteração significativa de qualquer destas componentes resulta-

rá, para além da indução de dor, em prejuízo da actividade normal nos âmbitos pessoal e social,

incluindo o trabalho, com consequente perda de qualidade de vida.

O movimento centra-se nas articulações. As associadas a maior amplitude de movimento são

denominadas diartroses ou articulações sinoviais. Nestas articulações, os topos ósseos estão reco-

bertos por cartilagem hialina, cujo papel consiste em facilitar o deslizamento e absorver o impac-

to mecânico entre os topos ósseos (figura 3.1.).

A cartilagem hialina é suportada por fibras de

colagénio e por uma trama de moléculas de

grandes dimensões em forma de nervura, os

proteoglicanos (figura 3.2.). A nervura central

é constituída por ácido hialurónico à qual se

ligam, como nervuras radiantes, moléculas de

proteoglicanos. Esta estrutura é fortemente

hidrófila, o que permite que a cartilagem fun-

cione como uma esponja: a água representa

60% a 80% do seu peso. A forma é mantida

pela força expansiva da água contida pela trama

molecular de proteoglicanos e colagénio.

Quando a cartilagem é sujeita a pressão, a água

é como que espremida para o espaço articular,

sendo reabsorvida pela cartilagem quando a

carga cessa ou diminui. Este movimento de

fluidos é essencial à nutrição da cartilagem, que

é desprovida de vasos sanguíneos.

As fibras de colagénio estão dispostas per-

pendicularmente à superfície. Nas camadas

mais superficiais da cartilagem, adoptam,

contudo, uma disposição paralela à superfí-

cie, aumentando assim a resistência mecâni-

ca à fricção e facilitando o deslizamento.

A matriz cartilagínea encerra ainda uma va-

riedade de outras moléculas com funções

variadas, tais como factores de crescimento e

enzimas proteolíticas envolvidas na renova-

ção do tecido. Dispersas nesta matriz estão

REUMATOLOGIA PRÁTICA3.2

3. ESTRUTURA E FUNÇÃO DO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.

EnteseTendão

Bainha tendinosa

Bolsa sinovial

Músculo

Osso

Cápsula articular

Cartilagem

Líquido sinovial

Membranasinovial

A B C

Figura 3.1. A articulação sinovial e as estruturas periarticulares.

Figura 3.2. Disposição, na cartilagem articular, das fibras de colagénio (A.), dos proteo-glicanos (B.) e dos condrócitos (C.).

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 3.2

as células especializadas da cartilagem, os condrócitos, que controlam a formação e a degra-

dação da matriz cartilaginosa.

Em algumas articulações, existem placas adicionais de cartilagem que dividem o espaço arti-

cular, quer parcial (meniscos) quer completamente (discos).

A cápsula é uma estrutura fibrosa que se insere nas epífises ósseas vizinhas, encerrando a

articulação e contribuindo para a sua contenção mecânica. A sua face interior é revestida pela

membrana sinovial, composta, em condições de normalidade, por duas a três camadas de célu-

las, com um total de 20 �m a 30 �m de espessura. Esta última tem duas funções essenciais, cor-

respondentes a dois tipos de células residentes.

a) Secreção do líquido sinovial, dotado de alta viscosidade, que é fundamental na lubrifica-

ção e nutrição da cartilagem. Esta função cabe essencialmente ao sinoviócito de tipo B, de

linha fibrocítica. A composição do líquido sinovial depende também das trocas contínuas

com o sangue e a cartilagem, sendo profundamente alterada na presença de inflamação.

b) Remoção de detritos e material estranho. Esta actividade depende essencialmente dos

sinoviócitos de tipo A, de linha macrofágica. Estes macrófagos derivam dos monócitos

circulantes e são, em grande medida, responsáveis pela participação da articulação nos

processos sistémicos, nomeadamente imunológicos, já que funcionam como células

imunocompetentes e apresentadoras de antigénio. A sinovial é dotada de uma grande

quantidade de capilares fenestrados, que facilitam a permuta de células e moléculas entre

a articulação e o sangue.

Em processos inflamatórios, a sinovial prolifera abundantemente, aumentando o número de

camadas celulares e a variedade de células presentes. Em algumas doenças inflamatórias ganha

capacidade invasiva, pela constituição de um tecido destrutivo, o pannus, que promove a reab-

sorção focalizada do osso adjacente, traduzida por lesões apreciáveis radiologicamente (erosões).

A secreção de líquido sinovial aumenta, dando origem a derrame articular, alterando-se a com-

posição e as características físicas do líquido sinovial. Mediadores inflamatórios e factores de

crescimento presentes no líquido sinovial inflamatório alteram o metabolismo da cartilagem,

promovendo a sua destruição, aspecto traduzido radiologicamente por perda de espaço arti-

cular. O espessamento sinovial, o aumento de temperatura e a acumulação de líquido sinovial

constituem indícios de processo inflamatório que podemos apreciar clinicamente.

A presença de derrame articular determina aumento da pressão dentro da articulação.

Com a flexão, a pressão pode exceder a dos capilares sinoviais, levando a ciclos de isquemia

– recirculação. Estas são as condições ideais para a formação de radicais livres de oxigénio,

que agravam o processo inflamatório e aumentam a sua capacidade destrutiva sobre o osso

e a cartilagem. Por esse motivo, uma articulação agudamente inflamada e com derrame deve

ser posta em repouso.

Os ligamentos são constituídos por bandas fibrosas que se inserem nos ossos articulados,

mantendo a congruência articular e impedindo movimento excessivo que poderia resultar em

luxação. Podem constituir estruturas anatomicamente independentes ou ser representados ape-

nas por áreas espessadas da cápsula. O local de inserção firme de estruturas fibrosas (liga-

mentos, tendões e cápsula) no periósteo e no osso é designado por entese. Estas estruturas

são afectadas algumas vezes por processo inflamatório, entesite, que pode surgir isolada-

3.3REUMATOLOGIA PRÁTICA

3. ESTRUTURA E FUNÇÃO DO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 3.3

mente ou fazer parte de um contexto de doença mais generalizada. O exemplo maior desta

última circunstância é o das espondilartropatias seronegativas, que têm, na entesopatia, uma

das suas manifestações mais características (vd. capítulo 24).

As bolsas serosas são sacos preenchidos de líquido que facilitam o deslizamento suave das

estruturas periarticulares. Estão “estrategicamente” localizadas em locais de fricção entre osso e

tecido subcutâneo (são exemplos a bolsa serosa olecraniana e a bolsa serosa pré-patelar) ou entre

ossos e músculos ou tendões (como, por exemplo, a bolsa serosa subacrómio-deltóidea). Na rea-

lidade, localizam-se nestes locais porque a fricção está na origem do seu desenvolvimento. Isto

justifica que algumas pessoas apresentem bolsas serosas adicionais, sobre a 1.ª articulação meta-

tarso-falângica, por exemplo.

As bolsas serosas são revestidas por tecido semelhante à membrana sinovial, mas sem mem-

brana basal. São sede frequente de processo inflamatório, que pode ser meramente local (em

consequência de traumatismo repetitivo, por exemplo) ou, pelo contrário, tradução local de

doença sistémica.

Os músculos, inseridos em pontos opostos da articulação, determinam o seu movimento.

Note-se que o controlo fino de movimento exige a contracção dos músculos agonistas e o rela-

xamento controlado dos antagonistas. A actuação finamente concertada destes músculos é

indispensável ao controlo adequado, quer da força, quer do grau e leveza do movimento. Este

controlo exige a intervenção de complexos mecanismos de propriocepção, que dependem de

mecanorreceptores dispersos nas estruturas articulares e periarticulares (figura 3.3.). O conhe-

cimento anatómico dos pontos de inserção de um músculo permite prever quais os movi-

mentos em que intervém como agonista e antagonista, bem como a amplitude desses movi-

mentos, facilitando a análise semiológica e complementar de cada caso clínico.

REUMATOLOGIA PRÁTICA3.4

3. ESTRUTURA E FUNÇÃO DO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.

Nervo periférico

Nervo motor eferente

Aferentes de músculos,tendões, ligamentos, pele...

Figura 3.3.Controlo neuromusculardo movimento.

cap 1_4.qxd 9/19/05 11:34 AM Page 3.4

Os tendões são a âncora do músculo ao osso. Muitos tendões, particularmente os que têm

maior amplitude de movimento, são rodeados por uma bainha sinovial, semelhante à cápsula e

membrana sinovial articular, que permite o deslizamento suave do tendão sobre as estruturas

adjacentes. Estas bainhas sinoviais são sede frequente de processo inflamatório (tenosinovite).

A amplitude e tipo de movimentos, bem como a estabilidade de cada articulação sinovial,

varia de acordo com:

• a forma das superfícies articulares [uma tróclea, como, por exemplo, a articulação úmero-

ulnar, apenas permite movimento de flexão/extensão, enquanto que as enartroses (“ball

and socket joint”), como a articulação escápulo-umeral, são dotadas de movimentos em

múltiplas direcções];

• a integridade da estrutura articular (figura 3.4.);

• a força e distensibilidade da cápsula (por este motivo, cápsula e sinovial são mais laxas na super-

fícies de extensão das articulações, onde constituem fundos de saco em que se acumula prefe-

rencialmente o líquido sinovial em excesso)1;

• a integridade, a distensibilidade e a localização dos ligamentos (uma ruptura de ligamentos

resulta em instabilidade articular, que facilita a ocorrência de luxação; os portadores de sín-

droma de hipermobilidade têm dores recorrentes relacionadas com episódios de subluxação);

• os músculos que actuam sobre a articulação;

• a presença, a maleabilidade e o volume de estruturas adjacentes (um tofo gotoso na vizi-

nhança ou a esclerose cutânea acentuada podem limitar o movimento articular);

• a idade (de uma maneira geral, a amplitude de movimentos diminui progressivamente

com a idade; esta variação não é facilmente quantificável e a sua valorização depende da

experiência do observador e da comparação sistemática com os movimentos do lado

oposto, sempre que aplicável).

3.5REUMATOLOGIA PRÁTICA

3. ESTRUTURA E FUNÇÃO DO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.

Figura 3.4.Alterações grosseiras da estruturaarticular resultam em limitação damobilidade. A radiografia do joelhodireito mostra perda de espaço arti-cular e osteófitos volumosos.

1Algumas articulações, como as sin-desmoses (são exemplos as sacroilía-cas e a sínfise púbica) e as sincon-droses (são exemplos as articulaçõesentre os corpos vertebrais), são do-tadas de muito pouco movimentoporque os topos ósseos estão forte-mente ligados. As últimas podemtambém, ainda que raramente, serenvolvidas por processo inflamató-rio ou degenerativo.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 3.5

Mantenhamos presente na abordagem semiológica de cada estrutura articular que a exe-

cução de um movimento completo e suave exige a integração de uma multiplicidade de estru-

turas e processos – do sistema nervoso central à articulação. O movimento pode ser prejudi-

cado por anomalias em qualquer dos elementos intervenientes.

Descubra você mesmo.

Faça uma lista das condições necessárias para que um doente execute umaordem verbal no sentido de flectir completamente o indicador da mão direita.

• Que não tenha lesão do sistema nervoso central que impeça a geração e trans-missão do impulso eléctrico ao sistema nervoso periférico.

• Que os nervos motores, condutores da ordem ao músculo efector, estejam funcionantes.

• Que o músculo esteja funcionante.

• Que os tendões dos flexores e respectivas enteses estejam íntegros (que não hajaruptura, por exemplo).

• Que não haja aderência dos tendões (flexor ou extensor) às estruturas vizinhas (porexemplo, a tenosinovial).

• Que a cápsula, os ligamentos e a pele sejam distensíveis.

• Que os topos ósseos não estejam deformados, a ponto de bloquear o movimento.

E ainda…

• Que ouça a ordem.

• Que a compreenda.

• Que tenha vontade de a executar.

Lesões significativas em qualquer destas estruturas e processos levarão à incapacidade de

fazer o movimento completo. Só o estudo semiológico apurado poderá permitir o diagnósti-

co causal preciso e a terapêutica mais adequada.

A leveza do movimento depende também destes factores, mas faz ainda intervir o contro-

lo adequado dos músculos antagonistas e o respectivo comando nervoso, bem como a inte-

gridade do sistema proprioceptivo que permite ao doente saber, em cada momento, a posi-

ção da articulação, a resistência e a força necessária (figura 3.3.).

Eis que se confirma o dito segundo o qual nada há tão simples em Medicina que não pos-

samos complicar! É óbvio, contudo, que a compreensão destes processos a um nível suficien-

te para permitir uma avaliação clínica criteriosa é facilmente acessível, se não intuitiva, ao

iniciado em Medicina. Importa é que os mantenhamos presentes no raciocínio clínico.

REUMATOLOGIA PRÁTICA3.6

3. ESTRUTURA E FUNÇÃO DO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 3.6

FISIOPATOLOGIA DA DOR REUMÁTICA.

A dor resulta da estimulação de terminais nervosos ditos nociceptivos. Estes terminais estão

dispersos, com densidade variável, por quase todos os tecidos periarticulares: cápsula, liga-

mentos, tendões, osso, periósteo, bolsas serosas, bolas adiposas e músculos. Não existem, con-

tudo, na sinovial nem na cartilagem. Assim, a dor derivada de um processo articular resulta da

activação dos terminais existentes na cápsula e nas estruturas vizinhas.

Em termos gerais, podemos considerar dois tipos de receptores com propriedades nocicepti-

vas: o mecanorreceptor de alto limiar, que responde apenas a estímulos mecânicos fortes, e o recep-

tor polimodal, com uma resposta de largo espectro a estímulos químicos, térmicos e mecânicos.

Estes estímulos nociceptivos gerados perifericamente são conduzidos por fibras aferentes que

estabelecem sinapses na ponta posterior da medula. As suas ligações incluem circuitos ascenden-

tes para o tálamo e córtex, onde se procede à localização e estruturação cognitiva da experiência

dolorosa. Estabelecem também uma profusão de ligações de curto alcance, que fazem conexão

nervosa entre níveis adjacentes da medula e mesmo com a ponta posterior contralateral.

Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se trata de um mero sistema de con-

dução, à semelhança de uma instalação eléctrica. Diversos níveis do sistema são capazes de

modulação da resposta à dor, antes mesmo da sua consciencialização.

Mais importante na matéria que nos ocupa é considerarmos alguns mecanismos de ampli-

ficação dolorosa, que justificam que a dor ultrapasse o que parece biologicamente explicável.

Amplificação periférica.Muitos dos mediadores libertados aquando de processos inflamatórios actuam, a nível arti-

cular, como sensibilizadores dos terminais nervosos. Na presença de concentrações elevadas de

prostaglandinas, de citocinas ou de outros produtos inflamatórios, o limiar de estimulação des-

tes terminais é francamente diminuído (hiperalgesia). Desta forma, estímulos habitualmente

proprioceptivos, normais, passam a ser sentidos pelo doente como estímulos nociceptivos, isto

é, dolorosos (alodinia). Isto justifica que um pequeno movimento ou a simples palpação de

uma articulação inflamada despertem dor. Da mesma forma, fenómenos inflamatórios sub-

clínicos podem estar presentes em condições tipicamente mecânicas ou degenerativas, justi-

ficando episódios de exacerbação da dor, de outra forma, incompreensíveis. É o que sucede nos

surtos inflamatórios da artrose ou na inflamação que rodeia uma raiz nervosa comprimida.

Estes mecanismos explicam, em parte, a eficácia analgésica dos anti-inflamatórios esterói-

des e não esteróides.

Amplificação medular.Quando um determinado nível da medula é estimulado de forma repetida e persistente por

impulsos nociceptivos, dá-se um fenómeno de hipersensibilização medular. Como consequên-

cia deste processo, os níveis medulares adjacentes ficam hipersensíveis, passando a responder com

descargas nociceptivas (dolorosas) a estímulos previamente indolores. Experiências com estudos

de fibra nociceptiva única realizados em gatos demonstram que a inflamação crónica de uma arti-

culação conduz à hiperalgesia e à alodinia não só da estrutura afectada mas também, com o tempo,

das estruturas vizinhas e mesmo da articulação contralateral!

3.7REUMATOLOGIA PRÁTICA

3. ESTRUTURA E FUNÇÃO DO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 3.7

Este fenómeno ajudará a compreender o carácter difuso e impreciso que, com frequência,

os doentes reumáticos atribuem às suas dores. Os estudos acima referidos demonstram que o

fenómeno é real, estritamente neurofisiológico, sem envolvimento necessário de aspectos

psicológicos ou sociais, que facilmente somos tentados a invocar na clínica. Vários agentes neu-

romoduladores exercem os seus efeitos sobre a dor, actuando sobre a excitabilidade medular,

que é aumentada por prostaglandinas e óxido nítrico e diminuída por agonistas opióides e

alfa2-adrenérgicos. A eficácia analgésica de opióides, de alfa2-adrenérgicos e mesmo de anti-

-inflamatórios em administração intratecal sublinha a importância destes fenómenos.

Por outro lado, a eficácia analgésica de modalidades físicas simples de tratamento, como o

repouso de articulações inflamadas e a aplicação local de calor ou frio, poderá, assim, estar rela-

cionada com a diminuição da intensidade dos estímulos nociceptivos aferentes, logo da hiper-

sensibilização que lhe é consequente.

Os neurónios nociceptivos estabelecem também ligações medulares com neurónios motores

da ponta anterior. O objectivo consiste na protecção articular, explicando, por exemplo, as reac-

ções de retirada rápida, reflexa, de um membro exposto a queimadura ou a picada, ou os episó-

dios de falha articular súbita em situações de dor intensa. Em algumas circunstâncias, contudo,

um estímulo doloroso crónico conduz a contractura muscular prolongada, ou mesmo a espasmo,

que, sendo por sua vez, origem de dor, provoca um ciclo vicioso com cronicização do fenómeno

doloroso. Tais mecanismos justificam a eficácia terapêutica dos relaxantes musculares em mui-

tas situações de dor músculo-esquelética, bem como a analgesia alargada obtida com infiltração

anestésica de pontos musculares dolorosos (nódulos de Codman, por exemplo).

Modulação central.Um outro conjunto de projecções neuronais tem sentido descendente, baixando do cérebro

para estabelecer uma rede complexa de conexões sinápticas com os neurónios da medula, espe-

cialmente ao nível da ponta posterior. Estas conexões constituem a base para os importantes

efeitos moduladores, excitatórios e inibitórios, exercidos pelo sistema nervoso central na trans-

missão periférica da dor. Justificam, por exemplo, os efeitos analgésicos mediados por opiói-

des endógenos (tais como as endorfinas) libertados em condições de stress. Este sistema de

modulação descendente oferece a base anatómica e neuroquímica para a influência de facto-

res psicológicos na percepção da dor. Nele se fundamenta a eficácia demonstrada por exercí-

cios de relaxamento e outras modalidades de terapêutica “psicológica” no controlo da dor.

Contudo, e pese embora a sua extraordinária complexidade, o sistema de transmissão e pro-

cessamento neuronal de estímulos nociceptivos não esgota a fisiopatologia da dor. O cérebro

pode originar dor na ausência de estimulação dos nociceptores periféricos ou da medula. São

exemplos deste fenómeno a dor do membro fantasma ou a dor nos paraplégicos.

Parece, assim, existir no cérebro uma padronização ou “neuromatriz” capaz de, sobre uma

imagem do corpo, apor o conhecimento sensorial e patrocinar a interacção entre ambos. Esta

nova teoria, desenvolvida por Melzack, propõe que uma matriz neuronal geneticamente deter-

minada para todo o corpo produza os padrões característicos dos impulsos nervosos corporais

e a miríade de “qualidades” somatossensoriais que podemos sentir.

A ocorrência de lesão produz, além da dor, uma disrupção dos sistemas cerebrais de regu-

lação homeostática. Daqui resulta uma reacção de stress com activação de programas com-

REUMATOLOGIA PRÁTICA3.8

3. ESTRUTURA E FUNÇÃO DO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 3.8

plexos para reinstalar a homeostasia. A reacção de stress pode ser activada por lesão física,

biológica ou mesmo psicológica e integra mecanismos de resposta neuronal, hormonal e com-

portamental. Esses programas são seleccionados de um repertório geneticamente determina-

do sob influência da extensão e da gravidade da lesão. Em consequência, são libertados sequen-

cialmente citocinas, adrenalina, cortisol e opióides. Esta programação sofre influência de

uma miríade de factores, como hormonas sexuais, estado emocional, saúde geral, memória,

contexto cultural, etc.

Assim, a teoria da neuromatriz transporta-nos do conceito de dor como uma sensação pro-

duzida por lesão, inflamação ou outra patologia tecidular para um conceito de dor como

uma experiência multidimensional resultante de variadíssimas influências.

Projecções neuronais conectadas com o sistema nociceptivo aferente estabelecem ligação

com secções do córtex límbico envolvidas na integração de sensações, na cognição, na afecti-

vidade e na selecção de resposta. A desaferenciação destas estruturas não elimina a dor cróni-

ca, mas diminui de forma considerável o seu carácter desagradável, isto é, o sofrimento.

Estudos recentes com tomografia de emissão de positrões e RMN funcional vieram ajudar a

compreender estes mecanismos centrais. Esta metodologia permitiu demonstrar que os doentes

reumatóides têm uma diminuição considerável da resposta límbica e frontal aos estímulos dolo-

rosos, sugerindo uma adaptação da resposta emocional/cognitiva à dor crónica. Pelo contrário,

os doentes com fibromialgia apresentam forte activação dos centros límbicos e frontais perante

uma experiência dolorosa. A simples expectativa e sugestão a que o doente é exposto podem alte-

rar estes mecanismos biológicos. Num estudo recente com estudantes universitários, de quem

esperaríamos a maior objectividade biológica, foi demonstrado que o contacto com a pele de um

eléctrodo aquecido a 10°C provocará uma resposta do SNC, avaliada por tomografia de positrões,

semelhante à de um eléctrodo a 50°C, se for essa a informação que damos ao testando!

Físico e psicológico estão, afinal, inextricavelmente ligados.

3.9REUMATOLOGIA PRÁTICA

3. ESTRUTURA E FUNÇÃO DO SISTEMA MÚSCULO-ESQUELÉTICO.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 3.9

4.1REUMATOLOGIA PRÁTICA

ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA.GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

4.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.1

Diagnóstico “em dois passos”.

Odiagnóstico diferencial reumatológico pode ser comparado a uma viagem numa cida-

de ainda desconhecida, mas que sabemos rica de interesses culturais e científicos; o

objectivo da viagem é chegar a um local preciso: o diagnóstico. O que queremos aqui

oferecer é como um mapa, que permita ao viajante fazer as perguntas certas para encontrar o

seu destino, identificar os sinais que o conduzem ao objectivo e, uma vez lá, reconhecê-lo,

distinguindo-o de outros.

O viajante deve começar por munir-se da capacidade de inquirir e observar criteriosamente

o seu próprio trajecto, à medida que o percorre, para que a sua procura não seja meramente

aleatória e, consequentemente, ineficaz. Para encontrar, é preciso saber o que procuramos!

Na estratégia que propomos, a viagem até ao diagnóstico final passa por duas etapas fun-

damentais. Para facilitar a expressão do conceito designaremos este processo por “diagnósti-

co em dois passos”.

Primeiro passo.O primeiro objectivo (“primeiro passo”) consiste em definir, aproximadamente, o tipo genérico de

patologia em causa. Para tal propomos a consideração de um conjunto de grandes síndromas.

Assim, o inquérito e a observação iniciais visarão estabelecer o tipo de problema, isto é, a

grande síndroma em que se integra o caso ou a queixa em apreço. O médico procurará deter-

minar a existência de características próprias de uma grande síndroma, distinguindo-a de

outras. Será pouco importante esmiuçar detalhes que não tenham impacto nesta distinção,

enquanto, por outro lado, será essencial esclarecer, até ao limite do possível, os elementos mais

decisivos na identificação, por afirmação e por exclusão, da síndroma em causa.

Em Reumatologia, estes quadros sindromáticos básicos estão, em larga medida, relaciona-

dos com o compartimento anatómico que constitui a origem do sintoma: articular, periarti-

cular, muscular, sistémico, etc…

Retomando a analogia da viagem, é como se soubéssemos que, na nossa cidade, as atrac-

ções estão distribuídas por bairros: zona dos museus, zona da ciência, zona dos desportos, etc…

O nosso primeiro objectivo é chegar ao bairro que nos interessa; não estaremos, em todo o

caso, longe do nosso objectivo mais específico: o diagnóstico final, uma casa desse bairro.

Para saber o que procura na primeira fase do diagnóstico diferencial, o leitor deve fami-

liarizar-se com as grandes síndromas que lhe propomos considerar (figura 4.1.).

Note-se o rigor que é necessário colocar na primeira parte do caminho: se nos enganarmos

na definição da síndroma (“bairro”), porque interpretámos mal a informação recolhida ou atri-

buímos certeza indevida a um sinal pouco claro, estaremos seguramente errados na procura

subsequente. Jamais faremos um diagnóstico correcto de artrite reumatóide se partirmos do

princípio de que as queixas do doente são de origem muscular, da mesma forma que não encon-

traríamos o Museu da Ciência no bairro do desporto. Ora, em Reumatologia, os sintomas e os

sinais são frequentemente subjectivos e imprecisos. A sua valorização faz-se mais em termos

REUMATOLOGIA PRÁTICA4.2

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.2

de probabilidade do que de certeza. Para evitarmos erros é fundamental que tenhamos sem-

pre presente uma visão crítica da solidez da evidência que nos conduza numa ou noutra direc-

ção. Por exemplo, a presença de edema do pé acompanhando dor local poderá traduzir artrite,

ou ser tão só uma coincidência, comum, de insuficiência venosa com patologia local de outra

natureza. Assim, à medida que vamos avançando, deveremos ter bem claro no nosso espírito

quais os sinais absolutamente certos e quais aqueles que ainda suscitam dúvidas.

Deveremos tomar consciência de que o nosso raciocínio se baseia, em boa medida, em pala-

vras-chave, tal como a comunicação interpessoal. Se estabelecermos, em alguma fase, que o doen-

te tem “artrite”, importará ter bem presente a implicação da palavra: assumiremos, daí por dian-

te, que o processo é articular e inflamatório. Estaremos dispensados de considerar a hipótese de

artrose ou de meras artralgias com ritmo inflamatório, situações com implicações bem diversas.

Em cada passo da apreciação clínica, deveremos utilizar termos e conceitos tão precisos

quanto possível, mas apenas isso. Se não tivermos ainda a certeza de que se trata de uma artri-

te, deveremos manter no espírito o conceito de artralgias, deixando assim em aberto todas as

hipóteses que possam determinar este sintoma.

Confrontado com a incerteza dos sinais, o viajante deverá, em todo o caso, avançar, explo-

rando o caminho subsequente, mas mantendo a consciência de que poderá estar enganado. Na

dúvida, terá de voltar atrás e explorar a hipótese alternativa deixada em aberto por uma inter-

pretação diversa do sinal inseguro.

Procure habituar-se a fazer sistematicamente um exercício: descreva o seu doente por pala-

vras-chave, tão poucas e tão precisas quanto possível. Em regra, não serão necessárias mais de

dez palavras. Por exemplo: 1. “Homem jovem com lombalgia de ritmo inflamatório, sem sinais

sistémicos”; 2.“Mulher com poliartrite simétrica, aditiva, crónica, de predomínio periférico, sem

envolvimento axial”. 3. “Quadro de dores generalizadas, sem alterações objectivas”.

4.3REUMATOLOGIA PRÁTICA

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

Artrose

Artrite. Subtipos

Síndromas loco-regionais

Síndromas de dor generalizada

Lombalgia/cervicalgia

Síndroma articular

Síndroma osteoporótica

Síndroma óssea

Síndroma muscular

Síndroma sistémica

Miscelânia

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2º PASSODOENÇA ESPECÍFICA

1º PASSOGRANDES SÍNDROMAS

Figura 4.1.Estratégia de diagnóstico diferencialem Reumatologia. Primeiro passo:grandes síndromas.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.3

Segundo passo.Assumido determinado quadro sindromático (“artropatia”, “síndroma de dor generalizada”,

“dor óssea”, “lombalgia”, etc.), passamos então a uma exploração mais fina, que visa distin-

guir entre as entidades que sabemos poderem dar origem a esta síndroma, mas só entre elas.

Chamemos a isto o segundo passo do diagnóstico diferencial.

Também aqui focaremos a atenção em dois aspectos: o que é próprio de cada entidade e o

que a distingue das alternativas diagnósticas. É nestas áreas que deverá centrar-se a exploração

semiológica. Por exemplo: tanto a artrite reumatóide como a artrite psoriática podem envol-

ver o cotovelo; pelo contrário, o envolvimento inflamatório da coluna lombar é comum na

segunda, mas não na primeira. Assim, quando nos concentramos na distinção entre estas duas

entidades, é importante termos a certeza de existir ou não espondilite, mas é indiferente se o

cotovelo foi ou não afectado. Mais tarde, preocupar-nos-emos com o cotovelo, já que o seu

envolvimento poderá merecer atitude terapêutica específica, qualquer que seja a situação

subjacente.

É no segundo passo do diagnóstico diferencial que os exames complementares desempe-

nham papel mais relevante.

Para percorrer este trajecto de diagnóstico diferencial com segurança é necessário que (figura 4.2.):

• saiba o que caracteriza cada grande síndroma (vd. adiante), de forma a saber o que procura;

• saiba interrogar (capítulo 5);

• saiba proceder a um exame reumatológico geral (capítulo 6);

• saiba executar criticamente o exame detalhado loco-regional (capítulos 7 a 14).

REUMATOLOGIA PRÁTICA4.4

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

Figura 4.2. Estratégia de diagnóstico diferencial em Reumatologia.

Diagnóstico diferencial 2º passo (cap. 15-27)

Diagnóstico de síndromas loco-regionais específicasDiagnóstico de grandes síndromas

O que procuro? � Grandes síndromas (cap. 4)

Como pergunto? � Interrogatório em Reumatologia (cap. 5)

Como observo em geral? � Exame reumatológico geral (cap. 6)

Como observo em detalhe? � Exame loco-regional (cap. 7-14)

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.4

Os exames objectivo geral e loco-regional completo de todas as áreas afectadas ou da sede

de sintomas são indispensáveis ao diagnóstico final. Por esse motivo, apresentamos em pri-

meiro lugar as síndromas loco-regionais, já que é a combinação do interrogatório com os acha-

dos do exame loco-regional rigoroso que nos oferece a perspectiva global necessária ao diag-

nóstico correcto e integrante que se deseja.

Uma vez completos o interrogatório e o exame objectivo, estaremos já na posse de diag-

nósticos específicos e definitivos, caso se trate de problemas loco-regionais. O diagnóstico defi-

nitivo de patologias integradas nas restantes síndromas passa pelo segundo passo de diagnós-

tico diferencial, dotado de estratégia própria para cada uma, apresentada nos capítulos 15 a 27.

Qualquer divisão e estruturação do processo de raciocínio clínico é necessariamente sim-

plificadora e exposta a crítica. Assumimos essas limitações nesta proposta. O médico experiente

mistura fases, reconhece padrões, utiliza “atalhos”. Esta capacidade é, contudo, dificilmente

estruturável e transmissível, e só é possível alcançá-la, com segurança e rigor, quando funda-

mentada num modelo de base rigoroso, que deixe claros, no espírito do viajante, o “como” e

o “porquê” de cada trajecto. É neste propósito que situamos este livro e a proposta de estraté-

gia diagnóstica que ele encerra.

Note também que as doenças reumáticas desafiam qualquer classificação sindromática rígi-

da. Pelo contrário, muitas das doenças reumáticas têm uma apresentação variada e proteifor-

me que, consoante os doentes e as ocasiões, poderão sugerir mais fortemente uma ou outra

síndroma. É importante manter a noção de espectro clínico, bem exemplificada pelo lúpus eri-

tematoso sistémico: a mesma doença pode apresentar-se com um quadro predominante arti-

cular (integrando a síndroma articular) ou ser dominada por manifestações extra-articulares

variadas, colocando o viajante no terreno da síndroma sistémica. Um doente com polimiosi-

te terá tipicamente falta de força (síndroma muscular), mas poderá apresentar também artri-

te (síndroma articular) ou fotossensibilidade (síndroma sistémica). A solução consiste em pre-

ver estes espectros no mapa que vamos construindo: no mapa do bairro das artrites, deverá

haver um sinal para o lúpus; no bairro das doenças sistémicas, um sinal para a artrite reuma-

tóide, situada numa zona de fronteira entre os dois bairros.

Convidamos o leitor a tomar plena consciência de que todos temos um mapa de diagnós-

tico diferencial na nossa cabeça, e ainda bem. Viajar sem mapa em terreno desconhecido é

garantir que nos perdemos. É muito importante, contudo, que tenhamos consciência desse

mapa e façamos, sistematicamente, a aferição do seu rigor, adaptando-o quando necessário.

Este mapa depende do nosso conhecimento, mas também, com igual acuidade, da arruma-

ção e da estruturação que dermos ao que sabemos. Sempre que, seguindo o nosso modelo de

raciocínio (isto é, o nosso mapa), chegarmos a um diagnóstico errado, será forçoso rever a car-

tografia. O mesmo se passará, seguramente, aqui e além, com a estratégia que propomos.

Seja, o leitor, permanentemente crítico do que lê.

4.5REUMATOLOGIA PRÁTICA

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.5

Grandes síndromas em Reumatologia.

A figura 4.1. apresenta as grandes síndromas em que propomos que organize o seu primeiro

passo de diagnóstico diferencial.

As síndromas representadas a azul constituem, de longe, as que mais frequentemente serão

motivo de consulta em Medicina Geral e mesmo em Reumatologia. Merecem, por isso, espe-

cial cuidado e conhecimento.

Apresentamos, de seguida, as características nucleares de cada síndroma, de forma que o

interrogatório e o exame objectivo sejam orientados por este conhecimento.

SÍNDROMAS LOCO-REGIONAIS.

As síndromas loco-regionais são caracterizadas pelo facto de as queixas se limitarem a uma área

músculo-esquelética: uma articulação e estruturas vizinhas.

Nas formas típicas, o doente negará queixas osteoarticulares em outras localizações. Note-se,

contudo, que não é raro observar-se associação de duas ou mais destas afecções, podendo suge-

rir, à primeira vista, um quadro mais disseminado. Por outro lado, os portadores de doenças

poliarticulares ou mesmo sistémicas são particularmente predispostos ao desenvolvimento de

patologia loco-regional associada, que importa apreciar e tratar isoladamente.

Como tanto o interrogatório como o exame objectivo devem ser sempre completos e sistemá-

ticos, não teremos, em regra, dificuldade em identificar as particularidades do caso em apreço.

A área afectada constitui, por si mesma, uma pista diagnóstica já que a frequência relativa

de problemas articulares e periarticulares é variável consoante a área considerada. Em Medicina

Ambulatória, uma dor no ombro ou no cotovelo corresponde quase sempre a lesão periarti-

cular, enquanto que no joelho e na anca a elevada prevalência da artrose torna mais provável

a patologia articular.

Dentro das síndromas loco-regionais podemos distinguir, concluído o estudo clínico, qua-

tro subtipos maiores:

• dor periarticular;

• dor neurogénica;

• dor referida;

• monoartropatia.

Síndromas loco-regionais.Dor periarticular.Para fins pedagógicos designamos de “periarticulares” ou de “tecidos moles” todas as estrutu-

ras que participam da mecânica articular, mas são exteriores à cápsula: bolsas serosas, bai-

nhas sinoviais tendinosas, tendões, ligamentos, inserções tendinosas e ligamentares.

REUMATOLOGIA PRÁTICA4.6

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.6

Estas estruturas são sede frequente de patolo-

gia, na maior parte das vezes inflamatória, que

surge como resultado de traumatismo repetitivo

local (por exemplo, devido ao uso intensivo das

mãos ou do ombro) ou como tradução local de

doenças sinoviais sistémicas, como a artrite reu-

matóide. A inflamação das inserções de tendões

e ligamentos no osso pode surgir isolada e pon-

tualmente, sem causa aparente ou associada a

traumatismo grave. Constitui, por outro lado, um

elemento característico de um grupo de artropa-

tias inflamatórias designadas por “espondilartro-

patias seronegativas” (vd. capítulo 24), caso em

que tendem a ser múltiplas ou recorrentes.

Tendões e ligamentos podem também sofrer rup-

tura parcial ou total com consequente dor, perda

de movimento activo ou instabilidade articular.

A dor que tem esta origem está fortemente

relacionada com movimentos em que se utiliza ou

comprime a estrutura inflamada, sendo livres e

indolores os restantes movimentos articulares.

Este aspecto – selectividade de movimentos doloro-

sos – é muito útil na distinção em relação à pato-

logia articular, na qual todos os movimentos ten-

dem a ser dolorosos.

A palpação é dolorosa sobre a estrutura infla-

mada (e não na entrelinha articular, como suce-

de nas artropatias).

A mobilização activa só desperta dor nos movi-

mentos que exigem intervenção da estrutura afec-

tada, sendo indolores os restantes movimentos. Os

movimentos passivos têm amplitude normal e são,

tipicamente, muito menos dolorosos do que os acti-

vos. Da mesma forma, desencadearemos dor com

movimentos resistidos próprios para a estrutura em

causa. Se pedimos ao doente que execute um movi-

mento específico para a estrutura afectada, enquan-

to o observador lhe opõe resistência, o tendão, a

bolsa serosa ou a inserção tendinosa são colocados

sob tensão, despertando dor.

Não são habitualmente perceptíveis sinais

inflamatórios, a não ser quando a estrutura é

muito superficial, como na bursite olecraniana ou

na pré-patelar.

4.7REUMATOLOGIA PRÁTICA

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

Compreenda.

Estes aspectos serão facilmente previsíveis se tivermos emconta o funcionamento da articulação. Imagine que tem umainflamação sinovial do ombro: a estrutura inflamada é difu-samente envolvida e, logo, dói qualquer que seja o movi-mento que faça com essa articulação, porque a estruturainflamada participa de todos os movimentos. A dor é seme-lhante se for você a fazer o movimento (mobilização acti-va) ou se um observador o fizer enquanto você está rela-xado (mobilização passiva) – o movimento da articulaçãoé idêntico. A mobilidade da articulação poderá estar dimi-nuída devido a dor ou à alteração estrutural da articulação ea mobilização passiva não diminuir esta limitação.

Se, pelo contrário, estiver inflamado apenas um tendão,digamos o do supra-espinhoso, só terá dor no movimentode abdução, que exige esse tendão, mas não no de flexãodo ombro, já que neste o tendão do supra-espinhoso esta-rá em repouso (selectividade de movimentos). Se a mobi-lização for passiva e o examinado conseguir estar relaxa-do, o tendão inflamado será mantido em repouso e, logo, ador será menos intensa do que no movimento activo. Nãohá razão para que a mobilização passiva não seja comple-ta, isto é, que tenha limitação de amplitude. Neste caso, odoente terá dor se mantiver abdução enquanto resiste aomédico (mobilização resistida) – o tendão é colocado sobretensão e isto aumenta a dor. Não há razão para que tal suce-da no primeiro caso, já que a articulação continua imóvel.

Note que em muitos casos de tenosinovite é perceptíveluma sensação de crepitação sobre o tendão, que podelevar, erradamente, a pensar em artrose, que determinacrepitação articular.

O que sugere dor de origem periarticular?

Distribuição local ou loco-regional.

Localizações mais frequentes: no ombro e no cotovelo.

Selectividade de movimentos dolorosos.

Mobilização activa muito mais dolorosa do que a passiva.

Mobilização passiva de amplitude não limitada.

Palpação dolorosa sobre a estrutura.

Manobras específicas de distensão ou mobilização resistida.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.7

Síndromas loco-regionais.Dor neurogénica.A dor neurogénica resulta da compressão ou da irritação das raízes nervosas na coluna ou dos

nervos periféricos ao longo do seu trajecto. Este último tipo ocorre preferencialmente em locais,

bem conhecidos, onde os nervos atravessam estruturas estreitas ou sujeitas a compressão ou fric-

ção repetidas, com destaque para a compressão do nervo mediano no túnel cárpico.

Esta dor tem habitualmente um carácter disestésico, traduzido por sensações estranhas: for-

migueiro, adormecimento, choque eléctrico, sensação de pele queimada, hipostesia (dimi-

nuição da sensibilidade local) ou hiperestesia (aumento da sensibilidade local).

A dor tem distribuição característica e sugestiva, já que coincide ou com um dermátomo

radicular (compressões radiculares na coluna) ou com a área de inervação sensitiva de um

nervo periférico.

Nas radiculopatias é de esperar que existam sintomas no segmento vertebral correspon-

dente e que a dor periférica se agrave com os movimentos desse segmento. Por exemplo, na ciá-

tica, a dor afecta a coluna lombar, irradia ao longo do dermátomo de L5-S1 e agrava com os

movimentos de flexão da coluna lombar. As manobras de Valsava, como tosse, espirro ou esfor-

ço de defecação, podem agravar a dor porque resultam em aumento da pressão do líquido cefa-

lorraquídeo que rodeia as raízes nervosas.

No que respeita às compressões periféricas, a mais frequente é a do nervo mediano ao nível

do túnel cárpico. A dor ou parestesia afecta a face palmar dos três primeiros dedos e predomina

durante a noite e a manhã.

O exame reumatológico da área dolorosa é, naturalmente, normal. Na compressão perifé-

rica é muito útil o sinal de Tinel – a percussão do local de compressão desperta parestesia. De

igual modo, a mobilização do segmento vertebral correspondente pode desencadear dor típi-

ca em caso de radiculopatia.

O exame neurológico adequado à estrutura afectada pode encontrar perturbações de sen-

sibilidade, força ou reflexos miotáticos, mas estas alterações são tardias e não devem conside-

rar-se indispensáveis ao diagnóstico.

Uma vez mais não é necessário memorizar… estas características são fisiopatologicamen-

te intuitivas.

REUMATOLOGIA PRÁTICA4.8

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

O que sugere dor de origem neurogénica?

Distribuição em dermátomo ou território de nervo periférico.

Carácter disestésico da dor.

Localizações mais frequentes: ciática, síndroma do túnel cárpi-co, síndroma do ulnar.

Exame osteoarticular local normal.

Alterações locais do exame neurológico (tardias).

Agravamento com manobras de Valsava (nas radiculopatias).

Agravamento com mobilização da coluna (nas radiculopatias).

Sinal de Tinel (nas compressões periféricas).

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.8

Síndromas loco-regionais.Dor referida.Algumas lesões viscerais podem dar origem a dor difusa de localização músculo-esquelética. São

exemplos a dor no ombro e no braço esquerdos na isquemia coronária, a dor lombar na

cólica renal, etc.

Processos degenerativos ou inflamatórios afectando uma articulação podem despertar dor que

é percebida numa área alargada ou mesmo distante da origem anatómica. Por exemplo, dor ou

sensibilidade à pressão no joelho ou nos músculos da coxa podem ser devidas a lesão das articu-

lações interapofisárias da coluna lombar. A artrite do ombro pode provocar dor referida à face

externa do braço.

Nestas situações, o exame local é normal, não descortinando causa para a dor. Assim, nesta

perspectiva, a dor neurogénica é também uma dor referida.

A dor irradiada de outra estrutura músculo-esquelética terá um

ritmo dependente do uso dessa estrutura. Por exemplo, uma crian-

ça com doença de Legg-Perthes poderá queixar-se de dor no joe-

lho ao caminhar – o exame do joelho será normal, o da anca des-

pertará dor. O ritmo da dor de origem visceral poderá ser confu-

so, já que dependerá da fisiologia da víscera em causa: uma dor

da região nadegueira que varia com o ciclo menstrual poderá ser a

pista para um problema ginecológico subjacente.

Assim, quando uma dor de localização músculo-esquelética se

acompanha de exame físico local normal, não se esqueça de explo-

rar as articulações vizinhas, a inervação e as vísceras cuja dor para

ali pode irradiar.

Síndromas loco-regionais.Monoartropatia.Se houver lesão de uma só articulação, qualquer que seja a sua

natureza, surgirá uma síndroma loco-regional, naturalmente.

O que a distingue das restantes causas de dor anatomicamente

limitada a uma área? A dor será tipicamente associada à utilização

da articulação, ainda que o ritmo de dor possa variar consoante se

trate de processo inflamatório ou mecânico. Não apresenta selecti-

vidade de movimentos dolorosos – toda a utilização da articulação

tende a despertar dor. O exame local esclarece a localização arti-

cular do problema:

• dor à mobilização activa em várias direcções;

• limitação dolorosa ou mecânica da mobilidade activa e passiva;

• presença de crepitação, tumefacção, derrame ou calor articular;

• dor à palpação ao longo da entrelinha articular;

• manobras de mobilização resistida pouco ou nada dolorosas.

4.9REUMATOLOGIA PRÁTICA

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

O que sugere dor referida?

Distribuição local ou loco-regional.

Ritmo incaracterístico.

Carácter disestésico.

Manifestações associadas (articula-ções vizinhas, vísceras, alteraçõesneurológicas).

Exame local normal.

O que sugere monoartropatia?

Distribuição local ou loco-regional da dor.

Ritmo típico: inflamatório ou mecânico.

Dor com todos os movimentos articu-lares.

Crepitação, tumefacção, derrame, calorou rubor articular.

Palpação dolorosa ao longo da entreli-nha articular.

Limitação da mobilidade activa e passiva.

Manobras específicas para lesõesperiarticulares: negativas.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.9

Note que, como se sublinhou já, é frequente a coexistência de lesão articular e periarticu-

lar: um desafio à sua subtileza semiológica! Os exames complementares, nomeadamente a ima-

giologia, são muitas vezes úteis.

A abordagem diagnóstica e terapêutica das variadíssimas causas de síndroma loco-regional

é apresentada nos capítulos correspondentes a cada área anatómica (capítulos 7 a 14). As

monoartropatias são também citadas no contexto das artrites e artroses.

SÍNDROMA DE DOR GENERALIZADA.

Esta síndroma é extraordinariamente frequente na prática clínica. Contudo, o seu diagnósti-

co exige que para ela desenvolvamos sensibilidade e suspeição diagnóstica.

A fibromialgia é responsável pela esmagadora maioria das situações de dor generalizada.

O seu diagnóstico diferencial é abordado no capítulo 15. Afecta de forma largamente maiori-

tária mulheres adultas e idosas.

As dores afectam várias partes do corpo, de modo difuso e impreciso, com escassa ou

nenhuma focalização articular. É frequente e típico que a doente use, ou aceite, a expressão

“dói-me o corpo todo”.

Tipicamente a doente descreve as dores deslizando a mão longitudinalmente ao longo do

membro, sugerindo dor também das massas musculares. Estas dores são muito frequente-

mente migratórias, passando de uma para outra localização em horas ou dias, sem deixar

sequelas. Em todo o caso, a distribuição é estranha, não se adaptando ao padrão típico de

nenhuma artropatia.

É típico, mas não constante, que a dor seja agravada por esforços, mas sobretudo depois

de estes terminarem e não durante o exercício ou trabalho. É comum a coexistência de pares-

tesias, também elas migratórias e transitórias. As queixas são habitualmente múltiplas e varia-

das, tipicamente descritas de forma dramática. A doente apresenta, com muita frequência,

sinais de marcada ansiedade, que importa

apreciar no conjunto do contexto clínico.

Note que é frequente que a doente descre-

va dor predominando durante a noite e a

manhã, por vezes com rigidez matinal pro-

longada e sensação de edema. Estes aspectos

podem sugerir patologia articular inflamató-

ria, que o exame objectivo e exames comple-

mentares não confirmam.

O exame objectivo, reumatológico e neu-

rológico é normal, excepto pela presença de

dor, por vezes intensa, com os movimentos.

Não há sinais inflamatórios, deformação ou

REUMATOLOGIA PRÁTICA4.10

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

O que sugere síndroma de dor generalizada?

Dores por “todo o corpo”.

Distribuição difusa, com escassa focalização articular.

Carácter migratório.

Pior após esforços.

Padrão de distribuição inconsistente com poliartropatia.

Descrição dramática.

Exame clínico sem alterações objectivas.

Exames complementares normais.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.10

limitação de mobilidade. As manobras para lesões de tecidos moles podem ser, enganadora-

mente, positivas em várias localizações.

A abordagem diagnóstica e terapêutica da síndroma de dor generalizada é apresentada no

capítulo 15.

LOMBALGIA E CERVICALGIA.

Se as dores do nosso doente são essencialmente limitadas à coluna lombar ou cervical, estamos

num terreno que exige um raciocínio clínico e uma abordagem diagnóstica muito próprios.

Nesta situação, devemos, antes de mais, garantir que o problema não tem reflexos em outras

áreas, nomeadamente viscerais. Nessa altura, entramos, psicologicamente, no “Mode” cervi-

calgia ou lombalgia, seguindo a estratégia delineada nos capítulos 7 e 11, respectivamente.

SÍNDROMA ARTICULAR.

A síndroma articular é sugerida pelo interrogatório e confirmada pelo exame objectivo, com

eventual apoio de exames complementares.

Os elementos clínicos sugestivos de artropatia foram apresentados acima (monoartropa-

tia). A sua presença e verificação em diferentes articulações é que constituirá, obviamente, a

base para falarmos de oligoartropatia ou poliartropatia. A distribuição das articulações afec-

tadas é decisiva no estabelecimento do diagnóstico diferencial quanto ao tipo específico de

artropatia em causa (segundo passo). O número e distribuição das articulações afectadas não

é aleatório, antes seguindo um certo número de padrões típicos.

Os sinais e os sintomas de artropatia são comuns nas várias localizações, mas a sua apre-

ciação exige adaptação da técnica semiológica a cada área articular. Desta forma, só é possível

avançar para um diagnóstico mais fino depois de ter examinado todas as áreas articulares, com

a metodologia descrita nos capítulos 7 a 14.

Note-se, desde já, que a patologia articular pode ser classificada em dois tipos principais.

• Artropatias inflamatórias (artrites).

Nestas situações, a sinovial é sede de um processo inflamatório que determina sinais e sin-

tomas sugestivos e que conduz à destruição progressiva da cartilagem e do osso subcon-

dral. São exemplos a artrite reumatóide, a gota, a artrite séptica, etc.

• Artropatias degenerativas (artrose e doenças associadas).

São caracterizadas por perda focal de cartilagem com reacção do osso subcondral. Pode

surgir inflamação da sinovial, mas esta é apenas ligeira e ocasional.

4.11REUMATOLOGIA PRÁTICA

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.11

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

A clínica dá-nos os elementos essenciais à distinção dos dois tipos.

Assim, partimos do diagnóstico de artropatia com base nos indicadores apresentados para

a monoartropatia. Sobre ele temos de considerar dois outros elementos: ritmo de dor e rigi-

dez, e exame clínico articular.

Ritmo de dor e rigidez.Nas artropatias degenerativas, a dor tende a seguir o chamado “ritmo mecânico”. A dor vai agra-

vando com a utilização continuada da articulação. O doente sente-se pior ao fim do dia ou após

algumas horas de marcha ou trabalho. O repouso conduz a alívio marcado, sendo rara a ocor-

rência de dor durante a noite. Note que também nos mexemos de noite, pelo que o doente pode

referir dor nocturna: importa então saber se esta dor surge só quando o doente se mexe ou tam-

bém quando está absolutamente parado e se é possível encontrar uma posição antálgica (típi-

ca de ritmo mecânico).

Pelo contrário, nas artropatias inflamatórias, a dor tende a seguir um “ritmo inflamató-

rio”. O doente sente-se pior logo pela manhã, aliviando a dor com a utilização continuada da

articulação. É frequente a dor nocturna, que não depende de movimento e para a qual não exis-

te posição antálgica.

Todas as artropatias se podem acompanhar de rigidez articular (“prisão”,“emperramento”)

após períodos de imobilidade articular prolongada. Esta rigidez cede com a utilização repeti-

da da articulação.

O que distingue o ritmo mecânico do inflamatório é a duração da rigidez. Tipicamente,

numa artropatia inflamatória não tratada, a rigidez matinal persiste por mais de 30 minutos,

enquanto que na artropatia mecânica cede ao fim de 5~10 minutos. A rigidez pós-repouso (por

exemplo, à refeição) pode durar mais de 5 minutos na artropatia inflamatória, sendo de ape-

nas alguns segundos na artropatia degenerativa (quadro 4.1.).

Verificados, com cuidado, paciência e interrogatório repetido estes aspectos, poderemos

dizer que estamos perante “artralgias de ritmo inflamatório” ou “artralgias de ritmo mecâni-

co”, mas não ainda afirmar uma artrite ou uma artrose. Este diagnóstico exige que avaliemos

a presença de sinais inflamatórios articulares, ao exame objectivo.

REUMATOLOGIA PRÁTICA4.12

Quadro 4.1.Distinção entre dor articularde ritmo inflamatório e deritmo mecânico.

RITMO INFLAMATÓRIO

Pior de manhã.

Melhora com o movimento continuado.

Dor em repouso. Sem posição antálgica.

Rigidez matinal prolongada (> 30 minutos).

Rigidez pós-repouso > 5 minutos.

RITMO MECÂNICO

Pior ao fim do dia.

Piora com o movimento continuado.

Cede ao repouso. Com posição antálgica.

Rigidez matinal de curta duração (< 10 minutos).

Rigidez pós-repouso < 2~3 minutos.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.12

Exame clínico articular.Ao exame objectivo a artrite é caracterizada pela presença de tumefacção articular, de consis-

tência dura-elástica, já que traduz a sinovial inflamada e ingurgitada. Visto que a sinovial está

limitada pela cápsula, esta tumefacção é uniforme e ganha, nas articulações superficiais, um

aspecto fusiforme, globoso. Pelo contrário, a tumefacção na artrose é localizada e de consis-

tência pétrea, já que traduz a presença de osteófitos, projecções ósseas na periferia da articu-

lação. A palpação da superfície ou da entrelinha articular durante o movimento pode revelar

crepitação, própria de artrose.

Ambas as formas se podem acompanhar de derrame articular, clinicamente apreciável. A pal-

pação da entrelinha articular pode ser dolorosa, difusamente no caso de artrite e de forma mais

pontual na artrose. A artrite aguda acompanha-se de aumento da temperatura local, por com-

paração com a articulação contralateral ou as zonas vizinhas. O rubor só raramente é obser-

vável, apesar de tudo. Note que a artrose pode ter pequenos surtos inflamatórios em que ganha

características sugestivas de artrite.

Em fases mais avançadas ou perante inflamação aguda, pode observar-se restrição dolo-

rosa de movimentos activos e passivos. Na ausência de lesão de tecidos moles, a limitação é

idêntica com ambos os tipos de mobilização (quadro 4.2.). Os exames complementares, com

destaque para os reagentes de fase aguda e a radiologia, permitirão reforçar o diagnóstico e

esclarecer dúvidas restantes.

Se a dor tem ritmo inflamatório e observamos sinais inflamatórios articulares, podemos falar,

com propriedade, de “artrite” e limitar o diagnóstico diferencial subsequente a este tipo de pato-

logia. Até que demonstremos inflamação articular, deveremos falar apenas de “artralgias de

ritmo inflamatório”, mantendo em aberto as hipóteses de dor deste tipo, sem artrite.

O segundo passo de diagnóstico diferencial, entre os diversos tipos de artrose e de artrite, é

apresentado nos capítulos 16 e 17.

4.13REUMATOLOGIA PRÁTICA

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

ARTRITE

Tumefacção dura-elástica.

Tumefacção fusiforme.

Dor ao longo da entrelinha.

Sem crepitação ou crepitação fina.

Sinais inflamatórios.

Sinais sistémicos frequentes.

Qualquer articulação.

ARTROSE

Tumefacção pétrea.

Tumefacção pontual, irregular.

Dor pontual na entrelinha.

Com crepitação grosseira.

Sem sinais inflamatórios (*).

Ausência de sinais sistémicos relacionados.

Predomínio em articulações de carga e mãos.

Quadro 4.2. Elementos principais do exame objectivo em caso de artrite e de artrose. (*) A artrose pode acompanhar-se de sinais inflamatórios nos surtos de agudização. Uma artrite avançada pode resul-tar em artrose secundária, associando características de ambas as situações.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.13

“SÍNDROMA” OSTEOPORÓTICA.

A síndroma osteoporótica merece um destaque no esquema de raciocínio do médico 1. Embora

se trate de uma doença óssea, não a integramos na síndroma óssea por duas ordens de razões:

1. a osteoporose é uma doença extraordinariamente frequente;

2. o tempo ideal de intervenção é antes da ocorrência de sintomas, isto é, só a podemos

identificar pela valorização de factores de risco para a doença.

Trata-se idealmente de pensar na doença antes que ela se manifeste. Isto exige ponderação

dos factores de risco e intervenção pró-activa do médico. As manifestações da osteoporose,

fracturas ósseas por trauma mínimo, são já tardias e indicam que perdemos o tempo óptimo

de intervenção preventiva.

O quadro 4.3. apresenta as principais condições de risco para osteoporose ou manifestações

que nos devem levar a considerar esta síndroma.

A abordagem adequada do problema assim definido é apresentada no capítulo 26.

SÍNDROMA ÓSSEA.

As dores de origem exclusivamente óssea são raras na prática corrente. Podem surgir em asso-

ciação a tumores ósseos (primitivos ou metastáticos), a doenças metabólicas (como, por exem-

plo, a doença óssea de Paget) ou a inflamação do periósteo. São, em regra, descritas como dores

profundas, mal localizadas, contínuas, diurnas e nocturnas, sem relação com o movimento. São

mais frequentes ao nível da coluna, da bacia e dos segmentos proximais dos membros. O exame

local é, em regra, normal. Na ausência de sugestão de dor referida, há que promover exames

complementares dirigidos a este tipo de patologia (vd. capítulo 27) .

REUMATOLOGIA PRÁTICA4.14

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

Na presença de factores de risco

Mulher pós-menopáusica.

Menopausa precoce.

Menarca tardia.

Baixo peso e baixa estatura.

Corticoterapia prolongada.

Sedentarismo acentuado.

Ingestão escassa de lacticínios.

Doenças causadoras de osteoporose: mal-absorção,hipertireoidismo, hiperparatireoidismo; alcoolismocrónico; doença hepática…

Na presença de manifestações

• Sempre que um doente, de qualqueridade, apresente história de fracturade baixo impacto, isto é, causada porqueda de altura inferior à sua estatura,quer esta se manifeste clinicamente,quer seja um achado radiológico,como em Rx. da coluna.

• Sempre que uma radiografiaocasional revelar suspeita de baixamassa óssea (osteopenia radiológica).Quadro 4.3.

Quando pensar emosteoporose?

1Como verá, o uso da palavra “síndroma” é, aqui, algo abusivo, já que, em regra, não existem sintomas. Usamo-la, contudo, por clareza de expressão.

cap 1_4.qxd 10/6/05 8:50 AM Page 4.14

SÍNDROMA MUSCULAR.

O envolvimento patológico dos músculos (inflamatório ou metabólico) traduz-se mais fre-

quentemente por perda de força, com predomínio proximal e atrofia muscular. O predomí-

nio proximal ajuda a distingui-la da falta de força por neuropatia, que tem predomínio clara-

mente distal. Assim, o doente miopático pode ter dificuldade em subir e descer escadas, levan-

tar-se de uma cadeira baixa ou pentear o cabelo, mas apresenta um firme aperto de mão e é

capaz de caminhar em bicos de pés. O oposto sucede com o portador de polineuropatia. Em

algumas miopatias, a falta de força só se manifesta após movimentos repetidos, sendo nor-

mal no início. A atrofia muscular é também variável consoante o tipo de miopatia.

Note-se que não é raro que o doente reumático refira ter “falta de forças”. Este sintoma é

também um acompanhante frequente dos estados depressivos. No inquérito, a falta de força

localizada (por exemplo, o pé pendente) será mais provavelmente significativa do que a gene-

ralizada. Contudo, em ambos os casos, a valorização de “falta de força” exige demonstração

pelo exame neurológico.

As dores nas massas musculares, espontâneas ou despertadas pela palpação, são acompa-

nhantes frequentes de síndromas inflamatórias gerais, como a gripe, mas podem também

traduzir inflamação muscular (miosite) como parte de doenças reumatismais sistémicas (capí-

tulo 25). Estas últimas situações são bastante raras na prática clínica não especializada.

Manteremos presente, naturalmente, que os músculos podem estar alterados em conse-

quência de processos de outra localização, nomeadamente nervosa e articular, conduzindo a

atrofia por desuso. As dores originadas em articulações são muitas vezes sentidas de forma algo

difusa, envolvendo áreas musculares da vizinhança. As dores referidas, descritas acima, são fre-

quentemente referenciadas a áreas musculares. O doente com fibromialgia (vd. capítulo 15)

descreve falta de força muscular e dores generalizadas que podem envolver as massas muscu-

lares, sem qualquer alteração objectiva.

SÍNDROMA SISTÉMICA.

Todas as doenças reumáticas inflamatórias podem ser acompanhadas de manifestações extra-

articulares, tradutoras de envolvimento de outros órgãos e sistemas. O exemplo mais notável

é oferecido pelo lúpus eritematoso sistémico, que pode atingir praticamente todas as estrutu-

ras e funções do organismo. A pesquisa destas manifestações clínicas extra-articulares é, por

isso, parte obrigatória da abordagem semiológica do doente reumático, especialmente se o

inquérito preliminar sugere poliartropatia inflamatória. Se o não fizermos, correremos o risco

de perdermos pistas diagnósticas essenciais ou de deixarmos sem tratamento lesões poten-

cialmente fatais.

O quadro 4.4. apresenta as manifestações extra-articulares mais frequentemente associadas

a doenças reumáticas.

4.15REUMATOLOGIA PRÁTICA

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.15

Em muitos doentes, estas manifestações acompanham um quadro de poliartrite, que pode-

rá constituir a base do nosso diagnóstico diferencial subsequente. Noutros, predominam as

manifestações extra-articulares, por vezes discretas, mas associadas, que importa sempre valo-

rizar, sobretudo se surgem em jovens. É então fundamental que saibamos reconhecer a sua pos-

sível associação a uma doença do tecido conjuntivo, pondo em marcha um processo de diag-

nóstico diferencial assente no conceito de síndroma sistémica (vd. capítulo 25).

A identificação destas síndromas constitui um primeiro passo para o diagnóstico diferen-

cial. Retomando a nossa analogia entre o diagnóstico diferencial e uma visita a uma cidade,

poderíamos dizer que, identificada a síndroma, sabemos em que bairro nos encontramos e não

estaremos longe do nosso objectivo final: um diagnóstico preciso, isto é, uma casa nesse bair-

ro. Tal como muitos caminhos vão dar a Roma, muitas vias podem ser seguidas para chegar ao

diagnóstico preciso, consoante as manifestações predominantes numa doença sistémica.

Note porém que não é possível saltar etapas sem correr o risco de erro. Os diagnósticos, quer

da síndroma, quer da doença, exigem sempre um interrogatório completo e bem orientado e

não será possível sem o exame cuidado (loco-regional) de todas as áreas que são sede de sintomas.

Não se esqueça de examinar também as áreas cujo envolvimento possa ser relevante, mesmo que

não sejam referidos sintomas. Essa metodologia é apresentada nos três capítulos seguintes.

REUMATOLOGIA PRÁTICA4.16

4. ESTRATÉGIA DIAGNÓSTICA. GRANDES SÍNDROMAS EM REUMATOLOGIA.

Manifestações

• Constitucionais

Febre.

Perda de peso.

Fadiga acentuada.

• Cutâneo-mucosas

Fotossensibilidade.

Erupção cutânea.

Púrpura e úlceras.

Queda de cabelo.

Aftas orais e genitais.

Secura das mucosas.

Olho vermelho.

Balanite…

• Serosas

Pleurisia / derrame pleural.

Pericardite.

Fenómeno de Raynaud.

Disfagia.

Dispneia.

Edema dos membros inferiores e HTA.

Adenopatias.

Fraqueza muscular.

Doenças associadas (por ordem decrescente de frequência)

Lúpus eritematoso sistémico.

Esclerose sistémica progressiva.

Artrite reumatóide.

Doença mista do tecido conjuntivo.

Vasculites...

Lúpus eritematoso sistémico.

Artrite reumatóide.

Artrite psoriática (psoríase).

Síndroma de Sjögren.

Esclerose sistémica progressiva.

Artrites reactivas.

Doença de Behçet e outras vasculites.

Doenças do tecido conjuntivo.

Fenómeno de Raynaud idiopático.

Esclerose sistémica progressiva.

Lúpus eritematoso sistémico...

Esclerose sistémica progressiva.

Doenças do tecido conjuntivo.

Doenças do tecido conjuntivo.

Doenças do tecido conjuntivo.

Miosite e síndromas de sobreposição.

Quadro 4.4.Principais manifestaçõessistémicas associadas adoenças reumáticas.

cap 1_4.qxd 9/17/05 11:47 PM Page 4.16