hvmanitas- vol. l (1998) · paga de que crime, que não cometi. não. a mãe não pode: não deve...
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HVMANITAS- Vol. L (1998)
A ACÁCIA DO QUINTAL {Melodia com Forma de Teatro declamado)
CARLOS TOMáS CEBOLA
Cenário:
Sala de um solar provinciano com mobiliário e decorações antigas. Entradas àE. eD. altas. Uma janela, ao fundo, para o quintal. Um relógio de sala, em lugar bem visível. Lareira acesa. Trade de Janeiro no Alentejo.
Longe, ouvem-se os trovões de uma tempestade que vai acompanhar quase toda a representação.
Mariana — (Num cadeirão, frente à lareira, lê com pouca atenção. De vem em quando
parece que vai falar mas volta, sempre, à leitura.)
Fernanda — (De pé, junto da janela, olhando, absorta, para fora.)
UM SILÊNCIO
Fernanda — Já chove.
Mar iana — (Fecha o livro) - Senta-te, minha filha. Faz-me nervos o ver-te, de
pé, todo o santo dia, olhando por essa janela, como se quisesses descobrir
alguma coisa, no escuro, que vai lá fora.
Fernanda —Não tem importância, mãe. Não se preocupe comigo.
Mar iana - Bem quisera! Bem quisera eu não preocupar-me mas, sou como tu,
não achas? Somos ambas mulheres: duas mulheres na mesma situação.
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Ε eu melhor do que tu posso avaliá-la. Os anos que, a mais, já passaram
por mim, não foram bastantes para que deixe de preocupar-me. Talvez,
por isso mesmo... Sim. Talvez, até, por isso mesmo me inquieto mais
ainda.
Fernanda — O mãe, por amor de Deus, estamos a martirizar-nos sem
necessidade alguma. Se alguém suspeitasse, diria que sofremos porque,
gostamos de sofrer. A mãe não está, já, em idade de...
Mariana — Acredito. Mas tu é que, não tens, ainda, com certeza, idade para
tal.
Fernanda - Que quer dizer?
Mariana — Senta-te. Aqui. Aqui, nesta cadeira perto de mim.
Fernanda — {Executa)
Mariana—Talvez a ocasião não seja a melhor mas tudo parece ter-se conjugado
para que tivéssemos, hoje, uma conversa. A hora, o fazer de noite,
terrivelmente cedo, a trovoada que se aproxima, o dia... Enfim... Ao
mesmo tempo penso, e Deus me perdoe, se não será um pecado...
{noutro tom) Ouve.
Fernanda — Estou a ouvi-la, mãe.
Mariana - Tu chamas-me mãe e eu quero-te como se eu fosse, de verdade.
Agora, porém, falo-te, apenas, como mulher. Uma mulher que muito
sofreu e que sabe bem o que é uma vida inteira de luto e dor.
Fernanda — Desconheço-a, mãe. Palavra!
Mariana - É natural. Viste em mim sempre alguém diferente. Primeiro, a mãe
do teu marido: a tua sogra. Depois, de há cinco anos para cá...
Fernanda — {Ergue-se, nervosa e volta à janela) - Completam-se, hoje,
precisamente cinco anos que o José morreu.
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Mariana — (Continuando)... De então para cá, tens visto em mim uma pobre
alma queimada pela dor e esqueceste que esta a quem chamas mãe é, no
fundo, uma mulher igual a ti. Igual a todas as mulheres.
Fernanda — Mas, eu...
Mariana - Escuta, minha filha. No dia em que se te abriu a porta para a vida,
um destino cruel fechou-a no mesmo instante. A vida tem destas coisas.
Faz-nos subir uma escada íngreme com a esperança de que vamos ao
encontro da felicidade e, quando nos falta, apenas, um último degrau,
quebra-nos as pernas e atira connosco para o fundo. Procedeu assim
contigo e já, assim, havia procedido comigo.
Fernanda - Com uma diferença!
Mariana —Tens razão. Desculpa. Com uma grande diferença. A mim deixou-
-me um filho para quem continuei a viver. Mas a ti... Tu ficaste só,
cheia de crepes a amortalhar-te a alma, numa idade em que não tinhas
sentido, ainda, o prazer que é a vida. Uma grande diferença! Tão grande
que, a mim mesma, parece um absurdo. Ε é por isso que desejo falar-te
de mulher para mulher.
Fernanda -Não. A mãe, certamente, não vai dizer-me que... Não.
Mariana - {Erguendo-sé) — Sim. Não tens o direito de renunciar à vida. És
nova, jovem e não deste, ainda, ao mundo, aquele pouco de felicidade
que todos temos a obrigação de dar-lhe. Podes fazer, ainda, o céu de
alguma alma. Foi para isso que Deus nos mandou cá. Foi para isso que
Deus criou a mulher. Se renunciares, a tua passagem pela vida terá sido
inútil. Ainda não deste à vida aquele mínimo que a vida exige de ti.
Fernanda — (Suplicante) - Por amor de Deus, não vê que me martiriza? Não
sente que está dilacerando a sua própria alma? Por que me fala assim?
Ε verdade que sou nova: tenho vinte e quatro anos e sou viúva há cinco.
Não vivi, eu sei, a mais ínfima parcela da vida que sonhei, mas também
é verdade que não posso desafiar o meu destino: não posso erguer-me
contra o céu para gritar-lhe a injustiça com que me puniu, não sei em
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paga de que crime, que não cometi. Não. A mãe não pode: não deve
falar-me, assim.
Mariana — Eu sei. Eu sei que o melhor de ti, avaramente, o guardaste para o
teu lar. Eu sei da enorme dor que, há cinco anos, cobriu de luto a tua
existência. Sei da saudade funda que se cravou em nossos corações e
tem vivido, dentro desta casa. Mas sei, também, quanto custa a morte
do maior e mais belo sonho da alma. Sei quanto é dura uma vida inteira
agrilhoada a uma recordação e sei quanto dói aquilo que tu náo sabes,
ainda, até porque, um dia que Deus me leve, não terás a quem dedicar-
te mais. Tens vivido para a memória de um ausente, de um que foi para
não mais voltar, mas é altura de começares a pensar em ti. Tu é que
ainda vives. Tu és quem tem de viver, {noutro tom) — Vem comigo.
Fernanda —Aonde me leva?
Mariana — Só até à janela. Vem. {Pequenapausa) — Foi há muitos anos. Era o
teu marido uma criança e ela uma árvore nova, em pleno
desenvolvimento {aponta para fora) — Aquela acácia. Numa tarde de
Maio, estava ela toda vestida de oiro, surgiu, de repente, a tempestade.
Um raio desgarrado rachou-a de alto a baixo. Ficou de meter dó, a pobre.
Meu marido quis arrancar o que ficara, pois pensámos que não voltaria
a ser acácia. Não deixei. Era a minha árvore: fora eu quem a plantara na
minha juventude e se me doía o coração vê-la, assim, creio que maior
seria o meu desgosto se ela desaparecesse, de vez. Ali ficou: e vê tu,
minha filha, que árvore se fez. Cresceu, cresceu de novo, estendeu os
ramos, cobriu-se de folhas e, todos os anos, se veste de flores odorosas
e doiradas, na Primavera.
Fernanda — Mas...
Mariana—Ε a vida. Esta força, que mora em todos nós e não podemos destruir.
Quando te vejo, junto desta janela, olhando não sei que invisível
paisagem, sinto que não tenho o direito de ocultar-te, por mais tempo,
esta verdade.
Fernanda - {Tomando-lhe as mãos) — O minha mãe!
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PAUSA
Padre Miguel - (Entrando) — Apaz do Senhor esteja convosco, minhas filhas.
Fernanda - Senhor Padre Miguel!
Mariana — Entre, entre, senhor Padre Miguel.
Padre Miguel — Desculpa lá, Mariana, mas entrei pela cozinha, para deixar o
meu capote ao lume. A boa da Rosa lá ficou a ver se ele enxuga. Que
tarde, Santo Deus.
Fernanda — Que noite, quer o senhor dizer! Que noite, senhor Padre Miguel.
Padre Miguel — Tens razão, tens toda a razão, minha filha. Ε noite fechada e
ainda não deram as seis da tarde. Mas eu tenho de sentar-me. Com
licença. (Senta-se) — Que tempo, que tempo este. Saí de casa para ver
aquele pobre que vive, ali, na encosta do monte e se me descuido um
pouco mais a trovoada apanhava-me no caminho.
Fernanda — Ε como está ele?
Mariana — (Vai sair pela D.) — Deixe-se estar, senhor Padre Miguel. Eu vou à
cozinha dizer à Rosa para lhe arranjar um cafezinho. Bem quente!
Padre Miguel — Sempre a mesma, esta Mariana! (a Fernanda) — Que dizias tu,
minha filha?
Fernanda — Como está o seu doente?
Padre Miguel—Mal. Muito mal. Ali, só há a esperar que Deus tenha dó daquela
pobre alma e a chame a Si. Coitado! Para ali está amortalhado entre
dois cobertores esfarrapados, a gemer todo o santo dia e a contar as
horas de todas as noites. Como deve sofrer!
Fernanda — Ε a mulher? Que diz ela?
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Padre Miguel - Que há-dé ela dizer? O nosso doutor, na última vez que lá
esteve, tirou-lhe todas as esperanças.
Fernanda — Ε com os filhos, ainda, tão pequenos. A vida é muito dura para os
infelizes.
Padre Miguel—Ε. O que é preciso é não nos deixarmos vencer pela infelicidade.
Nunca. O oiro experimenta-se pelo fogo e o homem experimenta-se
pelo oiro... ou pela falta dele. No caso presente pela saúde. Vê tu, minha
filha, que insípido seria este mundo sem heróis. Era tudo vulgar. Era
tudo, terrivelmente vulgar, sem os que lutam contra a adversidade, sem
aqueles que se não conformam com a sua sorte, sem tantos e tantas, que
se erguem, na grandeza da sua pequenez e gritam por um pouco mais de
vida, um pouco mais de paz, um pouco mais de amor. E, até, de saúde.
Fernanda — Mas, a vida...
Padre Miguel — A vida é toda ela uma luta constante, cujo maior valor está,
precisamente, em saber sorrir quando um sonho morre, em saber
transformar a derrota num incentivo, em saber, enfim, continuar a amar
quando tudo parece ter-se levantado contra nós. Aqui é que reside a
grandeza dos heróis. E, só, por isso, é que vale a pena viver. Renunciar
à luta é sucumbir à dor e, como dizia um antigo sábio, o mais infeliz
dos homens é aquele que não sabe suportar a desgraça. (Um silêncio)
— Parece que ficaste preocupada com as minhas palavras!
Fernanda — Preocupada, não; mas eu pensava que...
Padre Miguel — Que pensavas tu?
Fernanda — (Tentando um sorriso) —Nada de importante, senhor Padre Miguel.
Nada que...
Mariana - (Regressando) - Pronto. Aqui tem o seu cafezinho. O açúcar, uma
colher, um copo e esta garrafa. (Censurando) — Isto é que lhe faz mal.
Não está em idade de andar a provar, sequer, estas bebidas, que só fazem
mal. Depois, é a tosse, é o estômago, é o fígado: é tudo.
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Padre Miguel — {Bonacheirão) — Deixa lá, Mariana. Deusprovidebitl
Mariana— Pois sim. Ouço essa conversa todas as tardes. Não sei latim, mas
pode apostar que sei perfeitamente o que as palavras querem dizer. (Vai
à janela) — Ε noite fechada: daqui a pouco estamos às escuras. (Chama
para fora) — Rosa! O Rosa!
Rosa — (De fora) — Lá vou, minha senhora.
Mariana — Olha: traz um candeeiro, filha. Já quase não se vê.
PEQUENA PAUSA
Rosa — (Entrando com um candeeiro, tira os fósforos do bolso do avental e acende)
— Pronto, minha senhora: aqui tem a luz.
Fernanda — Continua a chover, Rosa.
Rosa — Se chove! É um dilúvio, menina! Ε os relâmpagos? Ε os trovões?
(Ouve-se um trovão mais forte) - Santa Bárbara bendita. São pegados uns
nos outros: até parece que o céu vem por aí abaixo.
Padre Miguel — O que para aí vai, rapariga.
Rosa — Deus me perdoe, senhor Padre Miguel, mas, há muitos anos que me
não sentia como hoje: parece que tenho medo. Sei lá de quê! Medo de
qualquer coisa! Não sei que seja. Coisas de velha, com certeza. Isto, às
vezes, já não regula lá muito bem.
Padre Miguel — Ora, ora. Aposto que nos hás-de enterrar a todos. Bem: a
todos, é como quem diz: à senhora D. Mariana e a mim, porque a senhora
D. Fernanda está, ainda, no princípio da vida. Não é verdade, Mariana?
(A TROVOADA É MAIS FORTE)
Rosa - (Rezando) - Santa Bárbara bendita/que no céu está escrita/com um
raminho de água benta/nos livre desta tormenta... Posso levar esta
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chávena? Com sua licença... {Saindopara a cozinha)... Ε a leve lá para
bem longe/Onde não haja pão nem vinho/nem mulher com seu filhinho/
nem...
UM SILÊNCIO
O relógio bate as seis da tarde
Mariana - Quantas?
Fernanda —Seis.
Mariana - {Erguendo-se, brusca) — Seis? Seis horas?
Padre Miguel - Que tens tu, Mariana?
Mariana — {Ausente) — Vocês ouviram? {Normal) — Desculpem. Não façam
caso. Se eu contasse, chamar-me-iam louca e com razão. Desculpem.
Desculpem mas a verdade é que...
UM TROVÃO MAIS FORTE
Uma porta bate lá fora
Mariana - Ouviram? Vocês ouviram, agora? Bendito seja Deus.
Ele — {Abre, violentamente, a porta, meio escondida, à D. B. e irrompe pela sala,
escorrendo água)—Boas noites! Não sei como pedir perdão para tamanha
ousadia, mas...
Fernanda — Mas que é isto? Quem é o senhor?
Ele - Minha senhora, já implorei desculpas e se me der licença...
Mariana — {Calma) — Não diga nada. Não é preciso. {Chama para fora) — Rosa,
ó Rosa, vem depressa. {Para Ele) —Tire essa roupa. Como vem molhado!
Deus queira não lhe faça mal. Tire, tire. Eu ajudo.
Ele - Não sei como agradecer tanta bondade.
A ACÁCIA DO QUINTAL 1123
Mariana — Rosa {Noutro tom) —Aquela rapariga nunca mais aparece. Desculpe e sente-se, por favor.
Ele — Minha senhora, eu...
Mariana — Sente-se. Esteja à vontade. Vou eu mesma dizer à Rosa que estenda a sua gabardina e o chapéu, junto do lume, e lhe traga uma bebida bem quente. Como está molhado! Pode ser um cafezinho? O Senhor Padre Miguel...
Ele — (Cumprimentando) — Como está, senhor Padre?
Mariana — Dizia eu que o senhor Padre Miguel oferece-lhe, com certeza, um
cálice daquela bebida horrorosa com que sempre acompanha o café.
Padre Miguel — Sem dúvida.
Mariana - (A Fernanda) - Minha filha, leva tu estas coisas para a cozinha. Aquela rapariga nunca tem pressa. Ε não te esqueças do cafezinho bem quente.
Fernanda — (Sem compreender, aceita a gabardina e o chapéu e sai)
Ele — Minha senhora, eu confesso que não sei...
Mariana — Eu sei. Acredite que eu sei.
Padre Miguel — (Interrompendo) — Mariana, deixa falar este senhor. Ele ainda não disse coisa alguma, porque estás sempre a interromper, e tu afirmas e repetes, sempre, que já sabes. Que sabes tu? Que podes tu saber?
Ele - O senhor padre tem razão. Deixe que lhe diga, minha senhora, que...
Fernanda — (Entrando) —A Rosa vem já.
Ele — Pois, deixe que lhe diga, minha senhora, o motivo desta visita forçada
de um desconhecido. A trovoada que, felizmente, vai passando,
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surpreendeu-me a alguns quilómetros daqui. A chuva, a noite, que caiu tão cedo, e as estradas, que não conhecia, desviaram-me do meu caminho. Aqui, muito perto, numa curva fechada...
Mariana — Aquela curva fatídica.
Ele — Pois... numa curva fechada, da estrada lamacenta, o carro deslizou e fugiu ao meu controlo. Saiu da estrada e lá ficou encostado a um sobreiro grande. Vi-me perdido. Avancei, quase às apalpadelas, procurando um abrigo. Vi luz e....
Padre Miguel—Devo ter deixado o portão aberto, quando entrei mas, tal como o senhor, também eu vinha fugindo da chuva.
Ele — O portão? Vossa reverência desculpe, mas eu não entrei por portão
algum.
Fernanda — Como? Não veio pelo portão? Saltou o muro? Impossível. Está a ouvir, mãe?
Ele — Também não saltei um muro. Não conseguiria fazê-lo, se o tentasse. Valeu-me uma pequena porta, que só por acaso se me deparou e, por milagre, estava aberta.
Fernanda — (Num grito) — Como pode ser isso?
Ele — Para mim, foi milagre.
Padre Miguel — Deus me perdoe, se me atrevo a negá-lo.
Mariana — (Sem os olhar) — Faz hoje cinco anos. Estava uma tarde, assim, e tinham batido as seis horas. Nesta sala as mesmas pessoas que encontrou.
Fernanda —Mãe!
Padre Miguel — Mariana, para quê lembrar o que nenhum de nós esqueceu?
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Mariana — {Sem os ouvir) —A mesa estava posta: quatro talheres para o jantar.
Esperávamos o meu filho. Ele veio, mas já não jantou. Naquela mesma
curva também o carro lhe fugiu da estrada e foi de encontro ao mesmo
sobreiro grande. Com o estrondo de um trovão, ninguém ouviu outra
coisa. Não se sabe como, ele saiu do carro. Na sua frente viu a mesma
porta. Quis abri-la e não o conseguiu. Havia anos, muitos anos, que
aquela porta se não abria. Num último esforço, ele deve ter tentado mas
o fecho, corroído pela ferrugem, não cedeu. As forças fugiram-lhe,
certamente, e ele caiu, ali, agarrado àquela porta, como se estivesse
agarrado à derradeira esperança, que o prendia à vida.
Padre Miguel — Então, Mariana!
Mariana — Se a porta estivesse aberta talvez ele morresse, assim mesmo. O
choque foi por demais violento. Mas nós teríamos tentado tudo para o
salvar, porque ele teria chegado vivo até nós. (UMSILÊNCIO) —Nesse
mesmo dia, não o disse a ninguém, mas jurei a mim mesma que, nunca
mais, aquela porta se havia de fechar. Por ela estar fechada, o meu filho
morrera. Só. A partir de então, dia e noite, ela ficaria aberta para que,
em qualquer momento, pudesse acolher e salvar, se possível, quem a
ela se chegasse. Ε eu sabia. Sim. Eu sabia. Era o meu segredo. O coração
adivinhava que, mais cedo ou mais tarde, isto havia de acontecer.
Ele — Beijo-lhe as mãos, senhora, e agradeço ao Céu o ter-me proporcionado
ocasião de conhecer uma alma tão grande, como a sua. Sinto,
profundamente, o seu desgosto mas, ao mesmo tempo, felicito-me por
ter sido eu quem tornou realidade o maior anseio do seu coração
generoso.
Padre Miguel - Deus te abençoe, Mariana.
Fernanda — O seu filho, lá no Céu, terá sentido orgulho de ter sido seu filho.
Mariana - Ε teu marido, minha filha. {Abraçam-se)
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UM ÚLTIMO TROVÃO. JÁ LONGE
Ele —E... agora, se me dão licença e me indicarem o caminho, eu...
Mariana—Não. Foi o céu, foi o meu filho que o enviou. Não posso deixar que
se vá, tal como chegou.
Padre Miguel — Só para ver tudo isto, já valeu a pena viver.
Ele — Não sei como agradecer-lhe, confesso. (Aos outros) — Ajudem-me, por favor.
Fernanda - Fique.
Ele — A trovoada parece que passou e eu podia... (Espreita à janela) — Curioso! A trovoada, como disse, deve estar longe, já, e no entanto, através desta janela quase se não vê uma nesga de céu. Há, aqui, em frente...
Fernanda - Uma acácia. A acácia do quintal. A acácia que, certa tarde, um
raio partiu de alto a baixo, mas que, todos os anos, continua a vestir-se
de folhas e a enfeitar-se de flores, na Primavera.
Mariana — Fica, não é verdade?
Padre Miguel — Claro, que fica. E, até, se me é permitido dizer alguma coisa
mais, que sejam, apenas, as palavras daquele Pai de que fala a parábola:
"Convém fazer festa e estar alegre", porque, hoje, por aquela porta (gesto
vago) salvaram-se duas vidas.
Mariana — (Misteriosa) — Foi isso. Foi isso. (Chama para fora) Rosa, O Rosa! (Noutro tom) Eu vou tratar de tudo. Eu vou. Haverá de novo quatro talheres na mesa mas, hoje... (saindo) Hoje, voltaremos a ser quatro para jantar.
FIM