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IMPLICAÇÕES DAS POLÍTICAS CULTURAIS BRASILEIRAS PARA A DANÇA NA PRODUÇÃO DE ARTISTAS COM
DEFICIÊNCIA CARLOS EDUARDO OLIVEIRA (UFBA)
RESUMO O presente artigo volta-se para as implicações das políticas públicas culturais brasileiras na produção em Dança de artistas com deficiência e as potencialidades poéticas deste corpo dentro do contexto artístico e político. No caso da dança, o corpo do dançarino com deficiência é compreendido como um sistema complexo que está em constante fluxo de trocas de informações com o ambiente. O conceito de linhas abissais, apresentado por Boaventura de Souza Santos (2010), contribui para esta pesquisa ao ser relacionado com o pensamento do corpo ideal para a Dança em contraste com o corpo com deficiência, o “Outro” corpo, que resulta em lacunas importantes observadas nas políticas culturais. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas Culturais, Dança, Artista com Deficiência.
IMPLICATIONS OF BRAZILIAN CULTURAL PUBLIC POLICIES FOR THE DANCE IN THE PRODUCTION OF ARTISTS WITH
DISABILITIES ABSTRACT This article looks at the implications of brazilian cultural public policies for the dance in the production of artists with disabilities and poetic potentialities of this body within the context of artistic and political. In the case of dance, the dancer's body with disability is understood as a complex system that is in constant flux of information exchange with the environment. The concept of abyssal lines presented by Boaventura de Souza Santos (2010), contributes to this research to be related to the thought of the ideal body for dance in contrast to the disabled body, the "Other" body, which results in gaps important observed in cultural policies. KEYWORDS: Cultural Policies, Dance Artist with Disabilities.
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A partir do século XX, inicia a luta das pessoas com deficiência para
garantirem seus direitos à participação ativa na vida social e política à qual
estão inseridas. Nos EUA, por exemplo, registram-se protestos desde a década
de 1930, para direitos trabalhistas e, posteriormente, na década de 1950,
veteranos de guerra fizeram manifestações pró-ambientes sem barreiras, de
onde surgiram normas americanas de acessibilidade em edificações
(SASSAKI, 2007).
Ainda neste país e no Reino Unido, a década 1970 caracteriza-se como
um período fundamental para o movimento das pessoas com deficiência, pelo
advento dos Disability Studies em diversas áreas de conhecimento, como as
ciências sociais, humanas e a medicina, por exemplo. É neste período que
ativistas dos direitos das pessoas com deficiência defendiam que não deveria
se compreender a deficiência dentro de patologias individuais que necessitam
de cuidados médicos e de cura, mas sim como um fenômeno
fundamentalmente social (AUSLANDER; SANDHAL, 2005). Também neste
período, a deficiência ocupa lugar nas artes, reivindicando espaços além do
contexto terapêutico ou de reabilitação.
A relação entre a Dança e a Deficiência teve sua prática, origem e
estruturação no desporto adaptado, na chamada Dança em Cadeira de Rodas,
pelos idos dos anos 1970 (CORREIA, 2007), inserida no contexto esportivo e
terapêutico. Porém, foi a partir da década de 1990 que a Dança
Contemporânea produzida com pessoas com deficiência tomou impulso,
quando surgiram grupos como o Candoco (Inglaterra), DIN A 13 (Alemanha) e
no Brasil, a Cia Roda Viva (Natal), Grupo X de Improvisação em Dança
(Salvador) e Pulsar (Rio de Janeiro), que são grupos atuantes até hoje e que
vem impulsionando pesquisas no campo.
Dança Contemporânea aqui compreendida como aquela conectada às
transformações surgidas no contexto pós-moderno, direcionada ao
experimentalismo e que compreende o corpo que dança como resultado de
suas experiências diárias no contexto social e cultural (MATOS, 2012). Essa
concepção aproxima-se do que buscamos observar, no que concerne às
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relações entre o corpo do dançarino com deficiência e o corpus das políticas
culturais para a dança. Entendendo este corpo não como um corpo dicotômico,
apenas centrado no aspecto dual, biológico da deficiência, mas visto como um
sistema complexo que está em constante fluxo de trocas de informações com o
ambiente e que a Dança, em qualquer corpo, é resultado não apenas de suas
especificidades físicas, como também dessas trocas.
Em relação a eventos e iniciativas de políticas públicas voltadas para as
pessoas com deficiência e também a cultura, a nível internacional, que
acabaram refletindo nas políticas do Brasil, podemos destacar a Convenção
sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais,
realizada pela UNESCO, em 2005, promulgada pelo Decreto nº 6.177/2007,
estabelecendo condições necessárias para a preservação das diferentes
formas de manifestação cultural e proteção da diversidade.
Este Decreto estabelece ainda diretrizes norteadoras para as políticas
culturais de proteção, como o princípio fundamental de respeito aos direitos
humanos, dignidade e respeito às culturas, princípio de solidariedade e
cooperação internacional, além de prever um plano de desenvolvimento de
conscientização social por meio da educação.
Destaca-se também a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, realizada pela ONU, em 2006, e ratificada pelo Decreto Legislativo
nº 186/2008, com o propósito de “promover, proteger e assegurar o exercício
pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por
todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade
inerente” (ONU, 2006), compreendendo as pessoas com deficiência não
apenas em suas questões físicas e biológicas, mas também em relação às
barreiras, de qualquer espécie, que impedem a sua plena e irrestrita
participação na sociedade.
Em 2008, a expressão “Nada sobre nós sem nós” foi adotada pelo
governo federal brasileiro, através do Ministério da Cultura (MinC), para
construção de políticas públicas culturais de inclusão construídas num
processo participativo, junto a artistas com deficiência, gestores públicos,
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pesquisadores e agentes culturais da sociedade civil envolvidos com produção
cultural das pessoas com deficiência.
O que a introdução deste lema nas discussões sobre deficiência trazia à
época em que foi lançado, e ainda continua a ser reivindicado nos dias atuais,
é que não aceitamos mais ser excluídos das decisões políticas tomadas sem a
nossa participação e supervisão (SASSAKI, 2007). Por melhores que sejam as
intenções das pessoas sem deficiência, as nossas realidades são divergentes,
e cabe a nós fomentar uma postura pró-ativa e autônoma a respeito das
questões que nos dizem respeito. Isso porque, ainda é comum, mesmo sem
perceber, a tendência dos olhares equivocados sobre corpo e deficiência.
A partir do primeiro mandato do presidente Lula e da gestão de Gilberto
Gil no Ministério da Cultura (2003 a 2008), houve interesse, por parte do
governo, na formulação e implementação de políticas públicas que
estimulassem ações de promoção da diversidade cultural brasileira, admitindo
a pluralidade cultural do país e tentando atender demandas específicas. Para
tanto, foi necessário assumir uma postura inclusiva em relação a grupos sociais
que ficavam à margem das políticas públicas culturais dos governos anteriores,
a exemplo de grupos étnicos e comunidades tradicionais como indígenas,
ciganos e imigrantes. Também entre eles, os movimentos populares
abrangendo pessoas com deficiência, grupos LGBT e Hip Hop, entre outros. O
Ministério buscou conduzir os trabalhos de modo a valorizar a sociedade civil e
fortalecer os mecanismos de participação da sociedade na formulação,
implementação e avaliação das ações culturais (FERREIRA, 2006, apud
ALMEIDA et al, 2013,).
Para Calabre (2007), o início da gestão Gil, com a reformulação da
estrutura do MinC e a articulação deste junto a diversos segmentos da área
artística e da sociedade em geral, viria a ser importante momento na
construção das políticas públicas específicas para diversos segmentos da
sociedade, assim como as políticas setoriais das variadas linguagens artísticas.
Sobre isto, Isaura Botelho (2007) chama a atenção também para a criação das
Câmaras Setoriais correspondentes às diversas expressões artísticas que
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tiveram importante papel na discussão sobre as diretrizes políticas e planos de
ação de cada setor, tendo propiciado “pela primeira vez na história da gestão
federal de cultura, a participação da sociedade civil no processo de definição
do conjunto de metas e ações a serem priorizadas por essas políticas setoriais”
(BOTELHO, 2007: 130).
Com a nova estrutura administrativa do Ministério, foram criadas
diversas Secretarias, entre elas a Secretaria da Identidade e da Diversidade
Cultural (SID), transformada, atualmente, na Secretaria da Cidadania e
Diversidade Cultural (SCDC), que abriga os programas relacionados às
questões das pessoas com deficiência, a comunidade LGBT, comunidades
populares e áreas transversais ao segmento cultural (cultura e saúde; cultura e
trabalho; etc) que, anteriormente, não eram contempladas devidamente nas
políticas culturais, bem como em nenhuma área específica.
Em 2007, a SID, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ), vinculada ao Ministério da Saúde, realizaram a “Oficina Loucos
pela Diversidade – da Diversidade da Loucura à Identidade da Cultura”, tendo
como finalidade indicar políticas públicas culturais para pessoas em sofrimento
mental e em situações de risco social. A partir dessa experiência e com a
necessidade de se expandir as discussões para as demais deficiências, foi
realizada, em 2008, a “Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas
Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência”, com o lema “Nada sobre
Nós sem Nós”, tendo como principal objetivo construir propostas de diretrizes e
ações para subsidiar a elaboração de políticas públicas do Ministério da Cultura
(MINC) para pessoas com deficiência, com a participação prioritária dos
próprios sujeitos interessados.
O governo brasileiro ao adotar e respeitar princípios definidos por
importantes documentos como a Convenção da ONU (2006), a Convenção da
Diversidade Cultural (UNESCO/2002), a Convenção da Guatemala (Convenção
Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Pessoas Portadoras de Deficiência, confirmada no Brasil pelo Decreto Lei nº
3.956/01, de 08 de outubro de 2001), entre outros, trazendo-os para diálogo e
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discussão junto à sociedade civil e aos principais atores do segmento social
referente, no nosso caso, às pessoas com deficiência, reafirma um nova visão
de gestão que reconhece a diversidade cultural e cria canais para maior
participação democrática.
Contudo, todos estes documentos não nos garantem o cumprimento e
aplicação das leis de acesso das pessoas com deficiência à produção e fruição
dos bens culturais e tampouco da implantação das diretrizes inclusivas
encontradas nos documentos oficiais. Segundo Matos (2012), é a estrutura
social perversa que
instaura uma distribuição desigual dos bens simbólicos e materiais. Consequentemente, há ausência de efetivas ações públicas e de representatividade das pessoas com deficiência em cargos estratégicos, bem como muitas barreiras culturais que permanecem em nossa sociedade são decorrentes, em sua maioria, da falta de informação da população (MATOS, 2012: 64).
Embora tenham surgido dos encontros de 2007 e 2008 indicações de
ações e diretrizes publicadas em relatórios que servem como instrumento
orientador de políticas culturais nos níveis federal, estadual e municipal
voltadas para inclusão das pessoas com deficiência e em sofrimento mental, as
lacunas são evidentes. Mesmo que a partir da Oficina de 2008 tenha sido
encaminhada uma nota técnica orientando os diversos setores do Ministério da
Cultura sobre normas de acessibilidade para pessoas com deficiência,
chamando atenção para pontos relacionados à Lei Rouanet, aos editais, sites,
equipamentos, bens culturais, livros acessíveis e à produção cultural, notamos
que poucas ações efetivas foram realizadas pelo Ministério ou pelo governo
federal. A estrutura organizacional dessas instituições, a fim de atender tais
normas em seus canais de comunicação virtual ou reforçá-las de forma mais
incisiva no Plano Nacional de Cultura (PNC), não conseguem por em curso as
demandas.
De maneira geral, mas também abrangendo as pessoas com deficiência,
a cultura no Plano Nacional de Cultura é compreendida sob uma perspectiva
ampliada que a articula em três dimensões: a simbólica, a econômica e a
cidadã. Observando mais atentamente o documento publicado com as metas
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do PNC para o ano de 2020, percebemos que a acessibilidade e/ou
deficiência/mobilidade reduzida encontram-se relacionadas apenas à dimensão
cidadã, justo aquela que entende a cultura como um direito básico do cidadão,
e entre outras garantias, está registrada para a questão da acessibilidade uma
melhora significativa na infraestrutura cultural dos municípios brasileiros.
Isso significa que estão previstos mais equipamentos e instituições
culturais como teatros, cinemas, centros culturais, bibliotecas, museus e
arquivos e estes espaços equipados com gestores mais capacitados e
qualificados, com acessibilidade garantida a pessoas com deficiência
(MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012: 17).
Ainda neste documento, das 53 metas, 3 englobam, de forma
abrangente, questões referentes à acessibilidade e deficiência ou mobilidade
reduzida: Meta 3 – cartografia da diversidade das expressões culturais em todo
o território brasileiro realizada; Meta 34 – 50% de bibliotecas públicas e museus
modernizados; Meta 45 – 450 grupos, comunidades ou coletivos beneficiados
com ações de Comunicação para a Cultura.
Apenas a meta 29 é criada especificamente para o público com
deficiência, no que se refere a adaptação dos espaços físicos e fruição dos
bens culturais com a realização de tradução em LIBRAS, utilização de
audiodescrição e Braille: Meta 29 – 100% de bibliotecas públicas, museus,
cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atendendo aos
requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da
fruição cultural por parte das pessoas com deficiência.
Porém, em relação ao fomento e difusão das produções dos artistas com
deficiência não consta nenhuma proposta, nem houve aplicação de nenhuma
diretriz sugerida na oficina de 2008, como a garantia de incentivos e recursos
orçamentários para formação de profissionais com ou sem deficiência na área
da cultura e para implantação e/ou implementação de manutenção de grupos,
companhias, projetos artísticos e culturais com pessoas com deficiência ou
ainda a garantia de participação de grupos de pessoas com deficiência nos
projetos em que haja recursos do MinC.
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Por mais que o conceito de deficiência tenha se alterado na própria
Constituição Brasileira, a partir da Convenção da ONU pelos Direitos das
Pessoas com Deficiência, compreendendo a deficiência não apenas pelas
questões biológicas e físicas, mas também sociais, comunicacionais,
arquitetônicas e urbanísticas, o que podemos observar quando se pretende
implantar ou criar mecanismos de fomentos específicos na área cultural
voltados para a produção das pessoas com deficiência, é o retorno ao conceito
de deficiência pelo pensamento médico.
Um bom exemplo dessa afirmação foi o Prêmio Arte e Cultura Inclusiva
2011 – Edição Albertina Brasil – “Nada Sobre Nós Sem Nós”, onde se
evidenciava, principalmente no formulário de inscrição, a deficiência em
detrimento da produção artística, sendo exigido laudo médico que
comprovasse a deficiência de algum integrante dos projetos inscritos. O que
poderia ser feito, por exemplo, com a avaliação do histórico do trabalho,
releases, matérias de jornais ou fotografias que comprovassem, de certo modo,
a deficiência do integrante, já que seriam premiariados projetos já realizados,
Aqui, podemos constatar a relação, ainda forte, da política com a
medicina, quando se trata da deficiência. Para se promover ações políticas
para as pessoas com deficiência, precisa-se da autorização médica, do seu
aval, da concordância e atestado de que aquela pessoa está apta, ou seja, é
realmente deficiente em termos médicos, para que consiga o apoio, o incentivo,
o benefício estatal. Neste aspecto, observamos a ação de mecanismos da
biopolítica que opera o controle da sociedade sobre os indivíduos não
simplesmente pela consciência ou ideologia, mas sobre o biológico, o somático
(FOUCAULT, 2012: 144). Esse autor afirma ainda que o corpo é uma realidade
biopolítica e a medicina uma de suas estratégias. A biopolítica tem como uma
de suas características, justamente, a integração entre medicina e política e
toma a vida como um fato natural, biológico.
No caso do Prêmio Arte e Cultura Inclusiva 2011, mostra-se um
investimento na deficiência e não no poder criativo da pessoa com deficiência,
no protagonismo desse artista, no seu empoderamento. Retoma ao
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pensamento de arte de cunho social, por vezes terapêutico quando questiona,
por exemplo, os benefícios e a melhoria da autoestima dessas pessoas ou
formação de cidadania como um dos requisitos de avaliação dos projetos.
A função da arte não se resume em melhorar, tratar ou curar vidas. A
arte se basta em sua função de ser “apenas” arte e a partir disso ser muitas
coisas, ser política enquanto relacional e dialógica com o ambiente e com o
público, com os seus próprios suportes e pelos espaços que ocupa.
Nesse sentido, o filósofo Jacques Rancière explica que,
a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão (RANCIÈRE, 2005: 2).
Por mais que tenham tido mudanças no campo da dança, principalmente
em decorrência da dança contemporânea, ainda é possível perceber-se, nesta
área, um pensamento dicotômico em relação aos corpos com e sem
deficiência, como corpos aptos ou desabilitados para dançar, como se a dança
produzida por artistas com deficiência não houvesse validade, como se esta
fosse uma “outra dança”.
Nesse ponto, dialogamos com o conceito de pensamento abissal, do
sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que o explica como sendo aquele que
opera pela definição unilateral de linhas que dividem as experiências, os saberes e os atores sociais entre os que são úteis, inteligíveis e visíveis (os que ficam do lado de cá da linha) e os que são inúteis ou perigosos, ininteligíveis, objetos de supressão ou esquecimento (os que ficam do lado de lá da linha) (SANTOS, 2010: 20).
Se pensarmos o corpo com deficiência na dança como o “Outro” corpo,
aquele que está “do outro lado da linha”, o sem lei, sem regras, sem técnicas
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específicas e que, portanto, precisa adaptar-se a estruturas já definidas por
“este lado da linha”, com certo monopólio dos saberes, pois “do outro lado da
linha, não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria,
entendimentos intuitivos ou subjetivos, que, na melhor das hipóteses, podem
tornar-se objetos ou matéria-prima para a inquirição cientifica” (SANTOS, 2010:
34).
Desta forma, podemos observar que a maioria dos trabalhos em Dança
desenvolvidos com pessoas com deficiência parece legitimar o “corpo ideal
para a dança” como uma verdade que deve ser mantida, situando o corpo com
deficiência num segundo plano. Assim, Correia (2007) afirma que “se as ações
se voltam para a normalização, para a continuidade da dependência, a chance
do pensamento hegemônico passar a ser visto como ‘verdade oficial’ passa a
ser inevitável” (CORREIA, 2007: 70).
A autora, em sua tese Corpo Sitiado..., a comunicação invisível. Dança,
Rodas e Poéticas, destaca o que Agamben (2010) chama de “relação de
exceção”:
Para obter o passaporte da acessibilidade, para ter representatividade midiática é necessário concordar com a situação do corpo coitadinho fazendo arte e negar o corpo estrutural, biológico e culturalmente apto para construir conhecimentos. Essa forma de inclusão exige singularidade excluída. A norma aplicada é a invisibilidade poética, o estar presente, mas ausente de si (CORREIA, 2007: 14).
Porém a arte, aqui especificamente a Dança, como elemento
transformador e questionador e político, tem papel importante de
confrontamento a esta realidade. O artista, por sua vez, é um ser implicado
com seu mundo e responsável por apresentar inquietações e novas perguntas
à ordem posta. E o que podemos ver nas iniciativas para fomento das ações
afirmativas e/ou inclusivas propostas pelo Estado, a exemplo de editais
segmentados para a cultura negra, cultura indígena e também para a arte
produzida por pessoas com deficiência, é que estes criam estereótipos que são
perigosos porque estes ignoram toda complexidade existente no fazer artístico,
na própria criação e também nos sujeitos em questão. Estes sujeitos, ao serem
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manipulados e iludidos por forças que o fazem acreditar numa ascensão e
mudança de sua condição de “excluído”, respondem de maneira a manter este
sistema ativo, reproduzindo os discursos e comportamentos projetados para
eles. Essa exclusão pode ser creditada ainda à ignorância em relação a
assuntos mais específicos sobre acessibilidade e direitos, já garantidos, das
pessoas com deficiência.
Sem a pretensão de responder às questões, nem registrar proposições,
apenas pelo fato de eu ser um dos sujeitos implicados nessas questões de
inclusão/acessibilidade (sou dançarino e uso cadeira de rodas por seqüela de
poliomielite), eu gostaria de manter aqui a provocação levantada na ocasião do
Congresso ANDA 2013, realizado em Salvador, quando chamei atenção de
que essas questões não dizem respeito apenas a nós, pessoas com deficiência
ou àqueles que trabalham com esse público, mas que a acessibilidade é sim
responsabilidade de todos.
Assim sendo, a pergunta que insisto como reflexão é a seguinte: Mesmo
sabendo que, no Brasil, ainda são incipientes e insatisfatórias as leis que
garantem a efetiva participação de artistas com deficiência no conhecimento e
produção em Dança, mas diante do que já temos garantido, a exemplo dos
direitos à acessibilidade assegurados pela Lei nº 10.098, o que poderíamos
fazer para que fossem compreendidos, respeitados e cumpridos pela
sociedade civil e também pela classe de Dança?
Referências
AUSLANDER, Phillipe.; SANDHAL, Carrie. Bodies in commotion: disability and performance. Michigan: Michigan Press, 2005.
BOTELHO, Isaura. A política cultural e o plano das ideias. In: Antonio Albino Canelas Rubim e Alexandre Barbalho (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: Antonio Albino Canelas Rubim e Alexandre Barbalho (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.
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CORREIA, Fátima, C.D.. Corpo Sitiado... A comunicação inVIsível. Dança, Rodas e Poéticas. Tese apresentada a Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança – Programa PQI. São Paulo. 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2012.
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RANCIERE, Jacques. Política da Arte, transcrição do seminário “São Paulo S.A, práticas estéticas, sociais e políticas em debate” (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005) Disponível em http://www.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferencias/206.rtf
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Epistemologias do sul. Boabentura de Sousa Santos, Maria Paula Meneses [orgs]. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83
SASSAKI, Romeu Kazumi. Nada sobre nós, sem nós: Da integração à inclusão - Parte 1. Revista Nacional de Reabilitação, ano X, n. 57, jul./ago. 2007, p. 8-16.
Carlos Eduardo Oliveira Mestrando em Dança pelo PPGDANÇA/UFBA, bolsista Capes, Bacharel em Artes Plásticas (UFBA), com especialização em Arteterapia (UCSAL) e coreografo/intérprete do Grupo X de Improvisação em Dança. E-mail: [email protected]