identidade e múltiplo pertencimento

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  • 8/19/2019 Identidade e Múltiplo Pertencimento

    1/41

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    https://www.researchgate.net/publication/273260228

    IDENTIDADE E MÚLTIPLO

    PERTENCIMENTO NAS

    PRÁTICAS ASSOCIATIVAS

    LOCAIS

     ARTICLE · DECEMBER 2001

    READS

    24

    1 AUTHOR:

    Joanildo BurityFundação Joaquim Nabuco

    36 PUBLICATIONS  27

    CITATIONS 

    SEE PROFILE

    Available from: Joanildo Burity

    Retrieved on: 11 February 2016

    https://www.researchgate.net/profile/Joanildo_Burity?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_7https://www.researchgate.net/profile/Joanildo_Burity?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_4https://www.researchgate.net/institution/Fundacao_Joaquim_Nabuco?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_6https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_1https://www.researchgate.net/profile/Joanildo_Burity?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_7https://www.researchgate.net/institution/Fundacao_Joaquim_Nabuco?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_6https://www.researchgate.net/profile/Joanildo_Burity?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_5https://www.researchgate.net/profile/Joanildo_Burity?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_4https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_1https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5MjgwNzgzNTY0ODVAMTQyNTg3MDA2OTg5MQ%3D%3D&el=1_x_3https://www.researchgate.net/publication/273260228_IDENTIDADE_E_MULTIPLO_PERTENCIMENTO_NAS_PRATICAS_ASSOCIATIVAS_LOCAIS?enrichId=rgreq-4de1a977-1da3-44af-8d54-38ce30bfb50c&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI3MzI2MDIyODtBUzoyMDQ5Mjgw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    IDENTID DE E MÚLTIPLO PERTENCIMENTO N S

    PRÁTICAS ASSOCIATIVAS LOCAIS

    foanildo A. Burity

    Surge um a preocupação com a importância de um a cultura cívica

    para aferição da qualidade da dem ocracia. Tem-se falado muito ult imam ente

    das vir tudes da participação em termos de geração e acúm ulo de capital

    social fundamental para conter os efeitos da individualização, da

    fragmentação e do isolamento do estado em relação à sociedade. Ganho s

    em capital social se tomam um indicador de modernização ou de

    com plexidade d a es trutura so cial (cf . Putnam , 1993; 1995; G reeley,

    1997a; 1997b; Colem an, 1990). Um e leme nto com plem entar impo rtante

    nesta discu ssão política foi, ao longo dos a nos 1990, o cresc ente interesse

    dos cientistas p olí ticos pelo tem a da cultura polí t ica/cultura cívica (cf .

    Moisés, 1995; Avritzer, 1995; Krischke, 1995; Diamond, 1999;

    Huntington, 1994; Laitin, 1995; Burity, 1998; 1999b . Com isto se

    pretendia argum entar contra a excessiva ênfase n o aspecto procedimental

    e, portanto, no autom atismo d as instituições po líticas, para asseg urar boa

    govem ança dem ocrática. Sem um certo grau de intem alização de valores

    dem ocráticos fica difícil, nesta leitura, confiar às instituições a garantia de

    um fun cionamen to da democracia que afas te o per igo do burocrat ism o,

    do despotismo esclarecido (tecnocratismo ) e da corrupção política. Em

    qu e cond ições, entre tanto, ta is expecta t ivas brotaram e a té que po nto

    podem ser atendidas? Mais importante, se o contexto das novas

    Pesquisador da Fundação Joaquim r abuco

    Cadíst.Soc.Reeife, v.17, tU, p.189-228. fui/dez., 2001

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    Ident idade e m últ ip lo pertenci inenta nas prát icas asso ciat ivas locais

    dem ocracias é ode seculares práticas de autoritarism o, tradição asso ciativa

    marcada pela repressão ou pelo clientelismo e instituições políticas

    impo tentes para assegurar sua jur isdição no espaço socia l (o que impl ica

    que não apenas o estado não chega em vários espaços f ís icos e socia is ,

    com o não consegue - ou m esmo não quer— assegurar o universalism o de

    regras e procedime ntos para todos os seus m em bros), qual será a agência

    desta geração de ca pi ta l socia l e de mu dança na cu l tura polí tica? Como

    caracterizar tal agência sociologicam ente?

    Do ponto de vista m ais estrutural poder-se-ia dizer que o co ntexto

    no qual emerge hoje a percepção ou a dem anda por um a cul tura c ívica já

    é m arcado p or um a si tuação de plural ismo social , cultural e polí tico, m as

    t am bém pe la exper iênc ia de c r i se do es tado ' e toda a redef in ição do s

    padrões de relação entre estado e sociedade que o discurso liberal

    hegemônico sobre e la t em gerado. Também há um re tom o ao loca l, uma

    tenta t iva de repensar o p adrão d as polí t icas públicas, m uito a par t i r de

    experiências localizadas, fragmentadas em alguns casos. A ênfase sobre o

    aspecto local é m uito forte.

    Am bos os processos são amp lamente favorecidos por e , ao mesmo

    temp o, indutores de toda um a mu tação cul tura l em c urso na sociedade,

    que diz respei to à prevalência de v alores l ibera is , do p onto de v is ta da

    cultura política da inserção das pessoas no mercado e das próprias

    relações interpessoais no cot idiano. Aqu i preva lece um ima ginário de

    com pet ição , concorrência , vantagem , pr inc ipa lm ente a d o m ais fo r te ,

    pensado agora co m o m ais compe tente , ma is ef ic iente , e tc . Num cer to

    sent ido, ta l prevalência depõe c ontra a em ergência da cul tura cívica, ou

    pelo m enos cr ia um a sér ie de problemas , porque a idéia de cul tura c ívica

    está classicamente associada a modalidades de colaboração de

    solidariedade, de respo nsabilidad e pela coisa pública, de obrigação soc ial.

    No novo contexto em que se tenta desenvolver uma cultura cívica

    dem ocrática prevalece, hoje, uma outra experiência de cultura, que não é

    diretam ente favorável a e ssa vivência.

    Finalm ente, outro co ndicionam ento importante para a em ergência

    de um a novacultura cívica a prevalência gritante de desigualdad es sociais

    - num quadro de que o Bras il é um dos l íde res mu ndia is , m as de forma

    Santos 1998 ) ressalta que não se I r jta do estado lano cot tr t , mas de u ma de te rmin d

    fo rma d e estado, a lvo do ques t i on m en to pró-mercado.

      9

    ad.EsrSoc .Re c i fe , v .17, n2. p . 189 -228. fu i /de :. . 2001

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    Joanildo A. Burity

    alguma isolado— , que não se expressam apenas do ponto de vista da

    distribuição de recursos materiais, mas também na prevalência de padrões

    hierárquicos de relação, os quais definem quem é mais ou menos cidadão,

    quem prec isa de se justificar para oc upar a esfera púb lica ou quem tem

    acesso natural a ela. Não é de admirar, então, que a correlação entre

    ser afro-brasileiro, mulher, pouco ou não-alfabetizado e ser mais pob re

    ou exc luído, é sólida na sociedade brasileira. As desigualdades de renda

    se somam ao racismo, ao mac hismo, ao preconceito contra os sem-

    educação , dentre outros atributos.

    É contra este pano de fundo que surge, com cada vez maior

    insistência, a preocupação c om a c riação e construção de redes: redes de

    solidariedade, de assessoria, de informação, de comunicação, de militânc ia,

    de articulação política; redes no âmbito da sociedade civil, mas também

    do estado . Para isto contribuíram significativamente os efeitos

    desagregadores produzidos nó c ampo da m ilitância soc ial, desde o início

    dos anos 1990 . Como governo ColIor iniciou-se um processo b rutal de

    desmobilização, desarticulação, desorientação, do c ampo da soc iedade

    civil organizada do país, princ ipalmente de setores populares. A s redes

    vêm em grande medida em resposta a isso. São uma tentativa de

    recomposição de um sujeito político de novo tipo e uma de suas expressões.

    O utro vetor da multiplicaç ão das redes são as próprias mudanças

    nos padrões de relação entre sociedade e estado, que têm a ver com o

    encolh imento do estado sob a lógica neoliberal e com a disseminação de

    discursos descentralizadores, participacionistas e antitotalitários, mas muito

    heterogê neos entre si. A despeito da ambigüidade de que se revestem as

    experiênc ias oficiais (governamentais) desta relação, principalmente no

    campo das políticas sociais, mas em geral através da ênfase nas parcerias

    em diversas áreas, cresce a demanda por novas políticas púb licas, apelando

    à necessidade de que a sociedade assuma responsabilidade ou co-

    responsabil idade pela sua formulação e execução'.

    O contexto recente tem introduzido a incerteza, a provisoriedade

    e a precariedade das conquistas no centro da vida social. A pluralização

    de alternativas e agênc ias da ação c oletiva contribui adicionalmente para

    tomar o quadro mais complicado seja pela via da superposição de

    1-lá me smo quem fale num estado-rede e numa sociedade-rede cf. castel ls, 1996; 1998).

    Dentre e fera do e spaço acad ëmico, este é um tema reco rrente. cf. Inst ituto de Polít ica, 199x;

    xxxx

    Há um a rede virtual de organizaçõ es do terceiro setor O NG s), onde esta discussão está

    permanentem ente posta na ordem do dia cf . Ri ta).

    Cad.Est .Soc.Rec/ fe,

    37, n.2, p.189-228. fu i /dez. . 2001

     

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    ídenüda e e n lú l lip r) perrencin iento

    PUS

    práticas ( ISSOC aPVaS locais

    iniciativas voltadas para um m esm o objetivo, em conco rrência umas com

    as outras; seja pela via da dispersão ideológica, tem ática e d eforma s de

    atuação; seja pela m ultiplicidade de inserções dos indivíduos e m distintas

    organizações ou campos de ação. Emerge uma preocupação com a

    identidade

    tanto dos grupos quanto dos indivíduos inseridos neste

    contexto. Rever a identidade, questionar a identidade, reafirmar a

    ident idad e tom am -se exigências correntes , im putada s aos grupos ou

    desencadeadas internamente a eles. Pertencer a um a organização, grupo,

    mov imento, toma-se uma exigência

    e um problema quando os referenciais

    se turvam , as fronteiras se tom am incertas e a am eaça de desagregação

    ou perda de identidade se am plia.

    M ais do que uma questão afeita ao indivíduo, trata-se de algo que

    atinge os atores colet ivos e as organizações . Tamb ém eles se vêem às

    voltas com o q uestionam ento de suas form as de estar-junto e de agir na

    esfera pública também eles se envolvem em práticas articulatórias

    con struindo atores m ais amp los, híbridos, m utáveis , plurais , ond e as

    questões de identidade es tão colocadas: per tencer a um m ovime nto, a

    um a rede, a um cam po ét ico-pol ít ico, s ituar-se num cam po discursivo,

    enfim, implica inserir-se num a tradição e ser, ao m esm o temp o, capaz

    de esco lher e recolher dessa tradição e de outras, experimentar o de safio

    da alteridade, inserir-se em lutas pelo reconhecim ento ou pela reparaç ão

    de injustiças e desigualdades.

    Um aspecto fundamental da discussão se liga à definição de

    pertencim ento adotada. Já discutim os o assunto em outro texto (cf. B urity,

    2000 , mas diríamos aqui, brevemente, que o pertencimento

    nessas

    condições implica com prometer-se at ivam ente com um projeto sem se

    deixar submeter completamente a ele, circulando entre outros e/ou

    vinculando-se a outros. Adem ais, essas experiências produzem um padrão

    de pertencimento diferente do da

    coesão grupal.

    Embora definam

    fronteiras entre um dentro e um fora (quem é participante, mem bro, aliado

    ou não; quem somo s nós, quem são os ou tros, etc.), elas não são exclusivas;

    em bora haja crenças com uns e formas comuns de encená-las , elas não

    são compreensivas, nem únicas, mesclando-se a outras, por vezes

    divergentes, descon tínuas de grupo para grupo (ainda que haja pessoas

    participando de m ais de um deles).

    Nosso p ercurso pa ra inve stigar a interface entre cultura cívica,

    associativismo e identidade, então, é trabalhar com a relação entre

    pertenciniento e dem ocracia, partindo da com preensão, desenvolvida po r

     9

    ad.En.S uc.Rcufe, " .17,

    2. j. 189-228, fui Ide:.. 2001

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    jüünitdü A. Bu rity

    diversas correntes de p ensamento social e político contem porâneo, de

    que as identidades políticas e sociais contemporâneas são internamente

    heterogêneas, e porque são assim, têm que dividir lealdades e

    compromissos, precisam negociar essas diversas formas de

    pertencimento 

    . Mais especificamente, nossa preocupaçã o é investigar

    as novas prá ticas implicadas nesta identidade plural e nas modalidades de

    pertencimen to que a caracterizam, observando com o isto aponta para a

    reinvenção da concepção clássica de cidadania e para novos padrões de

    relacionamento entre atores coletivos no atual estágio da democratização

    no B rasil.

    Um a hipótese subjacente é que a experiência da cidadania não é

    mais a experiência de identidades integradas, centradas, que se apresentam

    semp re da mesma maneira nos diferentes espaços públicos, e privados.

    An tes, a cidadania se toma m ultidimensional, envolvendo às vezes as

    me smas pessoas em relação com diferentes instituições, repertórios de

    ação , formas de se apresentarem socialmente, maneiras de construírem

    sua identidade. Com o conseqüê ncia, tamb ém a identidade dos atores

    coletivos assim co nstituídos apresenta as marcas desta circulação-qu er

    nas modalidades de

    sserção coletiv

    que geram movimentos

    específicos), quer na de

    dissemin ção

    de práticas originadas em algum as

    dessas experiências para outros espaços sociais (gerando dem andas novas

    nestes últimos e permitindo certas formas de articulação entre atores vários,

    que podem levar à constituição de redes ou de áreas de movimento ).

    Mais do que apontar para uma pluralidade de papéis, perfeitamente

    conhecidos e assum idos livre e alternadamente, de forma instrumental ou

    funcional nos interessa assinalar um duplo deslocamento: o da identidade

    pública ou política de cidadão e o da concepçã o de u m agente unitário (o

    movimento, a classe, o partido, o estado, a sociedade, etc.), que deixaria

    sempre em suas diversas formas de ação a marca de um núcleo de

    atributos ou interesses que lhe seriam intrínsecos.

    No prim eiro caso, o deslocamen to diz respeito a duas situações

    contemporâneas: (i) a de uma crescente autonomização das distintas esferas

    sociais entre si, o que imp lica, de um lado, a perda de centralidade d a

    Somos

    p r t icul rmente

    I ributários das contribuições feitas por Ernesto Lac lau 199 0: 1996 a) e

    Cham ai Mo uffe 1992; 1996) , e em sua obra conjunta sem ina l 1989) , no cam po da teor ia e da

    f il oso f ia po l í tica , bem com o por Alber to Me lucc i 1989; 1996) e Manue l Cas ie l is 1983: 1996) ,

    no cam po da soc io log ia. V. ib . McC lure, 1992 : Scho l sberg , 1998.

    Ca d.Esi.Soc.Rc ci fe, v.17, a.2. p.189-22 8, fu i/dez., 200 1

     

    9

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    Ideni id ide e m últ ip lo pei- tenciniento t ios p rát icos associat ivas locais

    identidade de cidadão, em outras palavras, num a despolitização da

    cidadania', e de outro lado, na regionalização da identidade de cidadão,

      ao lado , por assim dizer, de outras formas de identificação, sendo

      ativada dependendo de contingências e com diferentes intensidades,

    por indivíduos e grupos; (ii) a reivindicação dos direitos de cidadania

    para um espectro cada vez m ais vasto de espaços e situações sociais,

    econômicas, políticas e culturais. Tal ampliação corresponde a uma

    reabsorção pela sociedade civil de funções ou prá ticas de representação

    e provisão social classicamente atribuídas ao estado.

    H á assim uma disseminação do conceito de cidadania, ao mesmo

    tempo em que ele perde suas conotações mais tradicionais, de posse de

    direitos civis e políticos ou de participação na comunidade política,

    fortemente referenciadas no estado, e adquire relevância em espaços

    institucionais hierárquicos e fechados, antes infensos à lógica da

    participação, da igualdade e da afirmação de direitos. Certamente, isto se

    faz com perda de conteúdos, com um certo empobrecimento do

    significado originário, podendo inclusive vir a ser usado de forma

    inteiramente vazia de implicações, de forma puramente retórica. M as um

    dos aspectos produtivos das lutas sociais em tomo do conceito de cidadania

    hoje decorre precisamente de sua disseminação, de sua capacidade de

    assumir conotações distintas, de ser hegemonizado por diferentes sujeitos

    políticos e sociais.

    No segundo caso, o deslocamento aponta para a emergência de

    atores coletivos com pósitos, cuja face pública aparece m ais ou menos

    unificada e possuindo porta-vozes e representantes, mas que correspondem

    antes a redes ou articulações de atores de diferentes tamanhos e formatos,

    do que a um sujeito homog êneo. A identidade de cidadão toma-se uma

    entre outras, mas também passa a descrever uma rede de a tores, ou atores-

    rede, figuras de um campo de articulações sociais que redefine os contornos

    da sociedade civil e do estado numa esfera pública híbrida, de que

    voltaremos a falar.

    O que procuramos compreender, enfim, é como a identidade de

    cidadão se articula hoje com a identidade de consumidor, militante de

    Para evitar equívocos entendemos tal despol il ização com o resultado de um desinvestimento

    fi s questões polític s

    sr i- /nu senso

    que marca toda -a década de 1990. mas também como

    decorrente de um qu estionamento da centralidade do estado com o referencial para o conceito de

    cidadania.

    194

     

    odE st.Soc.Rec ife r .17. n.2. p. 189-228 ju l ./ t /ez. 2001

  • 8/19/2019 Identidade e Múltiplo Pertencimento

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    Joan,klo A Buri v

    a lg u m a o r g a n i z a ç ã o d a s o c ie d a d e c iv i l e t a m b é m c o m a d e a d e p t o d e

    a l g u m a o r g a n i z a ç ã o o u c o n c e p ç ã o r e l ig i o s a , t e n d o c o m o r e f e r e n c ia l ,

    e n t r e t a n to , n ã o a f ig u r a d o i n d iv í d u o c o m o u m s e r a u t ô n o m o , d e s e n r a iz a d o

    o u f lu t u a n t e e m r e la ç ã o a m a r c o s r e fe r e n c i a i s ( o r g a n i z a t i v o s , c u l tu r a i s ,

    p o l í t ic o s ) , m a s d e p e s s o a s p e r t e n c e n t e s a o r g a n i z a ç õ e s , s i t u a d a s e m

    c u l t u r a s e t r a d iç õ e s , m o b i li z a d a s e m f u n ç ã o d e s u a i n s e r ç ã o n u m c a m p o

    de açã o co le tiva . Des ta fo rma , ev i tam os o a tom ism o de d ive rsas

    m o d a l id a d e s d e i n d i v id u a l is m o m e t o d o l ó g i c o o u d e c o n c e p ç õ e s l i b e r a i s

    d o s u j e i t o , e n e m p o r is s o t r a n s f e r im o s a e s t r u tu r a s s u p r a - in d iv i d u a i s o

    p e s o d a d e t e r m in a ç ã o d e s u a s p r á t ic a s e a t i t u d e s . E n t e n d e m o s , a s s im ,

    p o d e r c r u z a r a d im e n s ã o i n s t it u c i o n a l e a s u b je t iv a d a id e n t id a d e , d e

    fo r m a a c o n t r ib u i r p a r a a e l u c id a ç ã o — o b v i a m e n t e n o s l im i te s d e s t e tr a b a l h o

    — d e d e s a f io s e d i le m a s d a c u l tu r a c í v ic a , p a r t ic ip a t iv a , n o c u r s o d o p r o c e s s o

    d e d e m o c r a t iz a ç ã o d a s o c i e d a d e b r a s i le i r a .

    A p e s q u i s a e m p í r i c a s e p r o p ô s a c a p t a r e s t e s p r o c e s s o s d a

    s e g u i n te m a n e i ra : p r im e i r a m e n t e , id e n t if ic a n d o e n t id a d e s a t u a n t e s e m m e io s

    p o p u la r e s , e m d u a s l o c a l id a d e s d a R e g iã o M e t ro p o l i t a n a d o R e c i f e ' ,

    b u s c a n d o p e r c e b e r s u a e x p e r iê n c i a p r ó p r ia d o d e s l o c a m e n t o le v a n t a d o

    c o m o h ip ó t e s e t e ó r ic a m a i s g e r a l, e m fu n ç ã o d e i n d i c a ç õ e s d a l i t e r a t u r a

    a t u a l s o b r e c i d a d a n ia , m o v i m e n t o s s o c i a is , a ç ã o c o l e t iv a e n o v o s p a d r õ e s

    de r e laç ão e n t re s oc iedade e e s tado . Es tas en t idad es , um a v ez

    s e l e c io n a d a s , fo r a m c o n v id a d a s a p a r t i c ip a r , a t ra v é s d e p a r ti c i p a n t e s q u e

    s e d i s p u s e s s e m a t a n t o , d e u m a d i s c u s s ã o e m p a in e l , e m d u a s s e s s õ e s d e

    u m a h o r a e m e ia , ju n t a m e n t e c o m r e p r e s e n ta n t e s d a s d e m a is e n t id a d e s

    e s c o lh id a s . O s p a r t ic ip a n t e s t e r ia m q u e p o s s u i r u m v í n c u l o e x p l í c it o c o m

    a e n t id a d e , a lg u m a e x p e r iê n c ia d e p a r t ic ip a ç ã o e m s u a s a t iv id a d e s e u m

    c o n h e c im e n t o b á s i c o d o p e r f i l / id e n t id a d e d a o r g a n iz a ç ã o , b e m c o m o d e

    s u a d i n â m ic a i n t e r n a d e p o d e r . E r a p r e c is o c o m b in a r p e s s o a s c o m p o s i ç ã o

    d e l id e r a n ç a e o u t ra s , c o m m e n o r e s r e s p o n s a b i lid a d e s o u in t e n s i d a d e d e

    a t u a ç ã o .

    F o r a m e s t u d a d a s a c o m u n i d a d e d e C h ã o d e E s t re l a s , n o b a ir r o d e C a m p in a d o B a r r e t o , z o n a

    n o r t e d o R e c if e , fr o n t e ir iç a c o m o m u n i c íp io d e O t in d a , e g ru p o s d a c i d a d e d o C a b o d e S a n t o

    A go s t i n ho , lo c a l iz a d o s n o c e n t r o d a c i d a d e e e m t r ês b a i rr o s p o p u la r e s p r ó xi m o s . Se l e c i o n a m o s ,

    a s s i m , n o C a bo , o C e n t r o d a s M u l he r e s d o C a b o , o M o v i m e n t o d e M o r a d o r e s d e V i la C la u d e t e . a

    I gr e ja E v a ng é l ica B a t is t a d a V i la d a C O I- IAB , o L a r B e ne f i ce n t e Sã o L á z a r o , o se r v i ço d e T e cno l o gi a

    A lt e r n a t iv a S E R T A) e a C r u z a d a M i s t a S o c ia l d o s C u lt o s A f ro - B ra s i le i r o s . E m C hã o d e E s t r e l a s ,

    selecionamos o Centro de Organização Comunitária o Centro Cultural Daruê Malungo. o

    M o v i m e n t o C u lt u ra l D e s p e r ta P o v o , o G r u p o E s p e r a n ç a e a A s s o c i a ç ã o d e M o r a d o r e s d e C a m p in a

    d o B a r re t o . Um a d e s c r iç ã o p o r m e n o r i za d a d e c a d a gr u po p o d e s e r e n c o n t r a d a e m B u r it y. 20 00 .

    Cad.E st.Soc.Re ctfe, v.17. n.2, p.189-228 . fui/dez.. 2001

     

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  • 8/19/2019 Identidade e Múltiplo Pertencimento

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    Ident idade e niúl t ip la per/eneinienta nas prát icas assa r/ali as locais

    Montamos, assim, três painéis em cada localidade, com

    representantes de cinco entidades e fizem os diversas visitas e c ontatos

    corri moradores e lideranças locais. Havia, em cada painel, um representante

    das cinco entidades selecionadas. A repetição tinha o ob jetivo de perceber

    duas coisas: i) como se dá a interação entre pessoas ocupantes de

    diferentes posiçõ es org anizacionais, e participantes de diferentes entidades;

    e (ii) como variam as (au to-) apresentações da identidade do ator social,

    a partir da percepção de distintos participantes do mesmo e face à

    interlocuç ão com ou tros atores.

    Foi feito um levantamento das at iv idades parcer ias ,

    do pú l ico

    beneficiado direta e indiretamente pelas atividades dos g rupos qu e foram

    identificados; e um a identificação das

    temát icas assoc iadas às a t iv idade s

    de p rov isão d e se rv iços ,

    porque esses gru pos oferecem determinados

    serviços à comunidade, ou a setores da comu nidade, mas a oferta daqu eles

    não se limita a eles mesmos, antes vem associada à prestação de assessorias

    e à realização de oficinas de discussão e reflexão sob re, por exemplo,

    cidadania, gên ero, as novas relações entre sociedade e estado, consum o

    ou g eração de renda.

    1 M últiplo pertencimento e transição permanente

    N um trabalho anterior (Bu rity. 1994 a), procurei mostrar como os

    processos sociais e políticos que tiveram efeito com a transição à

    democracia no B rasil anunciavam algo mais do que um a mera conjuntura

    de mu dança de regime político. A ló gica de negociação e a conflitualidade

    envolvendo múltiplos atores obviamente de dimensões e poder de

    barganh a diferentes entre si), as articulaçõ es constituídas em funç ão da

    definição de um campo de antagonismo que serve como espaço de

    agreg açã o de posições, um nós e um eles em disputa, são indicadores

    de uma transformaç ão no espaço tempo da açã o coletiva e da ação político-

    institucional. atn-ansformaçâo fazdas regras dem ocráticas umaexigé ncia,

    instaura u ma disputa intelectual e m oral pela hegem onia dos valores da

    participação , da pluralidade ideológ ica e cultural, da transitividade dos

    arranjos políticos. Ch am am os a este novo espaço-tem po de transição

    permanente , sem u ma preocupaçã o de atr ibu ir- lhe um juízo de valor

    positivo

    a p r io r i ,

    mas destacando qu e o caráter contingen te das escolhas

    e decisões políticas/coletivas gera a necessidade de avaliaçõ es contextuais.

      9 ad.Est.Sac.Recifr. t .17, n.2, p. 189-228. jul. ldez.. 2001

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    Joani/do A Buritv

    Os an os 1990, e toda a crise que eles trouxeram para a po lítica

    de b ase e o s valores ideológicos radicais (não somente os socialistas, mas

    me smo os com unitaristas, coletivos por contraposição a individualistas)

    reforçaram a validade desta representação. Em nossa pesquisa pudemos

    constatar na fala dos informantes e entrevistados as marcas de um

    deslocamento que os coloca frente a desafios a sua identidade com o

    militantes sociais, partidários e como indivíduos co m a lgum trajetória de

    com promisso com setores excluídos da sociedade. Os atores coletivos

    no plano local vivenciam hoje um a transição que parece ter-se tornado

    também permanente. A rapidez das mudanças em diversos cam pos de

    ação qu e incidem so bre mo vimen tos e organizações atuantes na esfera

    local e a dinâm ica de tensão e negociaçã o entre as fronteiras culturais e

    institucionais das identidades envo lvidas impulsiona uma situação em que

    a ênfase na conexão, na articulação , na auto-iniciativa e na flexibilidade/

    pragmatismo como estratégia tomam-se objetivos vá lidos em si mesmos.

    Em meio à transição permanente e em função dela, crescem em

    importância as questões identitárias ligadas à autodefinição ao

    reconhecimento do/pelo outro, ao antagonismo que ajuda a dem arcar

    fronteiras. Busca-se construir (ou resgatar ) a identidade como forma de

    ancorar-se a algo m enos flutuante. E experim enta-se a identidade com o

    problema, face a o desafio posto por outras formas de identificação (por

    exemplo: participação e solidariedade

    v rsus

    isolamento e

    competitividade).

    O m últiplo pertencimento coloca para a cidadania o desafio de

    man ter sua vocaçã o universalista e igualitária em meio à fluidez do

    pertencimento, à retração particularista (desmobilização, isolamento ou

    competição com outros atores pelos mesmos recursos limitados) e à ênfase

    na legitimidade do plural, do diferente. Adem ais, atesta a proliferação de

    espaços de vinculação e de disputa, alguns dos quais podem ser priorizados

    sobre outros, mas não indefinidamente, um a vez que as carências são

    tantas e tão profundas que é preciso fazer-se muitas coisas ao m esmo

    tempo, em m eio a formas de associação que exigem certo grau de adesão,

    ao mesm o tempo em q ue reconhecem/disputam o espaço de outras.

    Um a das conseqüências desta si tuação para o s grupos é a de

    abrir sua agenda para incorporar novas áreas de atuação ou tem as de

    interesse, à medida que ampliam sua d efinição do prob lema central que

    os m obiliza e dá identidade— pobreza, gê nero, meio am biente, religião,

    cultura, etnicidade, etc. O u seja, os grupos tornam-se m ultifocalizados

    Cad.Esi.Soc.Recife v.17 n 2 p.139-228 jul./de...200]

     

    9

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    Identidade e mú ltipla per/encimenta nas p ráticas

    ISSOC,W,VaS locais

    (embo ra nem sem pre de forma sincrônica). Há migrações de interesses

    ou ênfases. Parte disso decorre da b usca de sustentabil idade para as

    organizaçõ es, que leva a form ular projetos que, para serem financiados,

    precisam atender a determinadas exigências de organismos governam entais

    ou não-governam entais, nacionais e internacionais (cf. Fernande s, 1993:

    p.79-82 ). Nesta busca de recursos que viabilizem os objetivos do grupo,

    vai-se alargando, de forma não planejada ou m uito controlada, o raio de

    atuação, mas também o núm ero de interlocutores, parceiros e penetra-se

    em espaços cada vez mais marcados pela pluralidade de atores -

    conc orrentes ou articulados - onde não é possível assegurar a pureza

    de suas identidades. Pressões, crises e nego ciações tornam-se m oeda

    corrente. M últiplo pertencimento, que tanto abrange a constatação pura e

    simples de que se está imerso em redes de relações cada vez mais

    com plexas, quanto a questão m ais forte do deslocamento e recom posição

    perma nentes da identidade coletiva.

    Nã o há porq ue ignorar o efeito desorientador que isto produz em

    m uitos agentes. Tam pouco se pode d eixar de assinalar que a mú ltipla

    inserção dos atores coletivos os leva a m ultiplicar atividades pra ticamente

    idênticas numa mesm a área, em busca de legitimação ou reconhecim ento

    por parte do público. O lado nega tivo desta superposição foi percebido

    por vários dos painelistas. Ela é um a conseq üência das divergências

    políticas e da incapacidade de negociação entre os líderes locais, levando

    a uma fragmentação do cam po reivindicativo na comunidade e, em certas

    situações, ao enfraquecimento das dem andas, na medida em que fica aberta

    a porta para que os grupos mais próximos da po sição governamental ou

    de segm entos da burocracia nos órgãos públicos levem v antagem sobre

    os dem ais. A cesso diferencial que pode ser usado com o trunfo na disputa

    por influência local na medida em que se pode apresentar maiores

    realizações. Por sua vez, esta é uma base de p oder na barganha co m os

    atores externos à comunidade.

    2 C a m i n h o s d e u m a c id a d a n ia h í b r id a : c o n s t i t u i ç ã o d o n o v o

    e s p a ç o p ú b l ic o e m m e i o à c o n d i ç ã o d e e x c l u s ã o

    O contexto brasileiro da década de 1990 foi marcado por

    sinalizações fortemente contraditórias: a intensificação dos processos de

    mo dernização no âmbito do aparelho estatal e das suas relações com a

    sociedade deu-se a par com um, mais do que docume ntado, agravamen to

    das condições de vida da população apesar dos efeitos iniciais da

      9

    ad.EstSocR ceife, v.17, ;7.2, p. 189-228, fui/dez., 2001

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    Jw niido A. Burftv

    estabilização m onetária pós- 1994.

     A extensiva reengenharia política,

    econôm ica e organizacional que incorporou uma série de inovações

    tecnológicas e de gestão alargou o map a da exclusão e o rol de dem andas

    e carências a en frentar (aum ento do desem prego e das ex igências de

    qualificação da m ão-de-obra sem a contrapartida de ma iores salários,

    precarização do vínculo de traba lho, restrição de direitos e condena ção

    ao desprezo daqueles desadaptados ao no vo sistem a).

    Por outro lado, uma pluralidade de atores, que ha via constituído

    um espaço públ ico para a vol ta da dem ocracia na década de 1980,

    expe rimen tou um a trajetória que foi da desart iculação (ainda sequer

    pluralidade mas pulverização desorientação e/ou repressão contra

    esforços agregadore s) à articulação em tom o do significante dem ocracia',

    em função de uma am eaça ou inimigo comum', e, em seguida, encaminhou-

    se para um processo de realinham ento que envolveu tanto a crise de

    diversas das identidades em jogo, como a e m ergência de uma lógica política

    e cultural avassaladora, epitomizada nas idéias de mercado e

      desregulam entação . Um significativo processo de redefinição ideológica

    e estratégica, tom ou m uitos atores m ais colaborativos com o estado

    (inclusive com administrações de diferentes matrizes político-ideológicas),

    ma is reflexivos em relação a sua p rópria prática, e mais flexíveis/pragmá ticos

    em sua definição de o bjetivos, formas de a tuação e construção de apoios

    e articulações.

    N o nível instrumental, passou a prevalecer um a ênfase na conexã o

    e na a rticulação . No n ível valorativo, cresceu a ênfase na so lidariedade e

    na busca de form as de estar ou atuarjunto em m eio ao reconhecimen to

    de diferenças - em bora ainda haja uma ten dência a pen sar estas últimas

    com o diversidade de atribuições, quando se fala de projetos a re alizar, e

    com o ex periência difícil de estran ham ento e con flito, quando se fala das

    tentativas de m obilizar ou coordena r grupos esp ecíficos em função de

    Funcionando este com o um signif icante vazio, no sentido que lhe em presta Laclau

    1996).

    Não temos aqui o espaço para explorar a 'comun alidade existente entre os diferentes atores

    dem ocratizantes no contexto de lota pela democ racia recente. Bastaria dizer que nã o se tratava

    nem da m aterialidade pura e simples das forças atinadas, nem de um mesm o núme ro de agravos,

    queixas e demandas colocados por todos aqueles em direção ao po der militar, mas um a série de

    ma tiz wit igenteiniano, onde ma is contava a inscrição de de ma ndas díspares no 'pass ivo' da

     ditadura , pouco a pouco responsabil izada pela crise (de contornos dif ici lmente definivets.

    pela sua extensão. ramiftcações entre as esferas da econom ia, da política, da cultura), do que um

    consenso substantivo quanto a um projeto alternativo. Isto se v iu, se não já durante o governo

    Sarney, certamente nos que lhe seguiram.

    Cud.Est.Soe.Recife, v.17, n.2, p.189-228, fui/dez., 2001

     

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     dentidade e m últiplo persencim ento nas práticas associativas locais

    interesses maiores. Ainda há espaço para políticas m ais agressivas, de

    pressão e confronto, mas estas precisam ser bem calculadas, aproveitando-

    se vulnerabilidades do adversário, num a conjuntura em que há pouca

      paciência para o debate aberto.

    Ao longo da década foi-se desenhando um a esfera pública plural

    - ou u ma pluralidade de esferas públicas - que reduziu a centralidade do

    estado' e am pliou a noção de púb lico através de um a incorporação de

    funçõ es de provisão e controle (ainda que experimentais e circunscritas)

    pela sociedade civil. Alguns já falam de um a esfera púb lica nã o-estatal

    como contrapartida da esfera pú blica tradicional do estado. H á quem fale

    de um esquem a tripartite em que, ao estado e ao mercado vem se interpor

    um terceiro setor em qu e outros valores, interesses e repertórios de ação

    prevalecem. E m ambos os casos, ainda que se recomende a cau tela devida

    a percepções de tendências pouco sedimentadas, pode-se falar da

    constituição de u ma esfera híbrida de cidadania. Híbrida por ser estatal e

    não -estatal, tanto no sentido de que abriga essas du as distintas lógicas de

    funcionam ento do social como no sentido das ex periências de trânsito

    entre as fronteiras do estado e da sociedade civil (que põ em em xeque a

    clássica distinção entre público e privado . Híbrida, ainda, por ser

    ideologicamente heterogênea, mesm o am bígua, em sua u til ização da

    lingu agem dos direitos e da participação com o alternativa à força do

    dinheiro e do poder político tradicional.

    2.1 O sujeito híbrido: atores rede no espaço da promo ção e

    extensão da cidadania

    E ste espaço híbrido pode ser construído conce itualm ente por

    diferentes caminhos. Um deles, que rem onta a estudos feitos por M elucci

    sobre movimentos sociais no início dos anos 198 0, enfatiza a especificidade

    da ação coletiva na sociedade contemporânea

    vis à vis a política

    institucional e o caráter com pósito dos atores que ali se movem . Para ele,

    Esta afirmação é relativa a um duplo contexto resistência ao arbítrio estatal dos tempos

    ditatoriais e à centralização político-administrativa resultante do modelo de desenvolvimento do

    pais desde os anos 1930 de um lado e programa de desestatização e desregulatmentação das

    políticas e direitos na linha do discurso neoliberal. No primeiro caso a grita por descentraliztção

    e pela ampliação de espaços de pa rticipação dos cidadãos visava a uma dem ocratização do poder.

    alargando o peso da sociedade civil. No segundo caso a crítica da ineficiência e do papel empresarial

    exercido pelo estado visou à ampliação da iniciativa privada e à redução do estado a funções

    mínimas que remontavam à doxa l iberal do século dezoito.

    200 

    ad.Est.Soc.Recife. vi?. n.2 p. 189-228 fui/dez. 2001

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    Joanildo A Burily

    o campo da ação coletiva tende a autonomizar se da ação

    ins ti tucionalizada, o que im plica tamb ém um a diferenciação entre esta forma

    de ação e a ação polí tica t radic ional . O concei to de área de mo vimen to ,

    tomado à teor iada m obi lizaçãode recursos am er icana, ten tou , num pr im eiro

    m om ento (c f . Melucc i , 1984) , da r conc re tude em pí rica ao es tudo d esses

    a tores p lura is que são v ia de r egra desc r i tos com o m ovim entos soc ia i s .

    As áreas corresponderiam a campos de

    estrutur ção

    d e id en t id ad es

    coletivas e a espaços de recomposição

    da identidade a qual estaria

    con t inuam ente expos ta à fragmentação na soc iedade com plexa).

    N es te ca s o , po r ém , o s i nd iv íduos e g rupos encon t r a r iam na á r ea

    d e m o v im e n t o u m e sp a ç o p a r a r e c o mp o r e m a id e n t id a d e d i v id i d a p e lo

    m últip lo per tencime nto e pelos d i feren tes temp os e pap éis exper im entados

    na soc iedade . Is to nos co loca d ian te de du as d i f icu ldades na co m paração

    en t re a r ea l idad e ana l i sada por M elucc i (ou sua represen tação d e la ) e a

    br a s il e ir a : um a em pí ri c a e um a con ce i tua l . E que s endo s eu conce i to de

    s oc i edade com p lexa a lgo li nea r - opond o- se a um a soc i edade s im p le s

    ou, quem sabe , subdesenvo lvida - ' .Melucc i acaba fa lando de um a fase

    indus tr ia l que e s ta ri a f icando pa ra t rá s e marcand o um a quebra no pe r f il

    dos m ovim entos soc ia is . Nes ta f ase indus t r ia l, os conf l itos dos qu a is os

    m ovimen tos par ticipavam inser iam -se num a luta mais amp la pela cidadan ia

     

    a a ç ã o nã o- ins t it uc iona l e s t a va s ubord i na da e /ou e r a e ng l oba da pe l a

    ação in s t it u c io n a l . O s m o v im en to s , n es t a f a s e , s e r i am p e r so n a g en s

    conf rontados ao es tado e dem andan do inc lusão/am pl iação da c idadania .

    Na no va fase , quando o ins t ituc ional e o não- ins t ituc ional se separam , os

    m ovimen tos assumem ao invés a con f igu ração de áreas em que se fo rma,

    se negocia, se recom põe a ident idade colet iva (Idem : p.436; cf . o contexto

    m ais amp lo das pp . 435-37).

    A di fe rença aqu i é que se es ta r epresen tação é verdade i r a , en tão

    o caso brasi leiro apresenta um a com plexidade diversa da que fala Melucci:

    a q u i há c o e x is t ên c i a s im , m a s d e u m e n f o q u e v o l t a d o p a r a o e s t a d o e a

    l u ta pe l a c i da da n i a e um e n foqu e que e s t im u l a a d i fe r e nc i a ç ã o e n t r e a

    ação co le t iva (soc iedad e c iv i l) e a ação pol í ti ca (es tado ) , desa f iand o a

    p r im e ir a a e n c o n t r a r so l u ç õ e s p a ra p r o b l e ma s q u e n ã o p o d e m m a i s (o u

    n ã o s e q u e r m a is q u e s e ja m ) r e so l v id o s p e l o e s t a d o e a s u p l e m e n t a r a

    segunda , conferindo-lhe a legitim idade e a referência de eficiência e eficácia

    q u e e l a p e r d e u . Há u m a a m p l ia ç ã o d o a l c a n c e d a c i d a d a n ia q u e t a n to

    jus t i fi ca a ação ins t ituc iona l , com o con s t rói e spaç os de au tonom ia em

    re lação a e la (notadam ente no n íve l m icro , tão va lor izado p or esse autor) .

    ca i.Es,.soc.Recife, v.] 7, ,,.2, p.189-228. fui/dez.. 2001

     

  • 8/19/2019 Identidade e Múltiplo Pertencimento

    15/41

    Ident idade e m últ ip lo per lencin ienlo nas p rát icas associat ivas locais

    Melucci em nenhum mom ento está em condições de dar conta desta

    configuração`, refletindo assim ou uma leitura exclusivamente européia

    dos caminhos da açã o coletiva ou um resquício de etapismo bastante

    questionável (cf. Gohn, 1997 : p.130 ).

    A dificuldade conceitual está em que, de um lado, o conceito de

    área de movimento — ou redes de movimentos, como Melucci tem preferido

    chamar mais recentemente, sem que haja, a meu ver, qualquer mudança

    em relação ao ponto aqui desenvolvido - está em tensão com o múltiplo

    pertencimento, tornando-se um refúgio da identidade contra a

      segmentação ou desestruturação (Melucci, 19 84:436), quando tudo

    parecia apontar para uma relação de com plementaridade e referência

    mútua, dada pela definição relacional, pluriorganizacional e pluriideológica

    da área/rede e do ator coletivo.

    De outro lado, se a sociedade complexa tende à m undialização e

    nela há uma tendência a contemporaneizar tudo, a desfazer as seqüências

    cronológicas em favor de uma coexistência, ficamos entre duas alternativas.

    Ou bem a coexistência no interior dos movimentos de sociedades

    complexas é mera aparência de diferentes fases - pura diversidade, sem

    antagonismo— , as quais estariam conciliadas num todo harmônico e

    complementar, ou então os movimentos de sociedades industriais (não-

    complexas? também partilham da heterogeneidade das áreas de

    movimento/redes, não são personagens , mas formas e, assim, a

    utilização da periodização industrial/complexo para a análise dos

    movimentos não pode ser entendida no sentido de uma polaridade Sul/

    Norte, atraso/avanço, uma vez que sob a globalização, não estando mais

    os problemas e lugares dos conflitos presos à referênc ia local, toma-se

    insustentável esta distinção entre personagem e área enquanto corolário

    de um a interpretação da sociedade complexa com o sociedade (mais)

    avançada (cf. Burity, 1999a).

    Assim, aplicam-se também, na caracterização analítica das formas

    de ação coletiva em sociedades como a brasileira dos anos 90, os traços

    ma is próximo que ele chega de escap ar do dilema conceitual que sua concepção de com plexidade

    imp l ica é ao a f irma r : Es ta e ra do conf l ito indus t r ia l acabou, não po rque as lu tas pe la c idada n ia

    p le n a te n h a m se co m p le ta d o o u p o rq u e n ã o h a ja m a i s e sp a ço s d e mo c rá t ico s a co n q u i s t a r, ma s

    po r que as d i f e ren tes d ime ns õ es dos c on f li tos c o le t iv os v êm s e s epa r ando c ad a v ez m a is . N as

    sociedades complexas contemporâneas os conflitos que incidem sobre as relações sociais

    dom inantes e as lu tas pe la extenst io da c idadania tendem a se tornar d is t in tos e a envolver bases

    soc ia is d iversa s ' (Meluc c i . 1989:19).

     

    ad.Est.Soc.Rectfe, s 17, n.2, p. 189-22 8. jn l .tdez. . 2001

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    Jflün,Id() A. Burity

    característ icos do cam po dos m ovimentos como espaço de afirmação d e

    um a pluralidade de agentes e lógicas sociais: articulação/formação de redes,

    trânsito e mu ltiplicidade de identidades coletivas em b usca de recomposição

    (não tanto contra o múlt iplo pertencime nto, ressalvam os, mas

    t vé s

    dele , a conflitualidade e a tensão entre ação coletiva e ação

    institucionalizada. Com o eleme nto contextual importante acrescentaríamos

    o qu e foi explorado num trabalho anterior (cf. Burity, 2000): o

    o l s m o

    das carências leva a um a crescente diversif icação da atuação dos grupos

    e sua inserção em redes de articulação - governamental e não-

    governamental - em busca de atender às inúmeras demandas das

    popu lações pobres.

    A narrativa dos grupos estudados sobre sua história, sua

    identidade e práticas indica um a crescente consciênc ia e diversificaçã o

    dos temas, ações, orientações e parcerias com outros atores, de modo

    que, invariavelmente , em torno de u m núcleo básico, que dá o tom da

    ident idade do gru po - cul tura , m ulheres, crianças, rel igião, m oradia,

    trabalhad ores ou pequ enos produ tores rurais, etc. - vai-se delineando

    um leque hol ís t ico de dem andas, que leva à adoção de temát icas m ais

    am plas e menos diretamente vinculad as à história particular do g rupo. Em

    certos casos, a dispersão obedece a u m a lógica em que, quan to mais se

    diversifica o leque de atuação, menor é a p ossibil idade de assegurar um

    sentido com um - um ob jetivo claro, um princípio determinado, etc. - que

    articule todo o conjunto (cf. Laclau, 1 996 c). O avanço em horizontalidade

    do ator coletivo ou temática aglutinadora que assim se constitui tamb ém

    representa um a dispersão do sentido e um a superficialização do acordo

    substantivo entre os participantes, passando a ênfase ao impacto possível

    da articulação e aos g anhos diferenciais dos atores envo lvidos.

    Este holismo da s carências tem como co ntrapartida um a atuação

    local e em certa med ida contingente ou intermitente, que se alimenta das

    oportunidades de recursos - materiais e humanos - bem como da

    implemen tação de determinadas políticas públicas. O localismo tem d uas

    referências básicas: (i) a com unidade com o lugar da ação; (ii) a ausência

    de projetos generalizantes referenciados na questão que deu origem ao

    gru po. Tal au sência de m acro-projetos, entretanto, não significa ausência

    de horizon tes ideológ icos - cidadan ia, direi tos, igualdade , primazia da

    comunidade compromisso ético com as necessidades dos outros a

    importância da art iculação e das parcerias - que rem etem à imag em de

    um a sociedade reconciliada consigo m esma, em ancipada, justa, etc.

    Ca/.Es Srw.Recife, v.17, n2, p189-228. juL/dez., 2001

     

    03

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    17/41

    Ident idade e ;núf t ip lo per teete inIento nas prát icos assOc iot i as locais

    Um recente processo de discussão sobre estratégias Tocais para

    ao enfrentamento da pobreza, coordenado por pesquisadores da Fundaç ão

    Getúlio Vargas, chegou a uma conclusão que vem reforçar nossa

    interpretação:

    Uma outra constante Ino processo de reflexão, JAB]

    foi o reconhecimento que as experiências, projetos

    e programas discutidos têm muito mais as

    características de processos do que de atividades

    planejadas antecipadamente. Eles nunca se iniciam

    já totalmente estruturadas [sic]; ao contrário, tendem

    a ir ganhando forma no decorrer da prática e do

    tempo, integrando outros elementos e idéias à ação.

    Não havia, mesmo nas atividades ditas integradas ,

    um plano programático que, definido previamente,

    fosse capaz de garantir resultados. Estratégias

    portanto são muito mais um reconhecimento

    posterior de encaminhamentos adaptados, do que

    etapas programáticas anteriormente definidas

    (C amarotti e Spink., 20 00: p.209 ).

    As m arcas desta trajetória aparecem, por exem plo, nas variações

    encontradas na forma com o os participantes descrevem seu próprio grupo.

    Elas expressam apreensões distintas do que o grupo seja e do qu e faz,

    bem com o o olhar desde o t ipo d e at ividades que as pessoas real izam

    com maior freqüência no interior do grupo. Num dos grupos, uma igreja

    batista no Cabo, isto ficou bem nítido. Enquanto uma senhora muito atuante

    nas atividades de ev angelização e ação social da igreja destacou com o

    objetivo do grupo apresentar Jesus como o senhor da vida, única

    esperanç a , ressalvando discretamen te que apesar de outras entidades

    ajudarem à comunidade, o único caminho mais verdadeiro é Jesus, pois

    o homem por si só não tem forças suficientes para resolver o problema da

    vida , um outro participante, que lida com a s ações de saúde da igreja na

    área de fitoterapia, destacou o trabalho com plantas medicinais como forma

    de resgatar a tradição indígena. A mesm a senhora demonstra maior atenção

    à diversidade de ações que sua igreja realiza do que nosso segundo

    Digo discretamente , porque t rata-se de urna das pessoas que dem onstra

    grande abertura e

    respei to às

    diferenças de ênfase entre os

    grupos e bastante envolv idas nas at iv idades soc iais da

    igreja.

    204

     

    adE st.Soc.R ecife, v .17. n .2, ', 189-228, juLk/ez. . 2001

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    Joanildo A. Burity

    informante: enquanto ela acrescenta que a igreja provê atendimento

    médico-odontológico (não só aos evangélicos, mas à população local),

    sopão, quentinhas , pregações, cursos profissionalizantes, distribuição

    de remédios e alimentos em viagens evangelísticas a outras cidades, aquele

    somente menciona o atendimento mé dico-odontológico. Já o pastor

    procurou dar um tom mais ecumênico à definição do seu grupo

    apresentando-o como empenhado em cumprir a missão que o próprio

    Jesus deixou a todos nós, independente a té de ... [religião, ideologia,

    posição social, área de atuação?, JA B]. Ele tem a visão mais sistemática

    do que faz a igreja: ela procuraria atuar sobre três dimensões: saúde,

    educação e pregação do evangelho. Na saúde, com terapias alternativas,

    e assistência médico-odontológica. Já na pregação, atua-se cobrando

    uma consciência, orientação, o alcance da integralidade da condição

    humana , buscando uma maior consciência comunitária nos batistas, para

    que vejam além da dimensão transcendente, as condições de vida reais .

    O contraste, neste caso, fica com grupos que possuem uma história

    de atuação conjunta mais intensa. A qui estão as O N Gs estudadas - o

    Centro das Mulheres e o SER TA -, apesar de se tratarem de entidades

    que igualmente estendem suas atividades a uma grande diversidade de

    açõ es: do gênero à geração de renda de agricultores, na primeira; de

    tecnologias alternativas na produção à mudanças na prática educativa nas

    escolas públicas, na segunda entidade. Mas também fazem parte disso

    entidades populares, como o Movimento de Moradores de Vila Claudete,

    o Centro de Organização Comunitária e o Centro Cultural Daruê M alungo.

    d ispersão d s t iv id des num m esm temát ic

    pode ser

    captada na preocupação com a saúde. Aqui temos o exemplo do Centro

    das Mulheres do Cabo, do Centro de O rganização Comunitária de Chão

    de Estrelas, da Igreja Batista do Cabo, cada uma com um perfil bastante

    distinto, em termos de seu núcleo básico . H á o atendimento convencional

    de saúde, mas também m edidas preventivas e de formação de hábitos

    pessoais e coletivos; há ênfases sobre a questão da sexualidade e

    reprodução ou sobre a conexão entre fitoterapiae alimentação alternativa;

    há aç ões articuladas a órgãos e políticas púb licas, outras, oferecidas

    isoladamente ou através de parcerias pontuais.

    O utra temática generalizadora a cultural. Todas as entidades

    estão engajadas em resgatar, promover ou questionar o social através do

    cultural desde as preocupações de incidir sobre mentalidades

    Cad.Esi Soc.Recife v.17 n.2 /J.189-228 fui/dez. 2001

     

    05

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    19/41

    Identidade e iitíItip/a perteneinienta na s práticíis associativas locais

    historicamen te formadas, mo dificando-as para incorporar novos temas e

    práticas econôm icas (tecnologias alternativas ou as nova s exigências do

    mercado de trabalho) ou políticas a participação, a interação com

    parceiros públicos e privados), até a prom oção de form as de diversão

    pública associadas a heranças cu lturais das com unidades locais ou à

    consciência m ais recente das questões racial e de gêne ro. Crianças e

    adolescentes são outra preocupação recorrente, e em bora seja abordada

    desde o prisma de cada grupo, há muitas superposições em termos

    valorativos ou de a tividades realizadas: corpo e sexual idade, formação

    educacional e profissional, violência e droga s, prostituição, atendimento

    pré-escolar, o problema dos limites e do reconhecimento do outro com o

    questão pedagógica fundam ental na fase da adolescência.

    Um a ent idade com o o Lar São Lázaro t ipifica a

    interconexão

    dos temas, impulsionado pelo holismo das carências já apontado:

    preocupando-se com as conseqüências do desemprego e da fragm entação

    do laço fam iliar para os segm entos pobres da pop ulação, principalm ente

    as m ulheres e os idosos, o Lar é um espaço am bíguo entre a filantropia

    m ais tradicional, de base explicitam ente rel igiosa (predom inanteme nte

    espírita, no caso), e preocupações muito recentes com o equilíbrio

    am biental e a geração de renda. Man tém um a creche e salas de aula de

    alfabetização, mas também procura mediar conflitos familiares

    (principalmente os que envolvem violência contra mulheres e crianças),

    indicar pessoas para emp rego, e estimu lar a geração de renda, através de

    um trabalho de reciclagem de lixo.

    O sujeito híbrido da cidadania assum e crescentem ente o formato

    de redes . Es tas nem sempre se apresentam com o atores em s i , com o

    mov imentos ou articulações que e stão e struturalme nte configurados com o

    redes de grupos e se apresentam publicam ente com o tal. Este mom ento

    de visibil idade só emerge onde um cam po de conflito público em erge

    (Me lucci, 1989:71). Cotidianam ente, entretanto, a rede de relações e de

    grupos se m antém em latência, que não significa inatividade, ma s

    u regime

    de existência em que o espaço público da com unidade não se confunde

    com o espaço púb lico da sociedade A movim entação no primeiro espaço

    segue ritmos próprios e aparentem ente invisíveis desde o lugar do último.

    Segundo M elucci,

    [a] situação norm al é a de um a rede de pequenos

    grupos submersos na vida cotidiana ... ) A rede

    206

     

    id.Est.sacRecife. v17, n.2. p. 189-228. fui/de:., 2001

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    .tocindd, A. Buritv

    submersa, embora seja com posta de pequenos

    grupos separados, é um circuito de trocas. Indivíduos

    e informações circulam ao longo do espaço e algumas

    agê ncias os núc leos profissionalizados) asseguram

    uma certa unidade da á rea. A rede submersa: a)

    permite um pertencimento m últ ip lo; b) é

    part-time

    tanto com relação ao curso da vida, quanto com

    relação ao tempo que absorve; c) o envolvimento

    pessoal e a solidariedade afetiva são u ma co ndição

    para a participação

    (1984: p .444-43) 2.

    Assim , entre a visibilidade e a latên cia, multiplicam -se as redes, na

    esfera do cot id iano e , nos ú lt im os anos da d écada de 1 990, na esfera

    pública, roubando espaço à posição central do estado e levando à

    em ergência de um espaço híbrido que enfocaremos ma is adiante. As redes

    possuem diferentes n íveis , formatos e grau s de densidade (cf . Wel iman ,

    1988; 1998; Garton, Ha ythomthwaite e Weliman , 1997; Scherer-W arren,

    1993; 199 8; Fontes , 1999; Lopes , 1995; Mische e W hi te , 1998) . Em

    nossa pesquisa não traba lham os com o níve l m ais desagregad o, o das

    re lações pessoais ( redes eg ocentrad as) , m as focal izam os, por força de

    nossa preocupação com a relação entre ação coletiva e cidadania,

    exclusivam ente as redes secu ndárias, entre grupos e organizações.

    De forma puramente indicativa, faltando-nos o espaço para

    explorar as modalidades de relação e as dificuldades e perspec tivas abertas

    por e s ta s conexões , e l encam os a lgum as , en t idades q ue t r aba lham em

    parcer ia , com os grupos es tudados:

    (i) Entre os organism os interna cionais (multilaterais ou não-govema m entais)

    que figuram c omo parceiros ou financ iadotes de um ou m ais dos grupos

    es tudad os , podem os c i ta r : a Visão Mundia l , a Un icef , a Terra d os

    Homens Suíça), a EZE Alemanha), a Fundação MacArthur, a

    Inte rm ón (Suíça) , a Com un idade Européia , a Novib (Holanda ) , o

    Serviço de Cooperação Alem ã (DA D), a Cár itas e a Igreja Unida do

    Canadá

    Sobre esta dist inção entre visibi lidade e latência. cl

    . Melucci 1989:70-79 205-206; 1996:113-

    117; Buri ly 1999a .

    cad.Est.soc.Recife, r.17,

    tU

    p.189-228. fui/dez.. 2001

     

    7

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    21/41

     dentidade e m últiplo pertencintento nas práticas ass ociativos locais

      ii)

    Entre os organismos nã o-governam entais e privados n acionais , contam -

    se a Rede Nacional Fem inis ta de Saúde e Direitos Reprod utivos e

    Sexuais, o Fórum de M ulheres de Pernam buco, o Cen tro Social Urbano

    da Vila da Cohab Ca bo) , Art iculação de Entidades da Zona da M ata

    Sul, a Federação de Órgãos para Assi stência Socia l e E ducaciona l

      Fase), a Associação B rasileira de Organ izações Não-G overnam entais,

    a Rede Estadual de Combate à Exploração Infanto-Juvenil, o

    M ovimen to Pró-Educação , a Rede Estadual de Direitos Human os de

    P ernam bu co , a Rede de M u lhe re s La t ino-A m er icanas , o C onse lho

    Britânico, a Rede Latino-Americana de Combate à Violência

    Dom éstica e Sexual, o Centro de Estudos e Ação Social-Rural CE AS-

    Rural) , Sindicatos Rurais , a Articulação Aids P erna m buco, etc.

      iii)

    Vários o rganism os gove rnam entais t am bém são incluídos nes tas

    parce r ias : o Prog ram a de A tenção In tegral à Saúde da M ulher , os

    C onse lhos M unicipais, as Prefeituras M unicipais do Recife e do Ca bo,

    o Serviço Nacional da Indús t r ia Senai), o Program a Com unidad e

    Sol idár ia , o Progra m a Saúde na Fam ília , a Co m issão E s tadual de

    Erradicação do Trabalho Infantil . o Ibama, aAssembléia Legislativa,

    a Cruzada de Ação Social, a Emater, a Secretaria da Educação

    Estadual, o C onselho Es tadual de Educação , e tc .

    2.2 O espaço híbrido: entre o público e o privado práticas

    tradicionais e novas

    M uito se fa la hoje , en t re a to re s da so ciedade c iv il, no ca rá ter

    híbrido d es te espa ço público que se ab re entre o e s tatal e o n ão-es tatal .

    As p r im eiras fo rm ulações de s ta idéia pa recem rem ontar a aná lises pós -

    68, que viam na em ergência do s m ovimen tos culturais e so ciais de então

    a t ranspo sição d a fronteira do espa ço público pa ra al i colocar questões

    da vida privada , do co tidiano cf. Touraine. 1977; G razioli e Lodi, 1984).

    Estas discussões foram complementadas pelas teorias dos novos

    m ovim en tos soc ia is , com a ên fase dada à c rescen t e im por tânc ia dos

    processos de construção da identidade na sociedade avançada cf.

    M elucci , 1980; Co hen, 1985; Laclau e Mo uffe, 1989). Esse esp aço soc ial

      8

     

    od.EstSoc.Recife v17 ai p. /89-228. fui/dez. 2001

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    bani/do A. Burily

    em ergente definiria, para Me lucci (1996:30 7-312)

     

    , três características

    essenciais às mo bilizações qu e o atravessam:

      i)

    globalidade -

    busca de recom por na sincronia de um a experiência

    cot idiana a com part im entação das esferas de valores e prát icas da

    sociedade m oderna. Rec usa de respeitar rigidamen te a fronteira entre

    o público e o privado, o íntimo e o co mp artilhado , o cultural e o político,

    o subjetivo e o o bjetivo, me smo que pa ra isso tal globalidade pareça

    retomar traços dos c onflitos pré-industriais, envolvend o com unidades

    campesinas ou controvérsias religiosas

    14.

    Segundo M elucci,

    tendo p erdido seus ti-aços absolutos, a globalidade

    focaliza-se no presente; funciona como fator

    agregador de curto prazo, é sem pre renová vel. D e

    form a sim ból ica, e la indica ques tões s istêm icas

    gerais atravé s do pai-ticularism o do tem po e lugar

    de ações sociais concretas. E la se adéqua e coabita,

    ademais, com aquele sistema de múltiplos

    pertencimentos gerado pela com ple-xidade, em que

    atores passam de um a associação a outra, de um a

    rede a outra diferente, sem com prom etei-em-se em

    definitivo com um grupo específico ou com um tema

    específico

    (1996:308, grifos meus).

     ii)posicionam ento dentro-fora do sistem a de represen tação,

    tomando

    cada ve z ma is problemático distinguir entre centralidade e exclusão,já

    que h á inegav elmente um resultado das lutas das décadas de 1970 /

    1980 em termos de m aior acesso de grupos marginalizados à cidadania

     

    As m esmas ca racteríst icas aparecem quase l i teralmente no texto mais ant igo de G raztolt e Lodi,

    publ icado na obra colet iva coordenada por M elucci . em

    1984

    cf. Grazioli e Lodt,

    1984:

    p.292

    ntretanto, em Melucci . há a lgum as mod ificações s igni ficat ivas. Pr imeiro, a g lobal idade já

    se aplica aqui aos movimentos como tais e não, como t ios autores citados, restr i ta à construção

    da identidade dos participantes. Para eles, afirmar a globalidade significaria agir como su bjetividade

    integral e não co m base nos papéis definidos no processo produtivo e/ou nas norm as insti tucionais

    Idem: p293 .

     

    Em outras palavras, ta is m obi lizações com binam o caráter g lobalizante. d ir ig ido à sociedade

    com o um todo, ou, nos termos d e Melucci, ao sistem a, com reivindicações locais e parl icularistas,

    tal como nos m ovimentos prévios ao século dezen ove na Europa. Em nos so caso, é significat ivo

    que a p resença de um com ponente rel igioso - insti tucionalizado ou difuso -, que avalia o sistema

    como u m todo, mas atua localmente e a part ir de grupos muito precisos, seja um da do claramente

    estabelecido na pesquisa.

    cad.E st .soc.Rec;fe. v .17, n.2. p.189 -228 . fu i /dez., 2001

     

    09

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    23/41

    Ident idade e m úl t ip lo pertencim ento nos p rát icas t lSS ociat i i OS locais

    e ao sistem a de representaçã o de interesses. A ssim , as mobilizaçõe s

    passam a se colocarem objetivos de alcançar algum espaço no

    mercado político; ao invés da recusa radical da década de 1970

    ressalta-se mais um reconhec imento dos limites da ação institucional e

    sua utilização instrumental, oque toma permanente, mas freqüentemente

    tensa a interação com o sistema partidário e as instituições

    governam entais. Assim, os mov imentos trabalham para criar canais

    de representação m ais congruentes com seu s atores, sem descartar os

    oficiais, e assim eles se situam tanto dentro com o fora do sistema

    político (Idem : p.309).

    (iii)

    continuidade coincidência entre identidade individual e identidade

    coletiva

    se torna mais complexa. De um lado a percepção da

    diferença em relação ao de fora, é acrescida do reconhec imento da

    diferença que atravessa internamente o ator coletivo. O s atores coletivos

    devem levar em co nsideração as múltiplas, mutáve is e sobrepostas

    relações de pertencimento qu e articulam a base de um movim ento

    (Jdem:3 1 0). De outro lado, o múltiplo pertencimento é assumido com o

    um a vantagem estratégica num a sociedade que continuamente redefine

    fronteiras e dificulta a sobrevivência de configurações rígidas e

    monolíticas, A diversidade interna é explorada com fins de facilitação

    das dema ndas colocadas à esfera pública. As form as de organização

    passam a refletir, assim, a transitoriedade de sua base social, os objetivos

    com binam u niversalismo e localismo, a identidade é definida de modo

    mais cultural do que estrutural, ou seja, mais em fu nção de posturas,

    valores e decisões dos atores do que pela sua submissão ao lugar qu e

    ocup am no sistema social/econôm ico (Idem : p.295-296 ).

    Mais recentem ente, a que stão do espaço híbrido definido pela

    fronteira público/privado tende a ser substituída pela ênfase na am pliação

    do espaço público em termos da oposição estatal/não-estatal. Embora

    haja u m certo paralelismo entre estes dois hibridismos, não se trata de

    processos idênticos. Tanto se pode ter um a articulação entre ambos c omo

    podem segu ir cam inhos distintos. O s partidários das novas técnicas de

    gestão social inspiradas em práticas de mercad o qu ase só se ocupam da

    segunda distinção enquanto que atores oriundos do campo dos

    movimen tos sociais dos anos 1980 tendem a buscar um a articulação entre

    ambas. V ejamos algum as percepções distintas a respeito.

    Primeiro, uma relativa ao holismo das carê ncias, que ressalta o

    par público privado. Da forma como este aparece na fala de alguns

    entrevistados, observamos um curioso paradoxo, qu e no entanto está longe

    2

    ad.Es t .soc Rec i fe, v.17. n.2, p. 189-228, ju l .Idez. , 2001

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    Joani/do A. Burily

    de ser desconhecido nos meios populares: de um lado, o ativista social

    nega muito de sua liberdade pessoal em favor do outro, da comunidade ,

    mas assume um papel mediador de conflitos interpessoais e até de

    aconselhamen to para indivíduos e fam ílias em crise. De ou tro lado, o

    próprio espaço público local é capturado pelas dem andas de resolução

    de conflitos que, no â mbito do cotidiano, freqü entemente dizem respeito a

    situações privadas

    desavenças entre m arido e mulher, violência de pais

    sobre filhos, de homens sobre m ulheres, problemas financeiros

     

    mas são

    trazidos ao líder local. Sinal de reconhe cime nto de sua liderança - para

    além d o caráter representativo, político—, esta prática aponta tam bém

    para a ausência de canais formalizados para encaminhamento de diferentes

    demandas.

    Um segundo ponto se refere às parcerias e diz respeito ao

    hibridismo da relação estatal-/não-estatal superpondo-se em alguns casos

    à relação púb lico/privado. As parcerias vêm , pela sua intensificação,

    contribuindo para definir um a trama de relações que m ostra de forma

    eloqüe nte o hibridismo d o espaço púb lico - entre o público e o privado,

    entre o estatal e o não-estatal e nos cruza men tos destas duas polaridades.

    Um novo espaço social se vai definindo através da prática das parcerias,

    apesar de não resolver um a série de problemas já antigos de assimetria de

    poder, de definições inform ais ou não pactuadas livrem ente entre os

    participantes de ganhos desiguais entre os parceiros relativos às

    expectativas colocadas no processo.

    Duas situações servem de catalisador para a formação de

    parcerias, desde a perspectiva dos atores

    não-estatais.

    Em primeiro lugar,

    o holismo das carências coloca sempre o m ovimento ou organização

    popular diante de um hiato entre seus recursos (limitados) e o volume das

    demandas, exigindo a busca de apoios e financiamentos para o atendimento

    das reivindicações. Em segund o lugar, a mud ança no clima ideológico

    (notadame nte em relação à oposição direita/esquerda) vem levando a um

    maior pragmatismo das organizações com prometidas com m udanças

    substantivas, na viabilização de suas demandas; ca uma mudança de atitude

    face ao estado, não mais visto como o gato que pega o rato , como disse

    um dos informantes. Esta mudança decorre certame nte da ampliação dos

    espaços de cidadania e da implementação de políticas públicas com maior

    participação dos setores sociais interessados, que passaram a vigorar após

    a dem ocratização do estado, a partir da década de 1980, reforçando o

    que dissem os no item (ii) acima. .No s dois casos, a conseqü ência é uma

    m aior preocupa ção em buscar parceiros e dim inuir os custos da ação

    coletiva.

    CÜ d.ES LSO C.RC CIJe. v .17 n.2 p.189-228 juL/dez. 2001

     

    11

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    Ident idade e m últ ip lo pertencim ento t ios prát icos ass ociat ivas tocais

    As pam erias , ao m esmo tempo que aparecem como uma exigência

    i rrecusável para a quase tota lidade dos g rupos, não são e xper imen tadas

    acrit icam ente. Ainda há resistências localizadas à aproxim ação do e stado

    e do mercado - um dos grupos, em Chão de Estrelas, recusa-se a se

      regis trar junto aos órgãos públicos , em função da preservação de sua

    autonomia. Há também lições tiradas de parcerias anteriores, que

    recom endam atenção para as assim etr ias de poder e d iferenças de visão

    com o eleme ntos dificultadores.

    O reconhecimento da necessidade de parcerias é geral. As

    parcerias são vistas com o um a forma de tom ar ma is eficiente a provisão

    de serviços à popu lação, de conc retizar os objetivos do grupo e de evitar

    a supe rposição de atividades idênticas. Vários inform antes qu estionaram

    que a m ental idade predom inante tem s ido a de com preender a parceria

    exclusivam ente em termos f inanceiros, o que tem levado a um a disputa

    entre os l íderes com unitários onde q uer qu e haja recursos disponíveis sob

    esta modalidade, havendo desinteresse patente quando se trata de

    parce r ia s em que o e lem en to f inance i ro não é t ão im por tan te ou e s tá

    ausente.

    M as as reservas são várias. Apon tam -se as desigualdades de poder

    entre os parcei ros , as parcer ias sem contrapart ida efet iva, as br igas por

    espaço e visibilidade no interior da própria parceria, ou, com o já referim os,

    o entendimento pu ramente f inanceiro da formação de parcer ias . Um dos

    part ic ipantes , af irm ou que é fundam ental fazer parcerias , em bora haja

    parceiros que co nstam só no pa pei, mas não atuam , dificultando o trabalho

    - desestimulando o g rupo, que fica tendo que esbarrar a cabeça n a parede,

    mas até ela quebrar e a gente conseguir passar . Outro participante

    ressal tou que não deve haver orgulho, auto-eng randecim ento, porqu e é

    um t raba lho pa r t ic ipa t ivo . Ass im , cada um dent ro de sua á rea , da sua

    possibilidade, da sua boa vontade, contribui positivamente para o

    engrandecimento de todos , sendo preciso respeitar os direitos dos

    outros .

    Outra adver tênc ia , par t ida de um a ONG do Ca bo, se refere à

    necessidade de distinguir tipos de parcerias e de se negociarem

    previamente, se possível botando no papel , as atribuições e as

    recompensas de cada parceiro. Segundo esta posição, há um núcleo

    m ínimo de va lores e obje t ivos que cor responde à iden t idade de cada

    grupo e não po de ser negociado, m as há um a série de outros pontos que

    são passíveis de n egociação.

     

    ad.Es/.Soc.R cei fe. v .17 n.2. p. 189-22 8. ju l . /dez.. 2001

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    Joani ldo A. B uri ty

    2 3 Redescrição da experiência cotidiana da cidadania:

    a articulação direitos/serviços

    Um dos nossos problemas de pesquisa referia-se a superposição

    d represent ção de cid dão pel de consumidor de bens e serviços

    (ma teriais e sim bólicos), num a sociedade qu e se pretende regular por

    um a lógica estrita de me rcado e por um a concepç ão individualista de

    necessidades e da interação social. D e acordo com C anclini,

    [n]um

    tempo

    em que as cam panhas eleitorais se mudam dos comícios para a televisão,

    das polêmicas doutrinárias para o confronto de imagens e da persuasão

    ideológica pa ra as p esquisas de m arketing, é coerente nos sentirmo s

    convocados como consumidores ainda quando se no s interpela com o

    cidadãos (Canclini, 199 5: p.l 3-14 ). O que já introduz um elemento inicial

    de tensão n s rel ções entre cid d ni e consumo como form s de

    pertencimento.

    O ra, se a escolha e a apropriação de bens se dá a parti r de um

    contexto valorat ivo de base n ão so m ente individual , mas coletiva ou

    pública, que d efine ainda lugares e forma s de apreciação a os sujeitos

    imersos neste processo, ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos

    reconhecidos pelos p relhos est t is p r os que n scer m em um

    território, m as tamb ém co m a s práticas sociais e culturais que dão sentido

    de pertencime nto, e fazem com que se sintam diferentes os que possuem

    um a m esma língua, formas sem elhantes de organização e de satisfação

    das necessidades (Idem : p.22; cf. tb. Telies, 19 94 ).

    Esta questão não foi explorada de forma abrangente na pesquisa,

    o que significaria investigar padrões de gosto e consum o, inserção e m

    iniciativas de defesa d o consum idor, etc. Nos interessava particularme nte

    a fronteira entre a representação do cidadão com o portador de direitos

    v i s à v i s

    o estado e a idéia de um acesso e fruição d e bens públicos de

    form a passiva ou desconectada de um po sicionam ento face à natureza

    das políticas implementadas.

    Percebe-se assim duas orientações básicas. Primeiro, a oferta de

    serviços e a preocupaç ão de gerar experiências produtivas para geração

    de em prego e renda p or fora das práticas convencionais de m ercado,

    articuladas à satisfação de outras nece ssidades m ateriais ou im ateriais,

    como a pou pança para (auto)construção da m oradia (M ovimento de Vila

    C laudete), a socialização de idosos, mulheres e a forma ção de adolescentes

    Cczd.Est.Soc.Reci fe. v i 7 n.2 .189-228. fu i/dez. 2001

     

    3

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     dentidade e mú ltiplo perrencitnento nas práticas asso ciativos locais

    (Lar São L ázaro, Grupo Esperança, Centro das M ulheres do Cabo, Igreja

    Batista do C abo), a complem entação d a renda familiar (Igreja Batista,

    SER TA , Centro de O rganização Com unitária) , a melhoria das condições

    de saúde e alimentação da população Igreja Batista; Centro de

    Organização Comunitária). Aqui o tema do consumo aparece sem

    vinculação direta com alguma questão de orientação de polí tica púb lica

    (como fica explicitada na formulação d o problem a acima). Trata-se da

    geração d e nova s prát icas de consum o relacionadas s imb olicamente à

    cidadan ia sob a forma de conq uistas à margem d a presença ou nã o da

    ação e statal. Ou seja, as experiências vão sen do g estadas a partir de um

    diagnóstico de que não é possível mais esperar pela provisão estatal nem

    pela regulação do mercado p ara a satisfação d as necessidades e carências,

    e que isto pode ser feito dentro de uma outra lógica, colaborativa,

    participativa, solidária, mesmo qua ndo parte da s ações se dá no s espaços

    do estado ou do mercado: as parcerias são, aqui, um interessante

    indicador.

    Um a segund a orientação refere-se à despolitização da provisão

    social que tem lugar com a rede finição do perfil das po líticas públicas,

    rumo a um a maior parceria entre estado e mercado , ou à introdução de

    uma lógica empresa rial na po lítica estatal - sob a forma do gere ncialismo,

    da bu sca de eficiência (relação custo-bene ficio; oferta-demanda; satisfãção

    do cliente/consumidor) e de resultados (comp atibilidade entre ob jetivos e

    impacto final, monitoramento e avaliação de p rocessos), introdução de

    exigências de contrapa rtida do s ben eficiários, inclusive quanto à cob ertura

    de parte do custo do bem, em alguns casos. Como conseqüência, o

    cidadão passa a relacionar-se com o estado como contribuinte ou como

      consum idor . Ao pa gar seus impo stos, tem o direito de reivindicar bens

    e serviços públicos de qualidade e em oferta com patível com a deman da.

    Ao fruir tais bens e serviços, deve ficar satisfeito com a provisão e po der

    reclamar seus direitos qua ndo se sentir insatisfeito, através do s canais

    competentes.

    Uma que stão relacionada a esta da superposição da representação

    de cidadão pela de consumidor, mas colocando-se num plano normativo

    dentre os no ssos problemas de pesquisa , é a de como comp atibi lizar a

    concepçã o l iberal do sujeito com o po rtador de d ireitos universalmente

    vál idos a serem assegurad os/protegidos das int rusões dos ou tros e do

      4

     

    ad.EsrSocRecife. t .17, n.2, p. 189-228. fui/dez., 2001

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    Joanildo A

    uriiy

    Estado com a concepção cívico-republicana que acentua a participação

    na esfera pública com o valor e condição da democracia .

    Na análise destes dois problemas, podem os concluir o seguinte.

    No âmbito da ação coletiva local percebem os um a articulação entre

    cidadania liberal, cidadania particípativa e um entendime nto m ais recente

    de um a cidadania de serviços. A primeira, como se sabe, está referenciada

    no acesso a e gozo de direitos de base individual, assegurados pelo Estado,

    com o proteção ao cidadão. A segun da, na responsabilidade do indivíduo

    pelos destinos d comunid de polític e n v li ção d robustez e

    legitimidade do sistema político ou da organizaçã o segundo a medida em

    que estimula e assegura a p articipação de todos os im plicados. A terceira,

    fruto das novas orientações ideológicas da década de 1990— crise da

    polít ica de esquerda e avanço de valores com petit ivos e de m ercado,

    dentre outras—, tende a circunscrever a dema nda por cidadania