icms: guerra fiscal e proteÇÃo da concorrÊncia
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EVARISTO FERREIRA FREIRE JÚNIOR
ICMS: GUERRA FISCAL E PROTEÇÃO DA CONCORRÊNCIA
FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS NOVA LIMA
2011
EVARISTO FERREIRA FREIRE JÚNIOR
ICMS: GUERRA FISCAL E PROTEÇÃO DA CONCORRÊNCIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, Stricto Sensu, da Faculdade de Direito Milton Campos, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Elcio Fonseca Reis.
FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS NOVA LIMA
2011
EVARISTO FERREIRA FREIRE JÚNIOR
ICMS: GUERRA FISCAL E PROTEÇÃO DA CONCORRÊNCIA
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Direito, e aprovada em sua forma final, pela Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito Milton Campos, área de Direito Empresarial, linha de pesquisa A
empresa na contemporaneidade – a preservação da empresa e o poder de tributar. Banca Examinadora: _____________________________________________________________________ Presidente: Prof. Dr. Elcio Fonseca Reis (orientador) _____________________________________________________________________ Membro: Prof. Dr. Elcio Reis _____________________________________________________________________ Membro: Profa. Dra. Alessandra Machado Brandão Teixeira _____________________________________________________________________ Coordenador do Curso: Prof. Dr. Carlos Alberto Rohrmann
Nova Lima (MG), 30 de junho de 2011.
RESUMO
No presente trabalho pretendemos avaliar se o artigo 146-A da Constituição da República, ao
instituir uma regra constitutiva de competência legislativa que permite o uso da tributação
para prevenir desequilíbrios da concorrência, é instrumento hábil a ser utilizado pelos
Estados-Membros e pelo Distrito Federal, visando à proteção concorrencial dos agentes
econômicos sob sua jurisdição, quando da concessão, por parte de outras unidades federadas,
de benefícios fiscais unilaterais em matéria do Imposto sobre operações relativas à Circulação
de Mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e
de comunicação – ICMS. Tendo em vista o necessário papel neutro que o Estado deve exercer
na ordem econômica, mas que muitas vezes, através políticas tributárias que concedem
benefícios fiscais em desacordo com a legislação de regência, acabam por influenciar
diretamente na livre concorrência no mercado, o trabalho almeja demonstrar que a
equiparação, por parte do ente federado prejudicado, concedendo os mesmos benefícios
concedidos unilateralmente por outra unidade federativa, é uma forma válida de atuação
positiva do Estado para restabelecer o equilíbrio concorrencial afastado pela concessão de
benefícios fiscais unilaterais, tendo como principal fundamento o artigo 146-A acima citado.
Palavras-chave: ICMS, Guerra Fiscal, concorrência, Art. 146-A.
ABSTRACT
This paper aims to assess if the article 146-A of the Constitution of the Brazilian Republic, in
the act of making a legislative competence constitutive rule that allows the use of taxation to
prevent competition imbalance, is an effective instrument to be used by Member States and by
the Federal District, intending to protect the competition between the economic agents under
its jurisdiction, when conceded, by the other federal units, unilateral fiscal benefits related to
Tax on the operations related to the Circulation of goods, interstate, intermunicipal and of
communication– ICMS (VAT). Understanding the neutral role the State must play on the
economic order, but which, through tax polices that concede fiscal benefits in disagreement to
the current law, end up influencing directly the free market competition, this paper intends to
show that the equation, by the affected federal entity, conceding unilaterally by other
federative unit, is a valid way of positive acting by the State to restore the competition
balance, previously ceased, by the concession of unilateral fiscal benefits, having as its main
basis the article 146-A quoted above.
Keywords: ICMS (VAT), Fiscal War, competition, Art. 146-A.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8
CAPÍTULO 1 – O PODER DE TRIBUTAR E A REPARTIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 1.1. O Poder de tributar ............................................................................................................12 1.2. As formas de Repartição de Competências no Estado Federal: O modelo adotado pela Constituição de 1988 ...............................................................................................................15 1.3. Repartição das competências legislativas ........................................................................19 1.3.1. Competência privativa e exclusiva.................................................................................20 1.3.2. Competência concorrente ...............................................................................................23 1.3.3. Competência suplementar ..............................................................................................26 1.4. Repartição das competências tributárias ...........................................................................30 CAPÍTULO 2 – A LEI COMPLEMENTAR NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 2.1. Conceito, Regime Jurídico e Posição Hierárquica da Lei Complementar ........................34 2.2. Lei Nacional e Lei Federal ................................................................................................38 2.3. A Lei Complementar em matéria tributária ......................................................................41 2.3.1. O artigo 146 da CF/88 ....................................................................................................43 2.4. Breve introdução sobre o artigo 146-A, inserido na CF/88 pela EC 42/03 ......................52 CAPÍTULO 3 – A DEFESA DA CONCORRÊNCIA 3.1. Breve evolução Histórica do mercado regulatório e da concorrência ...............................54 3.2. As Estruturas de mercado identificadas pela teoria econômica ........................................61 3.2.1. Concorrência perfeita .....................................................................................................61 3.2.2. Monopólio ......................................................................................................................63 3.2.3. Concorrência monopolística ..........................................................................................66 3.2.4. Oligopólio ......................................................................................................................67 3.2.5. Concorrência praticável: “workable competition” ........................................................69 3.3. Os interesses protegidos pela legislação concorrencial brasileira .....................................72 3.3.1. Livre Iniciativa e Livre concorrência .............................................................................72 3.3.2. O domínio de mercado, o abuso de posição dominante e o aumento arbitrário de lucros ...................................................................................................................................................77 3.4. O Estado e o papel de organização da Atividade Econômica ...........................................81 CAPÍTULO 4 – O IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES RELATIVAS À CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SOBRE PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTERMUNICIPAL E DE COMUNICAÇÃO – ICMS 4.1. Breve histórico legislativo do ICMS .................................................................................86 4.1.1. O ICMS na Constituição de 1988 e a função da Lei Complementar nº 87/96 ...............89
4.1.2. O papel atribuído ao Senado Federal .............................................................................92 4.2. Elementos da Norma de Tributação do ICMS ..................................................................95 4.2.1. Hipótese de Incidência:...................................................................................................96 4.2.1.1. Aspecto Material ........................................................................................................97 4.2.1.2. Aspecto Temporal .....................................................................................................102 4.2.1.3. Aspecto Espacial .......................................................................................................103 4.2.1.4. Aspecto Pessoal .........................................................................................................106 4.2.2. Mandamento: ...............................................................................................................107 4.2.2.1. Sujeição Ativa e Passiva ...........................................................................................107 4.2.2.2. Base de Cálculo e Alíquota .......................................................................................108 4.3. Isenções e Incentivos Fiscais ..........................................................................................109 4.3.1. Natureza jurídica da isenção ........................................................................................110 4.3.2. Isenção Total e Alíquota Zero ......................................................................................113 4.3.2.1. Isenção Parcial e Reduções de Base de Cálculo e de Alíquota ................................114 4.3.3. Incentivos Fiscais e Financeiros ..................................................................................118 4.4. A Lei Complementar nº 24/75, os Convênios Interestaduais e o Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ .............................................................................................121 CAPÍTULO 5 – A GUERRA FISCAL E O RE-ESTABELECIMENTO DA CONCORRÊNCIA 5.1. A Guerra Fiscal: A concessão de benefícios fiscais sem a aprovação do CONFAZ ......125 5.1.1. O princípio da neutralidade tributária ..........................................................................128 5.1.1.1. Neutralidade e Igualdade tributária ...........................................................................131 5.1.1.2. Neutralidade e Livre Concorrência: a impossibilidade de intervenção do Estado na livre concorrência através da concessão de benefícios fiscais irregulares .................................................................................................................................................135 5.2. O papel do artigo 146-A da CF/88 e a instituição de Regimes Especiais de Tributação que visem o restabelecimento da concorrência .............................................................................140 5.2.1. A necessidade de lei complementar da União ..............................................................147 5.2.2. A competência concorrente dos Estados e do Distrito Federal na omissão do legislador complementar federal .............................................................................................................154 5.3. A possibilidade de concessão de benefícios fiscais equivalentes que visem o re-estabelecimento da concorrência.............................................................................................156 5.3.1. O caso do Estado de Minas Gerais................................................................................158
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................170 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................176 ANEXO1 Regime Especial de Tributação concedido pelo Estado de Minas Gerais em conformidade com o art. 225, da Lei nº 6.763/1975......................................................................................181
1 Devido ao sigilo fiscal, foram suprimidos os nomes das partes.
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INTRODUÇÃO
Instituído no Texto da Constituição da República de 1988 nos idos de 2003,
quando da publicação da Emenda Constitucional nº 42, o artigo 146-A ainda não despertou na
doutrina e na jurisprudência grandes debates, embora se mostre de grande importância como
instrumento constitucional de prevenção e correção dos desequilíbrios concorrenciais.
Segundo José Luis Ribeiro Brazuna1, o artigo 146-A da Constituição instituiu uma
regra constitutiva de competência legislativa, que permite o uso da tributação para prevenir
desequilíbrios da concorrência, e seria uma nova hipótese de tributação extrafiscal elencada
no Texto Constitucional, e que também se somaria ao emaranhado de regras e princípios que
regulam a intervenção do Estado sobre o domínio econômico.
É cediço que a ordem econômica tem como um de seus princípios basilares a livre
concorrência, conforme previsão expressa do inciso IV, do artigo 170 da Constituição da
República, e que, segundo entendimento de Canotilho, citado por Eros Roberto Grau2, é um
princípio constitucional impositivo.
Tal princípio, melhor denominado pelo eminente doutrinador3de princípio da
liberdade de concorrência, pode ser distinguido em duas nuances: liberdade pública e
liberdade privada. Confira-se:
(...) b) liberdade de concorrência: b.1) faculdade de conquistar a clientela, desde que não através de concorrência desleal – liberdade privada; b.2) proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência – liberdade privada; b.3) neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes – liberdade pública.
A partir dos conceitos acima definidos, indagaremos na presente obra quais
critérios especiais de tributação podem ser utilizados pelo ente estatal, com o objetivo de
prevenir desequilíbrios da concorrência quer dentro da seara da liberdade privada, mas
principalmente no âmbito da no âmbito da liberdade pública.
Buscaremos definir, ainda, qual o papel do legislador complementar da União na
definição de critérios especiais de tributação, bem como qual a amplitude da norma
1 BRAZUNA, José Luiz Ribeiro. Defesa da Concorrência e Tributação – à luz do Artigo 146-A da Constituição – Série Doutrinária Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 60. 2 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 6ª ed., rev. e atualizada São Paulo: Malheiros, 2001, p. 244. 3 GRAU, op. cit., p. 244.
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constitucional, ou seja, à quais entes tributantes caberia a competência para a adoção de
critérios tributários diferenciados, nos seus respectivos âmbitos territoriais, de acordo com o
preceituado pelo artigo 146-A do Texto Constitucional.
Além disso, a presente obra visa demonstrar qual a função do Estado na garantia
da manutenção do equilíbrio concorrencial, a fim de se verificar até onde a tributação pode ser
usada na prevenção de desequilíbrios da concorrência, apontando, todavia, as hipóteses em
que a própria tributação pode ser a causa destes desequilíbrios.
O principal foco do presente estudo se volta para a garantia da liberdade de
concorrência pública, ante o necessário papel neutro que o Estado deve exercer na ordem
econômica, mas que muitas vezes, através políticas tributárias que concedem benefícios
fiscais em desacordo com a legislação de regência, acabam por influenciar diretamente na
livre concorrência no mercado.
Não se desconhece que, nos precisos dizeres de Miguel Reale Júnior, citado por
Eros Roberto Grau4, “a desigualdade das empresas, dos agentes econômicos, é a
característica de uma ordem econômica fundada na livre iniciativa, e que se processa por
meio da livre concorrência”; “a desigualdade é inafastável em um regime de livre iniciativa,
e gera a rivalidade, a livre concorrência”; “a livre concorrência, portanto só sobrevive em
uma economia sem igualdade” sendo permitido “a cada agente econômico a disputa, com
todas as suas forças e armas, pelas presas do mercado”.
Todavia, esta disputa pelos agentes econômicos, com todas as forças e armas,
pelas presas do mercado, jamais pode ser influenciada pela atuação estatal, dado o papel de
neutralidade que o Estado deve exercer, sendo vedada a imposição de política tributária que
influencie diretamente a concorrência entre os agentes econômicos.
Especificamente no tema cerne do presente trabalho, o ICMS e a guerra fiscal, o
autor procurará demonstrar que a concessão unilateral, por parte das unidades federativas,
através de leis, decretos e atos administrativos, de vantagens fiscais, financeiras, creditícias e
operacionais, que afetam diretamente a carga tributária impositiva dos seus administrados,
causa sem sombra de dúvidas, desequilíbrios na livre concorrência.
Explica-se: ao concederem benefícios fiscais de qualquer ordem aos seus
contribuintes, à revelia da Lei Complementar nº 24/75, que veda a concessão de quaisquer
benefícios fiscais em matéria relacionada ao ICMS, de forma unilateral, ou seja, sem que
sejam concedidos através de Convênios editados pelo Conselho de Política Fazendária –
4 REALE JÚNIOR, Miguel. A ordem Econômica na Constituição, apud GRAU, Eros Roberto, op. cit., p. 245.
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CONFAZ, os entes estatais geram diretamente um desequilíbrio concorrencial, em
contrariedade à política de neutralidade estatal que deve permear a ordem econômica.
Questionará, no presente trabalho, se é possível, com base no artigo 146-A da
Constituição Federal, que garante a instituição de tributação diferenciada visando o re-
estabelecimento do equilíbrio concorrencial, que o ente federal prejudicado pela concessão
irregular equipare os benefícios fiscais para os seus contribuintes, sem que tal equiparação
venha a ser questionada.
Buscar-se-á, na presente obra, demonstrar a validade de medidas como as acima
expostas, que tem como fundamento constitucional o artigo 146-A do Texto Constitucional.
Questionará, desta forma, o entendimento de José Luis Ribeiro Brazuna5 que,
embora reconheça os efeitos nefastos da guerra fiscal, não reconhece a utilização do artigo
146-A para a veiculação de normas indutoras com o fim de prevenir desequilíbrios da
concorrência.
Através da análise de casos concretos, já decididos pelo Supremo Tribunal
Federal (ADI 902-8-SP – Pleno – Rel. Min. Marco Aurélio – j. 3.3.94, DJU de 22.4.94; ADI
MC nº 1.999-SP – Rel. Min. Octávio Galloti – j. 30.6.99 – DJU de 5.8.99; ADI MC nº 2.405-
1-RS – Pleno – Rel. Min. Ilmar Galvão – j. 6.11.2002 – DJU de 17.2.2006, dentre outros),
bem como pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), como na resposta à
Consulta nº 38/99 (Rel. Cons. Marcelo Calliari, j. 22.3.2000 – DOU de 28.4.2000), o autor vai
procurar comprovar que efetivamente a implantação de política tributária por determinado
Estado influencia diretamente a livre concorrência.
A presente obra é composta de cinco capítulos. Iniciaremos o trabalho abordando
as questões atinentes ao poder de tributar, bem como às formas de repartição de competências
no Estado Federal, até chegarmos à repartição das competências legislativas e à divisão das
competências tributárias entre os entes da Federação. Neste capítulo, serão abordadas as
espécies de competências legislativas existentes no Texto Constitucional, dando ênfase
especial para a competência concorrente, que será importante para aferir a possibilidade dos
Estados-Membros e do Distrito Federal instituírem validamente seus regimes especiais de
tributação na ausência do exercício da competência outorgada pelo Art. 146-A à União
Federal.
O segundo capítulo é dedicado à análise do importante instrumento legislativo da
lei complementar, dada a sua importância para o estabelecimento das normas gerais em
5 BRAZUNA, ob. cit., p. 215.
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matéria de Direito Tributário e Econômico. Distinguiremos os conceitos de lei federal e lei
nacional, fazendo, ainda, uma breve introdução acerca do art. 146-A da Carta Magna.
No terceiro capítulo, analisaremos as definições de mercado regulatório e de
concorrência, bem como as estruturas de mercado identificadas pela teoria econômica, para,
enfim, dissecar os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, bem
como as formas de atuação do Estado na economia.
O capítulo quatro trata do Imposto sobre operações relativas à Circulação de
Mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação – ICMS, tributo de competência dos Estados-Membros e do Distrito Federal e
que vem sendo alvo de concessão de benefícios fiscais unilaterais pelos entes federados.
Traçaremos um perfil dos principais benefícios passíveis de serem concedidos, bem como a
sistemática de concessão estabelecida pelos legisladores constitucional e complementar.
Finalizando o trabalho, no capítulo cinco, definiremos a conhecida prática da
“Guerra Fiscal” hodiernamente existente entre os Estados-Membros e o Distrito Federal,
visando à atração de novos contribuintes aos seus territórios, demonstrando a repulsa existente
por parte do Supremo Tribunal Federal a tal prática. Além disso, buscaremos, como dito
acima, fundamentar no artigo 146-A da Constituição, a concessão por determinada unidade
federada de benefícios fiscais equivalentes aos concedidos por outro Estado-Membro, visando
re-estabelecer a concorrência e garantir a proteção da economia do Estado prejudicado.
Como exemplo prático, será abordado o caso do Estado de Minas Gerais que, com
base na Lei Estadual nº 6.763, de 26 de dezembro de 1975, garante a adoção de medidas
protetoras da economia estatal, que na prática concedem aos contribuintes mineiros os
mesmos benefícios concedidos por outras Unidades Federadas6.
6 Art. 225 - O Poder Executivo, sempre que outra unidade da Federação conceder benefício fiscal não previsto em lei complementar ou convênio celebrados nos termos da legislação específica, poderá adotar medidas necessárias à proteção da economia do Estado.
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Capítulo 1 – O Poder de tributar e a Repartição das competências legislativas na Constituição de 1988. 1.1. O poder de tributar; 1.2. As formas de repartição de competências no Estado Federal: O modelo adotado pela Constituição de 1988; 1.3. Repartição das competências legislativas; 1.3.1. Competência privativa; 1.3.2. Competência concorrente; 1.3.3. Competência suplementar; 1.4. Repartição das competências tributárias.
1. O PODER DE TRIBUTAR E A REPARTIÇÃO DAS
COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS NA CONSTITUIÇÃO
DE 1988
1.1. O PODER DE TRIBUTAR
Segundo nos ensina Klaus Tipke1, a tributação é a participação do Estado na
propriedade privada, na economia privada. O nível de participação estatal na economia
privada dependerá da extensão da obrigatoriedade social que a Constituição e a sociedade
venham a permitir.
Tipke2 afirma que
o escopo liberal-clássico da tributação se estende somente à necessidade financeira do próprio Estado que for necessária para realizar o ordenamento jurídico e econômico, que protege o indivíduo e a ele oferece as molduras institucionais para o desenvolvimento da personalidade.
O tributo seria, pois, o preço pago pelos cidadãos pela proteção estatal, pela
segurança institucional, necessária à economia privada, além de fazer frente, ainda, à
necessidade financeira da segurança social, assistência e previdência dos jurisdicionados.
Analisando a definição do festejado jurista alemão, infelizmente ainda utópica
para a realidade brasileira, pode-se dizer que o tributo3 4 se afigura como uma forma derivada
1 TIPKE, Klaus. Direito Tributário: Steuerrecht. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 53. 2 TIPKE, op. cit., p. 53-54. 3 Importante trazer à baila a visão evolutiva do conceito de tributo: “Por certo, nem sempre imperou este conceito. As teorias privatistas concebiam o imposto como um direito ou encargo real, ou como algo similar a obrigatio ob rem do direito romano, com o que limitavam aos gravames imobiliários.; por outro lado, a doutrina contratual o equiparava a um contrato bilateral entre o Estado e os particulares, em virtude do qual, aquele proporcionaria serviços públicos e estes os meios pecuniários para cobri-los, de tal modo que se trasladava para o campo jurídico a doutrina econômica da contraprestação ou do preço do seguro, resvalando-se numa interpretação de ordem privada. As doutrinas nitidamente publicistas aparecem na Alemanha, vinculadas à teoria orgânica do estado e, na Itália, às obras de Ranelletti, Cammeo e Romano, que explicam o tributo como obrigação unilateral imposta coercitivamente pelo estado, em virtude de seu direito de soberania, ou poder de
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de obtenção de receitas estatais, através da participação do Estado na economia privada, para
que este possa fazer frente às despesas necessárias ao desempenho das suas atividades
essenciais, garantindo e protegendo a sociedade civil.
O tributo somente pode ser exigido de forma coercitiva dos cidadãos a partir do
Poder Tributário que o Estado exerce sobre os mesmos, poder este conceituado pela doutrina
como sendo a faculdade, ou a possibilidade jurídica, do estado exigir contribuições com
respeito a pessoas ou bens que se achem em sua jurisdição5.
Este poder de instituir tributos, que decorre da própria soberania geral do Estado,
tal como definido por Zelmo Denari6, é outorgado pelo titular do poder, que é o povo, cuja
titularidade é prevista de forma expressa no parágrafo único do artigo 1º da Constituição da
República de 1988: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Vê-se, pois, que o Poder Tributário decorre do próprio Texto Constitucional,
sendo, consoante nos ensina Sacha Calmon Navarro Coelho7, produto da Assembléia
Nacional Constituinte:
O poder de tributar é exercido pelo Estado por delegação do povo. O Estado, ente constitucional, é produto da Assembléia Constituinte, expressão básica e fundamental da vontade coletiva. A Constituição, estatuto fundante, cria juridicamente o Estado, determina-lhe a estrutura básica, institui poderes, fixa competências, discrimina e estatui os direitos e as garantias das pessoas, protegendo a sociedade civil.
Kruse8 defende o poder tributário, por ele denominado soberania impositiva,
como o setor mais importante da soberania estatal. Confira-se o entendimento do mestre
alemão:
La soberanía impositiva es una parte de la soberanía financiera, que a su vez es una parte de la soberanía estatal general. La soberanía financiera comprende el sistema financiero estatal en su totalidad, tanto los ingresos como también los gastos. La soberanía impositiva solamente se interesa por una parte de los ingresos públicos:
império; tal é o conceito aceito pela moderna doutrina do direito financeiro e pela Corte Suprema da Argentina. Não se pode omitir a interpretação de Griziotti, que intenta uma conciliação entre a doutrina contratualista e publicista. Admite o elemento unilateral do tributo, como conseqüência da soberania do Estado, mas o completa com outro, a aquiescência do contribuinte, que se manifesta por intermédio do corpo eleitoral; porém, esta condição – assim como a capacidade contributiva, estabelecida como requisito para fundamentar o poder tributário do estado – são circunstâncias que excedem o campo jurídico e que se explicam na concepção particular das finanças, que não admite a segregação e consideração em separado do aspecto jurídico implicado no conceito integral de atividade financeira”. FONROUGE, C. M. Giuliani. Conceitos de Direito Tributário. São Paulo: Lael, 1973, p. 20. 4 Sobre as diversas teorias que tentam fundamentar o poder impositivo ou soberania fiscal, recomenda-se a leitura da obra do jurista lusitano Soares Matínez, que elenca seis teorias: “a) O fundamento da soberania fiscal no plano da análise jurídica; b) O domínio eminente do príncipe; c) As concepções clássicas baseadas numa troca de utilidade; d) As concepções ético-sociais; e) A negação de fundamento à soberania fiscal; f) As concepções modernas baseadas numa troca global”. MATÍNEZ, Soares. Direito Fiscal. Coimbra: Almedina, 1998, p. 74-79. 5 FONROUGE, op. cit, p. 30. 6 DENARI, Zelmo. Curso de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 37. 7 COELHO, Sacha C. N. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 37. 8 KRUSE, Heinrich W. Derecho Tributario: Parte General. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas S.A., 1978, p. 88-89.
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los ingresos de los impuestos. En la práctica política se la contempla frecuentemente como el sector más importante de la soberanía estatal, sin embargo no es el factor imprescindible de la soberanía estatal.
A doutrina portuguesa não só reconhece o poder tributário do Estado, como o
elege como um dever fundamental: o pagamento dos tributos pelos cidadãos. Neste sentido é
o magistério de Casalta Nabais9:
(...) o dever de pagar impostos, visto pelo lado do seu titular activo, consubstancia-se na atribuição ao legislador de um poder – o poder tributário (ou fiscal) para a criação, instituição ou estabelecimento de impostos, isto é, o poder tributário em sentido estrito ou técnico.
Traçando os aspectos gerais do poder tributário, são apontadas pelos
doutrinadores, pelo menos, quatro as características do poder tributário: a primeira delas é que
o poder tributário é indisponível e irrenunciável, ou seja, não pode ser transferido ou alienado,
nem mesmo delegado.
Como segunda característica, tem-se a imprescritibilidade, incaducabilidade, ou
como prefere Fonrouge10, permanência do poder tributário, que é perene no tempo, razão pela
qual o eventual não exercício pelo seu titular não tem o condão extinguir o direito ao
exercício do poder.
Dissertando acerca da terceira característica atribuída ao poder tributário – o seu
caráter abstrato –, Casalta Nabais11 chama a atenção àquilo que ele denomina “confusão
doutrinária”. Para o jurista português, distinção doutrinária entre “poder tributário abstrato” –
antes de ser exercido pelo Estado – e “poder tributário concreto” – depois de exercido pelo
Estado – se assenta no equívoco da doutrina que confunde os conceitos de poder tributário,
sempre abstrato, e competência tributária, essa sim de efeitos concretos12.
(...) o poder tributário mantém a sua natureza abstrata, tanto antes como depois de ser exercido, estando, por conseguinte, sujeito aos mesmos limites constitucionais que, a não serem respeitados, podem levar à invalidade das suas manifestações, ou melhor, das leis que as contêm. Depois, o poder tributário exprime-se pela forma da lei, lei que, por força da exigência do princípio da igualdade fiscal, há-de ter carácter geral e abstrato, ou seja, ser lei em sentido clássico, o que não se coaduna obviamente com a idéia de um poder tributário concreto para traduzir o poder tributário já exercido.
9 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 269. 10 FONROUGE, op. cit., p. 34. 11 NABAIS, op. cit., p. 303-304. 12 Dissertando sobre o tema, o mestre argentino Giuliani Fonrouge explica que: “(...) o poder tributário consiste na faculdade de exigir tributos (ou estabelecer isenções) ou seja, o poder de sancionar ‘normas jurídicas das quais deriva ou pode derivar, a cargo de determinados indivíduos ou categorias de indivíduos, a obrigação de pagar um imposto ou de respeitar um limite tributário’. É em suma, o poder de gravar. Daí se induz que, paralelamente ao poder tributário, está a faculdade de exercitá-lo num plano material ao qual denomina HENSEL, competência tributária, de tal modo que ambas as coisas podem coincidir, não sendo, entretanto, forçoso que assim ocorra porquanto se manifestam em esferas diferentes, conceitual uma real outra”. FONROUGE, op. cit., p. 38.
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Por fim, a última característica apontada pela doutrina é o caráter limitado do
poder tributário, cujos limites se encontram na própria soberania estatal e no próprio Texto
Constitucional.
Vê-se, pois, que o poder tributário, fiscal, impositivo, que pode ser definido como
a faculdade que o Estado tem de impor tributos aos administrados13, encontra sempre como
limite à Constituição, que é quem confere e reparte as competências tributárias entre as
pessoas políticas, divide entre eles o produto arrecadado, delimita os tributos passíveis de
serem instituídos, enfim, regula todo o âmbito de atuação do Estado no campo tributário.
Passemos a elencar as formas de repartição de competências adotada pela
Constituição da República de 1988, para se chegar à repartição das competências tributárias
levadas a efeito pelo legislador constituinte pátrio.
1.2 AS FORMAS DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS NO ESTADO FEDERAL: O
MODELO ADOTADO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Adentrando-se às formas adotadas nos Estados Federais para divisão do poder
político entre os entes federados14, cabe à Constituição Federal, como instrumento jurídico-
político criador do Estado Federal, definir pelo fortalecimento da ordem jurídica da União,
implicando uma centralização política, ou descentralizando-o aos Estados-membros, que
formam as ordens jurídicas parciais15.
A sistemática de repartição de competências16 adotada pelo legislador
constitucional está diretamente relacionada com o tipo de federalismo adotado pelo Estado
13 Cumpre ressaltar que o poder de instituir tributos, consoante muito bem ressaltado por NABAIS (op. cit., p.277), “abarca
também a extinção e a modificação dos impostos (tributos), mormente a sua diminuição ou qualquer outra modelação como
a resultante da instituição de desagravamentos fiscais. Por isso e embora consciente da sua imperfeição, podemos definir o
poder tributário em sentido estrito ou técnico como o conjunto de poderes necessários à instituição e disciplina essencial dos
impostos”. 14 Embora como muito bem salientado por Elcio Fonseca Reis, o mesmo tenha como características básicas a unicidade e a indivisibilidade, podendo apenas se manifestar de forma plural, advindo de um único centro de competência ou da pluralidade deles. REIS, Elcio F. Federalismo fiscal. Competência concorrente e normas gerais de direito tributário. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 21. 15 A centralização ou descentralização de uma ordem jurídica pode ser de graus quantitativamente variáveis. O grau de centralização ou descentralização é determinado pela proporção relativa do número e da imponência das normas centrais e locais da ordem, consoante ensinamentos de Hans Kelsen (KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 436). 16 “Competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. Competências são as diversas modalidades de poder de que servem os órgãos ou entidades estatais para realizar as suas funções”. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros: São Paulo, 1994, p. 419.
16
Federal. Raul Machado Horta17, utilizando-se do magistério do internacionalista francês
Georges Scelle, elenca como três os tipos de federalismo:
A preferência do constituinte federal por determinada concepção de Estado Federal e a atuação desses fatores extraconstitucionais irão conduzir, de forma convergente ou não, ao tipo de organização federal em determinado modelo histórico. Se a concepção do constituinte inclinar-se pelo fortalecimento do poder federal, teremos o federalismo centrípeto, que Georges Scelle chamou de federalismo por agregação ou associação; se, ao contrário, a concepção fixar-se na preservação do poder estadual emergirá o federalismo centrífugo ou por segregação, consoante a terminologia do internacionalista francês. Pode ainda o constituinte federal modelar sua concepção federal pelo equilíbrio entre as forças contraditórias da unidade e da diversidade, do localismo e do centralismo, concebendo o federalismo de cooperação, o federalismo de equilíbrio entre a União soberana e os Estados-Membros autônomos.
Qualquer dos tipos de federalismo que se adote por determinado Estado Federal,
todavia, a repartição de competências entre os entes federativos18 se afigura como princípio
consubstanciador do federalismo, a ponto da doutrina denominar a distribuição constitucional
de poderes como “o ponto nuclear da noção de Estado Federal” 19, “a chave da estrutura do
poder federal”, “o elemento essencial da construção federal”, “a grande questão do
federalismo”, “o problema típico do Estado Federal” 20.
Inicialmente, baseado no modelo originário do federalismo norte-americano, a
repartição de competências entre os entes federados conferia à União os poderes enumerados
pela Carta Constitucional, reservando aos Estados-membros todos os demais poderes não
enumerados. Tal modelo, denominado de clássico por Raul Machado Horta21, serviu de
modelo para diversas Constituições Federais, como as do Brasil de 1981, 1934, 1946 e 1967.
Tal modelo tinha como pressuposto a atribuição de autonomia aos Estados-
membros, justamente através da repartição de competências para o exercício e o
desenvolvimento da atividade normativa da ordem parcial. Tal repartição se dava de forma
horizontal, na medida em que dividia privativamente as competências entre os entes
federados, razão pela qual não havia que se falar em exercício de uma mesma competência
por mais de um membro da federação.
17 HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 347 (grifo do autor). 18 As competências outorgadas pela Constituição Federal aos entes federados podem ser classificadas como competências materiais, gerais ou de execução e competências legislativas. “Cada entidade federativa recebe da Constituição, além da competência legislativa, outras competências que as credenciam ao desempenho de diferentes tarefas e serviços. Várias são as fórmulas que a doutrina emprega para referir esta última modalidade de competências, cujo objeto não corresponde a uma única atividade, ao contrário do que ocorre com a competência legislativa, que retira o seu nome do objeto específico, qual seja, o de elaborar a lei”. ALMEIDA, Fernanda D. M. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991, p. 90. 19 SILVA, José Afonso, op. cit., p. 417. 20 Conforme, respectivamente, entendimento dos juristas Karl LOEWENSTEIN, Claude-Sophie DOUIN, Jean François AUBERT e Pablo Lucas VERDÚ, apud HORTA, op. cit., p. 349. 21 HORTA, op. cit., p. 350.
17
Algumas variações deste esquema foram elencadas por Raul Machado Horta22:
a) repartição exaustiva da competência de cada ordenamento23; b) enumeração da competência da União e atribuição aos Estados dos poderes
reservados ou não enumerados; c) enumeração da competência dos Estados-Membros e atribuição à União dos
poderes reservados.
A opção pelo legislador constituinte pela atribuição dos poderes reservados à
União ou aos Estados-Membros, conforme as soluções apresentadas nos itens b e c acima, nos
parece claramente estar ligado à forma de constituição do Estado Federal, se através da
agregação de Estados independentes para a constituição do Estado Federal, tal como ocorrido
na federação norte-americana, a tendência é a adoção dos poderes reservados aos Estados-
Membros; se o modelo é de segregação de um Estado Unitário, para a constituição da
Federação, os poderes remanescentes tendem a ser reservados à União.
Na linha evolutiva das formas de repartição de competências no Estado Federado,
o modelo de repartição horizontal se mostra superado com o surgimento da técnica da
competência concorrente. Passa-se, então, a não mais atribuir exclusivamente a um ente
federal a competência legislativa em determinada matéria, mas sim reparti-la verticalmente
entre eles, em verdadeiro condomínio legislativo, consoante regras constitucionais de
convivência24.
Nesta tônica, à ordem central é conferida a atribuição do estabelecimento das
normas gerais, das diretrizes em determinada matéria, sem esgotá-la completamente, cabendo
aos Estados-Membros preencher as lacunas deixadas pelo legislador federal adequando-a as
peculiaridades locais ou regionais.
Vale salientar que, no campo da legislação concorrente, a atividade legislativa
federal deve obedecer a três comandos fundamentais que, embora inicialmente previstos no
artigo 72 da Lei Fundamental Alemã de 194925, se mostram plenamente aplicáveis ao Estado
Federal brasileiro, e definem as hipóteses em que o legislador da União deve obrigatoriamente
estabelecer as normas gerais:
a) Quando os Estados-Membros, isoladamente, não puderem regular determinada matéria de forma eficaz;
b) Quando a regulamentação por lei do Estado-Membro possa prejudicar os interesses de outros Estados ou da coletividade no seu conjunto;
22 HORTA, op. cit., p. 364. 23 Esse sistema de enumeração exaustiva de poderes para as entidades federativas vigora também no Brasil para a repartição de rendas tributárias, com competência residual para União (arts. 145 a 162), consoante muito bem lembrado por José Afonso da SILVA (op. cit., p. 418). 24 HORTA, op. cit., p. 366. 25 HORTA, op. cit., p. 368.
18
c) Quando assim reclamar a manutenção da unidade jurídica ou da unidade econômica, particularmente a manutenção da uniformidade das condições de vida, além dos limites territoriais de um Estado.
A hipótese prevista na alínea b acima se mostra intimamente ligada aos objetivos
do presente trabalho, e comprova que no Brasil, este comando, tal qual na Alemanha, também
se afigura imperativo constitucional, consoante se depreende do disposto no artigo 146, inciso
III, que atribui ao legislador complementar da União estabelecer as normas gerais em matéria
tributária.
Especificamente no que atine ao tema de fundo do presente trabalho – concessão
de benefícios fiscais pelos Estados Federados – a lei de normas gerais da União – Lei
Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, recepcionada pela nova ordem constitucional,
visa justamente estabelecer os limites das legislações estaduais que possam prejudicar os
interesses de outros Estados ou da coletividade no seu conjunto. Este tema será tratado
especificamente no capítulo 4.
Embora Fernanda Dias Menezes de Almeida26 afirme não ser “difícil identificar
no modelo adotado pela Constituição brasileira de 1988 a combinação de praticamente tudo o
que já se experimentou na prática federativa”, a doutrina é categórica ao assegurar que o
legislador constituinte brasileiro adotou como modelo de federalismo o de equilíbrio, já que o
exercício das competências pela ordem central não inibe o florescimento dos poderes das
ordens jurídicas parciais27.
Neste modelo peculiar do federalismo brasileiro, o legislador constituinte adotou
tanto a técnica da repartição horizontal de competências, ao distribuir à União, as
competências privativas dos artigos 21 e 22, aos Estados, as competências reservadas do §1º,
do artigo 25, aos Municípios, as competências do artigo 30, como a vertical, distribuindo
entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, competências legislativas concorrentes,
atribuídas à União, nos artigos 21 e 22, além das competências materiais comuns, previstas no
art. 23 do Texto Constitucional.
26ALMEIDA, op. cit., p. 79. 27 Para a mencionada autora, a principal forma adotada pelo legislador constituinte brasileiro para se chegar ao federalismo de equilíbrio foi através da utilização da utilização das competências concorrentes. “Parece-nos, efetivamente, que a utilização das competências concorrentes, como idealizada, atende aos desígnios de se chegar a uma maior descentralização, sem prejuízo da direção uniforme que se deva imprimir a certas matérias. Numa palavra, o caminho que se preferiu é potencialmente hábil a ensejar um federalismo de equilíbrio, que depende embora, não se desconhece, também de outras providências”. ALMEIDA, op.cit., p. 82. Para Machado Horta, o federalismo de equilíbrio brasileiro foi baseado no modelo da Lei Fundamental da Alemanha de 1949 (HORTA, op. cit., p. 353-355).
19
Passemos a elencar abaixo a forma de repartição das competências legislativas
pelo constituinte de 1988, lembrando que não serão objeto do presente estudo as
competências materiais outorgadas aos entes federados.
1.3. REPARTIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS
Segundo José Afonso da Silva28, na classificação das competências, surgem dois
grandes grupos, que por sua vez se subdividem em subclasses: I – competência material,
também chamada por Fernanda Dias Menezes de Almeida29 de competências gerais ou de
execução, que pode ser: a) exclusiva (art. 21); e comum, cumulativa ou paralela (art. 23); II –
competência legislativa, que pode ser: a) exclusiva (art. 25, §§ 1º e 2º); b) privativa (art. 22);
c) concorrente (art. 24); d) suplementar (art. 24, 2º).
Não será objeto de estudo na presente obra as competências materiais previstas no
texto constitucional. Abordaremos apenas as espécies de competência legislativa, definidas
por De Plácido e Silva30 como o poder que se confere a um ente para que este possa elaborar
leis sobre determinados assuntos, traçando os limites, em razão da matéria, dentro dos quais
podem ser elaboradas as leis e regulados os assuntos a que se referem.
Vale frisar que a partilha das competências legislativas entre os entes federados é
vista pela doutrina como o ponto nuclear da autonomia das entidades federadas, já que quanto
mais liberdade de elaborar suas próprias leis é outorgada pelo legislador constituinte ao ente
federado, maior o poder do ente de autogovernar-se, nos dizeres de Fernanda Dias Menezes
de Almeida31, “é na capacidade de estabelecer leis que vão reger suas próprias atividades, sem
subordinação hierárquica e sem a intromissão das demais esferas de poder, que se traduz a
autonomia de cada uma dessas esferas”32 33.
28 SILVA, José Afonso, op. cit., p. 419. 29 ALMEIDA, op. cit., p. 90. 30 SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 473. 31 ALMEIDA, op. cit., p. 104. 32 No mesmo sentido, Paul Laband, citado pela Ministra Carmen Lúcia, afirma que: “no sentido jurídico, a autonomia designa sempre um poder legislativo. A autonomia, conceito jurídico, supõe um poder de direito público não soberano, capaz de estabelecer por direito próprio, e não por mera delegação, regras de direito obrigatórias”. LABAND apud ROCHA, Carmen Lucia A. República e Federação no Brasil: Traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, nota de rodapé 16, p. 181. 33 Importante salientar, ainda, que além da autonomia legislativa, é imprescindível na Federação a existência da autonomia financeira dos entes federados. Novamente, precisos são os ensinamentos da Ministra Carmen Lúcia: “(...) há que se observar ser necessário haver estreita correlação entre as competências repartidas e os recursos financeiros assegurados às entidades da Federação para que elas possam ser efetiva e eficazmente exercidas. Sem esses recursos não há meio de serem satisfeitas, realizadas e cumpridas as competências outorgadas às diferentes entidades, ficando a descentralização inviabilizada. (...) Inexiste autonomia sem independência mínima, o que exige capacidade de auto-suficiência”. ROCHA, op. cit., p. 185-186.
20
Passemos a elencar as espécies de competências legislativas, tal como
classificadas por José Afonso da Silva.
1.3.1. COMPETÊNCIA PRIVATIVA E EXCLUSIVA
A questão da definição das modalidades de competência privativa e exclusiva é
questão controversa na doutrina. Para José Afonso da Silva34, os conceitos de competência
privativa e exclusiva são absolutamente distintos, diferenciando-se pela delegabilidade da
primeira e pela indelegabilidade da segunda. Confira-se:
A diferença que se faz entre competência exclusiva e competência privativa é que aquela é indelegável e esta é delegável. Então, quando se quer atribuir competência própria a uma entidade ou a um órgão com possibilidade de delegação de tudo ou de parte, declara-se que compete privativamente a ele a matéria indicada. Assim, no art. 22 se deu competência privativa (não exclusiva) à União para legislar sobre:..., porque o parágrafo único faculta à lei complementar autorizar aos Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo. No art. 49 é indicada a competência exclusiva do Congresso Nacional. O art. 84 arrola a matéria de competência privativa do Presidente da República, porque seu parágrafo único permite delegar algumas atribuições ali arroladas. Mas a Constituição não é rigorosamente técnica neste assunto. Veja-se, p. ex., que nos artigos 51 e 52 traz matérias de competência exclusiva, respectivamente, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, mas diz que se trata de competência privativa. Não é deste último tipo, porque são atribuições indelegáveis.
A Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha35 parece concordar com o professor
paulista, ao distinguir a competência privativa da exclusiva pelo critério da delegabilidade:
As competências exclusivas e as privativas das entidades federadas traçam a autonomia de cada qual. Distinguem-se entre si porque a exclusividade de sua definição constitucional importa em elisão de participação de qualquer outra entidade federal em seu desempenho, mesmo que para tanto aquiescesse a pessoa inicialmente afirmada pela Lei Fundamental. São, pois, as tarefas que não podem ser repassadas, mediante delegação ou renúncia, em seu cometimento ou responsabilidade a outra entidade federada. As competências privativas são as que se exercem pelas respectivas entidades para o atendimento de desempenho que lhe é próprio, mas permitem delegação, e seu objeto é sempre matéria de função normativa.
Veja-se que, embora tratem os conceitos de forma distinta, os próprios autores
reconhecem que o legislador constituinte brasileiro tratou os conceitos como sinônimos (art.
51 e 52), já que trazem o termo privativo, que no entendimento dos autores refere-se à
competência delegável, para tratar de uma matéria de competência exclusiva da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal, ou seja, matéria indelegável.
34 SILVA, José Afonso, op. cit., n.r. 5, p. 419. (Grifos do autor). 35 ROCHA, op. cit., p. 239. (Grifos do autor).
21
É com base neste argumento, ausência de precisão técnica do legislador
constituinte, que autores como Fernanda Dias Menezes de Almeida36, José Cretella Júnior37 e
Elcio Fonseca Reis38 vêem como desnecessária a distinção tratada acima, já que nem o
próprio legislador se preocupou em distinguir os termos. A autora ensina que não se mostra
apropriado extremar mediante o uso dos termos “privativo” e “exclusivo” as competências
próprias que podem e as que não podem ser delegadas, como se “privativo” não exprimisse,
tanto quanto “exclusivo”, a idéia do que é deferido a um titular com exclusão de outros. E
continua:
Em abono dessa posição vale lembrar, por fim, que o constituinte, como reconhece o próprio JOSÉ AFONSO DA SILVA (1984:413, n.r. 5), não levou em conta a distinção aqui discutida, havendo dispositivos, assim os artigos 51 e 52, em que, sob a rubrica de “competências privativas”, estão arroladas atribuições indelegáveis.
De fato, este parece ser o entendimento mais apropriado, até mesmo porque não
há distinção relevante entre o significado das palavras “privativo” e “exclusivo”, quer em
dicionários da língua portuguesa39, quer em dicionários jurídicos40. Somado a isto, a
imprecisão do legislador constituinte, que ora utiliza o termo privativo, ora o exclusivo, para
outorgar competências aos entes federados.
Deixada de lado a divergência de nomenclatura acima, importante frisar que, a
possibilidade de delegação de competência entre os entes federados no ordenamento jurídico
brasileiro é sempre relativa, dependendo de expressa autorização constitucional, sob pena de
ofensa direta ao próprio princípio federativo, ao princípio da supremacia da Constituição,
além do princípio do devido processo legal, pelo qual a norma tem objeto, processo e
procedimento próprios para ser admitida como lei válida no sistema jurídico, consoante muito
bem esclarece a professora Carmen Lúcia41.
Além disso, mesmo presente a possibilidade de delegação no Texto
Constitucional, como no caso do parágrafo único do artigo 22 da Constituição da República
de 1988, a mesma não poderá ocorrer de forma ilimitada, sendo válida a transferência da
36 ALMEIDA, op. cit., p. 86. 37 CRETELLA JÚNIOR. José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 1775. 38 REIS, op. cit., p. 67. 39 “Exclusivo: [Do lat. med. exclusivu.] Adjetivo. 1.Que exclui, põe à margem ou elimina. 2. Privativo, restrito”. FERREIRA, Aurélio B. H. Dicionário Aurélio Eletrônico 7.0. 40 “Privativo: Do latim privatius, entende-se o que é próprio da pessoa, com exclusão das demais. E, assim, o que é exclusivo dela, somente por ela pode ser feito ou praticado, pois que somente ela tem autoridade ou competência para fazer”. SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1093. 41 ROCHA, op. cit., p. 241.
22
competência legislativa apenas no que se refere às questões específicas42 do ente federado que
receber a delegação, no caso em tela, os Estados-membros.
É a aplicação, na delegação de competências privativas, do princípio
predominância do interesse, tal qual definido por José Afonso da Silva43, segundo o qual à
União caberão aquelas matérias e questões de “predominante interesse geral, nacional, ao
passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional” 44.
Nesta seara, concordamos com o entendimento da Ministra Carmen Lúcia de que,
para haver a delegação da União para os Estados-membros, tal como prevista no parágrafo
único do artigo 22 do Texto Constitucional, é preciso que a União tenha legislado
genericamente sobre as matérias tratadas no artigo em pauta, para que os Estados-membros
legislem sobre as questões específicas, adequando-as aos interesses predominantemente
regionais.
Ressalte-se que tal delegação, que a teor do estabelecido no parágrafo único do
artigo 22 do Texto Constitucional, deve ocorrer através de lei complementar do ente
delegante, a qual estabelece os prazos e parâmetros da delegação. Ademais, a delegação deve
restringir-se apenas às questões específicas daquele ente federado, consoante nos ensina
Ferreira Filho45:
Nada obsta, em segundo lugar, e tudo aconselha que esta lei estabeleça padrões e parâmetros para o exercício da delegação, bem como estipule prazo para tanto. Cabe nisso, também, analogia com o disposto no art. 68 da Constituição, agora no §2º. Em terceiro lugar, a delegação poderá ser feita a Estado determinado, caso em que a norma assim editada apenas terá eficácia no território deste. Enfim, a delegação deverá restringir-se a “questões específicas”, ou seja, a pontos ou assuntos determinados na lei complementar, sendo, pois, vedada a delegação genérica de toda uma matéria.
Note-se que não se trata de atribuição de competência concorrente à União e aos
Estados46, tal como previsto no artigo 24 da Constituição, e que será objeto de estudo no
42 Segundo ROCHA (op. cit., p. 242), “questões específicas são aquelas que não traduzem a essência do instituto ou da ‘matéria’ cuidada pelo legislador, vale dizer, aquelas que podem ser consideradas como devendo ou podendo receber tratamento diferenciado segundo as peculiaridades de cada qual dos Estados-membros da Federação”. 43 SILVA, José Afonso, op. cit., p. 418. 44 Trata-se do mesmo critério definidor da competência de cada ente federado utilizado por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “os interesses, é certo, ou são peculiares a uma determinada zona, ou são gerais. Há necessidades cuja solução interessa diretamente o país, e outras cuja solução interessa diretamente a uma localidade. Não há dúvida que estas últimas sempre, indiretamente, interessam a nação. Assim, o interesse peculiar de um certo Estado federado é aquele considerado imediatamente local e mediatamente nacional” (MELLO apud ROCHA, op. cit., p. 242). 45 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 178. 46 Cumpre ressalvar que parte da doutrina, como a autora Fernanda Dias Menezes ALMEIDA (op. cit., p. 150), entende que se teria na hipótese descrita uma espécie de competência concorrente clássica, tal como denominada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto como sendo aquela “caracterizada pela disponibilidade ilimitada do ente central de legislar sobre a mesma matéria, até mesmo podendo esgotá-la, remanescendo aos Estados o poder de suplementação, em caso de ausência de norma federal, ou de complementação acaso por ela deixada”. (Competência Concorrente Limitada. O problema da Conceituação das Normas Gerais. Revista de Informação Legislativa. Brasília: a.25, n. 100, out/dez, 1998).
23
tópico subsequente. A uma, porque a delegação prevista no parágrafo único do artigo 22 pode
ser revogada a qualquer tempo, restabelecendo-se a competência privativa da União. A duas,
porque na competência concorrente os Estados-membros possuem competência suplementar47
à da União, além de possuírem competência legislativa plena na hipótese de omissão da
União, até a promulgação, pelo centro, da norma geral.
1.3.2. COMPETÊNCIA CONCORRENTE
Define-se competência concorrente como a possibilidade jurídica de várias
pessoas políticas legislarem sobre determinada matéria. Tal definição, de CRETELLA
JÚNIOR48, é absolutamente aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro, já que a
Constituição Federal outorgou a competência concorrente aos entes federados apenas no que
se refere à função legislativa, não o fazendo em relação às competências materiais, gerais ou
de execução.
A Constituição de 1988, conforme se infere do teor do art. 24 e seus parágrafos,
adotou a modalidade de competência concorrente não-cumulativa49 50, ao atribuir à União a
competência somente para estabelecer normas gerais, enquanto os Estados-Membros e o
Distrito Federal poderão complementar as ditas normas gerais, ou legislar com plenitude, na
ausência de normas gerais, sempre atendendo aos interesses regionais.
Trata-se da introdução na repartição de competências do ordenamento jurídico
constitucional da chamada autonomia formal, que garante o compartilhamento pela União,
Estados e Distrito Federal, das competências legislativas. Possibilita-se, com esse
47 Aqui entendida como sinônimo de complementar, conforme entendimento de CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 1778. 48 CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 1775. 49 O professor Kildare Gonçalves Carvalho classifica a competência concorrente em cumulativa e não cumulativa: “A competência concorrente pode ser: a) cumulativa ou clássica, quando não há limites prévios à atuação legislativa dos entes políticos, que podem legislar ilimitadamente sobre as mesmas matérias; b) não-cumulativa ou limitada, quando a União fixa princípios, diretrizes, normas gerais, e os Estados estabelecem normas de aplicação, ou específicas, detalhando as normas gerais da União. (CARVALHO, Kildare G. Direito Constitucional Didático. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 249). 50 Manoel Gonçalves Ferreira Filho classifica as espécies de competência legislativa concorrente da seguinte forma: “Cumpre notar que a competência concorrente pode ser de duas espécies: a cumulativa e a não-cumulativa. A cumulativa existe sempre que não há limites prévios para o exercício da competência, ou por parte de um ente, seja a União, seja o Estado-Membro. Claro está que, por um princípio lógico, havendo choque entre a norma estadual e a norma federal num campo de competência cumulativa, prevalece a regra da União. É o que exprime o brocardo alemão: Bundesrechet bricht Landesrecht (v. §4º). A não-cumulativa é que propriamente estabelece a chamada repartição ‘vertical’. Com efeito, dentro de um mesmo campo material (concorrência ‘material’ de competência), reserva-se um nível superior ao ente federativo mais alto – a União – que fixa os princípios e normas gerais, deixando-se ao ente federativo que é o Estado-Membro uma competência ‘complementar’. Admite-se até que, à falta dessas normas gerais, o Estado-Membro possa suprir essa ausência (competência ‘supletiva’). Entretanto, quem supre complementa. A norma que vem suprir um branco, evidentemente, complementa o ordenamento. Da mesma forma, quem complementa de certo modo supre, já que fecha um claro ao desdobrar a norma geral. Dessa correlação nasce o emprego impróprio das expressões competência ‘complementar’ e competência ‘supletiva’, em que incidem, por vezes, os próprios textos constitucionais (como era o caso do art. 8º, parágrafo único, da Constituição anterior). A essas expressões a Constituição vigente preferiu outra: competência ‘suplementar’, com igual ambigüidade”. (FERREIRA FILHO, op. cit., p. 189).
24
compartilhamento, uma dupla legislação sobre uma mesma matéria, constituindo-se, o que a
Ministra Carmen Lúcia51 chama de “consórcio legislativo federal”, cabendo à União a
competência de legislar sobre normas gerais, e aos Estados e o Distrito Federal, suplementar a
legislação da União naquilo que não seja considerado como “normas gerais”.
Vale salientar que “normas gerais”, conforme conceitua Raul Machado Horta52,
são normas "não exaustivas", também denominadas de "lei quadro", ou seja, uma moldura
legislativa. Aos Estados e ao Distrito Federal cabe o preenchimento desta moldura, ocupando
os claros deixados pelo legislador federal, de forma a melhor atender às peculiaridades
regionais.
Esclareça-se desde logo que, apesar de não se incluir o Município no art. 24 da
CF, este poderá, utilizando sua competência suplementar, prevista no art. 30, inciso II, da
Carta Federal, legislar de maneira a suplementar, no âmbito das matérias previstas no art. 24,
as leis federais de normas gerais editadas pela União, e as leis estaduais complementares,
sempre que tal fato vise a atender peculiar interesse local do Município, sendo este um
pressuposto para o exercício da competência suplementar.
Ocorre que a precisa identificação dos limites das normas gerais não tem sido
questão unânime na doutrina. Isto porque a conceituação da expressão é bastante fluida,
cercada de subjetivismos, razão pela qual a formulação de um conceito único, que permita
reconhecê-las com razoável segurança, não tem sido tarefa fácil para os doutrinadores53.
Alguns, como Ferreira Filho54, preferem conceituar normas gerais pelo ângulo
negativo, ou seja, indicando os caracteres de uma norma que não é ‘geral’ sendo,
consequentemente, específica, particularizante, complementar. Outros, como Cretella
Júnior55, elencam dois requisitos necessários para que determinada regra seja classificada
como geral: a) que assim o diga a Constituição; b) que incida apenas sobre as matérias
determinadas pela Constituição, ou seja, para o doutrinador "normas gerais são leis federais
que o legislador entender como tais, discricionariamente, desde que assim rotuladas
taxativamente pela Constituição".
51 ROCHA, op. cit., p. 246. 52 HORTA, op. cit., p. 419-420. 53 PINTO FERREIRA, citado por Ives Gandra Martins, corrobora com tal entendimento, ao explicar que: “É, porém, por vezes, difícil delimitar a medida paramétrica correta do entendimento do que seja norma geral, para evitar o conflito de legislações federal, estadual e distrital”. BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 2, nota de rodapé 2. 54 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 189. 55 CRETELA JÚNIOR, op. cit., p. 1581.
25
Já Diogo de Figueiredo Moreira Neto56 oferece o seguinte conceito de “normas
gerais”:
Normas gerais são declarações principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-Membros na feitura das suas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos.
Concordando com Moreira Neto, entendemos que a função primordial da lei de
normas gerais, como lei nacional, da Federação57, é justamente assegurar a uniformidade de
tratamento dos jurisdicionados perante os entes federados (União, Estados-Membros, Distrito
Federal e Municípios), que possuem como limite das suas legislações os delineamentos
constantes da lei de normas gerais. As leis de normas gerais devem essencialmente atender ao
já elencado princípio da predominância do interesse nacional, cabendo aos Estados e ao
Distrito Federal a adequação legislativa aos interesses regionais, e aos Municípios, a
adequação aos interesses locais.
O Supremo Tribunal Federal, como guardião do Texto Constitucional, instado a
se manifestar acerca da questão, já se posicionou, de forma definitiva, no sentido de ser
mesmo o papel da lei de normas gerais o estabelecimento dos princípios, fundamentos,
diretrizes, e critérios básicos, conformadores das leis que completarão a regência da matéria e
que possam ser aplicadas uniformemente em todo o País, indiferentemente de regiões ou
localidades. Confira-se parte do recente acórdão de relatoria da Ministra Ellen Gracie58:
As normas gerais são aquelas que orientam o exercício da tributação, sendo passíveis de aplicação por todos os entes tributantes. O Egrégio Tribunal Federal da 4ª Região, nos autos da AIAC 1998.04.01.020236-0, bem definiu como normas gerais ‘aquelas que, simultaneamente, estabelecem os princípios, os fundamentos, as diretrizes, os critérios básicos, conformadores das leis que completarão a regência da matéria e que possam ser aplicadas uniformemente em todo o País, indiferentemente de regiões ou localidades'.
Cumpre aditar que, em que pese o entendimento contrário de alguns autores,
como Ives Gandra Martins59, nos casos em que se afigura a competência concorrente entre os
56 MOREIRA NETO apud ALMEIDA, op. cit., p. 161. 57 No capítulo subseqüente trataremos especificamente das distinções entre lei federal e lei nacional. Cumpre todavia, desde logo, destacar a impropriedade do legislador constituinte ao qualificar, nos §§ 3º e 4º do artigo 24 da Constituição Federal/88, como “lei federal” a lei de normas gerais emanada pelo Poder Legislativo da União, quando, na realidade, trata-se o mencionado instrumento normativo de uma “lei nacional”. 58 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 562276/RS. Declaração de inconstitucionalidade, exclusividade, incompatibilidade, caráter formal. Tribunal Pleno. Relatora: Ministra Ellen Gracie, 03 de novembro de 2010. Brasília: Diário da Justiça,10 fev. 2011, p. 419. 59 MARTINS, op. cit., p. 2. “Tenho para mim, nada obstante o argumento dos que assemelham a competência comum à concorrente, que há uma diferença de grau hierárquico, a saber: na competência comum, nenhum ente federativo está hierarquicamente subordinado, em sua ação, à atuação do outro, enquanto na competência concorrente, a da União prevalece sobre a dos Estados e a dos Estados sobre a dos Municípios".
26
entes da Federação, não há que se falar em hierarquia vertical entre as normas, já que cada
ente federado possui a sua competência constitucionalmente definida: à União, o
estabelecimento das normas gerais; aos Estados-Membros e ao Distrito Federal, a
suplementação da legislação central, especificando-a às peculiaridades regionais; e aos
Municípios, também o caráter suplementar, porém adequando-a aos interesses locais.
Entendemos como Elcio Fonseca Reis60, para quem não existe diferença
hierárquica entre as leis ordinárias federais, estaduais e municipais, mas sim diferença de
competência legislativa. Confira-se o entendimento do autor:
(...) Na estrutura escalonada das normas jurídicas, ou piramidal, somente há hierarquia entre as diversas normas do ordenamento jurídico quando umas extraem das outras o seu fundamento de validade. Em outras palavras, somente haveria hierarquia entre as leis federais, estaduais e municipais se estas extraíssem daquelas seu fundamento de validade. (...) Na estrutura escalonada das normas jurídicas, pode-se dizer que uma norma é hierarquicamente inferior a outra quando aquela retira desta o seu fundamento de validade. Acontece que nos campos legislativos estaduais, municipais, distrital ou federal todas as regras jurídicas decretadas encontram, em princípio, seu fundamento de validade na Constituição Federal, não existindo, nesses termos, subordinação, mas sim diferentes âmbitos de competência.
Conclui-se, pois, que as delimitações de cada ente federado nas hipóteses de
outorga de competências concorrentes pelo legislador constituinte são previamente
determinadas pelo próprio legislador constituinte, não havendo que se falar em hierarquia
entre as normas emanadas pelas entidades federadas. Isto não significa que não podem ocorrer
invasões de competência de um ente sobre o outro. Mas nesta hipótese, não há que se falar em
classificação hierárquica das leis, mas sim em ato normativo inconstitucional.
1.3.3. COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR
Delineados os aspectos da competência concorrente prevista no artigo 24 do texto
Constitucional, cumpre adentrar ao estudo dos §§ 2º ao 4º do mencionado artigo61, que
definem as hipóteses de competência legislativa suplementar dos Estados, bem como do
artigo 30, inciso I e II62, que circunscrevem os campos de atuação legislativa suplementar dos
Municípios.
60 REIS, op. cit., p. 40. 61 "Art. 24. (...) § 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º - A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário." 62 "Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; (...)".
27
Diferentemente das Constituições pretéritas de 1934 e 1946, que atribuíam aos
Estados a competência legislativa “complementar” ou “supletiva” dos Estados federados, a
Carta Constitucional de 1988 preferiu utilizar-se do termo “suplementar”. Não adentraremos
no presente trabalho nas discussões doutrinárias acerca dos termos em referência, razão pela
qual adotaremos o termo suplementar tanto para definir a competência legislativa
complementar dos Estados-Membros e do Distrito Federal (§2º, art. 24, CF/88), como a sua
competência supletiva (§3º, art. 24, CF/88), aderindo ao entendimento de Manoel Gonçalves
Ferreira Filho.
Consoante dito no tópico acima, cabe aos Estados-Membros e ao Distrito Federal
suplementar a legislação de normas gerais expedidas pela União, na medida em que a
legislação estadual tem a finalidade de aprofundar, com singularidade, determinada matéria
que foi esboçada de forma genérica, com abrangência nacional, pelo Poder legislativo da
União.
Todavia, as legislações dos Estados-Membros devem ater-se aos limites
estabelecidos na lei de normas gerais, sendo vedado ao Poder Legislativo estadual inovar no
tratamento legislativo moldado pelo órgão central. Neste ponto, precisos são os ensinamentos
de Carlos Maximiliano, citado por Ferreira Filho63. Confira-se:
Não é lícito (ao Estado), entretanto, INOVAR; cada Estado ficará adstrito à orientação traçada pelas normas positivas promulgadas pela União. A interferência da legislatura local visará apenas as NECESSIDADES E PECULIARIDADES REGIONAIS, providências de ordem pública, que indiscutivelmente se coadunem com o sistema, as exigências e as outorgas de origem federal.
Vê-se, pois, que a competência estadual (e do Distrito Federal) de complementar a
lei de normas gerais deve estar adstrita ao atendimento das peculiaridades regionais,
estabelecendo cautelas especiais ou condições particulares, sem, obviamente, extrapolar os
limites estabelecidos pelo legislador federal.
Além da competência concorrente não-cumulativa prevista nos §§ 1º e 2º do
artigo 24, o legislador constituinte outorgou, ainda, aos Estados-Membros e ao Distrito
Federal, a competência legislativa plena nas hipóteses de omissão pelo legislador federal no
estabelecimento das normas gerais. Neste caso, os entes federados periféricos deterão a
competência para preencher as lacunas deixadas pelo poder central, com vistas à atender as
suas peculiaridades regionais.
Cumpre frisar que a plenitude da competência estadual se aplica não somente
àqueles casos em que não haja disciplina sobre determinado ponto pela legislação federal,
63 MAXIMILIANO, Carlos apud FERREIRA FILHO, op. cit., p. 190.
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como também aos casos de completa omissão da União. Neste sentido é o entendimento de
Anna Cândida da Cunha Ferraz64:
As normas especificas do Estado são suplementares, no sentido de que ocupam campo ex novo, embora específico e derivado do espaço aberto pela norma geral (art. 24, §3º), e podem também ser ‘supletivas’ à medida que suprem a omissão ou ausência da lei federal, embora, ainda nesse caso, se trate de norma estadual de conteúdo específico, uma vez que o texto condiciona a faculdade legislativa ‘plena’ do Estado ao atendimento de ‘suas peculiaridades’.
Esse caráter supletivo da legislação estadual, todavia, não tem o caráter
substitutivo da legislação federal para todo o território nacional, sendo aplicável apenas no
território do Estado-Membro que a editar.
Por derradeiro, curial salientar o disposto no § 4º, do artigo 24, que restabelece o
poder originariamente atribuído ao poder central para ditar as normas gerais, em caso da
superveniência da legislação federal, suspendendo a eficácia da legislação estadual naquilo
que for à norma federal superveniente. Neste ponto, vale frisar que, consoante entendimento
de José Afonso da Silva65, a superveniência da legislação federal não tem o condão de revogar
a legislação estadual que lhe é contrária, mas apenas de retirar-lhe a eficácia, ou seja, na
hipótese de revogação da lei geral federal, a lei estadual recobra a sua eficácia.
No que se refere à competência legislativa suplementar dos Municípios, o artigo
30, incisos I e II, da Constituição da República de 1988, estabelece que a eles cabe apenas
suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber e desde que haja interesse
predominantemente local.
Vê-se, pois, que também a competência constitucional dos Municípios é
suplementar, ou seja, deve respeitar os limites estabelecidos nas normas gerais, expedidas
pelo Poder Legislativo Federal, bem como nas normas estaduais de complementação à
legislação federal, e ainda observar a predominância de interesse local. Vale dizer, o Poder
legiferante suplementar dos Municípios jamais poderá extrapolar as regras estabelecidas na
legislação federal e estadual, sob a pecha de clara inconstitucionalidade, não podendo ser
exercido, mesmo ante a inexistência de leis federal e estadual, se a matéria não revelar
predominância de interesse local.
Neste sentido é o entendimento da Professora Fernanda Dias Menezes de
Almeida66:
Parece-nos que a competência conferida aos Estados para complementarem as normas gerais da União não exclui a competência do Município de fazê-lo também.
64 FERRAZ, Anna Cândida apud ALMEIDA, op. cit., p. 166. 65 SILVA, José Afonso, op. cit., p. 435. 66 ALMEIDA, op. cit., p. 170.
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Mas o Município não poderá contrariar nem as normas gerais da União, o que é obvio, nem as normas estaduais de complementação, embora possa também detalhar estas últimas, modelando-as mais adequadamente às particularidades locais.
Note-se que, para o exercício da competência suplementar, é preciso que a norma
municipal, além de dizer respeito ao "peculiar interesse comunal, isto é, assunto de interesse
local"67, somente pode ser editada naquilo que lhe couber, consoante estabelece o texto do
inciso II, do art. 30, da Carta Constitucional, ou seja, são cumulativos os requisitos, devendo
haver interesse nitidamente local sobre a matéria normativa, e o exercício será permitido
"somente naquilo que não conflitar, não gerar incompatibilidade com a legislação federal e
estadual", nos precisos dizeres de José Cretella Jr68. O mestre administrativista, embora
tratando da competência complementar dos Estados-membros, refere-se à competência
suplementar, como no caso dos Municípios, nos seguintes termos:
Editadas com a finalidade precípua de facilitar, no âmbito do Estado-membro, a aplicação efetiva da lei elaborada pelo poder legislativo central, a lei estadual complementar (ou suplementar) desce a minúcias que o “poder central”, a União, jamais poderia regular pela distância em que se encontra da “periferia”. Em síntese, complementando ou suplementando a lei federal, a lei estadual paralela não pode inovar, não pode criar direito novo, não pode restringir ou modificar direitos fixados pelo “centro”.
Hely Lopes Meirelles69 esclarece a questão do âmbito da atuação do legislador
municipal:
(...) peculiar interesse se caracteriza pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância. Estabelecida essa premissa, é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu peculiar interesse, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. (...). Dentre os assuntos vedados ao Município, por não se enquadrarem no conceito de peculiar interesse, é de se assinalar, a título exemplificativo, a atividade jurídica, a segurança nacional, o serviço postal, a energia elétrica, a telecomunicação, e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem do âmbito local. Muitas, entretanto, são atividades que, embora tuteladas ou combatidas pela União e pelos Estados-membros, deixam remanescer aspectos da competência local, e sobre os quais o Município não só pode, como deve intervir, atendo a que a ação do Poder Público é sempre um poder-dever.
Ou seja, para Hely Lopes, ainda que se trate de competência concorrente, os
Municípios somente podem atuar, supletivamente, quando a matéria que será normatizada
revele predominância de interesse local.
Fora desta hipótese, o Município pode apenas complementar a legislação federal e
estadual, ou seja, atuar para sanar as brechas das normas federais e estaduais, completando-as,
67 CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 1890. 68 CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 1890 (Grifos nossos).
30
não podendo contrariá-las, direta ou indiretamente; muito menos inovar o ordenamento,
criando hipóteses não previstas anteriormente, tal como já salientado acima em relação aos
Estados-Membros.
1.4. REPARTIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS
Como já dissemos acima, para que o federalismo seja exercido em sua plenitude,
não basta a autonomia legislativa dos entes federados, sendo fundamental que o legislador
constituinte garanta a correlação entre as competências legislativas repartidas e os recursos
financeiros atribuídos constitucionalmente a cada entidade da Federação, garantindo-lhes uma
independência financeira mínima.
E essa autonomia financeira mínima tem como principal sustentáculo a repartição
do poder de tributar entre os entes federados, atribuindo-lhes competências tributárias
próprias, denominada por Zelmo Denari70, como a qualidade atribuída às pessoas jurídicas de
direito público interno para instituir tributos discriminados nas Constituições.
Desta forma, no sistema federativo, tal como o brasileiro, não há como se
sustentar que um ente federado fique a mercê de doações ou repasses de outros, para que
possa efetuar a gestão da coisa pública, razão pela qual o legislador constituinte outorgou à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a competência institucional ou
originária para a decretação dos tributos que lhes são reservados.
Volvendo-se ao Sistema Tributário Brasileiro, tal como positivado no Texto
Constitucional de 1988, verifica-se ter adotado o legislador constituinte a teoria quinquipartite
dos tributos71, subdividindo-os em (i) impostos; (ii) taxas; (iii) contribuições de melhoria; (iv)
contribuições; e (v) empréstimos compulsórios, consoante já entendeu o Supremo Tribunal
Federal72 quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 148754/RJ:
As diversas espécies tributárias, determinadas pela hipótese de incidência ou pelo fato gerador da respectiva obrigação (CTN, art. 4º), são as seguintes: a) os impostos (C.F., art. 145, I, 153, 154, 155 e 156); b) as taxas (C.F., art. 145, II); c) as
69 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 155-157. 70 DENARI, op. cit., p. 39. 71 Não se desconhece a discussão doutrinária existente acerca da classificação dos tributos de acordo com a teoria tripartite ou a teoria quinquipartite. Defensor da teoria tripartite, Sacha Calmon Navarro Coelho afirma que os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais teriam nítido caráter de impostos especiais restituíveis ou afetados à alguma finalidade específica. Confira-se: “Os empréstimos compulsórios, tão logo sejam examinados os seus fatos geradores, apresentam-se, invariavelmente, como impostos e, frequentemente, como adicionais de impostos. (...) As contribuições, quando a finalidade não implica uma resposta estatal, pessoal, específica, proporcional, determinada, ao contribuinte, são também impostos, só que afetados a finalidades específicas." (COELHO, op. cit., p. 73). 72 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 148754/RJ. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator p/ acórdão: Ministro Ministro Francisco Resek, 24 de junho de 1993. Brasília: Diário da Justiça, 04 mar. 1994, p. 3290.
31
contribuições, que podem ser assim classificadas: c.1. de melhoria (C.F., art. 145, III); c.2. parafiscais (C.F., art. 149), que são: c.2.1. sociais, c.2.1.1. de seguridade social (C.F., art. 195, I, II, III), c.2.1.2. outras de seguridade social (C.F., art. 195, parág. 4º), c.2.1.3. sociais gerais (o FGTS, o salário-educação, C.F., art. 212, parág. 5º, contribuições para o SESI, SENAI, SENAC,, C.F., art. 240); c.3. especiais: c.3.1. de intervenção no domínio econômico (C.F., art. 149) e c.3.2. corporativas (C.F., art. 149). Constituem, ainda, espécie tributária: d) os empréstimos compulsórios (C.F., art. 148).
Vale salientar que a Constituição não cria tributos, apenas atribui aos entes
federados o poder-faculdade para instituí-los, através de lei emanada por seu próprio Poder
Legislativo. Nesta outorga constitucional, o legislador constituinte repartiu as competências
tributárias entre os entes políticos da Federação adotando os critérios da competência comum,
privativa, residual e extraordinária. Tais competências foram discriminadas de forma
exaustiva pelo legislador constituinte brasileiro. Desta forma, pertinentes os ensinamentos de
Celso Ribeiro de Bastos73:
A Constituição dá a titularidade dos tributos à União, aos Estados e aos Municípios. Ao assim fazê-lo, a Constituição Federal torna cada um desses tributos privativos da pessoa beneficiada, o que significa dizer que o tributo lhe pertence de forma exclusiva. Qualquer outra pessoa que tente instituí-lo será incompetente. Essa competência é de ordem pública, isto é, não pode ser modificada pela vontade das partes; destarte não cria o tributo quem quer, mas quem pode, de acordo com a Constituição Federal.
Dispõe o artigo 145 do Texto Constitucional que:
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: I - impostos; II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
No que diz respeito aos impostos, o legislador constituinte não delimitou o
conteúdo genérico da norma de tributação, tal como o fez em relação às taxas – em razão do
exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos
específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição – e às
contribuições de melhoria – decorrente de obras públicas.
73 BASTOS, Celso Ribeiro de. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 126.
32
A explicação para tal fato, nos ensina a doutrina, está na teoria dos fatos geradores
vinculados e não vinculados74. Os impostos, por serem tributos desvinculados de qualquer
ação estatal em relação ao contribuinte, precisaram ser repartidos entre os entes federados de
forma privativa pelo legislador constituinte, já que a mera delineação genérica do fato gerador
dos impostos não teria o condão de definir qual o ente competente para a sua instituição.
Por esta razão, em relação a estes tributos, o constituinte precisou nominá-los
expressamente no Texto Constitucional, indicando qual o seu fato gerador, signo presuntivo
de riqueza e, consequentemente, revelador da capacidade econômica do contribuinte,
atribuindo a competência privativa a cada ente federado para instituí-lo. Assim o fez nos
artigos 153, 155 e 156 da Carta Magna.
Já no caso das taxas e das contribuições de melhoria, a Constituição delineou
expressamente os fatos jurídicos que poderão ser tributados pelos entes federados, que detém
a competência comum para instituí-los. Vale ressaltar que embora comum, não há que se falar
em conflito de competências entre as esferas de poder para a instituição das taxas e das
contribuições de melhoria.
Isto porque, consoante doutrina de Sacha Calmon75, a competência impositiva está
eminentemente vinculada à competência político-administrativa de cada ente federado, ou
seja, somente pode exigir a taxa, o ente político que detenha a competência político-
administrativa para realizar o ato de polícia (taxas de polícia), para prestar o serviço público
(taxa de serviço) ou que tenha realizado a obra pública que decorra melhoria no imóvel do
contribuinte (contribuição de melhoria).
É por esta razão que autores como Elcio Fonseca Reis76 afirmam que a
competência tributária para instituir as taxas e as contribuições de melhoria é privativa do ente
estatal que exercita a atividade respectiva, e não comum, conforme assevera a maioria da
doutrina de Direito Tributário.
Importante ressaltar, ainda, como de competência privativa da União, a instituição
das contribuições, previstas no artigo 149 do Texto Constitucional, e dos empréstimos
compulsórios, previstos no artigo 148, para atender a despesas extraordinárias decorrentes de
calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência, ou no caso de investimento público
de caráter urgente e de relevante interesse nacional; e também a competência privativa dos
74 Predica a dita teoria que os fatos geradores dos tributos são vinculados ou não-vinculados. O vinculo, no caso, dá-se em relação a uma atuação estatal. Os tributos vinculados a uma atuação estatal são as taxas e as contribuições; os não vinculados são os impostos. (COELHO, op. cit., p. 67). 75 COELHO, op. cit., p. 69. 76 REIS, op. cit., p. 85.
33
Municípios e do Distrito Federal para a instituição das Contribuições para Custeio da
Iluminação Pública, previstas no seu artigo 149-A. Tais competências são exclusivas dos
entes federados aos quais as mesmas foram atribuídas.
Além das competências privativas e comuns, a Constituição outorgou à União as
chamadas competências residuais e as extraordinárias. José Afonso da Silva77 define como
residual aquela consistente no "resíduo que reste após enumerar a competência de todas as
entidades, ou seja, aquela que possa eventualmente surgir apesar da enumeração exaustiva".
Tal competência, a teor do artigo 154, I e 195, §4º da Constituição da República,
foi reservada à União que, mediante Lei Complementar, poderá instaurar outros impostos ou
instituir novas fontes de custeio da Seguridade Social, desde que os mesmos não possuam
bases de cálculo idênticas às discriminadas na Constituição.
Finalmente, também foi outorgada à União a competência extraordinária para, na
iminência ou no caso de guerra externa, instituir impostos extraordinários, compreendidos ou
não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as
causas de sua criação.
Por derradeiro, vale ressaltar que a repartição das competências tributárias ora
postas, em nada prejudica a competência concorrente prevista no artigo 24, inciso I, e tratada
em tópicos anteriores, já que, à ordem central cabe apenas a edição da lei nacional de normas
gerais, cabendo às ordens periféricas a instituição dos tributos, que se limitam às disposições
da lei-moldura, tal como será melhor explicitado no capítulo seguinte.
77 SILVA, José Afonso, op. cit., p. 414.
34
Capítulo 2 – A Lei Complementar na Constituição de 1988. 2.1. Conceito, regime jurídico e posição hierárquica da Lei Complementar. 2.2. Lei Nacional e Lei Federal. 2.3. A Lei Complementar em matéria tributária. 2.3.1. O artigo 146 da CF/88. 2.4. Breve introdução sobre o artigo 146-A, inserido na CF/88 pela EC 42/03
2. A LEI COMPLEMENTAR NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
2.1. CONCEITO, REGIME JURÍDICO E POSIÇÃO HIERÁRQUICA DA LEI
COMPLEMENTAR
O processo legislativo brasileiro tem previsão constitucional no artigo 59 e
seguintes da Carta Magna, compreendendo:
Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções.
Baseado nesta ordenação constitucional, parte da doutrina, equivocadamente,
pretende extrair desta classificação constitucional uma espécie de benefício de ordem entre as
espécies legislativas, razão pela qual colocam as leis complementares em uma categoria
legislativa superior em relação à lei ordinária, já que, na gradação do ordenamento jurídico, as
leis complementares se situam entre a Constituição e as leis ordinárias.
José Afonso da Silva1, ao comentar o artigo 49 da Constituição de 1967, e
tratando das leis complementares, afirma que "vêm elas situadas logo após as emendas
constitucionais, numa colocação que revela sua posição hierárquica entre as regras jurídicas
componentes da ordem jurídica nacional."
Discordamos veementemente deste entendimento, que embora proferido sob a
égide do Texto Constitucional de 1967, ainda faz coro com parte da doutrina que trata da
Carta Constitucional atual. Souto Maior Borges2, em majestoso estudo acerca da lei
complementar tributária, realizado ainda sob a égide do Texto Constitucional de 1967, mas
1 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: RT, 1968, p. 240.
35
com plena aplicabilidade à Constituição hodierna, citando a doutrina de Hans Kelsen, ressalta
com bastante propriedade que uma norma somente pode ser considerada superior a outra
quando esta é fundamento de validade daquela. Afirma o nobre jurista pernambucano:
A relação de hierarquia supõe que uma norma retira a sua validade da conformação com outra norma. Diz-se então que a primeira é uma norma subordinada ou de grau inferior e a segunda, uma norma subordinante, ou de grau superior. A relação entre a norma subordinante e a norma subordinada, cuja criação é regulada pela norma subordinante, é uma relação de hierarquia, consistente num vínculo de supra e subordinação. A norma que determina a criação de outra norma lhe é superior ou supraordenada; a criada na conformidade dela, inferior ou subordinada. Essas normas, portanto, não guardam entre si uma relação de coordenação, mas de subordinação hierárquica.
Por esta razão, a afirmação de que as leis ordinárias são inferiores
hierarquicamente às leis complementares, sob o frágil fundamento de que se encontram
ordenadas abaixo daquelas na classificação constitucional do processo legislativo brasileiro,
não tem qualquer razão de ser.
As leis ordinárias podem sim estar em grau hierárquico inferior às leis
complementares, mas apenas naqueles casos em que estas fundamentem a validade daquelas,
o que no direito positivo brasileiro, somente pode ocorrer em relação ao conteúdo das leis
ordinárias3, ou nas hipóteses em que a lei complementar estabeleça os critérios formais de
criação das leis ordinárias. Na primeira hipótese, temos a superioridade material, enquanto na
última, fala-se em superioridade formal.
Neste sentido é o entendimento de Andrei Pitten Velloso4:
Em outros termos, somente há uma hierarquia normativa entre a lei complementar e a lei ordinária quando se verifica um escalonamento normativo, através da imposição constitucional à lei complementar da tarefa de estabelecer parâmetros formais ou materiais para a regulação veiculada pela lei ordinária.
O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Humberto Ávila5, na
célebre obra Sistema Constitucional Tributário, também vê como apenas duas as
possibilidades de superioridade hierárquica da lei complementar sobre a lei ordinária: numa
2 BORGES, José Souto Maior. Lei Complementar Tributária. São Paulo: RT, 1975, p. 15. 3 Souto Maior Borges, citando o jurista argentino Roberto José Vernengo (Temas de teoría general Del derecho. Buenos Aires: Cooperadora de Ciencias Sociales, 1971, p. 343), afirma que somente se pode denominar fundamento de validade de uma norma à norma reguladora de sua criação. Trazendo o conceito ao caso do direito brasileiro, ensina o festejado autor: “Colocada a questão nesses termos, resta indagar se a lei complementar, consoante pretende a doutrina, funciona sempre como fundamento de validade das leis ordinárias (e eventualmente de outros atos legislativos) federais, estaduais e municipais. Para tanto, como se viu, é essencial que a lei complementar determine, em qualquer hipótese, a) o processo de criação da lei ordinária (o que jamais ocorre no direito brasileiro); b) apenas o órgão competente para a legislação ordinária (o que igualmente não sucede na sistemática constitucional); ou finalmente e em certa medida, c) o conteúdo da lei ordinária e de outros atos normativos, única alternativa aplicável às leis complementares previstas na Constituição. (...) Essa análise revelará dois grupos básicos de leis complementares: 1º) leis complementares que fundamentam a validade de atos normativos (leis ordinárias, decretos legislativos, convênios); e 2º) leis complementares que não fundamentam a validade de outros atos normativos. Não parece viável, fora dessa perspectiva, uma classificação das leis complementares”. (BORGES, op. cit., p. 82-83). 4 VELLOSO, Andrei Pitten. Constituição Tributária Interpretada. São Paulo: Atlas, 2007, p. 55.
36
relação de hierarquia formal-procedimental, na hipótese de a lei complementar regular o
modo de elaboração, redação, modificação e consolidação das leis ordinárias (art. 59,
parágrafo único, da CR/88), e numa relação de hierarquia material-conteudística, no caso de a
lei complementar estabelecer normas gerais predeterminadoras do conteúdo das leis
ordinárias instituidoras dos tributos.
Exemplo constitucional típico da superioridade material hierárquica da lei
complementar em relação à lei tributária, e que será objeto de estudo no item 2.3 abaixo, é o
caso da lei complementar instituidora de normas gerais em matéria de legislação tributária, já
que são inegáveis as suas funções de padronização, harmonização e uniformização6, que
devem ser observadas pelas demais normas tributárias integrantes do sistema.
Feita esta breve introdução, cumpre estabelecer o conceito de lei complementar,
que pode ser dado sob os aspectos material, também convencionado de amplo, ontológico ou
doutrinário, e formal ou restrito, conhecido, ainda, como jurídico-positivo, segundo a doutrina
de Souto Maior Borges. Para o mestre recifense7, no sentido amplo, lei complementar é toda
aquela que “complementa” a Constituição, independente de qualquer consideração formal ou
de caráter procedimental, como é a do quorum especial ou qualificado para a sua aprovação.
Trata-se, nos precisos dizeres de José Afonso da Silva8, das leis que completam a
Constituição, tornando plenamente eficazes os seus dispositivos ou desenvolvendo os seus
princípios, ou, conforme magistério de Sacha Calmon9, a que tem por objetivo (conteúdo) a
complementação da Constituição, quer ajuntando-lhe normatividade, quer operacionalizando-
lhe os comandos, daí se reconhecer que existem leis complementares normativas e leis
complementares de atuação constitucional.
Importante salientar que o próprio Texto Constitucional é quem define quais as
matérias que necessitam de complementação pelo legislador infraconstitucional, tal como,
exemplificativamente em matéria tributária, ocorre nos artigos art. 24, §1º, 146, 148, 150, VI,
c, dentre outras hipóteses.
Já sob o aspecto jurídico-positivo, pois oriundo do texto positivado no artigo 69
da Constituição da República/88, conceitua-se lei complementar como aquela decorrente da
aprovação pela maioria absoluta das duas casas do Congresso Nacional, observados os demais
procedimentos necessários à aprovação das leis ordinárias.
5 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 135. 6 REIS, Elcio Fonseca. As normas gerais de direito tributário e a inconstitucionalidade do prazo de decadência e prescrição fixados pela Lei 8.212/91. In: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 63, p. 43, dezembro, 2000. 7 BORGES, op. cit., p. 30-31. 8 SILVA, op. cit., p. 218. 9 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 81.
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Vê-se, pois, que a validade10 da lei complementar está condicionada aos requisitos
constitucionais de direito material (matéria expressa ou implicitamente prevista no Texto
Constitucional) e procedimental (quorum qualificado), ou, nos dizeres de Souto Maior
Borges, citando Pontes de Miranda11, a lei complementar tem limites de fundo, já que não
podem regular senão as matérias delimitadas prévia e exaustivamente pela Constituição, e
limites de forma, já que a Constituição vincula o Congresso Nacional à observância do
quorum qualificado previsto no art. 69 da atual Constituição.
Daí porque uma lei complementar, embora elaborada em respeito ao quorum
qualificado do artigo 69, mas que trate de matéria ordinária, isto é, não prevista no Texto
Constitucional como exclusiva de lei complementar, será formalmente complementar, mas
materialmente ordinária e, para tanto, passível de revogação por outra lei ordinária, consoante
já entendeu o Supremo Tribunal Federal12 13 14.
Da mesma forma, uma lei que trate de matéria exclusiva de lei complementar, mas
que não respeite o quorum especial de elaboração do processo legislativa estará eivada pelo
vício da inconstitucionalidade formal.
Por esta razão, pode-se afirmar que a lei complementar pode ser identificada na
Constituição de 1988 pelo seu regime jurídico formal, eis que deve respeito a processo
10 Dissertando acerca do conceito de validade da norma jurídica, diferenciando-o dos conceitos também relevantes de vigência, eficácia e recepção das normas jurídicas, o professor Elcio Fonseca Reis muito bem sintetiza que: “a) A validade ou não da norma jurídica pode ser inferida quando ela se integra no ordenamento jurídico observando os processos de criação estabelecidos pela Constituição brasileira, ou seja, quando ocorre a observância das normas de competência tanto formais quanto materiais. Mas não basta, como vimos, a subsunção às normas de competência; é imprescindível que a matéria a ser veiculada pelo instrumento normativo que se quer verificar tenha o seu conteúdo em conformidade com o da norma que lhe é superior. b) Vigência pode ser definida como uma qualidade da norma que diz respeito ao tempo em que, válida ou não, mostra-se apta a produzir efeitos, apta a incidir. c) Eficácia diz respeito à produção de efeitos, à capacidade de a norma modificar, alterando, criando ou extinguindo, uma situação jurídica. d) Recepção é o fenômeno pelo qual a legislação infraconstitucional permanece válida e eficaz no ordenamento jurídico, encontrando fundamento de validade na Constituição nova, desde que não seja com ela incompatível e não tenha sido expressamente revogada. (REIS, Elcio Fonseca. Federalismo Fiscal: Competência concorrente e normas gerais de direito tributário. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 103). 11 BORGES, op. cit., p. 54-55. 12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Constitucionalidade nº 1/DF. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Moreira Alves, 01 de dezembro de 1993. Brasília: Diário da Justiça, 16 jun. 1995, p. 10. 13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 336134/RS. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Ilmar Galvão, 20 de novembro de 2002. Brasília: Diário da Justiça, 16 mai. 2003, p. 93. 14 Em que pese posições doutrinárias minoritárias, como a de Hugo de Brito Machado, para quem, se a matéria foi disciplinada por lei complementar, mesmo sem a expressa autorização constitucional, aquela não poderá ser alterada, salvo por outra lei complementar. Confira-se: “(...) a rigor, não há na vigente Constituição qualquer norma, ou princípios, que expressa ou implicitamente autorize a conclusão de que a lei complementar somente pode cuidar de matérias a estas reservadas pela Constituição. Existem, é certo, dispositivos que tornam determinadas matérias privativas de lei complementar, o que é coisa rigorosamente diversa. A existência de um campo de reserva de lei complementar, todavia, não quer dizer que não possa a lei complementar cuidar de outras matérias. Pode, sim, e deve, o legislador adotar a forma de lei complementar para cuidar não apenas das matérias a este entregues, em caráter privativo, pelo constituinte, mas também de outras, às quais deseja imprimir maior estabilidade, ao colocá-las fora do alcance de maiorias ocasionais, ou até dos denominados acordos de lideranças”. (MACHADO, Hugo de Brito. Posição hierárquica da lei complementar. In: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 14, p. 19, novembro, 1996).
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legislativo superior ao da elaboração das leis ordinárias, bem como pelo seu regime jurídico
material, já que as matérias objeto de sua regulamentação foram especificamente previstas
pelo constituinte.
Estes devem, portanto, ser os critérios diferenciadores entre as leis
complementares e as leis ordinárias, sendo, pois, irrelevante a localização na gradação
legislativa prevista no artigo 59 do Texto Constitucional.
2.2. LEI NACIONAL E LEI FEDERAL
Outro aspecto que deve ser levado em consideração é a diferenciação doutrinária
existente entre as leis ditas de caráter nacional e as leis federais. A definição dos conceitos de
cada uma delas se mostra de fundamental importância para melhor compreender o campo de
atuação da lei complementar em matéria tributária.
Segundo nos ensina Hans Kelsen15, os enunciados normativos possuem
componentes internos que dão validade à norma jurídica. O mestre de Viena aponta como
quatro os âmbitos de validade da norma: a) material, correspondendo ao que pode ser feito, na
conformidade da norma, pelos seus destinatários; b) pessoal, que é constituído pelos
destinatários da norma; c) espacial ou territorial, relativo ao espaço em que uma norma tem
validade e, finalmente, o d) temporal, atinente ao lapso de tempo em que a norma pode
aplicar-se.
Sacha Calmon16 dissertando sobre o tema explica com maestria:
A lei, toda lei, necessariamente exige um emissor, uma mensagem e um receptor (ou destinatário), por que a missão maior da lei consiste em planificar comportamentos humanos e sociais. Todavia, não basta dizer isto. As leis possuem âmbitos de validade e são quatro: o material, o pessoal, o espacial e o temporal: A) o âmbito de validade material diz respeito ao seu conteúdo, ou seja, diz respeito à norma que ela encerra. A lei é continente, a norma é conteúdo. Cada norma tem um conteúdo material preciso e, pois, limitado. Daí as classificações de normas pelo objeto: competenciais, organizatórias, técnicas ou processuais, de dever, sancionatórias, etc; B) o âmbito de validade pessoal diz respeito aos destinatários da norma, ou seja, às classes de pessoas a quem se dirige a lei, com exclusão de todas as demais classes; C) o âmbito de validade espacial encerra o espaço político onde a lei tem vigência e eficácia, onde produz efeitos, daí as noções de territorialidade e extraterritorialidade das leis; D) o âmbito de validade temporal liga-se ao tempo de aplicação da lei, daí as questões de Direito intertemporal.
15 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 59-60. 16 COELHO, op. cit., p. 82.
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Tratando do critério espacial de validade da norma jurídica, Kelsen divide a
ordem jurídica entre as normas válidas para todo o território do Estado, a que ele denomina de
ordem jurídica total ou nacional, e as aplicáveis apenas para diferentes partes do território do
Estado, denominada de ordem jurídica parcial ou local. Esta é composta pela ordem jurídica
central e pelas ordens jurídicas locais que, somadas, formam a ordem jurídica total ou
nacional.
Neste ponto, curial trazer à baila o magistério de Souto Maior Borges17:
As normas válidas para uma parte do território total constituem uma ordem jurídica parcial ou local. Representam uma comunidade jurídica parcial ou local. As normas centrais da ordem jurídica total ou nacional formam também uma ordem jurídica parcial. Constituem uma comunidade jurídica parcial (a comunidade jurídica central). A ordem jurídica central (comunidade jurídica central), junto com as ordens jurídicas locais (comunidades jurídicas parciais), forma a ordem jurídica total ou nacional, constituindo o Estado ou comunidade jurídica total. Tanto a comunidade central, quanto as comunidades locais, são membros da comunidade nacional.
Nesta linha de pensamento, as normas emanadas pela União (ordem central) e
pelos Estados, Distrito Federal e Municípios (ordens parciais) têm aplicabilidade apenas ao
âmbito territorial de cada um dos entes federados. Fala-se, portanto, em leis federais,
estaduais, distritais ou municipais.
Todavia, uma norma emanada pela União pode alcançar não somente os
jurisdicionados da União, mas também, indistintamente, todos os súditos do Estado Federal,
nos precisos dizeres de Geraldo Ataliba18, abrangendo não só os administrados, mas
precipuamente o legislador federal e os estaduais, distritais e municipais, sendo verdadeira Lei
da Federação. Neste sentido, os precisos ensinamentos de Elcio Fonseca Reis19:
As normas jurídicas emanadas pela União, pelos Estados-Membros, pelo Distrito Federal e pelos Municípios pertencem à ordem jurídica parcial, pois somente se destinam a uma determinada parcela dos administrados, na sua área territorial e no seu âmbito de competência. Já as normas jurídicas emanadas pelo Estado Federal são tidas como totais, pertencendo não à União, mas sim a todo o Estado Federativo, obrigando todos os administrados e não somente uns poucos, precipuamente os legisladores estaduais, distritais, municipais e federal.
Note-se que ambas as leis, a federal e a nacional, são emanadas pelo mesmo órgão
legislativo da União, o Congresso Nacional, encerrando o mesmo espaço político de vigência
e eficácia, ou seja, o território nacional. O critério diferenciador, pois, não está no aspecto
espacial de validade da norma, mas sim no aspecto pessoal, que atine justamente aos
destinatários da norma.
17 BORGES, op. cit., p. 64. 18 ATALIBA, Geraldo. Normas gerais de direito financeiro e tributário e autonomia dos Estados e municípios. In: Revista de Direito Público, v. 10, p. 49, outubro-dezembro, 1969. 19 REIS, 2000, p. 119.
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Souto Maior Borges20 inclui, ainda, como critério diferenciador entre a lei federal
e a lei nacional, o aspecto material, que é projetado na lei nacional, também no âmbito dos
Estados e dos Municípios e não somente da União. Leciona o mestre:
Finalmente, no tocante ao âmbito material de validade, a projeção da matéria regulada até aos Estados e ou Municípios dá a conotação básica da lei nacional. A lei nacional colhe em conjunto ou separadamente essas pessoas constitucionais. A matéria regulada na lei nacional é aplicável pela União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, ao contrário do que sucede com as leis simplesmente federais que se limitam, consoante exposto, a vincular os jurisdicionados e administrados da União.
Insta ressaltar que a denominação de lei nacional ou federal em nada se confunde
com os conceitos de leis ordinárias ou complementares. Uma lei complementar pode ou não
ter caráter nacional, da mesma forma que a lei ordinária. O que a definirá como nacional ou
federal é, frise-se novamente, o conteúdo, mas principalmente, o destinatário da norma
inserida na lei (ordinária ou complementar).
O ordenamento jurídico brasileiro aponta diversos exemplos de leis ordinárias e
complementares, ora com o caráter nacional, ora simplesmente federal. Exemplificativamente,
tem-se a lei ordinária nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que instituiu as normas para licitações
e contratos da Administração Pública, e tem claro conteúdo nacional, tendo como
destinatários não somente os jurisdicionados da União, mas também as ordens jurídicas
parciais dos Estados, Distrito Federal e Municípios.
De outra senda, a Lei Complementar nº 110, de 29 de junho de 2001, que instituiu
a contribuição social devida pelos empregadores em caso de despedida de empregado sem
justa causa, à alíquota de dez por cento sobre o montante de todos os depósitos devidos,
referentes ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, durante a vigência do contrato
de trabalho, acrescido das remunerações aplicáveis às contas vinculadas se mostra
simplesmente federal, eis que não se destina aos legisladores estaduais, distritais e municipais,
mas apenas aos empregadores, jurisdicionados da União.
Daí por que não concordamos com o entendimento de Ávila21, no sentido de que
pelo simples fato de ser classificada como lei complementar, a mesma teria o caráter nacional,
abrangendo as três ordens jurídicas parciais. Confira-se o entendimento do mestre gaúcho:
As leis federais e as leis complementares possuem a mesma eficácia territorial. Ambas são editadas pelo Congresso Nacional, especialmente porque este se ocupa tanto de questões federais quanto de questões de interesse nacional. Elas, porém, não se identificam: a lei federal aplica-se a órgãos submetidos à União federal, e as leis complementares, enquanto leis nacionais, aplicam-se às três ordens jurídicas parciais da União Federal, dos Estados e dos Municípios.
20 BORGES, op. cit., p. 68. 21 ÁVILA, op. cit., p. 135.
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Ressalte-se que, especificamente em matéria tributária, o legislador constituinte
definiu, no artigo 24, §1º e artigo 146, III, do Texto Constitucional, que as normas gerais em
relação à matéria serão sempre veiculadas através de lei complementar que, indubitavelmente,
terão conteúdo nacional.
Passemos, pois, a traçar as funções da lei complementar em matéria tributária.
2.3. A LEI COMPLEMENTAR EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
Consoante muito bem exposto por Sacha Calmon22, a lei complementar é usada,
em matéria tributária, para fins de complementação e atuação constitucional, estando a
serviço da Constituição e não da União Federal. Percebe-se, pois, ser a lei complementar
tributária sempre de caráter nacional.
Continua o festejado jurista apontando como quatro os papéis da lei complementar
em matéria tributária, sendo três deles apontados como sendo genéricos e um tópico, porém,
todos eles expressamente definidos pelo legislador constituinte:
Em matéria tributária, a Constituição de 1988 assinala para a lei complementar os seguintes papéis: I – emitir normas gerais de Direito Tributário; II – dirimir conflitos de competência; III – regular limitações ao poder de tributar; IV – fazer atuar certos ditames constitucionais. Os três primeiros são genéricos. O quarto é tópico. Caso por caso, a Constituição determina a utilização da lei complementar. Podemos dizer, noutras palavras, que a utilização da lei complementar não é decidida pelo Poder Legislativo. Ao contrário, a sua utilização é predeterminada pela Constituição. As matérias sob reserva de lei complementar são aquelas previstas pelo constituinte (âmbito de validade material, predeterminado constitucionalmente).
Embora atualmente na doutrina constitucional-tributário brasileira ainda persistam
discussões acerca das funções da lei complementar, divergindo os doutrinadores entre os
adeptos da corrente dicotômica, originalmente defendida por Geraldo Ataliba23, e a corrente
22 COELHO, op. cit., p. 84. 23 Para os defensores da corrente dicotômica, a lei complementar em matéria tributária sempre terá o caráter de norma geral, e esta terá dúplice conteúdo, ou solverá conflitos de competência, ou regulará limitações ao poder de tributar. Geraldo Ataliba, ainda sob a égide da Constituição Federal de 1967, ensinava que: “Da contemplação do nosso sistema constitucional tributário e meditação sobre seus princípios informadores se vê, raciocinando-se por exclusão, que outra função não podem ter as normas gerais senão completar a Constituição onde e quando seja previsível – ou efetivamente venha a ocorrer – conflito entre as pessoas tributantes. Seria, com efeito altamente ilógico e absurdo que a Constituição tivesse conferido autonomia aos Estados e Municípios, tributos privativos e competência ampla para instituí-los e regulá-los e, ao mesmo tempo, conferisse ao Congresso poderes para limitar arbitrariamente aquelas faculdades e competências. Logo, só é coerente entender como próprio da norma geral a complementação da Constituição em que a atuação do mecanismo de harmonia entre as pessoas políticas o exija peremptoriamente. São, pois, exclusivamente as áreas de conflitos, desde que haja evidente lacuna no texto constitucional. De outra forma não é possível colocar o problema. (...). Jamais seria admissível norma geral restringindo ou peiando o princípio democrático, ou o federal, ou o da autonomia municipal, ou o da independência e
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tricotômica, cujo principal expoente foi o professor Ives Gandra Martins24, entendemos como
o professor Sacha25, para quem, além das funções de emitir normas gerais – objeto de
discussão entre a corrente dicotômica e a tricotômica –, dirimir conflitos de competência e
regular as limitações ao poder de tributar, a lei complementar tem a função de atuar sempre
que o legislador constituinte assim o determine, quer atuando diretamente ou
complementando dispositivos constitucionais de eficácia contida26 (balizando-lhes o alcance),
ou, ainda, integrando dispositivos constitucionais de eficácia limitada27 (conferindo-lhes
normatividade plena).
O importante é que, consoante muito bem afirma Elcio Fonseca Reis28, é que o
legislador complementar tenha como limite de atuação a própria Constituição da República.
Ela não pode inovar o Texto Constitucional. Somente pode complementar de forma a
esclarecer, tornar clara a intenção do constituinte. É, pois, norma de integração do Texto
harmonia dos poderes ou qualquer dos demais princípios e categorias do sistema. No caso da mais leve dúvida o intérprete não pode hesitar: optará por curvar-se a estes, rejeitando a norma geral. (...) Assim, é afastada de plano a possibilidade de as normas gerais tratarem de problemas tais como ordenação de relação jurídico tributária, sujeição ativa e passiva, prazos referentes a prescrição e decadência, ato administrativo do lançamento e sua disciplina jurídica, condições para criação da obrigação tributária, forma de extinção do débito, etc. Ressalvada a possibilidade de tais normas terem quanto às matérias supra-enumeradas, caráter supletivo, o que seria perfeitamente lícito”. (ATALIBA, Geraldo, op. cit., p. 47-71). Atualmente, a questão do “caráter supletivo” das normas gerais tributárias quanto às matérias elencadas por Ataliba já se encontra superada pelos Tribunais pátrios. Caso paradigmático foi a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, decidindo pela inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei Ordinária Federal nº 8.212/91, que majoravam o prazo decadencial para lançamento das contribuições previdenciárias para dez anos, suplantando o lapso qüinqüenal previsto no Código Tributário Nacional, lei de normas gerais em matéria tributária. A Suprema Corte, corretamente, entendeu pela validade do CTN, justamente pelo seu caráter de normas gerais em matéria tributária. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 559943/DF. Tribunal Pleno. Relatora: Ministra Cármen Lúcia, 12 de junho de 2008. Brasília: Diário da Justiça, 25 set. 2008, p. 2169). 24 Já os adeptos da corrente tricotômica atribuem à lei complementar uma tripla função: a) editar norma geral em matéria tributária; b) dispor sobre conflitos de competência tributária; e) regular as limitações ao poder de tributar. Ensina Ives Gandra: “O atual constituinte, sensível ao problema, decidiu dar maior relevância à lei complementar, não só dela tratando no artigo imediatamente posterior à enunciação das principais espécies tributárias e da capacidade contributiva, como, por outro lado, explicitando – para eliminar dúvidas levantadas no passado – suas 3 funções de forma exemplificativa, enumerou os aspectos que, necessariamente, só poderiam surgir, no direito tributário, por lei complementar. Entre tais aspectos está o da definição dos tributos, assim como, no concernente aos impostos, de sua base de cálculo, fato gerador e contribuinte”. (MARTINS, Ives Gandra. Lei complementar tributária. In: Caderno de Pesquisas Tributárias. São Paulo, v. 15, 1989, p. 49-109). 25 COELHO, op. cit., p. 86. 26 Segundo ensina José Afonso da Silva, "normas de eficácia contida são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva da competência discricionária do poder público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nela enunciados." São normas de aplicabilidade imediata e direta, tendo eficácia independente da interferência do legislador ordinário. Sua aplicabilidade não fica condicionada a uma normação ulterior, mas fica dependente dos limites (daí: eficácia contida) que ulteriormente lhe estabeleçam mediante lei, ou de que as circunstancias restritivas, constitucionalmente admitidas, ocorram. (SILVA, op. cit., p. 108). 27 Também chamadas de normas constitucionais de princípio institutivo, por José Afonso da Silva, as normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas normas constitucionais de aplicabilidade mediata ou indireta, porque dependentes de legislação. O festejado jurista já conceituava, de longa data, esta espécie de norma constitucional como sendo "aquelas através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei." O mestre as subdivide em (i) normas de eficácia limitada impositiva, que são aquelas que determinam, ao legislador, em termos peremptórios, a emissão de uma legislação integrativa; e (ii) normas de eficácia limitada facultativa, que não impõem uma obrigação ao legislador ordinário, limitando-se a dar ao legislador ordinário a possibilidade de instituir a situação nelas delineada. (SILVA, op. cit., p. 119-120). 28 REIS, 2000, p. 126.
43
Constitucional, não podendo, na esfera tributária, restringir a competência outorgada aos entes
políticos.
Passemos agora, exemplificativamente, a definir as principais atuações da lei
complementar em matéria tributária, inclusive, o papel, objeto de fundo do presente trabalho,
atribuído à mesma, qual seja, a possibilidade de utilização de regimes especiais de tributação
para restabelecer o equilíbrio concorrencial, novidade trazida pelo legislador constituinte
derivado, a partir da publicação Emenda Constitucional 42/2003.
2.3.1. O ARTIGO 146 DA CF/88
Dispõe o artigo 146 do Texto Constitucional:
Art. 146. Cabe à lei complementar: I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas. d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003).
O primeiro papel, em matéria tributária, atribuído ao legislador complementar
pela Constituição foi o de dirimir conflitos de competência entre os entes federados.
Embora essa função constitucional possa parecer um pouco estranha, dada a rígida
repartição das competências tributárias entre os entes federados feita pelo legislador
constituinte, tal como já salientado no capítulo anterior, esta importante função está
relacionada ao controle e a proteção do sistema constitucional de repartição de competências
tributárias.
Visa prevenir a invasão de competência de um ente federativo sobre a
competência tributária de outro, em virtude da insuficiência intelectiva dos relatos
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constitucionais pelas pessoas políticas destinatárias das regras de competência tributária,
outorgadas pelo legislador constitucional, nos precisos dizeres de Sacha Calmon29, e não
dirimir suposta dubiedade nos ditames constitucionais. Afirma o notável jurista:
Dá-se, porém, que não são propriamente conflitos de competência que podem ocorrer, mas invasões de competência em razão da insuficiência intelectiva dos relatos constitucionais pelas pessoas políticas destinatárias das regras de competência relativamente aos fatos geradores de seus tributos, notadamente impostos. É dizer, dada pessoa política mal entende o relato constitucional e passa a exercer a tributação de maneira mais ampla que a prevista na Constituição, ocasionando fricções, atritos, em áreas reservadas a outras pessoas políticas.
Consoante salientado por Fábio Canazaro30, essa espécie de lei complementar
sofreu inicialmente certa resistência por parte da doutrina, principalmente por parte de
Geraldo Ataliba31, que afirmava não ser possível a existência de conflitos e, caso existentes,
deveriam ser resolvidos na esfera judicial.
Refutando o entendimento de Ataliba, a conclusão de Canazaro é precisa, no
sentido de que a questão deve ser analisada no plano da interpretação da norma, e não apenas
no plano da elaboração da lei. Afirma Canazaro:
Certo estaria ele, e desnecessária obviamente seria a lei complementar, quando algum dos poderes legislativos parciais – União, Estado, Distrito Federal e Municípios – viesse a editar lei que invadisse a competência de outra pessoa política. Nesse caso, evidentemente que a lei seria inconstitucional, justificando sua incisiva posição. Entretanto, a vontade do constituinte foi um pouco mais além, dirigindo-se para os casos implícitos, ou seja, para os casos em que a possibilidade de interpretação da norma constitucional não fosse totalmente uniforme, o que pode ser denominado de conflito de interpretação, quando submetida aos poderes legislativos parciais.
De fato, em alguns tributos, principalmente impostos, a interpretação da norma
constitucional pelos legisladores parciais pode nem sempre ocorrer de forma uniforme,
surgindo o conflito. Vê-se, pois, duas as possibilidades da ocorrência de conflitos de
competência em matéria tributária: insuficiência legislativa, tal como afirmado por Sacha
Calmon, ou conflito de interpretação implícita na Constituição, em virtude de determinada
situação peculiar atinente aos tributos, como muito bem ressaltou Canazaro.
Acerca da questão, Elcio Fonseca Reis32 é esclarecedor ao afirmar:
Em que pese a repartição de competência tributária posta na Constituição, de fato, há alguns impostos que, por características peculiares, podem causar dúvidas ao legislador infraconstitucional a respeito do titular da competência para tributar determinada atividade ou situação em que se encontre o contribuinte. De outro lado,
29 COELHO, op. cit., p. 88. 30 CANAZARO, Fábio. Lei Complementar Tributária na Constituição de 1988: Normas gerais em matéria de legislação tributária e a autonomia federativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 61. 31 ATALIBA, Geraldo. Lei complementar em matéria tributária. In: Conferências e debates - Revista de Direito Tributário, nº 48, p. 90. 32 REIS, 2000, p. 127.
45
pode surgir conflito em virtude de despreparo ou dificuldade de interpretação do Texto Constitucional por parte dos legisladores.
A lei complementar atua, nestes casos, como eficaz instrumento para se evitar que
o contribuinte sujeite-se duplamente a tributos exigidos por dois entes federados, sob o
mesmo fato gerador, ou se veja obrigado a recolher tributo para pessoa política que não seja a
titular da competência impositiva outorgada pelo legislador constituinte.
Cumpre ressaltar novamente que, ao legislador complementar, no desempenho de
quaisquer das funções outorgadas pelo constituinte, é vedado modificar, inovar ou alterar a
repartição de competências tributárias instituídas constitucionalmente, cabendo a ele apenas
resguardar e viabilizar a correta leitura do diploma fundamental, evitando abusos por parte
dos legisladores ordinários, e resguardando o direito do contribuinte de somente ser obrigado
a levar dinheiro aos cofres públicos em decorrência da prática de fato descrito em norma
jurídica tributária decretada validamente, consoante os precisos entendimentos de Elcio
Fonseca Reis33.
Vale ressaltar, por fim, que mesmo atuando diretamente da prevenção dos
eventuais conflitos de competência em matéria tributária, através das edições das leis
complementares definidoras das regras delineadoras dos tributos constantes do Texto
Constitucional, não raras vezes, os legisladores ordinários de determinada ordem parcial
invadem deliberadamente o campo de atuação constitucionalmente outorgado a outro ente
federado.
Exemplos no meandro tributário são diversos. Trazemos à baila a hipótese do
conflito de competência existente entre alguns Estados-Membros e os Municípios no que
tange à sujeição ativa para exigência do imposto sobre a atividade de beneficiamento. Mesmo
com a existência de Lei Complementar atinente ao Imposto sobre Operações atinentes à
Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação – ICMS34, e de Lei Complementar relativa ao Imposto
Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN35, os conflitos persistem.
Embora a atividade de beneficiamento esteja expressamente prevista no item
14.05 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/03, o que, a teor do artigo 1º, da mencionada
33 REIS, 2000, p. 127. 34 BRASIL. Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/LCP/Lcp87.htm>. Acesso em 07/05/2011. 35 BRASIL. Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/LCP/Lcp116.htm>. Acesso em 07/05/2011.
46
lei36 garante a sujeição ativa do tributo aos Municípios, diversos Estados-Membros, tal como
o Estado de Minas Gerais, sujeitam as atividades de industrialização, em que uma das
modalidades é justamente o beneficiamento37, ao imposto estadual, restando instaurado o
conflito.
Obviamente, a solução de controvérsias como a ora posta foge ao escopo do
legislador complementar, sendo o Poder Judiciário o único competente para dirimir conflitos
intersubjetivos de interesses, sendo o único a quem cabe o papel final de interpretação das
leis.
A segunda função da lei complementar em matéria tributária é regular as
limitações ao poder de tributar. Para Humberto Ávila38, as limitações ao poder de tributar são
uma das espécies das várias limitações estabelecidas ao ente estatal por meio de regras de
competência, de princípios, de garantias e de direitos fundamentais.
A necessidade da função reguladora ao poder de tributar atribuída à lei
complementar é bastante controvertida na doutrina nacional. Diversos doutrinadores vêem
como inócua a função de regular as limitações ao poder de tributar, posto que tais
limitações, que se encontram tipificadas diretamente no Texto Constitucional, já seriam auto-
aplicáveis e, portanto, qualquer tipo de regulamentação seria desnecessário. Confira-se:
A lei complementar na espécie de regulação das limitações ao poder de tributar é quase sempre instrumento de complementação de dispositivos constitucionais de eficácia limitada ou contida. Quando a limitação é auto-aplicável, está vedada a emissão de lei complementar. Para quê?39
Ataliba40, elencando as limitações ao poder de tributar como preceitos restritivos
e, portanto, proibitivos ou negativos, também entende como desnecessária esta função da lei
complementar:
Delicada é – como se salientou – a tarefa do Congresso ao editar as leis complementares das limitações que a Constituição estabeleceu às competências tributárias. É que a maioria destas limitações é constituída de normas proibitivas, formuladas em têrmos categóricos e peremptórios, não dando ensejo a qualquer complementação. Nestes casos, nada fica a ser completado. Corre o risco a lei complementar de ser ociosa ou redundante por dever limitar-se a reproduzir o texto constitucional – o que é tecnicamente errado – ou de introduzir alterações vedadas,
36 14.05 – Restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos quaisquer. 37 BRASIL. Decreto nº 7.212, de 15 de junho de 2010. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7212.htm>. Acesso em 07/05/2011. "Art. 4º Caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como (Lei nº 5.172, de 1966, art. 46, parágrafo único, e Lei nº 4.502, de 1964, art. 3º, parágrafo único): (...) II - a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto (beneficiamento); (...)". 38 ÁVILA, op. cit., p. 71. 39 COELHO, op. cit., p. 92-93. 40 ATALIBA, op. cit., p. 69.
47
quer ampliando, quer restringindo a proibição, o que importaria ferir o texto que exatamente se pretende tornar mais claro e mais facilmente exequível.
E complementa Canazaro41:
Em que pesem tais divergências interpretativas, a posição mais adequada é a de não reconhecer como objeto material da lei complementar a regulação das regras da legalidade, da isonomia no tratamento entre contribuintes em situação equivalente, da irretroatividade, da anterioridade, da vedação ao confisco e das limitações ao tráfego de pessoas ou bens, até porque as referidas limitações são consideradas verdadeiros direitos dos contribuintes, sendo, por isso, normas de eficácia plena, cuja desnecessidade de regulação é incontestável. À vista disso, de irrelevante utilidade perante o sistema mostra-se a previsão do inciso II do art. 146 da CF/88.
Não corroboramos com os entendimentos doutrinários que vêem como
desnecessária a função atribuída à lei complementar pelo artigo 146, inciso II, da Carta
Magna. Existem situações no Texto Constitucional em que a regra limitadora do poder de
tributar não tem aplicabilidade direta e depende de regulamentação por parte do legislador
infraconstitucional. Nesses casos, cabe ao legislador complementar essa regulamentação.
É o caso, por exemplo, da imunidade constitucional das instituições de educação e
de assistência social, sem fins lucrativos, prevista no artigo 150, inciso VI, alínea c, da
Constituição Federal42, que é típica limitação constitucional negativa ao poder de tributar43,
mas que depende de regulamentação pelo legislador infraconstitucional, consoante
entendimento de Humberto Ávila44:
Como já mencionado, existem algumas limitações ao poder de tributar cuja aplicação depende da edição de lei complementar. O gozo da imunidade das instituições de educação e assistência social depende das condições estabelecidas em lei (art. 150, VI, “c”). A lei exigida é a lei complementar.
Neste sentido foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal, quando do
julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.802/DF, em
preciso voto proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence. Confira-se trecho do voto condutor
do acórdão:
41 CANAZARO, op. cit., p. 65. 42 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>. Acesso em 07/05/2011. "Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) VI - instituir impostos sobre: (...) c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; (...)." 43 Filiamos à corrente defendida pelo professor Humberto Ávila, que afirma que: “Essas (sempre pela Constituição estabelecidas) imunidades possuem uma eficácia jurídica semelhante àquela dos princípios, apenas na medida em que também limitam o poder de tributar. O conteúdo normativo do poder de tributar é resultado de uma metafórica “subtração” do âmbito material das regras de competência pelas regras de imunidade. Em virtude dessas considerações, pode-se dizer que as 'limitações' são normas que dizem respeito à competência para tributar em sentido amplo. As regras de imunidade são examinadas em uma parte específica, especialmente porque a Constituição Brasileira classificou-as de 'limitações ao poder de tributar' (ÁVILA, op. cit., p. 80-81). Em sentido contrário, consultar CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 166 ss. 44 ÁVILA, op. cit., p. 141.
48
Em síntese, o precedente reduz a reserva de lei complementar da regra constitucional ao que diga respeito “aos lindes da imunidade”, à demarcação do objeto material da vedação constitucional de tributar – o patrimônio, a renda e os serviços das instituições por ela beneficiados, o que inclui, por força do §3º, do mesmo art. 150, CF, a sua relação com “as finalidades essenciais das entidades nele mencionadas”.
A terceira função da lei complementar em matéria tributária e, certamente,
também com a maior importância, é o estabelecimento das normas gerais em matéria de
tributação. O Código Tributário Nacional é, hodiernamente, o principal veículo instituidor das
normas gerais em matéria tributária na legislação brasileira45.
Tal função também se afigura como núcleo da discussão entre os adeptos das
teorias dicotômica e tricotômica. Ela – estabelecimento de normas gerais – de longa data
alcança grande polêmica doutrinária, não tendo a doutrina pátria se entendido no que tange à
conceituação de “normas gerais”.
O que parece pacífico na doutrina é que a lei de normas gerais, como lei nacional
que é, tem como destinatários não somente os jurisdicionados da União, mas também os
próprios legisladores das três ordens de governos em matéria tributária. Toda lei de normas
gerais em matéria tributária é, por sua vez, uma lei da Federação46 47 48 49.
Já tratamos no capítulo anterior acerca da repartição das competências entre os
entes federados, tendo verificado que, a teor do artigo 24, §1º, do Texto Constitucional, no
âmbito da competência legislativa concorrente em matéria tributária (art. 24, I, CF), cabe à
União editar as normas gerais, cabendo às ordens jurídicas parciais, preencherem a moldura
legislativa traçada pelo legislador nacional.
Conjugando o referido dispositivo com o artigo 146, III, ora em comento, verifica-
se que o constituinte elencou, de forma não exaustiva, alguns conteúdos objeto de
regulamentação por meio de lei complementar. Trata-se de enumeração exemplificativa, não
exaurindo o âmbito de competência do legislador complementar em matéria tributária.
Nesta senda, ao legislador da União cabe a delimitação do âmbito de atuação dos
legisladores parciais, impondo os limites da sua atuação, dentro do exercício da competência
tributária outorgada a cada ente da Federação pelo legislador constituinte. Dissertando sobre o
assunto Sacha Calmon50 é categórico:
45 A questão da recepção do Código Tributário Nacional, instituído pela lei ordinária nº 5.172, de 1966, como lei complementar de normas gerais é incontroverso na doutrina e já foi pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda sob a égide da Constituição anterior (RE 90471, rel. Ministro Moreira Alves, DJU 01.06.1979). 46 COELHO, op. cit., p. 93. 47 REIS, 2000, p. 200. 48 SOUZA, Rubens Gomes. Normas gerais de direito financeiro. In: Revista Forense, v. 155, 1954, p. 21-35. 49 BORGES, op. cit., p. 96. 50 COELHO, op. cit., p. 96.
49
As normas gerais de Direito Tributário veiculadas pelas leis complementares são eficazes em todo o território nacional, acompanhando o âmbito de validade espacial destas, e se endereçam aos legisladores das três ordens de governo da Federação, em verdade, seus destinatários. A norma geral articula o sistema tributário da Constituição às legislações fiscais das pessoas políticas (ordens jurídicas parciais). São normas sobre como fazer normas em sede de tributação.
Saliente-se que tais “normas sobre como fazer normas em sede de tributação”
devem ter como função única assegurar a uniformidade de tratamento dos jurisdicionados
perante os entes federados (União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios),
traçando os delineamentos em matéria de tributação.
Não há que se falar em exaurimento da matéria tributária por parte do legislador
complementar. Em matéria de tributação, a competência repartida constitucionalmente
pertence a cada um dos entes federados. Na medida em que esgote a matéria tributária na
legislação complementar, há o sério risco de quebra da autonomia financeira dos entes
federados e, sem autonomia financeira, fere-se o próprio princípio federal.
Definir os corretos limites na definição e no conteúdo das normas gerais de direito
tributário é o principal problema apontado por Elcio Fonseca Reis51 para a compatibilização
do artigo 146, III e alíneas, do Texto Constitucional com o princípio federativo.
De fato, em um sistema federativo como o brasileiro, que em matéria tributária
prevalece a forma de repartição não cumulativa de competências legislativas, os papéis do
legislador complementar da União e dos legisladores ordinários dos entes federados são bem
definidos: o ente federativo central – a União – fixa os princípios e normas gerais, deixando
ao ente federativo parcial – União, Distrito Federal, Estado-Membro e Município – uma
competência ‘complementar’ para preencher a moldura constante da lei complementar,
instituindo validamente os tributos de suas competências.
Neste sentido é o entendimento do professor José de Mesquita Lara52
Lembre-se também de que, em se tratando de competência concorrente, como é a competência para editar normas do direito financeiro e tributário, a atuação da União deve limitar-se a estabelecer normas gerais (CF, art. 24, I), quer dizer – numa outra acepção do adjetivo geral – regime convencional, apenas emoldurantes de um contextura de muitos claros, a serem preenchidos pela União, Estados e Municípios.
Desta forma, as normas gerais jamais podem substituir o exercício da competência
legislativa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em matéria financeira
e tributária, de tal sorte que, havendo omissão do legislador ordinário estadual ou municipal,
não poderá a União – mesmo editando lei complementar – regular o tributo de alheia
51 REIS, 2000, p. 159.
50
competência, para valer no território daquela pessoa que renunciou à faculdade de legislar,
atribuída na Carta Magna, consoante se verifica dos precisos ensinamentos de Misabel
Derzi53.
Situação semelhante verifica-se na hipótese de ausência de normas gerais
expedidas através de lei complementar. A omissão do legislador complementar não tem o
condão de impedir o exercício da competência legislativa plena por parte dos entes federados,
a teor do disposto no §3º, do artigo 24 da Carta Magna.
Mais uma vez curial trazer à baila o entendimento de Misabel Derzi54:
Inexistindo lei complementar da União, que previna conflitos de competência, regulamente as limitações ao poder de tributar ou defina os tributos, suas espécies, os fatos geradores e as bases de cálculo dos impostos discriminados na Constituição, conforme prescreve o art. 146, I, II e III, nem por isso ficará bloqueado o exercício da competência legislativa de cada ente político da Federação, competência resultante das normas atributivas de poder dos arts. 145, 148, 149, 153, 155 e 156 e daquelas restritivas e proibitivas dos arts. 150, 151 e 152.
A Suprema Corte55 também tem posicionamento neste sentido:
I. Taxa Judiciária: sua legitimidade constitucional, admitindo-se que tome por base de cálculo o valor da causa ou da condenação, o que não basta para subtrair-lhe a natureza de taxa e convertê-la em imposto: precedentes (ADIn 948-GO, 9.11.95, Rezek; ADIn MC 1.772-MG, 15.4.98, Velloso). II. Legítimas em princípio a taxa judiciária e as custas ad valorem afrontam, contudo, a garantia constitucional de acesso à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV) se a alíquota excessiva ou a omissão de um limite absoluto as tornam desproporcionadas ao custo do serviço que remuneraram: precedentes (Rp 1.077-RJ, 28.3.84, Moreira, RTJ 112/34; Rp 1.074- , 15.8.84, Falcão, RTJ 112/499; ADIn 948-GO, 9.11.95, Rezek; ADIn MC 1.378-5, 30.11.95, Celso, DJ 30.5.97; ADIn MC 1.651-PB, Sanches, DJ 11.9.98; ADIn MC 1.772-MG, 15.4.98, Velloso). III. ADIn: medida cautelar: não se defere, embora plausível a arguição, quando - dado o consequente restabelecimento da eficácia da legislação anterior - agravaria a inconstitucionalidade denunciada: é o caso em que, se se suspende, por aparentemente desarrazoada, a limitação das custas judiciais a 5% do valor da causa, seria restabelecida a lei anterior que as tolerava até 20%. IV. Custas dos serviços forenses: matéria de competência concorrente da União e dos Estados (CF 24, IV), donde restringir-se o âmbito da legislação federal ao estabelecimento de normas gerais, cuja omissão não inibe os Estados, enquanto perdure, de exercer competência plena a respeito (CF, art. 24, §§ 3º e 4º). V. Custas judiciais são taxas, do que resulta - ao contrário do que sucede aos impostos (CF, art. 167, IV) - a alocação do produto de sua arrecadação ao Poder Judiciário, cuja atividade remunera; e nada impede a afetação dos recursos correspondentes a determinado tipo de despesas - no caso, as de capital, investimento e treinamento de pessoal da Justiça - cuja finalidade tem inequívoco liame instrumental com o serviço judiciário. (ADI 1926 MC, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 19/04/1999, DJ 10-09-1999 PP-00002 EMENT VOL-01962-01 PP-00022).
52 LARA, José de Mesquita. As normas gerais de direito financeiro e do direito tributário, sua natureza e função. In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, v. 34, n. 34, 1994, p. 171-184. 53 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 43. 54 BALEEIRO, op. cit., p. 43. 55 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1926/PE. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, 19 de abril de 1999. Brasília: Diário da Justiça, 10 set. 1999, p. 22.
51
Insta ressaltar, todavia, que a competência supletiva dos Estados para legislar nas
hipóteses de ausência de regra geral emanada pelo legislador da União não é absoluta.
Quando estivermos diante de uma situação de possível conflito de competência entre os entes
federados, a existência da lei nacional se torna imperativa. Neste sentido, o entendimento do
Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Lei do Estado do Rio de Janeiro que
instituiu o Adicional do Imposto de Renda Estadual56.
Naquele julgamento, a Corte Suprema entendeu que uma interpretação sistemática
dos artigos 146, II e 24, §3º Texto Constitucional leva a conclusão de que a competência
supletiva estadual possui limites na própria Carta Magna. Confira-se aresto da decisão do
Ministro Octavio Gallotti57:
O disposto no §3º do art. 24 da Constituição não pode, portanto, significar a abolição da lei complementar necessária à dirimência de conflitos de competência entre Unidades da federação. O âmbito do dispositivo está limitado, logicamente, às situações de alcance simplesmente isolado ou local, como também indica a expressão literal da norma, em sua parte final, quando também indica a expressão literal da norma, em sua parte final, quando se declara destinada a atender os Estados “em suas peculiaridades”, sem mostrar, assim, pertinente ao trato da matéria tributária que haverá, fatalmente, de compreender o inter-relacionamento de mais de um Estado.
O Ministro Carlos Velloso acrescenta como argumento à impossibilidade do
exercício da competência supletiva ilimitada dos Estados, no caso do Adicional do Imposto de
Renda, o fato do imposto possuir clara abrangência nacional. Confira-se:
Posta assim a questão, penso que não se pode emprestar à matéria de caráter local, para o fim de permitir, na linha do §3º, do art. 24 da Constituição, que o Estado-membro exerça competência legislativa plena. E por que? Porque a matéria, por não ter caráter local, por ser eminentemente nacional, não é daquelas que cabem na cláusula inscrita na parte final do §3º do art. 24 da Constituição – “para atender a suas peculiaridades”, vale dizer, para atender a peculiaridades locais. É que o Estado-membro somente exercerá competência legislativa plena, na falta de lei federal, para atender a suas peculiaridades (§3º do art. 24 da Constituição). Ora, definir fato gerador de imposto, conforme vimos, interessa a mais de uma entidade política que compõe a Federação, diz respeito a diversas entidades políticas, a mais de um Estado-membro, interessa e diz respeito à própria União.
Além das funções acima elencadas, a lei complementar possui, em diversas outras
passagens do Texto Constitucional, referência acerca da sua utilização. Não nos ateremos no
presente trabalho a elencar, exaustivamente, todas as funções da lei complementar em matéria
tributária.
56 Previsto na redação original do art. 155, inciso II, Texto Constitucional, anterior à Emenda Constitucional nº 3, de 1993. 57 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 136215/RJ. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Octavio Gallotti, 18 de fevereiro de 1993. Brasília: Diário da Justiça, 16 abr. 1993, p. 941.
52
No tópico abaixo, entretanto, abordaremos rapidamente outra importante função
atribuída à lei complementar, cuja norma constante do dispositivo constitucional, embora não
possua caráter eminentemente tributário, já que, consoante restará demonstrado ao longo da
presente obra, trata-se de norma eminentemente concorrencial, têm como meio de atuação
critérios tipicamente tributários (instituição de regimes especiais de tributação). Trata-se do
novel artigo 146-A, cerne do presente trabalho, cuja função primordial é a de restabelecer a
igualdade concorrencial e que será objeto de profunda análise no capítulo 5.
2.4. BREVE INTRODUÇÃO SOBRE O ARTIGO 146-A, INSERIDO NA CF/88 PELA EC
42/03
Diante de um cenário político de acalorados debates nacionais acerca do tema
“Reforma Tributária”, visando a efetivação das mudanças almejadas para a simplificação e a
racionalização do Sistema Tributário Nacional, bem como a ampliação do universo de
contribuintes, de forma a aumentar a distribuição do ônus tributário, com ênfase para a
redução da evasão tributária e da informalidade, foi remetido ao Poder Legislativo o Projeto
de Emenda Constitucional nº 41/2003, oriunda do ofício executivo EMI nº 84/MF/C.Civil, de
30 de abril de 2003.
Embora tivesse como tema central a “reforma tributária”, o projeto original abarcou
também outros temas, dentre os quais, as mudanças no sistema de benefícios tributários,
contribuindo para a ampliação da base impositiva e para o aumento do número de
contribuintes, configurando, assim, grandes avanços para obtenção do equilíbrio
concorrencial, consoante se verifica da Exposição de Motivos58.
Cumpre salientar que no texto enviado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo
não constava expressamente a norma constante do atual artigo 146-A, que somente veio à
tona quando da elaboração da Emenda Aglutinativa Substitutiva de Plenário nº 27, de 03 de
setembro de 2003, apresentada pelo Deputado Eunício Oliveira59.
Mesmo tendo sido apresentadas 466 emendas parlamentares no curso do processo
legislativo que originou a Emenda Constitucional nº 42, publicada no dia 19 de dezembro de
2003, o texto do artigo 146-A não sofreu nenhum alteração à sua redação original, nem pela
58 BRASIL. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop _Detalhe.asp?id=113717>. Acesso em 22/04/2011.
53
Câmara dos Deputados, nem pelo Senado Federal. Confira-se o teor do mencionado
dispositivo constitucional:
Art. 146-A. Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003).
O mencionado dispositivo foi inserido dentro do capítulo do Sistema Tributário
Nacional constante do Texto Constitucional, e consagra, para muitos autores60, o princípio da
neutralidade tributária no ordenamento jurídico brasileiro, que será melhor estudado no
capítulo 5 da presente obra.
Segundo José Luis Ribeiro Brazuna61, o dispositivo contém clara regra constitutiva de
competência legislativa, que permite o uso da tributação para prevenir desequilíbrios da
concorrência que, do ponto de vista da ordenação constitucional da atividade econômica,
soma-se ao emaranhado de regras e princípios que regulam a intervenção do Estado sobre o
direito econômico.
No decorrer do presente trabalho, embora seja reduzida a bibliografia nacional acerca
do tema, mesmo já decorridos longos anos desde a inserção do dispositivo no ordenamento
jurídico pátrio, procuraremos demonstrar qual o alcance do dispositivo, a quem a competência
constitucional foi outorgada, qual a amplitude da expressão “critérios especiais de tributação”
constante do dispositivo constitucional, bem como a sua real aplicabilidade nas hipóteses de
prevenção e restabelecimento do equilíbrio concorrencial.
59 BRASIL. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/MostraIntegraImagem.asp?strSiglaProp =PEC&intProp=41&intAnoProp=2003&intParteProp=9&codOrgao=180>. Acesso em 22/04/2011. 60 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Livre Concorrência e o Dever de Neutralidade Tributária. Dissertação (Pós-Graduação em Direito). Porto Alegre: UFRGS, 2005, 143p. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/5221/000512454.pdf?sequence=1>. Acesso em 21/03/2011. CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: Uma Visão Crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. BRAZUNA, José Luis Ribeiro. Defesa da Concorrência e Tributação: À luz do Artigo 146-A da Constituição. In: Série Tributária Doutrinária, vol. II. São Paulo: Quartier Latin, 2009. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Resposta à consulta formulada pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO, acostado aos autos da Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1.657/RJ. BRASIL, STF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Joaquim Barbosa. Relator para Acórdão Ministro Cezar Peluso, julgamento 27 jun 2007. 61 BRAZUNA, op. cit., p. 60.
54
Capítulo 3. A defesa da concorrência. 3.1. Breve evolução histórica do mercado regulatório e da concorrência; 3.2. As estruturas de mercado identificadas pela teoria econômica; 3.2.1. Concorrência perfeita; 3.2.2. Monopólio; 3.2.3. Oligopólio; 3.2.4. Concorrência monopolística; 3.2.5. Concorrência praticável: “workable competition”; 3.3. Os interesses protegidos pela legislação concorrencial brasileira; 3.3.1. Livre Iniciativa e Livre Concorrência; 3.3.2. O domínio de mercado, o abuso de posição dominante e o aumento arbitrário de lucros; 3.4. A intervenção do Estado na atividade econômica.
3. A DEFESA DA CONCORRÊNCIA
3.1. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO MERCADO REGULATÓRIO E DA
CONCORRÊNCIA
Primeiramente, no presente capítulo, traremos à baila uma breve evolução
histórica do instituto da concorrência e do livre mercado, a fim de se verificar a partir de que
momento tais institutos passaram a ser protegidos pelos ordenamentos jurídicos, até
chegarmos ao estágio hodierno das normas de proteção concorrencial no Brasil.
Embora em uma primeira análise a tendência natural seja vincular o surgimento
da concorrência com o livre mercado existente à época do liberalismo burguês, esta
vinculação não se dá de forma obrigatória, haja vista que, ainda que de forma embrionária,
desde a antiguidade grega já se noticiava a existência da preocupação com o estabelecimento
de regras reguladoras da conduta dos agentes econômicos, visando a proteção e defesa dos
institutos concorrenciais.
É importante ressaltar que esta incipiente regulamentação da proteção da
concorrência, presente desde a antiguidade grega, depende apenas da existência de, no
mínimo, duas pessoas dispostas a comprar ou vender a um terceiro um mesmo bem, e não se
confunde com o que Paula A. Forgioni1 chama de “regulação da concorrência correlata a um
discurso técnico-econômico e mesmo à idéia de mercado liberal”.
1 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, 1998, p. 26.
55
Para Isabel Vaz2 o fenômeno econômico da concorrência sempre se fez presente,
desde a época do escambo, até os dias atuais. Confira-se:
Através das diferentes técnicas comerciais, desde o escambo, passando pela formação das caravanas primitivas, pelas feiras da Idade Média, até a sofisticação das Bolsas de Valores, identifica-se a figura do comerciante, a disputar a preferência da clientela. A concentração da atividade no comércio funcionou como uma força de atração, promovendo a delimitação de um campo bem definido para o fenômeno concorrencial.
Segundo Paula A. Forgioni3 podem ser identificados três passos principais da
evolução do fenômeno da concorrência, ou das normas que disciplinam a atividade dos
agentes econômicos do mercado:
Em suma, três passos principais da evolução são por nós claramente identificados: (i) A determinação de regras reguladoras do comportamento dos agentes
econômicos no mercado, por razões absolutamente práticas, visando a resultados eficazes e imediatos, eliminando distorções tópicas;
(ii) A regulamentação do comportamento dos agentes econômicos como contraponto a um sistema de produção entendido como ótimo. Essa regulamentação é, então, vista como correlata à estrutura do próprio sistema. A concorrência assume seu sentido técnico, que lhe é dado pela ciência econômica. De outra parte, sua disciplina visa a proteger o mercado contra seus efeitos autodestrutíveis (correção dos efeitos tópicos danosos, visando a manutenção do sistema).
(iii) A regulamentação da concorrência e, portanto, do comportamento dos agentes econômicos do mercado passa a ser vista não apenas como essencial para a manutenção do sistema, mas também como instrumento de implantação de uma política pública (correção dos efeitos tópicos danosos, visando apenas à manutenção, mas também a condução do sistema).
No primeiro momento, presente desde a antiguidade grega e romana, passando
pelas corporações de ofício da Idade Média, até o mercantilismo do século XVI, prevaleceu a
existência e a regulamentação dos monopólios.
Os monopólios estatais de fermento, chumbo, ferro e grãos na Grécia antiga, do
sal e da distribuição de alimentos na Roma antiga, estimularam a criação de regras que
visassem impedir e proteger a população, por exemplo, contra as manipulações e abusos de
preços, a escassez artificial de produtos, ou o açambarcamento de mercadorias.
Já na Idade Média, destacaram-se as corporações de ofício, que fizeram da época,
segundo Paula A. Forgioni4, um dos períodos mais ricos em termos de história da
concorrência. O surgimento das corporações se deu através da associação de artesãos e
comerciantes visando a proteção dos seus interesses comuns.
2 VAZ, Isabel. Direito econômico da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 53. 3 FORGIONI, op. cit., p. 29. 4 Ibid, p. 38.
56
Forgioni, forte em Franceschelli5 afirma que “é nesse período histórico que
nascem muitas das regras de concorrência, positivando princípios que, de certa maneira,
inspiram o legislador até os nossos dias”. Tudo isso porque as corporações de ofício eram
estruturas eminentemente monopolísticas, ao passo que vedava o desenvolvimento de
determinada atividade econômica por ela regulamentada, por parte de um agente que não
fosse a elas associado, impondo, ainda, aos associados, um sem número de obrigações rígidas,
cujo descumprimento gerava a aplicação de penalidades e até mesmo a exclusão de membros,
além de limitar o acesso ao mercado e limitar à liberdade de concorrência de cada um6.
Surge, neste cenário, a imposição de regras instituídas por parte das Comunas,
visando, principalmente, a proteção do consumidor. Como exemplo, em Florença, um fiscal,
ao final do dia, cortava a cauda de todos os peixes que haviam sido postos à venda, para que o
consumidor, no dia seguinte, soubesse que o produto não era fresco. Ademais, exigia-se que
os agricultores levassem suas mercadorias à venda a um determinado lugar (praça do
mercado), em horas pré-estabelecidas, viabilizando a concorrência7.
Todavia, tais regras não eram suficientes e também àquela época houve reações
contra os cartéis e monopólios estabelecidos pelas corporações.
Finalizando o primeiro momento da linha evolutiva das normas disciplinadoras da
atividade econômica dos agentes no mercado, surge a política mercantilista8, cuja principal
característica é o elevado papel intervencionista do Estado, com uma política embasada em
um sistema de exclusividade comercial entre as metrópoles e as colônias, visando o aumento
da lucratividade e acúmulo de ouro e outros metais preciosos provenientes das colônias.
Prevalece nesse período, a clara política monopolística real das metrópoles em relação às
colônias, principalmente americanas, que proibia, inclusive, a instalação de indústrias ou
5 FRANCESCHELLI apud FORGIONI, op. cit., p. 40. 6 "Efectivamente, para el ejercicio de una actividad profesional se requería la inscripción en la matrícula del gremio o corporación de artes e oficios correspondiente, sólo posible a personas en las que concurriesen determinados requisitos, subordinada al pago de una tasa e, frecuentemente, a la prestación de juramento de observar lealmente las reglas de la corporación. Al mismo tiempo, el propio ejercicio de la actividad era rígida y minuciosamene reglamentado por los estatutos de cada corporación que establecían así no sólo las condiciones y requisitos para la admisión de los nuevos miembros y el número máximo de éstos, sino también las reglas técnicas de producción – es decir, el producir <<legaliter>> -, y las reglas del <<bene agere>> - esto es, el comerciar <<regulariter>> -, fijándose además las sanciones aplicables a todos aquellos que infringiesen la legalidad y la regularidad del ejercicio de la profesión; esto es, a quienes intentasen <<falsare l’arte>>. (…) La pertenecia a la corporación y el mantenimiento de la inscripción em la matrícula estaba condicionado al respecto de las reglas corporativas, cuya infracción podía suponer la exclusión del miembro con la consiguiente cancelación de la inscripción, o su inclusión en una <<lista negra>> com la prohibición a todos los demás miembros de comerciar con el sancionado." (GALÁN, Juan Ignácio Font. Constitucion Economica y Derecho de la Competencia. Madrid: Editorial Tecnos, 1987, p. 71-72). 7 FORGIONI. op. cit., p. 42. 8 A idéia mestra do mercantilismo era que, para desenvolver ao máximo a riqueza de um Estado, ela própria função da conquista dos metais preciosos, era preciso estabelecer uma política dirigista, fundada na regulamentação do comércio e da indústria, no controle alfandegário e na procura dos mercados externos. (LAUBADÈRE, André. Direito Público econômico. Coimbra: Almedina, 1985, p. 36).
57
mesmo o processamento de matérias primas nas colônias, para que fosse evitada qualquer
concorrência em relação à metrópole, mantendo no período a política do “pacto colonial”.
Surgem, então, na Inglaterra do final do Século XVI, movimentos de reação ao
poder do soberano contestando a legalidade destes monopólios reais, movimentos estes,
apontados pelos norte-americanos como o início da história do antitruste, pela riqueza das
decisões dos tribunais ingleses a respeito dessa matéria9.
Tais decisões levaram à condenação do Governo Inglês pela existência dos
monopólios, por três fatores: (i) prática potencial de preços de monopólio; (ii) diminuição
potencial da qualidade do produto; (iii) estabelecimento de barreiras à entrada de novos
agentes econômicos no mercado.
Vê-se, pois, que durante todo o período entre a antiguidade grega e o final do
século XVIII, surgiram pontualmente normas regulamentadoras da concorrência,
principalmente visando a proteção do consumidor em relação aos monopólios e cartéis
constituídos no período, visando, exclusivamente, a solução de distorções casuísticas
existentes, sem qualquer preocupação com a proteção do próprio mercado, ou mesmo com a
implementação de uma política pública.
Embora existam peculiaridades atinentes a cada um dos momentos acima
referidos, certo é que tanto na antiguidade, como desde a idade média até o final do
mercantilismo no século XVIII, os monopólios se mostraram como a estrutura predominante
no mercado, predominando, por consequência, a falta de liberdade de acesso ao mercado. O
professor catedrático da Universidade de Sevilha, Juan Ignácio Fonte Galán10, embora
dissertando entendimento apenas em relação ao período compreendido entre os séculos XII e
XVIII, concorda com tal entendimento:
Las guías directrices de la vida social y económica establecidas en el sistema del ordenamiento jurídico mercantil imperante en sus dos primeros períodos históricos – el corporativo (desde el siglo XII hasta la mitad del siglo XVI) y el estatal (desde la mitad del siglo XVI hasta fines del siglo XVIII) – se caracterizan, en líneas generales, por la falta de libertad de acceso al mercado – es decir, de libre ejercicio de actividades económicas –, la rígida organización monopolista dentro de un sistema gremial corporativo, y el fuerte intervencionismo económico del poder público (mercantilismo).
Surge, então, o segundo momento na linha evolutiva da regulamentação da
concorrência, com a deflagração da chamada Revolução Industrial, que gerou uma profunda
modificação do sistema de produção, a partir do deslocamento do centro de produção das
oficinas, prevalentes nas corporações de ofício, para as fábricas.
9 Ibid, p.48. 10 GALÁN, op. cit., p.70.
58
Extinguindo-se as corporações e as suas rígidas regras, dava-se liberdade ao
comerciante e ao industrial, e era restabelecida a licitude da competição entre os agentes
econômicos. Tem-se início, então, o liberalismo econômico, consagrado pela Revolução
Francesa, em que a liberdade de comércio e indústria consagrava o princípio da não-
intervenção do Estado no funcionamento normal do mercado, propiciando a implantação da
ordem econômica almejada pela burguesia11.
A palavra concorrência (competition) passa a ser referida em um claro sentido
econômico, quando a concorrência passou a ser identificada como “preço justo”. A
concorrência passa a ser encarada como a solução para conciliar a liberdade individual com o
interesse público: preservando-se a competição entre os agentes econômicos, atende-se ao
interesse público (preços inferiores aos de monopólio, melhora da qualidade dos produtos,
etc.), ao mesmo tempo em que assegura ao industrial ou comerciante a mais ampla liberdade
de atuação, com a concorrência evitando qualquer comportamento danoso à sociedade.
Textos normativos são publicados, como o Decret d’Allard e a lei Le Chapelier,
na França, extinguindo as corporações de ofício e garantindo o livre exercício das atividades
econômicas pelos agentes de mercados, sem que houvesse a intervenção estatal no
funcionamento da economia.
Todavia, embora àquela época prevalecesse ampla liberdade econômica, há de se
ressaltar que, consoante muito bem alerta Eros Roberto Grau12, ainda ao tempo do
liberalismo, era o Estado, seguidas vezes, no interesse do capital, chamado a “intervir” na
economia.
Relembre-se que o Decret d’Allard, de 2-17 de março de 1971, no seu art. 7º, determinou que, a partir de abril daquele ano, seria livre a qualquer pessoa a realização de qualquer negócio ou o exercício de qualquer profissão, arte ou ofício que lhe aprouvesse, sendo contudo ela obrigada a munir-se previamente de uma “patente” (imposto direto), a pagar as taxas exigíveis, e a sujeitar-se aos regulamentos de polícia aplicáveis.
Neste cenário, consolida-se o modelo econômico concebido por Adam Smith, em
que o mercado se mostra atomizado, ou seja, com a presença de pequenas unidades
produtoras de bens e serviços. Esta estrutura o torna auto-regulável, ou seja, detentor de
mecanismos endógenos capazes de evitar crises econômicas, seja de escassez, seja de excesso
de oferta de um dado bem econômico13.
11 FORGIONI, op. cit., p. 53-54. 12 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2001, p.15. 13 GOMES, Carlos Jacques Vieira. Ordem econômica constitucional e direito antitruste. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 23-24.
59
Todavia, este modelo de livre atuação dos agentes econômicos, através da “mão
invisível do Estado”, acabou por gerar uma elevada concentração de capitais e poder nas mãos
de alguns agentes, trazendo instabilidade nos mercados, em virtude do grande crescimento das
concentrações e dos monopólios, levando à destruição do modelo de auto-regulação dos
mercados. Neste sentido, mais uma vez curial o magistério de Galán:
La afirmación de la libre competencia con que se inicia el siglo XIX, sin limitaciones ni disciplinas, lleva ínsita el germen de su propia destrucción. Pronto se advierte que la libertad en la competencia es objeto de graves abusos por parte de los competidores que, a través de procedimientos muy variados, infringen las reglas del ejercicio de una leal y libre competencia.
Surge, então, a necessidade da atuação estatal, através do estabelecimento de
normas que garantam que as forças de mercado, em posição de paridade, concorram lealmente
entre si. Eros Grau14 esclarece que o Estado passa a assumir o papel de agente regulador da
economia:
Evidente a inviabilidade do capitalismo liberal, o Estado, cuja penetração na esfera econômica já se manifestara na instituição do monopólio estatal da emissão de moeda – poder emissor –, na consagração do poder de polícia e, após, nas codificações, bem assim na ampliação do escopo dos séricos públicos, assume o papel de agente regulador da economia.
Ressalte-se que esta regulação dos mercados, neste momento histórico, não tinha
outra função senão a correção tópica do sistema de mercado, visando única e exclusivamente
garantir o livre mercado, sem qualquer pretensão de condução do sistema econômico,
consoante nos ensina Paula A. Forgioni15:
Percebeu-se, ainda, que a competição selvagem entre os agentes econômicos é potencialmente prejudicial, podendo levar a sua destruição, e deve, portanto, ser regulamentada. As distorções, por sua vez, geraram uma grande insatisfação popular e culminaram com a regulamentação da concorrência entre os agentes econômicos, dentre outras medidas destinadas à atenuação do problema. Essa regulamentação, é bom que se diga desde logo, visava somente à correção do sistema, propiciando a manutenção a manutenção do que lhe era essencial: o livre mercado.
Neste contexto, o Sherman Act, publicado nos Estados Unidos da América em
1890, foi o primeiro diploma legal que disciplinou a questão do Poder Econômico, visando,
exclusivamente a tutela do mercado contra seus efeitos autodestrutíveis. O Sherman Act16 foi
14 GRAU, op. cit., p. 19. 15 FORGIONI, op. cit., p. 61-62. 16 Neste ponto, cabe ressaltar o contexto histórico de concentrações na economia norte-americana configurados na constituição dos trusts, principalmente nos setores ferroviário, telegráfico e de combustíveis, o que gerou um grande aumento de preços e, consequentemente, uma grande insatisfação nos consumidores e pequenos empresários e produtores rurais. Neste sentido: “A própria história legislativa do Sherman Act de 1890 reflecte uma confluência de diferentes valores. A criação de uma economia de dimensão continental integrada pela rede ferroviária em expansão permitiu o surgimento de uma nova forma de organização empresarial que se caracterizava pela concentração do controle económico das actividades produtivas num grupo reduzido de pessoas. Falamos da figura dos trusts, que se generalizavam a um conjunto de indústrias onde as economias de escala favoreciam a integração”. (SILVA, Miguel Moura. Direito da concorrência: Uma introdução jurisprudencial. Coimbra: Almedina, 2008, p. 33); “Em especial, dois setores foram objeto de fortíssima concentração:
60
uma resposta do Senado norte-americano aos anseios dos consumidores, agricultores,
trabalhadores e pequenos empresários, que se colocavam absolutamente contra a concentração
do poder econômico, tida como causa de muitos males que assolavam a sociedade da época17.
Ocorre que as proibições per se aos contratos, combinações e conspirações
restritivas ao comércio e a monopolização e tentativa de monopolização previstas no Sherman
Act foram colocadas à prova no Poder Judiciário, tendo a Suprema Corte Americana decidido,
nos casos Standard Oil v. U.S. e U.S. v. American Tobacco Co., pela relativização dos
preceitos legais, através da aplicação da rule of reason18, de forma que tais condutas somente
seriam ilícitas caso restringissem a concorrência de forma não razoável19.
A partir da decisão pela Suprema Corte pela aplicabilidade da regra da razão, foi
publicado, em 1914, o Clayton Act e o Federal Trade Comission que, embora tenham
tipificado algumas condutas potencialmente anticompetitivas, estabeleceram que tais condutas
somente seriam consideradas ilícitas se restringissem a concorrência de forma não razoável;
sistemática esta que inspirou diversas legislações, dentre as quais a brasileira.
Durante o primeiro quarto do século XX, tem origem o já elencado terceiro
momento evolutivo do fenômeno concorrencial, em que o Estado passa a figurar não apenas
como agente de correção dos efeitos tópicos danosos do mercado, visando apenas a sua
manutenção, mas também a condução de todo o sistema econômico, já que a atuação apenas
conjuntural durante o século XIX não foi suficiente para conter as crises do mercado, que
culminou na chamada crise de 1929.
telégrafos e estrada de ferro. No setor telegráfico, a famosa Western Union já em 1866 tinha adquirido quase a totalidade dos concorrentes. O monopólio das estradas de ferro, por outro lado, vincula-se diretamente ao segundo dos fatores acima mencionados”. (SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: As Estruturas. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 51). 17 A preocupação principal é, portanto, com o poder dos monopolistas exercido sobre os consumidores. Não só o poder econômico, também o poder político. Por outro lado, não é possível distinguir uma preocupação central, motivadora da lei, com a proteção da pequena empresa. Há, isso sim, uma preocupação institucional com a defesa da competição. Mas aí, trata-se de competição entendida como sistema competitivo, instrumental necessário à proteção do consumidor. Essas preocupações dos legisladores traduzem-se no conteúdo material do Sherman Act. A Section I, que declara ilegal qualquer contract, combination in the formo f trust or otherwise, or conspiracy que possa criar dificuldades ao comércio interestadual. A Section II, por sua vez, declara ser crime a monopolização ou tentativa de monopolização de mercado. (SALOMÃO FILHO, op.cit., p. 54-55). 18 Trata-se de uma das chamadas “válvulas de escape” ou meios técnicos que permitam à realidade permear o processo de interpretação/aplicação das normas nela contidas, nos precisos dizeres de Paula A. Forgioni: “Tanto a regra da razão quanto as isenções e autorizações são técnicas destinadas a viabilizar a realização de uma determinada prática, ainda que restritiva da concorrência, afastando-se as barreiras legais à sua concretização. (...) Pela regra da razão, somente são consideradas ilegais as práticas que restringem a concorrência de forma não razoável (que se subsumiriam, por via de consequência, à regra da proibição per se)”. (FORGIONI, op. cit., p. 180-184). 19 Segundo entendimento de Salomão Filho: “A expressão ‘desarrazoada’ envolve dois aspectos. Em primeiro lugar, é necessário que a restrição seja efetiva, ou seja, que realmente restrinja a competição, ao invés de simplesmente estabelecer regras para ela. Esse é o aspecto qualitativo. Em segundo lugar, é necessário que a restrição seja substancial, ou seja, analisadas as condições estruturais de cada mercado, promova uma substancial redução da competição. Esse é o aspecto quantitativo da regra. A fórmula, assim, elaborada hoje pode ser chamada regra da razão no sentido clássico”. (SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 142).
61
O Estado passa então a desempenhar uma nova função de direção da economia,
utilizando instrumentos que lhe permitem “estabilizar, estimular e dirigir o rumo de sua
economia sem apelar para a ditadura e substituir um sistema baseado na propriedade por um
sistema de poder ostensivo20”.
Tem-se o surgimento da chamada hetero-regulação dos mercados, através
justamente do intervencionismo estatal no domínio econômico21, que visa a busca da tutela
dos valores sociais, éticos e políticos que transcendem a mera regulação das falhas de
mercado, ou seja, não se reduz a intervenção à correção dos mecanismos de mercado, mas à
busca de justiça social, por meio do controle e da conformação da ordem econômica22 23.
3.2. AS ESTRUTURAS DE MERCADO IDENTIFICADAS PELA TEORIA ECONÔMICA
Traçada a linha evolutiva do fenômeno concorrencial, cumpre identificar as
estruturas de mercado identificadas pela Teoria Econômica.
3.2.1. CONCORRÊNCIA PERFEITA
O primeiro aspecto que se deve ressaltar acerca da estrutura de mercado em
concorrência perfeita é que tal figura é absolutamente teórica, idealizada pela doutrina
econômica, sendo o modelo, hodiernamente, utópico, praticamente impossível de ser
encontrado na prática.
Em um mercado em concorrência perfeita24, a estrutura e o funcionamento do
mercado pressupõem as seguintes características: (i) grande quantidade de compradores e
20 Conforme entendimento de John M. Keynes, citado por Adolf BERLE apud VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 11. 21 Acerca das formas de atuação do Estado no domínio econômico e sobre o domínio econômico, nos reportaremos no item 3.4 deste capítulo. 22 GOMES, op.cit., p. 31-34. 23 Tal fato é reforçado pelo texto do caput do artigo 170 da CR/88, que atribui um caráter instrumental para a proteção da concorrência para assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social: "Art. 170. A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social (...)." 24 Ressalte-se aqui que os conceitos de concorrência perfeita e de concorrência pura não se confundem, sendo esta mais restrita, caracterizando-se pela simples ausência de monopólio no mercado, bastando para a sua configuração a existência de vários concorrentes, ofertando produtos homogêneos, e aquela mais abrangente, configurando-se não apenas dada a existência pura e simples do monopólio, como também em relação a outros aspectos, como a perfeita mobilidade dos fatores de produção, perfeito conhecimento das informações relativas ao mercado, sem nenhum grau de incerteza e instantaneidade dos ajustes de mercado, conforme doutrina de Edward H. Chamberlin, apud BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: RT, 2001, p. 37.
62
vendedores; (ii) homogeneidade dos produtos ofertados; (iii) plena informação dos preços e
dos produtos colocados no mercado pelos agentes econômicos, quer ofertantes, quer
adquirentes; (iv) liberdade de entrada e saída dos agentes do mercado.
O primeiro requisito apontado pela doutrina é a multiplicidade de compradores e
vendedores no mercado, o que faz com que a atuação dos mesmos em nada influencie a
formação dos preços dos produtos, já que a entrada ou a saída de competidores do mercado
pouco influenciará nas curvas de demanda e procura. Neste tipo de mercado, ocorre a clara
uniformidade dos preços.
Para Sérgio Varella Bruna25, no mercado em concorrência perfeita,
a quantidade produzida por uma unidade produtora será de tal sorte insignificante que uma eventual redução de preços por parte de qualquer dos concorrentes fará com que a produção total deste seja imediatamente vendida, sem que seus concorrentes possam disso se aperceber.
Esta atomização do mercado em concorrência perfeita impede a "prática de
conduta abusiva consistente na manipulação do preço por meio da retração ou expansão
induzida da quantidade produzida"26, além de impedir que exista poder de mercado27 por parte
de qualquer competidor, já que nenhum agente econômico dispõe do poder de influenciar o
equilíbrio do mercado por si só.
A segunda característica do mercado perfeitamente competitivo diz respeito à
homogeneidade dos produtos ofertados, inexistindo qualquer diferenciação por fabricante ou
marca, bem como em relação aos preços praticados, além da qualidade e apresentação dos
mesmos. Nesta situação de mercado, dada a identidade dos produtos ofertados, qualquer
aumento nos preços por parte de um dos competidores faria que o comprador buscasse o
produto desejado em um dos seus concorrentes.
No mercado em perfeita competição, todos os agentes econômicos, sejam eles
vendedores ou compradores, têm um completo conhecimento do funcionamento do mercado,
quer dos preços, quer dos produtos ofertados.
A última condição obrigatória existente no mercado em concorrência perfeita é a
total inexistência de barreiras à entrada de novos concorrentes no mercado, já que os custos
25 BRUNA, op. cit., p. 26-27. 26 GOMES, op. cit., p. 117. 27 Poder de mercado aqui entendido segundo a teoria neoclássica, para quem a principal forma de manifestação do poder econômico nos mercados está na faculdade (poder) de aumentar preços através da redução da oferta de bem ou serviço, a tal ponto que o poder de mercado vem definido como o poder de aumentar preços (SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 74). Tal questão será novamente abordada no item 3.2.2.
63
irrecuperáveis (sunk coats)28 são extremamente baixos, encorajando novos competidores a
ingressar no mesmo.
Acresça-se às características acima elencadas, a existência de custos marginais 29crescentes, com a inexistência do fenômeno das economias de escala, ou outras possíveis
barreiras à entrada de novos competidores30, além da inexistência de fatores externos ao
mercado influenciando na dinâmica dos mercados.
Pode-se dizer, portanto, que, no modelo de concorrência perfeita, o produtor é, por
assim dizer, um escravo do mercado: incapaz de nele influir, mas por ele absolutamente
controlado; forçado a produzir, em conjunto com seus concorrentes, tanto quanto seja
possível, a fim de reduzir a escassez ao mínimo, segundo as possibilidades econômicas
materiais existentes31.
No hipotético mercado perfeitamente competitivo duas seriam as consequências,
em termos de eficiência, segundo entendimento de Miguel Moura e Silva32:
- Eficiência produtiva: os bens são produzidos ao mais baixo custo possível e qualquer empresa ineficiente (com custo marginal superior ao preço de mercado) será levada a abandonar a produção; - Eficiência na afectação de recursos: na óptica dos consumidores, a concorrência perfeita permite-lhes obter os produtos/serviços que pretendem ao mais baixo custo possível.
3.2.2. MONOPÓLIO
O primeiro aspecto a se destacar em relação aos mercados monopolísticos diz
respeito à própria definição da palavra monopólio, bem como às hipóteses em que
determinado mercado se apresenta monopolizado.
Embora a palavra monopólio derive do grego monopôlium, composta por monos,
que significa só, e pôlein, que tem o sentido de vender, cumpre destacar que a teoria
monopolística não é aplicada apenas naquelas situações em que determinado agente
econômico detenha 100% de determinado mercado, mas também naquelas situações em que
um dos produtores detém parcela substancial do mercado, e os demais concorrentes se
28 Custos irrecuperáveis (sunk costs) correspondem ao montante de investimento realizado pelo entrante que não poderá ser recuperado na hipótese de sua eventual saída do mercado em questão, uma vez que tais custos são incorridos exclusivamente para fornecer o produto no mercado relevante considerado, como por exemplo, gastos com publicidade ou investimento em bens destinados ao ativo permanente. (GOMES, op. cit., p. 165). 29 O termo marginal designa sempre o acréscimo (de custo, receita, etc.) decorrente da produção ou venda de uma unidade adicional do produto. (SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 76). 30 BRUNA, op. cit., p. 28. 31 Ibid, p. 31. 32 SILVA, op. cit., p. 18.
64
encontram tão atomizados no mercado que não se mostram aptos a exercer nenhuma
influência nos preços dos produtos33.
Mesmo nesta situação, o monopolista exerce o absoluto controle da oferta de
produtos, impondo diretamente as quantidades e, via de consequência, os preços dos produtos
no mercado. O agente monopolista detém o poder de submeter à sociedade, de forma
intencional, a uma escassez de determinado produto, a fim de que sejam majorados os preços,
com a óbvia maximação dos seus lucros.
Calixto Salomão34 aponta três consequências relevantes do monopólio em
desfavor da concorrência. A primeira seria o "aumento abusivo dos preços por parte dos
monopolistas", o que leva à existência do chamado dead weigth loss, conceituado como a
perda de utilidade para os consumidores decorrente da impossibilidade de consumir o
produto, acrescida do custo de oportunidade daqueles consumidores que continuam a
consumir o produto e que, para arcar com os preços supra-competitivos cobrados pelo
monopolista, têm de deixar de consumir ou reduzir o consumo de outros produtos35.
Tal situação gera uma ineficiente situação de alocação de recursos dos
consumidores, que deixam de transferir recursos para as empresas monopolistas (em virtude
do alto preço praticado), gerando um desperdício de recursos, diminuindo o bem-estar dos
consumidores. A chamada eficiência na afetação dos recursos está prevista no parágrafo 7º, da
Comissão Européia nas suas Orientações sobre Restrições Verticais de 1999, in verbis36:
A proteção da concorrência constitui objectivo da política comunitária da concorrência, uma vez que melhora o bem-estar dos consumidores e dá origem a uma afectação eficaz dos recursos.
Como segundo grande problema, Salomão Filho, baseado na doutrina de Richard
Posner37, aponta a tendência dos lucros monopolistas serem convertidos em um custo social e
político, já que este “faturamento extra” obtido através da política monopolística de aumento
de preços, geralmente não é convertido para as próprias empresas monopolistas, sendo
utilizado justamente para a manutenção da posição privilegiada no mercado, através de
corrupção de órgãos governamentais, financiamento de campanhas políticas vinculadas aos
interesses monopolistas, dentre outras.
33 SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 124. 34 Ibid, p. 124-126. 35 Interessante o entendimento de Sérgio Varella BRUNA (op. cit.) no sentido de que estes ganhos adicionais do monopolista (deadweigth loss of monopoly) poderiam ser considerados como uma apropriação indébita, como modalidade de usurpação da renda social. 36 SILVA, op. cit., p. 25. 37 POSNER, Richard. The Law and economics of antitrust. Chigago-London: The University of Chicago Press, 1976, p. 12.
65
Por fim, a última consequência prejudicial ao mercado concorrencial decorrente
da estrutura de monopólio é o desestímulo à inovação e à melhoria da eficiência dos produtos,
já que a condição monopolista impõe pesadas barreiras à entrada de novos concorrentes no
mercado e, por ser o monopolista detentor do mercado (ou de parte substancial dele, sendo o
restante atomizado), não há interesse no desenvolvimento de novas tecnologias ou no
aperfeiçoamento dos produtos por ele comercializados.
Devido à ausência de concorrentes no mercado, o melhor dos lucros do monopólio
é uma vida fácil38, o que é mantido através das fortes barreiras de entrada de novos
competidores.
Especificamente em relação às barreiras para a entrada de novos competidores no
mercado39, cumpre destacar a possibilidade da existência dos chamados monopólios legais e
dos chamados monopólios naturais, cuja manutenção é justificável, quer por uma questão de
eficiência, como no caso dos monopólios legais, quer por questões de incentivo ao
desenvolvimento de novas tecnologias, consoante se passa a demonstrar.
Os monopólios legais estão relacionados não somente àquelas hipóteses em que
juridicamente se assegura o monopólio à determinado agente econômico, através do regime
de concessão ou permissão, ou ao próprio Estado, como no caso do artigo 177 da Constituição
da República de 1988, como também existem
monopólios que são quase universalmente assegurados a agentes privados, como é o caso dos direitos autorais, dos privilégios de marca e patente, que outorgam a seus titulares direito de exploração exclusiva, ainda que eventualmente temporária40.
A esta última modalidade de monopólio legal, a doutrina portuguesa assegura a
possibilidade da sua concessão, em atendimento ao chamado conceito da eficiência dinâmica
da concorrência. Confira-se41:
Mas, se pensarmos nesta hipótese de forma dinâmica – tendo em atenção que, sem o esforço de investigação e desenvolvimento que levou à invenção, o novo medicamento não existiria – constatamos que o direito exclusivo constitui um incentivo, por vezes determinante, para que alguém incorra nos elevados custos (e riscos inerentes) de desenvolver um medicamento. Ou seja, sem a patente talvez o medicamento não tivesse sido desenvolvido de todo ou tal apenas tivesse sido possível passados alguns anos.
Já os monopólios naturais são aquelas situações de monopólio criadas
naturalmente e não em função da ação dos agentes econômicos direcionada à sua constituição,
38 Conforme entendimento do Professor Hicks (HICKS, J.R. apud SILVA, op. cit., p. 21). 39 Para os propósitos da disciplina jurídica do poder econômico, têm-se por barreiras à entrada os fatores existentes em um dado mercado que permitam às empresas nele atuantes auferir preços superiores aos puramente competitivos sem serem ameaçadas pela entrada de novos concorrentes, conforme entendimento de Sérgio Varella Bruna (BAIN, J. apud BRUNA, op. cit., p.57). 40 BRUNA, op. cit., p. 36.
66
ocorrendo naquelas hipóteses em que a competição se mostra impossível, física ou
economicamente.
Por impossibilidade física, entenda-se a existência da propriedade exclusiva de um
recurso-chave, sob controle exclusivo da fonte de recursos ou a detenção exclusiva da
tecnologia essencial à produção em escala comercial.
Já a impossibilidade econômica se dá quando os custos para ingresso no mercado
são proibitivamente altos que se tornam economicamente inviáveis a entrada no mercado de
novos competidores.
Especificamente em relação ao monopólio natural por impossibilidade econômica,
Calixto Salomão Filho42 aponta a forte prevalência dos custos fixos, sobre os custos variáveis,
tornando possível a obtenção de expressivas economias de escala com o aumento da
quantidade produzida, aliada à alta parcela de custos irrecuperáveis (sunk costs), como a
principal razão para se tornar, não somente inviável a entrada de novos competidores no
mercado, como também totalmente desaconselhável.
Já Varella Bruna43, atribui o impedimento da entrada de novos competidores no
mercado à chamada "Escala Mínima de Eficiência", que se caracteriza por tornar necessária a
instalação de uma utilidade mínima de produção, a fim de se atingir o nível mínimo de
eficiência na atividade. Se tal dimensão mínima for suficiente para o atendimento de todo o
mercado, a existência de dois competidores que não atinjam o volume mínimo de produção
não lhes possibilitará auferir recursos suficientes à manutenção da atividade, provocando a
falência de um dos competidores, senão de ambos.
3.2.3. OLIGOPÓLIO
A estrutura do mercado oligopolista prevê a existência de poucos vendedores,
ambos com poder econômico de mercado, que adotam entre si comportamentos paralelos em
relação aos preços44 45, na medida em que "não há incentivo para que qualquer dos membros
41 SILVA, op. cit., p. 26-27. 42 SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 192-193. 43 BRUNA, op. cit., p. 35. 44 Autores como SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 128-129, citando V. R. BORK, afirmam que os dados concretos também não demonstram que o comportamento paralelo em indústrias oligopolizadas seja a regra, existindo muitos exemplos de alto grau de competição entre firmas com elevado participação no mercado. Isto seria a prova de que cada empresa age independentemente e que, portanto, o alto grau de participação de cada uma seria poderoso fator de relativização do poder de mercado das demais. 45 Entre as condutas paralelas mais comuns, identifica-se a liderança de preços, hipótese em que um dos oligopolistas toma a iniciativa de aumentar os preços, que logo é seguida pelos demais. Este mecanismo possui, entre outros objetivos, o de manter estáveis participações de mercado para cada concorrente. (GOMES, op. cit., p. 127).
67
reduza seus preços, pois sabe que seu comportamento será prontamente acompanhado pelos
outros participantes do mercado"46. Desta forma, a tendência do mercado oligopolista é
ocorrência de um aumento paralelo e progressivo de preços47.
Os produtos na estrutura de oligopólio são razoavelmente homogêneos, dado o
alto grau de similaridade ou mesmo de identidade existente entre eles48, praticamente
inexistindo concorrência direta entre os produtores49, que contam com participação estável no
mercado, cada um no seu nicho de mercado. Neste sentido é o entendimento de Carlos
Jacques Vieira Gomes50:
Nesse sentido, afirma-se que no oligopólio não há concorrência de preços (concorrência direta). Os vendedores oligopolistas concorrem de forma indireta, por intermédio de diminuições disfarçadas de preços (melhora na qualidade dos produtos, novas condições de pagamento, serviços de entrega, etc.), de promoção de vendas e de propaganda.
Por esta razão, é comum dizer que os agentes econômicos no mercado
oligopolizado atuam em uma situação de interdependência: a melhor decisão por parte de um
produtor (quanto ao preço ou quantidade, por exemplo) depende de quais são as decisões
tomadas pelos seus concorrentes. Essa interdependência gera dificuldades na aplicação de
normas relativas à conduta das empresas e constitui, hoje em dia, um dos elementos centrais
na apreciação prévia de operações de concentração de empresas51.
3.2.4. CONCORRÊNCIA MONOPOLÍSTICA
A teoria da concorrência monopolística foi abordada pela primeira vez por
Edward H. Chamberlin, como tese de doutoramento na Universidade de Harvard. Para
46 TURNER, V.D. apud SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 127. 47 Para SALOMÃO FILHO o mero comportamento paralelo dos agentes econômicos não é suficiente para a caracterização da estrutura oligopolista e, portanto, prejudicial à concorrência, sendo preciso que tal comportamento seja paralelo e intencional (no sentido de não acidental). “Existem vários tipos de ações que podem caracterizar o comportamento paralelo. A movimentação paralela de preços, a formação comum de estoque ou, ainda, a manutenção da participação relativa no mercado (exclusivamente entre os oligopolistas, não necessariamente em relação a terceiros concorrentes no mercado), são todos eles exemplos clássicos de comportamento paralelo. Esse tipo de atuação não é, no entanto, nem suficiente nem necessário para caracterizar o oligopólio. Ele só evidencia o comportamento paralelo. Não é possível ter certeza se esse comportamento é intencional, visando eliminar a concorrência interna ou se consiste apenas em um comportamento determinado (a) pelas circunstâncias do momento ou (b) pela racionalidade de agentes que atuam como verdadeiros concorrentes”. (SALOMÃO FILHO, op. cit, p. 127). 48 Conforme a “substituibilidade” perfeita ou imperfeita dos produtos, o oligopólio é considerado perfeito ou diferenciado (SPÍNOLA, Moacyr Roberto apud VAZ, op. cit., p.36). 49 Ocorre sim a chamada “concorrência não de preços” (non price competition), ou concorrência pela qualidade, que se faz presente não apenas nos mercados oligopolísticos, mas nos mercados de produtos diferenciados em geral, onde ocorra a já abordada concorrência monopolística, que permita aos concorrentes não só efetuar “ajustes de preços”, mas também realizar os chamados “ajustes de produto”. (BRUNA, op. cit., p. 52). 50 GOMES, op. cit., p. 127. 51 SILVA, op. cit., p. 22.
68
Chamberlin, no mercado em concorrência monopolística52, os vendedores ou ofertantes no
mercado são ao mesmo tempo monopolistas e concorrentes, na medida em que há uma
similaridade e não identidade dos produtos no mercado.
Essa diferenciação dos produtos no mercado em concorrência monopolística (em
razão da marca, modo de confecção, qualidades, etc.) cria a favor de cada empresa uma zona
de monopólio, no sentido de que o vendedor goza de um mercado particular, com uma curva
de procura própria, de elasticidade finita, variável em função do grau de diferenciação
inerente a cada bem, mercadoria ou serviço ofertado no mercado do produto. O produtor pode
agir dentro desse mercado como um monopolista; mas não como um monopolista absoluto,
pois depara com a possibilidade de substituição da mercadoria ou serviço, que oferece por
produtos ou serviços similares53.
E o produtor será mais monopolista quanto maior for o grau de diferenciação do
produto, e quanto menor for o número de concorrentes no mercado. Quando a diferenciação
do produto faz-se presente, o mercado afasta-se do modelo de concorrência pura e vai-se
aproximando do modelo de monopólio, segundo o maior ou menor grau de diferenciação54.
Diferentemente do mercado em concorrência pura em que há a homogeneidade
dos produtos e, via de consequência, a unicidade do mercado para todos os concorrentes, no
modelo de concorrência monopolística, ocorre o isolamento dos mercados de cada um dos
competidores, já que os produtos não são idênticos uns aos outros, mas apenas similares,
todavia, correlacionados entre si.
Neste tipo de mercado, a competição entre os concorrentes leva em consideração
não mais apenas o valor do produto ofertado, definido pelo mercado, mas também outras
variáveis, tais como as variações na natureza do produto, bem como os gastos com
publicidade na divulgação dos mesmos. Por inexistir neste modelo a identidade dos produtos,
como na concorrência perfeita, os custos com a publicidade e venda dos produtos devem ser
considerados na formação dos preços, já que somente assim o competidor será capaz de
diferenciar o seu produto em relação aos de seus concorrentes.
52 Não se abordará na presente dissertação a discussão acadêmica existente na doutrina acerca da conceituação de concorrência monopolística ou concorrência imperfeita, já que tal discussão foge ao escopo do trabalho. 53 VAZ, op. cit., p. 32. 54 BRUNA, op. cit., p. 38.
69
3.2.5. CONCORRÊNCIA PRATICÁVEL (WORKABLE COMPETITION)
Delineados os contornos dos modelos teóricos de mercado adotados pela teoria
econômica, cumpre apontar qual o limite concorrencial normalmente protegido pelas
legislações antitrustes55, considerando-se que, dadas as constantes imperfeições do mercado, o
modelo da concorrência perfeita se mostrou utópico e de quase impossível aplicabilidade na
prática.
Seguindo a linha evolutiva da regulamentação antitruste norte-americana, desde a
publicação do Sherman Act, passando pelo Clayton Act até a organização da Federal Trade
Commission, Isabel Vaz56 nos ensina que:
Analisado o fenômeno da concorrência em seus aspectos econômicos, admitidas a ineficácia e a insuficiência de certas formas repressivas, e a impossibilidade da implantação dos modelos teóricos, passam a sociedade e os poderes públicos a aceitar as suas próprias limitações, abandonando a utopia de implantar uma concorrência perfeita e a racionalizar em termos de um valor possível de ser buscado, institucionalizado e protegido pelo direito.
Neste cenário, surge através de John Maurice Clark57, a expressão workable
competition, ou concorrência praticável ou concorrência viável58. O pensamento de Clark, que
inspirou e deu origem à chamada Escola de Harvard, sustentava que deveriam ser evitadas as
excessivas concentrações de poder de mercado, que gerariam disfunções prejudiciais ao
próprio fluxo das relações econômicas, de forma a se alcançar o modelo de workable
competition 59.
Para a escola de Harvard, consoante nos ensina Sérgio Varella Bruna, citando dois
de seus integrantes, Phillip Areeda e Lois Kaplow60, três elementos devem ser levados em
consideração para se verificar se o nível de concorrência em determinado mercado se encontra
55 Conjunto de regras e instituições destinadas a apurar e a reprimir as diferentes formas de abuso de poder econômico e a promover a defesa da livre concorrência. (VAZ, op. cit., p. 243). Técnica de que lança mão o Estado contemporâneo para implementação de políticas públicas, mediante a repressão ao abuso do poder econômico e a tutela da livre concorrência. (FORGIONI, op. cit., p. 81-82). 56 VAZ, op. cit., p. 99. 57 CLARK, J. Maurice apud GALÁN, op. cit., p. 37, nota 31. 58 Para GALÁN (op. cit., p. 37), a expressão workable competition é sinônima das expressões concorrência imperfeita ou concorrência monopolística: “El término competencia ha sido uno de los más adjetivados por los economistas: MACHLUP (La concorrenza ed il monopolio, cit. p. 77) recoge hasta cuarenta y dos adjetivos calificados de la competencia. Nosotros utilizamos aquí las expresiones de competencia imperfecta y monopolística como sinónimas para referirnos a una configuración del mercado en el que coexisten la libertad de de competencia – como formulación de principio básico y ciertos poderes monopolísticos caracterizados por los rasgos socioeconómicos que se analizan a continuación en el texto y notas siguientes. Como términos sinónimos a los de competencia imperfecta y monopolística se utilizan también otros, tales como competencia practicable o efectiva (workable competition, acuñado por CLARK (Towards a concept of workable competition. The American Economic Review, vol. XXX, 1940), operativa ou suficientemente eficaz (funktionsfähiger
Wettbewerb, en expresión del economista alemán KANTZENBACH, Die Funktionsfähigkeit des Wettbewerbs, en Wirtschaftspolitische Studien, Heft, 1, Göttingen, 1966)." 59 Cujos principais precursores, segundo Paula A. FORGIONI (op. cit., p. 156), foram Areeda, Turner, Sullivan e Blake. 60 BRUNA, op. cit., p. 64-65, notas 83 e 84.
70
dentro do nível de concorrência viável: primeiro, a conduta dos concorrentes, que pressupõe a
atuação independente no mercado, sem qualquer tipo de acordo entre os concorrentes,
ensejando uma luta leal entre os competidores; segundo, a sua performance ou o desempenho,
que, dentre outros fatores pode ser caracterizada por uma lucratividade dentro de um nível
normal do retorno de investimentos61, utilização de uma escala ótima de produção, custos de
venda reduzidos, mudanças técnicas e redução de custos dos produtos visando torná-lo mais
atraente ao consumidor.
Obviamente, tais fatores devem ser analisados de acordo com o caso concreto,
pois podem existir situações em que determinado agente econômico, embora não preencha um
dos requisitos acima apontados, não afronta a chamada concorrência praticável, como por
exemplo, na hipótese de lucratividade acima do nível normal em face da sua maior capacidade
administrativa.
Por derradeiro, a análise estrutural do mercado é também um elemento de
medição do nível de concorrência viável em determinado mercado, para os defensores da
escola de Harvard, que pode ser medida através do número de concorrentes no mercado, bem
como a magnitude das barreiras à entrada de novos competidores.
O modelo de concorrência proposto pelos doutrinadores de Harvard tinha a
concorrência como um fim em si mesma, de sorte que quanto mais agentes no mercado,
quanto mais pulverizado esse fosse, melhor, razão pela qual deveriam ser evitadas as
excessivas concentrações de poder no mercado, que acabam por gerar disfunções prejudiciais
ao próprio fluxo das relações econômicas.
Contestando a definição de concorrência praticável desenvolvida pela Escola de
Harvard, surge no final da década de 80, a chamada Escola de Chicago que tem como
principais expoentes Ronald Coase, Judy Bowman, June Baldwin Bork, Richard Posner,
dentre outros. As concentrações (e o poder econômico que delas deriva) passam a não ser
mais vistas como um mal a ser evitado, os acordos verticais passam a ser explicados em
termos de eficiência e ganho para os consumidores62. Surge então o conceito de eficiência
alocativa de mercado63 ou eficiência econômica.
Cabe trazer à baila a definição doutrinária do termo eficiência, que segundo Paulo
Caliendo64, é utilizado para significar a realização de determinados processos, com a
61 No caso brasileiro, tanto a Carta Magna, como a Lei nº 8.884/94 proíbem o aumento arbitrário dos lucros, o que será melhor tratado no item 3.3.1. 62 FORGIONI, op. cit., p. 160. 63 HOVENKAMP, Herbert e MARKOVITS, Richard apud FORGIONI, op. cit., p. 160. 64 CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e a Análise Econômica do Direito: Uma Visão Crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 70.
71
maximização de resultados pela menor utilização dos meios, o que, no cenário econômico,
significa a maximização de determinados bens eleitos como sendo de significativa
importância.
Neste contexto, papel da legislação antitruste, para os defensores da Escola de
Chicago, seria apenas o de garantir que essa máxima eficiência econômica fosse alcançada, de
acordo exclusivamente com os conceitos provenientes da ciência econômica, o que foi
contestado por parte da doutrina65, que passou a identificar três principais razoes da Lei
Antitruste: (i) razões de ordem natural tendo em vista as disposições de caráter penal do
Sherman Act; (ii) bem-estar do consumidor (relacionado à eficiência econômica); e (iii) forma
de preservação do contexto competitivo.
Trazendo a questão para o campo do direito, infere-se que o cerne da discussão
acima passa obrigatoriamente pela visão do intérprete acerca dos conceitos de eficiência e
justiça, bem como da existência ou não de critérios de conexões entre ambas. Caliendo,
citando a doutrina do Professor Emérito da PUC/RJ, Alejandro Bugallo Alvarez, e do
Professor Espanhol, Albert Casamiglia66, aponta quatro visões acerca do entendimento sobre a
justiça e eficiência: i) autonomia; ii) primado; iii) contradição e iv) conexão.
Para a primeira teoria, tratam-se eficiência e justiça de conceitos absolutamente
distintos, sendo a racionalidade jurídica fundada na justiça e a racionalidade econômica
dirigida pela idéia de eficiência. A segunda posição, parte do entendimento de que a justiça
pode ser explicada pela eficiência e vice-versa.
A terceira posição, defendida pelo jurista espanhol, considera existir uma
contradição entre justiça e eficiência, na medida em que quando a distribuição fosse
equitativa, a eficiência seria prejudicada, e quando o sistema privilegiasse a eficiência poderia
conduzir a resultados injustos.
Por fim, a posição defendida por Alvarez, diz existir uma conexão entre eficiência
e justiça em pelo menos cinco sentidos:
1º) uma sociedade justa é uma sociedade eficiente; 2º) uma sociedade justa e equitativa dificilmente será uma sociedade que desperdiça, não utiliza ou sub-utiliza recursos; 3º) a eficiência é um componente da justiça, embora não seja nem o único, nem o principal critério de justiça; 4º) a eficiência, entendida como processo de maximização de riqueza social, exige intervenções regulatórias, corretivas ou estratégicas do Estado no mercado e; 5º) existe uma utilidade em observar se os mecanismos jurídicos de controle são eficientes na produção de riqueza social.
65 CHAPMAN, Dudley H. apud FORGIONI, op. cit., p. 163-164, nota 36. 66 ALVAREZ, Alejandro Bugallo apud CALIENDO, op. cit., p. 75-76.
72
Parece-nos ser esta a visão mais acertada, qual seja, da conexão entre eficiência
econômica e justiça social, justamente o que deve ser buscado pelas legislações antitruste, na
medida em que limitar o seu papel unicamente à proteção dos efeitos econômicos do mercado
nos afigura bastante simplista, mormente pelo fato de que as principais legislações mundiais
estabelecem outros princípios informadores da Ordem Econômica, como os interesses
coletivos e sociais, que também devem ser objeto de guarida pelas legislações antitruste.
3.3. OS INTERESSES PROTEGIDOS PELA LEGISLAÇÃO CONCORRENCIAL
BRASILEIRA
Após a análise da evolução da doutrina econômica concorrencial, importante
delinear qual o contorno de concorrência praticável foi imposto pela legislação antitruste
brasileira.
Tanto os pensamentos da Escola de Harvard de que a concorrência seria um fim
em si mesma, como da Escola de Chicago de que a eficiência alocativa do mercado deve ser o
único objeto de proteção das leis antitrustes, não tiveram muita aceitabilidade pelo legislador
nacional, que nos pareceu imbuído de uma visão de conexão entre os critérios de eficiência e
justiça acima expostos.
Passaremos agora a elencar quais os principais escopos da legislação antitruste,
ou, nos dizeres de Paula A. Forgioni, o jogo dos interesses protegidos67 pela legislação
antitruste, quais sejam, a proteção da livre iniciativa e da livre concorrência, a repressão ao
abuso do poder econômico e a tutela do consumidor.
3.3.1. LIVRE INICIATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA
Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência estão previstos no texto
Constitucional nos artigos 1º, inciso IV68 e 170, caput e inciso IV69 da Constituição da
67 A festejada autora prefere elencar o que ela chama de “jogo do interesse protegido”, como uma das “válvulas de escape” que deve permear o processo de interpretação das normas de proteção da concorrência: “De certa forma poder-se-ia dizer que a questão do interesse protegido se identifica com os escopos da legislação antitruste. Entretanto, preferimos considerar os escopos da legislação antitruste como determinante dos interesses a serem protegidos, dividindo a matéria, consequentemente, em dois capítulos diversos. Dessa forma, o jogo do interesse protegido é encarado como uma das válvulas de escape da legislação antitruste que permite a atuação de políticas públicas (incluindo, portanto, a escolha sobre o escopo da norma)”. (FORGIONI, op. cit., p. 221, nota 118). 68"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)
73
República de 1988, sendo o primeiro um princípio político constitucionalmente conformador,
e o último um princípio constitucionalmente impositivo70.
O princípio da livre iniciativa, como um dos desdobramentos da liberdade, tem
como uma de suas principais facetas a liberdade de iniciativa econômica71, que pode ser
classificada sob dois aspectos: (i) enquanto liberdade de comércio e indústria e enquanto
liberdade de concorrência; ou (ii) enquanto liberdade pública ou liberdade privada. Mesclando
os dois critérios de classificação, o ex-Ministro Eros Grau72, elabora o seguinte quadro
esquemático:
a) liberdade de comércio e indústria (não ingerência do Estado no domínio econômico): a.1) faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado – liberdade pública; a.2) não sujeição a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei – liberdade pública; b) liberdade de concorrência: b.1) faculdade de conquistar a clientela, desde que não através de concorrência desleal – liberdade privada; b.2) proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência – liberdade privada; b.3) neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes – liberdade pública.
Limitando a classificação acima aos objetivos do presente trabalho, verifica-se
que o princípio da liberdade de iniciativa garante aos agentes econômicos o livre acesso ao
mercado concorrencial, independente de qualquer permissão estatal. Neste sentido é o
magistério de Celso Ribeiro de Bastos73:
A livre iniciativa é uma manifestação, no campo econômico, da doutrina favorável à liberdade: o liberalismo. Este tem por objeto o pleno desfrute da igualdade e das liberdades individuais frente ao Estado. Assim sendo, a livre iniciativa consagra a liberdade de lançar-se à atividade econômica sem se deparar com as restrições impostas pelo Estado (...). O princípio da livre iniciativa junto com o da valorização do trabalho humano fundamentam a ordem econômica e financeira; ambos constituem valores fundamentais da mesma (arts. 170 e s. da CF).
Obviamente esta liberdade não é absoluta, figurando como exceção a contida no
art. 170, parágrafo único, da CF/8874, que deve ser interpretada sistematicamente com os
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (...)" 69"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IV - livre concorrência; (...)" 70 Conforme o entendimento do Ex-Ministro Eros Grau, citando Canotilho. (GRAU, op. cit., p. 235). 71 Embora se reconheça como entende o Ex-Ministro Eros Grau, que a livre iniciativa não pode ser reduzida, meramente, à feição de liberdade econômica empresarial, mas também como liberdade de trabalho, como valor social garantido pelo Texto Constitucional (GRAU, p. 249), para fins da presente dissertação adotar-se-á o conceito de liberdade de iniciativa, como liberdade econômica empresarial, por mais relevante ao escopo do presente trabalho. 72 Idem, ibdem, p. 239-40. 73 BASTOS, Celso Ribeiro de. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 449. 74 "Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei."
74
incisos e caput do aludido artigo, i.e., dependem de autorização o exercício de atividades em
que haja ou possa haver: a) concentração de empresas com prejuízos à concorrência e aos
direitos do consumidor; b) riscos ao meio ambiente (v.g., nucleares); c) que não vise à busca
do pleno emprego, etc.
O principal corolário do princípio da livre iniciativa é o princípio da livre
concorrência75, que garante aos agentes econômicos a livre entrada e permanência nos
mercados. Ocorre que a livre concorrência, para o legislador constituinte brasileiro, não se
afigura, diferentemente do que entendiam os defensores da Escola de Harvard, como um fim
em si mesma.
Isto porque a Constituição da República de 1988 atribuiu um caráter meramente
instrumental à proteção da concorrência como forma de assegurar a todos uma existência
digna, conforme os ditames da justiça social76. Este é o preceito estabelecido no caput do
artigo 170, que abre o capítulo I, do Título VII da Carta Magna:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IV - livre concorrência; (...)
Neste sentido, qual seja, que o valor da concorrência não é um fim em si mesmo,
mas sim um meio apto a fazer valer diversos outros princípios constitucionais, a doutrina
espanhola define a “libertad de competencia”, também resguardada pela Constituição
Espanhola. Confira-se o magistério de Juan Ignácio Font Galán77, professor catedrático da
Universidade de Sevilha:
En realidad, la libertad de competencia se concibe y ordena em la LPRC como estructura de organización y funcionamiento del (sistema de) mercado y las empresas con vistas a alcanzar la realización de otros valores normativos superiores e indeclinables consagrados como fines de la Ley en el programa de objetivos socioeconômicos de ésta. Su virtualidad jurídica es, pues, solo instrumental o funcional, primordialmente respecto a la preservación y realización Del valor ordinamental superior y paradigmático de competencia socioeconómicamente eficiente o productiva.
75 Eros Grau diferencia livre concorrência de liberdade de concorrência e, por esta razão, questiona a atribuição do status de princípio constitucional à livre concorrência, porque a mesma somente teria lugar em um cenário nas quais não estivesse presente o poder econômico, o que não é o caso da Constituição de 1988, que proíbe no artigo 173, §4º, o seu abuso, logo, reconhecendo a sua existência. GRAU, op.cit., p. 244. 76 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.094-8-DF. Tribunal Pleno, Relator Ministro Carlos Velloso, julgamento 21 set 1995. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/ paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346819. Acesso em: 28/11/2010. Segundo voto do Ministro Carlos Velloso: “(...) esclareça-se que a ordem econômica, segundo o modelo constitucional brasileiro, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por finalidade assegurar a todos existência digna, no rumo da justiça social, objetivos que deverão ser atingidos mediante a observância dos princípios enumerados nos incisos I a IX do art. 170 da Constituição”. 77 GALÁN, op.cit., p. 283.
75
Consoante muito bem ressaltado pelo Ministro Cezar Peluso78, relator do acórdão
proferido na Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1657/RJ, a defesa da livre concorrência é
imperativo de ordem constitucional que deve harmonizar-se com o princípio da livre
iniciativa, embora a livre iniciativa e a livre concorrência no chamado livre mercado não se
coincidam, ou seja, a livre concorrência nem sempre conduz à livre iniciativa e vice-versa. O
papel do Estado é justamente regular e fiscalizar a atividade econômica, de modo a disciplinar
a competitividade enquanto fator relevante na formação dos preços.
De fato, a defesa da concorrência, para o legislador constituinte de 1998, é vista
não apenas em sua função de eliminação dos efeitos auto-destrutíveis do mercado, mas como
instrumento de que dispõe o Estado para conduzir a ordem econômica, razão pela qual a
consagração da livre iniciativa e da livre concorrência não exclui a atuação do Estado no
domínio econômico, seja exercendo sua função de agente normativo e regulador da atividade
econômica (CF, art. 174), seja atuando com vistas à preservação da própria livre concorrência,
como agente repressor dos abusos do poder econômico79 80.
Segundo entendimento de Shiber81, concorrência ou competição no campo
econômico consiste na luta entre diversas empresas para conseguir maior penetração no
mercado, quando se fala de vendedores, ou uma maior ou melhor parte da oferta, quando se
fala de compradores.
Visando a proteção e regulamentação desta competição entre compradores e
vendedores é que surgem as legislações antitrustes, presentes em vários países do mundo. A
doutrina aponta duas razões específicas para a adoção desta política em prol da
concorrência82: uma de natureza econômica e uma de natureza político-social, sendo que a
78 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1657-RJ. Tribunal Pleno, Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Relator para Acórdão: Ministro Cezar Peluso, julgamento 27 jun 2007. Publicação 31 ago 2007, DJ, p. 28. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%281657%2ENUME%2E+OU +1657%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 02/04/2011. 79 BRUNA, op. cit., p. 136. 80 As diferentes formas de atuação estatal serão tratadas especificamente no item 3.4. 81 SHIBER, Benjamin M. Abusos do Poder Econômico: Direito e experiência antitruste no Brasil e nos E.U.A. São Paulo: RT, 1966, p. 61. 82 Embora não concorde com tais entendimentos, já que a nosso ver a concorrência é sempre vantajosa ao consumidor, garantindo produtos mais eficientes e acessíveis, sendo importante o papel estatal na disciplina e regulação dos agentes econômicos, não se desconhece que existem autores, como o professor Marques Guedes, citado por SHIBER, que apresenta os seguintes inconvenientes da concorrência: 1º. A concorrência exige um perfeito conhecimento do mercado, que é impossível obter. E, sem esse conhecimento, ela provoca frequentemente prejuízos e ruínas. 2º. A concorrência, em vez de assegurar a seleção dos melhores, incita a fraude, assegurando o triunfo dos mais astutos e menos escrupulosos. 3º A concorrência pressupõe igualdade de condições de luta, o que nunca existe. Garante o privilégio dos mais ricos ou melhor apetrechados. 4º. A luta das pequenas e grandes empresas termina sempre pela vitória das segundas, reduzindo cada vez mais o número das pequenas indústrias independentes: reduzindo sucessivamente o número de patrões, opera a concentração capitalista. 5º. A concorrência nem sempre garante o melhor preço, antes provoca por vezes a sua elevação. 6º. A concorrência perturba, frequentemente, o equilíbrio entre produção e consumo. Para conseguir o menor custo da produção, provoca-se a hiperprodução, a produção maciça. A grande extensão dos mercados mundiais dificulta a previsão do consumo para, por ele, graduar a produção. 7º. A concorrência determina uma dissipação enorme de capitais e de trabalho. Basta lembrar as formidáveis despesas de reclamo e da publicidade. (SHIBER, op. cit., p. 66).
76
primeira, considera a concorrência a melhor forma, no regime capitalista, de conseguir preços
que reflitam o custo industrial, amplitude da produção e a inovação de produtos e tecnologia.
Já o fundamento político social considera a política antitruste como instrumento fundamental
na limitação do poder do particular sobre o campo econômico e, via de consequência, sobre o
Estado e outros membros da coletividade.
Vê-se, pois, no que se refere ao direito da concorrência, que a livre iniciativa,
contextualizada à sua função social, poderá ser tutelada pelas normas antitruste, por meio do
controle abusivo da iniciativa alheia, ou seja, do detentor do poder econômico83, que impeça o
livre exercício da iniciativa econômica por terceiro.
Neste contexto, vigora atualmente no Brasil a Lei nº 8.884, de 11 de junho de
1994, cujo artigo 1º garante a proteção e a prevenção da coletividade contra as infrações à
ordem econômica, de forma a garantir os já citados princípios constitucionais da liberdade de
iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores, bem
como evitar abusos decorrentes do Poder Econômico. Confira-se:
Art. 1º Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. Parágrafo único. A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei.
Note-se que o artigo 20 da mencionada Lei tipifica, de forma objetiva, os tipos de
infração da ordem econômica, que levam em consideração não a estrutura ou a característica
do ato, mas o seu objetivo, o seu efeito concreto, independente da intenção do agente. São
considerados contrários à ordem econômica e, portanto, puníveis pelos órgãos de defesa da
concorrência84, os atos relacionados no mencionado artigo. Confira-se:
Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; IV - exercer de forma abusiva posição dominante.
83 Embora Paula A. Forgioni seja categórica ao afirmar que qualquer ato praticado por um agente econômico, individualmente, ainda que não seja detentor de posição dominante no mercado, poderá ser considerado ilícito se, de algum modo, prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa em prática dissociada de sua vantagem competitiva. FORGIONI, op. cit., p. 231-232. 84 O chamado Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência é um conjunto de órgãos estatais responsáveis pelo controle da atuação dos agentes econômicos e pela repressão ao abuso do poder econômico, e é composto pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), cujas funções estão discriminadas, respectivamente, nos artigos 7º e 14 da Lei nº 8.884/94 e art. 27 do Decreto Federal nº 7.301/10.
77
Delinearemos no tópico seguinte os conceitos de mercado relevante, abuso de
posição dominante, bem como aumento arbitrário dos lucros, de forma a melhor entender as
condutas previstas pelo legislador antitruste como ofensivas à concorrência.
3.3.2. O DOMÍNIO DE MERCADO, O ABUSO DE POSIÇÃO DOMINANTE E O AUMENTO
ARBITRÁRIO DE LUCROS
Diversos são os conceitos trazidos pela doutrina: de mercado relevante de bens e
serviços, posição dominante em dado mercado relevante, poder de mercado e abuso de poder
dominante. Por não ser objeto do presente trabalho o aprofundamento da discussão conceitual,
sendo este capítulo necessário apenas para se fazer uma breve exposição da questão
concorrencial, com vistas a comprovar que a atuação estatal, quando da concessão de
benefícios fiscais irregulares, ao invés de regular ou regulamentar o mercado, acaba por
provocar enormes distorções na concorrência, delinearemos apenas alguns conceitos
apresentados pelo direito econômico.
Os primeiros conceitos que devem ser trazidos à baila são os de mercado relevante
e de posição dominante, eis que absolutamente necessários para a compreensão do conceito
do abuso de poder econômico, protegido pela legislação antitruste.
Segundo Paula Forgioni85, o mercado relevante é aquele onde se travam as
relações de concorrência ou atua o agente econômico cujo comportamento esta sendo
analisado. Em todo processo de verificação da existência, ou não, de poder dominante ou do
abuso de poder dominante, necessário se faz que seja delimitado, no caso concreto, qual o
mercado em que determinado concorrente atua.
Os critérios para definição do mercado relevante, segundo a doutrina, são os
seguintes: (i) critério geográfico, pelo qual se identifica determinado mercado pela área onde
se trava a concorrência em relação à prática que está sendo considerada como restritiva e (ii)
critério material, através do qual é utilizado o critério do produto (ou sua substituibilidade no
mercado) para determinar se os mesmos pertencem ao mesmo mercado relevante. Há, ainda,
doutrinadores como Calixto Salomão Filho86, para quem se acrescentaria um terceiro critério,
qual seja, o critério temporal87.
85 FORGIONI, op. cit., p. 200. 86 SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 90. 87 O autor equipara a perspectiva temporal do mercado relevante à presença de barreiras para a entrada no mercado. Aliás, tal conduta está prevista de forma expressa no inciso IV, do artigo 21, da Lei nº 8.884/94 como uma das hipóteses de configuração de infração à ordem econômica. "Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem
78
Vê-se que o critério geográfico está diretamente relacionado com a área física em
que são realizadas as práticas concorrenciais entre os agentes econômicos88, quer a nível,
local, regional, nacional ou mesmo internacional.
Para Varella Bruna89, a dimensão geográfica do mercado relevante está
intimamente ligada aos custos de transporte e distribuição. Citando Hovenkamp, Bruna afirma
que o mercado geograficamente relevante é aquele em que uma empresa detentora de poder
econômico seja capaz de aumentar seus preços sem que: 1) seus clientes passem
imediatamente a se abastecer de produtos semelhantes em fontes de suprimento situadas em
outras localidades; e sem que 2) empresas concorrentes, sediadas em outras localidades
geográficas, redirecionem sua produção para a localidade em apreço, a fim de aí oferecerem
seus produtos sucedâneos90.
Já segundo o mercado relevante material, também conhecido como mercado do
produto, o critério a ser considerado é o grau de semelhança dos produtos em que há a disputa
concorrencial, ou nos dizeres de Paula Forgioni91, deve-se identificar a necessidade do
consumidor satisfeita pelo produto que está sendo considerado, para verificar se ele está
normalmente disposto a substituí-lo por outros, sendo, pois, a fungibilidade ou a
intercambialidade dos produtos para o consumidor é que definirá se determinados produtos
integrem mercado relevante material idêntico.
Definido o mercado relevante, cumpre trazer o que é considerado posição
dominante em determinado mercado. Detém a posição dominante em determinado mercado
relevante, o agente econômico que detenha o poder econômico do mercado, assim entendido
como a capacidade de determinar comportamentos econômicos alheios, em condições
diversas daquilo que decorreria do sistema de mercado, se nele vigorasse um sistema
concorrencial puro92. Tal capacidade de determinação do comportamento da concorrência,
embora não unicamente, se dá através da capacidade de controle de preços do mercado.
hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica; (...) IV - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado." 88 SHIBER já nos ensinava de longa data, citando a experiência norte-americana, que o mercado relevante pode ser menor que o nacional, sendo um dos critérios de definição do mercado relevante, justamente a delimitação geográfica do mercado. (op. cit., p. 45). 89 BRUNA, op. cit., p. 94. 90 Baseado neste critério, qual seja, baixo custo de transportes e inexistência de barreiras à entrada, é que o CADE decidiu no processo nº 08012.006027/2001-78, Hewlett Packard Company v. Indigo NV, em que se discutiu o acordo de compra de ações (Offer Agreement - Contrato) entre as requerentes, através do qual a HP passaria a ser a única controladora da Indigo, em que se discutiu como mercado geográfico o mundial: “A dimensão geográfica é a mundial, devido à facilidade dos consumidores localizados no Brasil em adquirir produtos no mercado internacional. Neste mercado há preços competitivos decorrentes dos baixos custos de transporte e da inexistência às barreiras de entrada” (voto do Conselheiro Ronaldo Porto Macedo Júnior, j. 08/05/2002). 91 FORGIONI, op. cit., p. 207. 92 BRUNA, op. cit., p. 104-105.
79
Desde logo, cabe diferenciar os conceitos de poder de mercado e posição
dominante, que se afiguram distintos. Segundo Salomão Filho93, um determinado agente
econômico pode deter grande participação em determinado mercado relevante sem, contudo,
exercer uma posição dominante, já que não detém qualquer poder de aumentar os preços do
mercado. A posição dominante corresponderia ao atributo daquele que possui poder de
mercado em intensidade substancial, de forma que consiga, em conduta unilateral e
independente, aumentar o preço do seu produto acima do nível competitivo, por um
significante espaço de tempo94.
Cumpre salientar que tal diferenciação foi reconhecida pela Corte de Justiça
Européia, quando do julgamento do caso United Brands Co. and United Brands Continental
BV v Commission95, que aplicando o artigo 82 do Tratado da União Européia firmado em
Roma, que definiu os termos “dominance” e “market power” como sendo:
The dominant position thus referred to [by article 82] relates to a position of economic strength enjoyed by an undertaking which enables it to prevent effective competition being maintained on the relevant market by affording it the power to behave to an appreciable extent independently of its competitors, customers and ultimately or its consumers. An undertaking is unlikely to be dominant if it does not have substantial market power96. Market power describes a situation where the constraints which would usually ensure that an undertaking behaves in a competitive manner are not working effectively. As a matter convenience, however, this guideline usually refers to a market power as the ability to raise prices consistently and profitably above competitive levels.97
A legislação antitruste brasileira não se preocupou em proteger os atos que levem a
uma conquista de poder de mercado por parte de determinado agente econômico, senão
quando esse poder de mercado leve à obtenção de uma posição dominante. Além de definir as
hipóteses em que se considera configurada a posição dominante, a lei brasileira estabeleceu a
presunção posição dominante para qualquer agente econômico que possua vinte por cento de
determinado mercado relevante, submetendo os atos praticados por tais agentes ao controle do
CADE98.
93 SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 78. 94 GOMES, op. cit., p. 137-138. 95 Case 27/76 United Brands Co. and United Brands Continental BV v commission [1978] ECR 207; [1978] 1 C.M.L.R. 429. apud BISHOP, Simon; WALTER, Mike. The Economics of EC Competition Law. Great Britain: Sweet & Maxwell Ltd, 2002, p. 182. 96 Guideline on the Competition Act 1998 the UK OFT, apud BISHOP; WALTER, op. cit., p. 184. 97 Ibid, p. 184. 98 BRASIL, 11 de junho de 1998. "Art. 20. (...)
80
Importante salientar que a legislação antitruste brasileira não proíbe o exercício de
posição dominante por determinado agente econômico, tanto que o §1º, do artigo 20 da Lei nº
8.884/94 exclui a ilicitude prevista no item II do caput, quando a conquista do mercado se dê
em virtude da maior eficiência econômica de determinado competidor. Confira-se o teor do
mencionado dispositivo legal:
§ 1º A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II.
O que a lei nacional veda é a o abuso deste direito de exercer a posição de domínio, ou
seja, nos precisos dizeres de Sérgio Varella Bruna,99
o exercício, por parte do titular de posição dominante, de atividade empresarial contrariamente à sua função social, de forma a proporcionar-lhe, mediante restrição à liberdade de iniciativa e à livre concorrência, apropriação (efetiva ou potencial) de parcela da renda social superior àquela que lhe caberia em regime de normalidade concorrencial, não sendo abusiva a restrição quando ela se justifique por razões de eficiência econômica, não tendo sido exercidos os meios estritamente necessários à obtenção de tal eficiência, e quando a prática não representa indevida violação de outros valores maiores (econômicos ou não) da ordem jurídica.
Adite-se que o próprio texto da Constituição da República não só como reconhece,
como valida o exercício do poder econômico, manifestado no exercício de posição dominante
em determinado mercado relevante. O que o legislador constituinte veda é justamente este
abuso por parte do detentor do poder econômico, consoante disposto no §4º, do art. 173:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (...)
§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
A vedação deste abuso também é reconhecida pela legislação comunitária européia100:
[I]n prohibiting any abuse of a dominant position on the market in so far as it may affect trade between Member States, Article 82 covers practices which are likely to affect the structure of a market where, as a direct result of the presence of the undertaking in question, competition has been weakened and which, through recourse different from those governing normal competition in products or services based on trader’s performance, have the effect of hindering the maintenance or development of the level of competition still existing on the market.
§ 2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa. § 3º A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) de mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo CADE para setores específicos da economia. (Redação dada pela Lei nº 9.069, de 29.6.95)."
"Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE." 99 BRUNA, op. cit., p. 177-178. 100 Case 322/81 [1983] ECR 3461; [1981] 1 C.M.L.R. 282, apud BISHOP; WALTER, op. cit., p. 186.
81
Vê-se, pois, que não é em todas as hipóteses em que ocorra o exercício de posição
dominante no mercado, há efetiva restrição à livre iniciativa ou livre concorrência,
configurando-se restrição concorrencial somente nos casos em que resta configurado o abuso
ao exercício de tal direito, sendo pertinente o entendimento de Paula Forgioni101, no sentido
de que
nem toda restrição à livre concorrência ou à livre iniciativa é domínio de mercado ou abuso de posição dominante, mas não há domínio de mercado ou abuso de posição dominante sem restrição à livre concorrência ou à livre iniciativa, salvo o caso de aumento arbitrário de juros.
Outra forma indicativa da existência de poder econômico é a existência de lucros
excessivos102, o que, na prática, nem sempre se mostra de fácil comprovação. A vedação do
aumento arbitrário de lucros, prevista de forma expressa no texto constitucional, tem como
principal finalidade a proteção do consumidor, ou seja, de se evitar que o abuso por parte do
agente econômico no aumento dos preços dos produtos ou serviços colocados à disposição do
consumidor e, consequentemente, dos lucros auferidos na operação, prejudiquem os
adquirentes dos mencionados bens e serviços.
Veja-se a necessária vinculação do aumento arbitrário dos lucros ao exercício abusivo
do poder econômico, razão pela qual os incisos III e IV, do artigo 20, da Lei nº 8.884/94,
devem ser analisados conjuntamente.
Passemos, então, a delinear o papel estatal na organização da atividade econômica,
quer atuando, quer intervindo no setor econômico, através da regulação e da regulamentação
dos mercados concorrenciais.
3.4. A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ATIVIDADE ECONÔMICA
Utilizaremos como premissa no presente tópico que o legislador constituinte brasileiro
utilizou como matriz ideológica do Texto Constitucional o sistema capitalista103, mesclado à
ideologia do chamado Estado do Bem Estar Social (Welfare State), adotando, pois o modelo
ideológico composto que se passou a denominar de neoliberalismo104.
101 FORGIONI, op. cit., p. 233-234. 102 O conceito de lucro, segundo entendimento de Varella Bruna, citando Areeda & Kaplow, deve ser entendido de acordo com o conceito de lucro econômico e não lucro contábil: “(...) o que importa são os lucros econômicos (...) o conceito de lucro econômico é diverso do conceito contábil, onde os fatores como depreciação dos bens ou a alocação dos custos tornam o resultado econômico substancialmente diverso do contábil. (BRUNA, op. cit. p. 124). 103 GRAU, op. cit., p. 362. 104 SOUZA, Washington Peluso A. Primeiras linhas de direito econômico. São Paulo: LTR, 2003, p. 315.
82
Não há mais que se falar hodiernamente em papel secundário do Estado, ou
‘Estado Mínimo’, tal qual estabelecido na doutrina liberal, onde a função do Estado era
restrita ao mero policiamento para assegurar a manutenção do respeito aos direitos individuais
dos cidadãos, atuando como uma “armadura de defesa e proteção da liberdade”, nos dizeres
de Paulo Bonavides105106. Admite-se, atualmente, a atuação direta do Estado no “domínio
econômico”, não somente no que tange à economia interna do Estado, como também
atingindo a atividade econômica privada.
A estrutura do modelo neoliberalista, sob o ponto de vista concorrencial, embora
admita a prevalência do mercado como regulador da economia – livre concorrência de
mercado – garante a ação (ou atuação) econômica do Estado quer regulando, quer
regulamentando, quer planejando a economia.
Insta ressaltar que não abordaremos o termo atividade econômica do Estado no seu
sentido amplo, em que se encontram abrangidas as atuações estatais na esfera de sua própria
titularidade (prestação de serviços públicos ou regulamentação da prestação de serviços
públicos107), mas sim no seu sentido estrito, ou seja, apenas nas hipóteses em que o Estado
atua na área de titularidade do setor privado, nos dizeres de Eros Grau, "intervindo no campo
da atividade econômica em sentido estrito"108.
Passemos, então, às formas de classificação das modalidades de intervenção do Estado
na esfera privada da atividade econômica. Segundo Washington Peluso Albino de Souza109, as
formas interventivas podem ser classificadas de maneira simplificada em “direta” e “indireta”,
conforme o Estado atue como Empresário no campo da atividade econômica em sentido
estrito, ou atue através da instituição de legislação regulamentadora, bem como reguladora,
105 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 41. 106 Embora no campo econômico, consoante muito bem ressalta Eros Roberto Grau, já citado no item 3.1 acima, mesmo à época do liberalismo, por diversas vezes o Estado era chamado a intervir na economia. 107 A prestação de serviços públicos está prevista na Constituição da República de 1988, no seu artigo 175, que compõe o Título “Da Ordem Econômica e Financeira”, e o Capítulo “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, o que comprova que a ação do Estado na atividade econômica abrange a prestação de serviços públicos. “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. 108 GRAU, op. cit., p. 124-125: “Aludimos, então, a atuação do Estado além da esfera do público, ou seja, na esfera do privado (área de titularidade do setor privado). A intervenção, pois, na medida em que o vocábulo expressa, na sua conotação mais vigorosa, precisamente atuação em área de outrem. Daí se verifica que o Estado não pratica intervenção quando presta serviço público ou regula a prestação de serviço público. Atua, no caso, em área de sua própria titularidade, na esfera pública. Por isso mesmo dir-se-á que o vocábulo intervenção é, no contexto, mais correto que a expressão atuação estatal: intervenção expressa atuação estatal em área de titularidade do setor privado; atuação estatal, simplesmente, expressa significado mais amplo. Pois é certo que essa expressão, quando não qualificada, conota inclusive atuação na esfera do público. Por isso que vocábulo e expressão não são absolutamente, mas apenas relativamente, intercambiáveis. Intervenção indica, em sentido forte (isto é, na sua conotação mais vigorosa), no caso, atuação estatal em área de atuação do setor privado; atuação estatal, simplesmente ação do Estado tanto na área de titularidade própria quanto em área de titularidade do setor privado. Em outros termos, teremos que intervenção conota atuação estatal no campo da atividade econômica em
sentido estrito; atuação estatal, ação do estado no campo da atividade econômica em sentido amplo." (Grifos do autor). 109 SOUZA, op. cit., p. 330.
83
em todos os níveis de instrumentos jurídicos (leis, decretos, circulares, portarias, avisos e
assim por diante)110.
A intervenção estatal no campo do domínio econômico tem como princípios básicos
os previstos nos artigos 173 e 174 da Constituição da República de 1988111, que estabelecem
as três referidas hipóteses de atuação: (i) como agente direto da atividade econômica; (ii)
como fiscalizador do exercício da atividade econômica pelos agentes privados; e (iii) como
agente normativo da atividade econômica112.
Eros Grau113 registra como três as modalidades de intervenção estatal: "intervenção
por absorção ou participação, intervenção por direção e intervenção por indução".
Na primeira delas, prevista no artigo 173 do Texto Constitucional, o Estado atua
diretamente no domínio econômico, como agente econômico, por meio de empresas públicas,
sociedades de economia mista ou suas subsidiárias, por absorção, quando atue em sistema de
monopólio114, ou por participação, nas hipóteses em que atua em regime concorrencial com o
setor privado115:
110 O autor, citando o jurista francês Gérard Farjat, afirma que a “natureza reguladora da intervenção” se realiza por graus: “No primeiro grau, ao 'regular' e 'coordenar', o objetivo é assegurar certo número de equilíbrios, como o da balança de contas e de pagamentos, o monetário, o pleno emprego, o da procura global e assim sucessivamente. No segundo, o estabelecimento da 'regulação’ pode assumir graus diferentes, de acordo com as circunstâncias, especialmente com respeito à moeda, ao crédito e ás trocas exteriores. Diremos que, ao 'regulamentar' a economia, o Estado atua por medidas legais e executivas de fiscalização da prática econômica privada nos mercados, de incentivo a essa atividade por parte da iniciativa privada, suplementando-a e planejando, pela introdução de medidas que vão além do funcionamento auto-regulador do mercado pelas suas próprias forças” (SOUZA, op. cit., p. 327). Desta forma, fala-se em Estado mais ou menos interventor quanto mais ampla a presença do poder econômico do Estado no domínio econômico: “Quando dirigido no sentido de mais ampla presença do poder econômico do Estado no domínio econômico, ou seja, do Estado Máximo, temos o Estado 'dirigente', 'planejador', 'regulamentador'. Quando sua presença se torna menor, configura-se o Estado Mínimo, livre-concorrencial e, quando muito, 'regulador'” (SOUZA, op. cit., p. 315). 111 "Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei." "Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado." 112 SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 200. 113 GRAU, op. cit., p. 168. 114 Como nas hipóteses previstas no artigo 177 da Constituição da República: "Art. 177. Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 49, de 2006)." 115 Sujeitando-se, nestas hipóteses, ao mesmo tratamento dispensado às empresas privadas, não podendo gozar de privilégios não extensivos às tais empresas. "Art. 173. (omissis). § 1º (omissis). II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
84
Quando o faz por absorção, o Estado assume integralmente o controle os meios de produção e/ou troca em determinado setor da atividade econômica em sentido estrito; atua em regime de monopólio. Quando o faz por participação, o Estado assume o controle de parcela dos meios de produção e/ou troca em determinado setor da atividade econômica em sentido estrito; atua em regime de competição com empresas privadas que permanecem a exercitar suas atividades nesse mesmo setor.
Ressalte-se que em ambas as hipóteses, a atuação estatal é restrita, segundo texto
constitucional, limitando-se às hipóteses necessárias “aos imperativos da segurança nacional
ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
Intervindo por direção, o Estado não figura como agente econômico, mas sim como
agente regulador da atividade econômica, atuando sobre o domínio econômico, quer
estabelecendo mecanismos e normas de comportamento compulsório para os sujeitos da
atividade econômica em sentido estrito, através da instituição de normas destinadas a tutelar a
livre concorrência entre os agentes, quer reprimindo o abuso do poder econômico: NORMAS
ANTITRUSTE.
Por fim, quando intervém por indução, e esta é forma de atuação estatal que mais
interessa para fins do presente estudo, o Estado "manipula os instrumentos de intervenção em
consonância e na conformidade das leis que regem o funcionamento dos mercados"116, quer
atuando positivamente, através de políticas tributárias privilegiadas (concessão de redução ou
isenção de tributos), preferência à obtenção de créditos, subsídios para aqueles agentes que se
enquadrarem em determinada situação sugerida pelo Estado, ou seja, através de "expedientes
de 'incitação', de estímulo, sobretudo pelos estímulos fiscais, além de permissões legais a tais
práticas", nos dizeres de Washington Peluso Albino de Souza117, quer negativamente,
mediante adoção de políticas que tornem proibitivas determinada atuação do agente
econômico, por se mostrar excessivamente onerosa.
Especificamente no que se refere à atuação positiva do Estado, induzindo a atuação em
determinado mercado através de políticas tributárias favoráveis, a intervenção não pode
ocorrer de tal forma que prejudique a concorrência no mercado, impedindo a entrada de novos
concorrentes que não possuam o mencionado benefício, ou mesmo fazendo que determinado
concorrente que já atue em determinado mercado, seja obrigado a abandoná-lo. Adite-se que,
embora se admita o papel do Estado como regulador do mercado, a premissa é a livre
§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado." 116 GRAU, op. cit., p. 169. 117 SOUZA, op. cit., p. 326.
85
concorrência com a mínima interferência estatal possível. Neste sentido é o entendimento de
Carlos Jacques Vieira Gomes118:
A proteção da livre concorrência (...) decorre da compreensão de que a livre iniciativa, na acepção de liberdade de iniciativa empresarial, pressupõe não apenas a idéia de liberdade para acessar o mercado, mas também a idéia de liberdade para permanecer no mercado, isto é, a livre concorrência, entendida esta como a liberdade para exercer a luta econômica sem (a) a interferência do Estado e (b) os obstáculos impostos pelos outros agentes econômicos (privados).
Tal entendimento vem tendo guarida também no âmbito do direito comunitário
Europeu, que também condena a concessão de subsídios (que podem se revestir do caráter
fiscal), quando estes venham a favorecer artificialmente determinado Estado do mercado
comum, em detrimento da livre concorrência. Confira-se um trecho da obra do jurista
português Luís Cabral de Moncada119, professor catedrático da Universidade de Coimbra:
A orientação geral das normas comunitárias a este respeito consagra o princípio da incompatibilidade das ajudas dos Estados com o mercado comum, no pressuposto de que as ajudas e subsídios dos Estados às empresas nacionais vão favorecer artificialmente na concorrência de que elas têm de enfrentar tanto interna como externamente.
Aliás, como muito bem salientou Calixto Salomão Filho120, a intervenção estatal
deve ter como escopo a correção de eventuais imperfeições do sistema concorrencial, e não
eliminar este sistema, justamente o que pode ocorrer nas hipóteses de concessão de
determinados benefícios fiscais. Confira-se:
Relativamente à intervenção do Estado no domínio econômico, regulando ou exercendo a atividade empresarial, o valor da menção à necessidade de perseguir a justiça social é orientar a intervenção do Estado na economia no sentido de corrigir as imperfeições do sistema concorrencial, e não eliminar ou substituir este último.
O presente tema voltará a ser abordado no capítulo cinco desta obra.
118 GOMES, op. cit., p. 109. Uma das modalidades mais comuns de interferência estatal prejudicial à manutenção da isonomia em matéria de concorrência constitui a ajuda estatal a determinadas empresas, precedida por meio de isenções tributárias ou crédito subsidiado. No regime da Comunidade Econômica Européia, toda a ajuda estatal deve ser comunicada à Comissão Européia, com fito de analisar os efeitos provocados sobre a concorrência. 119 MONCADA, Luís Cabral de. Direito econômico. Coimbra: Coimbra Editora, 1988, p. 440. 120 SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 178.
86
Capítulo 4 – O Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS. 4.1. Breve histórico legislativo do ICMS. 4.1.1. O ICMS na Constituição de 1988 e a função da Lei Complementar nº 87/96. 4.1.2. O papel atribuído ao Senado Federal. 4.2. Elementos da norma de tributação do ICMS: 4.2.1. Hipótese de Incidência: 4.2.1.1. Aspecto Material. 4.2.1.2. Aspecto Temporal. 4.2.1.3. Aspecto Espacial. 4.2.1.4. Aspecto Pessoal. 4.2.2. Mandamento: 4.2.2.1. Sujeição Ativa e Passiva. 4.2.2.2. Base de Cálculo e Alíquota. 4.3. Isenções e Incentivos Fiscais. 4.3.1. Natureza Jurídica da Isenção. 4.3.2. Isenção Total e Alíquota Zero. 4.3.2.1. Isenção Parcial e Reduções de Base de Cálculo e de Alíquota. 4.3.3. Incentivos Fiscais e Financeiros. 4.3.4. A Lei Complementar nº 24/75, os Convênios Interestaduais e o Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ.
4. O IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES RELATIVAS À
CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SOBRE
PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE
INTERESTADUAL E INTERMUNICIPAL E DE
COMUNICAÇÃO – ICMS
4.1. BREVE HISTÓRICO LEGISLATIVO DO ICMS
O imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS
tem origem no antigo, hoje extinto, Imposto Estadual sobre Vendas e Consignações, previsto
tanto na Constituição de 19341, como na de 19462. Com a reforma tributária empreendida pela
EC nº 18/65, o mencionado imposto foi extinto, tendo sido criado o Imposto sobre a
1 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Disponível em: <http://planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao34.htm>. Acesso em 02/03/2011. "Art 8º - Também compete privativamente aos Estados: I - decretar impostos sobre: e) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive os industriais, ficando isenta a primeira operação do pequeno produtor, como tal definido na lei estadual." 2 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 02/03/2011. "Art 19 - Compete aos Estados decretar impostos sobre: (...) IV - vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive industriais, isenta, porém, a primeira operação do pequeno produtor, conforme o definir a lei estadual; (...)."
87
Circulação de Mercadorias – ICM3, ainda de competência estadual, cuja competência foi
estendida ao Distrito Federal pela Emenda Constitucional nº 1/694.
Do ponto de vista econômico, o ICM é o mesmo IVC, que concorria com cerca de
¾ partes da receita tributária dos Estados-Membros5. O ICM teve o seu surgimento na esteira
da então tendência mundial, surgida na França, de se tributar não mais as vendas brutas, tal
como o IVC, que sempre incidiu em cascata, de forma cumulativa em todas as etapas da
cadeia produtiva, mas sim as vendas líquidas. Nesta seara, o legislador constituinte derivado
introduziu na Constituição o princípio da não-cumulatividade6, a partir da Reforma
Constitucional nº 18/657.
Sacha Calmon8, dissertando sobre o período histórico referido, muito bem nos
ensina sobre o que ele denomina de “imposto problemático”. Confira-se:
Desde a Emenda nº 18/65 à Constituição de 46, após o movimento militar de 1964, quando se intentou, simultaneamente, a racionalização do sistema tributário (Emenda nº 18) e a codificação do Direito Tributário (CTN), que o ICM, agora ICMS, vem se apresentando como um imposto problemático, tomado de enfermidades descaracterizantes. À época do movimento militar de 1964, receptivo às críticas dos juristas e economistas que viam no imposto sobre vendas e consignações dos estados (IVC) um tributo avelhantado, “em cascata”, propiciador de inflação, verticalizador da atividade econômica, impeditivo do desenvolvimento da federação e tecnicamente incorreto, resolveu-se substituí-lo por um imposto “não-cumulativo” que tivesse como fatos jurígenos não mais “negócios jurídicos”, mas a realidade econômica das operações promotoras da circulação de mercadorias e serviços, no país, como um todo. Destarte, surge o ICM, não-cumulativo, em lugar do IVC, cumulativo. A idéia era tomar como modelo os impostos europeus sobre valores agregados ou acrescidos, incidentes sobre bens e serviços de expressão econômica, os chamados IVA’s.
A partir da Constituição de 1988, o ICM passou a ser denominado ICMS,
agregando para os Estados as competências para tributar a energia elétrica, os combustíveis e
lubrificantes líquidos e gasosos, e minerais do país, que na Constituição de 1967 (EC 1/69)
3 BRASIL. Emenda Constitucional nº 18, de 1 de dezembro de 1965. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=116129&tipoDocumento=EMC&tipoTexto=PUB>. Acesso em 02/03/2011. "Art. 12. Compete aos Estados o impôsto sôbre operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por comerciantes, industriais e produtores." 4 BRASIL. Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em 02/03/2011. "Art. 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sôbre: (...) II - operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por produtores, industriais e comerciantes, impostos que não serão cumulativos e dos quais se abaterá nos têrmos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado." 5 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 367. 6 Tal princípio prevalece até hoje no Texto Constitucional como informador dos impostos sobre o consumo, como o IPI e o ICMS, e, especificamente no caso do ICMS, objeto do presente capítulo, está insculpido no artigo 155, §2º, inciso I, da CR/88 e garante que o imposto estadual “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”, ou seja, possibilitando que o contribuinte, nas operações de venda que promova, transfira ao adquirente o ônus do imposto que suportou que adiantará ao Estado e, ao mesmo tempo, possa ele creditar-se do imposto que suportou nas operações anteriores, conforme nos ensina Misabel Derzi (BALEEIRO, op. cit., p. 419). 7 DERZI in BALEEIRO, op. cit., p. 368. 8 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 319.
88
pertenciam à União9, além dos serviços de transporte intermunicipal e interestadual e de
comunicação.
Segundo Roque Antônio Carrazza10, a sigla ICMS passa a albergar pelo menos
cinco impostos diferentes: a) o imposto sobre operações mercantis (operações relativas à
circulação de mercadorias), que, de algum modo, compreende o que nasce da entrada de
mercadorias importadas do exterior; b) o imposto sobre serviços de transporte interestadual e
intermunicipal; c) o imposto sobre serviços de comunicação; d) o imposto sobre produção,
importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e
gasosos e de energia elétrica; e, e) o imposto sobre a extração, circulação, distribuição ou
consumo de minerais.
Vale ressaltar que essa subdivisão do ICMS em "cinco diferentes impostos",
defendida por Carrazza é bastante controvertida, e questionada, por exemplo, por Sacha
Calmon11, para quem o atual ICMS tem três fatos geradores distintos, quais sejam: a) a
circulação de mercadorias, nele englobando o ICM da Constituição de 1967 e os antigos
impostos únicos federais (energia elétrica, combustíveis e lubrificantes e minerais), já que
mesmo a energia elétrica (bem incorpóreo por natureza), é equiparada à mercadoria pelo
direito penal; e os serviços de b) transporte e c) comunicação.
Acrescentamos, ainda, o que consideramos como fato imponível distinto, o ICMS
incidente na impostação de bens e serviços. Discordamos de Roque Carrazza quando ele
afirma que o imposto sobre as operações mercantis abrangeriam, "de algum modo, (...) o que
nasce da entrada de mercadorias importadas do exterior", já que se trata de hipótese
absolutamente distinta, com materialidades distintas, tanto que é exigido até mesmo de pessoa
física, que não pratique com habitualidade operações mercantis (art. 155, §2º, IX, a, da
CR/88)12.
Feito essa breve digressão acerca da evolução constitucional do atual ICMS,
passemos a descrever a regra-matriz do imposto sobre operações mercantis delimitada pela
9 BRASIL. Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em 02/03/2011. "Art. 21. Compete à União instituir impôsto sôbre: (...) VIII - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos ou gasosos e de energia elétrica, impôsto que incidirá uma só vez sôbre qualquer dessas operações, excluída a incidência de outro tributo sôbre elas; e IX - a extração, a circulação, a distribuição ou o consumo dos minerais do País enumerados em lei, impôsto que incidirá uma só vez sôbre qualquer dessas operações, observado o disposto no final do item anterior." 10 CARRAZZA, Roque Antônio. ICMS. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34-35. 11 COELHO, op. cit., p. 321-322. 12 Não adentraremos no presente trabalho nas demais hipóteses de incidência do ICMS previstas no Texto Constitucional, restringindo-nos apenas ao ICMS sobre as operações mercantis, eis que o tema de fundo da dissertação – concessão de benefícios fiscais por parte dos Estados-Membros – na sua grande maioria está adstrita ao mencionado fato imponível do imposto estadual, que, a título exemplificativo, representa no Estado de Minas Gerais, mais de 54% de toda a arrecadação do ICMS no exercício de 2010 (Fonte: <http://www.fazenda.gov.br/confaz/boletim/>. Acesso em 02/03/2011).
89
Constituição da República de 1988 e pela lei complementar de normas gerais em matéria do
imposto estadual.
4.1.1. O ICMS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A FUNÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR 87/96
Consoante já salientado alhures, o poder tributário encontra sempre como limite a
Constituição, que confere e reparte as competências tributárias entre as pessoas políticas,
divide entre elas o produto arrecadado, delimita os tributos passíveis de serem instituídos,
enfim, regula todo o âmbito de atuação do Estado no campo tributário.
Nesta senda, o legislador constituinte de 1988, no artigo 155, inciso II, atribuiu
aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituir impostos sobre operações
relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se
iniciem no exterior, bem como sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior
por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer
que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior (§2º, IX, a, redação
pela EC 33/01).
A instituição do tributo no âmbito territorial de cada Estado-Membro e do Distrito
Federal, ou seja, o efetivo exercício da competência privativa outorgada pela Constituição da
República depende da edição de lei ordinária emanada pelo Poder Legislativo do ente
federado, que detém a função exclusiva, privativa e insubstituível de criar o tributo.
Tal fato é reforçado pelos ditames do artigo 150, inciso I, da Constituição, que se
refere à necessidade de lei da pessoa política competente (no caso, os Estados-Membros e o
Distrito Federal) para instituir e regular o tributo, nos precisos dizeres de Misabel Derzi13.
Esta lei ordinária, contudo, está sujeita aos limites estabelecidos na lei
complementar tributária, que possui caráter nacional, e que delimita a esfera de atuação do
legislador parcial em matéria de tributação, tal como já explicitado no capítulo 2 da presente
obra.
A atribuição desta competência ao legislador complementar para traçar as normas
gerais em matéria tributária, especialmente sobre a definição dos tributos e de suas espécies,
bem como, em relação aos impostos discriminados no Texto Constitucional, a dos respectivos
fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, consoante já ressaltado alhures, é
decorrência do disposto no artigo 146, inciso III, “a”, do Texto Constitucional, e se afigura
90
como legítima forma de atuação legislativa no exercício da competência concorrente não-
cumulativa, tal como previsto no artigo 24, inciso I, da Carta Magna.
Volvendo-se ao caso específico do ICMS, o legislador constituinte foi ainda mais
contundente, ao atribuir, no art. 155, XII, à lei complementar as seguintes funções específicas:
a) definir seus contribuintes; b) dispor sobre substituição tributária; c) disciplinar o regime de compensação do imposto; d) fixar, para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento responsável, o local das operações relativas à circulação de mercadorias e das prestações de serviços; e) excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, "a" f) prever casos de manutenção de crédito, relativamente à remessa para outro Estado e exportação para o exterior, de serviços e de mercadorias; g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. h) definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X, b; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001) i) fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001).
Cumpre salientar que, mesmo possuindo papel fundamental na regulamentação do
ICMS, a lei complementar deve se manter adstrita à sua função de complementar o Texto
Constitucional, sendo-lhe vedado inovar ou restringir os seus ditames, já que a lei
complementar não cria limitações que já não existam na Constituição, não restringe, nem
dilata o campo por ela delimitado14.
Por outro lado, o legislador complementar não deve esgotar a competência
legislativa na matéria do imposto, já que a competência para a sua instituição é do legislador
ordinário do Estado-Membro ou do Distrito Federal. Neste contexto, a atuação do legislador
complementar deve se restringir ao estabelecimento de diretrizes nacionais em matéria do
imposto estadual, tal como estabelecido no Texto Constitucional (genericamente, no artigo
146, III, ‘a’, e especificamente no artigo 155, XII). Essas diretrizes – normas gerais – são, em
relação a seu conteúdo, verdadeiros limites ao legislador ordinário estadual e distrital.
13 DERZI in BALEEIRO, op. cit., p. 41. 14 DERZI in BALEEIRO, op. cit., p. 371.
91
Preenchendo o campo normativo das normas gerais em matéria de ICMS, foi
editada a Lei Complementar nº 87, de 13/09/199615 16, lei de caráter nacional e que tem como
destinatários os legisladores ordinários dos Estados-Membros e do Distrito Federal17.
Cumpre salientar que o ICMS, embora seja um imposto eminentemente estadual,
por tributar a circulação de mercadorias interna e interestadual, o que será delineado nos
tópicos subsequentes, incide sobre um fato econômico cujos efeitos jurídico-econômicos
extrapolam os limites territoriais dos Estados-Membros, o que denota o caráter nacional do
tributo.
Este caráter nacional fez com que o legislador constituinte tenha se preocupado,
de forma detalhada, com a atribuição de competência normativa ao legislador complementar,
extrapolando o conteúdo geral – previsto no Art. 146, III, ‘a’ da CF – introduzindo conteúdo e
funções específicas em matéria do ICMS, visando a uniformização e unicidade normativa do
imposto estadual. Neste sentido é o entendimento de Paulo de Barros Carvalho18:
O caráter nacional do ICMS é outra máxima que sobressai do sistema com grande vigor de juridicidade. Não se aloja na formulação expressa de qualquer dos dispositivos constitucionais tributários, mas está presente nas dobras de inúmeros preceitos, irradiando sua força por toda a extensão da geografia normativa deste imposto. Sua importância é tal que, sem atinarmos a ele, fica praticamente impossível a compreensão da regra-matriz do ICMS em sua plenitude sintática e em sua projeção semântica. Os conceitos de operação interna, interestadual e de exportação; de consumidor final, de contribuinte, de responsável e de substituição tributária; de compensação do imposto, de base de cálculo e de alíquota, bem como o de isenção, estão diretamente relacionados com diplomas normativos de caráter nacional, válidos para todo o território brasileiro.
15 Até a edição da LC 87/96, o Convênio ICM nº 66/88 passou a regular provisoriamente os limites à instituição do ICMS. Tal ato normativo, com força de lei de normas gerais, foi editado em virtude da inércia do legislador da União em editar a lei complementar traçando os limites à instituição do ICMS pelos Estados e pelo Distrito Federal, e também porque o Decreto-Lei nº 406/68, antiga lei complementar de normas gerais em matéria do ICM, mesmo tendo sido recepcionado pela Constituição de 1998, era insuficiente para fazer o papel de lei de normas gerais, dadas as novas hipóteses de incidência do imposto estadual previstas pelo legislador constituinte. Saliente-se que tal regra foi expressamente prevista no §8º, do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT ("§ 8º - Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, "b", os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regular provisoriamente a matéria"). A forma de edição dos Convênios em matéria de ICMS será objeto de estudo em item específico. 16 Acerca do tema, precisos são os ensinamentos de Misabel Derzi: “Porém, a Constituição de 1988 criou o ICMS – imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – estadual, de incidência muito mais ampla. As disposições do Decreto-Lei citado foram recepcionadas pela Constituição, conforme jurisprudência assentada de nossos tribunais superiores, mas eram insuficientes para abranger as novas hipóteses, incluídas no âmbito do imposto estadual pelo Texto Magno. A solução de transição, como se sabe, estava disciplinada na própria Constituição, no art. 34, §8º, do ADCT, que concedeu precária licença aos Estados-Membros para editar as normas gerais, que possibilitassem a criação do novo tributo, até que lei complementar dispusesse a respeito”. (DERZI in BALEEIRO, op. cit., p. 373). 17 Fábio Canazaro, em obra específica sobre a Lei Complementar Tributária na Constituição de 1988, confirma que os destinatários das leis nacionais de normas gerais não são outros, senão os próprios entes federados: “Essas normas obrigatoriamente vincularão com seus ditames gerais, as pessoas jurídicas das ordens parciais no exercício de suas competências tributárias específicas. Os destinatários das leis complementares de normas gerais serão sempre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, enquanto incumbidos da função de legisladores parciais da Federação”. CANAZARO, Fábio. Lei Complementar Tributária na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 72. 18 CARVALHO, Paulo de Barros. ICMS – incentivos – conflitos entre Estados – interpretação. In: Revista de Direito Tributário, nº 66, São Paulo: Malheiros, 1994, p. 97.
92
Por isso, o papel do legislador complementar nacional, de estabelecer as normas
gerais em matéria de ICMS, se mostra ainda mais relevante se levarmos em consideração a
configuração constitucional do imposto, que atribuiu aos Estados-Membros a competência
para a instituição de um tributo com características tipicamente nacionais19.
4.1.2. O PAPEL ATRIBUÍDO AO SENADO FEDERAL
A Constituição de 1988 não outorgou apenas ao legislador complementar o papel
de estabelecer as normas gerais em matéria de ICMS, tendo atribuído ao Senado Federal, mais
precisamente às Resoluções por ele editadas, dupla função na delimitação das alíquotas do
imposto. Veja o disposto no incisos IV e V, do §2º, do art. 155 da Carta Magna:
Art. 155 (...) §2º (...) IV - resolução do Senado Federal, de iniciativa do Presidente da República ou de um terço dos Senadores, aprovada pela maioria absoluta de seus membros, estabelecerá as alíquotas aplicáveis às operações e prestações, interestaduais e de exportação; V - é facultado ao Senado Federal: a) estabelecer alíquotas mínimas nas operações internas, mediante resolução de iniciativa de um terço e aprovada pela maioria absoluta de seus membros; b) fixar alíquotas máximas nas mesmas operações para resolver conflito específico que envolva interesse de Estados, mediante resolução de iniciativa da maioria absoluta e aprovada por dois terços de seus membros.
A natureza dúplice das resoluções senatoriais se subdivide em: (i) competência
privativa na uniformização de alíquotas na política de exportação ou de equilíbrio financeiro
entre os Estados consumidores mais pobres e produtores mais ricos, nas operações
interestaduais de circulação de mercadorias e serviços sujeitas ao ICMS; (ii) a faculdade de
editar normas gerais de delimitação quantitativa – mínima ou máxima – que deverão ser
observadas pelas leis dos Estados, na eleição das suas alíquotas internas20.
Note-se que na primeira hipótese, de cunho obrigatório, atribui-se função
exclusiva ao Senado Federal para a definição das alíquotas do imposto nas operações de
exportação e interestaduais. Trata-se claramente de hipótese constitucional de atribuição de
competência privativa ao Senado Federal, em detrimento dos Estados-Membros e do Distrito
19 MARTINS, Ives Gandra da Silva; ELALI, Marcelo; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (Orgs). Incentivos Fiscais: Questões pontuais nas esferas federal, estadual e municipal. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 67-90. 20 DERZI in BALEEIRO, op. cit., p. 373.
93
Federal, já que o legislador constituinte outorgou exclusivamente à resolução senatorial a
definição das alíquotas nas hipóteses previstas no inciso IV do §2º, do art. 155.
A ausência de resolução na matéria configura vácuo legislativo insuperável pela
lei estadual, razão pela qual não nos defrontamos aí com o campo próprio das normas gerais,
mas com competência privativa do Senado Federal sobre matéria que escapa ao campo
legislativo próprio dos Estados21.
A outorga desta competência privativa ao Senado Federal, que por força
constitucional passa a legislar heteronomamente em matéria de definição das alíquotas
interestaduais e de exportação, substituindo, neste ponto, os próprios entes federados,
detentores da competência tributária para instituir o ICMS, somente vem reforçar a
preocupação constitucional em manter a uniformização e a unicidade do tributo no território
nacional, já que, como dito, o imposto extrapola os lindes territoriais estaduais.
Ademais, em uma Federação como a brasileira, que adotou o princípio do Estado
de origem22, tributando as operações interestaduais apenas no Estado de origem da operação
mercantil realizada, não importando o seu destino, é necessário que sejam criadas maneiras de
repartição do produto da sua arrecadação com o Estado de destino, de forma a minimizar as
perdas dos Estados preponderantemente importadores, em relação àqueles
preponderantemente exportadores, tendo sido esta função privativa atribuída ao Senado pelo
legislador constituinte.
Já a segunda hipótese de atuação senatorial, de caráter facultativo, permite-lhe a
definição dos limites internos de um dos aspectos quantitativos do imposto estadual, em que o
Senado estabelece os limites máximos e mínimos (normas gerais), cabendo aos Estados e ao
Distrito Federal, a competência suplementar para definir as suas próprias alíquotas.
A Resolução nº 22, de 19 de maio de198923, cumpriu o papel constitucional ao
estabelecer as alíquotas aplicáveis às operações interestaduais e na exportação, lembrando que
21 Ibid, p. 373. 22 Conforme leciona Misabel Derzi, “com o princípio de origem, as mercadorias e serviços que circulam de um Estado a outro, independente do seu destino, incorporam no preço os impostos pagos no Estado de origem (ou exportador), inexistindo interrupção não cadeia de operações do produtor ao consumidor final. É assim irrelevante que o bem ou o serviço se transfira de um Estado a outro, havendo verdadeira integração e unidade no mercado, formado por distintos Estados. Essa a regra da Constituição brasileira nas operações interestaduais” (Ibid, p. 443). 23 BRASIL. Resolução nº 22, de 1989. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action? id=132875>. Acesso em 03/03/2011. "Art. 1° A alíquota do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação, nas operações e prestações interestaduais, será de doze por cento. Parágrafo único. Nas operações e prestações realizadas nas Regiões Sul e Sudeste, destinadas às Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e ao Estado do Espírito Santo, as alíquotas serão: I - em 1989, oito por cento; II - a partir de 1990, sete por cento. Art. 2° A alíquota do imposto de que trata o art. 1°, nas operações de exportação para o exterior, será de treze por cento.
94
o artigo 3º, inciso II, da Lei Complementar nº 87/96 isentou as operações destinadas ao
exterior do imposto estadual, isenção esta elevada ao status de imunidade constitucional a
partir da publicação da Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003, que alterou
a redação da alínea a, do inciso X, do §2º, do art. 155 do Texto Supremo, tornando imune ao
imposto as operações que destinem mercadorias para o exterior e os serviços prestados a
destinatários no exterior.
No que se refere à atribuição das alíquotas mínimas e máximas do ICMS pelo
Senado Federal, verifica-se que a faculdade constitucional até a presente data não foi
exercida. Por esta razão, até hoje não existem limites máximos de alíquotas a serem aplicados
pelas unidades federadas nas operações mercantis realizadas dentro dos seus territórios. Este
ponto não tem sido objeto de conflitos entre os Estados-Membros e o Distrito Federal, já que
a própria livre concorrência faz com que as alíquotas máximas sejam mais ou menos
uniformes no território nacional, pois, nenhum Estado se encoraja a elevar excessivamente as
alíquotas do imposto, sob pena de espantar os contribuintes dos seus territórios.
Já no que tange ao estabelecimento do patamar mínimo, dada a sua importância, o
próprio legislador constitucional tratou de estabelecer que as alíquotas internas não poderão
ser inferiores às alíquotas interestaduais estabelecidas pelo Senado, salvo em caso de
Convênios entre as unidades federadas, o que será objeto de estudo em tópico específico. É o
teor do inciso VI, do §2º, do art. 155, do Texto Supremo:
VI - salvo deliberação em contrário dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do disposto no inciso XII, "g", as alíquotas internas, nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais; (...).
Mesmo diante da regra Constitucional, a fixação de alíquotas internas inferiores às
interestaduais, ainda que ausente Convênio celebrado pelos Estados, vem sendo objeto de
constantes disputas entre os Estados-Membros e o Distrito Federal, que buscam atrair
investimentos para seus territórios, ampliando o leque de contribuintes do imposto. Essa
prática, conhecida como guerra fiscal24, acarreta efeito nefasto sobre a economia, maculando
o princípio constitucional da livre concorrência dos sujeitos da atividade econômica no
território nacional, o que será discutido de forma mais detalhada nos tópicos subsequentes.
Art. 3° Esta Resolução entra em vigor em 1° de junho de 1989." 24 O significado da expressão será explicitado no item 4.4.
95
4.2. ELEMENTOS DA NORMA DE TRIBUTAÇÃO DO ICMS
As normas jurídicas, segundo Hans Kelsen, podem ser distinguidas em normas
primárias e normas secundárias. As primeiras podem ser consideradas no sentido de
fundamentais, mais importantes, que prescrevem penas através do emprego da força. Seriam
nos dizeres de Sacha Calmon Navarro Coelho25, as normas genuinamente jurídicas,
integrantes reais da ordem jurídica. As últimas seriam meras derivações lógicas das normas
primárias e sua enunciação só teria sentido para uma melhor explicação do direito.
No ponto de vista Kelseniano, uma norma cujo conteúdo não fosse uma sanção,
só seria possível se derivasse de uma norma primária, esta portadora de uma sanção. As
normas secundárias não teriam caráter de normas genuínas, mas enunciados do legislador e
“partes” das normas genuínas.
E assim, pela técnica ou argumento da subsunção, a maioria das regras que
comumente encontramos formando o sistema jurídico constituiriam “fragmentos” de normas
autênticas (primárias), instituidoras de sanções. As normas teriam uma estrutura dual,
logicamente falando: antecedente e consequente ou, noutra terminologia, hipótese e
consequência.
Verifica-se que, para Kelsen, as normas sancionantes, é que possuem a maior
importância para a ciência do direito e, por isso, as chamava de primárias ou autônomas. As
demais normas que compõem o ordenamento jurídico são por ele chamadas de impositivas,
secundárias ou não autônomas, visto que derivam das normas autônomas.
Confira-se o pensamento de Kelsen26:
Se uma ordem jurídica ou uma lei feita pelo Parlamento contém uma norma que prescreve determinada conduta e, uma outra norma que liga a não observância da primeira à sanção, aquela primeira não é autônoma, mas está essencialmente ligada à seguinte; ela apenas estabelece – negativamente – o pressuposto a que a segunda se lega à sanção. E, quando a segunda norma determina positivamente o pressuposto a que liga a sanção, a primeira torna-se supérflua sob o ponto de vista de técnica legislativa.
Conforme Kelsen, tanto as normas sancionantes quanto as demais apresentam
uma estrutura hipotética, isto é, possuem uma hipótese e uma consequência. Para atuar a
consequência, é mister que ocorra o fato jurígeno delineado na hipótese da norma. Uma
25 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 44. 26 KELSEN, Hans apud COELHO, 1999, op. cit., p. 57.
96
consequência jurídica ‘deve ser’ toda vez que ocorra sua hipótese. Verificaremos abaixo os
elementos da norma de tributação em matéria do imposto estadual sobre operações mercantis.
4.2.1. OS ASPECTOS DA HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ICMS
A Constituição atual manteve a sistemática trazida pela reforma tributária de
1965, segundo a qual foi adotado critério jurídico para a distribuição da competência
tributária, com o que o constituinte, ao dar nomes aos impostos, reservou seu objeto: os fatos
econômicos que estariam sujeitos ao ônus fiscal.
Nesse contexto, a Carta Federal no art. 155, II, atribuiu aos Estados e ao Distrito
Federal competência para instituir imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação, delineando, assim, hipótese de incidência do imposto estadual.
Consoante ensina Geraldo Ataliba27, hipótese de incidência é a descrição
legislativa (necessariamente hipotética) de um fato cuja ocorrência in concreto a lei atribui a
força jurídica de determinar o nascimento da obrigação tributária.
Embora o conceito de hipótese de incidência seja uno e indivisível, nada impede a
decomposição lógica desse conceito, com a finalidade de destrinchá-lo para, dessa operação
intelectual, enuclear dados fundamentais, que informarão estudo sistemático desta categoria
jurídica28.
E esta decomposição lógica citada pelo professor Paulo de Barros Carvalho não
significa a segregação da hipótese de incidência em parte ou elementos, mas sim, a mera
enumeração, mormente para fins didáticos, de alguns aspectos que a compõem29, sem retirar a
unicidade que lhe é própria.
A análise destes diversos aspectos, consoante nos ensina Márcio Severo
Marques30, serve para identificar, no mundo físico exterior, a efetiva ocorrência do evento
correspondente ao fato imponível, bem como o comportamento a ser observado em razão do
27 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 76. 28 CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da Norma Tributária. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 123. 29 Geraldo Ataliba discorda de parte da doutrina que denomina de ‘elementos’ os aspectos da hipótese de incidência tributária. Veja-se: “Não nos parece adequada a expressão elementos da hipótese de incidência, usada por alguns autores. É que esta expressão sugere a idéia de que se está diante de algo que entra na composição doutra coisa e serve para formá-la. Cada aspecto da hipótese de incidência não é algo a se stante, de forma que associado aos demais resulte na composição da hipótese de incidência, mas, são simples qualidades, atributos ou relações de uma coisa uma e indivisível, que é a hipótese de incidência, juridicamente considerada. Sob esta perspectiva, a h.i. é um todo lógico unitário e incindível”. (ATALIBA, op. cit., p. 77). 30 MARQUES, Márcio Severo. Classificação Constitucional dos Tributos. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 102.
97
nascimento da relação jurídica entre particular e Estado, originado pela incidência da norma
tributária31.
4.2.1.1. ASPECTO MATERIAL
O aspecto material, denominado por Ataliba como o mais complexo dos aspectos
da hipótese de incidência, contém a designação de todos os dados de ordem objetiva,
configuradores do arquétipo em que ela (h.i.) consiste32.
Embora o denomine de “núcleo” da hipótese de incidência, Paulo de Barros
Carvalho33 não o considera o critério mais importante, por não vislumbrar níveis de relevância
entre os aspectos da h.i., já que todos eles se mostram imprescindíveis para a sua perfeita
delimitação. Conceitua o professor paulista como sendo o comportamento de alguém (pessoa
física ou jurídica), consistente num ser ou dar ou num fazer e obtido mediante processo de
abstração da hipótese tributária, vale dizer, sem considerarmos os condicionantes de tempo e
de lugar (critérios temporal e espacial).
Trazendo o conceito acima para o ICMS, verifica-se que o legislador constituinte
utilizou-se como materialidade da hipótese de incidência desse tributo34 as expressões
“operações”, “circulação” e “mercadorias”, razão pela qual abordaremos, separadamente,
cada uma delas35.
Adite-se que a Constituição Federal não previu a tributação de “mercadorias”
propriamente ditas, mas das operações relativas à sua circulação36, consoante muito bem nos
ensina Roque Antônio Carrazza37:
Salientamos que a Constituição não prevê a tributação de mercadorias, por meio do ICMS, mas, sim, a tributação das “operações relativas à circulação de mercadorias”, isto é, das operações que tem mercadorias por objeto. Os termos circulação e mercadorias qualificam as operações tributadas por meio do ICMS. Não são todas as operações jurídicas que podem ser tributadas, mas apenas as relativas à circulação de mercadorias. O ICMS só pode incidir sobre operações que conduzem mercadorias,
31 Não pretendemos aqui analisar profundamente os aspectos da hipótese de incidência tributária, dado não ser este o tema do presente trabalho. Todavia, tendo em vista que a obra tem como pano de fundo a questão da concessão de benefícios fiscais em matéria de ICMS por parte dos Estados-Membros e do Distrito Federal, faz-se necessário traçar um breve panorama do imposto estadual, razão pela qual se mostra necessário abordar, ainda, que superficialmente, os aspectos da norma tributante em matéria do imposto. 32 ATALIBA, op. cit., p. 106. 33 CARVALHO, op. cit., 1998, p. 129. 34 Frisa-se novamente que na presente obra será abordado apenas o ICMS sobre operações mercantis. 35 Não se pode deixar de ter em mente que os conceitos de operação, circulação e mercadorias são profundamente interligados, complementares e necessários, que não podem ser analisados em separado, sem que o interprete se dê conta das suas profundas interrelações (DERZI in BALEEIRO, op. cit., p. 377). 36 O Art. 2º, inciso I da LC 87/96 delimita o campo de incidência do ICMS definindo: "Art. 2° O imposto incide sobre: I - operações relativas à circulação de mercadorias (...)." 37 CARRAZZA, op. cit., p. 37.
98
mediante sucessivos contratos mercantis, dos produtores originários aos consumidores finais.
O conceito de “operações”, de fundamental importância para a definição da
materialidade da hipótese de incidência do ICMS, foi definido por Geraldo Ataliba e Cleber
Giardino38 como sendo:
Operações são atos jurídicos; atos regulados pelo Direito como produtores de determinada eficácia jurídica; são atos juridicamente relevantes; circulação e mercadorias são, nesse sentido, adjetivos que restringem o conceito substantivo de operações.
Alcides Jorge Costa39, em sua clássica obra “ICM na Constituição e na Lei
Complementar”, define o termo “operação”, para fins do ICM (atual ICMS sobre operações
mercantis), como um "ato jurídico material em que a vontade se manifesta no sentido de
promover a circulação de mercadorias". Para o renomado autor, é essencial que o ato de
promoção da circulação seja voluntário e praticado pelo sujeito passivo designado em lei, o
que exclui da incidência do imposto, por exemplo, o furto e o roubo que, mesmo promovendo
a circulação de mercadorias, não decorrem de ato do sujeito passivo40.
Aliomar Baleeiro41 entende “operação” de ICM significa cada negócio jurídico
que transfere a mercadoria desde o produtor até o consumidor final.
Mais recentemente, José Eduardo Soares de Melo42 afirma que “operações”
configuram o verdadeiro sentido do fato juridicizado, a prática de ato jurídico como a
transmissão de um direito (posse ou propriedade); enquanto Hugo de Brito Machado43
denomina “operações” (relativas à circulação de mercadorias), como quaisquer atos ou
negócios jurídicos, independente da natureza jurídica específica de cada um deles, que
implicam na circulação de mercadorias, vale dizer, o impulso destas desde a produção até o
consumo, dentro da atividade econômica, as leva da fonte produtora até o consumo44.
Este último parece ser o conceito adotado pelo legislador da Lei Complementar
87/96, ao estabelecer, no §2º, do art. 2º, que a caracterização do fato gerador independe da
natureza jurídica da operação que o constitua.
38 ATALIBA, Geraldo e GIARDINO, Cleber. Núcleo da Definição Constitucional do ICM. In: Revista de Direito Tributário, vols. 25/26. São Paulo: RT, 1983, p. 104. 39 COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Ed. Resenha Tributária, 1978, p. 91-96. 40 Ibid, p. 93. 41 BALEEIRO, op. cit., p. 385. 42 MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e Prática. São Paulo: Dialética, 2004, p. 11. 43 MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos Fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997, p. 25. 44 Note-se que o jurista cearense adota o conceito de circulação econômica, como um dos elementos da materialidade do ICMS, que será melhor explicado abaixo.
99
O importante, como muito bem entendeu o Supremo Tribunal Federal, quando do
julgamento do Recurso Extraordinário nº 194.382, em que se discutiu a validade do instituto
da substituição tributária em matéria de ICMS, é que o termo ‘operação’, em matéria de
ICMS, deve estar sempre vinculado a um negócio jurídico realizado pelo sujeito passivo
designado em lei. O Ministro relator, Maurício Corrêa, citando a doutrina de Pontes de
Miranda afirmou:
18. Todavia, a reserva legal, na hipótese de ocorrência do fato gerador do ICM – saída de mercadoria do estabelecimento comercial –, não pode ser dissociada do sistema constitucional que vincula o imposto à circulação de riquezas. Disso resulta que a exação não incide sobre toda e qualquer saída de mercadoria, senão àquela que, por constituir transmissão da propriedade ou da posse, traduz operação de circulação. (...). 22. No caso específico do ICM, a cobrança antecipada por meio de estimativa constitui o que PONTES DE MIRANDA denominou “simples recolhimento cautelar” enquanto “não há o negócio jurídico de circulação, em que a regra jurídica, quanto ao imposto, incide” (Comentários à Constituição de 1967, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1967, vol. II, pág. 492). (Grifos do autor).
Mas a simples prática de um ato, como entende parte da doutrina, ou celebração
de um negócio jurídico, tal qual já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, não tem o
condão de tornar concreto o fato imponível do ICMS. É necessário, ainda, que dessa
operação, decorra a circulação, ou seja, é necessário que a operação realizada tenha como
consequência a circulação45 da mercadoria.
Não basta, portanto, tal como se possa entender através de uma leitura apressada
do artigo 12, inciso I da lei complementar 87/9646, que ocorra a mera saída física de
mercadorias do estabelecimento comercial, industrial ou produtor, pouco importando a causa,
o título jurídico ou o negócio, para a materialização da hipótese de incidência do ICMS.
Hodiernamente, prevalece o entendimento de que para que ocorra a circulação é necessária a
efetiva transferência da titularidade da mercadoria, somente aí surgindo a obrigação tributária
em matéria de ICMS. É a prevalência da tese da circulação jurídica sobre as teses da
circulação física e econômica47. Confira-se o magistério de Carrazza48:
45 A doutrina classifica em três as espécies de circulação: a) jurídica; b) econômica; c) física. Geraldo Ataliba e Cleber Giardino, citados por Sacha Calmon, afirmam que "circular significa, para o Direito, mudar de titular. Se um bem ou mercadoria muda de titular, circula para efeitos jurídicos" (COELHO, 2009, op. cit., p. 481). Já o conceito econômico de circulação, está relacionado a duas fases elementares do conceito econômico: a produção e a distribuição. Circula economicamente determinado bem, quando se "opera um deslocamento daqueles que os produzem para o que deles fruem", nos precisos dizeres de Alcides Jorge Costa (COSTA, op. cit., p. 81). Por fim, circula fisicamente a mercadoria quando ocorra a mera movimentação de determinado bem ou mercadoria. 46 "Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento: I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular." Embora não seja acertado o entendimento do legislador complementar no sentido de que a mera transferência entre estabelecimentos do mesmo contribuinte enseja a cobrança do imposto estadual. Esta questão será melhor delineada posteriormente. 47 Aliás, Alcides Costa, de longa data, já afirmava que a tese da circulação física sempre foi perfilhada pelas autoridades fiscais, certamente porque ampliava ao máximo a noção de fato gerador. (COSTA, op. cit., p. 71).
100
É bom esclarecermos, desde logo, que tal circulação só pode ser jurídica (e, não, meramente física). A circulação jurídica pressupõe a transferência (de uma pessoa para outra) da posse ou da propriedade da mercadoria. Sem mudança da titularidade da mercadoria, não há que falar em tributação por meio de ICMS. Esta idéia, abonada pela melhor doutrina (Souto Maior Borges, Geraldo Ataliba, Paulo de Barros Carvalho, Cleber Giardino, etc.), encontrou ressonância no próprio Supremo Tribunal Federal.
Desta forma, para que ocorra “circulação” para fins de incidência do ICMS,
mostra-se absolutamente necessário que ocorra a movimentação de mercadorias como forma
de transferir o domínio, ou seja, com a mudança da titularidade dos bens postos em
circulação49.
Por fim, a materialidade do imposto se completa com a definição do conceito de
“mercadoria”. Já nos ensinava, de longa data, Alcides Jorge Costa50 que "para efeito do ICM,
mercadoria é toda cousa móvel corpórea produzida para ser colocada em circulação, ou
recebida para ter curso no processo de circulação".
Tal conceito, trazido pelo autor sob a égide da Carta Constitucional de 1967, foi
ampliado pelo legislador constituinte de 1988, ao estabelecer de forma expressa que a energia
elétrica (bem incorpóreo51), também está sujeita à incidência do ICMS, conforme previsão
expressa do §3º, do artigo 155 do Texto Constitucional52.
48 CARRAZZA, op. cit., p. 36. 49 Esta é a razão pela qual o Superior Tribunal de Justiça sumulou o seu entendimento no sentido da impossibilidade da incidência do ICMS nas meras transferências entre estabelecimentos do mesmo titular. "SÚMULA 166: NÃO CONSTITUI FATO GERADOR DO ICMS O SIMPLES DESLOCAMENTO DE MERCADORIA DE UM PARA OUTRO ESTABELECIMENTO DO MESMO CONTRIBUINTE”. 50 COSTA, op. cit., p. 99. 51 Conforme ensina Hugo de Brito Machado: “Os bens, como tais entendidos como tudo o que tem valor econômico, podem ser corpóreos ou incorpóreos. Os primeiros têm valor pela própria matéria de que se compõem, como acontece com um automóvel, um sapato, uma caneta. São as coisas. Os últimos são aqueles que têm valor representativo, como acontece com um cheque, uma duplicata mercantil, um nome comercial, uma marca de indústria”. (MACHADO, op. cit., p. 28). 52 Cumpre aqui ressaltar que a incidência do ICMS sobre as operações de circulação de energia elétrica somente é possível dada a expressa autorização constitucional. Isto porque, os bens incorpóreos, como dito, não se enquadram no âmbito constitucional de incidência do imposto. Assim já decidiu o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 176.626: “I. Recurso extraordinário : prequestionamento mediante embargos de declaração (Súm. 356). A teor da Súmula 356, o que se reputa não prequestionado é o ponto indevidamente omitido pelo acórdão primitivo sobre o qual "não foram opostos embargos declaratórios". Mas se, opostos, o Tribunal a quo se recuse a suprir a omissão, por entendê-la inexistente, nada mais se pode exigir da parte (RE 210.638, Pertence, DJ 19.6.98). II. RE: questão constitucional: âmbito de incidência possível dos impostos previstos na Constituição: ICMS e mercadoria. Sendo a mercadoria o objeto material da norma de competência dos Estados para tributar-lhe a circulação, a controvérsia sobre se determinado bem constitui mercadoria é questão constitucional em que se pode fundar o recurso extraordinário. III. Programa de computador ("software"): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de "licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador" " matéria exclusiva da lide ", efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado "software de prateleira" (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 176626/SP. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), incidência, programa de computador (software), cópias, reprodução, mercardoria, caracterização, comercialização, revenda, objetivo. 1ª Turma. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, 10 de novembro de 1998. Brasília: Diário da Justiça, 11 dez. 1998, p. 10.
101
A acepção acima, com algumas variantes, é seguida por diversos doutrinadores,
que definem mercadoria como
o bem corpóreo da atividade empresarial do produtor, industrial e comerciante, tendo por objeto a sua distribuição ao consumo, compreendendo-se no estoque da empresa, distinguindo-se das coisas que tenham qualificação diversa, segundo a ciência contábil, como é o caso do ativo permanente53 ;
ou ainda, "coisas móveis destinadas ao comércio, ou seja, coisas adquiridas pelos empresários
para revenda, no estado em que as adquiriu, ou transformadas, e ainda aquelas produzidas
para venda"54.
Importante frisar que, mesmo sendo o conceito doutrinário de mercadoria
essencial para a definição da materialidade do ICMS, o legislador constitucional, em
determinadas situações, ampliou o âmbito de incidência do imposto, incluindo no campo da
tributação determinados bens que, a priori, não se enquadram na definição de mercadoria, tal
como no caso da energia elétrica, conforme já ressaltado acima. Neste caso, mesmo não se
enquadrando no conceito de mercadoria, por expressa disposição constitucional, estão sujeitos
a incidência do imposto estadual.
Insta ressaltar, por oportuno, que o enquadramento de determinado bem móvel
como mercadoria não está nas próprias características do bem, mas na destinação que é dada
ao mesmo, consoante preceitua Paulo de Barros Carvalho, citado por Misabel Derzi55:
A natureza mercantil do produto não está, absolutamente, entre os requisitos que lhe são intrínsecos, mas na destinação que se lhe dê. É mercadoria a caneta exposta à venda entre outras adquiridas para esse fim. Não o será aquela que mantenho em meu bolso e se destina a meu uso pessoal. Não se operou a menor modificação na índole do objeto referido. Apenas a sua destinação veio a conferir-lhe atributos de mercadorias.
Desta forma, o mesmo produto pode, em uma determinada situação, se enquadrar
como mercadoria e, em outra, não. O fundamental é que o bem esteja inserido no processo de
circulação para que o mesmo seja classificado como mercadoria, ou seja, relevante se mostra
a sua destinação, tal como definido por Paulo de Barros Carvalho. Veja-se o exemplo trazido
por Souto Maior Borges56:
Mercadoria é o bem móvel, que está sujeito à mercancia, porque foi introduzido no processo econômico circulatório. Tanto que o que caracteriza, sob certos aspectos, a mercadoria é a destinação, porque aquilo que é mercadoria, no momento que se introduz no ativo fixo da empresa, perde essa característica de mercadoria, podendo ser reintroduzido no processo circulatório, voltando a adquirir, consequentemente, essa conotação de mercadoria.
53 MELO, op. cit., p. 16. 54 MACHADO, op. cit., p. 29. 55 CARVALHO, Paulo de Barros apud BALEEIRO, op. cit., p.376. 56 BORGES, José Souto Maior. Questões Tributárias. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 85.
102
Dito isto, conclui-se que, ressalvadas as hipóteses previstas expressamente na
Constituição, a materialidade do ICMS pode ser definida como a realização de negócios
jurídicos mercantis, translativos da titularidade das mercadorias, assim entendidas como os
bens móveis destinados à revenda, nas operações de circulação das mesmas, desde a fonte
produtiva até o consumo.
4.2.1.2. ASPECTO TEMPORAL
O aspecto temporal da hipótese de incidência tributária é conceituado por
Ataliba57 como sendo "a propriedade que esta tem de designar (explícita ou implicitamente) o
momento em que se deve reputar consumado (acontecido, realizado) o fato imponível". É o
que Paulo de Barros Carvalho58 chama de conjunto de elementos que nos permite identificar a
condição que atua sobre determinado fato (também representado abstratamente – critério
material), limitando-o no tempo.
Tal aspecto é o que define o momento em que nasce o vínculo jurídico tributário
decorrente da conduta humana descrita no aspecto material da hipótese de incidência
tributária59.
Por se afigurar como um dos aspectos da hipótese de incidência tributária, a
definição do momento da materialização do fato imponível tributário deve estar prevista na lei
definidora das normas gerais do tributo, a teor do disposto no artigo 146, III, “a”, da
Constituição, que no caso do ICMS, como dito, é a Lei Complementar nº 87/96, razão pela
qual a lei ordinária dos Estados-Membros e do Distrito Federal devem se ater ao delineamento
contido na lei complementar.
Ocorre que não basta que a lei complementar defina que o imposto incidirá na
entrada, na saída ou no fornecimento de bens pelo contribuinte do imposto; é fundamental que
esta entrada, saída ou fornecimento tenham origem em um negócio jurídico mercantil
realizado pelo contribuinte, que tenha como objeto a circulação de mercadorias.
Isto porque, consoante muito bem nos ensina Misabel Derzi60, a entrada, a saída
ou o fornecimento são meras exteriorizações do fato jurídico tributário, mero aspecto
57 ATALIBA, op. cit., p. 94. 58 CARVALHO, 1998, op. cit., p. 134. 59 Consoante salienta CARRAZZA, (op. cit., p. 44): “A saída da mercadoria do estabelecimento comercial, industrial ou produtor não é a hipótese de incidência do ICMS, como pretendem alguns, mas, apenas, o seu aspecto temporal. É apenas o átimo em que a lei considera ocorrida a hipótese de incidência do ICMS. " 60 BALEEIRO, op. cit., p. 378.
103
temporal, que deve estar intimamente ligado à ocorrência do aspecto material do imposto.
Confira-se o magistério da ilustre professora:
Assim, aqueles fenômenos apontados por Aliomar Baleeiro e, geralmente, constantes das leis, como saída, fornecimento, entrada, etc. são simples exteriorizações do fato jurídico, que cumprem o importante papel de definir o aspecto temporal, o momento do nascimento da obrigação tributária. Não significam, entretanto, fato gerador diferente em sua essência material, mas variações de um mesmo fato quanto à exteriorização ou à circunstância temporal. Por detrás de toda saída, fornecimento ou entrada (...) existe uma operação (jurídica) de circulação de mercadorias, como execução de uma obrigação de dar ou efetiva prestação (execução de uma obrigação de fazer) de serviços de transporte ou de comunicação.
Por esta razão é que não há que se falar em ocorrência do fato gerador do ICMS,
por exemplo, pela simples celebração do contrato de compra e venda, sem que ocorra a
tradição das mercadorias para o comprador. Nem mesmo, há que se falar em incidência do
imposto pela mera saída física da mercadoria do estabelecimento do vendedor, sem que seja
acompanhada de um negócio jurídico mercantil, translativo da propriedade.
4.2.1.3. ASPECTO ESPACIAL
Adentrando ao aspecto espacial da hipótese de incidência tributária, definido por
Ataliba61 como a indicação de circunstância de lugar, contidas explícita ou implicitamente na
h.i., relevantes para a configuração do fato imponível, temos que, em matéria de ICMS, a Lei
Complementar nº 87/96 definiu, no seu artigo 11, os locais em que devem ser consideradas
ocorridas operações ou prestações sujeitas ao imposto, para os efeitos da cobrança do imposto
e definição do estabelecimento responsável.
A definição do aspecto espacial do ICMS é importante para que sejam evitadas
dúvidas em relação ao ente federado competente para exigir o imposto. Tal definição está
prevista em lei complementar, dado o seu papel de dirimir conflitos de competência entre a
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, previsto no inciso I, do artigo 146 do texto
Constitucional.
No que se refere ao aspecto espacial, uma controvérsia existente diz respeito à
titularidade do imposto nas operações de importação. Na realidade, a mencionada
controvérsia foi criada pelo próprio legislador complementar que, ao definir o aspecto
espacial da hipótese de incidência do ICMS-importação, extrapolou claramente os ditames
constitucionais atinentes ao destinatário constitucional do tributo.
61 ATALIBA, op. cit., p. 104.
104
Dispõe o artigo 155, §2°, IX, “a” do Texto Constitucional que o imposto estadual
incidirá também:
a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001).
Ao estabelecer que o imposto na importação incidirá sobre a entrada do bem ou
mercadoria importados do exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o
domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço, pretendeu o
constituinte atribuir ao Estado da localização do importador, ou seja, daquele que
juridicamente promoveu a entrada dos bens ou mercadorias no território nacional.
Assim entende majoritariamente a doutrina62:
O “destinatário” a que alude a Constituição é o destinatário jurídico, que não se identifica necessariamente com a pessoa, física ou jurídica, à qual os bens foram remetidos fisicamente. O destinatário jurídico é o importador (“aquele que promoveu juridicamente o ingresso do produto”), sujeito passivo do ICMS-Importação.
Todavia, ao disciplinar o aspecto espacial da hipótese de incidência do ICMS nas
operações de importação, o legislador complementar, inovando o Texto Supremo, definiu no
seu artigo 11 que:
LC 87/96 Art. 11 - O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável é: I - tratando-se de mercadoria ou bem: (...) d) importado do exterior, o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física. (Grifos do autor).
Ora, a Lei Complementar 87/96, sob a pecha de exercer a sua função de delimitar o
aspecto espacial do imposto nas hipóteses de importação de bem ou mercadoria, instituiu
critério não previsto na Constituição, ao considerar como local da ocorrência do fato gerador
o da entrada física da mercadoria, e não da entrada jurídica, tal como se infere através de uma
interpretação do Texto Constitucional.
Devido à ‘guerra fiscal’ realizada entre os Estados-Membros, muitos importadores são
seduzidos a realizar as suas operações de importação através de empresas63 64sediadas em
62 VELLOSO, Andrei Pitten. Constituição tributária interpretada. São Paulo: Atlas, 2007, p. 276. 63 Cumpre diferenciar as duas modalidades possíveis de realização de operações de importação utilizando-se de terceira empresa: (i) importação por conta e ordem de terceiro, que se constitui na prestação de serviços por uma empresa – importadora -, a qual promove, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadorias adquirida por outra
105
Estados que lhes concedem benefícios fiscais caso o desembaraço aduaneiro se dê em seus
territórios. Todavia, na maioria das vezes, o destino efetivo das mercadorias importadas é o
estabelecimento do importador em outro Estado federado, ou seja, a entrada jurídica da
mercadoria importada se dá em estabelecimento localizado em Estado distinto daquele em
que as mercadorias foram fisicamente ingressadas no território nacional.
Nestas hipóteses, a doutrina é unânime no sentido de que o ICMS é devido ao Estado
em que está localizado o destinatário jurídico do bem, isto é, o do efetivo adquirente da
mercadoria importada, sendo irrelevante o local da ocorrência do desembaraço aduaneiro.
Nesse sentido, afirma Roque Antônio Carrazza65:
Cabe ICMS nas importações de bens para que sejam integrados no ciclo econômico. Já vimos que o tributo é devido, nestes casos, à pessoa política (Estado ou Distrito Federal) onde estiver localizado o destinatário do bem. Nenhuma entredúvida pode surgir quando o destinatário do bem está localizado no próprio Estado onde se deu o desembaraço aduaneiro. Dúvidas, porém, emergem quando o importador encontra-se estabelecido em Estado diverso daquele onde se deu o desembaraço aduaneiro. A situação ainda mais se complica quando a destinação final dos bens importados for um terceiro Estado. Só para equacionarmos o problema, figuremos a seguinte hipótese: o desembaraço aduaneiro dá-se no Estado A; o estabelecimento importador está no Estado B; o bem importado vai ter a um terceiro estabelecimento, este localizado no Estado C. A qual dos Estados é devido o ICMS? Àquele onde se deu o desembaraço aduaneiro? Àquele onde está situado o estabelecimento do importador? Ou àquele onde os bens importados afinal chegarão? Cremos que ICMS é devido à pessoa política (Estado ou Distrito Federal) onde estiver localizado o estabelecimento do importador. Pouco importa se o desembaraço aduaneiro deu-se noutro Estado. O desembaraço aduaneiro, no caso, é apenas o meio através do qual a importação se deu. O que a Constituição manda considerar para fins de tributação por via de ICMS é a localização do estabelecimento que promoveu a importação do bem.
empresa – a adquirente –, em razão de um contrato previamente firmado (Conforme artigo 1° da Instrução Normativa SRF n° 225/2002 e art. 12, parágrafo 1°, da Instrução Normativa SRF n° 247/2002); e (ii) importação por encomenda, que é aquela em que uma trading company adquire mercadorias no exterior com recursos próprios e promove o seu despacho aduaneiro de importação, a fim de revendê-las, posteriormente, a uma empresa encomendante previamente determinada, em razão de contrato entre a importadora e a encomendante (Conforme art. 2°, parágrafo 1°, I, da Instrução Normativa SRF n° 634/2006. Note-se que na primeira hipótese, o importador, adquirente das mercadorias importadas, é o sujeito passivo do imposto estadual, já que efetivamente é ele o destinatário jurídico do bem importado. Já na importação por encomenda, a trading
company é quem efetivamente realiza a importação, apenas revendendo a mercadoria importada, após a sua nacionalização, para o encomendante. Nesta hipótese, ocorrem dois fatos geradores distintos do ICMS: o primeiro, na operação de importação, e o segundo, na venda interna da mercadoria então importada. Em que pese tratarem de hipóteses absolutamente distintas, alguns Estados-Membros entendem que mesmo na importação por encomenda, o ICMS-importação é devido para o domicílio do autor da encomenda. Neste sentido é o entendimento do Estado de Minas Gerais, consoante se verifica da resposta à Consulta de Contribuinte n° 084/2011, de 07 de junho de 2011: “ICMS – IMPORTAÇÃO POR ENCOMENDA – RECOLHIMENTO – Nos termos da subalínea “d.1” do inciso I do art. 61 do RICMS/02, o local da operação ou da prestação, para os efeitos de cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, tratando-se de importação de mercadoria ou bem, é o do estabelecimento que direta ou indiretamente promover a importação, desde que com o fim de consumo, imobilização, comercialização ou industrialização pelo próprio estabelecimento”. (Disponível em: <http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/consultas_contribuintes/2011/cce084_2011.htm>. Acesso em: 15/06/2011). 64 O Supremo Tribunal Federal, embora instado a se manifestar acerca da clara diferenciação existente entre os institutos da importação por conta e ordem e da importação por encomenda para fins de definição do aspecto espacial da hipótese de incidência tributária em matéria de ICMS, não efetuou a distinção, decidindo apenas que o importe é devido onde estiver localizado o real destinatário jurídico da mercadoria, conforme se infere do aresto da ementa do Ministro Joaquim Barbosa ((BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 445544. 1ª Turma, Rel.: Ministro Joaquim Barbosa, 06 de maio de 2010. Brasília: Diário da Justiça, 07 mai. 2010, p. 1132. 65 CARRAZZA, op. cit., p. 60-61.
106
Essa mesma percepção do tema é perfilhada por Júlio M. de Oliveira e por Victor
Gomes66, in verbis:
O estabelecimento destinatário a que se referiu a Carta é, e só pode ser, aquele que importou os bens. Aquele que realizou um negócio mercantil (compra e venda) no exterior, pagando o preço avençado e exigindo a entrega. Aquele que contraiu direitos e obrigações decorrentes do contrato de compra e venda internacional. Por isso, a nenhuma outra pessoa, ainda que venha a receber fisicamente os bens importados, se pode atribuir tal natureza.
Aliás, neste sentido é o entendimento já consolidado do Supremo Tribunal Federal, in
verbis:
TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ICMS. IMPORTAÇÃO. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. SUJEITO ATIVO. ESTADO DO DESTINATÁRIO JURÍDICO DO BEM. SÚMULA STF 279. 1. Segundo orientação firmada por esta Corte, o sujeito ativo do ICMS incidente sobre operações de importação de mercadorias é o Estado-Membro em que localizado o destinatário jurídico do bem. 2. Para se chegar à conclusão contrária à adotada pelo acórdão recorrido, necessário seria o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, o que atrai a incidência da Súmula 279 do STF. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 589602 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 14/12/2010, DJe-024 DIVULG 04-02-2011 PUBLIC 07-02-2011 EMENT VOL-02458-01 PP-00223).
Passemos ao aspecto pessoal da hipótese de incidência.
4.2.1.4. ASPECTO PESSOAL
O critério pessoal da hipótese de incidência tributária diz respeito à pessoa
envolvida com o fato jurígeno – para fins tributários – pelo legislador, conforme teoria de
Sacha Calmon67 68, teoria esta com a qual somos adeptos.
O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro insere o critério pessoal no
antecedente ou hipótese da norma tributária, fundamentando seu entendimento no sentido de
que o fato jurígeno (um “ser’, “ter”, “estar” ou “fazer”) está sempre ligado a uma pessoa e, às
vezes, os tributos ou qualificações dessa pessoa são importantes para a delimitação da
hipótese de incidência tributária.
O autor continua a defesa da inclusão do aspecto pessoal no antecedente da norma
tributária afirmando que tal aspecto é fundamental para a compreensão da responsabilidade
66 OLIVEIRA, Júlio M.; GOMES, Victor. ICMS devido na importação – Fundap – Competência ativa. In: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 35, maio/98, p. 109. 67 COELHO, 1999, op. cit., p. 110-112. 68 Todavia, tal aspecto desperta divergências na doutrina pátria. Paulo de Barros Carvalho coloca o que chama de critério pessoal, no consequente da regra-matriz de incidência ou prescritor normativo, definindo-o como aquele que oferece os critérios de identificação dos elementos constitutivos do laço obrigacional, apontando os sujeitos (ativo e passivo) da relação tributária. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 329-330.
107
tributária, especificamente a responsabilidade por substituição, nos casos em que ocorre a
isenção subjetiva69 e em alguns casos de direito tributário internacional.
Saliente-se que nem sempre a pessoa que realiza a situação hipotética descrita na
norma tributária, como necessária e suficiente para o surgimento do fato imponível, é a
mesma pessoa que detém o dever legal de efetuar o recolhimento do tributo, tal como descrito
no mandamento da norma. Pode ser que haja a coincidência. Neste caso, têm-se a sujeição
passiva direta (art. 121, parágrafo único, inciso I do CTN).
Caso haja a distinção entre a pessoa que pratica o fato imponível e aquele que a lei
determine o pagamento do tributo, tem-se a chamada sujeição passiva indireta, ou
responsabilidade tributária tal como dispõe do artigo 121, parágrafo único, inciso II, e artigos
128 e seguintes do Código Tributário Nacional.
Não nos aprofundaremos nesta questão, pois foge ao escopo do presente trabalho,
sendo suficiente apenas traçar, em breves linhas, os aspectos da hipótese de incidência do
ICMS, a fim de orientar o leitor para uma melhor compreensão da questão da “guerra fiscal”
entre os Estados-Membros em matéria do ICMS.
4.2.2. MANDAMENTO
No campo do mandamento da norma tributária deparamo-nos novamente com o
aspecto pessoal, definidor dos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária, e com o aspecto
quantitativo, definidor das alíquotas e bases de cálculo dos tributos.
4.2.2.1. SUJEITO ATIVO E SUJEITO PASSIVO
O sujeito ativo do tributo é o titular do direito subjetivo de instituí-lo. No caso
específico do ICMS, o artigo 1º da LC 87/96, com fundamento no artigo 155, II, do Texto
Constitucional, define como competentes para a instituição do imposto os Estados-Membros e
o Distrito Federal.
Já o sujeito passivo pode ser direto, também chamado de contribuinte do imposto,
quando ele possua relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato gerador do
imposto. O artigo 4º da Lei Complementar 87/96 os define como: (i) qualquer pessoa, física
ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial,
69 Segundo Souto Maior Borges, nas isenções subjetivas, a lei, com uma disposição de direito excepcional, exonera do pagamento do tributo pessoas, segundo a regra tributária geral nela inserida, compreendidas entre os sujeitos passivos da
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operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e
intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no
exterior, ou ainda, (ii) a pessoa física ou jurídica que, mesmo sem habitualidade ou intuito
comercial, importe mercadorias ou bens do exterior, qualquer que seja a sua finalidade, seja
destinatária de serviço prestado no exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior;
(iii) adquira em licitação mercadorias ou bens apreendidos ou abandonados; (iv) ou adquira
lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo e energia elétrica
oriundos de outro Estado, quando não destinados à comercialização ou à industrialização.
De outra senda, quando, embora não realizem a situação hipotética prevista em
lei, possuam o dever legal de levar dinheiro aos cofres públicos, são considerados sujeitos
passivos indiretos, tendo como exemplo, os substitutos tributários, previstos no artigo 6º e
seguintes, da lei complementar.
4.2.2.2. ASPECTO QUANTITATIVO
Outro aspecto do mandamento da norma tributária é o quantitativo, cujos
elementos formadores são: base de cálculo e alíquota. O aspecto quantitativo consequente da
norma tributária será composto por estes dois elementos, e é por meio destes que será apurado
o quantum devido do tributo70.
A base de cálculo tem como função dimensionar a intensidade do comportamento
inserto no núcleo do fato jurídico, para que, combinando-se à alíquota, seja determinado o
valor da prestação pecuniária. Sua principal função é confirmar, infirmar ou afirmar o critério
material expresso na composição do suposto normativo, nos precisos dizeres de Paulo de
Barros Carvalho71. No caso do ICMS, as bases de cálculo estão previstas nos artigos 8º e 13
da Lei Complementar nº 87/96.
Já as alíquotas designam o percentual aplicável sobre a base imponível, cujo
resultado é justamente o montante do tributo devido, embora não se desconheça que as
mesmas possam ser específicas, isto é, expressa em unidade de quantificação, como peso ou
medida.
obrigação tributária. BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. São Paulo: Sugestões Literárias S.A., 1980, p. 227. 70 Não se desconhece a existência dos chamados tributos fixos que, nos precisos dizeres de Aliomar Baleeiro, são aqueles em que a própria lei estabelece quantia invariável em relação ao valor da matéria tributável (BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro: Forense, 2006). Este critério de aferição do quantum do tributo tem a sua aplicabilidade cada vez mais restrita, já não afere a efetiva capacidade contributiva dos contribuintes. Como exemplos deste tipo de tributo no Brasil, podemos citar as taxas de emissão de alvará, de passaporte, além do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, pago pelos profissionais liberais (art. 9°, §1º, do Decreto-lei 406/68). 71 CARVALHO, 2007, op. cit., p. 360-361.
109
Em matéria de ICMS, consoante já salientado no item 4.1.2 acima, o legislador
constituinte outorgou exclusivamente ao Senado Federal a competência para a definição das
alíquotas incidentes nas operações interestaduais e de exportação, outorgando-lhe, ainda, a
faculdade de estabelecer as alíquotas internas mínimas e máximas.
Cumpre salientar, todavia, que no caso do imposto ora em debate, a apuração do
quantum devido do tributo não se verifica através da mera aplicação da alíquota sobre
determinada base de cálculo, já que, em se tratando de imposto não-cumulativo, tal como
previsto no Texto Constitucional, o montante a ser pago deve ser calculado abatendo-se da
operação de circulação de mercadorias, o imposto devido na operação anterior. Somente se o
débito do imposto for maior do que o crédito da operação anterior é que se falará em
recolhimento do imposto.
Caso não fosse assim, o ICMS continuaria sendo sobre operações relativas à
circulação, mas jamais seria “não-cumulativo”, como previsto na Constituição72.
Obviamente, não pretendemos com essa breve exposição dos aspectos da norma
tributária do ICMS esgotar o tema, mas apenas traçar, de forma genérica, as regras de
incidência do imposto estadual, a fim melhor entender o tema de fundo do presente trabalho,
qual seja, a concessão de benefícios fiscais irregulares em matéria de ICMS pelos Estados-
Membros e a sua influência direta na concorrência entre os agentes econômicos.
4.3. ISENÇÕES E OUTROS INCENTIVOS FISCAIS
Parte da doutrina conceitua o instituto da isenção tributária de forma ampla,
definindo que dentro do mesmo cabem todas as normas tributárias que retirem ou subtraiam
da composição ou da estrutura lógica do fato gerador algum fato específico, que, desta forma,
não ficará sujeito ao tributo73.
Dentro deste conceito estendido, verifica-se que todas as formas exonerativas de
exações tributárias por parte dos entes públicos se enquadrariam neste conceito. Para Geraldo
Ataliba e José Artur Lima Gonçalves74, todos os mecanismos que tenham como finalidade
atrair ou impulsionar a prática de determinada atividade que o Estado elege como prioritária,
seriam enquadrados no conceito amplo de incentivo fiscal:
72 COELHO, 1999, op. cit., p. 166. 73 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Teoria e Prática das Isenções Tributárias. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 16. 74 ATALIBA, Geraldo; GONÇALVES, José Artur Lima. Crédito-prêmio de IPI: direito adquirido – recebimento em dinheiro. In: Revista de Direito Tributário, v. 15, n. 55, 1991, p. 162-179.
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Os incentivos fiscais manifestam-se, assim, sob várias formas jurídicas, desde a forma imunitória até a de investimentos privilegiados, passando pelas isenções, alíquotas reduzidas, suspensões de impostos, manutenção de créditos, bonificações, créditos especiais – dentre eles os chamados crédito-prêmio – e outros tantos mecanismos, cujo fim último é, sempre, o de impulsionar ou atrair, os particulares para a prática das atividades que os Estados elege como prioritárias, tornando, por assim dizer, os particulares em participantes e colaboradores da concretização das metas postas como desejáveis a do desenvolvimento econômico e social por meio da ação do comportamento ao qual são condicionados.
Sabe-se que a concessão destes diversos incentivos fiscais pelos entes federados é
uma importante e eficaz forma de intervenção do Estado na economia, na busca pela
concretização de objetivos fundamentais previstos no Texto Constitucional, em especial, a
busca pela redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inciso II, CR/88) e a
promoção do equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do
País (art. 151, inciso I, CR/88). Porém, numa interpretação distorcida do texto constitucional,
os Estados valem-se destes objetivos para justificar, econômica, social e juridicamente a
legitimidade da “guerra fiscal” em matéria de ICMS.
Atento a essa possibilidade, o legislador constitucional deu fundamental
importância à forma de concessão destes incentivos ou benefícios fiscais por parte dos
Estados-Membros e do Distrito Federal, prescrevendo no próprio Texto da Constituição, que
cumpriria ao legislador complementar disciplinar a forma através da qual os benefícios fiscais
em matéria de ICMS seriam concedidos (art. 155, §2º, XII, g).
Traçaremos abaixo um perfil das principais formas exonerativas utilizadas pelos
Estados-Membros em matéria de ICMS, bem como a forma constitucional de concessão dos
incentivos ou benefícios.
4.3.1. NATUREZA JURÍDICA DA ISENÇÃO.
Diverge a doutrina pátria acerca da natureza jurídica do instituto da isenção.
Inicialmente, prevalecia o entendimento de que a isenção deveria ser vista como uma dispensa
legal do pagamento do tributo, tal como leciona Rubens Gomes de Souza75:
(...) na isenção o tributo é devido porque existe obrigação, mas a lei dispensa o seu pagamento. Por conseguinte a isenção pressupõe a incidência porque, é claro que só se pode dispensar o pagamento de um tributo que seja efetivamente devido.
75 SOUZA, Rubens Gomes. Compêndio de Legislação Tributária. Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1954, p. 75-76.
111
Para esta corrente doutrinária, quase sem seguidores na atualidade, ocorre in
concreto a hipótese de incidência, nasce a obrigação tributária, mas o legislador, por
liberalidade, dispensa o contribuinte do pagamento do tributo devido.
Adeptos desta teoria, como Amilcar Araújo Falcão76, para quem na isenção,
ocorre o fato gerador, mas o legislador determina “a inexigibilidade do débito assim surgido”
e Bernardo Ribeiro de Moraes77, que a considera como um "favor concedido em lei no sentido
de dispensar o contribuinte do pagamento do imposto".
Autores, como Souto Maior Borges,78 tecem severas críticas à posição acima,
entendendo a isenção como uma hipótese de desobrigação tributária79. Afirma esta corrente
doutrinária que existem duas normas tributárias distintas, porém simultâneas: uma norma de
incidência e outra isencional, impedindo o nascimento da obrigação tributária. O mestre
pernambucano, já nos idos da década de 1980, afirmava que80:
Criticou-se essa definição (isenção como dispensa legal do pagamento do tributo) porquanto ela contradiz a fenomenologia da incidência das normas jurídicas tributárias, cujo ciclo total se perfaz pelo transcurso ou integração das seguintes fases: 1.ª) Outorga, pelo ordenamento constitucional, de competência para a instituição do imposto; 2.ª) Utilização, pelo ente público, de sua capacidade tributária ativa por meio da produção de normas da mesma hierarquia no sistema de escalonamento normativo da federação brasileira; 3.ª) Disciplinação via de regra simultânea dos fatos geradores da obrigação tributária e fatos geradores (hipóteses de incidência) da isenção, através de normas da mesma hierarquia no sistema de escalonamento da federação brasileira; 4.ª) Quando for o caso, ato administrativo de reconhecimento (declaratório) dos pressupostos para gozo da isenção.
Esta posição, também defendida por Alfredo Augusto Becker, vê a norma
isencional como uma regra jurídica não juridicizante, na medida em que criaria um fato
impeditivo que modifica ou restringe a norma tributária, no momento da incidência
simultânea de ambas. Confira-se um trecho da obra de Becker81:
76 FALCÃO, Amilcar de Araújo. Direito Tributário Brasileiro: Aspectos Concretos. Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1980, p.69. 77 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e Prática do Imposto de Indústrias e Profissões. São Paulo: Max Limonad, 1964, p. 673. 78 BORGES, 1980, op. cit., p. 138. 79 Souto Maior Borges nos ensina que: "A não incidência pode ser: I – pura e simples, a que se refere a fatos inteiramente estranhos à regra jurídica de tributação, a circunstância que se colocam fora da competência do ente tributante; II – qualificada, dividida em duas subespécies: a) não-incidência por determinação constitucional ou imunidade tributária; b) não-incidência decorrente da lei ordinária – a regra jurídica de isenção (total)" (BORGES, 1980, op. cit., p. 130). 80 BORGES, 1980, op. cit., p. 162-163. 81 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 277.
112
Ora, aquêle elemento faltante, ou excedente, é justamente o elemento que, entrando na composição da hipótese de incidência da regra jurídica de isenção, permitiu diferençá-la da regra jurídica de tributação, de modo que aquêle elemento sempre realizará uma única hipótese de incidência: a da isenção, e desencadeará uma única incidência: a da regra jurídica da isenção, cujo efeito é negar existência de relação jurídica tributária. A regra jurídica de isenção incide para que a de tributação não possa incidir. A regra jurídica que prescreve a isenção, em última análise, consiste na formulação negativa da regra jurídica que estabelece a tributação.
Sacha Calmon Navarro Coelho82 e Aurélio Pitanga Seixas Filho83 não vêem a
norma de isenção como distinta da norma tributária, mas sim como componente desta, para o
efeito de produzir uma consequência jurídica particular, qual seja, excluir determinadas
situações da esfera de tributação. Confira-se trecho da obra do professor Sacha:
Data venia, ousamos discordar da colocação do Mestre nordestino. Achamos que a norma de isenção não é. E se não é, não pode ser não juridicizante. Não sendo, também não incide. As normas não derivam de textos legais isoladamente tomadas por isso que se projetam do contexto jurídico. A norma é a resultante de uma combinação de leis ou artigos de lei (existentes no sistema jurídico). As leis e artigos de lei (regras legais) que definem os fatos tributáveis se conjugam com as previsões imunizantes e isencionais para compor uma única hipótese de incidência: a norma jurídica de tributação. Assim, para que ocorra a incidência da norma de tributação, é indispensável que os fatos jurígenos contidos na hipótese de incidência ocorram no mundo. E esses “fatos jurígenos” são fixados após a exclusão de todos aqueles considerados não-tributáveis em virtude de previsões expressas de imunidade e de isenção. (Grifos do autor).
A última corrente, defendida por Paulo de Barros Carvalho84, vê a regra isencional
como uma subtração de um ou mais critérios da norma de incidência tributária, quer ele esteja
localizado no antecedente ou no consequente da norma. Confira-se trecho do entendimento
defendido pelo autor:
Advogamos a tese segundo a qual o acontecimento das isenções é fenômeno que se processa no plano exclusivamente normativo. Guardando a sua autonomia, a regra de isenção investe contra um ou mais critérios da norma padrão de incidência, mutilando-os parcialmente. O que o preceito de isenção faz é subtrair parcela do campo de abrangência do critério do antecedente ou do consequente, impedindo, com isso, a propagação dos efeitos da norma de tributação.
Concordamos com a posição defendida por Sacha Calmon, no sentido de que a
isenção é a exclusão, por parte do legislador, do campo das hipóteses que englobam norma
tributária, de determinadas situações que passam a não mais provocar a incidência do tributo,
ou, nos dizeres de Sacha Calmon85, "são declarações de vontade do legislador cuja função é
delimitar negativamente o fato jurígeno ex lege".
Pedimos venia para discordar do mestre Paulo de Barros Carvalho, pois
entendemos que a regra isentante apenas age no antecedente da norma tributária, evitando que
82 COELHO, 1999, op. cit., p. 153-154. 83 SEIXAS FILHO, op. cit., p. 9. 84 CARVALHO, 1994, op. cit., p. 105.
113
a mesma irradie os efeitos que lhe são característicos, jamais no seu consequente, como
entende o professor paulista.
Entendemos que as exonerações no mandamento da norma tributária, se referem a
institutos jurídicos diversos da isenção86. As isenções moldam o perfil do fato imponível, na
medida em que se encontram nas hipóteses de incidência das normas de tributação, enquanto
as outras espécies exonerativas apenas compõem o perfil do dever jurídico tributário, na
medida em que atuam diretamente nas consequências jurídicas das normas tributárias87.
4.3.2. ISENÇÃO TOTAL E ALÍQUOTA ZERO
Técnica exonerativa muito utilizada, principalmente em matéria do imposto sobre
produtos industrializados e imposto de importação, é a redução total da alíquota do tributo
(alíquota zero), ocasionando na inexistência de montante em dinheiro a ser recolhido aos
cofres públicos.
Tal figura, objeto de algumas divergências na doutrina pátria, embora possua o
mesmo efeito da isenção, com ela não se confunde, já que a isenção é fator impeditivo do
nascimento da obrigação tributária, enquanto a alíquota zero é apenas a redução total de um
dos elementos constitutivos do aspecto quantitativo do mandamento da norma tributária.
Sacha Calmon88 elenca quatro fundamentos na defesa da tese diferenciadora dos
institutos:
a) o primeiro deles encontra substrato na estrutura da norma tributária, figurando a
isenção no antecedente da norma tributária e a alíquota zero no seu consequente. O fato
isentivo vincula-se a aspectos ligados às pessoas, atos, fatos ou situações que o
legislador deseja excluir da base de cálculo do imposto. Já a alíquota zero apenas
nulifica o quantum do tributo devido, componente do mandamento da norma.
b) O segundo diz respeito à funcionalidade que a alíquota zero possui, e que não está
prevista na isenção. Isto porque na alíquota zero, o Poder Executivo está autorizado a
alterar livremente as alíquotas de determinados impostos (ex vi do art. 153, §1º, da
85 COELHO, 1999, op. cit., p. 164. 86 O professor Paulo de Barros apresenta na sua obra Curso de Direito Tributário um esquema contendo oito maneiras distintas em que a regra de isenção pode inibir a funcionalidade da regra-matriz tributária: I – Pela hipótese: a) atingindo-lhe o critério material, pela desqualificação do verbo; b) atingindo-lhe o critério material, pela subtração do complemento; c) atingindo-lhe o critério espacial; d) atingindo-lhe o critério temporal. II – pelo consequente: e) atingindo-lhe o critério pessoal, pelo sujeito ativo; f) atingindo-lhe o critério pessoal, pelo sujeito passivo; g) atingindo-lhe o critério quantitativo, pela base de cálculo; h) atingindo-lhe o critério quantitativo, pela alíquota. (CARVALHO, 2007, op. cit., p. 525). 87 COELHO, 1999, op. cit., p. 172.
114
CR/88), enquanto a concessão de isenção está estritamente vinculada ao princípio da
legalidade tributária (art. 97 do CTN).
c) O terceiro fundamento também está vinculado à liberdade de alteração das alíquotas
pelo Poder Executivo, a que o autor atribui uma característica universal, principalmente
nos impostos aduaneiros.
d) Por fim, o dileto professor estabelece que a equiparação entre os institutos certamente
violaria a segurança jurídica dos contribuintes, já que se a adoção da alíquota zero se
equiparasse à isenção, estar-se-ia autorizando ao Poder Executivo a atuar na hipótese da
norma, causando insegurança, já que a delimitação das hipótese de incidência tributárias
está prevista na Constituição, cabendo apenas ao Poder Legislativo do ente federado
exercer esta competência constitucionalmente outorgada.
Saliente-se, por derradeiro, que o entendimento acima esposado, já de longa data,
foi consolidado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, que entendeu serem absolutamente
distintos os institutos da isenção e da alíquota zero89.
Encampamos a tese acima exposta, na medida em que de fato não restam dúvidas
quanto a distinção dos institutos, mormente em se considerando o primeiro fundamento
apontado por Sacha Calmon, que comprova que o campo de atuação da isenção na norma de
tributação é absolutamente distinto da alíquota zero.
4.3.2.1 ISENÇÃO PARCIAL E REDUÇÕES DE BASE DE CÁLCULO E DE ALÍQUOTA
Questão ressonante na doutrina hodierna, mormente em matéria de ICMS, diz
respeito ao tratamento dado pelos legisladores ordinários dos Estados-Membros e do Distrito
Federal aos institutos da redução da base de cálculo e de alíquotas, equiparando-os à isenção
parcial90.
88 COELHO, 1999, op. cit., p. 181-183. 89 I.C.M. Isenção que trata o art. 1, parágrafo 4, VI, do D.L. 406/68. II. Não compreende as mercadorias importadas cuja alíquota foi fixada pela união na escala "zero", pois, embora livre de direitos, pode ela, alíquota, ser elevada pelo C.P.A. A expressao livre de direitos não equivale a isenção na jurisprudência do S.T.F., cristalizada na S. 576. III. Recurso Extraordinário conhecido e provido. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 91501. 1ª Turma, Rel.: Ministro Thompson Flores, 16 de novembro de 1979. Brasília: Diário da Justiça, 29 ago. 1980, p. 432). 90 O cerne da discussão diz respeito à possibilidade da legislação ordinária estadual ampliar a regra restritiva de inaplicabilidade do princípio da não cumulatividade do ICMS, prevista expressamente para as hipóteses de isenção e não incidência contida tanto no art. 155, § 2o, II, ‘a’ e ‘b’ do Texto Constitucional, como nos artigos 19 e 20, § 1º, da Lei complementar 87/96, também às hipóteses em que a isenção concedida é apenas parcial. Isto porque os legisladores
115
De longa data, Souto Maior Borges classificou as isenções como sendo totais ou
parciais. Para o festejado jurista, as isenções totais excluiriam o nascimento da obrigação
tributária, enquanto que, nas isenções parciais, surge o fato gerador da tributação,
constituindo-se, portanto, a obrigação tributária, embora o “quantum” do débito seja inferior
ao que normalmente seria devido se não tivesse sido estabelecido preceito isentivo91.
Discordamos do eminente jurista, pois, entendemos como Sacha Calmon92, que a
isenção ou é total, ou não é, já que, consoante explicado alhures, é da sua própria natureza
jurídica impedir o nascimento da obrigação tributária, não havendo que se falar em
impedimento parcial. Isenção é o contrário de incidência, atua diretamente na hipótese da
norma tributante.
Por sua vez, a exoneração no consequente da norma tributária se afigura como
figura diversa da isenção, consoante já salientado no tópico anterior. As principais formas de
exonerações no mandamento da norma tributária ocorrem quanto ao modo de calcular
montante pecuniário do tributo a ser recolhido. Tratam-se das reduções nas alíquotas ou nas
bases de cálculo do tributo. Anote-se que tais reduções deveriam sempre ser parciais, na
medida em que a redução total se equipararia com a isenção que, como visto, tem o condão
delimitar negativamente o fato imponível tributário.
Veja-se que há diferença diametral entre as hipóteses que versam sobre isenção de
imposto e aquelas nas quais se tem apenas redução na mensuração do quantum devido. A
respeito de tal distinção, mister trazer novamente à colação a lição do Prof. Dr. Sacha Calmon
Navarro Coelho93:
As reduções de bases de cálculo e de alíquotas ocorrem sobre o modo de calcular o conteúdo pecuniário do dever tributário, determinando uma forma de pagamento - elemento liberatório do dever – que implica, necessariamente, uma redução do quantum tributário, em relação à generalidade dos contribuintes (ou em relação à situação impositiva imediatamente anterior). (...) E isto é exoneração tributária. Uma espécie de exoneração, melhor dizendo, bem diversa da isenção ou da imunidade.
Como se vê, nas reduções na base de cálculo e nas alíquotas dos tributos, a norma
tributante incide, ou seja, efetivamente ocorre a hipótese de incidência descrita na norma e, no
entanto, ocorre uma redução no montante do tributo a ser recolhido, ou seja, há apenas uma
ordinários, via de regra, equiparam os institutos da redução da base de cálculo e das alíquotas à isenção parcial, proibindo o creditamento integral do ICMS devido na operação anterior, quando a operação subseqüente for beneficiada pela redução da base de cálculo ou da alíquota incidente. No caso do Estado de Minas Gerais, tal preceito vem definido no §4º, do art. 8º, da Lei Estadual nº 6.763/75: “§ 4º - Para os efeitos da legislação tributária, considera-se isenção parcial o benefício fiscal concedido a título de redução de base de cálculo”. 91 BORGES, 1980, op. cit., p. 250. 92 COELHO, 1999, op. cit., p. 189. 93 COELHO, 1999, op. cit., p.173-174.
116
alteração no aspecto quantitativo do tributo, previsto no conseqüente da norma tributária, em
nada se confundindo com a isenção.
Noutro giro, a isenção é um fator impediente do nascimento da obrigação
tributária, na medida em que subtrai um fato, ato ou uma pessoa da hipótese de incidência da
norma impositiva, atuando, portanto, no antecedente da norma tributária, de forma a obstar
sua própria incidência.
Desta feita, dúvidas não existem acerca da clara distinção existente entre o
instituto da isenção, incidente no antecedente da norma tributária e da redução da base de
cálculo e da alíquota dos tributos, que ocorre na conseqüência da norma imponível, fato este
já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, em se tratando da alíquota zero, tratada no
tópico anterior.
Ora, se são distintos os institutos da isenção (atua na hipótese de incidência) e da
alíquota zero (atua no mandamento), pela mesma razão não se confundem a isenção com a
redução da base de cálculo (que também se insere no mandamento da norma), eis que na
redução da base de cálculo, tal qual na alíquota zero, há apenas uma alteração no aspecto
quantitativo do mandamento tributário, enquanto na isenção não há nem que se falar em
nascimento da obrigação tributária, o que já foi decidido extreme de dúvida pelo Supremo
Tribunal Federal.
Se assim não fosse ter-se-ia a absurda tese de que todos os tributos ao serem
decretados têm sua configuração plena, absoluta, imutável, em face de todos os seus
elementos, qualitativos (de definição da norma de incidência) e quantitativos (de definição
dos elementos de quantificação da obrigação tributária), de forma que qualquer alteração
nestes elementos, sobretudo nos critérios de quantificação da obrigação tributária
(redução/modificação das bases de cálculo e/ou redução das alíquotas), seria equiparada a
isenção parcial.
Consoante já salientado acima, em matéria de ICMS a equiparação das reduções
de alíquotas e bases de cálculo do imposto à isenção parcial nos traria graves consequências,
mormente em se tratando do princípio constitucional da não cumulatividade do imposto. Isto
significa que o legislador ordinário poderia subverter todo o princípio da não cumulatividade:
bastaria instituir o ICMS com alíquotas de 40%, 50% ou mais e em seguida reduzir estas
alíquotas para as atuais de 18%, com isso, sob o entendimento de que se estaria diante de
norma de isenção parcial, não se permitiria o aproveitamento do crédito de imposto das
operações anteriores, mitigando a regra constitucional.
117
No que se refere à redução da base de cálculo, o próprio Texto Constitucional não
deixa dúvida de o instituto se diferencia da isenção, consoante disposição expressa do art.
150, § 6o que estabelece:
Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2o, XII, g.
Como se vê a Carta Magna trata os institutos isenção e redução de base de cálculo
de forma diversa, tanto que afim de que ambos possuam o mesmo regramento, fez-se
necessária a inclusão de ambos no comando acima transcrito. Ora, se redução de base de
cálculo equivalesse à isenção parcial o legislador constitucional não precisaria incluir no
dispositivo acima as reduções de base de cálculo, pois estas já fariam parte do instituto
isenção. Se houve a necessidade de incluir no comando as hipóteses de redução de base de
cálculo o fez porque se tratam de institutos jurídicos diversos que apenas e tão somente na
hipótese específica do art. 150, § 6o tem tratamento jurídico tributário idêntico.
Não obstante o exposto acima, atual entendimento do Supremo Tribunal Federal
tem sido em sentido contrário, qual seja, no sentido de equiparar os institutos jurídicos da
isenção parcial e da redução de base de cálculo. Confira-se a recente decisão proferida pela
Excela Corte94:
TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ICMS. CESTA BÁSICA. LEI 8.820/89 DO RS. SISTEMA DE BASE DE CÁLCULO REDUZIDA. CONFIGURAÇÃO DE ISENÇÃO FISCAL PARCIAL. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal (RE 174.478/SP, rel. p/ o acórdão o Min. Cezar Peluso, DJ 30.09.2005), ao apreciar questão similar à destes autos, assentou que a redução da base de cálculo do ICMS corresponderia a uma isenção parcial, possibilitando o estorno proporcional do tributo, e que tal compensação não afronta o princípio da não-cumulatividade. 2. Agravo regimental improvido. (AI 565666 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 31/08/2010, DJe-179 DIVULG 23-09-2010 PUBLIC 24-09-2010 EMENT VOL-02416-05 PP-01061).
Todavia, a celeuma ainda está longe de ser resolvida. Isto porque a sua atual
composição plena da Suprema Corte, em decisão proferida em novembro de 2010,
reconheceu a repercussão geral da matéria, ainda estando pendente de julgamento do recurso
que certamente definirá a posição do Tribunal. Confira-se a ementa da decisão95:
Agravo de Instrumento. Tributário. ICMS. Redução da base de cálculo. Aproveitamento dos créditos. Repercussão geral reconhecida. (AI 768491 RG,
94 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 565666/RS. 2ª Turma, Relator: Ministra Ellen Gracie, 31 de agosto de 2010. Brasília: Diário da Justiça, 24 set. 2010, p. 179. 95 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Agravo de Instrumento nº 768491/RS. Inadequação, via processual, agravo de instrumento, apreciação, repercussão geral. Relator: Ministro Gilmar Mendes, 02 de setembro de 2010. Brasília: Diário da Justiça, 23 nov. 2010, p. 224.
118
Relator(a): Min. MIN. GILMAR MENDES, julgado em 02/09/2010, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-224 DIVULG 22-11-2010 PUBLIC 23-11-2010).
4.3.3. OS INCENTIVOS FISCAIS E FINANCEIROS
Dada a vasta gama de incentivos lato sensu que são concedidos pelos Estados-
Membros e pelo Distrito Federal normalmente utilizados como forma de atração de novos
investimentos para seus territórios (ou mesmo a manutenção dos já ali instalados),
fomentando a “guerra fiscal” entre os entes federados, é importante estabelecer a
diferenciação entre os benefícios fiscais e os financeiros, para se determinar o regime jurídico
a que estão sujeitos.
Segundo José Souto Maior Borges96 os incentivos fiscais lato sensu podem ser
desdobrados em (a) incentivos tributários propriamente ditos, como as isenções ou reduções
de tributos ou mais amplamente (b) incentivos financeiros (tributários e extratributários).
Nesta hipótese, caso o incentivo financeiro não vise o tributo em si, estaremos diante de um
incentivo financeiro stricto sensu.
Ives Gandra97 esclarece que a diferença se dá levando-se em consideração o
momento em que ocorre a concessão do estímulo. Se anterior à ocorrência do pagamento do
tributo devido, trata-se de incentivo fiscal; se posterior á extinção do crédito tributário, trata-
se de incentivo financeiro.
No que se refere aos benefícios ditos fiscais, a doutrina é uníssona no sentido de
que a sua concessão está sujeita ao regramento do art. 155, §2º, XII, g, do Texto
Constitucional. Todavia, quando a questão se volta para os incentivos financeiros, tais como a
concessão de financiamentos vinculados ao pagamento do imposto estadual, concedidos pelos
Estados-Membros e pelo Distrito Federal, a questão se mostra controversa.
Prática muito utilizada por algumas unidades federadas é a concessão de
empréstimos, via recursos orçamentários, do montante do imposto sobre as operações
relativas à circulação de mercadorias e serviços (ICMS) que a empresa tiver de recolher ao
erário estadual98. Note-se que, nesses casos, o imposto estadual é normalmente recolhido aos
96 BORGES, José Souto Maior. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e sua Inaplicabilidade a Incentivos Financeiros Estaduais. In: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 63. São Paulo: Dialética, dezembro/2000, p. 81-99. 97 MARTINS, Ives Gandra da Silva. O ICMS e o Regime Jurídico de Incentivos Financeiros Outorgados pelos Estados e o Comunicado CAT nº 36/04 de São Paulo – Distinção entre Incentivos Financeiros e Fiscais. In: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 112. São Paulo: Dialética, janeiro/2005, p. 135-144. 98 À título exemplificativo, trazemos à baila a Lei Goiana nº 11.180/90, com as alterações posteriores, que institui no Estado de Goiás a prática acima demonstrada. (FONTE, http://www.sefaz.go.gov.br/). "Art. 2º O programa prestará apoio técnico e financeiro aos empreendimentos industriais e públicos por ele aprovados e poderá conceder os estímulos seguintes: (...)
119
cofres estaduais. Porém, o Estado empresta parte do valor recolhido ao contribuinte, ou seja,
na definição acima, de Ives Gandra, trata-se de claro benefício financeiro, já que outorgado
após a extinção do crédito tributário.
Para o professor emérito da Universidade Mackenzie, a hipótese acima perfilada
não estaria incluída na hipótese normativa prevista no art. 155, §2º, XII, g, do Texto
Constitucional, já que o tratamento especial quanto à forma de concessão de benefícios por
parte dos Estados-Membros e do Distrito Federal se amoldaria apenas aos fiscais, razão pela
qual os benefícios financeiros poderiam ser outorgados indistintamente pelos entes
federados99.
Leciona o autor100:
Se, com recursos do ICMS (imposto não vinculado), decidir o governo de um Estado financiar quem quer que seja, poderá fazê-lo, pois goza de autonomia política, administrativa e financeira. (...) Tal financiamento, de natureza financeira e não fiscal, diz respeito ao Direito Financeiro e não Tributário. Pode ser realizado por força da autonomia outorgada às entidades federativas, e não viola os acordos celebrados entre os Estados, já que a lei e a Constituição impõem apenas que incentivos fiscais – e não financeiros – tenham a sua concessão condicionada a acordo no Confaz. (Grifos do autor).
Em sentido oposto, Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli101 defende tais benefícios
se enquadrariam perfeitamente na definição de benefícios fiscais, já que a liberação dos
“financiamentos” está condicionada à qualidade de contribuinte do ICMS. Confira-se:
Os incentivos assim, embora instrumentalizados por contratos celebrados com instituições financeiras, devem ser classificados como tributários ou fiscais, pois baseados apenas e tão somente na propriedade de o beneficiário ser contribuinte do ICMS.
Estevão Horvarth102 é mais contundente ao classificar o que ele chama de “favores
fiscais”, da forma mais ampla possível:
A mesma coisa me parece que acontece na linguagem da Constituição quando fala dessa lei complementar e do convênio com relação ao ICMS, ou seja, qualquer tipo de favor fiscal no sentido mais amplo possível está abrangido por esse artigo da Constituição e consequentemente da lei complementar. As imunidades, investimentos privilegiados, isenções, alíquotas reduzidas, suspensão de impostos,
II - empréstimos de até 70% (setenta por cento), via recursos orçamentários, do imposto sobre as operações relativas à circulação de mercadorias e serviços (ICMS) que a empresa tiver de recolher ao erário estadual, excetuado o imposto decorrente de saída de mercadoria a título de bonificação, doação, brinde ou operação semelhante, a partir da data de início de suas atividades produtivas, nos casos de implantação e expansão, pelo prazo fixado nesta lei; (...)." 99 Daí porque o autor defende a não recepção dos arts. 1º e 8º, da LC 24/75, que se referem a benefícios “fiscais e financeiros”, e não apenas “fiscais”, tal como mencionado pelo legislador constituinte de 1988: “Os artigos 1º e 8º da LC, já retrotranscritos, cuidam de incentivos fiscais e financeiros, mas, como a lei é anterior a 1988 e só de incentivos fiscais cuidou a Constituição de 88, quanto aos incentivos financeiros não foi a referida lei complementar, decididamente, recepcionada, como entendem inúmeros autores”. A questão será tratada com mais profundidade no tópico abaixo. 100 MARTINS, 2005, op. cit., p. 140. 101 LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. O ICMS e os Incentivos Fiscais. In: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 14. São Paulo: Dialética, novembro/1996, p. 54-58. 102 HORVATH, Estevão. VIII Congresso Brasileiro de Direito Tributário – Mesa de debates – Tributos Estaduais. In: Revista de Direito Tributário, nº 64. São Paulo: Malheiros, 1994, 77-95.
120
manutenção de créditos, bonificações, créditos especiais, dilatação de prazo de recolhimento, tudo isto significa algum tipo de benefício ou privilégio ou favor fiscal que outras pessoas não possuem. Como as imunidades já decorrem diretamente do texto constitucional, estão fora de nossa preocupação para os efeitos deste subtema.
Pedindo venia aos entendimentos em contrário, entendemos como Ives Gandra, no
sentido de que somente os incentivos e demais benefícios de natureza eminentemente fiscal
estão sujeitos à forma específica prevista na Constituição para que possam ser concedidos
pelos Estados Membros. Os financiamentos, ainda que concedidos somente para
determinados setor ou tipo de atividade (no caso do exemplo, aos contribuintes do ICMS que
atendam aos requisitos previstos em lei), são, nos precisos dizeres de Souto Maior Borges103,
subvenções104 105decorrentes de um contrato translativo do domínio que implica o
deslocamento da propriedade monetária do poder público para o poder privado, ou seja, trata-
se de um ato meramente contratual, que em nada se confunde com os incentivos fiscais ou
tributários.
Frise-se: são absolutamente distintos os conceitos de incentivo fiscal e financeiro,
cada qual sendo componente de um ramo distinto do direito: Direito Tributário e Direito
Financeiro. Cumpre novamente trazer a baila os ensinamentos de Souto Maior Borges106:
Assim, os incentivos tributários se distinguem dos incentivos financeiros por um critério procedimental de demarcação dos respectivos campos de instituição legal e concessão administrativa. O incentivo tributário atua na intimidade, é dizer: no interior, da relação tributária, antes portanto da sua extinção pelo pagamento ou outro modo de extinção das obrigações tributárias. O incentivo financeiro aplica-se após a extinção da obrigação tributária, consolidada consequentemente a receita respectiva no patrimônio público.
De fato, não se confundem as esferas financeira e tributária, cada uma se
enquadrando em um ramo do direito. Consoante nos ensina Aliomar Baleeiro107, o Direito
Financeiro é compreensivo do conjunto de normas sobre todas as instituições financeiras –
receitas, despesas, orçamento, crédito e processo fiscal –, ao passo que o Direito Fiscal,
sinônimo de Direito Tributário, aplica-se contemporaneamente e a despeito de qualquer
contra-indicação etimológica, ao campo restrito das receitas de caráter compulsório.
103 BORGES, 2000, op. cit., p. 97. 104 Modesto Carvalhosa conceitua a subvenção como um instituto do direito financeiro, caracterizada como a ajuda ou auxílio pecuniário, concedido pelo Estado, nos termos da legislação específica, em favor de instituições que prestam serviços ou realizam obras de interesse público. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 603. 105 A Lei Federal nº 4.320/64, que estatui normas gerais de direito financeiro para a elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, define, no seu artigo 12, §3º e inciso II, as subvenções econômicas, como as transferências destinadas a cobrir despesas de custeio das empresas públicas ou privadas de caráter industrial, comercial, agrícola ou pastoril. (BRASIL. Códigos Tributário; Processo Civil; Constituição Federal e legislação complementar. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011). 106 BORGES, 2000, op. cit., p. 97.
121
Aliás, esta distinção mostra-se clara em algumas passagens do Texto
Constitucional, como no art. 24, I, que distingue formalmente os ramos do direito e nos
Capítulos I e II, do Título VI, que separa o Sistema Tributário Nacional das Finanças
Públicas.
Logo, os institutos não se confundem e, por esta razão, não se pode ampliar
hipótese normativa que atribui ao legislador complementar a competência para a regulação da
forma de concessão de benefícios e incentivos fiscais, tal como previsto no art. 155, §2º, XII,
g, do Texto Constitucional, motivo pelo qual os incentivos financeiros não se enquadram na
tipificação constitucional.
Logo, tomaremos como premissa que apenas os benefícios eminentemente de
caráter fiscal foram abarcados pela norma constitucional, ora discutida (art. 155, §2º, XII, g).
4.3.4. A LEI COMPLEMENTAR Nº 24/75, OS CONVÊNIOS INTERESTADUAIS E O CONSELHO
NACIONAL DE POLÍTICA FAZENDÁRIA – CONFAZ.
Consoante já ressaltado acima, a Constituição de 1988, embora tenha outorgado a
competência para instituir o ICMS aos Estados e ao Distrito Federal, subordinou, em várias
situações, o exercício do poder impositivo ficou limitado às regras estabelecidas pelo
legislador complementar da União.
A concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais em matéria de ICMS foi
uma das situações em que o constituinte limitou o poder impositivo estadual, ao reservar à lei
complementar o papel de "regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do
Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados" (art.
155, §2º, XII, g).
Vale salientar que essa outorga de competência Congresso Nacional decorre da
aplicação pelo constituinte originário do princípio da uniformidade ao imposto, dado o caráter
nacional do ICMS, consoante já salientado alhures. Paulo de Barros Carvalho108 enaltece o
mencionado princípio elencando-o como fundamental para que seja cumprido o modelo
econômico proposto pelo constituinte ao imposto estadual. Confira-se:
(...) A Lei Complementar 24/75, ao disciplinar a matéria de isenções e outros incentivos ou benefícios, tomados com base no ICMS, consubstancia uma decorrência pronta e imediata do princípio da solidariedade nacional, da uniformidade, da equiponderância ou da harmonia que esse tributo deve manter em toda a extensão do território brasileiro. Corolário daquele princípio, o modo como a
107 BALEEIRO, 2006, op. cit., p. 36-37. 108 CARVALHO, 1994, op. cit., p. 100.
122
indigitada Lei regula o assunto permite ver que a linha diretiva constante e determinada, assecuratória do modelo econômico proposto e obediente aos comandos normativos que lhe dão fundamento de validade.
Volvendo-se novamente à dicção da alínea g do mencionado dispositivo
constitucional, verifica-se que ao legislador complementar não foi outorgado o próprio poder
de estabelecer as hipóteses em que as isenções, incentivos e benefícios fiscais poderiam ser
concedidos pelos Estados Federados, mas apenas o poder de fixar as regras para a
formalização das assembléias dos Estados e do Distrito Federal, com vistas à concessão de
isenções, incentivos ou benefícios fiscais.
Mesmo a Constituição não tendo estabelecido que tipo de deliberação seria
adotada pelos Estados para possibilitar a outorga de isenções, incentivos ou benefícios fiscais,
e tendo em vista a ausência de nova lei complementar posterior à entrada em vigor do Texto
Constitucional, convencionou-se que tais deliberações se daria sob a forma de convênios a
serem celebrados entre os Estados.
O fundamento para tal prática, afirma a doutrina, teve espeque no §8º, do artigo
34, do ADCT, que reza:
Art. 34. (...) § 8º - Se, no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, "b", os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regular provisoriamente a matéria.
Nesta seara, foi recepcionada pelo Texto Constitucional, a Lei Complementar nº
24, de 1975, que dispõe sobre os convênios para a concessão de isenções do imposto sobre
operações relativas à circulação de mercadorias, além de conceituar de modo amplo as
hipóteses de incentivos e benefícios fiscais, abrangendo praticamente todas as hipóteses
tributárias exonerativa.
Estabelece o artigo 1º da mencionada Lei Complementar:
Art. 1º - As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei. Parágrafo único - O disposto neste artigo também se aplica: I - à redução da base de cálculo; II - à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros; III - à concessão de créditos presumidos;
123
IV - à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus; V - às prorrogações e às extensões das isenções vigentes nesta data.
No que se refere ao inciso IV acima mencionado, retoma-se a questão da
discussão doutrinária acerca da recepção do dispositivo pelo atual Texto Constitucional, já
que a alínea g, do inciso XII, §2º, do art. 155, estabelece apenas que a lei complementar
regular a forma como os “incentivos e benefícios fiscais” serão concedidos e revogados, nada
dispondo acerca dos benefícios “financeiro-fiscais”, que consoante já disposto no tópico
anterior, apresenta natureza jurídica diversa daqueles.
Entendemos como Ives Gandra e Souto Maior Borges no sentido da não recepção
do dispositivo complementar, por extrapolar a definição constitucional, razão pela qual, tais
incentivos podem ser concedidos livremente, obviamente, respeitando os ditames da Lei
Complementar 101/00109.
Curial ressaltar que a lei complementar em comento determina de forma expressa,
no seu art. 2º e §2º, que os convênios serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido
convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, dependendo a concessão
de benefícios sempre de decisão unânime dos Estados presentes, ao passo que, para a sua
revogação, total ou parcial, mostra-se necessária a aprovação de quatro quintos, pelo menos,
dos representantes presentes.
Nos termos da Lei Complementar nº 24/75, foi constituído um órgão colegiado - o
Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ110, integrado por representantes
(Secretários da Fazenda) de cada Estado e do Distrito Federal, órgão esse que é presidido por
um representante do Governo Federal (Ministro da Economia), no seio do qual os Convênios
109 Que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências (Lei de Responsabilidade Fiscal). 110 Alcides Jorge Costa, ao compor a mesa de debates do VIII Congresso Brasileiro de Direito Tributário, realizado nos idos de 1994, teceu duras críticas acerca da forma de criação e do papel que vem exercendo CONFAZ. Diz o renomado professor: “A Constituição anterior e a Lei Complementar 24/75 sempre diziam que os Estados se reuniriam para celebrar convênios. A estas reuniões resolveram dar o nome de conselho, o Conselho Nacional de Política Fazendária, (Confaz), que tem sido presidido pelo Ministério da Fazenda, o que não deixa de ser estranho; na hora da Constituinte todo mundo prega a autonomia dos Estados e depois estes pedem ao Ministro que presida este. (...) Não vou determe aqui na análise jurídica disso, mas obviamente o Confaz tem extrapolado suas atribuições. Criam substituições, cria outras coisas, e, com base em famosos convênios, que muitas vezes nem os Estados signatários obedecem, faz-se o regulamento. (...) A guerra fiscal, que não é evitada, talvez nem dependa de um Confaz que, repito, nunca foi criado; foi um regimento interno que o criou e, por estranho que pareça, foi aparecer na Lei Complementar 65, que cuidou dos famosos semi-elaborados e deu uma delegação – isso é surrealista – inconstitucional para um órgão que não existe. (COSTA, Alcides Jorge. VIII Congresso Brasileiro de Direito Tributário – Mesa de debates – Tributos Estaduais. In: Revista de Direito Tributário, nº 64. São Paulo: Malheiros, 1994).
124
relativos a isenções, incentivos e benefícios fiscais, serão celebrados e posteriormente
ratificados pelos Governadores de cada Estado111.
Cumpre salientar os convênios não possuem natureza jurídica de leis, sendo figura
sui generis, podendo ser considerados como uma fase peculiar do processo legislativo, em
matérias de isenções, e, acrescentamos, em relação a qualquer incentivo ou benefício fiscal
em matéria de ICMS, consoante preceitua Aroldo Gomes de Mattos112, citando Alcides Jorge
Costa.
O papel fundamental dos Convênios é atuar como um instrumento de
normatização do ICMS, em todo o território da Federação, dado o já citado caráter nacional
do imposto, visando impedir uma ‘guerra fiscal’ entre os Estados e o Distrito Federal, que não
podem deliberar isoladamente sobre concessão de benefícios fiscais no âmbito dos seus
territórios, consoante restará demonstrado no capítulo seguinte.
111 A forma de ratificação dos convênios pelo Poder Executivo é bastante questionada pela doutrina. Geraldo Ataliba, de longa data, ainda sob a égide da Carta Constitucional passada, já nos ensinava: “Ora Estado não é executivo. Executivo não é Estado. O Estado se representa pelo chefe do Executivo, mas manifesta sua vontade, em matéria reservada á lei, mediante ação conjugada do Executivo e do Legislativo. Como insistem Alfredo Becker, Souto Borges, Pontes de Miranda, Seabra Fagundes, Sampaio Dória e toda a jurisprudência, só lei cria tributo e só lei dispensa (total ou parcialmente) tributo. De acordo com a própria literalidade do §6º do art. 23 da CF, os convênios serão ‘celebrados e ratificados’. Quer dizer, celebrados pelo Poder Executivo – à semelhança do que se passa, no regime da Constituição Federal, para os tratados internacionais – e ratificados por outra autoridade, evidentemente, no caso, o Poder Legislativo”. (ATALIBA, Geraldo. Eficácia dos Convênios para Isenção do ICM. In: Revista de Direito Tributário nº 11-12, São Paulo: Malheiros, 1994, p. 109). 112 MATTOS, Aroldo Gomes. A Natureza e o Alcance dos Convênios em matéria do ICMS. In: Revista Dialética de Direito Tributário, nº 79. São Paulo: Dialética, abril-2002, p. 7-18.
125
Capítulo 5 – A Guerra Fiscal e o restabelecimento da concorrência. 5.1. A Guerra Fiscal: A concessão de benefícios fiscais sem a aprovação do CONFAZ. 5.1.1. O princípio da neutralidade tributária. 5.1.1.1. Neutralidade e Igualdade tributária. 5.1.1.2. Neutralidade e Livre Concorrência: a impossibilidade de intervenção do Estado na livre concorrência através da concessão de benefícios fiscais irregulares. 5.2. O papel do artigo 146-A da CF/88 e a instituição de Regimes Especiais de Tributação que visem o restabelecimento da concorrência. 5.2.1. A necessidade de lei complementar da União. 5.2.2. A competência concorrente dos Estados e do Distrito Federal na omissão do legislador complementar federal. 5.3. A possibilidade de concessão de benefícios fiscais equivalentes que visem o restabelecimento da concorrência. 5.3.1. O caso do Estado de Minas Gerais.
5. A GUERRA FISCAL E O RESTABELECIMENTO DA
CONCORRÊNCIA
5.1. A GUERRA FISCAL: A CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS FISCAIS SEM A
APROVAÇÃO DO CONFAZ
Como vimos no capítulo anterior, os legisladores, constitucional e complementar,
estabeleceram dispositivos expressos no sentido de que benefícios fiscais em matéria de
ICMS somente podem ser concedidos pelos Estados-Membros e pelo Distrito Federal, após a
aprovação do CONFAZ.
Todavia, os Estados e o Distrito Federal, em total desrespeito ao ordenamento
jurídico, vêm, como visto anteriormente, concedendo unilateralmente benefícios fiscais,
criando inadmissível “guerra fiscal” entre os entes federados, ou seja, cada ente procura atrair
para seu território novas sociedades empresárias. Trata-se, nos precisos dizeres de Fernando
Facury Scaff1, verdadeiro leilão de benefícios ou uma licitação às avessas. Pode-se definir a
“guerra fiscal” como
um caso de uma classe geral de fenômenos que emergem quando iniciativas políticas (o uso de benefícios e iniciativas fiscais) dos governos subnacionais adquirem conotações negativas e geram efeitos econômicos perversos em decorrência do caráter insuficiente ou conjunturalmente inoperante do quadro político-institucional que regula os conflitos federativos, o qual se revela incapaz de
1 SCAFF, Fernando Facury. Aspectos Financeiros do Sistema de Organização Territorial do Brasil. In: Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, jan, 2005, nº 112, p. 16-31.
126
garantir um equilíbrio mínimo entre interesses locais de forma a evitar efeitos macroeconômicos e sociais perversos2.
Vale salientar que esta concorrência predatória entre os Estados em nada atende
aos objetivos do legislador constituinte de redução das desigualdades regionais e promoção do
equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País3, pois
quando uma unidade federada toma medidas unilaterais para atrair investimentos, sem
respeitar as regras legais e constitucionais, pode haver eminente interferência econômica nos
demais entes federados, a um custo muito elevado.
Isto porque ao atrair investimentos para determinada unidade federada,
concedendo incentivos fiscais em desrespeito as determinações legais e constitucionais
atinentes a espécie, acaba-se por influenciar diretamente na economia dos entes “perdedores”,
que sofrem evidentes prejuízos financeiros com a saída de contribuintes dos seus territórios.
Em interessante obra sobre a questão, Gilberto Bercovici4, é categórico ao
afirmar:
Não pode haver homogeneidade interestadual onde um Estado decide, unilateralmente, sobre incentivos que outros não podem conceder. Desta maneira, quando um Estado ganha (isto se houver ganho de fato, o que na maioria das vezes não ocorre), os outros perdem. O processo de concessão de incentivos fiscais estaduais caracteriza-se pelo desperdício de dinheiro público, pois os possíveis ganhos em bem-estar não se comparam aos custos econômicos da atração dos investimentos e aos custos sociais da diminuição da atividade econômica nos Estados “perdedores”. (...). A guerra fiscal foi acirrada com a crise financeira dos Estados. Porém, conforme os incentivos vão se avolumando, perdem a capacidade de estimular o investimento, tornando-se mera renúncia de arrecadação. Além disso, os Estados mais pobres acabam perdendo a capacidade de investir em sua própria infra-estrutura e serviços públicos.
Não se defende aqui a inviabilidade da concessão dos incentivos ou benefícios
fiscais, já que os mesmos são legítimos e amplamente previstos no Texto Constitucional. O
que não se pode admitir é a sua concessão desregrada e em desacordo com os ditames
constitucionais. Isto porque os benefícios fiscais devem ser concedidos para gerar eficiência
econômica, no sentido de se buscar o desenvolvimento econômico, e não para gerar
desigualdades ainda maiores.
A impossibilidade de concessão unilateral de benefícios fiscais pelas unidades
federadas já foi objeto de exaustiva análise pelo Supremo Tribunal Federal, que repugna
veementemente a sua concessão pelos Estados-Membros, quando em desrespeito aos
2 CAVALCANTI, Carlos Eduardo G.; PRADO, Sérgio. Aspectos da Guerra Fiscal no Brasil. Brasília/São Paulo: IPEA/FUNDAP, 1998, p. 7. 3 Art. 3º, III e 151, I, do Texto Constitucional. 4 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 183.
127
Convênios celebrados à unanimidade pelos Estados5. Dentre os principais fundamentos
utilizados pela Corte Suprema para condenar a “guerra fiscal” estão os seguintes6: (i) caráter
nacional do imposto, que legitima a instituição, pelo legislador central, de norma nacional
disciplinadora da forma de instituição e revogação de benefícios fiscais; (ii) existência do
CONFAZ para exercer tal papel; (iii) respeito ao pacto federativo.
Acrescentamos, ainda, outros dois fundamentos impeditivos da validação da
concessão unilateral de benefícios fiscais pelos Estados, (i) a necessária neutralidade que
abarca o ICMS, (ii) a impossibilidade do Estado intervir na livre concorrência entre os agentes
econômicos, consoante passaremos a demonstrar.
5 BRASIL. Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp24.htm>. Acesso em 18/06/2011. "Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal. (...) § 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes." 6 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - INEXISTÊNCIA DE PRAZO DECADENCIAL - ICMS - CONCESSÃO DE ISENÇÃO E DE OUTROS BENEFÍCIOS FISCAIS, INDEPENDENTEMENTE DE PREVIA DELIBERAÇÃO DOS DEMAIS ESTADOS-MEMBROS E DO DISTRITO FEDERAL - LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DO ESTADO-MEMBRO EM TEMA DE ICMS (CF, ART. 155, 2., XII, "G") - NORMA LEGAL QUE VEICULA INADMISSIVEL DELEGAÇÃO LEGISLATIVA EXTERNA AO GOVERNADOR DO ESTADO - PRECEDENTES DO STF - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA EM PARTE. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE E PRAZO DECADENCIAL: (...) ICMS E REPULSA CONSTITUCIONAL A GUERRA TRIBUTARIA ENTRE OS ESTADOS-MEMBROS: O legislador constituinte republicano, com o propósito de impedir a "guerra tributaria" entre os Estados-membros, enunciou postulados e prescreveu diretrizes gerais de caráter subordinante destinados a compor o estatuto constitucional do ICMS. Os princípios fundamentais consagrados pela Constituição da República, em tema de ICMS, (a) realçam o perfil nacional de que se reveste esse tributo, (b) legitimam a instituição, pelo poder central, de regramento normativo unitário destinado a disciplinar, de modo uniforme, essa espécie tributaria, notadamente em face de seu caráter não-cumulativo, (c) justificam a edição de lei complementar nacional vocacionada a regular o modo e a forma como os Estados-membros e o Distrito Federal, sempre após deliberação conjunta, poderão, por ato próprio, conceder e/ou revogar isenções, incentivos e benefícios fiscais. CONVENIOS E CONCESSÃO DE ISENÇÃO, INCENTIVO E BENEFICIO FISCAL EM TEMA DE ICMS: A celebração dos convênios interestaduais constitui pressuposto essencial a valida concessão, pelos Estados-membros ou Distrito Federal, de isenções, incentivos ou benefícios fiscais em tema de ICMS. Esses convênios - enquanto instrumentos de exteriorização formal do prévio consenso institucional entre as unidades federadas investidas de competência tributária em matéria de ICMS - destinam-se a compor os conflitos de interesses que necessariamente resultariam, uma vez ausente essa deliberação intergovernamental, da concessão, pelos Estados-membros ou Distrito Federal, de isenções, incentivos e benefícios fiscais pertinentes ao imposto em questão. O pacto federativo, sustentando-se na harmonia que deve presidir as relações institucionais entre as comunidades políticas que compõem o Estado Federal, legitima as restrições de ordem constitucional que afetam o exercício, pelos Estados-membros e Distrito Federal, de sua competência normativa em tema de exoneração tributaria pertinente ao ICMS. MATÉRIA TRIBUTÁRIA E DELEGAÇÃO LEGISLATIVA: A outorga de qualquer subsidio, isenção ou crédito presumido, a redução da base de cálculo e a concessão de anistia ou remissão em matéria tributária só podem ser deferidas mediante lei especifica, sendo vedado ao Poder Legislativo conferir ao Chefe do Executivo a prerrogativa extraordinária de dispor, normativamente, sobre tais categorias temáticas, sob pena de ofensa ao postulado nuclear da separação de poderes e de transgressão ao princípio da reserva constitucional de competência legislativa. Precedente: ADIn 1.296-PE, Rel. Min. CELSO DE MELLO. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1247. Tribunal Pleno, Rel.: Ministro Celso de Mello, 17 de agosto de 1995. Brasília: Diário da Justiça, 08 set. 1995, p. 20).
128
5.1.1. O PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE TRIBUTÁRIA
A definição econômica “neutralidade da tributação”, segundo magistério de Paulo
Caliendo7, implica a atuação do Estado, na implementação das suas políticas tributárias, com
o mínimo de efeitos negativos para a sociedade e influência na formação dos preços pelos
agentes econômicos. Confira-se:
Conforme verificado anteriormente, o Estado deve implementar suas políticas com o mínimo de efeitos negativos para a sociedade (minimum loss to society), bem como a sua influência sobre as decisões econômicas dos agentes privados deve ser realizada de modo a influenciar o mínimo possível o sistema de formação dos preços. A ofensa a estas premissas implica a ineficiência geral do sistema econômico.
No campo jurídico, especialmente em se tratando de tributação sobre o consumo,
que tem no ICMS, tributo objeto do presente ensaio, um de seus principais expoentes, o
conceito está ligado à indiferença quanto ao ônus tributário em relação ao número de
operações realizadas desde a produção até o consumo.
Por se tratar de um imposto plurifásico, ou seja, que incide sobre cada etapa da
cadeia produtiva, para que efetivamente haja respeito à neutralidade tributária, o ônus do
imposto sobre toda a cadeia produtiva deve ser sempre o mesmo, independente do número de
operações que a mercadoria percorre no trajeto da produção até o consumo, conforme
entendimento de Hugo de Brito Machado8.
Não é este, porém, o conceito de neutralidade objeto do presente trabalho.
Tratamos aqui, de um conceito mais restrito, que vê a neutralidade tributária, a necessidade de
atuação do Estado em relação à livre concorrência, visando garantir um ambiente de
igualdade de condições competitivas, aferível pelo grau de equilíbrio do mercado.
Volvendo-se para o tema central proposto, qual seja, a distorção na tributação
provocada pela concessão dos benefícios fiscais irregulares, bem como o seu impacto na
concorrência , mormente do imposto estadual, na livre concorrência entre os agentes da
atividade econômica, podemos dizer que o imposto deve ser o mais neutro possível, de forma
que o mesmo não se constitua em um elemento fundamental de decisão do agente econômico
nas suas escolhas de investimento9.
7 CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: Uma Visão Crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 103. 8 MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos Fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997, p. 165. 9 CALIENDO, op. cit., p. 117.
129
Nos precisos dizeres de Atílio Dengo10, a neutralidade tributária prende-se a
noção de que o comportamento negocial do contribuinte não deve ser determinado pela carga
tributária a ele imposta. Neste sentido, relativamente aos impostos indiretos, como o ICMS, a
neutralidade é medida de proteção à livre concorrência e à liberdade de escolha dos
consumidores.
Nesta seara, entendemos que a concessão de benefícios ou incentivos fiscais por
determinada Unidade Federada, em desacordo com as normas constitucionais e
complementares que estabelecem os procedimentos para tal concessão se afigura como
elemento fundamental na escolha do agente econômico, em clara ofensa à neutralidade da
tributação11.
Explica-se, o agente econômico detentor de um benefício concedido
irregularmente atua de forma privilegiada em relação aos demais concorrentes, na medida em
que a tributação incentivada afeta diretamente a composição dos preços dos seus produtos ou
serviços. Daí porque a concessão de benefícios unilaterais pelos Estados-Membros caracteriza
intervenção não autorizada do Estado na atividade econômica, distorcendo o sistema
econômico, diminuindo a eficiência, sendo obstáculo ao desenvolvimento dos agentes
econômicos não abrangidos pela política tributária diferenciada, e até mesmo dos demais
Estados-Membros, visto que, em virtude dos benefícios oferecidos, a transferência de
contribuintes para os Estados concessores é iminente.
Não se quer dizer que o caráter neutro do ICMS é fator impeditivo da atuação
extrafiscal12 do Estado. Todavia, pelo fato do ICMS ter como uma de suas características a
fiscalidade13, entendida como a finalidade precipuamente arrecadadora do tributo, o mesmo
não pode ser utilizado como instrumento regulador da economia, exceto, se de forma residual,
motivada14 e temporária15 e, obviamente, respeitando o regramento estabelecido no Texto
Constitucional e na lei complementar de normas gerais.
10 DENGO, Atílio. Comércio Eletrônico e Neutralidade Tributária. In: Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, ago/2003, nº 95, p. 18-34. 11 De outra senda, o Estado que concede determinado benefício ou incentivo fiscal de forma unilateral, acaba por ofender, ainda, o disposto no art. 152 do Texto Constitucional, que veda aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino, o que, de fato, ocorre já que consoante já exposto, a carga tributária é um dos importantes fatores que influenciam na composição dos preços dos bens e serviços, razão pela qual os bens e serviços de localidades que concedem unilateralmente benefícios fiscais aos seus contribuintes, fatalmente possuirão preços diferenciados, em virtude precipuamente da sua localização territorial. 12 A extrafiscalidade, basicamente, é o manejo de figuras tributárias, diminuindo ou exasperando o quantum a pagar com o fito de obter resultados que transcendem o simples recolhimento do tributo, muito embora a instrumentação extrafiscal não signifique, necessariamente, perda de numerário, consoante os precisos ensinamentos de Sacha Calmon. (COELHO, Sacha Calmon Navarro. ICM – Competência Exonerativa: Convênios de Estados, imunidades isenções, reduções e diferimentos. São Paulo: RT, 1982, p. 1). 13 NOGUEIRA, Ruy Barbosa apud COELHO, op. cit., p. 5. 14 Segundo CALIENDO: “Este aspecto está relacionado à promoção de políticas mediante a utilização de medidas fiscais. Assim, podem ser considerados como exemplos: o incentivo a poupança, ao investimento, à distribuição de renda ou
130
Ainda assim, a atuação extrafiscal do Estado não deve provocar no mercado
distorções sobre a oferta, a demanda e os preços, excetuando-se aquelas modificações
intencionais, em relação aos fins da política fiscal para os quais tenha sido escolhida, e desde
que essa política intencional seja validada por todos os Estados-Membros e Distrito Federal16,
em virtude do caráter nacional do imposto.
Daí porque a neutralidade, nos precisos dizeres de Ricardo Seibel de Freitas
Lima17, pode ser vista como um dever dirigido ao Estado, no sentido de que nem a imposição,
nem a exoneração tributária causem desequilíbrios na concorrência, pois a tributação não deve
influenciar a competitividade.
O Ex-Procurador do Estado do Rio Grande do Sul continua a sua exposição
segregando esse dever estatal em duas vertentes: a) uma negativa, no sentido de omissão do
Estado, não intervindo na concorrência por meio da tributação; e b) outra positiva, cabendo ao
Estado um dever de ação, de prevenir ou restaurar, quando for o caso, a igualdade das
condições na concorrência, quando esta se encontre ameaçada por ações de particulares ou
outros fatores relevantes, sempre objetivando a preservação da igualdade de condições
competitivas no mercado.
Essa neutralidade tributária foi elevada à categoria de princípio constitucional18
pelo legislador constituinte derivado, a partir da publicação da Emenda Constitucional nº 42,
de 2003, que inseriu o já citado artigo 146-A. O dispositivo retro prevê a possibilidade de
moradia. Outro número significativo de elementos poderia ser citado, não apenas na ordem econômica, mas igualmente na ordem social, tal como a promoção de um sistema econômico auto-sustentável (verde), da família, da cultura, entre outros. (CALIENDO, op. cit. p. 102-103). Exemplo desta política em matéria de ICMS, o chamado ICMS ecológico. Criado inicialmente pela lei n.º 12.040/95, também conhecida como Lei Robin Hood, apresenta critérios especiais sobre a distribuição da parcela da receita do produto da arrecadação do ICMS pertencente aos municípios. Os objetivos primordiais da mencionada lei eram reduzir as diferenças econômicas e sociais entre os municípios e incentivar a aplicação de recursos na área social. Dentre os critérios estabelecidos, encontram-se: educação, área cultivada, patrimônio cultural, produção de alimentos, saúde, meio ambiente, entre outros. Em 2000, foi revogada pela lei n.º 13.803/00, atualmente em vigor e aprimorada pela recente lei n.º 18.030/09. Informações completas no site http://www.icmsecologico.org.br. 15 CALIENDO, op. cit., p. 118. 16 Através de convênios celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, ainda que realizadas com a presença de representantes da maioria das Unidades da Federação, com deliberações sempre unânimes dos Estados representados, consoante preceitua o art. 2º, §§1º e 2º, da LC 24/75. 17 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. Livre Concorrência e o Dever de Neutralidade Tributária. Dissertação (Pós-Graduação em Direito). Faculdade de Direito da UFRGS. Porto Alegre, 2005, 143p. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/5221/000512454.pdf?sequence=1>. Acesso em 21/03/2011. 18 As normas constitucionais encontram-se estruturadas normativamente sob a forma de princípios e regras. Segundo Dworkin, os princípios informam todo o sistema jurídico. Diferenciam-se das regras, posto que estas são aplicáveis à maneira do tudo ou nada, enquanto os princípios, além de atuarem normativamente, podem ser relevantes, em caso de conflito, para um determinado problema legal, mas não estipulam uma solução particular. (DWORKIN, Ronald apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 253). Na feliz síntese do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, os princípios são abstrações de segundo grau, normas de normas, em que se buscam exprimir proposições comuns a um determinado sistema de leis. Eles dispõem de maior grau de abstração e menor densidade normativa (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 61).
131
instituição, pelo legislador complementar da União, de critérios especiais de tributação, com o
objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência19.
Adite-se que o novel princípio constitucional foi inserido na Seção Dos Princípios
Gerais, do Capítulo I Do Sistema Tributário Nacional, ou seja, trata-se de princípio
informador de todo o Sistema Tributário, que deve ser interpretado sistematicamente com os
princípios informadores da Ordem Econômica, mormente o princípio da livre concorrência,
insculpido no art. 170, inciso IV do Texto Constitucional, já que o art. 146-A trata justamente
das formas de atuação estatal para prevenir os desequilíbrios concorrenciais.
5.1.1.1. NEUTRALIDADE E IGUALDADE TRIBUTÁRIA
Outro ponto importante, e que também deve ser levado em consideração para a
verificação da inconstitucionalidade da concessão de benefícios fiscais unilaterais pelos
Estados-Membros, em virtude da clara ofensa a neutralidade fiscal, diz respeito à violação aos
princípios da igualdade tributária e da solidariedade fiscal dos contribuintes.
Lecionando acerca do dever de solidariedade, que impõe a cada um dos cidadãos
a contribuição, na medida de sua capacidade contributiva, para atender às despesas do
Estado20, a Professora Maria Celina Bodin de Moraes21, nos ensina que
ao direito de liberdade da pessoa será contraposto – ou com ele sopesado – o dever da solidariedade social, não mais reputado como um sentimento genérico de fraternidade ou uma ação virtuosa que o indivíduo poderia – ou não – praticar, dentro de sua ampla autonomia. (...) O princípio da solidariedade é a expressão mais profunda da sociabilidade que caracteriza a pessoa humana.
19 Vale ressaltar que a impossibilidade de a lei tributária gerar desequilíbrios concorrenciais já se encontrava implícita no Texto Constitucional, nos artigos 145, §1º, e 150, II e IV, consoante salientado pelo professor Ives Gandra da Silva Martins: “Tenho para mim que a matéria mencionada já estava implícita na Constituição Federal, visto que não poderia a lei tributária, sob o risco de gerar descompetitividade, ser elaborada de forma a provocar descompassos, pois estaria ferindo princípios fundamentais de direito tributário, como o princípio da isonomia, da capacidade contributiva e da vedação ao efeito confisco”. (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Desequilíbrio Concorrencial e o Artigo 146-A da CF, 2005. Disponível em: <http://www.fiscolex.com.br/doc_6221838_DESEQUILIBRIO_CONCORRENCIAL_ARTIGO_146_CF.asp>. Acesso em 03/04/2011). O art. 146-A veio apenas explicitar a regra da neutralidade tributária, além de inserir um dever positivo do Estado de restabelecer a concorrência, quando a mesma for ferida em virtude da tributação, consoante restará demonstrado nos tópicos abaixo. 20 O jurista português Nuno de Sá Gomes, na obra Manual de Direito Fiscal, salienta que o sacrifício de cada cidadão para o custeio da máquina estatal deve se dar na medida da sua capacidade de contribuir para tais gastos, de forma a garantir a igualdade. “(...) a igualdade não consiste em pagarem todos os mesmo, mas na proporção da riqueza possuída, pois, se o imposto fosse igual por cabeça, essa dita igualdade representaria uma desigualdade, na medida em que os economicamente mais débeis pagariam uma percentagem maior da sua riqueza que os mais ricos, face ao total de bens de que dispõem. Esta é a doutrina designada da igualdade de sacrifícios (...)”. (GOMES, Nuno de Sá. Manual de Direito Fiscal, vol. II, Lisboa: Ed. Rei do Livros, 1999, p. 218). 21 MORAES, Maria Celina Bodin de. A Estrutura Normativa das Normas Constitucionais. Notas sobre a distinção entre Princípios e Regras.- O Princípio da solidariedade. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2001, p. 167-190.
132
Na esfera tributária, o princípio da solidariedade é manifestado através do
princípio da capacidade contributiva22. Originariamente formulada por Adam Smith, no
contexto do liberalismo, a tributação deveria incidir na medida da exteriorização da
capacidade econômica do cidadão, que custearia as necessidades da sociedade, permitindo seu
progressivo desenvolvimento econômico.
Intimamente ligada ao valor justiça, expressa a idéia de que cada um deve
contribuir para o custeio do todo de acordo com suas possibilidades econômicas. Em outras
palavras, o ônus tributário deve ser igualmente distribuído, ajustado à capacidade econômica
dos cidadãos, na medida em que se desigualam. Nas palavras de Héctor Villegas23, a
capacidade contributiva é o limite material quanto ao conteúdo da norma tributária garantindo
sua justiça e razoabilidade.
Essa distribuição igualitária do ônus permite a concretização da justiça
distributiva, balizada pela idéia de igualdade. O escalonamento da tributação deve se dar
iniciando-se além do mínimo necessário à existência humana digna e finalizando aquém do
limite destruidor da propriedade. Dessa maneira, a igualdade que permeia tanto a capacidade
contributiva quanto a legalidade tributária adequaria a sobrevivência pacífica e vitalizante da
justiça fiscal com a segurança jurídica.
Vale lembrar que na época do Estado de Direito vigorava a igualdade formal, que
entendia que o Estado deveria abster-se de quaisquer intervenções na vida econômica e na
vida social. Tão logo fossem abolidos os privilégios existentes cada cidadão poderia
desenvolver livremente suas aptidões, e, dessa forma, estaria garantida a igualdade de
oportunidades. O liberalismo solucionou a problemática igualitária desvinculando o Estado
das questões sociais. É a consagração da igualdade perante a lei.
Com o advento do Estado Social e do Estado Democrático de Direito, começou-se
a preocupação com a chamada igualdade material, numa tentativa de retirar o caráter
meramente simbólico que acompanhava o princípio e obter-se efetivamente uma estrutura
ideal que harmonizasse o ordenamento jurídico e garantisse a justiça fiscal.
A obtenção dessa estrutura ideal do sistema passa pela aplicação prática dos
diversos princípios que direcionam os entes tributantes na sua função institucional de criação
de tributos (e, obviamente, de exonerar determinados contribuintes da tributação), dentre eles
22 Segundo Nuno de Sá Gomes, o princípio da capacidade contributiva possui duas funções “uma função garantística no sentido de que só devem ficar sujeitas a tributação os que podem pagar (ability to pay), e uma função solidarista no sentido de que desde que haja capacidade de pagar todos devem contribuir para as despesas públicas na medida da sua capacidade”. (GOMES, op. cit., p. 200). 23 VILLEGAS, Héctor apud TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 95.
133
destaca-se, por sua capital importância, o da capacidade contributiva, segundo o qual os
contribuintes devem colaborar na proporção de sua capacidade de contribuição24, ou seja,
devem pagar tributos para fazer frente às despesas públicas na medida da sua capacidade de
pagar (função solidarista), respeitando-se o limite mínimo à manutenção, com dignidade, da
pessoa humana e da respectiva família25. .
No Brasil, o referido princípio está consagrado no art. 145, § 1.º da Constituição
Federal de 1988, e se apresenta com grande abrangência e importância dentro do contexto
jurídico no qual se insere, pelo fato do mesmo ser o representante maior do princípio da
igualdade.
Para dar aplicabilidade a este último princípio, a Constituição Federal previu
aquele, no intuito de tratar igualmente os contribuintes que se encontram em igualdade de
condições e desigualmente os desiguais, de forma a respeitar as condições pessoais de cada
um. Além das já citadas questões, há a dificuldade na efetiva identificação da capacidade
econômica do contribuinte e em que proporção as diferenças ocorrem.
Ao estudar o princípio em questão, José Maurício Conti26 ensina que
No Direito Tributário, o critério que mensura a igualdade ou desigualdade é a capacidade contributiva. A eleição do critério da capacidade contributiva como elemento de discriminação para diferenciação dos indivíduos em situação desigual e, portanto, critério legítimo para estabelecer distinções na forma de tributação, é reconhecida de forma inequívoca pela doutrina.
Voltando à questão da neutralidade tributária, e considerando-se que a capacidade
contributiva é o principal parâmetro justo de comparação para a aplicação do princípio da
igualdade tributária, quaisquer distinções entre os contribuintes deve ser fundamentada de
forma expressa, tendo como base justamente a sua capacidade de contribuição e não a
localização geográfica, critério único identificador da concessão dos benefícios fiscais
unilaterais concedidos pelos Estados-Membros.
Ao instituir a tributação privilegiada – benefício fiscal –, distinguindo entre
contribuintes com igual capacidade de contribuição, diferenciados unicamente pela
localização no território nacional, o legislador do Estado-Membro vai de encontro à função
solidarista da capacidade contributiva, que possui como uma de suas facetas a vedação à
24 Importante salientar aqui, que não se confundem capacidade contributiva e capacidade econômica, conforme nos ensina Nuno de Sá Gomes: “(...) resulta ainda que o conceito de capacidade económica não se confunde com o conceito de capacidade contributiva, pois pode haver capacidade económica (v.g. mínimo de existência), onde não há capacidade contributiva”. (GOMES, op. cit., p. 202). 25 GOMES, op. cit., p. 200-201. 26 CONTI, José Maurício. Princípios tributários da capacidade contributiva e da progressividade. São Paulo: Dialética, 1996, pp. 29-32.
134
concessão de privilégios arbitrários, conforme muito bem salientado pelo mestre português
Nuno de Sá Gomes27:
Por sua vez, a função solidarista do princípio da capacidade contributiva, no sentido de que todos devem pagar impostos para ocorrer às despesas públicas na medida da sua capacidade de pagar, além de ter também implicações constitucionais designadamente a proibição da concessão de privilégios arbitrários a certos contribuintes vem traduzir-se numa igualdade na tributação, postulando a respectiva uniformidade nos critérios de tributação.
Vê-se, pois, que a concessão dos benefícios fiscais unilaterais se dá em total
desrespeito à capacidade contributiva, o que, nos precisos dizeres de Ricardo Seibel28, é
evidente a interferência na igualdade de condições competitivas, deixando de ser observado o
dever de neutralidade tributária, e violando o princípio da livre concorrência.
Daí porque a afirmativa de Atílio Dengo29 que a neutralidade tributária decorre do
princípio da capacidade contributiva e importa na igualdade impositiva sobre as mesmas
bases jurídico-econômicas. Confira-se:
Do ponto de vista jurídico, a neutralidade tributária decorre do princípio da capacidade contributiva e importa na igualdade impositiva sobre as mesmas bases jurídico-econômica. O encargo incidente sobre a operação não deve interferir na formação dos preços, de modo a distorcer as regras de mercado. Uma legislação tributária neutra visa evitar que o contribuinte, diante de uma situação não neutra, adote um comportamento que não assumiria caso estivesse em presença de um tratamento equânime. Quer dizer, na perspectiva do princípio da capacidade contributiva, o tributo não deve interferir desarrazoadamente no preço de venda do produto. E, do ponto de vista da igualdade tributária, todos os contribuintes que se encontram em condições essencialmente idênticas devem estar submetidos aos mesmos gravames.
Por estas razões, podemos dizer que os benefícios concedidos irregularmente, por
não levarem em consideração o critério da capacidade contributiva, mas sim a localização
territorial dos contribuintes em cada Estado-Membro que os concede, desrespeita a
neutralidade tributária, fere o princípio da igualdade, e ofende as condições competitivas
como dimensão do princípio da livre concorrência, podendo ser considerado um privilégio
odioso30, devendo ser repudiada a sua concessão, consoante muito bem vem entendendo a
Suprema Corte, embora por fundamentos diversos.
27 GOMES, op. cit., p. 202. (Grifos do autor). 28 LIMA, op. cit., p. 81. 29 DENGO, op. cit., p. 18-34. 30 Ricardo Lobo Torres conceitua “privilégio odioso” como sendo: “(...) a autolimitação do Poder Fiscal, por meio da Constituição ou da lei formal, consistente na permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba, com alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais. (TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 287).
135
5.1.1.2. NEUTRALIDADE E LIVRE CONCORRÊNCIA: A IMPOSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO
DO ESTADO NA LIVRE CONCORRÊNCIA ATRAVÉS DA CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS FISCAIS
IRREGULARES.
Consoante salientado no capítulo 3, dentre as facetas da liberdade de iniciativa
econômica, temos a liberdade de concorrência, que analisada sob o aspecto da liberdade
pública, pressupõe a neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, ou seja, o
Estado não deve intervir na livre iniciativa da atividade econômica quando os concorrentes se
encontrem em igualdade de condições.
Considerando-se que a imposição tributária é sabidamente uma forma de
intervenção do Estado na ordem econômica, o Estado deve primordialmente adotar um papel
neutro em relação ao fenômeno concorrencial, consoante há muito já salientava Fritz
Neumark, citado pelo doutor pela Universidade de São Paulo, Roberto Ferraz31:
O princípio de evitar as consequências involuntárias que os impostos ocasionam na concorrência requer que a política fiscal, no relativo à transferência coativa por ela originada dos recursos econômicos, ou da subtração à capacidade aquisitiva que representa, se abstenha de toda intervenção que prejudique o mecanismo competitivo do mercado, a menos que a intervenção seja indispensável para corrigir resultados da concorrência perfeita, as que por razões de ordem superior se considerem necessárias, ou para suprimir ou atenuar determinadas imperfeições da concorrência.
Esta neutralidade concorrencial, corolário da livre iniciativa econômica, foi
definida por Tércio Sampaio Ferraz Júnior32, no contexto Constitucional brasileiro, como
sendo:
O princípio da neutralidade concorrencial deriva diretamente da liberdade de iniciativa, seja no sentido de acesso ao mercado, seja no de livre conformação e disposição da atividade econômica. Ele inibe, assim, a interferência estatal que impossibilite, juridicamente ou de fato, a criação ou continuidade de empresas dedicadas a atividades lícitas. O fundamento constitucional daquele princípio não é o princípio da livre concorrência, mas a livre iniciativa. Significa, pois, a neutralidade do Estado perante concorrentes que atuem, em igualdade de condições, no livre mercado. Em nome da finalidade de ‘assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social’ (CF, art. 170, caput), o Estado é obrigado a não privilegiar concorrentes, desequilibrando a igualdade concorrencial, princípio de justiça aplicado à concorrência. Em suma, significa que o Estado, ao regular o mercado livre (livre concorrência) deve abster-se de medidas que, ao privilegiar concorrentes em igualdade de condições, venham a prejudicar consumidores ou a criar desigualdades regionais ou a desfavorecer pequenas empresas ou a proteger o meio ambiente, de um lado, para desprotegê-lo, de outro, etc. A neutralidade concorrencial garante, pois, a igualdade de chances para os agentes econômicos.
31 NEUMARK, Fritz apud FERRAZ, Roberto. Intervenção do Estado na Economia por meio da tributação – a Necessária Motivação dos Textos Legais. In: Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, 2006, nº 20, p. 238-252. 32 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio apud FERRAZ, op. cit., p. 242.
136
Por esta razão, a intervenção do Estado no campo do domínio econômico, através do
estabelecimento de políticas tributárias privilegiadas (concessão de redução ou isenção de
tributos), preferência à obtenção de créditos, subsídios para aqueles agentes que se
enquadrarem em determinada situação sugerida pelo Estado, deve respeitar os princípios da
livre iniciativa e da livre concorrência, previstos no caput do artigo 170, e no seu inciso IV,
ambos da Constituição da República.
Corolário lógico do exposto é que a intervenção estatal não pode ocorrer de tal forma
que prejudique a concorrência no mercado, impedindo a entrada de novos concorrentes que
não possuam o mencionado benefício, ou mesmo fazendo que determinado concorrente que já
atue em determinado mercado, seja obrigado a abandoná-lo.
Isto porque os benefícios concedidos irregularmente possibilitam que as empresas
beneficiadas ofereçam preços muito inferiores aos das demais empresas não agraciadas, por se
localizarem em Unidade Federada diversa, o que pode ocasionar concorrência desleal pela
favorecida, já que as demais empresas não terão condições de competir com os preços
oferecidos, uma vez que, por mais que reduzam seus preços, os mesmos não se mostrarão
competitivos, em virtude dos custos e obrigações regulares que estas terão que arcar.
Não restam dúvidas de que a guerra fiscal tem influência direta na formação dos
preços e, via de consequência, na competição dos agentes no mercado, até mesmo porque os
tributos se afiguram como importante elemento de composição dos mesmos, consoante muito
bem salientado por Geraldo Biasoto Júnior33, ao afirmar que o sistema tributário, ao afetar o
sistema de preços, se transforma num forte determinante da alocação dos recursos na
economia.
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, em virtude desta clara
afetação do Sistema Tributário no sistema concorrencial, foi instado a se manifestar, via
Consulta elaborada pelo Pensamento Nacional das Bases Empresariais – PNBE34, em relação
aos aspectos concorrenciais envolvidos na política de incentivos fiscais e financiamento,
concedidos pelos Municípios e Estado, conhecidos por “Guerra fiscal”.
O CADE equiparou, para efeitos meramente concorrenciais, os benefícios fiscais aos
fiscais-financeiros, embora como já ressaltado no capítulo anterior, a concessão dos chamados
benefícios financeiros, assim considerados aqueles concedidos exclusivamente após a
33 BIASOTO JÚNIOR, Geraldo. Tributação: Princípios, evoluções e tendências recentes. Textos para discussão nº 31, Instituto de Economia, Unicamp, novembro de 1993 apud Consulta CADE nº 38/1999, referente aos aspectos concorrenciais envolvidos na política de incentivos fiscais e financiamento concedidos pelos Municípios e Estado conhecidos por "guerra fiscal". (BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Consulta CADE nº 38/1999. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/Default.aspx?e142d522e036c85baf53f145>. Acesso em 23/03/2011). 34 Ibid.
137
extinção do crédito tributário, ainda que se leve em consideração para a escolha dos
beneficiados, o caráter de contribuinte do imposto estadual, não se sujeita à regra
Constitucional de concessão apenas via CONFAZ.
O voto do Conselheiro relator do processo em comento aponta, dentre outros, os
seguintes argumentos acerca da incompatibilidade entre os benefícios concedidos
irregularmente e a livre concorrência:
(i) Os incentivos importam na redução do montante do imposto a pagar, resultando, dada a
estrutura tributária brasileira, redução irreal no custo dos produtos e, via de conseqüência,
aumento de lucro para as empresas beneficiadas de até centenas de pontos percentuais em
comparação com aquelas não favorecidas, com alteração na participação de mercado entre os
concorrentes.
De fato, no corpo do seu voto, o Conselheiro Marcelo Calliari, citando a exposição do
Deputado Antônio Kandir no Fórum Permanente da Concorrência do CADE, demonstra
categoricamente os efeitos nefastos dos benefícios fiscais no aumento dos lucros das empresas
beneficiadas. A redução de apenas 33% do montante do ICMS devido pode gerar uma
elevação do lucro líquido de determinado setor em até 128%, dado o peso considerável do
imposto estadual na composição dos preços dos produtos. A redução total do ICMS pode
ocasionar ganhos de 388%.
Neste ponto, curial a transcrição do entendimento do professor Ary Oswaldo Mattos
Filho, professor titular da FGV e ex-Presidente da CVM, citado pelo Conselheiro relator
Marcelo Calliari35, no sentido de que "a concessão de qualquer incentivo, tributário ou
financeiro, pode reduzir dramaticamente o custo final da mercadoria produzida, alterando na
mesma proporção as respectivas fatias de mercado de um dado bem".
De fato, a redução drástica dos custos de produção, dado o impacto tributário
apontado, permitirá ao agente beneficiado que ele detenha a capacidade de determinação do
comportamento da concorrência, via controle de preços, passando a exercer, de forma
abusiva, a posição dominante no mercado. Ademais, o exercício da posição dominante, de
forma abusiva, poderá ocasionar o aumento arbitrário dos lucros da empresa incentivada,
certamente caracterizará dupla infração a ordem econômica, dada a conduta ofensiva ao
disposto nos incisos III e IV, do artigo 20, da Lei nº 8.884/94.
35 MATTOS FILHO, Ary Oswaldo. Guerra Fiscal e o papel do STF. Gazeta Mercantil, 3/2/2000, p. A-3, apud Consulta CADE nº 38/1999, op. cit.
138
Não se trata aqui do exercício de posição dominante em virtude da maior eficiência
econômica de determinado competidor, mas unicamente em virtude da vantagem tributária
por ele auferida. Trata-se de clara hipótese do
exercício, por parte do titular de posição dominante, de atividade empresarial contrariamente à sua função social, de forma a proporcionar-lhe, mediante restrição à liberdade de iniciativa e à livre concorrência, apropriação (efetiva ou potencial) de parcela da renda social superior àquela que lhe caberia em regime de normalidade concorrencial,
tal como ensina Sérgio Varella Bruna36.
(ii) Incentivos concedidos no âmbito da ‘guerra fiscal’ podem, portanto, alterar a dinâmica
econômica e o nível de bem-estar da coletividade, ao gerar os seguintes efeitos:
• Retira o estímulo ao aumento constante do nível geral de eficiência da economia,
permitindo uso menos eficiente de recursos e afetando negativamente a capacidade de
geração de riquezas do país;
• Protege as empresas incentivadas da concorrência, mascarando seu desempenho,
permitindo que mantenham práticas ineficientes e desestimulando melhorias na
produção ou inovação;
• Possibilita que empresas incentivadas, ainda que auferindo lucros, possam
‘predatoriamente’ eliminar do mercado suas concorrentes não favorecidas, mesmo
que estas sejam mais eficientes e inovadoras, em função da enorme vantagem de que
dispõem;
• Prejudica as demais empresas que, independentemente de sua capacidade, terão
maiores dificuldades na luta pelo mercado, gerando com isso mais desincentivo ao
investimento, à melhoria de eficiência e inovação;
• Desestimula a realização de investimentos tantos novos quanto na expansão de
atividades em andamento, gerando perda de eficiência alocativa na economia, com a
conseqüente redução de bem-estar.
36 BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: RT, 2001, p. 177-178.
139
O Conselheiro relator utiliza-se da doutrina dos professores Ernest Gelhorn e
Willian E. Kovacic37, que vêem a necessidade da existência de uma distribuição eficiente de
recursos na economia, para concluir que efetivamente a guerra fiscal pode levar a situações de
alocação ineficiente de recursos na economia e a condições que permitam uma empresa deter
“domínio de mercado”.
Portanto, fica claro que o tratamento fiscal diferenciado atinge diretamente a
eficiência produtiva das empresas beneficiadas, mascarando-a. Isto porque, embora os bens
por elas produzidos não se dêem ao mais baixo custo possível, mesmo se mostrando
ineficiente, não haverá abandono da produção pelas empresas agraciadas, mas de forma
absolutamente distorcida, são os concorrentes não beneficiados que se verão excluídos do
mercado.
Ademais, o mercado relevante das regiões beneficiadas acaba por adquirir uma
estrutura monopolística ou oligopolística, já que ocorre o desestímulo à inovação e à melhoria
da eficiência dos produtos pelas empresas detentoras dos benefícios irregulares, além da
imposição natural de pesadas barreiras à entrada de novos concorrentes no mercado e, por ser
o monopolista detentor do mercado (ou de parte substancial dele, sendo o restante atomizado),
não há interesse no desenvolvimento de novas tecnologias ou no aperfeiçoamento dos
produtos por ele comercializados.
Desta forma, não podem existir dúvidas no sentido de que a concessão de benefícios
unilaterais pelos Estados-Membros e pelo Distrito Federal, além de fazer tabula rasa do
disposto no artigo 155, §2º, XII, g da Carta Magna, fere sobremaneira os objetivos básicos e
fundamentais do sistema concorrencial brasileiro, quais sejam, "assegurar a todos a existência
digna" (CF, art. 170, caput) e "garantir o desenvolvimento nacional e promover o bem de
todos" (CF, art. 3º, incisos II e IV).
Em um sistema concorrencial, como o brasileiro, que tem como
uma das características mais basilares é que ele tende, por seus mecanismos e por sua lógica naturais, a buscar a maior eficiência na alocação de recursos na economia, ou seja, tende, se livre de amarras ou distorções, a estimular que os recursos de que a sociedade dispõe sejam utilizados da forma mais eficiente possível, levando com isso à geração de maior quantidade de riqueza a partir da mesma quantidade de insumos,
37 Em termos econômicos, a competição maximiza o bem-estar do consumidor por aumentar tanto a eficiência alocativa (produzindo o que os consumidores querem, conforme demonstrado por sua disposição a pagar) e eficiência produtiva (produzindo bens ou serviços ao menor custo usando o mínimo de recursos), e por encorajar progresso (recompensando inivações). (GELHORN, Ernest. KOVACIC, Willian E. Antitrust Law and Economics in a Nutshell”. Fouth Edition, West Publishing Co., 1994, p. 42 apud BRASIL. Consulta CADE nº 38/1999, op. cit.).
140
nos precisos dizeres do Conselheiro do CADE, Marcelo Calliari38, não há que se admitir a
interferência do próprio Estado concedendo privilégios a concorrentes em igualdade de
condições.
5.2. O PAPEL DO ARTIGO 146-A DA CF/88 E A INSTITUIÇÃO DE REGIMES
ESPECIAIS DE TRIBUTAÇÃO QUE VISEM O RESTABELECIMENTO DA
CONCORRÊNCIA.
Consoante já delineado alhures, o legislador constituinte derivado inseriu, a partir
da Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003, o artigo 146-A no Texto da
Constituição, que estabelece que "Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de
tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da
competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo".
Trata-se da constitucionalização do princípio da neutralidade tributária, consoante
já salientado acima. O mencionado princípio impõe dois deveres39, já que não se trata de
faculdade constitucional, ao legislador infraconstitucional: (i) o dever negativo de não
interferir na concorrência por meio da tributação40, ou (ii) o dever positivo de prevenir ou
restaurar41, quando for o caso, a igualdade de condições na concorrência, nos precisos dizeres
de Ricardo Seibel42.
De fato, como princípio constitucional, a neutralidade tributária, por refletir
diretamente os valores da livre iniciativa e da livre concorrência escolhidos pela sociedade no
texto constitucional, dirige-se diretamente ao Poder Legislativo dos entes federados,
impondo-lhes o dever de atuar, positiva ou negativamente, para prevenir, manter ou restaurar
a igualdade de condições na concorrência.
38 CADE, Consulta 38/1999, op. cit. 39 Discordamos do jurista Ives Gandra, que afirma que o mencionado princípio instituiria o chamado poder-dever, pois na realidade o dispositivo constitucional é impositivo. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Desequilíbrio Concorrencial e o Artigo 146-A da CF. Disponível em: <http://www.fiscolex.com.br/doc_6221838_DESEQUILIBRIO_ CONCORRENCIAL_ARTIGO_146_CF.asp> Acesso em 03/04/2011. 40 Dever este que é por vezes descumprido pelos legisladores estaduais ordinários, ao concederem benefícios fiscais irregulares, intervindo diretamente na concorrência dos agentes econômicos por meio da tributação. 41 Como exemplo de atuação positiva do Estado na ordem econômica pode-se citar a equiparação, por parte do Estado-Membro prejudicado pela concessão unilateral de benefícios fiscais, dos mesmos benefícios concedidos pela outra unidade federada a concorrentes domiciliados nos seus territórios, mas que se encontram em igualdade de condições com outros agentes econômicos sediados na unidade prejudicada. O que se tentará demonstrar abaixo, e que é o principal objetivo do presente trabalho, é que o Estado possui esse dever de atuar positivamente para restabelecer a igualdade de condições concorrenciais, através do estabelecimento de critérios especiais de tributação. É sob este aspecto que trabalharemos daqui em diante. 42 LIMA, op. cit., p. 73.
141
Adite-se que o art. 146-A impõe tanto ao Poder Legislativo central, através da
atuação da União estabelecendo as normas gerais em matéria de prevenção dos desequilíbrios
concorrenciais decorrentes da tributação, como aos Poderes Legislativos das ordens jurídicas
parciais, de forma supletiva, consoante restará demonstrado abaixo, a obrigação de garantir a
liberdade de concorrência, garantido assim a valorização do trabalho humano e a livre
iniciativa, e, por fim, assegurando a todos existência digna, tal qual definido no caput do
artigo 170 do texto Constitucional.
Embora José Luis Ribeiro Brazuna43, em obra específica sobre o tema, afirme que
a norma constante no art. 146-A prescreve um comportamento, mediante o uso do
modal/funtor “permitido”, entendemos que se trata de preceito imperativo, ou seja, constatado
o desequilíbrio concorrencial, o ente federado tem o dever positivo ou de ação, de restaurar a
igualdade de condições na concorrência, quando esta se encontre turbada por ações de
particulares ou de outros fatores relevantes, visando o restabelecimento da igualdade de
competições competitivas do mercado44.
Um destes “fatores relevantes” que enseja esse comportamento positivo do Estado
é justamente a concessão de benefícios tributários unilaterais por algum Estado-Membro para
os seus jurisdicionados, já que é evidente a influência dos tributos na competição entre as
empresas pela conquista de mercado. Sobre a questão, Marco Aurélio Greco45 afirma que:
Na medida em que onera certas atividades ou pessoas, o tributo pode causar interferências no regime de competição entre as empresas, se não estiver adequadamente formulado ou não for devidamente exigido. Interferências na competição podem surgir tanto em razão de as leis fiscais gerarem distorções ou desigualdades num mesmo setor, como também podem surgir se as leis estão adequadamente formuladas, mas sua aplicação concreta não faz com que a sua potencialidade total se efetive.
Poder-se-ia argumentar que a atuação positiva do Estado estabelecendo estes
“critérios especiais de tributação” poderia ir de encontro a outro importante princípio
constitucional, qual seja, o princípio isonômico que exige que não se institua tratamento
desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente (artigo 150, II da CF).
Isto porque, dependendo do critério especial de tributação utilizado pelo legislador, a
igualdade de condições entre contribuintes que se encontre em situação equivalente pode ser
afetada.
A solução do eventual conflito está na análise da ponderação dos princípios dentro
do sistema jurídico.
43 BRAZUNA, José Luis Ribeiro. Defesa da Concorrência e Tributação: À luz do Artigo 146-A da Constituição. Série Tributária Doutrinária vol. II. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 128. 44 LIMA, op. cit., p. 73.
142
Como é cediço que o ordenamento jurídico, como sistema que é, possui dois
atributos para seu funcionamento em harmonia. São a unidade e a ordenação. Por definição, a
lógica da ordem jurídica passa pela existência de uma multiplicidade de normas, conexas
entre si, orientadas por princípios e seus valores fundantes. A convivência deve ser em
equilíbrio, mesmo em situações conflituosas. O amálgama desse conflito é o princípio da
Unidade da Ordem Jurídica. Este vetor de interpretação decorre do sistema constitucional e
irradia seus efeitos sobre todas as normas infraconstitucionais.
Neste passo, o princípio da Unidade obriga o intérprete a considerar a
Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre
as normas constitucionais a concretizar46. Sua função principal é a otimização das normas, na
medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de
qualquer norma.
O Direito, constatando essa realidade, classifica esses pontos de tensão em
categoria própria, denominando-os de antinomias. Como observa Tércio Sampaio Ferraz
Júnior47, a antinomia jurídica é a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias,
emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito
numa situação insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe
uma saída nos quadros do ordenamento dado.
A colisão de princípios é resolvida pela técnica da ponderação de valores, pois
transcorre na dimensão do peso, isto é, do valor48. O professor Luís Roberto Barroso49, com
seu curial brilhantismo, entende tratar-se de uma linha de raciocínio que procura identificar o
bem jurídico tutelado por cada uma delas (normas), associá-lo a determinado valor, isto é, ao
princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de
cada norma, sempre tendo como referência máxima as decisões fundamentais do constituinte.
As professoras fluminenses Jane Reis Gonçalves Pereira e Fernanda Duarte Lopes
Lucas da Silva50, forte em Alexy, afirmam que:
Quanto às colisões de princípios, devem ser solucionadas de forma completamente diversa. A solução não se encontra em declarar a invalidade de um dos princípios,
45 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004, p. 39. 46 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. 47 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, Técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2001, p. 208. 48 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves; DA SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas. A Estrutura Normativa das Normas Constitucionais. Notas sobre a distinção entre Princípios e Regras. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2001, p. 03-24. 49 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p.185. 50 PEREIRA; DA SILVA, op. cit., p. 03-24.
143
ou em entender um deles como uma exceção do outro. Sempre que dois princípios, aplicáveis a um mesmo caso, entram em conflito – por conterem mandamentos opostos – um dos princípios tem que ceder em face do outro. E a determinação sobre qual princípio deve ceder – e em que medida – é feita a partir de um processo de ponderação de peso que cada um deles tem no caso concreto. (...) Assim, na hipótese em que algo é permitido por um princípio, mas vedado por outro, um dos princípios deve recuar, sem que algum deles seja declarado inválido, ou inserida cláusula de exceção. Dessa forma, o problema do conflito de regras se resolve na dimensão de sua validade, enquanto que dos princípios é solucionado na dimensão do valor.
De fato, a técnica defendida pelas professoras acima deve ser utilizada nas
hipóteses de caracterização de possível colisão entre pelo menos dois princípios
constitucionais incidentes sobre um mesmo caso concreto (no caso da presente obra, no
estabelecimento de critérios especiais de tributação, os princípios da livre iniciativa e da livre
concorrência podem colidir com o princípio da igualdade).
Desta sorte, para solucionar o conflito, deverá o juiz aplicar o princípio da
proporcionalidade51 na sua tríplice dimensão: a) adequação, que exige que as medidas
adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b)
necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação de meio menos gravoso para
atingimento dos fins visados; e c) proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação
entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na
esfera dos direitos dos cidadãos.
Na terceira dimensão do princípio da proporcionalidade, a "proporcionalidade em
sentido estrito", devemos, ainda, aplicar o raciocínio baseado na Lei de Ponderação52,
ordenando que quanto mais intensa for a intervenção em um direito tanto mais graves devem
ser as razões que a justificam. Para isso, é necessário passar por três fases: 1) determinar a
intensidade da intervenção; 2) determinar as razões que a justificam; 3) ponderação estrita,
por meio de atribuição de pesos específicos aos interesses em jogo53.
Neste caso, a restrição imposta a um interesse deve ser a mínima possível para que
seja indispensável à sua convivência com o outro, de forma que nenhum deles desapareça por
completo. Se isso acontecer, não haverá ponderação de interesses, e sim, preponderância de
interesses, pois o pressuposto dessa técnica é a convivência harmônica dos interesses. Logo,
os dois interesses sobrevivem juntos, lado a lado. Na verdade, há um acordo de interesses,
onde cada um cede espaço ao outro, sem sacrifícios por inteiro de nenhum deles.
Volvendo-se ao pretenso conflito entre os princípios da livre iniciativa e da livre
concorrência com o princípio da igualdade, verifica-se ser possível dar peso adequado ao
51 BARROSO, p.185. 52 SARMENTO, op, cit., p. 104 53 ALEXY, Robert apud PEREIRA; DA SILVA, op. cit., p. 03-24.
144
princípio da igualdade quando a situação exige maior eficácia dos princípios da livre
iniciativa e livre concorrência. Se houver desequilíbrio concorrencial por razões tributárias,
podem ser instituídos regimes de tributação diferenciados, desde que necessários para o
restabelecimento de competição justa.
O artigo 146-A, da Constituição Federal, assume, nesse contexto, extraordinária
importância. O referido dispositivo Constitucional surge para dar maior concreção aos
princípios da livre concorrência em face do princípio da isonomia. Com base nele, podem ser
instituídos regimes especiais sem agressão à Constituição Federal.
Nesta senda, não ofende a isonomia tributária o estabelecimento de regimes
diferenciados de tributação para aqueles que desequilibram a concorrência, o que é permitido
com base no artigo 146-A. Exatamente para assegurar a isonomia e a livre concorrência que
se justificam os regimes especiais.
Se, de um ponto de vista tributário, todos devem ser tratados igualmente, de um ponto
de vista concorrencial, todos devem ser tratados com igualdade de condições de competir, sob
pena de ferir-se o princípio da livre concorrência. Aliás, se um agente econômico atua no
mercado sendo menos onerado que outro que se encontra na mesma situação, infringe-se não
só o referido princípio da livre concorrência, mas também o da isonomia tributária.
A questão ora posta foi objeto de interessante case levado a julgamento na Suprema
Corte Brasileira54. Trata-se de Medida Cautelar pleiteada pela fabricante de cigarros
American Virgínia Indústria e Comércio, Importação e Exportação de Tabacos Ltda., nos
autos da Ação Cautelar visando a concessão de efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário
interposto contra a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que
manteve a cassação do Registro Especial para a produção de cigarros pela empresa55,
ocasionando o encerramento das suas atividades, por contumaz sonegação fiscal56, cujo
montante, apontado pela Procuradoria da Fazenda Nacional, chegaria a um bilhão de reais.
54 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1.657/RJ, Tribunal Pleno, Relator Ministro Joaquim Barbosa. Relator para Acórdão Ministro Cezar Peluso, julgamento 27 jun 2007. Publicação 31 ago 2007. Brasília: DJ, p. 28. 55 BRASIL, Decreto-Lei nº 1.593, de 1977. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del1593.htm>. Acesso em 02/04/2011. "Art. 1º. A fabricação de cigarros classificados no código 2402.20.00 da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados - TIPI, aprovada pelo Decreto no 2.092, de 10 de dezembro de 1996, será exercida exclusivamente pelas empresas que, dispondo de instalações industriais adequadas, mantiverem registro especial na Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2158-35, de 2001)." 56 BRASIL, Decreto-Lei nº 1.593, de 1977. "Art. 2º. O registro especial poderá ser cancelado, a qualquer tempo, pela autoridade concedente, se, após a sua concessão, ocorrer um dos seguintes fatos: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2158-35, de 2001). (...) II - não-cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal; (Redação dada pela Lei nº 9.822, de 1999)."
145
O Excelso Tribunal indeferiu o pedido cautelar aviado, sob o principal fundamento de
que a conduta fiscal da American Virgínia, que estaria se recusando a efetuar o pagamento da
carga tributária a que os concorrentes também estariam sujeitos, ofenderia não somente o
princípio da livre concorrência, como também da isonomia tributária.
Consoante muito bem ressaltado no voto-vista proferido pelo Ministro Cezar
Peluso, relator do acórdão proferido na Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1657/RJ, em
sendo o principal tributo incidente na indústria do cigarro, o Imposto sobre produtos
Industrializados, fator determinante na composição do preço do produto57,
o descumprimento das obrigações fiscais é aqui acentuadamente grave, dados seus vistosos impactos negativos sobre a concorrência, o consumidor, o erário e a sociedade. E representa, ainda, tentativa de fraude ao princípio da igualdade e de fuga ao imperativo de que a generalidade dos contribuintes deva pagar tributos.
A cassação do registro necessário ao exercício da atividade econômica pelo agente
econômico se mostrou lícita, in casu, na medida em que impediu a empresa recorrente de
continuar a desfrutar posição de mercado conquistada à força de vantagem competitiva ilícita
ou abusiva, caracterizando “concorrência proibida”, tal como denominada por Tércio
Sampaio Ferraz Júnior58, citado pelo Ministro Peluso:
(...) uma das formas de quebra da lealdade como base da concorrência está justamente na utilização de práticas ilícitas (concorrência proibida) para obter uma vantagem concorrencial irreversível. (...) A lei brasileira não pune os agentes econômicos por condutas em si anticoncorrenciais, mas por efeitos anticoncorrenciais de condutas concorrenciais. O tipo infrativo não está, pois, na conduta, mas no efeito anticompetitivo que ela provoca sobre a livre concorrência e a livre iniciativa (...). Mencione-se, por sua relevância, um caso sui generis de concorrência proibida, localizada no possível efeito anticompetitivo de certa prática tributária, a despeito de autuações, por força do não recolhimento de tributo considerado como devido pelo Fisco.
Cumpre salientar que o artigo 146-A da Constituição da República foi citado pelo
Ministro Peluso como principal garantidor que a norma tributária, posta regularmente,
hospede funções voltadas para o campo da liberdade de competição no mercado. O eminente
Ministro traz a baila no corpo do seu voto, interessante passagem da Misabel de Abreu
Machado Derzi59:
O crescimento da informalidade (...), além de deformar a livre concorrência, reduz a arrecadação da receita tributária, comprometendo a qualidade dos serviços públicos (...). A deformação do princípio da neutralidade (quer por meio de um corporativismo pernicioso, quer pelo crescimento da informalidade (...), após a
57 Segundo o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), que atuou nos autos da medida cautelar como interessado, os tributos correspondem a 70% do preço de cada maço de cigarros (conforme voto-vista do Ministro Cezar Peluso). 58 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Práticas tributárias e abuso de poder econômico. In: Revista de Direito da Concorrência, nº 9, jan-mar 2006, p. 134-135. 59 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Quebras da livre concorrência no ICMS, no IPI e PIS-Cofins: corporativismo, informalidade, ampla cumulatividade residual e substituição tributária. In: Revista Internacional de direito tributário. v. 3, jan-jun 2005. Belo Horizonte: Abradt-Del Rey, p. 116-117.
146
Emenda Constitucional nº 42/03, afronta hoje o art. 146-A da Constituição da República. Urge restabelecer a livre concorrência e a lealdade na competitividade.
Adite-se que o artigo 146-A da Constituição Federal deve ser analisado conjuntamente
com o artigo 173, parágrafo 4º, do Texto Constitucional. Enquanto o primeiro estabelece a
forma em que o legislador infraconstitucional deve atuar positivamente para evitar os desvios
concorrenciais tributários, o último cuida dos problemas estruturais do mercado, impedindo a
violação à concorrência livre.
Trata-se, portanto, de verdadeiro instrumento geral que permite a atuação do
legislador infraconstitucional, dentro de um juízo de razoabilidade, não somente em casos
concretos, como também nas hipóteses em que se verifique a ameaça de desequilíbrio
concorrencial causado pelo tributo.
No plano tributário, a imposição dos critérios especiais de tributação tem cabimento
tanto para coibir o comportamento anticoncorrencial que constituam caracterizadamente
ilícitos tributários, como também para coibir o aproveitamento de estruturas tributárias
vigentes, consoante preciso entendimento de Tércio Sampaio Ferraz Júnior60:
Em verdade, na conformidade com essas condições e em face do art. 146-A da Constituição Federal, a imposição de obrigações tributárias especiais, principais ou acessórias, com a finalidade de coibir o consumo de certos produtos ou de coibir a evasão fiscal pode ter também a finalidade de coibir o comportamento anticoncorrencial dos agentes econômicos, não só pelo aproveitamento anticoncorrencial de estruturas tributárias vigentes, como também pelo exercício de comportamentos que constituam caracterizadamente ilícitos tributários, podendo, nestes termos, ser, efetivamente, importante instrumento a serviço da proteção da livre concorrência, enquanto condição da livre iniciativa. Pode-se entender positivamente, nesse sentido, a imposição de obrigações tributárias sob critérios especiais, adequados ao mercado relevante. (Grifos nossos).
Partindo da necessária interpretação sistemática da Constituição Federal, entendemos
que a possibilidade de instituição de critérios especiais de tributação permite tratar,
adequadamente, no plano constitucional, situações que afetam a concorrência. A edição do
art. 146-A veio justamente ratificar a possibilidade de serem estabelecidos critérios especiais
de tributação, visando o restabelecimento concorrencial.
147
5.2.1. A NECESSIDADE DE LEI COMPLEMENTAR DA UNIÃO
Consoante visto acima, o legislador constituinte derivado outorgou à Lei
Complementar o papel de instituir “critérios especiais de tributação”, garantindo, ainda, à
União a possibilidade de estabelecer normas com igual objetivo.
Diante da redação acima posta, Brazuna61 vê a possibilidade da existência de
quatro leituras acerca do mencionado dispositivo:
Primeira leitura – o Congresso Nacional poderá estabelecer critérios especiais relativos à cobrança de todos os tributos. Tratando-se de tributos de competência de Estados, Distrito Federal e Municípios, deverá utilizar lei complementar e, para os tributos da União, lei ordinária. Segunda leitura – lei complementar dos Estados, Distrito Federal ou Municípios poderá estabelecer critérios especiais de tributação com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo de a União, mediante lei ordinária, fazer o mesmo com os tributos de sua competência; Terceira leitura – o Congresso Nacional poderá, mediante lei complementar, estabelecer parâmetros para Estados, Distrito Federal e Municípios fixarem por leis próprias os critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios de concorrência, o que também poderá ser feito pela União, por meio de lei ordinária e independente da edição de lei complementar; ou Quarta leitura – por meio de lei complementar, o Congresso Nacional poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, apenas quanto aos tributos de competência da União, que continuará, por meio de lei ordinária, a poder utilizar outros instrumentos preventivos de defesa da livre concorrência.
Da análise dos quatro possíveis entendimentos apontados pelo autor, e
interpretando o Texto Constitucional de forma sistemática, bem como buscando à máxima
efetividade na interpretação constitucional, segundo entendimento doutrinário citado pelo
próprio Brazuna62, não se pode deixar de entender como único entendimento possível de ser
adotado o manifestado na terceira leitura acima, consoante se passa a demonstrar.
Ab initio, importante definir duas premissas necessárias para se verificar qual das
leituras postas acima melhor se coaduna com uma interpretação sistemática do Texto
Constitucional: (i) temos no texto do artigo 146-A uma outorga material ou legislativa de
competências? (ii) qual ente federado foi agraciado pela outorga constitucional?
60 Resposta à consulta formulada pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO, acostado aos autos da Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1.657/RJ. BRASIL, STF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Joaquim Barbosa. Relator para Acórdão Ministro Cezar Peluso, julgamento 27 jun 2007. 61 BRAZUNA, op. cit., p. 148-149. 62 Mendes, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 111-12. SILVA NETO, Manoel Jorge. Princípio da máxima efetividade e interpretação constitucional. São Paulo: LTr, 1999 apud BRAZUNA, op. cit., p. 149, nota de rodapé 304.
148
Respondendo ao primeiro questionamento, entendemos não haver dúvida de que o
legislador ordinário derivado trata no dispositivo em comento da concessão de competência
legislativa aos entes federados, já que o art. 146-A confere poder para que estes possam
elaborar leis tributárias (no caso, estabelecendo critérios especiais de tributação visando o
restabelecimento concorrencial), determinando a maneira em que a igualdade da
concorrência, quebrada em virtude da tributação, possa ser restabelecida.
Este ponto parece não ser controverso na doutrina. O próprio José Luis Ribeiro
Brazuna63 afirma que o artigo 146-A veicula, de forma explícita, uma norma de competência
que autoriza o legislador infraconstitucional a manipular os critérios da norma de incidência
tributária com o objetivo de, criando regimes mais ou menos gravosos de tributação, gerar
efeitos indutores de comportamento dos agentes econômicos, com o objetivo de prevenir
desequilíbrios concorrenciais que possam vir a ser provocados tanto por falhas de estruturas,
como quanto pela deslealdade de comportamentos.
A ressalva a ser feita neste ponto é que o autor tratou apenas da faceta preventiva
imposta pelo artigo, esquecendo-se do dever de restabelecimento concorrencial, provocado
não só pelos agentes econômicos, como também pelo próprio Estado, como por exemplo,
através dos efeitos provocados pela concessão unilateral de benefícios fiscais em matéria do
ICMS.
O segundo ponto, este sim controverso, e objeto do presente tópico, diz respeito à
espécie de competência legislativa outorgada pela Carta Magna, se privativa ou exclusiva64 da
União ou se concorrente ou suplementar.
Para uma corrente doutrinária, que tem como defensores Brazuna65 e José Afonso
da Silva66, a competência legislativa prevista no art. 146-A teria sido outorgada
exclusivamente à União Federal. À lei complementar, mencionada no texto do dispositivo,
caberia a definição dos critérios tributários passíveis de serem adotados para prevenir os
desequilíbrios da concorrência.
Já à lei ordinária da União competiria, atendendo à previsão do art. 173, §4º do
Texto Constitucional, a repressão às infrações à ordem econômica, reprimindo o abuso do
poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros. Brazuna chega a afirmar que:
63 BRAZUNA, op. cit., p. 140-141. 64 Sendo irrelevante, para fins do presente estudo, a distinção feita por José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros: São Paulo, 1994, p. 419). 65 BRAZUNA,op. cit., p. 165. 66 SILVA, José Afonso apud BRAZUNA, op. cit., p. 165.
149
Apesar de não estar expresso, a Constituição Federal, em seu artigo 173, §4º, ao declarar que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”, está se referindo à lei ordinária da União, excluindo a possibilidade de outras pessoas políticas legislarem concomitantemente sobre o assunto, ainda que tenham competência concorrente para legislar sobre direito econômico.
Na mesma senda, José Afonso da Silva67:
O que o dispositivo quer dizer é que a lei complementar, no caso situada no âmbito do sistema tributário, não exclui a competência que o art. 173, §4º, dá à lei ordinária, já existente, de reprimir o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
Vê-se que para Silva, a Lei Complementar prevista no artigo 146-A teria o nítido
caráter tributário, o que não excluiria a competência da União para estabelecer as formas de
proteção da concorrência. Já para Brazuna, esta proteção concorrencial estaria excluída da
competência concorrente dos entes federados para tratar sobre o direito econômico, ou, dito
em outras palavras, a defesa da concorrência estaria excluída do contexto de “direito
econômico”.
Rogatta venia, não se pode concordar com tal entendimento.
Em primeiro lugar, cumpre verificar o contexto político em que a Emenda
Constitucional nº 42 foi introduzida no Texto Magno, a fim de se verificar se o artigo 146-A
tem como objetivo precípuo a instituição de uma norma tributária ou de uma norma
concorrencial, para, por fim, aferir se esta norma concorrencial estaria abrangida pelo campo
do direito econômico.
Respondendo ao primeiro questionamento, e reforçando o que já foi dito no
capítulo 2 desta obra, a mencionada Emenda 42, originária do Poder Executivo, embora tenha
sido inserido num claro contexto político de “reforma tributária”, analisando-se a Exposição
de Motivos constante do ofício executivo E.M.I. nº 84/MF/C.Civil enviado ao Congresso
Nacional, um dos objetivos da mencionada reforma tributária foi, sem dúvida alguma, a
minoração dos nefastos efeitos dos tributos na competição entre os agentes do mercado.
Confira-se alguns trechos do documento assinado pelos então Ministros de Estado da Fazenda
e da Casa Civil:
As mudanças no sistema de benefícios tributários também deverão contribuir para a ampliação da base impositiva e para o aumento do número de contribuintes, o que configurará grandes avanços para obtenção do equilíbrio concorrencial. A maior eficiência será alcançada pela simplificação do sistema impositivo, reduzindo-se inclusive o custo do cumprimento das obrigações e do controle pelas administrações tributárias. Reduzir a sonegação significa reduzir um dos mais injustos ônus sociais, pois com essa prática surge a competição desleal, trazendo vantagens econômicas para os sonegadores e reduzindo a competitividade dos bons contribuintes.
67 Ibid, p. 165.
150
Embora o dispositivo objeto da presente discussão não tenha constado do ofício
original enviado ao Poder legislativo, tendo sido inserido apenas com a Emenda Aglutinativa
Substitutiva nº 27, é certo que o mesmo foi encampado pelo projeto inicial justamente neste
contexto, como instrumento de obtenção do almejado equilíbrio concorrencial.
É certo que o mencionado artigo foi inserido na Carta Magna como “princípio
geral” da tributação, dentro do capítulo do “Sistema Tributário Nacional”, explicitando,
consoante já salientado alhures, o princípio da neutralidade tributária. Porém, esta
neutralidade tributária tem como objetivo fundamental a manutenção (dever negativo) e o
restabelecimento (dever positivo) do equilíbrio concorrencial, através do estabelecimento de
regimes especiais de tributação.
Ao contrário dos juristas acima mencionados, não entendemos que o conteúdo da
norma jurídica inserta no dispositivo em tela tenha caráter exclusivamente tributário, mas
econômico-tributário. Isto porque, em que pese ter instituído para o legislador
infraconstitucional o dever de “estabelecer critérios especiais de tributação”, tais critérios que
deverão ser instituídos, se afiguram apenas como um instrumento para se fazer valer outro
princípio constitucional, qual seja, a proteção da livre concorrência.
Isto porque, consoante já exaustivamente salientado acima, os impactos tributários
afetam diretamente o sistema concorrencial, impactando diretamente na formação dos preços
de produtos e serviços, podendo ser fator decisivo na entrada e na manutenção de
determinados agentes no mercado.
Daí porque entendemos que o legislador constituinte derivado instituiu no artigo
146-A norma de conteúdo precipuamente concorrencial, embora, para a garantia do equilíbrio
da concorrência, tenha sido utilizada a importante ferramenta do direito tributário.
Nesta senda, partindo-se da premissa de que o conteúdo da norma constante do
artigo 146-A tem caráter eminentemente concorrencial, cumpre verificar se o direito da
concorrência está inserido do direito econômico.
Fábio Nusdeo68 descreve o direito econômico como decorrência da imbricação
entre as áreas do mercado e do Estado. Para o festejado autor, o direito econômico pode ser
visto como método de análise e interpretação do Direito ou como ramo do mesmo. Afirma o
autor69:
Trata-se, no entanto, de um ramo sui generis, ou seja, tem uma particularidade toda dele, que deriva do fato de que as suas normas, em grande número de casos, estarem
68 NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao Direito Econômico. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 204. 69 Ibid, p. 205.
151
inseridas formalmente em outros ramos jurídicos, marcando-os porém com o seu caráter específico de normas instrumentais de política econômica.
Defendendo o direito econômico como método, continua Nusdeo70;
No entanto, a verdadeira vocação e origem mesma dessa disciplina é de caráter eminentemente metodológico, o qual consiste precisamente em se utilizar de todo o conhecimento quanto à mecânica funcional dos sistemas econômicos, inclusive do seu direcionamento pelas normas de política econômica, e na análise e interpretação do Direito, sem esquecer da influência dos grupos de pressão sobre elas.
Washington Peluso Albino de Souza71 vê no direito econômico um conjunto de
normas de conteúdo econômico e que tem por objeto regulamentar as medidas de política
econômica referentes às relações e interesses individuais e coletivos, harmonizando-as – pelo
princípio da “economicidade” – com a ideologia adotada na ordem jurídica.
As duas definições acima trazem um ponto comum: o direito econômico como
regulador da política econômica de determinada ordem jurídica.
No caso brasileiro, em que se prevalece a economia de iniciativa dual72, a ordem
jurídica estabelece como fundamentos da política econômica a valorização do trabalho
humano e da livre iniciativa, cuja finalidade precípua é assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, e tem como um de seus princípios asseguradores
justamente a livre concorrência.
Verifica-se, pois, que a livre concorrência aparece na ordem jurídico-
constitucional brasileira inserida na política econômica nacional e, portanto, como objeto de
regulamentação pelo direito econômico.
Cabe, pois, ao Estado, como agente normativo e regulador da atividade
econômica, o papel de garantir o pleno exercício da política econômica definida pelo
legislador constituinte, fiscalizando, incentivando e planejando a atuação dos agentes
econômicos, dentre os quais se insere o próprio Estado.
70 Ibid, p. 206. 71 SOUZA, Washington Peluso Albino. Direito Econômico. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 3. 72 Segundo Nusdeo, o sistema econômico dual ou misto consagra não mais o papel interventor do Estado na economia, mas o papel do Estado como integrante do sistema econômico, quer corrigindo as disfunções do mercado, quer conduzindo o sistema para as posições determinadas pelos objetivos de política econômica. “Em tais condições, a figura mesma do Estado intervencionista se supera, pois a palavra intervenção traz em si o signo da transitoriedade, conota uma arremetida seguida de retirada, trai, em suma, uma situação excepcional, anormal. Não é essa, porém, a nova realidade. O Estado não mais intervém no sistema econômico. Integra-o. Torna-se um seu agente e um habitual partícipe de suas decisões. O intrometimento e posterior retirada poderão ocorrer neste ou naquele setor, nesta ou naquela atividade. Jamais no conjunto. Daí as diversas expressões para caracterizar o novo estado de coisas: economia social de mercado, economia dirigida; economia de comando parcial e tantas outras” (NUSDEO, op. cit., p. 186).
152
Adite-se que tal função, prevista no artigo 174 do Texto Constitucional, foi
outorgada não somente à União, mas aos demais entes federados, consoante entendimento de
Eros Grau73:
Do exame da regra se verifica que o Estado – União, Estados-membros e Municípios – há de atuar dispondo sobre e regulando a atividade econômica, expressão aqui tomada em sentido amplo.
Desta forma, cabe ao Estado, lato senso, garantir a proteção da livre concorrência,
através de meios ou instrumentos diversos (instrumentos de finanças públicas, instrumentos
monetários e creditícios, instrumentos cambiais, instrumentos de controle direto e adaptação
constitucional74), dentre os quais, um deles é o justamente previsto no artigo 146-A
(instituição de critérios especiais de tributação).
Daí porque o artigo 24, inciso I do Texto Supremo atribuiu concorrentemente a
competência para legislar sobre direito econômico à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios, estando aí, incluída a competência concorrente para legislar sobre um dos
temos objeto de regulamentação pelo direito econômico, qual seja, a livre concorrência.
Tércio Sampaio Ferraz Júnior75, em parecer formulado pelo Instituto ETCO, e que
serviu de subsídio para o julgamento da Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1.657/RJ (caso
American Virginia já citado acima), ao tratar da introdução do artigo 146-A pela EC 42/03,
também externa a sua opinião no sentido da clara competência concorrente outorgada pelo
dispositivo, senão veja-se:
Esse artigo mostra a preocupação do constituinte derivado com a tributação e as distorções em mercados concorrenciais, atribuindo competência à lei complementar para instituir critérios capazes de fazer frente àquelas distorções. A menção lei complementar, entretanto, não exclui, até expressamente inclui previsão de a União estabelecer, por lei (ordinária), critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, no âmbito de sua competência tributária, tudo em atenção ao art. 24, I e par. 1º (legislação concorrente) da Constituição Federal.
Curial trazer à baila o entendimento do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal,
Eros Grau, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.950/SP76, que
afirma categoricamente que não apenas a União pode atuar sobre o domínio econômico, isto
é, na linguagem corrente, intervir na economia77. Não somente a União, mas também os
73 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 316. 74 NUSDEO, op. cit., p. 192. 75 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Resposta à consulta formulada pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO, acostado aos autos da Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1.657/RJ. BRASIL, STF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Joaquim Barbosa. Relator para Acórdão Ministro Cezar Peluso, julgamento 27 jun 2007. 76 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.950/SP, Tribunal Pleno, Relator Ministro Eros Graus, julgamento 03 nov 2005. Publicação 02 jun 2006, Brasília: DJ, p. 4. 77 Preferimos como Nusdeo, o termo integrar a economia.
153
Estados-membros e o Distrito Federal, nos termos do disposto no artigo 24, inciso I, da
Constituição do Brasil, detêm competência concorrente para legislar sobre direito econômico.
Também podem fazê-lo os Municípios, que, além de disporem normas de ordem
pública que alcançam o exercício da atividade econômica, legislam sobre assuntos de
interesse local, aí abrangidos os atinentes à sua economia, podem suplementar a legislação
estadual e federal no que couber, na forma do artigo 30, inciso II, da CB/88.
Discordamos, pois, da afirmação de Brazuna78 no sentido de que,
dentro do universo de matérias abrangidas pelo direito econômico, parece correto afirmar que, historicamente, no que diz respeito à intervenção do Estado sobre a economia com o objetivo de defender a concorrência, preventiva e repressivamente, a competência para legislar sobre o tema sempre esteve centralizada na União.
Isto porque, por que consoante como visto acima, a defesa da concorrência está
inserida no contexto da política econômica garantida pela ordem econômica constitucional e,
por consequência, está abrangida pelo conceito de direito econômico, cuja competência
legislativa é concorrente a todos os entes federados, por força do artigo 24, inciso I.
Neste cenário, entendemos como a melhor leitura do artigo 146-A do Texto
Supremo a seguinte: O Congresso Nacional poderá, mediante Lei Complementar, estabelecer
os parâmetros para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por leis ordinárias
próprias, fixarem os próprios critérios especiais de tributação aptos a prevenir ou restabelecer
a igualdade da concorrência.
A Lei Complementar tratará, única e exclusivamente, da definição das “normas
gerais” atinentes à matéria, ou conforme o já citado jurista Raul Machado Horta79, normas
não exaustivas, também denominadas de lei quadro, ou seja, uma moldura legislativa.
À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios caberão (dever
impositivo) o preenchimento desta moldura, ocupando os claros deixados pelo legislador
complementar, sempre que seja necessário atuar na atividade econômica, para prevenir ou
restabelecer as condições de igualdade concorrencial.
Agirão os entes federados, atendendo aos interesses nacionais, ou às
peculiaridades concorrenciais regionais ou locais, instituindo regimes especiais tributários
sempre que haja necessidade de atuação sobre a ordem econômica territorialmente abrangida,
visando garantir a paridade dos agentes econômicos no mercado competitivo.
78 BRAZUNA, op. cit., p. 157. 79 HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 419-420.
154
Há que se salientar, por fim, que a lei complementar de normas gerais deve
sempre ser vista como limite à atuação dos legisladores ordinários, sendo-lhes vedado
extrapolar a moldura imposta pela lei nacional.
5.2.2. A COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL NA OMISSÃO
DO LEGISLADOR COMPLEMENTAR FEDERAL.
Mesmo já tendo se passado mais de sete anos desde a publicação da Emenda
Constitucional 42/03, até a presente data não houve interesse do legislador complementar
nacional em estabelecer normas gerais que estabeleçam os critérios especiais de tributação
visando à garantia do equilíbrio concorrencial, tal como previsto no art. 146-A.
Todavia, a omissão do legislador nacional não tem o condão de impedir o
exercício da atividade legislativa plena pelos Estados-membros, do Distrito Federal e dos
Municípios, a teor do §3º do artigo 24 e do inciso II, do artigo 30, ambos da Constituição de
1988.
A leitura do §3º do mencionado dispositivo denota que o legislador constitucional
estabeleceu, dentre outras hipóteses, em matéria de direito econômico, a modalidade de
competência concorrente não-cumulativa ou vertical, ao atribuir à União a competência
somente para estabelecer normas gerais, enquanto os Estados-Membros, o Distrito Federal e
os Municípios poderão complementar as ditas normas gerais, ou legislar com plenitude, na
ausência de normas gerais, sempre atendendo aos interesses regionais ou locais.
Trata-se da aplicação do princípio predominância do interesse, tal qual definido
por José Afonso da Silva80, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de
predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e
assuntos de predominante interesse regional81 ou local.
Neste caso, os entes federados periféricos deterão a competência para preencher
as lacunas deixadas pelo poder central, para atender às suas peculiaridades regionais ou locais,
ou mesmo para atuar, nos casos de completa omissão da União, como no caso em tela, em que
inexiste, até a presente data, a definição, pelo legislador nacional, dos critérios especiais de
80 SILVA, op. cit., p. 418. 81 Trata-se do mesmo critério definidor da competência de cada ente federado utilizado por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “os interesses, é certo, ou são peculiares a uma determinada zona, ou são gerais. Há necessidades cuja solução interessa diretamente o país, e outras cuja solução interessa diretamente a uma localidade. Não há dúvida que estas últimas sempre, indiretamente, interessam a nação. Assim, o interesse peculiar de um certo Estado federado é aquele considerado imediatamente local e mediatamente nacional”. (ROCHA, Carmen Lucia A. República e Federação no Brasil: Traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 242).
155
tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência. Curial trazer
novamente à baila o entendimento de Anna Cândida da Cunha Ferraz82:
As normas especificas do Estado são suplementares, no sentido de que ocupam campo ex novo, embora específico e derivado do espaço aberto pela norma geral (art. 24, §3º), e podem também ser ‘supletivas’ à medida que suprem a omissão ou ausência da lei federal, embora, ainda nesse caso, se trate de norma estadual de conteúdo específico, uma vez que o texto condiciona a faculdade legislativa ‘plena’ do Estado ao atendimento de ‘suas peculiaridades’.
Adite-se que o artigo 34, §3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
– ADCT, também garante a autonomia plena dos Estados para editarem as suas normas
tributárias para restabelecimento concorrencial, em caso de omissão do legislador nacional,
encarregado de traçar as normas gerais atinentes a matéria.
Neste sentido é o entendimento de Fábio Canazaro83:
A primeira dessas regras é a constante do §3º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Nela é reafirmada a autonomia federativa: é autorizado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios editarem as leis de que necessitem para efetivação das normas constantes no sistema tributário constitucionalmente estabelecido. Neste caso, salientamos que, na ausência de lei complementar de normas gerais, as pessoas políticas exercerão a competência suplementar, constitucionalmente outorgada, de maneira plena, isto é, sem a necessidade dos ditames intercalares propostos pelas normas gerais nacionais, justamente com o objetivo de fazer fluir o que a Constituição dispôs a respeito de tributação, na observância de seus mais fiéis limites.
Note-se que, embora o mencionado dispositivo atribua à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios, o poder de edição das leis necessárias à aplicação do
sistema tributário nacional previsto na Constituição, e consoante ressaltado acima, o artigo
146-A ter nítido conteúdo concorrencial, o meio utilizado pelo legislador derivado para
garantir o equilíbrio da concorrência passa necessariamente por critérios de natureza
tributária, não havendo dúvidas acerca da aplicação do dispositivo do ADCT ao caso dos
autos.
Ressalte-se, ainda, que esse caráter supletivo da legislação estadual, todavia, não
tem o caráter substitutivo da legislação federal para todo o território nacional, sendo aplicável
apenas no território do Estado-membro ou Município que a editar.
Por derradeiro, curial salientar o disposto no § 4º, do artigo 24, que restabelece o
poder originariamente atribuído ao poder central, para ditar as normas gerais, em caso da
superveniência da legislação federal, suspendendo a eficácia da legislação estadual, naquilo
que for à norma federal superveniente. Neste ponto, vale frisar que, consoante entendimento
82 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha apud ALMEIDA, Fernanda D. M. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991, p. 166. 83 CANAZARO, Fábio. Lei Complementar Tributária na Constituição de 1988: Normas gerais em matéria de legislação tributária e a autonomia federativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005, p. 73.
156
de José Afonso da Silva84, a superveniência da legislação federal não tem o condão de revogar
a legislação estadual que lhe é contrária, mas apenas de retirar-lhe a eficácia, ou seja, na
hipótese de revogação da lei geral federal, a lei estadual recobra a sua eficácia.
5.3. A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS FISCAIS EQUIVALENTES
QUE VISEM O RESTABELECIMENTO DA CONCORRÊNCIA
Consoante restou salientado acima, a tônica da atualidade em matéria de
incentivos fiscais e financeiros em matéria de ICMS tem sido a sua concessão desregrada e
em desacordo com os ditames constitucionais, o que tem gerado ineficiência econômica dos
agentes de mercado, com a geração de desigualdades regionais ainda maiores.
O que se defende no presente trabalho é a utilização do artigo 146-A da
Constituição da República como instrumento de atuação positiva do Estado para restabelecer
o equilíbrio concorrencial afastado pela concessão de benefícios fiscais unilaterais, ou seja,
que não foram concedidos através do Confaz.
Debatendo sobre o desequilíbrio concorrencial tributário e a autorização
constitucional para o estabelecimento de critérios especiais de tributação, Hamilton Dias de
Souza85, conselheiro do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), entende que o
artigo 146-A do Texto Constitucional tem três significados:
Em primeiro lugar, dele se depreende que o tributo interfere diretamente na atividade econômica. Em segundo, fica claro que a tributação não pode causar desequilíbrio concorrencial. E o terceiro significado é que as ordens parciais de governo devem adotar ações positivas para assegurar a carga tributária para os que asseguram o mesmo mercado. (Grifos nossos).
É justamente este terceiro significado apontado pelo nobre doutrinador em que se
sustenta a defendida possibilidade de equiparação dos benefícios fiscais concedidos
unilateralmente por outras unidades federadas, pelo Estado-membro que sofrer as mazelas do
desequilíbrio concorrencial em virtude das vantagens tributárias de um dos agentes do
mercado.
Trata-se da já citada ação positiva estatal, visando restaurar a igualdade de
condições na concorrência, fortemente ameaçada pela forma privilegiada de atuação do
agente econômico oriundo de outra unidade federada, que, agraciado por uma carga tributária
84 SILVA, op. cit., p. 435.
157
favorável, apresenta claro desequilíbrio concorrencial, influenciando diretamente na
competitividade.
O artigo 146-A legitima essa atuação positiva do Estado. O dispositivo veio
justamente densificar, nos dizeres de Dias de Souza86, a forma de compatibilização entre os
princípios da livre concorrência e isonomia tributária.
O dispositivo constitucional reconhece a possibilidade de criar-se um tratamento
diferenciado (no caso a concessão de regimes especiais equiparando os benefícios concedidos
aos concorrentes jurisdicionados em outra unidade federada) que importe no nivelamento da
carga tributária, quando verificado o desequilíbrio concorrencial (em decorrência de
procedimentos tributários concedidos por outras unidades federadas em desacordo com o
disposto na LC 24/75), restabelecendo-se as condições para que a competição se faça com
base em questões puramente econômicas.
Note-se que o dispositivo constitucional em comento garante a equiparação dos
benefícios unilaterais pelo Estado-Membro prejudicado com base em ato normativo editado
pelo próprio Poder Legislativo, sem que seja necessária a obtenção de ordem judicial que
autorize a edição da norma de equivalência. A atuação positiva visando a restauração da
concorrência é imposta pelo Texto Constitucional ao legislador infraconstitucional e não ao
Poder Judiciário.
Adite-se que neste cenário de guerra fiscal, em que cada unidade federada,
visando à atração e a manutenção dos agentes econômicos do setor privado nos seus
territórios, envidam todos os esforços para que as leis concessivas dos benefícios permaneçam
válidas, diversos subterfúgios são utilizados para que eventual decisão proferida pelo Poder
Judiciário não tenha efetividade prática.
Tome-se como exemplo o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI 2549) ajuizada pelo governador do Estado de São Paulo e que visava a declaração da
inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Distrital nº 2.483, de 19 de novembro de 1999,
que estabeleceu tratamento tributário diferenciado para empreendimentos econômicos
produtivos no âmbito do Programa de Promoção do Desenvolvimento Econômico Integrado e
Sustentável do Distrito Federal (Pró-DF).
No julgamento, ocorrido no dia 01 de junho de 2011, o Supremo Tribunal
Federal87 declarou a inconstitucionalidade da norma do Distrito Federal, que concedia
85 SOUZA, Hamilton Dias. Tributo ao mercado: desequilíbrio concorrencial tributário e a Constituição: Um debate. Org. Oscar Pelagallo. São Paulo: Saraiva/ETCO, 2010, p. 46-47. 86 SOUZA, op. cit., p. 47.
158
benefícios fiscais unilaterais, sem a aprovação do Confaz, na esteira do entendimento já
pacificado na Corte.
Todavia, o então Programa de Promoção do Desenvolvimento Econômico
Integrado e Sustentável do Distrito Federal (Pró-DF), julgado inconstitucional pela Suprema
Corte, já se havia sido substituído pelo Programa de Apoio ao Empreendimento Produtivo do
Distrito Federal – PRÓ–DF II, instituído pela Lei Distrital nº 3.196, de 29 de setembro de
200388, tendo a decisão proferida se mostrado inócua, mantendo-se em vigor a Lei Distrital,
claramente prejudicial à concorrência.
De fato, o caso citado é apenas um em muitos casos que, quando levados a
julgamento na Suprema Corte, as legislações combatidas in concreto são substituídas por
normas similares, razão pela qual as ações são extintas, por perda de objeto, não sendo objeto
de análise pelo STF. Daniel Monteiro Peixoto89 aponta esta como uma das causas da
dissonância entre a regra constitucional e a prática adotada pelos Estados, embora de cunho
não jurídico:
Outra causa, de fundo institucional, diz respeito à falta de aptidão do Judiciário em dar respostas ao problema. Basta ver que o próprio STF, ainda que tenha posição formada no sentido de repudiar os benefícios fiscais concedidos sem amparo em convenio interestadual, acaba, muitas vezes em função da lentidão de rito e sobrecarga de processos, entrando em descompasso com o ritmo exigido pelas demandas deste tipo. As desculpas formais, formuladas no cerne das técnicas de controle de constitucionalidade, contribuem para este cenário. Isto ocorre, por exemplo, na falta de prosseguimento do feito quando a norma local concessiva do benefício perde a sua vigência, fazendo com que o Supremo deixe de dar seguimento ao processo por perda de objeto.
5.3.1. O CASO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
A Lei Estadual mineira nº 6.763/75, que consolida a legislação tributária no
âmbito do Estado, no seu artigo 225, atribui ao Poder Executivo a possibilidade de adotar
medidas necessárias à proteção da economia do Estado, "sempre que outra unidade da
Federação conceder benefício fiscal não previsto em lei complementar ou convênio
celebrados nos termos da legislação específica."
87 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2549. Tribunal Pleno, Rel.: Ministro Ricardo Lewandowski, 01 de jun. 2011. Acórdão não publicado. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=181002>. Acesso em: 18/06/2011. 88 DISTRITO FEDERAL. Lei nº 3.196, de 29 de setembro de 2003. Disponível em: <http://www.fazenda.df.gov.br/aplicacoes/legislacao/legislacao/TelaSaidaDocumento.cfm?txtNumero=3196&txtAno=2003&txtTipo=5&txtParte=>. Acesso em 18/06/2011. 89 PEIXOTO, Daniel Monteiro. Incentivos Fiscais: Questões pontuais nas esferas federal, estadual e municipal: Guerra Fiscal via ICMS: Controle dos incentivos fiscais e os casos “FUNDAP” e Comunicado CAT nº 36/2004. coord. Ives Gandra da Silva Martins, André Elali e Marcelo Magalhães Peixoto. São Paulo: MP Editora, 2007. p. 67-90.
159
Confira-se o texto legal:
Art. 225 - O Poder Executivo, sempre que outra unidade da Federação conceder benefício fiscal não previsto em lei complementar ou convênio celebrados nos termos da legislação específica, poderá adotar medidas necessárias à proteção da economia do Estado. § 1° - A Secretaria de Estado de Fazenda enviará à Assembléia Legislativa expediente com exposição de motivos para adoção de medida que incida sobre setor econômico, nos termos do caput deste artigo. § 2° - A Assembléia Legislativa, no prazo de noventa dias contados da data do recebimento do expediente de que trata o § 1°, deverá ratificar, por meio de resolução, a medida adotada. 3° - A forma, o prazo e as condições para implementação da medida para contribuinte do setor sobre o qual ela incida serão definidos em regulamento, podendo a data da concessão retroagir à da situação que lhe tiver dado causa. § 4° - Decorrido o prazo previsto no § 2° deste artigo sem a ratificação legislativa, a medida adotada permanecerá em vigor até que a Assembléia Legislativa se manifeste. § 5° - A medida adotada perderá sua eficácia: I - cessada a situação de fato ou de direito que lhe tenha dado causa; II - com sua rejeição pela Assembléia Legislativa, hipótese em que não poderá ser adotada nova medida, ainda que permaneça a situação que a tenha motivado; III - por sua cassação, para setor econômico ou para contribuinte, mediante ato da Secretaria de Estado de Fazenda, quando se mostrar prejudicial aos interesses da Fazenda Pública. § 6° - A Secretaria de Estado de Fazenda enviará trimestralmente à Assembléia Legislativa a relação das medidas adotadas e dos contribuintes sobre os quais elas incidiram, na forma deste artigo.
O Regulamento do ICMS de Minas Gerais, instituído através do Decreto Estadual
nº 43.080/02, por sua vez, regulamentando o dispositivo legal em comento, estabelece a forma
como as medidas ditas protetivas serão concedidas aos contribuintes mineiros, qual seja,
através de Regime Especial concedido pelo Diretor da Superintendência de Tributação,
verbis:
Art. 223. A Secretaria de Estado da Fazenda fica autorizada a disciplinar qualquer matéria de que trata o presente Regulamento e providenciará para que sejam adotadas as medidas necessárias à proteção da economia do Estado, quando outra unidade da Federação conceder benefício fiscal não previsto em lei complementar ou em convênio celebrado nos termos da legislação específica. § 1º As medidas necessárias à proteção da economia do Estado a que se refere o caput deste artigo poderão ser tomadas após comprovação, por parte do contribuinte ou de entidade de classe representativa de segmento econômico, dos prejuízos à competitividade de empresas mineiras.
160
§ 2° A Secretaria de Estado de Fazenda enviará à Assembléia Legislativa, para ratificação, expediente com exposição de motivos da adoção de medida que incida sobre setor econômico nos termos do caput deste artigo. § 3° A forma, o prazo e as condições para implementação da medida para contribuinte do setor sobre o qual ela incida serão definidos em regime especial concedido pelo Diretor da Superintendência de Tributação, podendo a data da concessão retroagir à da situação que lhe tiver dado causa.
Note-se que tanto a Lei Estadual, como o RICMS/MG condicionam a validade do
Regime Especial de Tributação ao referendum, expresso ou tácito, pela Assembléia Legislativa, após a
análise da "exposição de motivos da adoção de medida que incida sobre setor econômico, bem como
após comprovação, por parte do contribuinte ou de entidade de classe representativa de segmento
econômico, dos prejuízos à competitividade de empresas mineiras."
Tanto a Lei, como o Regulamento são categóricos em estabelecer como hipóteses de
perda da eficácia da medida concorrencial adotada, além da vedação pelo Poder Legislativo e da
ausência de conveniência administrativa, a "cessação da situação de fato ou de direiro que lhe tenha
dado causa" (§5º, inciso I, art. 225 da Lei e do §5º, inciso I, art. 223, do decreto regulamentador).
Entendemos que a adoção das medidas protetoras da economia do Estado de
Minas Gerais, em virtude da concorrência tributária desleal instituída pela concessão irregular
de benefícios fiscais a contribuintes de outras unidades da Federação, está amplamente
resguardada pelo artigo 146-A do Texto Supremo.
Trata-se de claro estabelecimento de critérios especiais de tributação pelo Estado
de Minas Gerais aos contribuinte domiciliados no seu território, que comprovem que vêm
sofrendo a concorrência desleal oriunda de agentes econômicos localizados em outras
unidades federadas, fruto de benefícios fiscais irregulares concedidos unilateralmente.
Essa é uma das facetas da atuação positiva do Estado que o princípio da
neutralidade tributária impõe para garantir a tão propalada igualdade de condições
competitivas no mercado. Note-se: consoante os precisos ensinamentos de Humberto Ávila90,
o princípio da livre concorrência exige que o Estado defenda ativamente a livre concorrência.
Vê-se que a equiparação, por uma unidade da Federação, dos benefícios ou
incentivos fiscais-financeiros concedidos por outro ente federado aos seus contribuintes,
através da concessão de Regime Especial de Tributação é dever do Estado para que seja
evitado o desequilíbrio concorrencial.
90 Outras limitações (ou as mesmas, numa outra dimensão normativa ou noutro sentido normativo) instituem o dever de ação do Estado. O princípio da dignidade humana exige que o Estado conserve o mínimo vital à existência digna do contribuinte. O princípio da livre iniciativa exige que o Estado conserve o poder de decisão e de direção das atividades provadas nas mãos do particular. O princípio da livre concorrência exige que o Estado defenda ativamente a livre concorrência. (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 73). (Grifos do Autor).
161
A omissão estatal certamente endossará o favorecimento do agente econômico
detentor do benefício fiscal, desnivelando o campo em que se desenrola a dinâmica
econômica, prejudicando a igualdade de condições competitivas, sem a qual não há
efetivamente livre concorrência91.
Outro ponto que justifica a equiparação dos benefícios tributários, enquanto se
mantenha a condição de desequilíbrio concorrencial, é decorrência expressa do princípio da
proporcionalidade, já citado no item 5.2 acima.
Nesta seara, verifica-se a clara adequação da norma mineira, uma vez que a lei
utilizou-se do meio certo para levar a cabo um fim baseado no interesse público. Consoante já
salientado, o que é reforçado pelo entendimento da jurista Daniela Lacerda Saraiva Santos92,
invocando a doutrina alemã, o conteúdo do princípio da proporcionalidade é dividido em três
níveis: (i) a adequação; (ii) necessidade ou exigibilidade e (iii) proporcionalidade em sentido
estrito.
De fato, para que determinada medida administrativa se apresente válida, a mesma
deve se mostrar acorde e em consonância com o princípio da proporcionalidade, em seu triplo
aspecto, ou seja, se mostrando adequada para a medida imposta, deve restar demonstrada a
estrita necessidade de tal medida, consubstanciada, nos dizeres de Helenilson Cunha Pontes93,
na máxima da “menor limitação possível dos direitos” e, por fim, deve haver a indispensável
relação concreta proporcional entre o fim que se busca com a medida restritiva e o nível de
restrição estabelecida.
No caso do artigo 225 da Lei Estadual nº 6.763/75, regulamentado pelo artigo 223
do RICMS/MG, a equiparação proposta se mostra adequada, na medida em que impõe
tratamento tributário mais favorável ao contribuinte mineiro, visando equiparar as suas
condições concorrenciais com os agentes econômicos que atuam no mercado mineiro em
condições mais benéficas.
Na mesma seara, a medida se mostra necessária, na medida em que o meio
aplicado (equiparação das condições tributárias a agentes econômicos atuantes no mesmo
setor do mercado) impede a consolidação da atuação de agentes econômicos externos no
mercado mineiro, não por eficiência competitiva, mas unicamente em virtude dos benefícios
tributários obtidos em desacordo com o texto Constitucional.
91 SEIBEL, op. cit., p. 94. 92 SANTOS, Daniela Lacerda Saraiva. Os princípios da Constituição de 1988. O princípio da proporcionalidade. In: PEIXINHO; GUERRA; NASCIMENTO FILHO, op. cit., p. 363. 93 PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 49.
162
Adite-se que, consoante já exposto alhures, o impacto tributário na formação dos
preços dos produtos pode significar variações de até 388% na margem de lucro de
determinada atividade, tal como muito bem ressaltado pelo Conselheiro do CADE, Marcelo
Calliari, quando do voto-resposta à Consulta nº 38/1999, formulada pelo Pensamento
Nacional das Bases Empresariais – PNBE, ao tratar da influência tributária na indústria de
sabonetes.
Esta ampla variação na margem de lucro permite aos agentes beneficiados obter
uma situação privilegiada em relação aos concorrentes, na medida em que podem utilizar-se
dessa margem para oferecer o produto por preço menor , o qual não poderá ser praticado pelos
demais contribuintes, como podem utilizá-la para aumentar a própria lucratividade da
empresa, o que pode se traduzir em novos investimentos que possibilitem, a médio prazo,
consolidar sua posição vantajosa no mercado, ensejando o domínio do mercado relevante –
não em virtude da maior eficiência econômica de determinado competidor, mas da situação
privilegiada em que se encontra em virtude dos benefícios recebidos – e, consequentemente, o
exercício abusivo de posição dominante, condutas expressamente vedadas pelos incisos II e
IV, da Lei Federal nº 8.884/94.
Por fim, a equiparação proposta pela legislação tributária de Minas Gerais se mostra
proporcional em sentido estrito. O exame da proporcionalidade em sentido estrito, segundo
entendimento do professor Humberto Ávila94, exige a comparação entre a importância da
realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais. Pergunta-se: O grau
de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos
fundamentais?
Entendemos que a finalidade da norma legal mineira – adoção de medidas necessárias
à proteção da economia do Estado – se mostra justificável em relação à eventual prejuízo
sofrido pelos agentes econômicos beneficiados pelos incentivos fiscais unilaterais que
sofreram a equiparação.
Ademais, o restabelecimento do equilíbrio concorrencial, fragmentado pela atuação de
agentes econômicos no território mineiro, beneficiados com os incentivos a eles concedidos
pelos Estados de origem, tem como finalidade maior a garantia da livre concorrência que rege
a ordem econômica nacional.
Outrossim, restabelecendo o equilíbrio concorrencial, reduzem-se as barreiras à
entrada de novos competidores no mercado relevante mineiro, gerando uma maior eficiência
94 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. Saraiva: São Paulo, 2008.
163
na afetação de recursos, o que, na ótica dos consumidores, permite a obtenção dos
produtos/serviços que pretendem à um custo mais baixo possível, garantindo, assim, a
efetivação de outro importante princípio garantidor da ordem econômica, qual seja, a defesa
do consumidor (art. 170, V, CR/88).
Por derradeiro, restabelecendo-se a concorrência entre os competidores, evita-se o
abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência
e ao aumento arbitrário dos lucros, o que se impõe pelo §4º, do artigo 173 do Texto
Constitucional.
Aliás, estes são os principais escopos da legislação antitruste, ou, nos dizeres de
Paula A. Forgioni95, o jogo dos interesses protegidos pela legislação antitruste, quais sejam, a
proteção da livre iniciativa e da livre concorrência, a repressão ao abuso do poder econômico
e a tutela do consumidor.
Trata-se aqui da atuação da legislação mineira com a finalidade precípua de garantir a
coexistência harmônica das liberdades entre os agentes econômicos, especialmente a
liberdade de concorrência, consoante muito bem lembrado por Humberto Ávila96.
Por estas razões, ousamos discordar do entendimento proferido pelo Supremo
Tribunal Federal, quando do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3936, ajuizada pelo Governador do Estado do Amazonas em face da
Lei nº 10.689/1993 do Estado do Paraná, que autoriza o Poder Executivo a equiparar os
benefícios fiscais concedidos irregularmente por outras unidades federadas.
Segundo entendimento da Suprema Corte, o dispositivo da lei paranaense
traduziria permissão legal para que o Estado do Paraná, por meio de seu Poder Executivo,
desencadeie a denominada “guerra fiscal”, repelida por larga jurisprudência daquele Tribunal.
Confira-se a ementa do voto de relatoria do Ministro Gilmar Mendes97:
Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Caráter normativo autônomo e abstrato dos dispositivos impugnados. Possibilidade de sua submissão ao controle abstrato de constitucionalidade. Precedentes. 3. ICMS. Guerra fiscal. Artigo 2º da Lei nº 10.689/1993 do Estado do Paraná. Dispositivo que traduz permissão legal para que o Estado do Paraná, por meio de seu Poder Executivo, desencadeie a denominada "guerra fiscal", repelida por larga jurisprudência deste Tribunal. Precedentes. 4. Artigo 50, XXXII e XXXIII, e §§ 36, 37 e 38 do Decreto Estadual nº 5.141/2001. Ausência de convênio interestadual para a concessão de benefícios fiscais. Violação ao art. 155, §2º, XII,g, da CF/88. A ausência de convênio interestadual viola o art. 155, § 2º, incisos IV, V e VI, da CF. A Constituição é clara ao vedar aos Estados e ao Distrito Federal a fixação de alíquotas
95 FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 221, nota 118. 96 ÁVILA, Humberto. Resposta à consulta formulada pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO, acostado aos autos da Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1.657/RJ. BRASIL, STF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Joaquim Barbosa. Relator para Acórdão Ministro Cezar Peluso, julgamento 27 jun 2007. 97 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3936. Tribunal Pleno, Rel.: Ministro Gilmar Mandes, 19 de set. 2007. Brasília: Diário da Justiça, 08 nov. 2007, p.30.
164
internas em patamares inferiores àquele instituído pelo Senado para a alíquota interestadual. Violação ao art. 152 da CF/88, que constitui o princípio da não-diferenciação ou da uniformidade tributária, que veda aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino. 5. Medida cautelar deferida.
Não enxergamos o dispositivo da lei paranaense como um permissivo legal para
se desencadear a “guerra fiscal”, mas apenas um meio de defesa concorrencial, que,
hodiernamente, encontra guarida no artigo 146-A do Texto Constitucional.
Embora o julgamento da medida cautelar em referência já tenha ocorrido sob a
égide da Emenda Constitucional nº 42/03, entendemos que a Suprema Corte não abordou a
questão posta sob a ótica do artigo 146-A, ou seja, não foi discutido nos autos o
enquadramento da equiparação dos benefícios fiscais pelo Estado prejudicado em face do
desequilíbrio concorrencial, como um dos “critérios especiais de tributação” aptos a
restabelecer o equilíbrio concorrencial, o que, a nosso ver, se amolda perfeitamente, tanto ao
caso discutido pela Corte Suprema, quanto a hipótese constante na legislação mineira.
Adite-se que a autorização para a equiparação, pelo Estado-Membro
concorrencialmente prejudicado, dos benefícios fiscais concedidos unilateralmente, deve ser
vista como a imposição de direitos compensatórios (countervailing duties) para corrigir
as distorções provocadas por prêmios, subsídios ou subvenções98 concedidos pela outra
unidade federada.
98 O Decreto nº 1.751/95, que regulamenta a Lei nº 9.019, de 30 de março de 1995, que dispõe sobre a aplicação dos direitos previstos no Acordo Antidumping e no Acordo de Subsídios e Direitos Compensatórios, define o que são considerados subsídios no seu artigo 4º. Art. 4º Para os fins deste Decreto, considera-se que existe subsídio quando é conferido um benefício em função das hipóteses a seguir: I - haja, no país exportador, qualquer forma de sustentação de renda ou de preços que, direta ou indiretamente, contribua para aumentar exportações ou reduzir importações de qualquer produto; ou II - haja contribuição financeira por um governo ou órgão público, no interior do território do país exportador, denominado a partir daqui "governo", nos casos em que: a) a prática do governo implique transferência direta de fundos (doações, empréstimos, aportes de capital, entre outros) ou potenciais transferências diretas de fundos ou obrigações (garantias de empréstimos, entre outros); ou b) sejam perdoadas ou deixem de ser recolhidas receitas públicas devidas (incentivos fiscais, entre outros), não sendo consideradas como subsídios as isenções, em favor dos produtos destinados à exportação, de impostos ou taxas habitualmente aplicados ao produto similar quando destinados ao consumo interno, nem a devolução ou abono de tais impostos ou taxas, desde que o valor não exceda os totais devidos, de acordo com Artigo XVI do GATT/1994 e os Anexos I e III do Acordo Sobre Subsídios e Medidas Compensatórias; ou c) o governo forneça bens ou serviços além daqueles destinados à infra-estrutura geral, ou quando adquiria bens; ou d) o governo faça pagamentos a um mecanismo de fundo, ou instrua ou confie à entidade privada a realizar uma ou mais das funções descritas nas alíneas anteriores, as quais seriam normalmente incumbência do governo, e cuja atuação não difira, de modo significativo, da prática habitualmente seguida pelos governos. (BRASIL. Decreto nº 1.751, 19 de dezembro de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1995/D1751.htm>. Acesso em 21 jun. 2011).
165
Embora não exista legislação interna que permita expressamente a aplicação das
medias compensatórias acima citadas, no caso de concessão unilateral de benefícios fiscais
em matéria de ICMS99, esta possibilidade já se encontra bastante difundida no âmbito do
comércio internacional, com normas expressas no Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e
Comércio (em inglês: General Agreement on Tariffs and Trade, GATT), datado de 1947, do
qual o Brasil é signatário, podendo ser aplicada, por analogia, ao caso ora tratado.
O conceito de direitos compensatórios foi definido pela legislação brasileira no
art. VI do Decreto 313/48100, que possui a seguinte redação:
DECRETO 313/48 ACÔRDO GERAL SÔBRE TARIFAS ADUANEIRAS E COMÉRCIO 2. Não será cobrado sôbre um produto originário de uma Parte Contratante e importado no território de outra Parte Contratante, nenhum direito de compensação que ultrapasse a importância do prêmio ou da subvenção que se sabe ter sido concedida, direta ou indiretamente, à fabricação, produção ou exportação do referido produto no país de origem ou de exportação, inclusive qualquer subvenção especial concedida para o transporte de um produto determinado. A expressão "direito de compensação" deve ser interpretada como significando um direito especial cobrado com o fim de neutralizar qualquer prêmio ou subvenção concedidos, direta ou indiretamente, à fabricação, produção ou exportação de um produto. 5. Nenhuma Parte Contratante cobrará direitos anti-dumping ou de compensação na importação de um produto procedente de outra Parte Contratante, a menos que verifique que o efeito do dumping ou da subvenção, segundo o caso, seja tal que cause ou ameace causar um prejuizo substancial a uma produção nacional estabelecida ou constitua obstáculo à criação de uma produção nacional ou a retarde sensìvelmente. As Partes Contratantes poderão derrogar as prescrições do presente parágrafo, de maneira a permitir uma Parte Contratante cobrar um direito anti-dumping ou um direito de compensação na importação de um produto qualquer, tendo em vista compensar um dumping ou uma subvenção que cause ou ameace causar prejuízo substancial a uma produção estabelecida no território de outra Parte Contratante que exporte o produto em questão para o território da Parte Contratante importadora.
Desta forma, mesmo em se tratando de acordo internacional, que visa a redução
substancial das tarifas aduaneiras e de outras barreiras às permutas comerciais, bem como a
eliminação do tratamento discriminatório, em matéria de comércio internacional, a lógica do
tratamento e a sua forma de aplicação são equivalentes ao caso das transações interestaduais
dentro do Brasil, conforme muito bem salientado pelo Conselheiro Marcelo Calliari, do
Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, via Consulta elaborada pelo
99 O artigo 8º, inciso II da Lei Complementar 24/75 estabelece que a concessão de benefícios fiscais em desacordo com o previsto no seu texto acarretará a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente. Todavia, não há qualquer referência em relação à equiparação, pelo Estado prejudicado, dos benefícios fiscais concedidos por outra unidade federada. Art. 8º - A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente: II - a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente. (BRASIL, Lei Complementar nº 24/75. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp24.htm>. Acesso em 21 jun. 2011). 100 BRASIL. Decreto nº 313, de 30 de julho de 1948. <http://www2.mre.gov.br/dai/m_313_1948.htm>. Acesso em 21 jun. 2011. (Grifos nossos).
166
Pensamento Nacional das Bases Empresariais – PNBE, já amplamente citada acima101.
Confira-se aresto do voto proferido pelo Conselheiro:
A percepção de que a concessão de incentivos fiscais e financeiros-fiscais reduz custos e altera relações de concorrência nos mercados é na verdade tão disseminada que, no âmbito do comércio internacional, as normas do GATT/OMC permitem a imposição de direitos compensatórios para corrigir distorções provocadas por subsídios estatais – note-se que não se cuida aqui de dumping, tema que guarda relação estreita e controversa com a defesa da concorrência, mas sim de subsídios estatais. No mesmo sentido, tanto os Estados Unidos como a União Européia possuem também dispositivos específicos para sobretaxar importações de países que teriam se beneficiado de tais benefícios. (...) A lógica desse tratamento, e a sua forma, são iguais no caso de transações interestaduais dentro do Brasil. Assim como se reconhece na legislação de comércio exterior que a concessão de um subsídio estatal por outro país pode justificar a imposição de direitos compensatórios, também no que se refere à concessão de incentivos pelos Estados brasileiros a legislação brasileira (LC nº 24/75, art. 8º, II) prevê, pelo menos teórica e legalmente, a possibilidade de negativa do crédito, pelo Estado de destino, relativo ao tributo não recolhido no Estado de origem em função de incentivo não aprovado nos termos dessa lei. A lógica, evidentemente, é a mesma, no sentido de reconhecer a tais práticas – os auxílios estatais – geram distorções indevidas e indesejáveis sobre a dinâmica concorrencial, que devem ser corrigidas102.
Há, por fim, que se ressaltar que a ausência de atuação por parte do Estado de
Minas Gerais, visando restabelecer a concorrência desequilibrada pelos benefícios irregulares
concedidos por outras unidades federadas pode, em última análise, ensejar a responsabilização
administrativa por omissão.
Explica-se: o princípio da neutralidade tributária, constitucionalizado no artigo
146-A da Carta Magna, impõe ao legislador infraconstitucional um dever positivo de restaurar
a igualdade de condições na concorrência. O comendo constitucional é imperativo: o Estado
deve restaurar o equilíbrio concorrencial perdido.
De outra senda, o §6º, do artigo 37 do Texto Constitucional, determina que as pessoas
jurídicas de direito público (e as de direito privado prestadoras de serviços públicos)
respondam pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A responsabilidade civil do Estado que, por regra, é objetiva, possui também um
campo próprio de responsabilidade subjetiva, em que uma das hipóteses se configura com o
101 BRASIL. Consulta CADE nº 38/1999 (...). 102 É o caso da seção 701 (a) da Lei de Tarifas de 1930, no que tange aos Estados Unidos, e do art. 3º, nº 1 do Regulamento nº 2.176/84, no que se refere à União Européia. Para que exista a aplicação destes diplomas, basta, conforme visto no Relatório, que exista o dano material à indústria local e a sua comprovação como prática desleal. Esse dano, conforme salienta a Consulente, deve ser provado, em ambos os sistemas, através de informações relacionadas aos seguintes dados: “a) real ou potencial declínio na produção, vendas, perda de mercado, lucros, produtividade, retorno dos investimentos, e aumento da capacidade instalada ociosa; b) alterações no preço doméstico; c) real e potencial efeitos negativos nos estoques, desemprego, salários e investimentos” (fls. 30 do relatórios).
167
dano causado em decorrência da omissão estatal. Note-se que não é toda omissão estatal que
pode ocasionar a responsabilização do Estado, mas apenas aquela decorrente do
"descumprimento de um dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo", consoante
brilhantes dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello103.
Desta forma, não basta, para ser imputada a responsabilidade por omissão, a
simples relação causal entre esta e o dano, sendo absolutamente necessária a ocorrência de
uma conduta negligente do Estado. Neste sentido, confira-se o entendimento de Tércio
Sampaio Ferraz Júnior104:
Não basta, pois, para ser imputada a responsabilidade por omissão, a simples relação causal entre esta e o dano, mas é preciso mostrar a existência da obrigação legal cujo adimplemento é omitido e o dano, que seria possível de impedir mediante atuação diligente. Assim, ainda que o dano não tenha sido provocado pela Administração, sua conduta negligente contribuiu para a ocorrência do dano.
O caso ora em discussão pode denotar efetivamente uma conduta negligente do
Estado-membro que descumpra o imperativo constitucional de “restaurar o desequilíbrio
concorrencial, através da imposição de regime especial de tributação”, possibilitando a sua
responsabilização perante o agente econômico prejudicado pela tributação ilegal concedida
aos concorrentes localizados em outra unidade federada, o que justifica a equiparação prevista
na legislação mineira.
Acresça-se, ainda, que a omissão, no caso em tela, pode decorrer também da
ausência de atuação estatal para se evitar o abuso do poder econômico por parte do agente
econômico que, em condições mais favoráveis de formação de preços, fatalmente dominará o
mercado relevante mineiro abusivamente, em virtude da negligência estatal.
É certo que, consoante reconhece José Afonso da Silva105, a Constituição
reconhece o Poder Econômico, não sendo este, pois, condenado pelo regime constitucional, "a
não ser quando ele é exercido de maneira anti-social, quando cabe ao Estado intervir para
coibir o abuso". A negligência estatal fatalmente gerará a responsabilização subjetiva.
Adite-se, por fim, ser essencial para a responsabilização estatal pela conduta
omissiva ensejadora do dano, a constituição do Estado em mora pela sua omissão, através dos
meios constitucionais previstos (mandado de injunção ou ação direta de inconstitucionalidade
103 Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal
que lhe impunha obstar o evento lesivo. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 987). 104 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Resposta à consulta (...), op. cit. 105 SILVA, José Afonso da. Resposta à consulta formulada pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial – ETCO, acostado aos autos da Medida Cautelar na Ação Cautelar nº 1.657/RJ. BRASIL, STF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Joaquim Barbosa. Relator para Acórdão Ministro Cezar Peluso, julgamento 27 jun 2007.
168
por omissão). Permanecendo a omissão, e comprovado o dano e o nexo causal entre a conduta
omissiva e o dano sofrido, passível a indenização.
Tal entendimento foi manifestado no julgamento proferido pelo Supremo Tribunal
Federal no Recurso Extraordinário nº 424584106. Embora a Corte tenha entendido não ser
possível a responsabilização do chefe do executivo pela conduta omissiva, o corpo do voto do
Ministro Gilmar Mendes demonstra a necessidade da constituição do Estado em mora e a
permanência da omissão, além do óbvio reconhecimento do direito:
Caso tenha havido a prévia declaração de inconstitucionalidade por omissão legislativa, algum efeito deve ocorrer, sob pena de total ineficácia do comando constitucional. Para tanto, é indispensável que haja a correlação entre a imposição constitucional de legislar e o reconhecimento do direito público subjetivo à legislação, bem como a fixação judicial de mora pelo reconhecimento da omissão inconstitucional somada à persistência da inação estatal.
No mesmo sentido é o entendimento de José dos Santos Carvalho Filho107:
Não cumprida a obrigação no prazo constitucional, e decretando o Poder Judiciário a mora do legislador, sem a fixação de prazo para cumprimento, a diligencia do Executivo ou do Legislativo, perpetrada em prazo situado dentro de padrões de razoabilidade, não acarreta a responsabilidade do Estado, não havendo, portanto, dever indenizatório. Fora de tais padrões, há de considerar-se inarredável a culpa omissiva do legislador e, por tal motivo, eventuais prejudicados têm direito à reparação de seus danos por parte da unidade federativa omissa. Pensamos, todavia, que a evolução da responsabilidade civil estatal deve avançar mais e conduzir a solução mais rigorosa e menos condescendente com as omissões do Estado. Se é certo que inexiste, como regra, prazo certo para o exercício da função legislativa, não menos certo é que o reconhecimento da mora no caso de expressa previsão constitucional quanto ao prazo para legislar deve implicar, por sua própria natureza, a responsabilidade civil do Estado e o dever de indenizar, uma vez que tal inação reflete inaceitável abuso de poder.
Todavia, importante apontar um vício na Lei mineira, que macula na origem a
norma, por clara violação aos Princípios da Separação de Poderes e da Reserva Absoluta de
Lei Formal. É que o artigo 225 da Lei Estadual delega ao Poder Executivo a adoção das
medidas necessárias à proteção da economia do Estado108, o que, segundo Regulamento do
ICMS mineiro ocorre através da concessão de Regime Especial concedido pelo
Superintendente de Tributação da Secretaria de Estado da Fazenda, órgão constante do Poder
106 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 424584. 2ª Turma, Rel.: Ministro Carlos Velloso. Relator para acórdão Ministro Joaquim Barbosa. 17 de nov. 2009. Diário da Justiça, 07 mai. 2010, p. 1040. EMENTA: SERVIDOR PÚBLICO. REVISÃO GERAL DE VENCIMENTO. COMPORTAMENTO OMISSIVO DO CHEFE DO EXECUTIVO. DIREITO À INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. IMPOSSIBILIDADE. Esta Corte firmou o entendimento de que, embora reconhecida a mora legislativa, não pode o Judiciário deflagrar o processo legislativo, nem fixar prazo para que o chefe do Poder Executivo o faça. Além disso, esta Turma entendeu que o comportamento omissivo do chefe do Poder Executivo não gera direito à indenização por perdas e danos. Recurso extraordinário desprovido. 107 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23ª ed., rev., ampl. e atualizada até 31.12.2009. . Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010, p. 620-21. 108 Ainda que a lei determine que a Exposição dos Motivos que deram origem à equiparação dos benefícios concedidos unilateralmente por outra unidade deva ser submetida à Assembléia Legislativa, para ratificação, por meio de resolução, o §4º do art. 225 estabelece que, decorrido o prazo legal sem a ratificação legislativa, a medida adotada permanecerá em vigor até que a Assembléia Legislativa se manifeste.
169
Executivo estadual. Esta delegação de poderes pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo fere
o disposto no artigo 5º, inciso II e no §6º, do artigo 150 da Constituição da República, que
garantem o princípio da legalidade estrita, e a necessidade absoluta de lei em sentido formal
para contemplar hipóteses que sejam aptas a constituir algum tipo de exoneração tributária,
justamente a hipótese da lei mineira.
A Suprema Corte possui entendimento pacificado neste sentido109:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO TRIBUTÁRIO. LEI PARAENSE N. 6.489/2002. AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA PARA O PODER EXECUTIVO CONCEDER, POR REGULAMENTO, OS BENEFÍCIOS FISCAIS DA REMISSÃO E DA ANISTIA. PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI FORMAL. ART. 150, § 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. A adoção do processo legislativo decorrente do art. 150, § 6º, da Constituição Federal, tende a coibir o uso desses institutos de desoneração tributária como moeda de barganha para a obtenção de vantagem pessoal pela autoridade pública, pois a fixação, pelo mesmo Poder instituidor do tributo, de requisitos objetivos para a concessão do benefício tende a mitigar arbítrio do Chefe do Poder Executivo, garantindo que qualquer pessoa física ou jurídica enquadrada nas hipóteses legalmente previstas usufrua da benesse tributária, homenageando-se aos princípios constitucionais da impessoalidade, da legalidade e da moralidade administrativas (art. 37, caput, da Constituição da República). 2. A autorização para a concessão de remissão e anistia, a ser feita “na forma prevista em regulamento” (art. 25 da Lei n. 6.489/2002), configura delegação ao Chefe do Poder Executivo em tema inafastável do Poder Legislativo. 3. Ação julgada procedente.
Por esta razão, embora a equiparação tributária proposta pela legislação mineira,
se mostre materialmente válida, eis que calçada no artigo 146-A da Carta Magna, o
instrumento normativo utilizado se afigura formalmente inconstitucional, na medida em que
delega ao Poder Executivo a competência exclusiva de legislar pertencente ao Poder
Legislativo, por força do artigo 2º do Texto Constitucional, fazendo, ainda, tabula rasa do
princípio da reserva legal.
109 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3462. Tribunal Pleno, Rel.: Ministra Carmen Lúcia, 15 de set. 2010. Brasília: Diário da Justiça, 14 fev. 2011, p. 42.
170
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. Como restou consignado, o Estado, no exercício da sua soberania, detém o
Poder Tributário para a criação, instituição ou estabelecimento de tributos. Este poder
impositivo, que possui como características precípuas ser indisponível, a imprescritível,
abstrato e limitado à própria soberania estatal, foi repartido pelo legislador constituinte entre
os entes federados.
2. Tal poder sempre encontra limite a Constituição, que é quem confere e reparte
as competências tributárias entre as pessoas políticas, divide entre elas o produto arrecadado,
delimita os tributos passíveis de serem instituídos, enfim, regula todo o âmbito de atuação do
Estado no campo tributário. Saliente-se que não somente as competências tributárias são
repartidas pelo Texto Constitucional, mas também todas as demais competências, legislativas
ou não.
3. No que se refere à repartição das competências legislativas entre os entes da
Federação, o constituinte brasileiro, em matéria tributária e econômica, dentre outras, utilizou-
se do modelo de repartição vertical, através do qual é atribuída à União a competência para a
atribuição do estabelecimento das normas gerais, das diretrizes em determinada matéria, sem
esgotá-la completamente, cabendo aos Estados-Membros preencher as lacunas deixadas pelo
legislador federal adequando-a as peculiaridades locais ou regionais (art. 24, I, e §§).
Reservou-se, ainda, aos Municípios, a competência para suplementar a legislação federal e a
estadual, naquilo que lhe couber (art. 30, II, CR/88).
4. Privilegiou-se o modelo de federalismo de equilíbrio, já que o exercício das
competências pela ordem central não inibe o florescimento dos poderes das ordens jurídicas
parciais1.
6. Cumpre destacar que as leis de normas gerais devem essencialmente atender ao
princípio da predominância do interesse nacional, cabendo aos Estados e ao Distrito Federal a
adequação legislativa aos interesses regionais, e aos Municípios, a adequação aos interesses
locais.
7. Adite-se que as delimitações de cada ente federado nas hipóteses de outorga de
competências concorrentes pelo legislador constituinte são previamente determinadas pelo
1ALMEIDA, Fernanda D. M. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991, p. 79.
171
próprio legislador constituinte, não havendo que se falar em hierarquia entre as normas
emanadas pelas entidades federadas.
8. Ressalte-se, ainda, que, especificamente em matéria tributária, o legislador
constituinte definiu, no artigo 24, §1º e artigo 146, III, do Texto Constitucional, que as
normas gerais em relação à matéria serão sempre veiculadas através de lei complementar que,
indubitavelmente, terão conteúdo nacional.
9. Esta lei complementar tributária, além dos clássicos papéis previstos
expressamente no artigo 146 do Texto Constitucional – emitir normas gerais em matéria
tributária, dirimir conflitos de competência e regular as limitações ao poder de tributar –, tem
a função de atuar sempre que o legislador constituinte assim o determine, quer atuando
diretamente ou complementando dispositivos constitucionais de eficácia contida (balizando-
lhes o alcance), ou, ainda, integrando dispositivos constitucionais de eficácia limitada
(conferindo-lhes normatividade plena).
10. Volvendo-se à principal função da lei complementar relacionada ao presente
trabalho – estabelecer normas gerais em matéria tributária –, verifica-se que a lei
complementar se afigura como verdadeira “norma sobre como fazer normas em sede de
tributação”, cuja função única é assegurar a uniformidade de tratamento dos jurisdicionados
perante os entes federados (União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios),
traçando os delineamentos em matéria de tributação.
11. Note-se que as normas gerais jamais podem substituir o exercício da
competência legislativa da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em
matéria financeira e tributária, de tal sorte que, havendo omissão do legislador ordinário
estadual ou municipal, não poderá a União – mesmo editando lei complementar – regular o
tributo de alheia competência, para valer no território daquela pessoa que renunciou à
faculdade de legislar, atribuída na Carta Magna, consoante se verifica dos precisos
ensinamentos de Misabel Derzi2.
12. Situação semelhante verifica-se na hipótese de ausência de normas gerais
expedidas através de lei complementar. A omissão do legislador complementar não tem o
condão de impedir o exercício da competência legislativa plena por parte dos entes federados,
a teor do disposto no §3º, do artigo 24 da Carta Magna.
13. Ressalte-se, todavia, que a competência supletiva dos Estados para legislar nas
hipóteses de ausência de regra geral emanada pelo legislador da União não é absoluta.
Quando estivermos diante de uma situação de possível conflito de competência entre os entes
172
federados, a existência da lei nacional se torna imperativa, conforme entendimento
manifestado pela Suprema Corte3.
14. Passando-se ao papel do Estado na garantia do princípio da liberdade de
iniciativa – que tem como corolário o princípio da livre concorrência –, garantindo aos
agentes econômicos o livre acesso e permanência ao mercado concorrencial, verifica-se que
atuação estatal, quando da concessão de benefícios fiscais irregulares, ao invés de regular ou
regulamentar o mercado, acaba por provocar enormes distorções na concorrência, o que pode
ser corrigido na forma prevista no artigo 146-A do Texto Constitucional.
15. Eros Grau4 registra como três as modalidades de intervenção estatal na
economia: intervenção por absorção ou participação (a), intervenção por direção (b) e
intervenção por indução (c).
16. O estabelecimento de políticas tributárias privilegiadas (concessão de redução
ou isenção de tributos e demais benefícios de ordem tributária) é forma de atuação por
indução do Estado. Nestas situações, o Estado manipula os instrumentos de intervenção em
consonância e na conformidade das leis que regem o funcionamento dos mercados.
17. Ocorre que nesta atuação do Estado, induzindo a atuação em determinado
mercado através de políticas tributárias favoráveis, a intervenção não pode ocorrer de tal
forma que prejudique a concorrência dos agentes econômicos, impedindo a entrada de novos
concorrentes que não possuam o mencionado benefício, ou mesmo fazendo que determinado
concorrente que já atue em determinado mercado, seja obrigado a abandoná-lo. Adite-se que,
embora se admita o papel do Estado como regulador do mercado, a premissa é que a livre
concorrência com a mínima interferência estatal possível.
18. Adite-se que a intervenção estatal deve ter como escopo a correção de
eventuais imperfeições do sistema concorrencial, e não eliminar este sistema, justamente o
que pode ocorrer nas hipóteses de concessão de determinados benefícios fiscais.
19. A concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais em matéria de ICMS
tem sido uma das principais formas de atuação indutora dos Estados-Membros e do Distrito
Federal no mercado concorrencial. Ocorre que o constituinte limitou o poder impositivo
estadual, ao reservar à lei complementar o papel de regular a forma como, mediante
deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão
concedidos e revogados (art. 155, §2º, XII, g).
2 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 43. 3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 136215/RJ. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Octavio Gallotti, 18 de fevereiro de 1993. Brasília: Diário da Justiça, 16 abr. 1993, p. 941. 4 GRAU, p. 168.
173
20. Nesta seara, foi recepcionada pelo Texto Constitucional, a Lei Complementar
nº 24, de 1975, que dispõe sobre os convênios para a concessão de isenções do imposto sobre
operações relativas à circulação de mercadorias, além de conceituar de modo amplo as
hipóteses de incentivos e benefícios fiscais, abrangendo praticamente todas as hipóteses
tributárias exonerativa.
21. Cumpre salientar que, embora controverso na doutrina, entendemos que
somente os benefícios de caráter fiscal estão sujeitos à regra constitucional supra, visto que
não se pode ampliar hipótese normativa que atribui ao legislador complementar a
competência para a regulação da forma de concessão de benefícios e incentivos fiscais, tal
como previsto no art. 155, §2º, XII, g, do Texto Constitucional, motivo pelo qual os
incentivos financeiros não se enquadram na tipificação constitucional.
22. Nos termos da Lei Complementar nº 24/75, foi constituído um órgão
colegiado - o Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, integrado por
representantes (Secretários da Fazenda) de cada Estado e do Distrito Federal, órgão esse que é
presidido por um representante do Governo Federal (Ministro da Economia), no seio do qual
os Convênios relativos a isenções, incentivos e benefícios fiscais, serão celebrados e
posteriormente ratificados pelos Governadores de cada Estado.
23. Todavia, os Estados e o Distrito Federal, em total desrespeito ao ordenamento
jurídico, vêm concedendo unilateralmente benefícios fiscais, sem referendo do CONFAZ,
visando atrair para seu território novas sociedades empresárias, criando inadmissível “guerra
fiscal” entre os entes federados.
24. Esta prática é repulsada pela Corte Suprema pelos seguintes fundamentos: (i)
caráter nacional do ICMS, que legitima a instituição, pelo legislador central, de norma
nacional disciplinadora da forma de instituição e revogação de benefícios fiscais; (ii)
existência do Confaz para exercer tal papel; (iii) respeito ao pacto federativo.
25. Além destes, acrescentamos, ainda, outros dois fundamentos impeditivos da
validação da concessão unilateral de benefícios fiscais pelos Estados: (iv) a necessária
neutralidade tributária, elevada à categoria de princípio constitucional pelo legislador
constituinte derivado, justamente através da a partir da inserção no seu Texto do artigo 146-A,
por meio da Emenda Constitucional nº 42, de 2003; e (v) a impossibilidade de intervenção do
Estado na concessão de benefícios fiscais irregulares, dada a clara afetação do Sistema
Tributário no sistema concorrencial, o que já foi reconhecido até mesmo pelo Conselho
Administrativo de Defesa Econômica – CADE.
174
26. Tendo em vista estes efeitos nefastos que a concessão irregular dos benefícios
fiscais em matéria de ICMS pode causar ao mercado concorrencial, e considerando-se que o
princípio constitucional da neutralidade tributária impõe aos entes federados o dever de atuar,
positiva ou negativamente, para prevenir, manter ou restaurar a igualdade de condições na
concorrência, entendemos que o art. 146-A do Texto Constitucional fundamenta a atuação dos
Estados-Membros e do Distrito Federal, instituindo critérios especiais de tributação, visando
restabelecer a concorrência, afetada pelo benefício fiscal concedido.
27. Adite-se que o preceito constitucional acima é preceito imperativo, ou seja,
constatado o desequilíbrio concorrencial, o ente federado tem o dever positivo ou de ação, de
restaurar a igualdade de condições na concorrência quebrada em virtude da concessão
irregular de benefícios fiscais, visando o restabelecimento da igualdade de competições
competitivas do mercado.
28. E não se diga que o artigo 146-A atribui apenas ao legislador da União a
competência para estabelecer os “critérios especiais de tributação” visando “restabelecer a
concorrência”. Isto porque, estando a defesa da concorrência inserida no contexto da política
econômica garantida pela ordem constitucional e, por consequência, abrangida pelo conceito
de direito econômico, a competência legislativa para tratar de tal matéria é concorrente a
todos os entes federados, por força do artigo 24, inciso I da Carta Republicana.
29. Neste cenário, entendemos como a melhor leitura do artigo 146-A do Texto
Supremo a seguinte: O Congresso Nacional poderá, mediante Lei Complementar, estabelecer
os parâmetros para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por leis ordinárias
próprias, fixarem os próprios critérios especiais de tributação aptos a prevenir ou restabelecer
a igualdade da concorrência.
30. Tendo em vista a omissão do legislador complementar nacional em
estabelecer normas gerais que estabeleçam os critérios especiais de tributação visando à
garantia do equilíbrio concorrencial, tal como previsto no art. 146-A, os Estados-membros e o
Distrito Federal, a teor do §3º do artigo 24, da Constituição, detém a competência plena para
legislar sobre a questão.
31. Nesta senda, a utilização do artigo 146-A da Constituição da República como
instrumento de atuação positiva do Estado para restabelecer o equilíbrio concorrencial
afastado pela concessão de benefícios fiscais unilaterais, ou seja, que não foram concedidos
através do Confaz é medida que se impõe ao legislador ordinário do ente federado
prejudicado.
175
32. O dispositivo constitucional embasa a concessão de benefícios fiscais
equivalentes pelos Estados-Membros ou pelo Distrito Federal, quando prejudicados pela
atuação unilateral de outro Estado-Membro, com base em ato normativo editado pelo próprio
Poder Legislativo, sem que seja necessária a obtenção de ordem judicial que autorize a edição
da norma de equivalência. A atuação positiva visando à restauração da concorrência é imposta
pelo Texto Constitucional ao legislador infraconstitucional e não ao Poder Judiciário.
33. Trata-se de claro estabelecimento de critérios especiais de tributação pelo
Estado-Membro prejudicado aos contribuinte domiciliados no seu território, que comprovem
que vêm sofrendo a concorrência desleal oriunda de agentes econômicos localizados em
outras unidades federadas, fruto de benefícios fiscais irregulares concedidos unilateralmente.
34. Tal equiparação, pelo Estado-Membro concorrencialmente prejudicado, deve
ser vista como a imposição de direitos compensatórios para corrigir as distorções provocadas
por subsídios estatais, prática esta já bastante difundida no âmbito do comércio internacional.
35. Por fim, cumpre ressaltar que a ausência de atuação por parte do Estado-
Membro ou do Distrito Federal, visando restabelecer a concorrência desequilibrada pelos
benefícios irregulares concedidos por outras unidades federadas pode, em última análise,
ensejar a responsabilização administrativa por omissão.
36. Embora nestes casos a responsabilidade do Estado seja subjetiva, afigura-se
negligente a conduta do Estado-membro ou do Distrito Federal que descumpra o imperativo
constitucional de “restaurar o desequilíbrio concorrencial, através da imposição de regime
especial de tributação”, possibilitando a sua responsabilização perante o agente econômico
prejudicado pela tributação ilegal concedida aos concorrentes localizados em outra unidade
federada.
37. Adite-se, por fim, ser essencial para a responsabilização estatal pela conduta
omissiva ensejadora do dano, a constituição do Estado-Membro ou do Distrito Federal em
mora pela sua omissão, através dos meios constitucionais previstos (mandado de injunção ou
ação direta de inconstitucionalidade por omissão). Permanecendo a omissão, e comprovado o
dano e o nexo causal entre a conduta omissiva e o dano sofrido, passível a indenização.
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REFERÊNCIAS
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