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VIAGENS SAB15102005 FUGASPÚBLICO I – Da Europa à Indochina Parti de Portugal como o objectivo de circunscrever o globo, seguindo quase continuamente para leste. Percorri parte de alguns gigantes asiáticos, como a Rússia ou a China. Países misteriosos como a Mongólia, o Laos, o Camboja ou Myanmar (an- tiga Birmânia). O mais novo país do planeta, Timor-Leste. O inesquecí- vel Vietname, a instável Bolívia. Países desenvolvidos como a Aus- trália ou o Chile. Alguns típicos bi- lhetes-postais como um punhado de ilhas tailandesas e outras tantas na parte malaia do Bornéu. A mística Bali, na Indonésia. E muitos outros lugares. Regressei a Portugal após completar catorze meses de vida errante, sem conhecer o continente africano, a Índia, o Médio Oriente e a América Central, que ficam para uma próxima oportunidade. Foram sessenta e uma semanas sem poiso fixo, de mochila às costas, máquina fotográfica em punho e sentidos des- pertos. Dias inesquecíveis repletos de experiências marcantes, povos acolhedores e um punhado de in- significantes decepções. Tempo de grande enriquecimento pessoal. Não é fácil seleccionar momen- tos especiais de entre tantas vivên- cias inolvidáveis. Foram muitos meses de culturas diferentes e novas experiências. Chocantes e dolorosas, por vezes; comoventes e prazenteiras, as restantes. De pessoas que se cruzaram no meu caminho. De instantes irrepetíveis. É um exercício ingrato, a selecção desses momentos. Mas há algumas ocasiões que, na altura de remexer no baú das memórias, se destacam com naturalidade. Na primeira par- te deste balanço, aqui ficam alguns dos momentos mais marcantes dos meses iniciais desta volta ao mun- do. Aqueles em que fui da Europa até à antiga Indochina. < h ��2 1 6 12 10 11 7 8 9 3 5 4 02 VOLTA AO MUNDO O BALANÇO Catorze meses a viajar de forma solitária pelo mundo é seguramente uma experiência única. Ao longo dessa aventura planetária, Filipe Morato Gomes (textos e fotos) marcou encontro com acontecimentos dramáticos como o tsunami na Ásia ou as manifestações populares na Bolívia e foi acumulando memórias intensas, que recupera agora para o FUGAS. Um balanço final dividido em três partes e que começa com os momentos mais marcantes vividos entre a Europa e a Indochina. Filipe Morato Gomes no Vietname

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Page 1: I – Da Europa à Indochina - fmgomes.com · meses iniciais desta volta ao mun-do. Aqueles em que fui da Europa até à antiga Indochina. < h 02 VOLTA AO MUNDO O BALANÇO Catorze

VIAGENSSAB15102005 FUGASPÚBLICO

I – Da Europa à IndochinaParti de Portugal como o objectivo de circunscrever o globo, seguindo quase

continuamente para leste. Percorri parte de alguns gigantes asiáticos, como a Rússia ou a China. Países misteriosos como a Mongólia, o Laos, o Camboja ou Myanmar (an-tiga Birmânia). O mais novo país do planeta, Timor-Leste. O inesquecí-vel Vietname, a instável Bolívia. Países desenvolvidos como a Aus-trália ou o Chile. Alguns típicos bi-lhetes-postais como um punhado de ilhas tailandesas e outras tantas na parte malaia do Bornéu. A mística Bali, na Indonésia. E muitos outros lugares. Regressei a Portugal após completar catorze meses de vida errante, sem conhecer o continente africano, a Índia, o Médio Oriente e a América Central, que ficam para uma próxima oportunidade. Foram sessenta e uma semanas sem poiso fixo, de mochila às costas, máquina

fotográfica em punho e sentidos des-pertos. Dias inesquecíveis repletos de experiências marcantes, povos acolhedores e um punhado de in-significantes decepções. Tempo de grande enriquecimento pessoal.

Não é fácil seleccionar momen-tos especiais de entre tantas vivên-cias inolvidáveis. Foram muitos meses de culturas diferentes e novas experiências. Chocantes e dolorosas, por vezes; comoventes e prazenteiras, as restantes. De pessoas que se cruzaram no meu caminho. De instantes irrepetíveis. É um exercício ingrato, a selecção desses momentos. Mas há algumas ocasiões que, na altura de remexer no baú das memórias, se destacam com naturalidade. Na primeira par-te deste balanço, aqui ficam alguns dos momentos mais marcantes dos meses iniciais desta volta ao mun-do. Aqueles em que fui da Europa até à antiga Indochina. <

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02 VOLTA AO MUNDO O BALANÇO

Catorze meses a viajar de forma solitária pelo mundo é seguramente uma experiência única. Ao longo dessa aventura planetária, Filipe Morato Gomes (textos e fotos) marcou encontro com acontecimentos dramáticos como o tsunami na Ásia ou as manifestações populares na Bolívia e foi acumulando memórias intensas, que recupera agora para o FUGAS. Um balanço final dividido em três partes e que começa com os momentos mais marcantes vividos entre a Europa e a Indochina.

Filipe Morato Gomes no Vietname

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SAB15102005FUGASPÚBLICOVIAGENS

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1 Linha transiberiana Rússia 26 Jul 2004

A viagemMoscovo tinha já mergulhado naescuridão quando o comboio ini-ciou marcha, à hora exacta, sem qualquer tipo de aviso. Arran-cou, simplesmente. Tal como es-ta volta ao mundo. Era o início de uma longa viagem planetária e, na solidão de um comparti-mento desocupado, um trilião dedúvidas atormentavam-me o es-pírito. Seria sensato empreender esta aventura? Suportaria, qual nómada dos tempos modernos, tanto tempo de mochila às cos-tas? Como reagiria à solidão? Na-queles três dias e meio a bordo de um comboio em marcha contínua para leste, choquei de frente com a realidade. O impacte da cons-ciencialização do que tinha de-cidido empreender. Estava apre-ensivo.

2 Khuzhir, ilha de Olkhon Rússia 2 Ago 2004

A primeira paixão

Cheguei à ilha de Olkhon, na Sibéria, em pleno Verão. Os céus estavam azulados, a temperatura era amena, os dias corriam sorridentes. Em re-dor da ilha, as águas tranquilas do lago Baical. Quedei-me em Khuzhir, a principal povoação da ilha, que não era mais do que um punhado de ruas de terra batida, em que os mais frequentes transeuntes eram porcos, vacas e cães vadios. As casas eram de madeira, simples e bonitas, pobres mas dignas. O grande lago, sempre presente, rodeava a ilha num abraço comovente. O rosto meigo e enruga-do da velha Lina – em casa de quem fiquei alojado –, debruçada no muro da sua modesta habitação, é uma ima-gem que perdura na memória. Foram dias fascinantes, aqueles passados em Olkhon. Porque é um lugar que pos-sui a beleza despretensiosa das coisas simples. Foi a primeira grande paixão desta odisseia.

3 Khongoryn, Mongólia 14 Ago 2004

Os céus do deserto

Passei mais de duas semanas a per-correr o interior da Mongólia, num veículo de tracção total, por estradas inexistentes. Foram dias de desco-berta permanente, num país ainda fora dos roteiros internacionais doturismo de massas. Para além das paisagens deslumbrantes, da comida intragável, da curiosidade e amabili-dade das pessoas, da extraordinária arte do canto gutural mongol e do contacto com tradições muito dis-tintas das ocidentais, há algo que re-cordo claramente. Estava em Khon-goryn, no deserto de Gobi. Era uma noite fria, escura, sem nuvens. Foi quando as estrelas invadiram sem pudor os céus do deserto.

4 Shine Ider Mongólia 22 Ago 2004

Sem uma palavra em comum

Shine Ider. Nunca ouvira falar de tal lugar mas foi lá, nas pradarias de uma Mongólia escassamente povoada, que vivenciei uma das mais extraordinárias experiências des-ta odisseia. Uma família mongol recebeu--nos, a mim e outros cinco viajantes, em sua casa. Era, na verdade, uma tenda. Mu-daram-se para uma barraca vizinha para que tivéssemos um lugar para pernoitar. Apesar dos pedaços de carne e de queijo de iaque que secavam na estrutura da tenda e que provocavam um odor nauseabundo, rendemo-nos à hospitalidade da família. Tudo era genuíno. Por um dia, vivemos como mongóis. Ajudámos a ordenhar os iaques e a cortar lenha. Observámos a preparação de uma caçada e montámos a cavalo. Divertimo-nos em conjunto. Co-municando com gestos, com o olhar, com expressões faciais. Sem uma única palavra em comum.

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5 Jinshanling China 5 Set 2004

A Grande Muralha

Foram apenas dez quilómetros a pé. O suficiente, no entanto, para me render ao encanto bruto de uma das mais impressionantes edificações da humanidade. E perceber que a Grande Muralha oferece aos visitantes duas reali-dades bem diversas. Em Jinshan-ling, tal como em Simatai, a sua estrutura estava restaurada e bonita, escondendo o passar dosséculos com argamassa dos tem-pos modernos. Entre esses luga-res, a muralha original. Destru-ída pelo tempo. Menos bela mas mais autêntica. Colossal. Serpen-teando pelo topo das montanhas até desaparecer no horizonte. Li-teralmente. Nunca me senti tão pequeno e insignificante como naquele dia.

6 Kunming China 27 Set 2004

Intercâmbio perfeito

Enquanto caminhava, ouvia os sonsde alguns instrumentos e de vozes femininas misturados com o chil-rear da passarada. Estava num par-que dos arredores de Kunming, a melhor forma de escapar à poluição desmesurada de uma grande cidade chinesa. Aproximei-me dos sons. Um grupo de velhotes reformados estava sentado numa espécie de co-reto. Juntavam-se ali todos os dias para tocarem e cantarem músicas tradicionais. Sentei-me. Escutava, inebriado, a música que saltava dosseus instrumentos quando, de re-pente, um instrumento em forma de bandola me veio parar às mãos. Improvisei uma melodia, os velhotes acompanharam. Sorrimos, continu-ámos a tocar. Por momentos, era co-mo se fizesse parte daquele grupo de velhotes reformados. Unidos pela música, num intercâmbio perfeito.

7 Hanói, Vietname 9 Out 2004

Um caos delicioso

Sempre me senti mais confortável em lugares pequenos do que em grandes cidades. Hanói foi uma das poucas excepções. Apesar dos seus quatro milhões de habitantes, a ca-pital do Vietname tem um charme especial. É deliciosamente caótica. Tem personalidade. O seu centro his-tórico pulula de vida. Nem os mi-lhares de motorizadas que circulam endiabradas pelas ruas, ocupam pas-seios e tornam uma aventura qual-quer tentativa de atravessar as ar-térias citadinas mancham esse en-canto. Por todas as razões, Hanói fica guardada como uma das mais surpreendentes capitais que tive oportunidade de conhecer.

8 Sapa Vietname 17 Out 2004

O casamentoQuando cheguei a uma aldeia habita-da pela minoria étnica Thai, situada na região montanhosa de Sapa, no Norte do Vietname, estava prestes a ter lugar um grande acontecimento na aldeia. Um casamento estava marcado para daí a dois dias. Instalei-me na ca-sa da família da noiva. Dezenas de familiares, oriundos das redondezas, chegavam para ajudar nos prepara-tivos das festividades. A azáfama era intensa. Mataram-se porcos. Fizeram--se novos cachimbos de bambu e novos pauzinhos para a refeição da boda. À noite, os homens reuniram-se para jantar e as garrafas de vinho de arroz começaram a circular de mão em mão. Convidaram-me a brindar, de golada, uma, duas, dez vezes. Recusar era uma ofensa. Era como se pertencesse à famí-lia. Até que me convidaram para ficar para o casamento. Declinei o convite para prosseguir viagem com os com-panheiros de ocasião. Um dos poucos momentos em que me arrependi de uma decisão tomada.

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9 Nha Trang, Vietname 31 Out 2004

A guerraPasseava na marginal de Nha Trang quando vi aquele homem. Caminha-va sem pernas, tinha apenas uns pés minúsculos e deformados colados na bacia, os braços inexistentes, o olhar triste implorando ajuda. Era o que res-tava de alguém afectado pelo nefasto Agente Laranja. Haveria de visitar o Museu da Guerra, em Saigão, onde se exibia uma vasta colecção de fotogra-fias tiradas durante a Guerra do Viet-name. Haveria de ver caras queimadas pelo napalm. Haveria de ver gente com deformações inacreditáveis em todas as partes do corpo. Haveria de ver tudo isso, em fotografias. Mas, naquele dia, em Nha Trang, não estava preparado para enfrentar a crueldade do momen-to. Cobardemente, afastei o olhar.

10 Phnom Phen Camboja 15 Nov 2004

O horrorNuma das salas do Museu do Genocí-dio Tuol Sleng, em Phnom Pehn, capi-tal do Camboja, havia uma mostra de trabalhos de um pintor cambojano, um dos raros sobreviventes de um campo de detenção. Eram telas que retrata-vam a forma como o regime de Pol Pot eliminava crianças de tenra idade. Numa delas, um soldado prendia um bebé pelos pés e arremessava-o em di-recção a uma árvore de grande porte, esmagando sem piedade a cabeça do recém-nascido. “Para poupar balas”, alguém me explicou.

11 Siem Riep Camboja 22 Nov 2004

O desígnio de uma vida

Aki Ra já combateu de ambos os lados do conflito cambojano. Primeiro, en-quanto criança, ao lado dos Khmers Vermelhos. “Abria caminho” em ter-renos minados, à frente das colunas militares. Depois, ao lado dos exérci-tos vietnamita e cambojano. Minava o solo. Anos mais tarde, já adulto, dis-posto a apagar o passado a que fora forçado, fundou o Museu das Minas Terrestres de Aki Ra. Percorre ago-ra todas as províncias do Camboja, sozinho, para cumprir aquele que se tornou o desígnio do resto da sua vi-da: “Tornar o Camboja um país mais seguro para o meu povo”. Com o auxí-lio de um pau e dos seus próprios pés – que usa para detectar os engenhos –, vai desminando, lenta e paciente-mente, os campos que, um dia, ajudou a infestar de minas terrestres.

12 Luang Prabang Laos 20 Dez 2004

Os monges de Luang Prabang

Todas os dias, por volta das seis horas da madrugada, os habitantes de Luang Prabang, no Laos, desciam às ruas com um propósito muito especial. Alimentar os monges que habitam nos templos da cidade. Nos passeios, as mulheres esperavam ajoelhadas sobre uma esteira, os homens de pé. À hora certa, de todos os templos de Luang Prabang – e são imensos –, filas de monges de todas as idades saíam às ruas para recolher as oferendas. Mui-to arroz pegajoso, pequenas doses de comida embrulhadas em folhas de bananeira, uma peça de fruta, algum dinheiro e um ou outro doce. Numa ci-dade com tantos e tão belos templos, o ritual tinha proporções invulgares. Com os monges fora dos templos, as ruas tingiam-se de laranja e açafrão.

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II – Do Sudeste asiático à Oceânia

Foi no Sudeste asiático que passei a maior parte destes 14 meses da viagem, e isso tem

uma explicação: tudo é novo e fasci-nante para um ocidental. As pessoas, as culturas, os valores, a arquitectura, os sabores. Ao viajante, imerso numa variedade inesgotável de distintas ex-periências, são proporcionados momen-tos de descoberta permanente. A sur-presa é um elemento omnipresente. Porque se encontram povos com modos de vida distintos e muito diversificados, algumas tradições ancestrais ainda se mantêm vivas, novas formas recortam as paisagens que os olhos observam e a gastronomia é estranha, desafiante e, quase sempre, deliciosa.

No Sudeste asiático, nada acontece da forma a que estamos acostumados na

Europa, e a diferença é o que mais fasci-na um viajante. A novidade atrai com a força de um íman. Também amedronta, mas tem, sobretudo, o efeito de espicaçar o deslocado, atiçar o desejo de conheci-mento e o combate ao comodismo a que, ao fim de longos meses de vida errante, um viajante tem tendência a sucumbir. A novidade da diferença é o combustível necessário para prosseguir viagem.

Foi por esses caminhos de descoberta que me deixei perder na fase intermédia desta volta ao mundo, aquela em que vi-ve de perto a tragédia provocada pelo tsunami. Aqui ficam, na segunda parte deste balanço, alguns dos momentos mais marcantes ocorridos durante o pe-ríodo em que fui do Sudeste asiático até à Oceânia, antes de rumar ao continente americano. <

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Filipe Morato Gomes (textos e fotos) já levava alguns meses de viagem quando ocorreu o tsunami no Sudeste asiático. No momento do maremoto estava no Laos, que escapou à tragédia, mas, vestido na pele de repórter fotográfico, regressou à Tailândia e passou pelo Sri Lanka. E assistiu ao inimaginável. Viu o horror mas também a vontade de viver em condições difíceis.

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13 Mai Sariang Tailândia

9 Dez 2004

ExemplarConheci uma agência de ecoturismo com reais preocupações sobre o impac-te que os visitantes causam em comu-nidades minoritárias. Uma raridade num país tão turisticamente explorado como a Tailândia. A agência organiza caminhadas pelas montanhas na região de Mai Sariang, por percursos diversi-ficados, de forma a não visitarem as mesmas aldeias com frequência. Além disso, parte dos seus lucros é destinada a um fundo comum a ser utilizado pelos aldeões, em forma de micro-emprésti-mos para quando, por exemplo, alguém sem recursos necessitar de tratamentos médicos na cidade mais próxima. Sabe--se que a linha que separa os aspectos benéficos dos nocivos, nesta convivên-cia entre turistas e indígenas, é muito ténue. Mesmo sendo uma matéria para a qual não há verdades absolutas, fica, pelo menos, o conforto de saber que ain-da há quem, na indústria do turismo, se preocupe com o problema.

14 Ban Nai Soi Tailândia

15 Dez 2004

À espera da liberdade

Apresentou-se como Maria José, tinha apenas 19 anos e pertence à minoria étnica Karen-de-pescoço-comprido, re-fugiados birmaneses que procuram uma vida melhor em solo tailandês. Encontrei-a na pequena aldeia de Ban Nai Soi, uma espécie de campo de detenção encapotado, no Norte da Tailândia, de onde os habitantes não podem sair. Cruzar as fronteiras da al-deia era o seu maior sonho. Um sonho, apenas, mas de improvável concreti-zação. Apesar disso, Maria José falava com relativa fluência inglês, francês, castelhano, basco e catalão, para além da sua língua materna. Aprendeu tu-do “com os turistas”. À espera do dia em que for livre.

15 Khao Lak Tailândia

29 Dez 2004

O drama humano

Nunca serei capaz de transmitir por palavras o ambiente que se vivia na Tailândia e, posteriormente, no Sri Lanka, depois do tsunami. O cheiro a morte que emanava do solo, a brutalidade da devastação, a dor e desespero dos sobreviventes, tudo era demasiado real. E cruel. Jamais qualquer vocábulo será capaz de fa-zer jus ao que ia na alma de quem procurava um familiar ou amigo por entre um amontoado de corpos defor-mados. Foi o momento mais doloroso destes 14 meses de viagem.

16 Galle Sri Lanka

2 Jan 2005

Lição de vidaCirculava de automóvel quando me aperce-bi de uma família muito atarefada, no meio dos escombros daquilo que fora a sua casa antes da passagem do tsunami. Alguns membros da família tinham sido mortos, outros continuavam dados como desapa-recidos. Em redor dos seus escombros, tudo era destruição e sofrimento. Apesar de nada terem, pediram-me água, apenas água. Foi quando reparei no mais jovem elemento da família. Era uma criança de uns quatro ou cinco anos, não mais. Procu-rava tijolos intactos, por entre uma amál-gama de restos de madeira, ferros e pedra. Recolhia-os e entregava-os ao seu pai, para que pudessem, tão breve quanto possível, construir um tecto para dormirem. E con-seguia sorrir. Uma das maiores lições de vida que recebi na minha existência.

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17 Nyaungshwe Myanmar

16 Jan 2005

A ternura de um instante

Em muitos dos lugares por onde fui passando, sair das estradas principais e, num impulso inex-plicável, seguir sem mapa e sem destino por caminhos menores e desconhecidos proporcionou-me momentos inesquecíveis. Como naquele dia em que, nos arredo-res de Nyaungshwe, Myanmar, entrei de bicicleta num desses trilhos de terra batida. Um homem estava à porta de sua casa, uma humilde palhota de madeira erguida sobre estacas. Cumprimentei-o. Convidou-me a entrar, para ver algo. Lá den-tro, a sua mulher acarinhava o primeiro filho do casal, recém-nascido de apenas um dia de ida-de. Uma xícara de chá aqueceu a conversa possível entre pessoas sem uma língua comum. O bebé feito casulo, embrulhado numa pequena manta, e respectivos pais sentados no chão em volta de um braseiro, é uma das mais afectuosas imagens que, ainda hoje, retenho na memória.

18 Bagan Myanmar

25 Jan 2005

A magia dos templos

Bagan é a mais visitada região de Myanmar. Por causa dos mais de dois mil templos que se espraiam pelas margens do rio Ayeyarwady. Mas havia demasiados turistas nos mais imponentes, elegantes e bem preservados templos, como em Shwezigon ou Ananda. Para deles fugir, segui de bicicleta, sem rumo definido, por caminhos de terra sol-ta. Foi quando um homem me convi-dou a ver umas pinturas efectuadas sobre areia. Estava sentado à porta do minúsculo templo de Tayok Pye, raramente visitado por forasteiros: “cinco ou seis pessoas por dia vêm a Tayok Pye”, disse o artista-vende-dor. O templo parecia um paralele-pípedo sem graça quando o homem apontou para uma escadaria estrei-ta e escura. “O sol põe-se em vinte minutos, podes subir”, sugeriu. Subi e lá fiquei, apreciando a imensidão de templos que pintalgavam a paisa-gem e aguardando o mágico instante em que o sol se escondeu por debai-xo da linha do horizonte.

19 Koh Tao Tailândia

7 Fev 2005

A mentiraDisseram-me que havia uma mentira muito comum entre os viajantes que se deslocam a Koh Tao. Algo que a maioria dos turistas dizia frequentemente e nunca cumpria. Como o brasileiro Fernando, ins-trutor de mergulho que chegou à ilha qua-tro anos atrás, de férias, e de lá não mais saiu. “Amanhã vou embora”, eis a menti-ra. Compreendi. Em Koh Tao, a vida corria prazenteira durante o dia e animada noite dentro. Uma combinação de praias boni-tas, clima ameno e escolas de mergulho de bom nível, e noites acolhedoras em bares montados na areia das praias, com velas e música ao vivo, bebidas baratas, muito namoro e gente bonita. Eis os motivos da popularidade da ilha da “tartaruga”. Tam-bém eu menti, por uns dias.

20 Sipadan, Bornéu Malásia

17 Mar 2005

Os mergulhosDescobri uma nova paixão nesta viagem. Algo que me abriu, passe o lugar-comum, as portas de um novo mundo. O mergu-lho. Em Sipadan, uma ilha ao largo da parte malaia do Bornéu, vivi o auge dessa paixão. Mergulhei com tartarugas e inofensivos tubarões de recife. Avistei enormes barracudas, muitas espécies de exóticas criaturas, como o peixe-cro-codilo, o peixe-leão e o peixe-papagaio e fui ainda presenteado com algo inolvidá-vel. A imagem de três mantas gigantes voando pela imensidão do oceano, até se diluírem completamente nos tons de azul das águas.

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21 Ubud, Bali Indonésia

29 Mar 2005

Cerimónia religiosa

Ubud é um lugar místico. Uma cidade de arquitectura rica, bonita e original. Com muitos templos. Quando lá estive, decorria uma importante cerimónia religiosa num dos mais importantes templos da cidade. Vesti um sarong e entrei no recinto. As mulheres carrega-vam, na cabeça, tabuleiros circulares com oferendas para os espíritos. Eram enormes bandejas com vários níveis de frutas, doces e outros alimentos que não consegui descortinar. Enquanto homens e mulheres lavavam as mãos, o cabelo e a cara, antes de colocarem grãos de arroz na testa, como símbolo de prosperidade, as oferendas eram igualmente “purifica-das” com “água sagrada”. No final, cada mulher recolhia o seu tabuleiro e dirigia-se para casa, para partilhar os alimentos “purificados” com toda a família.

22 Lori Timor-Leste

18 Abr 2005

As criançasAs faces de tez escura, os sorrisos e as gargalhadas espontâneas, os den-tes imaculadamente brancos, os olhos negros que falam sem palavras, tudo é belo nas crianças de Timor-Leste. Até mesmo a vergonha de algumas. Recordo-me de uma pequena ternura que conheci em Baucau, de olhar hi-per-expressivo mas tão envergonhada que não proferiu palavra; de uma jo-vem beldade que fotografei em Abafa-la, com o mais radiante dos sorrisos; e das macacadas, próprias da idade, com que um grupo de crianças me re-cebeu na aldeia de Lorí. Por momen-tos, esqueci-me que estava num dos mais pobres países do planeta.

23 Díli Timor-Leste

21 Abr 2005

A manifestaçãoEstava em Timor-Leste quando decor-ria o mais caricato dos protestos a que já assisti. Uma fila de cruzes, santos, Cristos e Nossas Senhoras delimitava o início da manifestação. Havia faixas com inscrições em tétum, clamando por “justiça” e chamando “ditador” ao primeiro-ministro, Mário Alkatiri. Atrás das faixas e da fila de imagens estavam os manifestantes. Oravam, cantavam e aplaudiam inflamados discursos anti-Alkatiri. Durante vá-rios dias, mantiveram intransitável uma das principais avenidas de Díli. Protestavam contra o facto do Go-verno pretender tornar facultativo o ensino da religião e moral nas escolas. Mas tudo aparentava ter origem numa clara manipulação de consciências. E a confusão de ideias era enorme. Um taxista teve, a propósito, uma elucida-tiva tirada: “O ensino da religião tem que ser obrigatório, senão isto é uma ditadura...”. O protesto foi organizado pela igreja católica.

24 Outback Austrália

10 Mai 2005

O arco-írisO outback australiano é uma região magnífica. Uma área de paisagens secas, brutas e, simultaneamente, de uma beleza ímpar. Foi lá que vivi os momentos mais espectaculares do meu curto périplo pela Oceânia. No topo do Kings Canyon, o olhar al-cançava quilómetros e quilómetros de planícies com escassa vegetação e onde predominavam os tons pastel, avermelhados. Os mesmos tons que encontrei em Uluru, a rocha sagrada do povo Anangu. Quando, ao entar-decer, e após a frustração de uma chuvada fora de época, avistei esse pedaço de pedra que brota da planu-ra do solo, fui presenteado com um momento mágico. Um abraço como-vente. Aquele com que um duplo arco-íris envolveu Uluru.

VOLTA AO MUNDO O BALANÇO 09

NA INTERNET

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VIAGENSSAB29102005 FUGASPÚBLICO

III – América do Sul

Recordo o que escrevi antes de encetar esta odisseia planetária. “Parto com a certeza de deixar

para trás motivos suficientes para o não fazer. Mas um sonho tem a força de trans-formar uma ideia em algo imperativo, inadiável, inquestionável. Aterrorizar-me-ia chegar tarde na vida com a tortura do pensamento: ‘quem me dera ter feito aquela viagem...’”

Ainda bem que parti. Abandonei o con-forto de um sofá, a presença da família e dos amigos, mas hoje, após catorze meses vagueando pelo mundo, nem por um mo-mento me arrependi da decisão tomada. Valeu a pena.

A vida na estrada é estimulante, va-riada e sedutora. A cada passo uma nova experiência, um curioso costume, uma inesperada amizade. A cada esquina um novo sorriso, um distinto sabor, um som apaixonante. A cada nova descoberta, um forte enriquecimento pessoal, satis-fação, felicidade. A cada dia, um novo e diferente dia.

No total, foram catorze meses de emoções fortes e muitas descobertas que terminaram quando, 431 dias depois de ter levantado voo em direcção a Mosco-vo, aterrei no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, vindo de Caracas. Regressara ao ponto de partida, tinha dado a volta ao globo.

Voltei com outros horizontes e enri-quecido com vivências inolvidáveis e um autoconhecimento nunca antes alcança-do. Voltei satisfeito e confiante. E voltei com a reconfortante certeza de saber que, apesar de tudo o que vivi, pouco conheço deste mundo em que habito. Enquanto arquitecto uma próxima viagem, aqui ficam os últimos dos mais marcantes mo-mentos desta volta ao mundo. Aqueles em que calcorreei parte da América do Sul, nos derradeiros meses de viagem.

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O C E A N O P A C Í F I C O

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10 VOLTA AO MUNDO O BALANÇO

A volta ao mundo de Filipe Morato Gomes acaba hoje, com a publicação dos momentos mais marcantes vividos na fase final do seu périplo, na América do Sul. Durante catorze meses, fomos acompanhando as aventuras e desventuras de um viajante solitário, abnegado e sensível, que abandonou o emprego e vendeu o carro para poder realizar o seu grande sonho. Foi uma bela experiência, que o FUGAS teve o prazer e a honra de partilhar com os seus leitores.

NA INTERNET

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25 San Pedro de Atacama

Chile4 Jun 2005

Oásis no deserto

Da janela do autocarro que me trans-portava para o Norte do Chile, as pai-sagens avistadas eram de uma beleza desoladora. Tudo era castanho, quase imutável, triste mas comovente, a su-gerir as imagens da superfície lunar. Por todo o lado, a terra encontrava--se totalmente quebrada em pedaços devido à escassez de água pluvial. Uma das excepções era San Pedro de Atacama, verdadeiro oásis no meio da desolação. Literalmente. San Pedro fica situada numa zona pintalgada de verde, com casas de adobe que conferem um charme especial às suas ruas. O ritmo de vida é lento e preguiçoso, a espelhar o calor abrasador das tardes secas no deserto de Atacama. Um lugar bonito, a convidar a uns dias de relaxamento no trajecto sul-americano de viajantes de todo o mundo.

26 Salar de Uyuni Bolívia

9 Jun 2005

O branco do sal

Depois das tendas circulares dos nó-madas mongóis, do relento no outback australiano e de um sem-número de cabanas de madeira edificadas sobre estacas no Sudeste asiático, dormir num hotel de sal era algo novo que me aguardava na Bolívia. O Hotel Marith, localizado em Atulcha, às portas da planície de sal de Uyuni, foi o escolhido para o efeito. Era simples mas aconchegante. As paredes eram construídas com blocos de sal. Os ban-cos e as mesas também. E a cama, com excepção do colchão, igualmente. O próprio chão era uma camada de sal.

Na zona envolvente, quilómetros e quilómetros de um branco lindo e ofuscante, a perder de vista, na maior planície salgada do planeta. Ao percorrer o salar de Uyuni, senti-me imerso numa monotonia cromática bela e fascinante, naquele que con-sidero um dos locais mais inusitados que tive a oportunidade de trilhar nesta viagem.

27 Uyuni Bolívia

11 Jun 2005

TensãoQuando cheguei a uma pousada na cidade de Uyuni, disseram-me que os bloqueios de estrada, que come-çavam a asfixiar a Bolívia depois de várias semanas sem fornecimento de alimentos e combustível, tinham sido levantados. Rejubilei. Depois de dias de incerteza, podia prosseguir para o Norte do país. Saí da pousada com a decisão de seguir para Potosí no dia seguinte. Na rua, pessoas corriam desvairadas e homens de farda verde ordenavam aos transeuntes que saís-sem dali. Estavam exaltados e agita-vam os braços para que corrêssemos numa direcção específica. Segundos depois, ouviu-se um estrondo brutal. Os de verde eram mineiros e tinham acabado de dinamitar a linha de ca-minho-de-ferro, do outro lado da rua. Seguiram-se momentos de alguma tensão. Seria sensato prosseguir?

28 Potosí Bolívia

13 Jun 2005

Os mineiros do Cerro Rico

Entrei nas minas do Cerro Rico, nos ar-rabaldes de Potosí. Estava muito quente. Uma sinistra quantidade de pó circulava no interior dos túneis, tornando o ar pra-ticamente irrespirável. Um corrupio de ho-mens rastejava, corria, empurrava carros com duas toneladas de pedra e minério, içava cestos com duzentos quilos do mes-mo, martelava cinzéis abrindo buracos na pedra dura e puxava grossos troncos para servirem de sustentáculos das galerias. Tu-do era incrivelmente físico, demolidor. E perigoso. Estávamos a 5000 metros de alti-tude e o simples acto de respirar era difícil. Por todas as razões, quem ali trabalhava sabia que, muito provavelmente, haveria de morrer nas minas ou por causa delas. Mas tinham um ar nobre, aqueles homens. Não inspiravam pena, mas respeito.

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VIAGENSSAB29102005 FUGASPÚBLICO

29 Ilha Taquille Peru

19 Jun 2005

CostumesNa segunda-feira em que che-guei a Taquille, uma ilha lo-calizada na secção peruana do lago Titicaca, era o dia em que toda a comunidade se reunia para discutir os seus problemas. Por esse motivo, os habitantes trajavam a preceito. Todos en-vergavam roupas tradicionais. Os homens, de branco e preto; as mulheres, mais coloridas. Era um cenário belo e genuíno. Roupas feitas pelos próprios, porque os homens e mulheres de Taquille são mestres na tecela-gem. E possuem também outras particularidades interessantes, como, por exemplo, a obrigato-riedade de, antes do casamento, duas pessoas viverem juntas por um período de dois anos para avaliação mútua, embora com a proibição de terem filhos. Sábia precaução. É que, em Taquille, a partir do momento que um casal efective o casamento, o mesmo torna-se irreversível. O divórcio é um conceito que não existe na comunidade.

30 Cuzco Peru

24 Jun 2005

A celebraçãoCheguei a Cuzco na altura em que decorria o Inti Raymi, um tributo ao astro-rei, o criador de todas as coisas para a civilização inca. Era uma semana de desfiles contínuos, uma cidade inteira nas ruas, em festa permanente, numa enorme mobilização colectiva. Um povo or-gulhoso da sua identidade. No final, uma teatralização com centenas de figurantes envergando vestes esplendorosas, copiadas do período inca. Eram estes os condimentos pa-ra o Inti Raymi, a maior celebração popular de Cuzco, uma cidade lin-díssima que os incas construíram com a forma de um puma. O auge das cerimónias teve lugar numa colina onde ainda pontificam as ruínas de Saqsaywaman, a cabeça do puma idealizado pelos incas. Uma teatralização grandiosa, muito solene e de enorme bom gosto. Foi a mais impressionante festividade que presenciei durante os catorze meses de viagem.

31 Machu Picchu Peru

27 Jun 2005

A cidade perdidaAs imagens das ruínas de uma cidade inca rodeada por pináculos esguios, num misto de verde e cinza, vegetação e pedra, são por demais conhecidas de todos. Por tudo ser tão familiar, estava preparado para a desilusão. Enganei-me. A entrada era feita por um local onde, após uns quantos degraus, se avistava Machu Picchu de um ponto de vista superior. Dei por mim completamente rendido, imóvel, perante a magnificência do que os meus olhos obser-vavam. É um lugar arrebatador, mágico, impressionante. Com um senão, apenas: a média diária de visitantes é demasiado ele-vada. Consta, aliás, que o monte onde Ma-chu Picchu foi erigida corre o risco de um colapso. E não creio que a maciça presença de turistas ajude a evitar o que parece ser inevitável. Talvez em breve deixe de ser possível visitar tão inolvidável local.

32 Buenos Aires Argentina

5 Jul 2005

O tangoBuenos Aires é uma cidade excepcional. A par com Pequim, Hanói e Santiago, foi das grandes metrópoles a que mais me surpreendeu. É uma cidade cheia de vida, de gente elegante – pretensiosa, di-rão por todo o resto da Argentina –, com grande animação e oferta cultural. E é também a capital mundial do tango. Dos sons tradicionais de Carlos Gardel. Mas também do electrotango, do narcotango e de outros sons de cariz electrónico que entraram definitivamente no meio mu-sical porteño.

Os sons ouvem-se por todo o lado. Na rua, nas rádios, nas lojas, nos cafés. Estando em Buenos Aires, não há como escapar à poesia de um acordeão. Na verdade, o tango sempre fez parte do quotidiano da capital. Dançar não é coi-sa de gente velha, saudosista de outros tempos. Das ruas do boémio bairro de San Telmo às milongas em caves escuras espalhadas por toda a cidade, passando pelos cafés chiques como o Tortoni, há tango para todos os gostos e bolsas.

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SAB29102005FUGASPÚBLICOVIAGENS

33 Cataratas de Iguaçú Argentina

20 Jul 2005

Maravilha da Natureza

Haverá em todo o mundo um punhado de lugares onde, perante a magnitude do que os seus olhos observam, um ser humano é invadido por uma incontrolável sensa-ção de pequenez. Iguaçú é, seguramente, um desses lugares. A garganta do Diabo e demais quedas de água, o ar carregado de salpicos, a força bruta do rio, o som ininterrupto e poderoso vindo de todos os lados, tudo é deslumbrante nas cataratas de Iguaçú. Defronte de tão majestosa cria-ção, ali estava eu quedo e mudo, olhando a magia branca das águas revoltas e deixando que os grossos salpicos me en-charcassem o corpo e a alma. Estava com-pletamente rendido.

34 Ouro Preto Brasil

30 Jul 2005

Regresso ao passado

Ouro Preto é uma das mais em-blemáticas cidades históricas do estado brasileiro de Minas Gerais. A arquitectura sóbria do seu centro histórico, com ladeiras empedradas e casarios coloniais bem preservados, os telhados, a obra do escultor “Alei-jadinho” espalhada pela localidade e o ambiente boémio e descontraído de uma cidade com muitos estudantes, tudo contribui para o charme de Ouro Preto.

Como sempre aconteceu quando mudava de poiso, não fazia ideia onde iria pernoitar em Ouro Preto. Acabei na república de estudantes Sinago-ga. E assim, apelidado de “Manuel Joaquim Pereira” desde o primeiro instante, pude conviver com o quoti-diano de uma animada república, em dias recheados de música, alegria, noitadas, muita diversão e, claro, algum estudo. Um delicioso regresso aos tempos académicos.

35 Itaúnas, Espírito Santo Brasil

7 Ago 2005

Sem leiFoi na pequena Itaúnas que ouvi a incauta confissão. Estava nas mesas exteriores de um pacato bar da povo-ação, conversando com habitantes locais. Vivia-se a ressaca do mais im-portante festival de forró do Espírito Santo, acontecimento que em muito contribui para o título de capital ca-pixaba do forró que Itaúnas ostenta. Tinham ocorrido inúmeros assaltos durante a semana do festival e a população não estava satisfeita. Prin-cipalmente por saber que alguns dos assaltantes eram filhos da terra. A tal ponto que os habitantes terão decidido tomar em mãos a resolução do proble-ma. “Dois já morreram”, disse-me um dos parceiros de esplanada, antes de acrescentar: “Os outros dois já estão encomendados... em quinze dias”.

36 Amazonas Brasil

2 Set 2005

A viagem de barco

Navegar pelo rio Amazonas num barco de passageiros era algo que, desde há muito, fazia parte do meu imaginário de viajante planetário. Foram apenas três dias de navegação, entre Belém e Santarém, mas o suficiente para perceber estar numa região muito carenciada do Brasil. Reflexo dessa pobreza, ao longo de boa parte do tra-jecto, pirogas com mulheres e crianças de tenra idade aproximavam-se do barco, à sua passagem, na expectativa de lhes serem atirados algum víveres. Roupas, brinquedos, bolachas, o que fosse. Lembro-me de um miúdo numa piroga recolher um saco da água e uma velhota, talvez sua avó, na mesma pi-roga, acenar para o barco agradecendo ao casal que lhes tinha atirado os ví-veres. Havia passageiros que vinham, de facto, preparados com oferendas para essa gente humilde, num acto de genuína solidariedade. Depois do que vi, peguei em duas t-shirts novas que me tinham oferecido em Belém. Estão agora, provavelmente, no corpo de uma dessas criança da Amazónia.

VOLTA AO MUNDO O BALANÇO 13

Hospitalidade globalSou, desde há vários anos, mem-bro activo do Hospitality Club (www.hospitalityclub.org), uma rede de viajantes dispostos a ajudar outros viajantes, nomea-damente facultando, dentro das possibilidades de cada um, aloja-mento nas suas próprias habita-ções. Uma rede que funciona na base da confiança mútua e que, pela sua natureza, proporciona um estreito contacto com a vida e hábitos locais (por oposição à estadia num hotel), enriquecendo sobremaneira as experiências de viagem. Durante esta volta ao mundo, beneficiei da hospitalida-de desinteressada de membros em Moscovo, Pequim, Singapura, Darwin, Sydney, Santiago e La Serena. Uma forma diferente de conhecer as urbes do planeta.

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Podes ver todas as crónicas da minha primeira volta ao mundo com 14 meses de duração, efetuada em 2004/05, no Alma de Viajante. Conhece ainda o livro homónimo, resultado da volta ao mundo:

Antes de te despedires, aproveita para seguir as minhas viagens mais de perto.

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