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IMPACTOS NA ESCOLA E NO TRABALHO DOCENTE DIANTE DAS REPERCUSSÕES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO NO ACRE Ednacelí Abreu Damasceno - UFAC RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar os impactos na escola e no trabalho docente, bem como o desafio destes diante das repercussões das atuais políticas públicas nacionais de avaliação nos anos iniciais do ensino fundamental nas instituições escolares do município de Rio Branco, tendo como ponto central a obrigação por resultados escolares, decorrentes da chamada cultura da avaliação. O referencial teórico da pesquisa ancorou-se em Freitas (2011a, 2011b, 2012); Saviani (2007); Santos (2003); Durli e Shneider (2009, 2011); entre outros. Esta pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, recorrendo a: a) revisão de literatura sobre os estudos que envolvem a temática investigada com o propósito de contextualizar a problemática estudada; b) pesquisa documental, em que foram consultados os Cadernos de Orientação Curricular do município de Rio Branco e as Matrizes de Referência Curricular para o Ensino Fundamental elaboradas pelo INEP nas áreas de ensino que são objetos de avaliação externa; e por fim, c) aplicação de entrevistas semiestruturadas a professores que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental das escolas públicas do município de Rio Branco. Constatou-se, com base nos dados obtidos, que vem se instalando nas escolas de Rio Branco uma cultura de desempenho baseada no treinamento dos alunos para a realização das avaliações nacionais, na qual o compromisso do docente com a tarefa formativa de seus alunos consiste na corrida pela melhoria de resultados educacionais, em que o currículo vem sendo reduzido a uma lista de competências e habilidades exigidas pelo sistema nacional de avaliação. Concluiu-se que o processo de divulgação dos resultados educacionais exerce uma significativa pressão sobre a organização da escola e altera a lógica do trabalho docente induzindo a transformação dos sistemas escolares em sistemas preparatórios de testes, o que reduz intensamente as possibilidades de formação integral dos alunos. Palavras-Chave: Políticas Públicas de Educação. Escola. Trabalho Docente. Introdução Nas últimas três décadas as transformações ocorridas no mundo do trabalho, em consequência do processo de reestruturação da economia mundial, caracterizada principalmente pelos mercados globalizados e pelos avanços tecnológicos, provocaram mudanças no papel do Estado, no sentido de adequá-lo à nova realidade econômica. Neste cenário, a educação, como instância de formação do trabalhador, assume uma posição estratégica, em que a preocupação com a qualidade do serviço prestado educacional em cada país, torna-se central, levando os governos a adotarem diversas tecnologias de controle sobre os sistemas de ensino por meio de diversas políticas educacionais. Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 02460

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IMPACTOS NA ESCOLA E NO TRABALHO DOCENTE DIANTE DAS

REPERCUSSÕES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO NO ACRE

Ednacelí Abreu Damasceno - UFAC

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar os impactos na escola e no

trabalho docente, bem como o desafio destes diante das repercussões das atuais políticas

públicas nacionais de avaliação nos anos iniciais do ensino fundamental nas instituições

escolares do município de Rio Branco, tendo como ponto central a obrigação por

resultados escolares, decorrentes da chamada cultura da avaliação. O referencial teórico

da pesquisa ancorou-se em Freitas (2011a, 2011b, 2012); Saviani (2007); Santos (2003);

Durli e Shneider (2009, 2011); entre outros. Esta pesquisa adotou uma abordagem

qualitativa, recorrendo a: a) revisão de literatura sobre os estudos que envolvem a

temática investigada com o propósito de contextualizar a problemática estudada; b)

pesquisa documental, em que foram consultados os Cadernos de Orientação Curricular

do município de Rio Branco e as Matrizes de Referência Curricular para o Ensino

Fundamental elaboradas pelo INEP nas áreas de ensino que são objetos de avaliação

externa; e por fim, c) aplicação de entrevistas semiestruturadas a professores que atuam

nos anos iniciais do Ensino Fundamental das escolas públicas do município de Rio

Branco. Constatou-se, com base nos dados obtidos, que vem se instalando nas escolas de

Rio Branco uma cultura de desempenho baseada no treinamento dos alunos para a

realização das avaliações nacionais, na qual o compromisso do docente com a tarefa

formativa de seus alunos consiste na corrida pela melhoria de resultados educacionais,

em que o currículo vem sendo reduzido a uma lista de competências e habilidades

exigidas pelo sistema nacional de avaliação. Concluiu-se que o processo de divulgação

dos resultados educacionais exerce uma significativa pressão sobre a organização da

escola e altera a lógica do trabalho docente induzindo a transformação dos sistemas

escolares em sistemas preparatórios de testes, o que reduz intensamente as possibilidades

de formação integral dos alunos.

Palavras-Chave: Políticas Públicas de Educação. Escola. Trabalho Docente.

Introdução

Nas últimas três décadas as transformações ocorridas no mundo do trabalho, em

consequência do processo de reestruturação da economia mundial, caracterizada

principalmente pelos mercados globalizados e pelos avanços tecnológicos, provocaram

mudanças no papel do Estado, no sentido de adequá-lo à nova realidade econômica. Neste

cenário, a educação, como instância de formação do trabalhador, assume uma posição

estratégica, em que a preocupação com a qualidade do serviço prestado educacional em

cada país, torna-se central, levando os governos a adotarem diversas tecnologias de

controle sobre os sistemas de ensino por meio de diversas políticas educacionais.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302460

Dentre as mais diversas tecnologias de controle sobre os sistemas de ensino, as

avaliações de larga escala vêm se configurando, no cenário internacional e nacional, como

uma das principais âncoras das políticas públicas educacionais. Vários países, entre eles

o Brasil, vêm investindo inúmeros recursos na implementação de sistemas de avaliações

externas com a finalidade de verificar quais competências e habilidades estão sendo

adquiridas pelos alunos da educação básica – a Prova Brasil e o Índice de

Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) são exemplos de instrumentos de controle

e política de avaliação da educação básica. Com a implementação do IDEB, a partir de

2007, como índice de qualidade da educação básica, os processos de avaliação externa da

educação têm-se centrado na verificação do desempenho dos alunos mediante provas

padronizadas nacionalmente (Prova Brasil), constituindo-se em uma grande ferramenta

de regulação da escola, do currículo e do trabalho docente. Por se tratar de um instrumento

que pressupõe a melhoria educacional, a responsabilidade por essa qualidade recai sobre

as escolas e seus professores, gerando um clima de competição entre as instituições de

ensino, ranqueando-as de acordo com os níveis alcançados pelo IDEB.

Diante do exposto, este artigo tem como finalidade analisar os impactos na

escola e no trabalho docente, bem como o desafio destes, diante das repercussões das

atuais políticas públicas nacionais de avaliação nos anos iniciais do Ensino Fundamental

nas instituições escolares do município de Rio Branco. Este estudo é resultado de uma

pesquisa institucional realizada entre os anos de 2012 a 2014, no município de Rio

Branco, no meio urbano, contemplando as escolas de Ensino Fundamental (I segmento)

sob a gestão pedagógica da rede municipal de ensino.

Cabe esclarecer que, em Rio Branco, todas as escolas públicas dos anos iniciais

do Ensino Fundamental estão sob a gestão da rede municipal de ensino, por meio do

Regime de Colaboração entre Estado e Municípios que institucionaliza, além de uma

gestão educacional compartilhada, um reordenamento de rede em que, gradativamente,

ocorre o processo de municipalização das escolas de Educação Infantil e de 1º ao 5º ano

do Ensino Fundamental, tendo como escopo legal a Lei Estadual Nº. 1.694/2006, que

institui o Sistema Estadual de Educação Básica.

Para atingir os objetivos propostos para este estudo qualitativo, recorreu-se,

primeiramente, a uma revisão de literatura sobre os estudos que envolvem a temática

investigada, com o propósito de contextualizar a problemática estudada; em seguida,

passou-se para uma pesquisa documental a partir da leitura e análise dos materiais

curriculares para os anos iniciais do ensino fundamental (Matriz Curricular), estruturado

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302461

em Cadernos de Orientação Curricular que são referências para o planejamento de ensino

e para a organização do trabalho pedagógico nas escolas públicas do município de Rio

Branco. E para finalizar, aplicaram-se entrevistas semiestruturadas aos professores que

atuam nos anos iniciais do ensino fundamental das escolas públicas do município de Rio

Branco, utilizando-se como critério de escolha desses participantes o zoneamento das

escolas e professores que atuam especificamente em turmas que participam das

avaliações nacionais (Prova Brasil), totalizando 20 professoras distribuídas

equitativamente pelos 05 zoneamentos escolares, nos quais são distribuídas as escolas da

rede estadual de acordo com a localização dos bairros na capital.

Tendo em vista que esse tema ainda não foi suficientemente explorado em

pesquisas educacionais, seja em âmbito nacional, seja em âmbito local, as discussões das

questões tratadas por esta pesquisa no contexto educacional do Acre estão fundamentadas

no entendimento de que é necessário ampliar as reflexões sobre as políticas de avaliação

da educação básica, já consolidadas em nosso sistema educacional. Tais políticas trazem,

em seu cerne, implicações não somente para o trabalho docente, mas para toda a

organização da escola, que utiliza os resultados das avaliações em larga escala como única

fonte para detectar a qualidade da eficácia dos sistemas escolares.

As Políticas Públicas de Avaliação Nacional e suas Repercussões na Educação

O lugar estratégico assumido pela educação no processo de desenvolvimento

econômico brasileiro tem revelado uma crescente preocupação com o papel que as escolas

da educação básica devem assumir para garantir a infraestrutura necessária à

competitividade do Brasil nas disputas internacionais por mercado. Neste cenário, as

políticas públicas educacionais vêm dando especial ênfase ao modelo de avaliação

externa condicionada estritamente ao desempenho dos estudantes e ao monitoramento

dos resultados educacionais com vistas à regulação dos sistemas de ensino.

A implementação de sistemas de avaliação como uma das principais políticas

educacionais no Brasil é justificada, nos discursos, documentos e programas de governo,

pela necessidade da sociedade conhecer o que se passa nos sistemas escolares, por meio

da publicização dos resultados do desempenho dos estudantes nos exames nacionais,

longamente divulgados pela mídia, de tal forma que se chega a acreditar que tais

resultados são inquestionáveis. Esse quadro prenuncia a concepção de educação

defendida pelas políticas públicas educacionais brasileiras. Uma concepção de “educação

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302462

de resultados” em desconsideração a uma formação humanista e cidadã. Para Freitas

(2012, p. 345), os educadores profissionais devem acompanhar esse movimento “com

apreensão, pelo fato de que a educação é um fenômeno social mais amplo e que, do ponto

de vista de seus compromissos formativos com a juventude, não pode ter na economia

seu único determinante”.

Na referida concepção, passa-se a buscar a qualidade da educação a partir da

produção dos índices de desempenho dos alunos, medidos em testes padronizados, o que

tem provocado um gerenciamento da força de trabalho dos professores para uma cultura

de auditoria do desempenho das escolas. Essa nova cultura toma das empresas o modelo

de gestão a ser adotado pelas escolas, transferindo técnicas empresariais de aumento de

produtividade para o campo educacional, por entender que, dessa forma, pode-se chegar

a uma educação de qualidade. Qualidade esta, entendida como um subsistema de relações

entre o que se investe em termos de recursos materiais e humanos e o que é produzido

com esse investimento na escola e na sala de aula.

Nessa lógica, a qualidade pode ser definida a partir dos resultados educativos,

representados pelo desempenho do aluno. Esse tipo de qualidade de educação contábil

impera ao condicionar o trabalho docente aos índices estatísticos, deixando de lado

aspectos importantes da educação escolar e instituindo uma cultura na qual, cada vez

mais, têm lugar a competitividade e a individualidade.

Temas como “responsabilização”, “meritocracia” e “privatização”, constituem,

segundo Freitas (2011a, 2011b, 2012), um bloco articulado da ideologia defendida pelas

políticas de avaliação que se escondem sob o manto aparente do cientificismo dos testes.

Tais políticas defendem que a responsabilização pelos resultados das médias em exames

nacionais e internacionais seja legitimada pela meritocracia, elemento este, que é o

ingrediente básico desse processo de organização e promoção da educação pública.

Assim, se pretende legitimar, perante a opinião pública, as ações de controle dos

profissionais da educação, a forma de gestão, e a própria privatização das escolas.

Acreditando-se que, se a escola pública for gerenciada pela lógica empresarial, a

qualidade de seu produto – o ensino – melhora.

Dessa forma, instala-se, como política pública educacional, uma cultura de

avaliação a partir de uma logística de aplicação de testes, na qual as questões de qualidade

são subordinadas à lógica empresarial. Apesar de reconhecer a importância dos testes no

mundo educacional como uma ferramenta de pesquisa, segundo Freitas (2011b, p. 10),

“o grave problema é que eles foram sequestrados pelo mercado e pelo mundo dos

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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negócios e nele, as suas naturais limitações são ignoradas”, principalmente, no que diz

respeito ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), em que o nível

socioeconômico dos alunos não é contemplado.

Observa-se, portanto, que as atuais políticas públicas de avaliação nacional

exercem significativa pressão sobre a organização da escola e sobre o trabalho docente,

induzindo e controlando os profissionais envolvidos no processo educativo e

redirecionando a formação dos alunos para a força de trabalho, monitorando “os fluxos

de qualificação de mão de obra, além do óbvio controle ideológico da educação, para a

indústria educacional” (FREITAS, 2011, p. 06). Portanto, as políticas de avaliação

utilizadas para medir a qualidade da educação básica é apenas uma das pontas do iceberg

das propostas liberais de “responsabilização” e privatização do público, que implica em

responsabilizar a escola e seus profissionais pela qualidade do ensino, enquanto

desresponsabiliza o Estado sobre a realidade educacional do país.

Desafios da Escola e do Trabalho Docente face à Cultura de Avaliação no contexto

educacional do Acre

No Acre, vem se observando, nos últimos anos, por parte da gestão das

Secretarias de Educação, tanto do município de Rio Branco, quanto do estado, uma

preocupação significativa em alcançar, cada vez mais, melhores posições no ranking do

sistema nacional de avaliação. Dessa forma, justificou-se esse estudo que teve como

finalidade analisar os impactos na escola e no trabalho docente, bem como o desafio

destes diante das repercussões das atuais políticas públicas nacionais de avaliação nos

anos iniciais do ensino fundamental nas instituições escolares do município de Rio

Branco, tendo como ponto central a obrigação por resultados escolares, decorrentes da

chamada cultura da avaliação.

No Acre, o mecanismo considerado mais eficaz para as mudanças dos índices

educacionais (entendidos como “qualidade da educação”), na visão dos professores

pesquisados, foi o “controle da Secretaria de Estado de Educação e da equipe gestora da

escola sobre o desempenho dos alunos nos exames nacionais, a partir de um

acompanhamento e supervisão mais efetiva sobre o trabalho do professor”. Esse

acompanhamento e supervisão realizados de forma mais efetiva sobre o trabalho devem

ser entendidos como um maior controle exercido sobre o que se ensina em cada ano

escolar, principalmente, nos anos escolares que serão submetidos às avaliações de larga

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302464

escala. Essa perspectiva vincula, diretamente, a “qualidade da educação” ao desempenho

dos alunos nos testes nacionais. Consequentemente, o ensino e a aprendizagem do

currículo escolar ficam submetidos a processos de auditoria, viabilizados por esses

indicadores de desempenho. Os docentes começam a compreender que o seu trabalho

com o currículo escolar transforma-se em resultados que, por sua vez, desempenham um

papel crucial no conjunto de mudanças educacionais.

Passou-se a exigir das escolas e de seus profissionais, um ensino com mais

eficiência e mais produtividade nos resultados dos exames nacionais, a partir do

desempenho do aluno, pondo em prática uma nova regulação educativa, mediante novas

formas de controle, de vigilância e de autoverificação, com base na cobrança de resultados

fixados a partir de metas educacionais. Esses profissionais organizam sua prática docente

de forma a preparar os alunos para os futuros momentos em que suas competências e

habilidades serão testadas externamente, acreditando que os desempenhos individuais dos

alunos servem como parâmetros para demonstrar a qualidade de seu trabalho. Portanto,

se esforçam para serem reconhecidos pela comunidade escolar, pela sociedade e,

principalmente, pela mídia, por seus bons resultados, apresentados pelo desempenho dos

alunos.

Constatou-se o esforço que vem sendo feito pela gestão educacional do Acre

para reajustar, redirecionar, readequar o currículo praticado nas escolas públicas do ensino

fundamental (anos iniciais) às Matrizes de Referência da Prova Brasil. Outros estudos

evidenciam, também, as estratégias engendradas pelo Estado para manter sob seu

domínio as questões atinentes ao campo do currículo e identificam orientações oficiais

no sentido de mobilizar as escolas para a reconstrução de seus projetos, enfocando as

habilidades e as competências elencadas nas Matrizes de Referência da Prova Brasil Durli

e Shneider (2009, 2011). Em outras palavras, ensine-se o que pode ser ‘mensurável’ e o

que não pode, deve desaparecer do currículo.

Na busca pela eficiência traduzida e produzida pelas avaliações em larga escala,

o currículo vem se reduzindo a um elenco básico de competências e habilidades, deixando

para trás objetivos educacionais mais amplos que compreendem uma formação para a

vida e para o trabalho e não para a empregabilidade. Freitas (2011a) chama atenção para

o fato de que esse encantamento com as novas teorias de medição tem deixado de lado

questões educacionais importantes, como entender que essas técnicas medem

competências e habilidades e não o conhecimento/conteúdo escolar, diretamente. Em

outras palavras, nem todos os objetivos educacionais podem ser medidos na forma de

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302465

competências ou habilidades. Portanto, desde aí, inicia-se um processo de redução do

currículo, ao selecionar apenas aqueles conhecimentos passíveis de medição,

principalmente, quando esses conhecimentos concentram-se em duas disciplinas

(geralmente português e matemática), como no caso do IDEB ou três, como no caso do

PISA (português, matemática e ciências).

Para Oliveira (2010), o uso dessas avaliações que tem como base apenas a

dimensão do desempenho dos alunos não constitui um indicador de qualidade da

educação, simplificando, dessa forma, as finalidades educacionais, induzindo-as,

meramente, a preparar as crianças e os jovens para os testes.

Já para Saviani (2007) o IDEB pode até representar um avanço no que diz

respeito à combinação dos resultados do rendimento dos alunos com os dados de evasão

e repetência escolar, possibilitando, assim, aferir por um padrão comum, os resultados de

aprendizagem de cada aluno e de cada escola, em âmbito nacional. No entanto, o autor

critica a lógica interna que rege essa política de avaliação representada por esse índice

(IDEB) e traduzida por uma espécie de “pedagogia dos resultados”, na qual se avalia o

produto e não o processo, forçando o seu ajuste às exigências postas pelas demandas do

mercado.

Sobre o controle que a política de avaliação nacional vem exercendo sobre os

processos educacionais, Souza (2009) também é enfática ao afirmar que um dos

desdobramentos do IDEB poderá vir a ser o seu uso pelos gestores estaduais e municipais

como mecanismo de “incentivos financeiros” aos professores, podendo trazer

consequências sérias para o ensino, como o estreitamento do currículo.

No Acre, esse processo de estreitamento curricular já se evidencia. No material

analisado na pesquisa documental - “cadernos de orientação e referência para o

planejamento de ensino e organização do trabalho pedagógico nas escolas públicas do

município de Rio Branco” (COC) - os conteúdos explicitados neste documento não

aparecem relacionados na forma convencional como conceitos, temas e informações e

sim, na forma de “ordens de comando pedagógico” referindo-se a determinados modos

de trabalhar com os conteúdos, explicitando o que exatamente deve-se ensinar para que

se potencialize a capacidade das crianças de fazer, de proceder.

Ainda que no quadro de referências curriculares das diferentes áreas que

compõem este Caderno os conteúdos não sejam apresentados separadamente,

conforme os tipos indicados acima, é importante ressaltar que predominam os

procedimentos. Isso acontece porque, embora os diferentes componentes

curriculares contem com conteúdos de todos os tipos, é a capacidade de uso do

conhecimento o que mais importa. Em relação aos conceitos, por exemplo, o

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302466

‘saber sobre’ está sempre a serviço do ‘saber fazer’, ou seja, tudo o que a

criança aprende deve potencializar sua capacidade de proceder. Portanto, neste

documento não se verá os conteúdos relacionados na forma convencional: ao

invés de breves listas com conceitos, temas e informações, a forma de

apresentá-los já faz referência, mesmo que nem sempre direta, a um certo

modo de trabalhar com eles, ou seja, está explicitado o que exatamente ensinar.

(Cadernos de Orientação Curricular - Orientações Curriculares para o Ensino

Fundamental – Caderno1, 5º ano, 2009, p. 18).

A ênfase, portanto, é no “saber fazer”, pois, só essas competências e habilidades

são possíveis de medir o papel de controle dos objetivos da educação de forma ideológica.

Em outras palavras, o importante é estabelecer o que cada estudante fará em determinada

etapa de ensino, de forma que o seu desempenho possa ser medido em termos de

competências e habilidades básicas, o que deixa de fora outras habilidades, outras

competências que podem e devem fazer parte do seu desenvolvimento intelectual.

“Podemos entender que essa preocupação faça parte dos objetivos educacionais, mas não

podemos concordar em reduzir a educação a estas necessidades corporativas e nem

delegar a elas a avaliação da qualidade da educação das nações” (FREITAS, 2011b, p.

11).

As “ordens de comando pedagógico”, explicitadas nos Cadernos de Orientação

Curricular do estado do Acre, ao se constituírem referências para o planejamento e para

a organização do trabalho pedagógico, também se apresentam como uma estratégia para

definir e direcionar o trabalho dos professores ao que devem fundamentalmente ensinar

em termos de aprendizagem escolar.

A formação pautada pela busca dos resultados não só reconfigura o currículo

escolar, como também subtrai a autonomia profissional docente que fica dependente de

ordenações e controles externos sobre o seu trabalho, marcando a prática pedagógica pela

urgência posta pelas avaliações em larga escala, em que o seu trabalho se reduz a ensinar

para os testes. Neste caso, os impactos causados nas escolas e nos professores centram-

se em mecanismos de controle que modelam/regulam não só as ações curriculares, mas

restringem a autonomia dos professores e potencializam sua autorresponsabilização pelos

resultados escolares.

O Estado, por meio de suas políticas de avaliação, surge como agente

fundamental de regulação curricular das redes de ensino, de modo que o currículo passa

a ser reduzido a uma lista de competências e habilidades, restringindo o conjunto de

conhecimentos a que o estudante deve ter acesso em sua trajetória de formação

acadêmica. Bonamino e Sousa (2012) também chamam a atenção para o estreitamento do

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302467

currículo escolar como consequência dos testes de larga escala enfatizando que,

É difícil discordar da alegação de que as avaliações em larga escala lidam com

uma visão estreita de currículo escolar diante do que as escolas se propõem

como objetivos para a formação de seus estudantes. Também é complexo o uso

de testes padronizados para aferir objetivos escolares relacionados a aspectos

não cognitivos. O problema decorre do fato de os currículos escolares

possuírem múltiplos objetivos, ao passo que as medidas de resultados

utilizadas pelas avaliações em larga escala tipicamente visam a objetivos

cognitivos relacionados à leitura e à matemática. Essa não é exatamente uma

limitação das avaliações, mas demanda atenção para riscos relativos ao

estreitamento do currículo, os quais podem acontecer quando há uma

interpretação distorcida do significado pedagógico dos resultados da avaliação

(p. 383-384).

Observou-se no presente estudo que o estreitamento do currículo vem ocorrendo

nas escolas dos anos iniciais do Ensino Fundamental do Acre e que o processo de

divulgação do IDEB é o responsável por esse impacto que altera a lógica de organização

das escolas, induzindo-as a se organizarem com base nos resultados e indicadores

educacionais para alcançar, cada vez mais, melhores posições no ranking do sistema

nacional de avaliação. Tal fato recai diretamente sobre o trabalho dos professores, que são

pressionados a produzirem melhores resultados, reorganizando seu trabalho pedagógico,

dando ênfase ao ensino das competências e habilidades compreendidas nas disciplinas de

português e matemática, deixando de lado outros aspectos importantes dos demais

componentes curriculares da educação escolar responsáveis pela formação humana.

Desta forma, fica evidente que as políticas de avaliação nacional não são apenas

de indicadores de qualidade da educação - ainda que seja um indicador de resultados

desejáveis – mas também são responsáveis pela transformação dos sistemas escolares em

sistemas preparatórios de testes, posto que sua lógica interna se traduz em uma espécie

de “pedagogia dos resultados”, na qual se avalia o produto e não o processo e os fatores

extraescolares que interferem diretamente nos resultados educacionais.

Outro desdobramento que pode vir das políticas de avaliação no contexto

educacional acriano é o uso do sistema de aferição de resultados como mecanismo de

bonificação por desempenho, oferecendo recompensa financeira para professores de

acordo com o desempenho de seus alunos. No Acre, em setembro de 2013, o governador,

por meio do Decreto nº 6.393, de 20 de setembro de 2013, já instituiu o Sistema Estadual

de Avaliação da Aprendizagem Escolar – SEAPE, nas escolas da rede pública estadual de

ensino. Como a política da rede municipal segue geralmente as mesmas orientações da

rede estadual, é possível que seja adotada a utilização do mesmo sistema de aferição dos

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302468

resultados da educação básica também com a função de subsidiar a formulação e o

monitoramento das políticas educacionais para a função de bonificação aos docentes e

instrumento de prestação de contas da escola e seus profissionais à sociedade.

Todos esses impactos sofridos pela escola e pelos seus docentes, face à cultura

de avaliação já presente no contexto educacional do Acre, trazem desafios aos educadores

de profissão, no sentido de proporcionar às crianças e aos adolescentes uma formação que

os tornem capazes de lutar por um mundo melhor, tornando-se sujeitos de direitos e

incluídos cultural e socialmente, com qualidade de vida, não limitando sua formação às

habilidades básicas que reduzirão chances e perspectivas em termos de destinos sociais.

Considerações Finais

As reflexões construídas ao longo deste trabalho demonstram que, face às

políticas públicas educacionais, mas precisamente àquelas que dizem respeito à avaliação

da educação básica, a escola e seus profissionais vêm sofrendo, atualmente, significativos

impactos que alteram não só a organização da instituição, mas, principalmente, afetam o

currículo e o ensino que nela se desenvolvem.

As repercussões das políticas públicas educacionais se estruturam, não somente

com base na criação de uma nova arquitetura da organização do trabalho escolar e da

reestruturação do trabalho pedagógico, mas também na produção de um novo

comportamento docente, mediante a fabricação de uma nova identidade profissional. A

performatividade, associada à política de accountability, fabrica, de certa forma, a identidade

profissional dos professores, a partir da concepção de profissionalismo definida pela

competitividade, eficiência e produtividade, representada pelo "espetáculo" das

estatísticas e dos rankings.

Gradativamente, o trabalho docente vem sendo reconfigurado face à cultura do

desempenho instalada nos sistemas públicos de ensino que, ao adotarem uma gestão por

resultados, contribuem para o estreitamento do currículo, reduzindo-o a um projeto de

formação menor, limitando o currículo escolar às Matrizes de Referências das avaliações

de larga escala, ignorando outros aspectos formativos tão importantes quanto as

competências e as habilidades apresentadas em forma de descritores, que poderão

representar, de forma bastante reduzida, o repertório de conhecimentos ao qual os

estudantes devem ter acesso em sua trajetória formativa. Esses descritores, ainda que

disponham de conteúdos básicos e mínimos, não podem se tornar prioridades de ensino,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

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pois não dão conta de todos os objetivos educacionais propostos no desenvolvimento do

currículo escolar. A tarefa formativa dos alunos não pode ser substituída pela corrida para

a melhoria de índices e dados estatísticos. De igual modo, sua “formação integral” não

pode ceder lugar para a “formação por resultados”.

Conclui-se ainda que, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – um

dos principais indicadores gerados pelas políticas de avaliação – já está consolidado, em

nosso sistema educacional, como indicador de “qualidade” do ensino, o que impulsiona

os pesquisadores educacionais a estudar as suas implicações na organização das escolas

e, fundamentalmente, na reestruturação do trabalho docente. Até o momento, as poucas

pesquisas realizadas apontam que o IDEB vem interferindo na organização escolar e no

trabalho docente, intensificando o trabalho desenvolvido pelos professores e

autorresponsabilizando-os pelo desempenho dos alunos nos testes de larga escola.

Ao caminhar para a finalização deste artigo, não é demais nos questionarmos

sobre o sentido da qualidade da educação, hoje, desenvolvida em nossas escolas. Uma

qualidade em que apenas as competências básicas e os conhecimentos mínimos são vistos

como o necessário para a formação de crianças e jovens. Os valores básicos da vida e da

convivência social deixam de ser enfatizados pela escola e pelos educadores, pois estes

tentam dar as respostas exigidas pelas atuais políticas públicas educacionais baseadas em

uma educação contábil.

Referências

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Curricular: Orientações curriculares para o ensino fundamental – Caderno 1, 5º ano. Rio

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ACRE. Decreto nº 6.393 de 20 de setembro de 2013. Institui o Sistema Estadual de

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ensino. Lex: Caderno Único – Diário Oficial do Estado do Acre. Acre, ano XLVI - nº

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_____Lei nº 1.694 de 21 de dezembro de 2005. Institui o Sistema Público da Educação

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2005. Disponível em: <http. www.aleac.ac.gov.br>. Acesso em 03/02/2014.

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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 302470

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