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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança e(m) Política Maio/2013 http://portalanda.org.br/index.php/anais 1 IMPLICAÇÕES DAS POLÍTICAS CULTURAIS BRASILEIRAS PARA A DANÇA NA PRODUÇÃO DE ARTISTAS COM DEFICIÊNCIA CARLOS EDUARDO OLIVEIRA (UFBA) RESUMO O presente artigo volta-se para as implicações das políticas públicas culturais brasileiras na produção em Dança de artistas com deficiência e as potencialidades poéticas deste corpo dentro do contexto artístico e político. No caso da dança, o corpo do dançarino com deficiência é compreendido como um sistema complexo que está em constante fluxo de trocas de informações com o ambiente. O conceito de linhas abissais, apresentado por Boaventura de Souza Santos (2010), contribui para esta pesquisa ao ser relacionado com o pensamento do corpo ideal para a Dança em contraste com o corpo com deficiência, o “Outro” corpo, que resulta em lacunas importantes observadas nas políticas culturais. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas Culturais, Dança, Artista com Deficiência. IMPLICATIONS OF BRAZILIAN CULTURAL PUBLIC POLICIES FOR THE DANCE IN THE PRODUCTION OF ARTISTS WITH DISABILITIES ABSTRACT This article looks at the implications of brazilian cultural public policies for the dance in the production of artists with disabilities and poetic potentialities of this body within the context of artistic and political. In the case of dance, the dancer's body with disability is understood as a complex system that is in constant flux of information exchange with the environment. The concept of abyssal lines presented by Boaventura de Souza Santos (2010), contributes to this research to be related to the thought of the ideal body for dance in contrast to the disabled body, the "Other" body, which results in gaps important observed in cultural policies. KEYWORDS: Cultural Policies, Dance Artist with Disabilities.

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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança e(m) Política – Maio/2013

http://portalanda.org.br/index.php/anais 1

IMPLICAÇÕES DAS POLÍTICAS CULTURAIS BRASILEIRAS PARA A DANÇA NA PRODUÇÃO DE ARTISTAS COM

DEFICIÊNCIA CARLOS EDUARDO OLIVEIRA (UFBA)

RESUMO O presente artigo volta-se para as implicações das políticas públicas culturais brasileiras na produção em Dança de artistas com deficiência e as potencialidades poéticas deste corpo dentro do contexto artístico e político. No caso da dança, o corpo do dançarino com deficiência é compreendido como um sistema complexo que está em constante fluxo de trocas de informações com o ambiente. O conceito de linhas abissais, apresentado por Boaventura de Souza Santos (2010), contribui para esta pesquisa ao ser relacionado com o pensamento do corpo ideal para a Dança em contraste com o corpo com deficiência, o “Outro” corpo, que resulta em lacunas importantes observadas nas políticas culturais. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas Culturais, Dança, Artista com Deficiência.

IMPLICATIONS OF BRAZILIAN CULTURAL PUBLIC POLICIES FOR THE DANCE IN THE PRODUCTION OF ARTISTS WITH

DISABILITIES ABSTRACT This article looks at the implications of brazilian cultural public policies for the dance in the production of artists with disabilities and poetic potentialities of this body within the context of artistic and political. In the case of dance, the dancer's body with disability is understood as a complex system that is in constant flux of information exchange with the environment. The concept of abyssal lines presented by Boaventura de Souza Santos (2010), contributes to this research to be related to the thought of the ideal body for dance in contrast to the disabled body, the "Other" body, which results in gaps important observed in cultural policies. KEYWORDS: Cultural Policies, Dance Artist with Disabilities.

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A partir do século XX, inicia a luta das pessoas com deficiência para

garantirem seus direitos à participação ativa na vida social e política à qual

estão inseridas. Nos EUA, por exemplo, registram-se protestos desde a década

de 1930, para direitos trabalhistas e, posteriormente, na década de 1950,

veteranos de guerra fizeram manifestações pró-ambientes sem barreiras, de

onde surgiram normas americanas de acessibilidade em edificações

(SASSAKI, 2007).

Ainda neste país e no Reino Unido, a década 1970 caracteriza-se como

um período fundamental para o movimento das pessoas com deficiência, pelo

advento dos Disability Studies em diversas áreas de conhecimento, como as

ciências sociais, humanas e a medicina, por exemplo. É neste período que

ativistas dos direitos das pessoas com deficiência defendiam que não deveria

se compreender a deficiência dentro de patologias individuais que necessitam

de cuidados médicos e de cura, mas sim como um fenômeno

fundamentalmente social (AUSLANDER; SANDHAL, 2005). Também neste

período, a deficiência ocupa lugar nas artes, reivindicando espaços além do

contexto terapêutico ou de reabilitação.

A relação entre a Dança e a Deficiência teve sua prática, origem e

estruturação no desporto adaptado, na chamada Dança em Cadeira de Rodas,

pelos idos dos anos 1970 (CORREIA, 2007), inserida no contexto esportivo e

terapêutico. Porém, foi a partir da década de 1990 que a Dança

Contemporânea produzida com pessoas com deficiência tomou impulso,

quando surgiram grupos como o Candoco (Inglaterra), DIN A 13 (Alemanha) e

no Brasil, a Cia Roda Viva (Natal), Grupo X de Improvisação em Dança

(Salvador) e Pulsar (Rio de Janeiro), que são grupos atuantes até hoje e que

vem impulsionando pesquisas no campo.

Dança Contemporânea aqui compreendida como aquela conectada às

transformações surgidas no contexto pós-moderno, direcionada ao

experimentalismo e que compreende o corpo que dança como resultado de

suas experiências diárias no contexto social e cultural (MATOS, 2012). Essa

concepção aproxima-se do que buscamos observar, no que concerne às

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relações entre o corpo do dançarino com deficiência e o corpus das políticas

culturais para a dança. Entendendo este corpo não como um corpo dicotômico,

apenas centrado no aspecto dual, biológico da deficiência, mas visto como um

sistema complexo que está em constante fluxo de trocas de informações com o

ambiente e que a Dança, em qualquer corpo, é resultado não apenas de suas

especificidades físicas, como também dessas trocas.

Em relação a eventos e iniciativas de políticas públicas voltadas para as

pessoas com deficiência e também a cultura, a nível internacional, que

acabaram refletindo nas políticas do Brasil, podemos destacar a Convenção

sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais,

realizada pela UNESCO, em 2005, promulgada pelo Decreto nº 6.177/2007,

estabelecendo condições necessárias para a preservação das diferentes

formas de manifestação cultural e proteção da diversidade.

Este Decreto estabelece ainda diretrizes norteadoras para as políticas

culturais de proteção, como o princípio fundamental de respeito aos direitos

humanos, dignidade e respeito às culturas, princípio de solidariedade e

cooperação internacional, além de prever um plano de desenvolvimento de

conscientização social por meio da educação.

Destaca-se também a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com

Deficiência, realizada pela ONU, em 2006, e ratificada pelo Decreto Legislativo

nº 186/2008, com o propósito de “promover, proteger e assegurar o exercício

pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por

todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade

inerente” (ONU, 2006), compreendendo as pessoas com deficiência não

apenas em suas questões físicas e biológicas, mas também em relação às

barreiras, de qualquer espécie, que impedem a sua plena e irrestrita

participação na sociedade.

Em 2008, a expressão “Nada sobre nós sem nós” foi adotada pelo

governo federal brasileiro, através do Ministério da Cultura (MinC), para

construção de políticas públicas culturais de inclusão construídas num

processo participativo, junto a artistas com deficiência, gestores públicos,

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pesquisadores e agentes culturais da sociedade civil envolvidos com produção

cultural das pessoas com deficiência.

O que a introdução deste lema nas discussões sobre deficiência trazia à

época em que foi lançado, e ainda continua a ser reivindicado nos dias atuais,

é que não aceitamos mais ser excluídos das decisões políticas tomadas sem a

nossa participação e supervisão (SASSAKI, 2007). Por melhores que sejam as

intenções das pessoas sem deficiência, as nossas realidades são divergentes,

e cabe a nós fomentar uma postura pró-ativa e autônoma a respeito das

questões que nos dizem respeito. Isso porque, ainda é comum, mesmo sem

perceber, a tendência dos olhares equivocados sobre corpo e deficiência.

A partir do primeiro mandato do presidente Lula e da gestão de Gilberto

Gil no Ministério da Cultura (2003 a 2008), houve interesse, por parte do

governo, na formulação e implementação de políticas públicas que

estimulassem ações de promoção da diversidade cultural brasileira, admitindo

a pluralidade cultural do país e tentando atender demandas específicas. Para

tanto, foi necessário assumir uma postura inclusiva em relação a grupos sociais

que ficavam à margem das políticas públicas culturais dos governos anteriores,

a exemplo de grupos étnicos e comunidades tradicionais como indígenas,

ciganos e imigrantes. Também entre eles, os movimentos populares

abrangendo pessoas com deficiência, grupos LGBT e Hip Hop, entre outros. O

Ministério buscou conduzir os trabalhos de modo a valorizar a sociedade civil e

fortalecer os mecanismos de participação da sociedade na formulação,

implementação e avaliação das ações culturais (FERREIRA, 2006, apud

ALMEIDA et al, 2013,).

Para Calabre (2007), o início da gestão Gil, com a reformulação da

estrutura do MinC e a articulação deste junto a diversos segmentos da área

artística e da sociedade em geral, viria a ser importante momento na

construção das políticas públicas específicas para diversos segmentos da

sociedade, assim como as políticas setoriais das variadas linguagens artísticas.

Sobre isto, Isaura Botelho (2007) chama a atenção também para a criação das

Câmaras Setoriais correspondentes às diversas expressões artísticas que

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tiveram importante papel na discussão sobre as diretrizes políticas e planos de

ação de cada setor, tendo propiciado “pela primeira vez na história da gestão

federal de cultura, a participação da sociedade civil no processo de definição

do conjunto de metas e ações a serem priorizadas por essas políticas setoriais”

(BOTELHO, 2007: 130).

Com a nova estrutura administrativa do Ministério, foram criadas

diversas Secretarias, entre elas a Secretaria da Identidade e da Diversidade

Cultural (SID), transformada, atualmente, na Secretaria da Cidadania e

Diversidade Cultural (SCDC), que abriga os programas relacionados às

questões das pessoas com deficiência, a comunidade LGBT, comunidades

populares e áreas transversais ao segmento cultural (cultura e saúde; cultura e

trabalho; etc) que, anteriormente, não eram contempladas devidamente nas

políticas culturais, bem como em nenhuma área específica.

Em 2007, a SID, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz

(FIOCRUZ), vinculada ao Ministério da Saúde, realizaram a “Oficina Loucos

pela Diversidade – da Diversidade da Loucura à Identidade da Cultura”, tendo

como finalidade indicar políticas públicas culturais para pessoas em sofrimento

mental e em situações de risco social. A partir dessa experiência e com a

necessidade de se expandir as discussões para as demais deficiências, foi

realizada, em 2008, a “Oficina Nacional de Indicação de Políticas Públicas

Culturais para Inclusão de Pessoas com Deficiência”, com o lema “Nada sobre

Nós sem Nós”, tendo como principal objetivo construir propostas de diretrizes e

ações para subsidiar a elaboração de políticas públicas do Ministério da Cultura

(MINC) para pessoas com deficiência, com a participação prioritária dos

próprios sujeitos interessados.

O governo brasileiro ao adotar e respeitar princípios definidos por

importantes documentos como a Convenção da ONU (2006), a Convenção da

Diversidade Cultural (UNESCO/2002), a Convenção da Guatemala (Convenção

Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra

as Pessoas Portadoras de Deficiência, confirmada no Brasil pelo Decreto Lei nº

3.956/01, de 08 de outubro de 2001), entre outros, trazendo-os para diálogo e

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discussão junto à sociedade civil e aos principais atores do segmento social

referente, no nosso caso, às pessoas com deficiência, reafirma um nova visão

de gestão que reconhece a diversidade cultural e cria canais para maior

participação democrática.

Contudo, todos estes documentos não nos garantem o cumprimento e

aplicação das leis de acesso das pessoas com deficiência à produção e fruição

dos bens culturais e tampouco da implantação das diretrizes inclusivas

encontradas nos documentos oficiais. Segundo Matos (2012), é a estrutura

social perversa que

instaura uma distribuição desigual dos bens simbólicos e materiais. Consequentemente, há ausência de efetivas ações públicas e de representatividade das pessoas com deficiência em cargos estratégicos, bem como muitas barreiras culturais que permanecem em nossa sociedade são decorrentes, em sua maioria, da falta de informação da população (MATOS, 2012: 64).

Embora tenham surgido dos encontros de 2007 e 2008 indicações de

ações e diretrizes publicadas em relatórios que servem como instrumento

orientador de políticas culturais nos níveis federal, estadual e municipal

voltadas para inclusão das pessoas com deficiência e em sofrimento mental, as

lacunas são evidentes. Mesmo que a partir da Oficina de 2008 tenha sido

encaminhada uma nota técnica orientando os diversos setores do Ministério da

Cultura sobre normas de acessibilidade para pessoas com deficiência,

chamando atenção para pontos relacionados à Lei Rouanet, aos editais, sites,

equipamentos, bens culturais, livros acessíveis e à produção cultural, notamos

que poucas ações efetivas foram realizadas pelo Ministério ou pelo governo

federal. A estrutura organizacional dessas instituições, a fim de atender tais

normas em seus canais de comunicação virtual ou reforçá-las de forma mais

incisiva no Plano Nacional de Cultura (PNC), não conseguem por em curso as

demandas.

De maneira geral, mas também abrangendo as pessoas com deficiência,

a cultura no Plano Nacional de Cultura é compreendida sob uma perspectiva

ampliada que a articula em três dimensões: a simbólica, a econômica e a

cidadã. Observando mais atentamente o documento publicado com as metas

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do PNC para o ano de 2020, percebemos que a acessibilidade e/ou

deficiência/mobilidade reduzida encontram-se relacionadas apenas à dimensão

cidadã, justo aquela que entende a cultura como um direito básico do cidadão,

e entre outras garantias, está registrada para a questão da acessibilidade uma

melhora significativa na infraestrutura cultural dos municípios brasileiros.

Isso significa que estão previstos mais equipamentos e instituições

culturais como teatros, cinemas, centros culturais, bibliotecas, museus e

arquivos e estes espaços equipados com gestores mais capacitados e

qualificados, com acessibilidade garantida a pessoas com deficiência

(MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012: 17).

Ainda neste documento, das 53 metas, 3 englobam, de forma

abrangente, questões referentes à acessibilidade e deficiência ou mobilidade

reduzida: Meta 3 – cartografia da diversidade das expressões culturais em todo

o território brasileiro realizada; Meta 34 – 50% de bibliotecas públicas e museus

modernizados; Meta 45 – 450 grupos, comunidades ou coletivos beneficiados

com ações de Comunicação para a Cultura.

Apenas a meta 29 é criada especificamente para o público com

deficiência, no que se refere a adaptação dos espaços físicos e fruição dos

bens culturais com a realização de tradução em LIBRAS, utilização de

audiodescrição e Braille: Meta 29 – 100% de bibliotecas públicas, museus,

cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atendendo aos

requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da

fruição cultural por parte das pessoas com deficiência.

Porém, em relação ao fomento e difusão das produções dos artistas com

deficiência não consta nenhuma proposta, nem houve aplicação de nenhuma

diretriz sugerida na oficina de 2008, como a garantia de incentivos e recursos

orçamentários para formação de profissionais com ou sem deficiência na área

da cultura e para implantação e/ou implementação de manutenção de grupos,

companhias, projetos artísticos e culturais com pessoas com deficiência ou

ainda a garantia de participação de grupos de pessoas com deficiência nos

projetos em que haja recursos do MinC.

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Por mais que o conceito de deficiência tenha se alterado na própria

Constituição Brasileira, a partir da Convenção da ONU pelos Direitos das

Pessoas com Deficiência, compreendendo a deficiência não apenas pelas

questões biológicas e físicas, mas também sociais, comunicacionais,

arquitetônicas e urbanísticas, o que podemos observar quando se pretende

implantar ou criar mecanismos de fomentos específicos na área cultural

voltados para a produção das pessoas com deficiência, é o retorno ao conceito

de deficiência pelo pensamento médico.

Um bom exemplo dessa afirmação foi o Prêmio Arte e Cultura Inclusiva

2011 – Edição Albertina Brasil – “Nada Sobre Nós Sem Nós”, onde se

evidenciava, principalmente no formulário de inscrição, a deficiência em

detrimento da produção artística, sendo exigido laudo médico que

comprovasse a deficiência de algum integrante dos projetos inscritos. O que

poderia ser feito, por exemplo, com a avaliação do histórico do trabalho,

releases, matérias de jornais ou fotografias que comprovassem, de certo modo,

a deficiência do integrante, já que seriam premiariados projetos já realizados,

Aqui, podemos constatar a relação, ainda forte, da política com a

medicina, quando se trata da deficiência. Para se promover ações políticas

para as pessoas com deficiência, precisa-se da autorização médica, do seu

aval, da concordância e atestado de que aquela pessoa está apta, ou seja, é

realmente deficiente em termos médicos, para que consiga o apoio, o incentivo,

o benefício estatal. Neste aspecto, observamos a ação de mecanismos da

biopolítica que opera o controle da sociedade sobre os indivíduos não

simplesmente pela consciência ou ideologia, mas sobre o biológico, o somático

(FOUCAULT, 2012: 144). Esse autor afirma ainda que o corpo é uma realidade

biopolítica e a medicina uma de suas estratégias. A biopolítica tem como uma

de suas características, justamente, a integração entre medicina e política e

toma a vida como um fato natural, biológico.

No caso do Prêmio Arte e Cultura Inclusiva 2011, mostra-se um

investimento na deficiência e não no poder criativo da pessoa com deficiência,

no protagonismo desse artista, no seu empoderamento. Retoma ao

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pensamento de arte de cunho social, por vezes terapêutico quando questiona,

por exemplo, os benefícios e a melhoria da autoestima dessas pessoas ou

formação de cidadania como um dos requisitos de avaliação dos projetos.

A função da arte não se resume em melhorar, tratar ou curar vidas. A

arte se basta em sua função de ser “apenas” arte e a partir disso ser muitas

coisas, ser política enquanto relacional e dialógica com o ambiente e com o

público, com os seus próprios suportes e pelos espaços que ocupa.

Nesse sentido, o filósofo Jacques Rancière explica que,

a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão (RANCIÈRE, 2005: 2).

Por mais que tenham tido mudanças no campo da dança, principalmente

em decorrência da dança contemporânea, ainda é possível perceber-se, nesta

área, um pensamento dicotômico em relação aos corpos com e sem

deficiência, como corpos aptos ou desabilitados para dançar, como se a dança

produzida por artistas com deficiência não houvesse validade, como se esta

fosse uma “outra dança”.

Nesse ponto, dialogamos com o conceito de pensamento abissal, do

sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que o explica como sendo aquele que

opera pela definição unilateral de linhas que dividem as experiências, os saberes e os atores sociais entre os que são úteis, inteligíveis e visíveis (os que ficam do lado de cá da linha) e os que são inúteis ou perigosos, ininteligíveis, objetos de supressão ou esquecimento (os que ficam do lado de lá da linha) (SANTOS, 2010: 20).

Se pensarmos o corpo com deficiência na dança como o “Outro” corpo,

aquele que está “do outro lado da linha”, o sem lei, sem regras, sem técnicas

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específicas e que, portanto, precisa adaptar-se a estruturas já definidas por

“este lado da linha”, com certo monopólio dos saberes, pois “do outro lado da

linha, não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria,

entendimentos intuitivos ou subjetivos, que, na melhor das hipóteses, podem

tornar-se objetos ou matéria-prima para a inquirição cientifica” (SANTOS, 2010:

34).

Desta forma, podemos observar que a maioria dos trabalhos em Dança

desenvolvidos com pessoas com deficiência parece legitimar o “corpo ideal

para a dança” como uma verdade que deve ser mantida, situando o corpo com

deficiência num segundo plano. Assim, Correia (2007) afirma que “se as ações

se voltam para a normalização, para a continuidade da dependência, a chance

do pensamento hegemônico passar a ser visto como ‘verdade oficial’ passa a

ser inevitável” (CORREIA, 2007: 70).

A autora, em sua tese Corpo Sitiado..., a comunicação invisível. Dança,

Rodas e Poéticas, destaca o que Agamben (2010) chama de “relação de

exceção”:

Para obter o passaporte da acessibilidade, para ter representatividade midiática é necessário concordar com a situação do corpo coitadinho fazendo arte e negar o corpo estrutural, biológico e culturalmente apto para construir conhecimentos. Essa forma de inclusão exige singularidade excluída. A norma aplicada é a invisibilidade poética, o estar presente, mas ausente de si (CORREIA, 2007: 14).

Porém a arte, aqui especificamente a Dança, como elemento

transformador e questionador e político, tem papel importante de

confrontamento a esta realidade. O artista, por sua vez, é um ser implicado

com seu mundo e responsável por apresentar inquietações e novas perguntas

à ordem posta. E o que podemos ver nas iniciativas para fomento das ações

afirmativas e/ou inclusivas propostas pelo Estado, a exemplo de editais

segmentados para a cultura negra, cultura indígena e também para a arte

produzida por pessoas com deficiência, é que estes criam estereótipos que são

perigosos porque estes ignoram toda complexidade existente no fazer artístico,

na própria criação e também nos sujeitos em questão. Estes sujeitos, ao serem

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manipulados e iludidos por forças que o fazem acreditar numa ascensão e

mudança de sua condição de “excluído”, respondem de maneira a manter este

sistema ativo, reproduzindo os discursos e comportamentos projetados para

eles. Essa exclusão pode ser creditada ainda à ignorância em relação a

assuntos mais específicos sobre acessibilidade e direitos, já garantidos, das

pessoas com deficiência.

Sem a pretensão de responder às questões, nem registrar proposições,

apenas pelo fato de eu ser um dos sujeitos implicados nessas questões de

inclusão/acessibilidade (sou dançarino e uso cadeira de rodas por seqüela de

poliomielite), eu gostaria de manter aqui a provocação levantada na ocasião do

Congresso ANDA 2013, realizado em Salvador, quando chamei atenção de

que essas questões não dizem respeito apenas a nós, pessoas com deficiência

ou àqueles que trabalham com esse público, mas que a acessibilidade é sim

responsabilidade de todos.

Assim sendo, a pergunta que insisto como reflexão é a seguinte: Mesmo

sabendo que, no Brasil, ainda são incipientes e insatisfatórias as leis que

garantem a efetiva participação de artistas com deficiência no conhecimento e

produção em Dança, mas diante do que já temos garantido, a exemplo dos

direitos à acessibilidade assegurados pela Lei nº 10.098, o que poderíamos

fazer para que fossem compreendidos, respeitados e cumpridos pela

sociedade civil e também pela classe de Dança?

Referências

AUSLANDER, Phillipe.; SANDHAL, Carrie. Bodies in commotion: disability and performance. Michigan: Michigan Press, 2005.

BOTELHO, Isaura. A política cultural e o plano das ideias. In: Antonio Albino Canelas Rubim e Alexandre Barbalho (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.

CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: Antonio Albino Canelas Rubim e Alexandre Barbalho (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007.

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CORREIA, Fátima, C.D.. Corpo Sitiado... A comunicação inVIsível. Dança, Rodas e Poéticas. Tese apresentada a Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança – Programa PQI. São Paulo. 2007.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2012.

GIL, Gilberto; FERREIRA, Juca. Cultura pela palavra: coletânea de artigos, discursos e entrevistas dos ministros da Cultura 2003-2010. In: ALMEIDA, Armando; ALBERNAZ, Maria Beatriz; SERQUEIRA, Mauricio (Orgs.). Rio de Janeiro: Versal, 2013.

MATOS, Lúcia. Dança e diferença: cartografia de múltiplos corpos dançantes. Salvador : EDUFBA, 2012.

RANCIERE, Jacques. Política da Arte, transcrição do seminário “São Paulo S.A, práticas estéticas, sociais e políticas em debate” (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005) Disponível em http://www.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferencias/206.rtf

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Epistemologias do sul. Boabentura de Sousa Santos, Maria Paula Meneses [orgs]. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83

SASSAKI, Romeu Kazumi. Nada sobre nós, sem nós: Da integração à inclusão - Parte 1. Revista Nacional de Reabilitação, ano X, n. 57, jul./ago. 2007, p. 8-16.

Carlos Eduardo Oliveira Mestrando em Dança pelo PPGDANÇA/UFBA, bolsista Capes, Bacharel em Artes Plásticas (UFBA), com especialização em Arteterapia (UCSAL) e coreografo/intérprete do Grupo X de Improvisação em Dança. E-mail: [email protected]