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IMPACTOS DOS ASSENTAMENTOS RURAIS: uma análise do Assentamento Rural Campestre
Norte, em Teresina-PI
Clarissa Flávia Santos Araújo1 Maria do Socorro Lira Monteiro2
Alyne Maria Sousa Oliveira3
RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar o impacto da criação do Assentamento Rural Campestre Norte, localizado em Teresina-PI. Assim, realizou-se levantamento documental no INCRA e SDR, e aplicou-se entrevistas não-diretivas com pessoas-chave, com o fito de compreender o histórico de criação do assentamento e o modo de vida do lugar. Os resultados da pesquisa indicam que a criação do assentamento possibilitou uma maior estabilidade e rearranjos nas estratégias de reprodução familiar dos assentados, resultando em melhoria das condições de vida, além de maior conhecimento e reivindicação dos direitos dos beneficiários da política pública da reforma agrária. Palavras-chave: Reforma Agrária. Assentamentos Rurais. Impactos.
ABSTRACT The objective of this paper is to analyze impacts Campestre Norte Rural Settlement formation, located in Teresina-PI. Thus, documental survey was performed on INCRA and SDR and non-directive interviews were done with key people, in order to comprehend history of settlement formation and its way of life. Research results indicate that settlement caused greater stability and new solutions for familiar reproduction strategies of settled people, bringing life conditions’ improvement, as well as higher rights’ knowledge and demanding for agrarian reform beneficiaries. Keywords: Agrarian Reform. Rural Settlements. Impacts.
1 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail:
[email protected] 2 Doutora. Universidade Federal do Piauí (UFPI). 3 Doutora. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI).
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1 INTRODUÇÃO
Segundo Leite (2012), a emergência dos assentamentos rurais colocou-se como
um dos fatos mais marcantes no cenário da questão agrária brasileira, principalmente a
partir da década de 1980 até os dias atuais. Assim, o termo assentamento rural surgiu no
Brasil, por um lado, devido à atuação estatal direcionada ao controle e à delimitação do
novo “espaço” criado e, por outro, em razão dos processos de luta e conquista por terra
pelos trabalhadores rurais.
Ressalta-se que, existem no Brasil 9.128 mil assentamentos de reforma agrária,
com 956.543 famílias assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA). Considerando especificamente os assentamentos situados no Piauí, o referido
órgão e seus predecessores criaram, no período de 1900 a 2014, 494 projetos de
assentamentos, envolvendo uma área de 1.381.296,77 ha, beneficiando 31.142 famílias.
Desse total, o município de Teresina conta com o maior número: 14
assentamentos, dos quais sete são geridos pelo INCRA, quatro estão sob a
responsabilidade do INCRA em parceria com a Prefeitura Municipal de Teresina (PMT), por
meio da Superintendência do Desenvolvimento Rural (SDR) e três são administrados pelo
Instituto de Terras do Piauí (INTERPI), totalizando uma área de 11.034,06 hectares e 891
famílias assentadas (INCRA, 2014).
Em função desse cenário, a questão da reforma agrária suscita significativos
debates teóricos ao longo da história recente do país, devido às diferentes visões sobre a
forma de implementação desta política pública, e em relação ao desigual desempenho
econômico verificado nos assentamentos.
Nesse sentido, conforme Herédia et al (2003), os assentamentos encerram
modificações na zona rural em que estão inseridos, em função de possibilitar a ampliação
de demandas de infraestrutura, como estradas, escolas, postos de saúde, energia elétrica,
crédito, etc., derivadas da pressão sobre os poderes públicos locais e estaduais
responsáveis pela prestação de serviços.
Ampliando o debate, segundo Leite et al (2004, p.45), os impactos dos
assentamentos são representados pelas “mudanças que ocorrem na relação do
assentamento com o seu entorno” e podem ser consolidados em oito eixos temáticos: poder
local, participação política e políticas públicas, organização social, configuração produtiva,
meio ambiente e ordenamento territorial, demografia, condições de vida e percepção dos
próprios sujeitos do processo.
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Nesse contexto, o propósito deste trabalho é analisar o impacto da criação de
assentamentos rurais em Teresina, embasado nos oito eixos temáticos propostos por Leite
et al (2004) e tendo como objeto empírico de pesquisa o Assentamento Rural Campestre
Norte, selecionado a partir do critério populacional, em função de ser o mais populoso do
universo de assentamentos situados no município.
Como recursos metodológicos da pesquisa, realizou-se levantamento
documental no INCRA e SDR, tomando-se por base o processo de formalização e
reconhecimento do assentamento. Ademais, aplicaram-se entrevistas não-diretivas com
pessoas-chave, como líderes do assentamento e funcionários dos órgãos gestores do
assentamento, com o fito de compreender o histórico de criação do assentamento e o modo
de vida do lugar.
O presente trabalho está estruturado da seguinte forma: no primeiro item
apresentam-se discussões sobre a política de assentamentos rurais implantada no Brasil; o
segundo trata da discussão dos impactos do Assentamento Rural Campestre Norte, além da
conclusão.
2 A POLÍTICA DE ASSENTAMENTOS RURAIS NO BRASIL E SEUS IMPACTOS
Segundo Leite et al (2004), a maioria dos assentamentos no país decorreu de
desapropriações motivadas por conflitos e influenciadas pelos movimentos sociais. Portanto,
a gênese dos assentamentos resultou de diferentes formas de luta pela terra, como:
ocupações massivas, públicas e paulatinas de terras, realizadas por pequenos grupos e de
forma silenciosa; resistência pela terra, empreendida por parceiros arrendatários e posseiros
que permanecem na terra onde trabalhavam ou moravam; e mista, resultante da
combinação das formas anteriores.
A despeito das particularidades dos diferentes programas de intervenção pública
que marcaram a implantação de projetos no campo e das diversas formas de luta pela terra
organizadas pelos trabalhadores rurais, Bergamasco e Norder (1996) classificam os
assentamentos rurais em cinco tipos: projetos de colonização, que caracterizam-se como os
primeiros projetos de caráter estatal, no período de 1970 a 1985; áreas de reassentamentos
de populações atingidas por barragens de usinas hidrelétricas, os quais predominaram nos
anos 1980; projetos de valorização de terras públicas e de regularização de propriedades
ocupadas por posseiros, oriundos de planos estaduais, praticados durante os anos de 1980
e início dos anos 1990; programas de reforma agrária por meio da desapropriação por
interesse social, implementados a partir de 1986; e de áreas de assentamentos formadas
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pela criação de reservas extrativistas para seringueiros da região amazônica e de outras
atividades relacionadas ao aproveitamento de recursos naturais renováveis.
Assim, as áreas de assentamentos recebem diversas categorias de
trabalhadores, sejam rurais ou urbanos: posseiros, produtores familiares, parceiros em
busca de terra própria, atingidos por barragens, seringueiros, assalariados rurais,
populações de periferia urbana, aposentados urbanos e rurais (MEDEIROS, 2003). Dessa
forma, percebe-se uma diversidade de beneficiários diretos dos assentamentos, uma vez
que a origem dos assentamentos rurais no Brasil decorreu da luta dos vários segmentos de
trabalhadores rurais, inseridos em um contexto de problemas sociais, tanto no campo como
na cidade.
Evidencia-se que o processo de criação e consolidação dos assentamentos
constitui uma forma de ação de coletiva; assim, além do público direto, uma pluralidade de
atores é envolvida: o governo federal, o INCRA, poder judiciário, governos estaduais e
municipais através dos órgãos relacionados à questão da terra, secretarias de agricultura e
seus organismos de assistência técnica, organizações não-governamentais, Igrejas,
sindicatos, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), associações de produtores,
dentre outros (MEDEIROS; LEITE, 2009).
Nesse sentido, conforme Herédia et al (2003), o acesso a terra permite às
famílias beneficiárias maior estabilidade e rearranjos nas estratégias de reprodução familiar,
que resultam em melhoria dos rendimentos e das condições de vida, sobretudo, quando se
considera a situação de pobreza e exclusão social que caracterizava as famílias
anteriormente ao ingresso nos projetos de assentamento.
Dessa maneira, enfatiza-se que um assentamento rural constitui uma área que
recebe investimentos a partir de políticas sociais desenvolvidas pelo Estado, que passa a
ser o principal articulador do processo de implantação e o definidor de políticas de produção
para essas novas áreas. Assim, verifica-se nessas novas áreas um processo de
reconversão de trajetórias de vida e reelaboração de relações sociais, em que trabalhadores
que tinham na provisoriedade do acesso a terra a condição de sobrevivência passam a
ganhar condições de fixação, como “assentados” (MEDEIROS; LEITE, 2009).
Em relação ao conceito governamental, conforme a Portaria nº 80/2002 do MDA,
o assentamento rural é compreendido como uma unidade territorial obtida pelo Programa de
Reforma Agrária do governo federal, ou em parceria com estados ou municípios, por
desapropriação, arrecadação de terras públicas, aquisição direta, doação, reversão ao
patrimônio público ou por financiamento de créditos fundiários, para receber em etapas,
indivíduos selecionados pelos programas de acesso a terra (BRASIL, 2002).
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O INCRA, enquanto órgão responsável por implementar a política de reforma
agrária no país, define assentamento como o retrato físico da reforma agrária, sendo que
seu nascimento ocorre, quando o referido órgão, após imitir a posse da terra, a transfere aos
trabalhadores rurais sem terra para que a cultivem e promovam o desenvolvimento
econômico (INCRA, 2015b).
Desse modo, segundo INCRA (2015a), os assentamentos rurais são divididos
em dois grandes grupos: projetos criados por meio de obtenção de terras pelo INCRA e os
projetos reconhecidos pelo INCRA, criados pelas instituições governamentais para acesso
às políticas públicas do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA).
A primeira categoria abrange as modalidades Projeto de Assentamento Federal
(PA), Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), Projeto de Desenvolvimento
Sustentável (PDS), Projeto de Assentamento Florestal (PAF) e Projeto de Assentamento
Casulo (PCA).
O segundo grupo inclui as modalidades Projeto de Assentamento Estadual (PE),
Projeto de Assentamento Municipal (PAM), Programa Nacional de Crédito Fundiário (PCF),
Reservas Extrativistas (RESEX), Território Remanescente Quilombola (TRQ), Projeto de
Reconhecimento de Assentamento de Fundo de Pasto (PFP), Projeto de Reassentamento
de Barragem (PRB), Floresta Nacional (FLONA), Reserva de Desenvolvimento Sustentável
(RDS).
No que diz respeito ao processo de criação dos assentamentos rurais, este é
feito através da publicação de portaria, na qual constam os dados do imóvel, a capacidade
estimada de famílias, o nome do projeto e as próximas ações para sua implantação. Após a
criação, o INCRA inicia a fase de instalação das famílias no local, com o pagamento dos
primeiros créditos e a realização do Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA)
(INCRA, 2015a).
De acordo com o referido órgão, o PDA é um estudo que deve conter um
diagnóstico da realidade local e propostas para desenvolver o assentamento. Um dos
primeiros resultados do PDA é a organização espacial do projeto de assentamento, na qual
é realizado o parcelamento do imóvel em lotes, através de sorteio para designar o lote que
caberá a cada família, e são definidas e delimitadas as áreas comunitárias, as áreas de
preservação ambiental e para instalação de escolas, igrejas, espaços de lazer, etc.
Ainda referente à fase de instalação, a implantação da infraestrutura básica
consiste em umas das ações prioritárias nos assentamentos, contemplando a construção
e/ou complementação de estradas vicinais e o saneamento básico, por meio da criação de
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sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, além da montagem de redes
de eletrificação rural.
As obras são executadas através de licitações públicas ou convênios com
estados ou municípios, ou ainda, por meio de parcerias com outros órgãos governamentais
da esfera federal, como o Ministério de Minas e Energia (Programa Luz para Todos),
Ministério da Defesa, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Companhia de Pesquisa
de Recursos Minerais (CPRM), Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rio São
Francisco e do Parnaíba (Codevasf), entre outros.
No que concerne aos créditos destinados aos assentamentos, foi criado o Novo
Crédito de Instalação, através da Lei nº 13.001/2014, e regulamentado pelo Decreto nº
8.256/2014, adotando uma nova sistemática de garantia de recursos ao público da reforma
agrária, com ciclos progressivos (Microcrédito e Mais Alimentos para a Reforma Agrária), e
orientados de estruturação produtiva (BRASIL, 2014).
O Ciclo I, denominado Instalação, compõe-se de: Apoio Inicial I, destinado à
instalação no assentamento e a aquisição de itens de primeira necessidade, no valor de até
R$ 2.400,00 por família; Apoio Inicial II, voltado à aquisição de bens duráveis de uso
doméstico e equipamentos produtivos, no valor de até R$ 2.800,00 por família; Fomento,
para a viabilização de projetos produtivos de promoção da segurança alimentar e nutricional,
além de estímulo da geração de trabalho e renda, no valor de até R$ 6.400,00 por família,
divididos em duas operações (Fomento 1 e 2) de até R$ 3.200,00; e Fomento Mulher,
voltado à implantação de projeto produtivo sob responsabilidade da mulher titular do lote, no
valor de até R$ 3.000, em operação única, por família assentada (BRASIL, 2014).
O Ciclo II, chamado de Inclusão Produtiva, compreende o Microcrédito, voltado à
inclusão produtiva das famílias, com acesso a até três operações no valor de R$ 4.000,00. E
o Ciclo III, intitulado Estruturação Produtiva (Mais Alimentos para a Reforma Agrária), que
destina-se às famílias que pretendem expandir as atividades produtivas e não acessaram
outro investimento, com limite de R$ 25.000,00, em uma ou mais operações, na modalidade
investimento, e de até três operações de R$ 7.500,00 para custeio (BRASIL, 2014).
Em relação à habitação, com a criação do Novo Crédito de Instalação, a
construção das habitações rurais nos lotes, incluindo o pagamento de mão-de-obra, que era
realizada no âmbito do Crédito Instalação, na modalidade Aquisição para Material de
Construção, no valor de R$ 8.200,00 por família, passa a ser financiada pelo Programa
Nacional de Habitação Rural (PNHR), integrante do Programa Minha Casa Minha Vida,
conforme a Portaria Interministerial MC/MP/MDA nº 78/2013.
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O valor do financiamento da casa nova pode chegar a R$ 28,5 mil por família
assentada, e no caso de reforma do imóvel, o valor do financiamento é de R$ 17,2 mil. Os
assentados são enquadrados no Grupo 1, que recebe o maior subsídio do programa (96%
sobre o valor da casa) e as famílias beneficiadas pagarão 4% do valor financiado, em quatro
parcelas anuais, no valor médio de R$ 280,00 (CEF, 2015).
Em relação aos instrumentos que asseguram o acesso a terra, os beneficiários
recebem títulos de domínio ou de concessão de uso. O Contrato de Concessão de Uso
(CCU), documento de caráter provisório, dá direito ao assentado de morar e explorar o lote
pelo tempo que desejar e de receber sua posse, se cumprir todas as exigências constante
na legislação. O CCU também assegura o cumprimento das exigências legais para a
permanência da família no assentamento, com todos os deveres, direitos e proibições legais
(INCRA, 2015a).
Cabe mencionar que os assentados são proibidos de vender, arrendar, alugar,
emprestar ou ceder para particulares os lotes de assentamentos do INCRA. Já o título de
domínio, garantido pela Lei nº 8.629/1993, transfere o imóvel rural ao beneficiário da reforma
agrária em caráter definitivo, quando verificado que foram cumpridas as cláusulas do
contrato de concessão de uso e o assentado tem condições de cultivar a terra e de pagar o
título de domínio em 20 (vinte) parcelas anuais (INCRA, 2015a).
Nesse sentido, após o assentamento das famílias, inicia-se uma nova luta pela
consolidação da posse da terra: a construção desse novo território, com a necessária
infraestrutura social (saúde, educação e transporte de qualidade, moradia adequada às
especificidades da família rural) e produtiva (terras férteis, assistência técnica, crédito).
Ampliando o debate para os impactos gerados pelos assentamentos, segundo
Leite et al (2004, p.45), eles são representados pelas “mudanças que ocorrem na relação do
assentamento com o seu entorno” e podem ser consolidados em oito eixos temáticos: poder
local, participação política e políticas públicas, organização social, configuração produtiva,
meio ambiente e ordenamento territorial, demografia, condições de vida e percepção dos
próprios sujeitos do processo.
De acordo com os referidos autores, do ponto de vista do poder local, da
participação política e das políticas públicas, a constituição de um assentamento acarreta
alterações nas relações de poder, uma vez que a desapropriação e a consequente criação
do projeto significam o reconhecimento do conflito agrário por parte do Estado.
No tocante à participação política e às políticas públicas, defendem que a
constituição do assentamento instaura mecanismos reivindicativos e uma dinâmica de
demandas que às vezes divergem das apresentadas por outras comunidades locais.
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Para Leite et al (2004), do ponto de vista da organização social dos assentados,
a luta pela terra e os procedimentos de criação do assentamento proporcionam a
experiência de novas formas de participação e sociabilidade entre assentados, rearranjando
redes de relações pessoais e originando a formação de associações, cooperativas e grupos
religiosos, de mulheres, de jovens, entre outros.
Com ênfase na configuração produtiva, os assentamentos tendem a promover a
diversificação da produção agrícola, a introdução de atividades mais lucrativas e mudanças
tecnológicas que alteram a composição da renda dos assentados, afetam o comércio local,
incrementam a arrecadação de impostos e a produção (LEITE et al, 2004).
Por outro lado, na perspectiva do meio ambiente, Leite et al (2000) observaram
que é recorrente a instalação de assentamentos em áreas inapropriadas para a agricultura,
o que tem resultado em intensificação do desgaste do solo e perda de produtividade. Em
contrapartida, são várias as situações de redirecionamento da produção e possibilidades de
recuperação dos recursos naturais, com a introdução de adubação verde e da agricultura
orgânica.
No que se refere ao ordenamento territorial, para Leite et al (2004), o
assentamento acarreta novas formas de ocupação do espaço, com o surgimento de
pequenos lotes onde predominava a grande propriedade, e agrovilas em áreas nas quais a
população era dispersa. As alterações demográficas mais significativas provocadas pelos
projetos envolvem a transferência de uma população “de fora” da região ou o deslocamento
de populações urbanas para áreas rurais.
Para Leite et al (2004), no que tange aos aspectos relacionados à qualidade de
vida e percepção dos assentados, esta é afetada principalmente pela melhoria do nível de
renda, das condições de moradia, do acesso a saúde e a educação, da segurança alimentar
e do autoconsumo.
Logo, conclui-se que a consolidação dos assentamentos de reforma agrária
constitui parte de uma estratégia de desenvolvimento, cujo êxito está intrinsecamente ligado
à abertura de diversas possibilidades, cujos efeitos não são mensuráveis a priori. Faz-se,
portanto, necessário dimensionar cuidadosamente o seu desempenho no nível local.
3 IMPACTOS DA CRIAÇÃO DO ASSENTAMENTO RURAL CAMPESTRE NORTE
Do ponto de vista do poder local, da participação política e das políticas públicas
(LEITE et al, 2004) e, de acordo com a Carta de Adesão do Projeto Casulo Campestre
Norte, elaborada pela PMT, o imóvel denominado Fazenda Aprazível, possuía uma área de
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2.483,5 ha, com uma parte localizada no município de Teresina-PI e outra no município de
José de Freitas-PI, sendo objeto de vistoria pelo INCRA em agosto de 1998.
O relatório de vistoria do referido órgão apresentou a proposta de
desapropriação parcial da área, na extensão de 1.731,1 ha, ficando excluída a parcela em
que se encontra instalada a sede do imóvel. No entanto, apesar do parecer técnico
favorável, a fazenda não foi desapropriada pelo INCRA, o que intensificou muitos
desentendimentos entre o proprietário e os moradores do imóvel, que arrendavam a terra
(INCRA, 2001).
Por solicitação dos arrendatários e das lideranças locais do povoado Campestre
Norte e áreas circunvizinhas ao gestor municipal da época, a prefeitura passou a negociar a
área, que foi adquirida em 23 de janeiro de 2001 (INCRA, 2001).
Conforme as entrevistas efetuadas, a iniciativa de criar o assentamento partiu da
Sra. Teresinha de Sousa Medeiros Santos, atual vereadora de Teresina-PI, que formou um
grupo com 31 pessoas e fundou em 10 de setembro de 2001 a Associação de Produtores
Rurais Assentados da Comunidade Campestre Norte (APRACAN).
Em 09 de julho de 2001, a PMT lavrou oficio nº 296/2001 ao INCRA,
encaminhando a aprovação e homologação da Carta de Adesão do Projeto de
Assentamento Campestre Norte, na modalidade Casulo, solicitando a abertura de processo
para a consecução do referido PCA, com uma área de 797,6 ha, a fim de beneficiar 180
famílias residentes no Povoado Campestre Norte e áreas circunvizinhas. A formalização do
Processo nº 54380.003245/2001-80, ocorreu em 06 de agosto de 2001 (INCRA, 2001).
Assim, do ponto de vista da organização social dos assentados (LEITE et al,
2004), a constituição da associação foi um passo fundamental na luta dos trabalhadores
rurais pela terra, não somente para resolver os problemas com o proprietário do imóvel, mas
também porque viabilizou politicamente a conquista da terra a uma população desprovida
deste recurso e que era por ele explorada.
O Assentamento Rural Campestre Norte é gerido pelo INCRA e pela PMT, por
meio da SDR e foi reconhecido em 2001. Situa-se na zona rural leste de Teresina-PI,
compreendendo uma área total de 797,6 ha, distante 26 km da sede do município e
limitando-se com os Povoados Giba, Barreiras e Boqueirão (INCRA, 2001).
Com ênfase na configuração produtiva (LEITE et al, 2004), a principal atividade
do assentamento baseia-se na produção de cana de açúcar (Saccharum spp.) para venda
direta à Usina COMVAP – Açúcar e Álcool Ltda., localizada no município de União-PI e
adquirida em 2002 pelo Grupo Olho D’Água, com sede em Recife-PE.
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Segundo relatos dos assentados, a iniciativa para a implantação, em 2004, do
Projeto Cana de Açúcar no assentamento partiu dos próprios assentados, cuja maioria era
de ex-funcionários da COMVAP, com experiência no plantio de cana de açúcar. Para tanto,
contaram com o apoio da PMT: “A Prefeitura deu apoio massivo para o projeto, com
assistência técnica, assistente social e acompanhamento por três anos” (informação
verbal)4.
Entretanto, atualmente, apenas 106 sócios, dos 180 assentados que integram a
associação, participam efetivamente do referido projeto, caracterizado como a única
atividade produtiva do assentamento, cuja gestão cabe à APRACAN, incluindo a definição
de quem vai trabalhar no período de safra e entressafra.
Face ao exposto, compreende-se que a introdução e a ampliação do plantio da
cana de açúcar no assentamento têm implicado a fragmentação interna entre os que
participam do projeto ou não, o que poderá suscitar questionamentos da população sobre a
gestão do trabalho e a produção para o autoconsumo, o que pode confluir para sua perda
de identidade como território de reforma agrária.
Em termos de impactos ambientais (LEITE et al, 2004), o uso intensivo do solo e
de insumos químicos (agrotóxicos), tem ocasionado perda de produtividade agrícola.
Acrescenta-se, a queimada da cana de açúcar para a colheita, que tem acarretado redução
sistemática da biodiversidade e intensa poluição atmosférica, afetando a saúde da
população residente do assentamento.
No que se refere ao ordenamento territorial (LEITE et al, 2004), a criação do
assentamento acarretou novas formas de ocupação do espaço onde predominava
anteriormente a grande propriedade, com o surgimento do núcleo habitacional, composto
pelas sete áreas verdes, nove áreas institucionais e pelos 180 pequenos lotes residenciais
medindo 15m X 35 m; da área de 270 ha para exploração agropecuária, destinada ao
plantio de cana de açúcar; da área de reserva legal, com 166,6 ha; além das áreas não
aproveitadas e de preservação permanente.
Em relação às alterações demográficas (LEITE et al, 2004), verifica-se um
elevado crescimento populacional e problemas decorrentes das ocupações irregulares. O
assentamento conta com 180 famílias cadastradas; entretanto, surgem novas residências
próximas ao núcleo habitacional do assentamento, edificadas em Área de Preservação
Permanente (APP), além de novas moradias dentro dos lotes, que surgem em decorrência
da constituição de novas famílias dos filhos de assentados. Ao todo, são 53 famílias vivendo
4 Entrevista concedida por SILVA, A. C. Assentamento Rural Campestre Norte, Teresina, 10 out.
2014.
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em habitações precárias, servidas insuficientemente de água e energia, e sem esgotamento
sanitário.
Além destas, 72 famílias ocupam também irregularmente, o assentamento.
Essas famílias ocupam 44 ha de terras, destinadas à expansão do plantio de cana de
açúcar, o que ocasionado sérios conflitos entre os assentados e os por eles denominados
de “sem-terra”. Assim, presenciam-se intensas disputas, marcadas, sobretudo por violência
física. Segundo servidores da SDR, há uma proposta de criação de um novo assentamento,
para realocar os ocupantes irregulares da área; porém, até a presente data, nenhuma
decisão nesse sentido foi tomada por parte da prefeitura.
No que tange à qualidade de vida (LEITE et al, 2004), sob o ponto de vista das
condições da habitação, verificou-se que os assentados residem em casas de alvenaria,
cobertas por telha, sem piso de cerâmica, edificadas pelo INCRA, com os recursos oriundos
do antigo Programa de Crédito Instalação, na modalidade Aquisição de Materiais de
Construção.
No âmbito da educação, a população assentada é atendida pelo Centro
Municipal de Educação Infantil (CMEI) Santa Teresinha, que funciona em regime de creche,
e pela Escola Municipal Campestre Norte, que oferta os ensinos fundamental e médio,
ambos situados dentro da área do assentamento (PMT, 2011).
Em relação à saúde, os assentados são atendidos pelo Posto de Saúde Lina
Gayoso, que conta com serviços de atenção básica, nas modalidades Programa Saúde da
Família (PSF) e Programas Comunitários de Saúde (PACS), dispondo de um médico, um
dentista, uma enfermeira, duas técnicas de enfermagem, uma técnica em higiene bucal e
cinco agentes de saúde (PMT, 2011).
3 CONCLUSÃO
A criação dos assentamentos rurais no Brasil foi resultado de uma política
governamental que tinha por eixo atenuar conflitos sociais do campo e não de alteração da
estrutura fundiária do país. Assim, muitos assentamentos são caracterizados pela ausência
de prévio planejamento de localização e de mecanismos de apoio, além de enfrentarem
situações bastante adversas, no que se refere às condições de instalação, com evidentes
reflexos sobre as condições de produção, formas de sociabilidade e estabilidade econômica.
Com efeito, os assentados reproduzem-se materialmente através da renda
advinda da parceria com a usina COMVAP, configurando-se produtores de cana de açúcar,
a fim de atender uma demanda do mercado externo. Nessa perspectiva, seu território de
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reforma agrária é contraditoriamente determinado pelas lógicas e práticas produtivas
engendradas pelo capital agroindustrial, que estabelece claras relações de poder, o que tem
caracterizado uma reconfiguração territorial do agronegócio e da agricultura familiar.
Por outro lado, ressalta-se que a criação do Assentamento Rural Campestre
Norte, possibilitou uma maior estabilidade econômica e rearranjos nas estratégias de
reprodução familiar dos assentados, os quais resultaram em melhoria das condições de
vida, além de maior conhecimento e reivindicação dos direitos dos beneficiários da política
pública da reforma agrária, que se situam em meio a um processo de resgate da dignidade
historicamente comprometida.
Não obstante os impactos positivos observados no assentamento, cumpre
ressaltar que não sinalizam um processo de reforma agrária em curso, uma vez que a
referida política pública passa a compreendida como mero programa de regularização
fundiária, promovendo a concessão de uso de terras destinadas ao plantio de matéria-prima
para o agronegócio, em detrimento da segurança alimentar dos beneficiários.
4 REFERÊNCIAS
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