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; INTRODUÇÃO Muito se tem escrito sobre o capitalismo, entre marxistas e outros na esquerda política, mas a maioria desses livros sofre de uma ou outra falha. Um tipo é constituído basicamente de análises lógico-dedutivas, que partem de definições do que supõem ser o capi- talismo na sua essência, e a seguir observam o quanto ele ·se desenvolveu em diversas épocas e lugares. Um segundo tipo se concentra sobre as supostas transfor- mações principais do sistema capitalista a partir de algum momento recente no tempo, onde todo o mo- mento ante'rior serve como modelo mitologizado con- tra o qual se confronta a realidade empírica atual. O que me parece urgente, uma tarefa para a qual, em certo sentido, tem se dirigido o conjunto do meu trabalho recente, é ver o capitalismo como um sistema histórico, na totalidade de sua história e na sua reali- dade concreta única. Portanto, coloco-me a tarefa de descrever esta realidade, delineando precisamente o que esteve em contínua alteração e o que nunca se al- terou de modo algum (de modo a poder designar toda a realidade sob um .único nome).

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O capitalismo histórico Cap. I.

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Page 1: Immanuel Wallerstein O Capitalismo Histórico Cap. I

;

INTRODUÇÃO

Muito se tem escrito sobre o capitalismo, entre marxistas e outros na esquerda política, mas a maioria desses livros sofre de uma ou outra falha. Um tipo é constituído basicamente de análises lógico-dedutivas, que partem de definições do que supõem ser o capi­talismo na sua essência, e a seguir observam o quanto ele ·se desenvolveu em diversas épocas e lugares. Um segundo tipo se concentra sobre as supostas transfor­mações principais do sistema capitalista a partir de algum momento recente no tempo, onde todo o mo­mento ante'rior serve como modelo mitologizado con­tra o qual se confronta a realidade empírica atual.

O que me parece urgente, uma tarefa para a qual, em certo sentido, tem se dirigido o conjunto do meu trabalho recente, é ver o capitalismo como um sistema histórico, na totalidade de sua história e na sua reali­dade concreta única. Portanto, coloco-me a tarefa de descrever esta realidade, delineando precisamente o que esteve em contínua alteração e o que nunca se al­terou de modo algum (de modo a poder designar toda a realidade sob um .único nome).

jorge
Texto digitado
Título O capitalismo histórico. Immanuel Wallerstein São Paulo Brasiliense. 1985. p. 93.
jorge
Texto digitado
jorge
Texto digitado
jorge
Texto digitado
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Creio, como muitos outros, que esta realidade é um todo integrado. Mas muitos que afirmam esta perspectiva argumentam-na como um ataque a ou­tros, contra· seu alegado "economicismo"' ou seu "idealismo" cultural, ou sua ênfase excessiva sobre fa­tores políticos "voluntaristas". Tais críticas, pratica­mente por sua própria natureza, tendem a cair, por ricochete, no pecado oposto ao que estão atacando. Tentei, então, apresentar de modo inteiramente direto a realidade integrada global, tratando sucessivamente de suas expressões nos campos econômico, político e cultural-ideológico.

Finalmente, quero dizer uma palavra sobre Karl Marx. Ele foi uma figura grandiosa na história inte­lectual e política moderna. Legou-nos urna herança importante, conceitualmente rica e moralmente esti­mulante. Contudo, quando ele disse que não era um marxista, deveríamos levá-lo a sério e não descàrtar o comentário como um bon mot.

Ele sabia, como muitos de seus autoproclarnados discípulos não sabem, que era um homem do século 19, cuja visão estava necessariamente circunscrita por aquela realidade sociaL Ele sabia, como muitos não sabem, que uma formulação teórica é inteligível e uti­lizável apenas em relação à formulação alternativa que ela, explicita ou implicitamente, ataca, e que se torna inteiramente irrelevante vis-à-vis formulaÇões sobre outros problemas, baseadas em outras premissas. Ele sabia, como muitos não sabem, que havia uma tensão, na apresentação do seu trabalho, entre a exposição do capitalismo como um sistema perfeito (que, de fato, nunca existiu historicaménte) e a análise da realidade cotidiana concreta do mundo capitalista.

Usemos, então, seus escritos da única forma sen­. sala- a de um camarada de luta que sabia o mesmo

que ele sabia.

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A MERCANTILIZAÇÃO DE TUDO: A PRODUÇÃO DE CAPITAL

O capitalismo é antes e acima de tudo um sistema social histórico. Para compreender suas origens, fun­cionamento e perspectivas atuais, precisamos olhar para a sua realidade presente. Naturalmente, podemos

', tentar resumir essa realidade numa série de proposi­ções abstratas, mas seria tolo usar então tais abstra­ções a seguir, para julgar e classificar a realidade. Assim, proponho, ao invés disso, tentar descrever o que o capitalismo realmente tem sido na prática, como tem funcionado como um sistema, por que se desen­volveu nas formas que se desenvolveu, e para onde se encaminha atualmente.

A palavra capitalismo ê derivada de capital. Seria então legítimo supor que o capital é um elemento-chave no capitalismo. Mas o que é o capital? Pode ser inter-

. pretado apenas como riqueza acumulada. Mas, quan­do utilizado no contexto do capitalismo histórico, ele tem uma definição mais específica. Não é apenas o es­toque de bens des:Qilliumo de maguinarias ou de direi­!gs_s.ohre..coisas materiais. assegurados pela forma_® dinheiro. O capital no capitalismo histórico certamente continua a se referir a tais acumulações dos esforços de

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trabalho passado, ainda não gastos. Mas se isso fosse tudo, todos os sistemas históricos anteriores aos do ho­mem de Neanderthal poderiam ser considerados capi­talistas, visto que todos possuíam algumas reservas acumuladas que encarnavam trabalho passado.

O que distingue o sistema social histórico que es· tamos chamando de capitalismo histórico é o fato de que, nesse sistema histórico, o capital veio a ser usado (investido) de forma muito específica. Veio a ser usado com o objetivo ou intenção básica de auto-expansão. Nesse sistema, as acumulações anteriores eram "capi­tal" apenas na medida em que eram usadas para acu­mular mais do mesmo. Sem dúvida, como veremos, o processo foi complexo, e mesmo sinuoso. Mas é esta finalidade incessante e curiosamente autodirigida do detentor de capital, a acumulação de ainda mais capi­tal, e são as relações que esse detentor do capital teve então de estabelecer com as outras pessoas, a fim de realizar sua finalidade, que nós chamamos de capita­listas. Certamente, esse objetivo não foi exclusivo. Ou­tras considerações intervieram no processo de produ­ção. Mas a questão é: em caso de conflito, que consi­derações tenderam a prevalecer? Ao longo do tempo, em qualquer época que tenha sido a acumulação capi­talista a predominar regularmente sobre outros obje­tivos, podemos dizer que estamos observando um sis­tema capitalista em funcionamento.

V m indivíduo ou um grupo de indivíduos pode­ria, naturalmente, decidir em qualquer época que gos­taria de investir capital com o objetivo de adquirir ainda mais capital. Mas, antes de um determinado momento do tempo histórico, nunca foi fácil para tais indivíduos agir com êxito. Em sistemas anteriores, o longo e complexo processo de acumulação do capital esteve quase sempre bloqueado em um ou outro pon­to, mesmo naqueles casos em que existia sua condição prévia: a propriedade ou concentração, nas mãos de poucos, de uma reserva de bens previamente não-con­sumidos. Nosso hipotético capitalista sempre precisou obter o uso de trabalho, o que significava que deviam existir pessoas que pudessem ser atraídas ou obriga­das a realizar tal trabalho. Uma vez obtidos os traba,

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lhadores e produzidos os bens, estes bens deviam ser comerciados de alguma maneira, o que significava que devia haver tanto um sistema de distribuição como um grupo de compradores que tivessem com o que adqui· rir os bens. Além do mai~. os bens deveriam ser vendi­dos a um preço maior do que os custos totais (a n!vel do mercado) empregados pelo vendedor. Essa margem de diferença deveria ainda ser maior do que a neces· sária para a subsistência do próprio vendedor. Na nos· sa linguagem moderna, deveria haver um lucro. O proprietário do lucro deveria então ser capaz de retê­lo, até ocorrer uma oportunidade razoável para in· vesti-lo, e a partir disso todo o processo teria de reco· meçar, desde o momento da produção.

Na verdade, antes dos tempos modernos, essa c a· deia de processos (às vezes chamada de circuito doca­pital) raramente se completaria. Por um motivo: mui· tos desses elos da cadeia eram considerados, em siste­mas sociais anteriores, irracionais e/ou imorais pelos detentores da autoridade política e moral. Mas mesmo na ausência de intervenção direta daqueles que tinham o poder de interferir, o processo geralmente fracassou devido à falta de disponibilidade de um ou mais ele· mentos do processo - a reserva acumulada na forma de dinheiro, a força de trabalho a ser utilizada pelo produtor, a rede de distribuidores, a demanda dos consumidores.

Faltavam um ou mais elementos porque, nos sis· temas sociais históricos anteriores, um ou mais desses elementos não eram .. mercantiliza.dos" 1 ou o eram apenas insuficientemente. Isso significa que o pro· cesso não era considerado capaz ou pass!vel de entrar numa transação de "mercado". O capitalismo hist6-rico incluía, portanto, a mercantilização generalizada dos processos- não simplesmente processos de troca, mas processos de produção, processos de distribuição

·e processos de. investimento - que anteriormente ha· viam percorrido vias que não as de um "mercado". E, uma vez postos em movimento, os capitalistas, na cor· rida para acumular mais e mais capital, buscaram mercantilizar mais e mais os processos sociais em to­das as esferas da vida econômica. Dado que o capita·

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lismo é um processo autodirigido, segue-se que ne­nhuma transação social foi intrinsecamente isentada de uma possível inclusão. É por isso que podemos di­zer que o desenvolvimento histórico do capitalismo implicou o impulso para a mercantilização de todas as coisas.

E não bastou mercantilizar os processos sociais. Os processos de produção ligavam-se uns aos outros em complexas cadeias de mercadorias. Por exemplo, con­sideremos um produto típico largamente produzido e vendido ao longo da experiência histórica do capita­lismo, um artigo de vestuário. Para produzir um ar­tigo de vestuário, precisa-se no mínimo de tecido, fio, algum tipo de maquinaria, e força de trabalho. Mas cada um desses itens, por sua vez, teve de ser produ­zido. E os artigos que entraram na sua produção, por sua vez, tiveram de ser produzidos. E assim por diante, não interminavelmente, mas até a uma boa distância. Não era inevitável - nem mesmo usual - que todo su bprocesso dessa cadeia de mercadorias estivesse mercantilizado. Na verdade, como veremos, o lucro geralmente é maior quando nem todos os elos da ca­deia estão de fato mercantilizados. O que é claro é que, em tal cadeia, há uma série muito grande e di­fusa de trabalhadores que estão recebendo algum tipo de remuneração que entra como custo na folha de ba­lanço. Há também uma série de pessoas, muito menor mas também geralmente difusa (que, além disso, ge­ralmente não estão unidas como parceiros econômi­cos, mas operam como entidades econômicas diferen­tes), que de algum modo participam da margem de lucro final, que existe na cadeia de mercadorias, entre os custos totais de produção da cadeia e a renda total resultante da colocação do produto final.

Uma vez obtidas tais cadeias de mercadorias a li­garem múltiplos processos produtivos, é claro que a taxa de acumulação para todos os "capitalistas" reu­nidos tornou-se uma função da maior ou menor mar­gem de lucro que podia ser criada, numa situação em que tal margem podia flutuar consideravelmente. A taxa de acumulação para os capitalistas particulares, porém, era uma função de um processo de "concor-

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rência" entre eles, com retornos mais elevados para aqueles que tinham maior perspicâcia nas suas avalia­ções, maior habilidade em controlar sua força de tra­balho e maior acesso às coerções politicamente defi­nidas sobre operações particulares de mercado (gene­ricamente conhecidas como "monopólios").

Isso criou uma primeira contradição bâsica no sistema. Enquanto parecia ser do interesse de todos os capitalistas, considerados enquanto classe, a redução, sob qualquer forma, de todos os custos de produção, na verdade tais reduções de custo freqüentemente fa­voreceram alguns capitalistas particulares, em detri­mento de outros. Portanto, alguns preferiram aumen­tar sua parcela numa margem global menor a aceitar uma parcela menor numa margem global maior. Além disso, havia uma segunda contradição fundamental no sistema. Quanto mais se acumulava capital, mais se mercantilizavam os processos e mais se produziam mercadorias, um dos requisitos-chave para manter o fluxo era o de haver mais e mais compradores. Con­tudo, ao mesmo tempo, os esforços em reduzir os cus­tos de produção freqüentemente reduziam o fluxo e a distribuição do dinheiro, e continham, assim, a ex­pansão constante de consumidores, necessários para completar o processo de acumulação. Por outro lado, as redistribuições do lucro global através de formas que expandiriam a rede de consumidores muitas vezes reduziam a margem global de lucro. Desse modo, os empresários individuais encontravam-se de fato im­pulsionando numa direção em prol de suas próprias empresas (por exemplo, ao reduzirem seus próprios custos de trabalho), enquanto simultaneamente pres­sionavam (como membros de uma classe coletiva) para aumentar a rede geral de consumidores (o que impli­cava, inevitavelmente, pelo menos para alguns produ­tores, um aumento nos seus custos de trabalho):

A economia do capitalismo, portanto, tem sido governada pelo propósito racional de maximizar a acu-. mutação. Mas o que era racional para os empresários não era"necessariamente racional para os trabalhado­res. E, ainda mais importante, o que era racional para todos os empresários, enquanto grupo coletivo, não

' .

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era necessariamente racional para um determinado empresário qualquer. Portanto, não basta dizer que todos buscavam seus próprios interesses. Os interesses próprios de cada pessoa freqüentemente levaram-na, de modo inteiramente "racional", a se engajar em ati­vidades sucessivamente contraditórias. O cálculo dos interesses a longo prazo tornou-se pois excessivamente complexo, mesmo se excluirmos da discussão o grau em que as .percepções de cada um acerca de seus pró­prios interesses eram obscuras e distorcidas pelos com­plexos véus ideológicos existentes, que discutiremos mais tarde. Por ora, afirmo provisoriamente que o ca­pitalismo histórico realmente acabou por produzir um hómo economicus, mas acrescento que ele era quase 'inevitavelmente um bocado confuso.

· Mas há uma "coerção objetiva" que limitava a confusão. Se um determinado indivíduo errasse cons­tantemente nas decisões econômicas, fosse por igno­rância, fatuidade ou preconceito ideológico, este indi­viduo (esta firma) tenderia a não sobreviver no mer­cado. A falência foi o detergente mais adstringente do sistema capitalista, forçando constantemente todos os atores econômicos a se manterem mais ou menos "nos trilhos", pressionando-os a agir de modo tal que, cole­tivamente, a acumulação de capital fosse favorecida.

Portanto, quando dizemos que estamos descre­vendo o capitalismo histórico, estamos descrevendo aquele lugar integrado de atividades produtivas, con­creto e limitado pelo tempo e pelo espaço, ein que a ilimitada acumulação de capital foi de fato o objetivo ou a "lei" econômica que governou ou prevaleceu na atividade econômica fundamentàl. É aquele sistema social em que aqueles que agiram conforme tais regras causaram tão grande impacto no conjunto que cria­ram condições em que os outros foram forçados a se conformar aos padrões ou a sofrer as conseqüências. É aquele sistema social em que o escopo dessas regras (a lei do valor) tornou-se sempre mais vasto, os execu­tores dessas regras sempre mais intransigentes, a pene­tração dessas regras na estrutura social sempre maior, mesmo quando a oposição social a elas tornou-se mais sonora e mais organizada.

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O CAPITAUSMO HISTÓRICO 15

Usando essa descrição do que se entende por ca­pitalismo histórico, cada um de nós pode olhar e de­terminar por si a que lugar integrado, concreto e limi­tado. pelo tempo e pelo espaço, ele se refere. Minha visão pessoal é que a gênese desse tipo de sistema his­tórico situa-se na Europa do final do século 15, que o sistema expandiu-se no espaço até abarcar o globo no final do século 19, e que ainda hoje recobre o mundo inteiro. Compreendo que esse rápido traçado das fron· teiras espaço-temporais suscita muitas dúvidas em muitos espíritos. Essas dúvidas são, porém, de dois tipos. Um tipo é o das dúvidas empíricas. No século 16, a Rússia estava dentro ou fora da economia-mun­do européia? Exatamente quando foi incorporado o Império Otomano ao sistema capitalista mundial? Po­demos considerar tal ou tal zona interior de um de­terminado Estado em determinada época realmente "integrada" à economia-mundo capitalista? Estas questões são importantes, tanto em si mesmas, como porque, ao tentar respondê-las, somos forçados a tor­nar mais precisas nossas análises dos processos doca­pitalismo histórico. Mas não é este o momento nem o lugar para responder a essas numerosas questões empi· ricas, que estão sob contínuo debate e elaboração.

Há, no entanto, um segundo tipo de dúvida, o tipo que questiona a própria utilidade da classificação indutiva que acabei de sugerir. Há aqueles que se re­cusam a aceitar que possa existir o capitalismo como algo além de uma forma especifica de relação social no local de trabalho, a de um empresário privado que em· prega trabalhadores assalariados. Há aqueles que de· sejam pensar que, quando um determinado Estado nacionalizou suas indústrias e proclamou sua fideli­dade às doutrinas socialistas, encerrou-se, daquele momento em diante, com tais atitudes e como resul­tado de suas conseqüências, a participação daquele Estado no sistema capitalista mundial. Estas não são questões empíricas, mas teóricas, e tentaremos res­pondê-las ao longo dessa discussão. Porém, não as res­ponderemos dedutivamente porque, nesse caso, não seria pertinente. Não seria um debate racional, mas simplesmente um confronto de crenças opostas. Res·

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pondê-las-emos heuristicamente, argumentando que nossa classificação indutiva é mais útil que as outras, porque abrange mais fácil e elegantemente aquilo que hoje conhecemos coletivamente sobre a realidade his­tórica, e porque nos permite uma interpretação dessa realidade que nos habilita a agir mais eficazmente no presente.

Observemos, pois, como o sistema capitalista realmente funcionou. Dizer que o objetivo de um pro­dutor é a acumulação de capital é dizer que ele tentará produzir o máximo possível de um determinado bem, e colocá-lo à venda com a maior margem possível de lucro. Mas ele assim agirá no interior de uma série de restrições econômicas que existem, como se diz, "no mercado". Por força das circunstâncias, sua produção total é limitada pela disponibilidade (relativamente imediata) de coisas tais como materiais, força de tra­balho, compradores e acesso a dinheiro para expandir sua base de investimentos. A quantidade que ele pode produzir lucrativamente e a margem de lucro que ele pode pretender são também limitadas pela capacidade de seus "concorrentes" de oferecer o mesmo artigo a preços de venda mais baixos; neste caso, não os con­correntes de qualquer parte do mercado mundial, mas aqueles situados nos mesmos mercados locais imedia­tos e mais circunscritos, onde ele realmente vende (embora este mercado seja definido numa determi­nada instância). A expansão de sua produção será res­tringida também pela intensidade com que sua produ­ção ampliada criará um efeito de redução de preços no mercado "local'', efeito tal que o lucro total efetivo realizado na sua produção total realmente seria redu­zido.

Todas estas são restrições objetivas, ou seja, exis­tem independentemente de qualquer conjunto parti­cular de decisões do dado produtor ou de outros atuan­tes no mercado. Essas restrições são o resultado ou soma dos efeitos do processo social total, tal como ele existe naquele tempo e espaço concretos. Natural­mente, além disso, há sempre outras restrições, mais abertas à manipulação. Os governos podem adotar ou já ter adotado várias regras que, de algum modo,

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transformam as opções econômicas e, portanto, os cál­culos de lucro. Um determinado produtor pode ser o beneficiário ou a vítima das regras vigentes. Um de­terminado produtor pode tentar persuadir as autori­dades políticas a alterarem suas regras a seu favor.

Como agiram os produtores. de modo a maximi­zar sua capacidade de acumular capital? A força de trabalho sempre foi um elemento central e quantita­tivamente significativo no processo de produção. O produtor empenhado em acumular teve duas preocu­pações diferentes acerca da força de trabalho: sua dis­ponibilidade e seu custo. O problema da disponibili­dade foi geralmente colocado da seguinte maneira: re· !ações sociais de produção fixas (uma força de traba · lho estável para um determinado produtor) seriam ba­ratas quando o mercado foS'Se estável e se a magnitude de sua força de trabalho fosse ótima naquele momen­to. Mas quando o mercado para o produto diminuísse, o fato de a força de trabalho ser fixa aumentaria seu custo real para o produtor. E quando aumentasse o mercado para o produto, o fato de a força de trabalho ser fixa tornaria impossível para o produtor aproveitar as oportunidades de lucro.

Por outro lado, forças de trabalho variáveis tam­bém tiveram suas desvantagens para o capitalista. Forças de trabalho variáveis eram, por definição, for­ças de trabalho que não estavam necessariamente tra­balhando de modo contínuo para o mesmo produtor. Portanto, tais trabalhadores predsariam se preocu­par, em termos de sobrevivência, com sua taxa de re­muneração ao largo de um período de tempo suficien­temente longo para nivelar as variações no provimento real. Isto é, os trabalhadores teriam de ser capazes de conseguir no emprego o suficiente para cobrir os pe­ríodos em que não recebessem remuneração. Por con­seguinte, as forças de trabalho variãveis muitas vezes custavam mais ao produtor, por hora individual, do que as forças de trabalho fixas.

Quando temos uma contradição, e aqui temos uma bem no centro do processo de produção capita­lista, podemos ter certeza de que o resultado será um ccmpromisso historicamente ambíguo. Observemos o

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que de fato aconteceu. Nos sistemas históricos que precederam o capitalismo histórico, a maioria (não toda) da força de trabalho era fixa.,Em alguns casos, a força de trabalho do produtor era apenas ele mesmo ou sua família, portanto fixa por definição. Em alguns casos, uma força de trabalho não-familiar estava li­gada a um produtor particular através de vários regu­lamentos legais e/ ou costumeiros (incluindo várias for­mas de escravidão, dependência por dividas, servidão, acordos de ocupação permanente ou semipermanente, etc.). As vezes a ligação durava toda a vida. As vezes durava períodos limitados, com opção de renovação; mas tal limitação temporal só era significativa quando existiam alternativas realistas no momento da renova­ção. Ora, a fixidez desses acordos colocou problemas não apenas para os produtores particulares aos quais se vinculava uma determinada força de trabalho. Co­locou problemas também para todos os outros produ­to'res, visto que obviamente os outros produtores só poderiam expandir suas atividades na medida em que existisse força de trabalho não-fixa disponível.

Tais considerações formaram a base, como tantas vezes se tem descrito, do surgimento da instituição do trabalho assalariado, em que havia um grupo de pes­soas permanentemente disponíveis para o emprego, ou seja, corno num leilão, disponíveis parao arrematante. Chamamos este processo de funcionamento do mer­cado de trabalho, e as pessoas que vendem seu traba­lho, de proletários. Não lhes revelo nada de novo ao dizer que, no capitalismo histórico, houve uma prole­tarização crescente da força de trabalho. A afirmação não só não é original; ela é também nada surpreen­dente. As vantagens do processo de proletarização para os produtores foram amplamente documentadas. ,í' O que é surpreendente não é que tenha havido tanta

, proletarização, mas que tenha havido tão pouca. Com 'j pelo menos 400 anos de existência lie um sistema so­cial histórico, não se pode dizer que .o total do traba­lho completamente proletarizado na economia capita­lista mundial atual tenha sequer alcançado 50%.

- Certamente, essa estatística depende de como e quem se mede. Se usamos estatísticas oficiais do go-

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O CAPITALISMO HISTÚRICO 19

vemo sobre a chamada força de trabalho economica­mente ativa, o que significa basicamente homens adul­tos formalmente disponíveis para o trabalho remune­rado, podemos descobrir que a porcentagem de traba­lhadores assalariados é considerada hoje razoavel­mente alta (embora, mesmo quando calculada a nível mundial, a porcentagem real seja menor do que supõe a maioria das afirmações teóricas). Contudo, se consi­derarmos todas as pessoas cujo trabalho é, de um ou outro modo, incorporado às cadeias de mercadorias, que então abrangem também praticamente todas as mulheres adultas, e uma enorme proporção de pessoas na faixa etária pré e pós-maturidade (ou seja, os jo. vens e velhos), então nossa porcentagem de prole­tários cai drasticamente.

Vamos dar mais um passo antes de procedermos à nossa mensuração. É conceitualmente útil aplicar o rótulo "proletário" a um indivíduo? Duvido. No capi· ta\ismo histórico, exatamente como em sistemas histó­ricos anteriores, os indivíduos tendiam a viver suas vi­das no interior de estruturas relativamente estáveis que partilhavam um fundo comum de renda corrente e capital acumulado que podemos chamar de espaço doméstico (household). O fato de as fronteiras desses espaços domésticos moverem-se continuamente, com as entradas e saídas dos indivíduos, não descaracteriza tais espaços como a unidade de cálculo racional em termos de receita e despesas. As pessoas que querem sobreviver contam todas as rendas que podem receber, não importa a fonte, e as calculam em termos das des­pesas reais que precisam fazer. No mínimo, tentam so­breviver; então, com uma receita maior, tentam desfru­tar de um estilo de vida que consideram satisfatório; e, por fim, com proventos ainda maiores, tentam entrar no jogo capitalista como acumuladores de capital. Para todos os propósitos efetivos, é o espaço doméstico que tem sido a unidade econômica a se engajar nessas atividades. Esse espaço geralmente tem sido uma uni­dade familiar, embora nem sempre, ou pelo menos não de modo tão exclusivo. Esse espaço doméstico em geral tem sido co-residencial, mas cada vez menos, à medida que prossegue a mercantilização.

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Foi no contexto de tal estrutura doméstica que começou a se impor sobre as classes trabalhadoras uma distinção social entre trabalho produtivo e impro, dutivo. De fato, o trabalho-produtivo veio a ser defi­n'ido como trabalho remunerável (basicamente traba­lho assalariá1·el), e o trabalho não-produtivo como um trabalho que, ainda que muito necessário, era mera­mente atividade de "subsistência" e, portanto, sem produção de "excedente" passível de ser apropriado por terceiros. Este trabalho ou era inteiramente não­mercantilizado, ou incluía uma produção mercantil in­significante (e, no caso, verdadeiramente insignifican­te). A distinção entre tipos de trabalho ancorava-se na criação de papéis específicos ligados a esses trabalhos. No espaço doméstico, o trabalho produtivo (assala­riado) tornou-se basicamente o encargo do homem adulto/pai, e secundariamente de outros homens adul­tos (mais jovens). O trabalho não-produtivo (de sub­sistência) tornou-se basicamente a tarefa da mulher adulta/mãe, e secundariamente de outras mulheres, das crianças e dos velhos. O trabalho produtivo era feito fora de casa, no "local de trabalho". O trabalho não-produtivo era feito dentro de casa.

As linhas divisórias certamente não eram absolu­tas, mas, sob o capitalismo histórico, tomaram-se completamente claras e obrigatórias. A divisão do tra­balho conforme gênero e idade não foi, obviamente, "uma invenção do capitalismo histórico. Provavelmente sempre existiu, ainda que apenas porque, para certas tarefas, havia pré-requisitos e limitações biológicas (de sexo, mas também de idade). Tampouco a família hierárquica e/ou a estrutura familiar foram invenção do capitalismo. Existiam também há muito tempo.

O que foi novo sob o capitalismo histórico foi a correlação entre divisão e valorização do trabalho. Os

'homens podem, freqüentemente, ter executado um trabalho diferente do das mulheres (e os adultos, um trabalho diferente do das crianÇas e dos idosos), mas sob o capitalismo histórico houve uma desvalorização constante do trabalho das mulheres (e dos jovens e ve­lhos), e uma ênfase correspondente no valor do traba­lho do homem adulto. Enquanto que, em outros siste-

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mas, os homens e mulheres realizavam tarefas dife­renciadas (mas normalmente equivalentes), sob o ca­pitalismo histórico o homem adulto assalariado foi classificado como aquele que tem o "ganha-pão", e a mulher adulta com trabalho doméstico foi classificada como "dona-de-casa". Então, quando começou a se compilar uma estatística nacional, ela própria um pro­duto de um sistema capitalista, todos os que possuíam um ganha-pão foram considerados membros da força de trabalho economicamente ativa, mas as donas-de­casa não. Assim se institucionalizou o sexismo. O apa· rato legal e paralegal de diferenciação e discriminação de gêneros foi conseqüência absolutamente lógica des­sa valorização diferencial básica do trabalho.

Podemos notar a esse respeito que os conceitos de infância e adolescência prolongadas e de "afastamen­to" da força de trabalho sem motivo de doença ou de­bilidade também foram concomitantes específicos das estruturas domésticas que surgiram com o capitalismo histórico. Eram freqüentemente considerados como liberações "progressistas" do trabalho. Contudo, po­dem ser vistos mais incisivamente como redefinições do trabalho em termos de não-trabalho. O insulto so­mou-se à injúria quando se rotulou como de algum modo "divertidas" as atividades educativas das crian· ças e as tarefas heterogêneas dos adultos aposentados, além de suas contribuições, em termos de trabalho, serem desvalorizadas como a contrapartida razoável da sua liberação da "dura labuta" do trabalho "ver-dadeiro''. ,

Enquanto ideologia, essas distinções ajudaram a garantir o caráter ao mesmo tempo extensivo e limi· tado da mercantilização do trabalho. Por exemplo, se se calculassem quantas casas na economia-mundo ob­tiveram mais que 50% dos seus proventos reais (ou receita total, sob todas as formas) a partir de trabalho assalariado fora de casa, penso que logo ficaríamos pasmados com os baixos índices percentuais, não só em séculos passados, mas mesmo atualmente, apesar do fato de que a porcentagem provavelmente cresceu de modo constante ao longo do desenvolvimento histó­rico da economia-mundo capitalista.

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Como podemos explicar isso? Não creio que seja muito dificil. Supondo que um produtor que utiliza trabalho assalariado prefere, sempre e em todos os lu­gares, pagar menos do que mais, o limite inferior do nível aceitável pelos trabalhadores assalariados tem sido uma função do tipo de espaço doméstico em que eles vivem ao longo de toda sua vida. Dito de maneira muito simples, para trabalho igual com níveis iguais de eficiência, o trabalhador assalariado que vive num espaço doméstico com alta porcentagem de rendimento assalariado (chamemos isso de espaço doméstico prole· tário) teria um piso monetário mais elevado (abaixo do qual ele consideraria completamente irracional traba · lhar por salário) do que o de um trabalhador assala· riado que vive num espaço doméstico com baixa por­centagem de rendimento assalariado (chamemos isso de espaço doméstico semiproletário).

A razão dessa diferença quanto ao que podemos chamar de piso salarial mínimo aceitável está relacio­nada com a economia de subsistência. Na medida em que as casas proletárias dependiam basicamente de rendimentos salariais, tal rendimento deveria cobrir os custos mínimos de subsistência e reprodução. To­davia, quando os salários formavam uma parcela me· nos importante da renda doméstica total, seria fre­qüentemente razoável para um indivíduo aceitar em­prego a uma taxa de remuneração que contribuía me· nos que sua parcela proporcional (em termos de horas de trabalho) de renda real, mas que, contudo, resul­tava na obtenção de dinheiro líquido necessário (tal necessidade muitas vezes sendo legalmente imposta), ou então implicava a substituição por este trabalho assalariado de um trabalho em tarefas com remune­ração ainda mais inferior.

O que, então, ocorreu nesses espaços domésticos semíproletários foi que aqueles que produziam outras formas de proventos reais- ou seja, basicamente pro­dução doméstica para autoconsumo ou venda num mercado local, ou ainda, é claro, ambos -, quer fos­sem outras pessoas da casa (de qualquer sexo e idade), quer fosse a mesma pessoa em outros momentos de sua vida, estavam criando excedentes que rebaixavam

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o piso salarial mínimo aceitável. Dessa forma, o traba· lho não-assalariado estava permitindo a alguns produ· tores remunerarem sua força de trabálho a taxas mais , baixas, rebaixando desse modo o custo de produção desses empregadores de trabalho assalariado e aumen­tando suas margens de lucro, Não é de surpreender que, como regra geral, todo empregador de trabalho assalariado preferisse que seus trabalhadores assala­riados vivessem em espaços domésticos semiproletá· rios, e não proletários. Se agora olhamos a realidade empírica global através do tempo e do espaço do capita­lismo histórico, descobrimos subitamente que a norma estatística foi a alocação de trabalhadores assalariados de espaços domésticos preferencialmente semiproletá­rios, Intelectualmente, nosso problema de repente se inverte, Explicando as razões da existência da prole ta· rização, fomos levados a explicar por que o processo era tão incompleto, Temos agora de seguir ainda mais adiante- por que houve afinal alguma proletarização?

Digo desde já que, se a taxa de proletarização mundial cresceu, é muito duvidoso que isso possa ser basicamente atribúído às pressões sócio-políticas dos estratos empresariais. Muito pelo contrário. Parece que eles teriam muitos motivos para diminui-la, Em primeiro lugar, como acabamos de argumentar, a transformação de um número significativo de espaços domésticos semiproletários em espaços domésticos pro· !etários numa determinada região tendia a elevar o ní· vel mínimo salarial real, conforme mostrou a experiên­cia dos empregadores de trabalho assalariado, Em se­gundo lugar, o aumento da proletarização teve corise· qüências políticas, como discutiremos adiante, negatí· vas para os empregadores; e cumulativas, portanto ca· pazes de, finalmente, aumentar ainda mais os níveis de pagamento salarial em determinadas regiões geográfi· co-econômicas. Na verdade, os empregadores de traba· lho assalariado eram tão pouco partidários da proJeta· rização que, além de criarem a divisão de trabalho por sexo e idade, também encorajaram, com sua influência na área política e em seus padrões de emprego, a dife· renciação de grupos étnicos definidos, tentando vincu· lá-los ao máximo a papéis específicos de alocação na.

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força de trabalho, com diferentes níveis de remunera­ção reaL A etnicidade criou uma crosta cultural que

. consolidou os padrões das estruturas domésticas semi­proletárias. O fato de o surgimento de tal etnicidade ter também desempenhado um papel de divisão polí­tica entre as classes trabalhadoras foi um bônus polí­tico para os empregadores, mas não foi, creio, o móvel principal nesse processo.

Antes, porém, de podermos compreender como afinal veio a ocorrer um aumento na proletarização ao longo do capitalismo histórico, temos de voltar à ques­tão das cadeias de mercadorias, onde se alocam as múltiplas atividades especificas produtivas. Devemos nos livrar da imagem simplista de que o "mercado" é um lugar onde se encontram o produtor inicial e o consumidor final. Não há dúvida de que existem e sempre existiram tais mercados. Mas no capitalismo histórico tais transações mercantis constituíram uma pequena porcentagem do conjunto. A maioria das transações envolveu a troca entre dois produtores in­termediários situados numa longa cadeia de mercado­rias. O comprador buscava um "insumo" para seu processo de produção. O vendedor vendia um "pro­duto semi-acabado", semi-acabado em termos de seu uso final no consumo individual direto.

A luta pelo preço nesses "mercados intermediá­rios" representava, para o comprador, nessa transa­cão. um esforco para extorquir do vendedor nessa transação uma proporção do lucro realizado em todos os processos de trabalho anteriores, ao longo da cadeia de mercadorias. Essa luta era, certamente, determi­nada pela oferta e pela demanda, em relações parti­culares de tempo e de espaço, mas nunca somente pela oferta e pela demanda. Em primeiro lugar, natural­mente, a oferta e a demanda podem ser manipuladas por coerções monopolísticas, mais usuais do que ex­cepcionais. Em segundo lugar, o vendedor pode alte­rar o preço naquela relação através da integração ver­tical. Quando o "vendedor" e o "comprador" são de fato e em última instância a mesma firma, o preço pode ser manipulado arbitrariamente em termos de ordem fiscal e outras, mas de forma alguma tal preço

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representa uma ação recíproca entre oferta e deman­da. A integração vertical, assim como o monopólio "horizontal", não foi exceção. Estamos certamente habituados a esses exemplos mais espetaculares: as companhias de concessão· dos séculos 16 a 18, as gran­des casas comerciais do século 19, as corporações

· transnacionais do século 20. São estruturas globais que tentam abranger o máximo possível de elos de uma cadeia particular de mercadorias. Mas os exem­plos menores de integração vertical, cobrindo apenas poucos (até dois) elos de uma cadeia, foram ainda mais correntes. Parece razoável argumentar que a in­tegração vertical foi a norma estatística do capitalismo histórico, quando comparada com aquelas relações "de mercado" nas cadeias de mercadorias em que o vendedor e o comprador são realmente distintos e an­tagônicos.

Ora, os rumos geográficos das cadeias de merca­dorias não foram casuais. Se todas estivessem marca­das em mapas, poderíamos notar que sua forma é cen­trípeta. Seus pontos de origem foram múltiplos, mas seus pontos de destino tenderam a convergir para pou­cas áreas. Isso quer dizer, em nossa linguagem cor­rente, que tenderam a se mover das periferias para os centros ou núcleos da economia-mundo capitalista. É difícil contestar uma observação empírica. A questão real é: por que foi assim? Quando falamos de cadeias de mercadorias, estamos falando de uma ampla divi­são social do trabalho que, no curso do desenvolvi­mento histórico do capitalismo, tornou-se cada vez mais extensiva funcional e geograficamente, e ao mes­mo tempo cada vez mais hierárquica. Essa hierarqui­zação do espaço na estrutura dos processos produtivos levou a uma polarização sempre maior entre as zonas

· centrais e as zonas periféricas da economia mundial, não só em termos de critérios distributivos (níveis reais de rendimento, qualidade de vida), mas, o que é ainda mais importante, em termos dos locais de acumulação do capital.

Inicialmente, quando começou o processo, os di­ferenciais espaciais eram pequenos, e o grau de espe­cialização espacial era limitado. No sistema capita-

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lista, porém, todos os diferenciais existentes (seja por razões ecológicas ou históricas) foram acentuados, re­forçados e solidamente fixados. Crucial nesse processo foi a intervenção da força na determinação do preço. Certamente, o fato de se usar a força numa transação mercantil, para fazer valer seu preço, não foi uma in­venção do capitalismo. A troca desigual é uma prática antiga. Notável no capitalismo como sistema histórico foi o modo de ocultamento dessa troca desigual, que na verdade foi tão bem ocultada que só depois de 500 anos de funcionamento desse mecanismo é que os opo­sitores explícitos ao sistema começaram a revelá-la sistematicamente. ·

A chave para ocultar esse mecanismo central está '!apropria estrutura da\economia-mundd1capitalista, na separação aparente entre a área econômica (divisão social dotrabã.lho mundial, com processos produtivos iiifegrados, todos operando para a interminável acu­mulação de capital) e a área polltica (consistindo os­tensivamente de Estados soberanos separados, cada um autonomamente responsável pelas decisões pollti­cas em sua jurisdição, dispondo cada qual de forças armadas para sustentar sua autoridade). No mundo ·real do capitalismo histórico, quase todas as cadeias de mercadorias de alguma importância cruzaram essas fronteiras estatais. Esta não é uma inovação recente. Existiu desde o começo do capitalismo histórico. Vou mais além. A transnacionalidade da cadeia de merca­dorias foi, em termos descritivos, tão real no mundo capitalista do século 16 quanto no mundo do século 20.

Como funcionou essa troca desigual? Começando com algum diferencial real no mercado, ocorrendo seja devido à escassez (temporária) de um processo produtivo complexo, seja devido a carências artificiais criadas manu militari, as mercadorias deslocaram-se de uma zona para outra, de tal modo que a área com o artigo menos "escasso" "vendia" seu artigo para a outra área, a um preço que incorporava mais insumo (custo) real do que um artigo do mesmo preço que se. deslocava na outra direção. O que realmente aconte­ceu foi uma transferência de parte do lucro total (ou excedente) de uma zona para outra, Tal é a relação

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centro-periferia. Por extensão, podemos chamar a zona perdedora de "periferia" e a zona ganhadora de "centro". Esses nomes refletem de fato a estrutura geográfica dos fluxos econômicos.

De imediato encontramos vários mecanismos que historicamente aumentaram a disparidade. Quando ocorria uma "integração vertical" de dois elos quais· quer de uma cadeia de mercadorias, era possível, mais do que antes, desviar para o centro uma fração ainda maior do excedente total. Em segundo lugar, o desvio de excedentes para o centro concentrava aí o capital, tornando disponíveis fundos desproporcionais para uma mecanização ulterior, que tanto permitiria aos produtores das zonas centrais obter vantagens compe­titivas adicionais nos produtos existentes, quanto lhes possibilitaria criar sempre novos produtos "escassos",

. com os quais se repetiria o processo. ·A concentração de capital nas zonas centrais ge·

rou a base fiscal e a motivação política para criar má· quinas estatais relativamente fortes, entre cujas mui· tas capacidades estava a de assegurar que as máqui· nas estatais das zonas periféricas se tornassem ou se mantivessem relativamente fracas. Poderiam. assim pressionar essas estruturas estatais a aceitarem, e mesmo promoverem, uma maior especialização na sua responsabilidade por tarefas inferiores na hierarquia das cadeias de mercadorias, utilizando forças de tra· balho mais baratas e criando (reforçando) as impor· tantes estruturas domésticas que assegurariam a sub· sistência das forças de trabalho. Assim, o capitalismo histórico realmente criou os chamados níveis salariais históricos, que se tornaram tão dramaticamente dife· rendados em diversas zonas do sistema mundial.

Dizemos que este processo é oculto. Isso significa que os preços reais sempre pareceram ser negociados num mercado mundial, na base de forças econômicas impessoais. O enorme aparato de força potencial (es· poradicamente utilizado às claras, em guerras e na co· ·Ionização) não precisava ser invocado a cada transa· ção particular, para assegurar a desigualdade da tro· ca. O aparato de força entrava em cena apenas e pre· ferencialmente quando havia contestações significati-

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vasa um dado nível de troca desigual. Uma vez ultra­passado o conflito político agudo, as classes empresa­riais mundiais podiam simular que a economia funcio­nava por meras questões de oferta e demanda, sem reconhecer como a economia-mundo chegara histori­camente àquele momento particular de oferta e de­manda, e que estruturas de força sustentavam naquele exato momento os diferenciais "costumeiros" nos ní­veis salariais e níveis de real qualidade de vida das forças de trabalho mundiais.

Podemos agora voltar à questão: por que houve · afinal alguma proletarização? Lembremos a contradi­ção fundamental entre o interesse individual de cada empresário e o interesse coletivo de todas as classes capitalistas. A troca desigual, por definição, servia a esses interesses coletivos, mas não a todos os múltiplos interesses indiv1duais. Segue-se daí que aqueles cujos interesses não estavam sendo imediatamente servidos durante algum tmepo (por ganharem menos que seus concorrentes) tentavam constantemente alterar as coi­sas a seu favor. Tentavam competir com mais êxito no mercado, seja aumentando sua própria eficiência na produção, seja usando alguma influência política para criar, em algum mercado, alguma nova vantagem monopolista para si próprios.

Uma concorrência acirrada entre. os capitalistas sempre foi uma das differentia specijica do capita­lismo histórico. Mesmo quando ela parecia estar vo­luntariamente limitada (por acordos como cartéis), era basicamente porque os concorrentes pensavam que tal restrição otimizaria as margens respectivas de cada indivíduo. Num sistema baseado na acumulação inter­minável de capital, nenhum participante poderia di­minuir este impulso constante para a lucratividade permanente, a não ser correndo o risco de au todes­truição.

A prática monopolista e a motivação concorren­cial foram uma realidade acoplada ao capitalismo his· tórico. Em tais circunstâncias, é evidente que nenhum padrão específico a ligar os processos produtivos pode­ria ser estável. Muito pelo contrário, sempre foi do

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interesse de um grande número de empresários rivais tentar alterar o padrão específico de tempos e espaços determinados, sem se preocuparem a curto prazo com o impacto global de tal atitude. A "mão invisível" de Adam Smith sem dúvida funcionou, no sentido de que o "mercado" coloca restrições ao comportamento indi­vidual; mas sugerir que daí resultou uma harmonia, seria uma leitura muito curiosa do capitalismo histó­rico.

O resultado pareceu antes ser, novamente corno observação empírica, um ciclo alternado de expansões e estagnações no sistema como um todo. Estes ciclos incluíam flutuações de tal relevância e regularidade que seria difícil· crer que não eram intrínsecos ao· fun­cionamento d() sistema. Se a analogia for possível, eles pareciam ser o aparelho respiratório do organismo capitalista, inspirando o oxigênio purificador e expi­rando os resíduos venenosos. As analogias sempre são um pouco perigosas, mas esta parece particularmente adequada. Os resíduos acumulados seriam as defi­ciências econômicas que politicamente se sedimenta­ram de modo recorrente, através do processo de troca desigual acima descrito. O oxigênio purificador seria a alocação mais eficiente dos recursos (mais eficiente em termos de permitir maior acumulação de capital), pos­sibilitada pela reestruturação regular das cadeias de mercadorias.

O que parece ter acontecido a cada 50 anos é que, nos esforços de empresários cada vez mais numerosos para ocupar as conexões mais lucrativas das cadeias de mercadorias, ocorreram desproporções tais no in­vestimento que podemos falar, um tanto enganosa­mente, de superprodução. A única solução para essas desproporções foi uma quebra do sistema produtivo de modo que se conseguisse então uma distribuição mais regular. Isso soa simples e lógico, mas suas con­seqüências sempre foram maciças. A cada vez, isso significa.va maior concentração das operações na­queles elos mais saturados das cadeias de mercadorias. Implicava a eliminação de alguns empresários e de al­guns trabalhadores (tanto os que trabalhavam para empresários que abandonaram os negócios, quanto os

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que trabalhavam para outros que mecanizaram mais o processo, a fim de reduzir os custos de produção por unidade). Tal deslocamento também permitia aos em­presários "rebaixar" as operações na hierarquia da cadeia de mercadorias e, com isso, permitia-lhes apli· car esforços e fundos de investimentos a elos inovado· res na cadeia de mercadorias que, por oferecerem ini­cialmente insumos "mais escassos", eram mais lucra­tivos. O "rebaixamento" de determinados processos na escala hierárquica muitas vezes significou também uma realocação geogrâfica parcial. Tal realocação geo­gráfica tinha como principal atrativo a mudança para uma área com custos mais baixos de trabalho, em­bora, do ponto de vista da ârea para a qual se mudava a indústria, tal mudança usualmente implicasse um aumento do nivel salarial de alguns setores da força de trabalho. Estamos atravessando exatamente agora uma· realocação mundial maciça das indústrias side­rúrgica, automobilística e eletrônica. Este fenômeno de realocação desde o inicio foi parcela e parceiro do capitalismo histórico.

Houve três conseqüências principais dessas mu­danças espaciais. Uma delas foi a constante reestru­turação geográfica do sistema capitalista mundial. To­davia, onde quer que, a cada 50 anos aproximada­mente, as cadeias de mercadorias vieram a ser reestru­turadas significativamente, elas mantiveram um sis­tema de cadeias de mercadorias hierarquicamente or­ganizadas. Processos produtivos particulares desce­ram na hierarquia, enquanto novos processos foram colocados no topo, E zonas geográficas particulares abrigaram niveis hierárquicos sempre variáveis dos processos. Assim, determinados produtos tiveram "ci­clos produtivos", partindo como produtos centrais e tornando-se finalmente produtos periféricos. E mais, determinados locais subiram ou desceram no sistema, em termos comparativos do bem-estar para seus habi· tantes. Mas para chamar essas mudanças espaciais de "desenvolvimento", teríamos antes de demonstrar uma diminuição na polarização global do sistema. Em termos empíricos isso parece que simplesmente não ocorreu; a polarização antes aumentou historicamente.

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Essas realocações geográficas e produtivas podem en­tão ser consideradas verdadeiramente cíclicas.

Contudo, houve uma segunda conseqüência, com­pletamente diferente, das mudanças espaciais. Nossa palavra enganosa, "superprodução", chama a atenção para o fato de que o dilema imediato sempre foi a au­sência de suficiente demanda mundial efetiva para al­guns produtos-chave do sistema. Era nessa situação que coincidiam os interesses da força de trabalho com os de uma minoria de empresários. A força de traba­lho sempre visou aumentar sua participação nos exce­dentes, e muitas vezes os momentos de colapso econô­mico do sistema forneceram incentivos imediatos adi­cionais e algumas oportunidades suplementares para levar avante suas lutas de classe. Uma das formas niais imediatas e efetivas da força de trabalho aumentar seu rendimento real foi a mercantilização maior de seu próprio trabalho. Ela freqüentemente procurou subs­tituir por trabalho assalariado aquelas parcelas dos processos produtivos domésticos que geravam peque­nas quantidades de rendimento efetivo, especialmente os vários tipos de produção mercantil insignificante. Uma das principais forças por trás da proletarização sempre foi de fato a própria força de trabalho mun' dia!. Ela compreendia, muitas vezes melhor do que seus autoproclamados porta-vozes intelectuais, como é muito maior a exploração nos espaços domésticos semiproletários do que nos totalmente proletarizados.

Foi em momentos de estagnação que alguns pro­dutores privados, em parte respondendo às pressões políticas da força de trabalho, em parte acreditando que mudanças estruturais nas relações de produção os beneficiariam contra produtores privados concorren­tes, juntaram suas forças, nas áreas econômica e polí­tica, para levar à frente a proletarização crescente de um setor limitado da força de trabalho de um determi­nado lugar. É este processo que nos dá a principal chave para compreender por que houve enfim algum aumento na proletarização, dado o fato de que, no final das contas, a proletarização foi um processo que reduziu os níveis de lucro na economia-mundo capita­lista.

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~ neste contexto que podemos situar o processo de transformação tecnológica, que foi menos motor do que resultado do capitalismo histórico. Cada "inova­ção" tecnológica importante foi, antes de tudo, a cria­ção de novos produtos "escassos", que eram portanto altamente lucrativos, e secundariamente processos que reduziam o trabalho. Eram respostas aos momentos de baixa cíclica, modos de apropriação das "inven­ções" para aumentar o processo de acumulação de ca­pital. Sem dúvida, muitas vezes essas inovações afeta­ram a organização real da produção. Levaram histo­ricamente à centralização de muitos processos de tra­balho (a fâbrica, a linha de montagem). Mas é fácil exagerar a transformação ocorrida. O exame dos pro­cessos que concentraram fisicamente as tarefas de pro­dução muitas vezes omitiu o exame de outros proces­sos que regularmente as descentralizaram.

Isso é especialmente verdadeiro se acrescentamos ao quadro a terceira conseqüência das alterações espa­ciais cíclicas. Note-se que, dadas as duas conseqüên­cias até agora mencionadas, temos um aparente para­doxo a ser explicado. De um lado, falamos da conti­nua concentração da acumulação de capital na polari­zação histórica da distribuição. Ao mesmo tempo, po­rém, falamos de um lento mas sólido processo de proletarízação que, na realidade, reduziu os níveis de lucro. Uma solução fácil seria simplesmente dizer que o primeiro processo era mais abrangente que o segundo - o que é verdade. Mas, aÍém disso, o de­créscimo nos níveis de lucro ocasionado pela maior proletarização foi mais que compensado por um outro mecanismo, operando na outra direção.

Outra fácil observação empírica a ser feita sobre o capitalismo histórico é que sua situação geográfica cresceu solidamente ao longo do tempo. Uma vez mais, o ritmo do processo fornece a melhor chave para sua explicação. A incorporação de novas zonas à divi­são social do trabalho no capitalismo histórico não ocorreu de uma só vez. Ocorreu de fato em ímpetos periódicos de incorporação de mais algumas áreas, embora cada expansão sucessiva parecesse ter um es­copo limitado. Sem dúvida, parte da explicação en-

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contra-se no pr6prio desenvolvimento tecnológico do capitalismo histórico. Os aperfeiçoamentos no trans· porte, nas comunicações e nos armamentos tornaram cada vez menos custosa a incorporação crescente de regiões das zonas centrais. Porém, esta explicação nos dá, no máximo, uma condição necessária, mas não su­ficiente, do processo.

Por vezes afirma·se que a explicação se encontra na busca de mercados sempre novos, para aí se reali· zarem os lucros da produção capitalista. Contudo, essa explicação simplesmente não concorda com os fatos históricos. As áreas exteriores ao capitalismo histórico se mostraram, no conjunto, compradoras relutantes de seus produtos, em parte porque não "precisavam" deles, em termos de seu próprio sistema econômico, em parte porque freqüentemente não tinham com que comprá·los. Certamente houve exceções. Mas no geral era o capitalismo que buscava os produtos da área ex· terior, e não o inverso. Quando locais específicos eram militarmente conquistados, os empresários capitalis­tas lamentavam-se regularmente da ausência de mer­cados reais nessas zonas conquistadas, e agiam atra­vés dos governos coloniais para "criar gostos".

A explicação, em termos de busca de mercados simplesmente não resiste. Uma explicação muito mais plausível é a busca de força de trabalho de baixo custo, Historicamente, é o fato de que praticamente todas as novas zonas incorporadas à economia-mundo estabe­leceram níveis de remuneração real no limite infe­rior da hierarquia do sistema mundial dos níveis sala­riais. Elas praticamente não possuíam nenhum espaço doméstico plenamente proletário, e não foram de modo algum encorajadas a,desenvolvê-los. Pelo contrário, as políticas dos Estados coloniais (e dos Estados semico­loniais reestruturados naquelas zonas incorporadas não-formalmente colonizadas) pareciam precisamente destinadas a promover o surgimento do próprio espaço doméstico semiproletário que, conforme vimos, per­mitia o limite mais baixo possível dos níveis salariais. As políticas estatais típicas implicaram a combinação de alguns mecanismos de taxação, que obrigavam to­das as famílias a se engajarem em algum trabalho as-

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salariado, com restrições à mudança ou à separação forçada dos membros da casa, que reduziam conside­ravelmente a possibilidade de plena proletarização.

Se a esta análise acrescentamos a observação de que as novas incorporações ao sistema mundial do ca­pitalismo tendiam a ser correlatas às fases de estagna­ção na economia mundial, torna-se claro que a expan­são geográfica do sistema mundial, ao incorporar nova força de trabalho destinada a ser semiproletarizada, serviu para contrabalançar o processo de diminuição dos lucros gerado pela proletarização crescente. Desa­pareceu o paradoxo aparente. O impacto da proletari­zação no processo de polarização foi igualado, e talvez mais que igualado, pelo menos até agora, pelo im­pacto das incorporações. E os processos de trabalho de tipo fabril, na porcentagem do conjunto, expandi­ram-se menos do que habitualmente se afirma, dado o denominador estavelmente crescente da equação.

Levamos muito tempo a esboçar como o capita­lismo histórico operou na área estritamente econô­mica. Estamos prontos agora para explicar por que o capitalismo surgiu como um sistema social histórico. Esta não é uma questão tão simples como habitual­mente se pensa. Frente a ela, longe de ser um sistema "natural", conforme tentaram alegar alguns apologe­tas, o capitalismo histórico é um sistema evidente­mente absurdo. Acumula-se capital a fim de se acu­mular mais capital. Os capitalistas são como camun­dongos numa roda, correndo sempre mais depressa a fim de correrem ainda mais depressa. Nesse processo, algumas pessoas sem dúvida vivem bem, mas outras vivem miseravelmente, e mesmo as que vivem bem pa­gam um preço por isso, em termos da parte de suas vidas durante a qual podem gozar os frutos a que têm acesso financeiro.

Quanto mais reflito sobre isso, mais absurdo me parece. Não só creio que a vasta maioria das popula­ções mundiais é, objetiva e subjetivamente, menos próspera materialmente do que nos sistemas históricos anteriores, como, conforme veremos, penso que se pode argumentar que politicamente estão em piores condições do que anteriormente. Estamos todos tão

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imbuídos da ideologia autojustificadora do progresso, moldada por esse sistema histórico, que nos parece di­fiei! até reconhecer os enormes negativos históricos desse sistema. Mesmo um crítico do capitalismo his­tórico tão severo como Karl Marx deu grande ênfase ao seu papel historicamente progressista.* Não creio nisso de forma alguma, a menos que por "progres­sivo" entenda-se simplesmente aquilo que historica­mente ocorreu depois, e cujas origens podem ser ex­plicadas por algo anterior. O balanço do capitalismo histórico, ao qual retornarei, é talvez complexo, mas o cálculo inicial em termos de distribuição material de bens e alocação de energias é, ao meu ver, na verdade muito negativo.

Se assim é, por que surgiu tal sistema? Talvez precisamente para atingir este fim. O que seria mais plausível do que uma linha de raciocínio que argu­mentasse que a explicação da origem de um sistema era atingir um fim que de fato foi atingido? Sei que a ciência moderna nos afastou da busca das causas fi­nais e de todas as considerações acerca da intenciona­lidade (principalmente porque a dificuldade de de­monstrá-las empíricamente é intrínseca a elas). Mas sabemos que a ciência moderna e o capitalismo histó­rico estiveram em íntima conexão, e isso significa que sua autoridade é, por isso, suspeita precisamente no que concerne a esta questão: a modalidade do conhe­cimento das origens do capitalismo moderno. Portan­to, simplesmente esboçarei uma explicação histórica das origens do capitalismo histórico, sem pretender desenvolver aqui a base empírica para tal argumento.

No mundo dos séculos 14 e 15, a Europa foi o lugar de uma divisão social do trabalho que estava, em comparação com outras áreas do mundo, em termos das forças produtivas, da coesão do seu sistema histó­rico e do seu estado relativo de conhecimento humano,

(*) Em inglês,progressive significa tanto um movimento de progresso, isto é, em direção a um futuro "melhor .. (progressista, em português), quanto um movimento que procede por etapas (progressivo, em português). E. a essa ambigüidade do termo que o autor vai se referir logo a seguir. (N. T.)

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numa zona intermediâria - nem tão avançado como em algumas áreas nem tão primitivo como em outras. Devemos lembrar que Marco Polo, procedente de uma das sub-regiões européias mais "avançadas" cultural e economicamente, ficou completamente subjugado pelo que encontrou nas suas viagens pela Ásia.

A ârea econômica da Europa feudal, como resul­tado de processos internos a ela, passava nesse período por uma crise muito profunda, que estava abalando seus fundamentos sociológicos. Suas classes dominan­tes estavam se destruindo rapidamente entre si, en­quanto que seu sistema territorial (base de sua estru­tura econômica) tornava-se indefinido, com uma con­siderâvel reorganização no sentido de uma distribui­ção muito mais igualitária do que fora até então. Além do mais, os pequenos proprietários rurais demonstra­vam grande eficiência na sua produção. As estruturas políticas de modo geral estavam se enfraquecendo, e sua preocupação com as lutas fatais entre os politica­mente poderosos deixava pouco tempo para conter a força crescente das massas da população. O cimento ideológico do catolicismo estava sob forte pressão, e do próprio seio da Igreja nasciam movimentos iguali­taristas. As coisas estavam realmente se desmoro­nando. Tivesse a Europa continuado no caminho em que estava, é difícil dizer onde as coisas chegariam, mas seria implausivel crer na probabilidade de uma reconsolidação dos padrões da_ Europa medieval feu­dal, com seu sistema de "ordens" altamente estrutu­rado. Ê muito mais provâvel que a estrutura social da Europa feudal tivesse evoluído para um sistema de pe­quenos produtores relativamente iguais, com isso nive­lando as aristocracias e descentralizando as estruturas politicas.

Se isso seria bom ou não, e para quem, é uma questão especulativa de pouco interesse. Mas é claro que a perspectiva deve ter apavorado os estratos supe­riores da Europa - apavorado e aterrorizado, espe­cialmente porque sentiam escapar também sua arma­dura ideológica. Sem sugerir que alguém tenha cons­cientemente declarado tal intenção, podemos ver, comparando a Europa de 1650 com a de 1450, que

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ocorreram as seguintes coisas. Em torno de 1650, as estruturas básicas do capitalismo histórico, como sis· tema social viável, estavam estabelecidas e consolida· das. A corrente para a equalização das remunerações fora drasticamente revertida. Os estratos superiores ti· nham novamente firme controle político e ideológico. Havia um nível de continuidade razoavelmente elevado entre as famílias dos altos estratos em 1450 e as dos altos estratos em 1650. Além disso, se se substituir 1650 por 1900, a maioria dessas comparações com 1450 ainda se mostra verdadeira. Ê apenas no século 20 que há algumas correntes significativas numa dire· cão diversa, sinal de que, como veremos, o capitalismo histórico, após 400·500 anos de florescimento, final· mente chegou a uma crise estrutural.

Ninguém possivelmente declarou tal intenção, mas certamente parece ter sido o caso de que a criação do capitalismo histórico como sistema social reverteu dramaticamente uma tendência temida pelos estratos superiores, e em seu lugar implantaram algo que ser· via ainda mais aos seus interesses. Isto é muito ab· surdo? Apenas para suas vítimas.