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texto para estudos de metodos em sociologia

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  • HOWARD S. BECKER

    FALANDODASOCIEDADE

    ENSAIOS SOBRE AS DIFERENTES MANEIRASDE REPRESENTAR O SOCIAL

    Traduo:Maria Luiza X. de A. Borges

    Consultoria tcnica:Karina Kuschnir

    IFCS/UFRJ

  • memria de Michle de la Pradelle, Dwight Conquergood,Alain Pessin e Eliot Freidson, amigos e intelectuais.

  • Sumrio

    Prefcio

    PARTE 1 | IDEIAS1. Falando da sociedade2. Representaes da sociedade como produtos organizacionais3. Quem faz o qu?4. O trabalho dos usurios5. Padronizao e inovao6. O resumo dos detalhes7. A esttica da realidade8. A moralidade da representao

    PARTE 2 | EXEMPLOS9. Parbolas, tipos ideais e modelos matemticos10. Diagramas: pensar com desenhos11. Sociologia visual, fotografia documental e fotojornalismo12. Drama e multivocalidade: Shaw, Churchill e Shawn13. Goffman, linguagem e a estratgia comparativa14. Jane Austen: o romance como anlise social15. Os experimentos de Georges Perec em descrio social16. Italo Calvino, urbanologista

    Eplogo: Finalmente...NotasReferncias bibliogrficasCrdito das ilustraesAgradecimentosndice remissivo

  • 2. Representaes da sociedade como produtos organizacionais

    As pessoas que coletam fatos sobre a sociedade e os interpretam no comeam do zero a cada relatoque fazem. Usam formas, mtodos e ideias que algum grupo social, grande ou pequeno, j tem suadisposio como uma maneira de fazer esse trabalho.

    Relatos sobre a sociedade (lembre-se de que representao e relato referem-se mesma coisa)fazem mais sentido quando os vemos num contexto organizacional, como maneiras pelas quaisalgumas pessoas contam o que pensam saber para outras pessoas que querem saber, como atividadesorganizadas, moldadas pelos esforos conjuntos de todos os envolvidos. um erro que geraconfuses enfatizar substantivos em lugar de verbos, objetos em lugar de atividades, como seinvestigssemos tabelas, diagramas, etnografias ou filmes. Faz mais sentido ver esses artefatos comoos restos congelados da ao coletiva, reanimados sempre que algum os emprega como pessoasque fazem e leem diagramas ou prosa, fazem e assistem a filmes. Deveramos compreender aexpresso um filme como uma abreviatura para a atividade de fazer um filme ou ver um filme.

    Essa uma distino relevante. A concentrao no objeto desvia nossa ateno para ascapacidades formais e tcnicas de um meio: quantos bits de informao uma tela de televiso comdeterminado grau de resoluo pode transmitir? Um meio puramente visual pode comunicar noeslgicas como causalidade. A concentrao na atividade organizada, por outro lado, mostra queaquilo que um meio pode fazer est sempre em funo do modo como as limitaes organizacionaisafetam seu uso. O que as fotografias podem transmitir depende em parte do oramento do projetofotogrfico, que limita quantas fotos podem ser tiradas e como elas podem ser exibidas, quantodinheiro ser gasto com elas (em outras palavras, quanto tempo de fotgrafo ser pago), e daquantidade e do tipo de ateno que os observadores dedicaro sua interpretao.

    Encarar relatos sobre sociedade do ponto de vista organizacional significa introduzir na anlisetodos os aspectos das organizaes em que eles so feitos: estruturas burocrticas, oramentos,cdigos profissionais, caractersticas e aptides do pblico tudo isso tem um efeito importante nofalar sobre a sociedade. Trabalhadores decidem como fazer representaes vendo o que possvel,lgico, exequvel e desejvel, dadas as condies sob as quais as realizam e as pessoas para quemas expem.

    Faz sentido falar, numa analogia grosseira com a ideia de um mundo da arte,1 de mundos deprodutores e usurios de representaes: os mundos do filme documentrio ou dos grficosestatsticos, da modelagem matemtica ou das monografias antropolgicas. Esses mundos consistemem todas as pessoas e artefatos cujas atividades de produo e uso centram-se num tipo particular derepresentao: todos os cartgrafos, cientistas, coletores de dados, impressores, desenhistas,corporaes, departamentos de geografia, pilotos, capites de navio, motoristas e pedestres cujacooperao torna possvel um mundo de mapas, por exemplo.

    Esses mundos diferem no conhecimento e no poder relativos de produtores e usurios. Em mundosaltamente profissionalizados, os profissionais fazem artefatos sobretudo para uso por parte de outrosprofissionais: pesquisadores cientficos elaboram seus relatrios e registros para colegas que sabemtanto (ou quase tanto) sobre o trabalho quanto eles.2 No caso extremo, produtores e usurios so asmesmas pessoas uma situao praticamente realizada em mundos to esotricos quanto o damodelagem matemtica.

  • Membros de mundos mais diferenciados em geral partilham de algum conhecimento bsico, apesardas diferenas em seu trabalho efetivo. por isso que estudantes de sociologia que jamais sededicaro ao trabalho estatstico aprendem as mais modernas verses da anlise estatstica demltiplas variveis. Outros profissionais, no entanto, fazem grande parte de seu trabalho parausurios leigos: cartgrafos traam mapas para motoristas que s sabem de cartografia o bastantepara chegar prxima cidade, e cineastas fazem filmes para pessoas que nunca ouviram falar dejump cut. (Claro que esses profissionais em geral se preocupam tambm com o que seus paresprofissionais pensaro de seu trabalho.) Leigos contam histrias, fazem mapas e anotam nmeros unspara os outros tambm. O que feito, comunicado e compreendido varia entre essas modalidadestpicas de contextos.

    Isso torna intil falar abstratamente de meios ou formas, embora eu j o tenha feito e v continuar afaz-lo. Termos abstratos como filme ou tabela estatstica no apenas demandam verbos de aocomo fazer e ver para ter sentido, como so tambm a abreviatura para formulaes mais especficascontextualmente, como tabelas feitas para o censo ou longas-metragens de grande oramento feitosem Hollywood. As limitaes organizacionais do censo e de Hollywood so mais bem concebidascomo partes integrantes dos artefatos produzidos nesses lugares. Assim, meu foco difere de outromais comum e convencional, que trata o artefato como a coisa principal, e as atividades pelas quaisele produzido e consumido como secundrias.

    A forma e o contedo das representaes variam porque as organizaes sociais variam.Organizaes sociais moldam no apenas o que feito, mas tambm o que os usurios querem que asrepresentaes faam, que trabalho consideram necessrio (como encontrar o caminho para a casa doseu amigo ou saber quais so as ltimas descobertas em seu campo) e que padres usaro para julg-lo. Como os trabalhos que os usurios querem que as representaes faam dependem to fortementede definies organizacionais, no estou preocupado com o que muitos pensam ser um importanteproblema metodolgico (de fato, o problema): dado um trabalho representacional particular a serfeito, qual a melhor maneira de faz-lo? Se esta fosse a questo, poderamos estabelecer uma tarefa comunicar uma srie de nmeros, por exemplo e depois ver qual modo de organizar uma tabelaou um diagrama comunicaria essa informao de maneira mais fiel, adequada e eficiente (assim comocomparamos computadores observando com que rapidez conseguem encontrar nmeros primos).

    Evitei julgamentos sobre a adequao de qualquer modo de representao, sem tomar qualquer umdeles como o padro de comparao em relao ao qual todos os outros mtodos deveriam serjulgados. Nem adotei a posio ligeiramente mais relativista segundo a qual, embora os trabalhos afazer possam diferir, h uma maneira melhor de fazer cada tipo de trabalho. Isso tampouco umascetismo relativstico da minha parte. Parece mais til, mais favorvel a uma nova compreenso dasrepresentaes, pensar em todos os modos de representar a realidade social como perfeitos... paraalguma coisa. A questo : para que alguma coisa boa? A resposta para isto organizacional: umavez que a organizao dessa rea da vida social tenha feito um (ou mais) trabalhos, a representaodeve fazer aquele(s) que precisa(m) ser realizado(s), e tanto usurios quanto produtores julgarocada mtodo segundo sua eficincia e confiabilidade na produo do resultado mais satisfatrio ou talvez apenas de um resultado menos insatisfatrio que as outras possibilidades disponveis.

    Apesar de diferenas superficiais entre gneros e meios, os mesmos problemas fundamentaisocorrem em todos eles. A influncia de oramentos, o papel da profissionalizao, que conhecimentoos pblicos devem ter para que uma representao seja eficaz, o que eticamente permitido ao sefazer uma representao tudo isso comum a todas as formas de construo de representao. Omodo como esses problemas so enfrentados varia de acordo com recursos organizacionais e

  • objetivos.Essas questes so debatidas em todos os campos que representam. Romancistas preocupam-se

    com os mesmos dilemas ticos que socilogos e antroplogos, e cineastas partilham a preocupaodos cientistas sociais com os oramentos. A literatura relativa a esses debates e observaes eentrevistas informais nesses campos proporcionaram-me uma grande quantidade de dados.Considerei tambm muito teis trabalhos na sociologia da cincia voltados para problemas derepresentao e retrica.3

    Transformaes

    Os cientistas, como Bruno Latour os descreve, transformam continuamente seus materiais. Comeamcom uma observao no laboratrio ou no campo e transformam isso em matria escrita num caderno;depois transformam essas anotaes em tabela, a tabela em diagrama, o diagrama em concluso, aconcluso no ttulo de um artigo. A cada passo, a observao se torna mais abstrata, mais divorciadada concretude de seu contexto original. Latour mostra, numa descrio de especialistas em manejo desolo franceses que trabalham no Brasil, como essas transformaes ocorrem:4 um torro se torna umaevidncia cientfica quando o pesquisador o coloca numa caixa e o integra a uma srie de torressimilares, comparveis, de outras partes do terreno sob estudo. este, diz Latour, o trabalho dacincia: transformar objetos de modo que possam ser usados para mostrar ou demonstrar aquilode que o cientista quer convencer os outros.

    Os pesquisadores efetuam essas transformaes de maneiras padronizadas, empregandoinstrumentos tpicos para realizar operaes tpicas sobre materiais tpicos e relatar os resultadossob formas padronizadas, destinadas a dar aos usurios aquilo de que precisam para julgar as ideiasapresentadas, sem os sobrecarregar com outros materiais de que no precisam. O que preciso estabelecido por conveno. Precisamos de tudo que responda a possveis questes e de nadarelacionado ao que ningum questionar. Podemos procurar operaes semelhantes na elaborao detodo tipo de representao da vida social. Com que matrias-primas o produtor comear? A quetransformaes ele submeter os materiais?

    Latour diz que o destino de um argumento ou achado cientfico est sempre nas mos de usuriosposteriores: eles decidem se ser rejeitado ou acatado e incorporado ao corpo de fatos aceitos portodos nessa cincia.5 sempre uma questo relevante quais usurios tomam essas importantesdecises.

    Em alguns mundos a representao logo deixa o mundo interno dos produtores, especialistas econhecedores e penetra mundos leigos, nos quais aquilo que os usurios fazem dos objetos pode serconsideravelmente diferente do que os produtores pretendiam. Estes tentam controlar o que osusurios fazem de suas representaes, introduzindo nelas restries que limitam os usos einterpretaes possveis por parte dos observadores. Mas os autores frequentemente passam pelaestranha experincia de ouvir os leitores explicarem que sua obra significa algo que eles seesforaram enormemente para impedir que significasse.

    Aqui est uma lista de perguntas interessantes a fazer sobre as transformaes pelas quais osmateriais passam nas mos de produtores e usurios em qualquer mundo representacional:

    Que rota o objeto segue depois que deixa os produtores originais? Que fazem dele as pessoas em cujas mos ele cai em cada estgio? Para que elas precisam dele ou o querem?

  • Que equipamento elas tm para interpret-lo? Que elementos, incorporados no objeto, restringem a observao e a interpretao? Como os produtores interceptam interpretaes alternativas? Como eles impedem os usurios de fazer isto ou aquilo com ele? Latour diz que um fato cientfico uma afirmao que resistiu a testes que tentaram negar sua existncia.6 Quem aplica quais testes a

    representaes da sociedade? Em que arenas tpicas de testagem as representaes so apresentadas (revistas, teatros etc.), e onde as pessoas interessadas em ver

    se elas so verdadeiras as testam?

    A feitura de representaes

    Qualquer representao da realidade social um filme documentrio, um estudo demogrfico, umromance realista necessariamente parcial, menos do que experimentaramos e teramos nossadisposio para interpretar se estivssemos no contexto real que ela representa. Afinal, por issoque se fazem representaes: para relatar apenas aquilo de que os usurios precisam para realizar oque quer que queiram fazer. Uma representao eficiente nos diz tudo que precisamos saber paranossos objetivos, sem perder tempo com aquilo de que no precisamos. Como todos esperam queesses artefatos sejam assim adequados, produtores e usurios de representaes devem realizarvrias operaes sobre a realidade que experimentam para obter a compreenso final que queremcomunicar. A organizao social afeta a feitura e o uso da representao ao afetar o modo como osprodutores levam a cabo essas operaes.

    SELEO: Cada meio, em qualquer de seus empregos convencionais, exclui grande parte da realidade,de fato a maior parte. Mesmo os meios que parecem mais abrangentes que as palavras e os nmerosabstratos de que os cientistas sociais costumam lanar mo deixam praticamente tudo de fora. Filme(imvel ou mvel) e vdeo excluem a terceira dimenso, os cheiros e as sensaes tteis, e soinevitavelmente pequenas amostras do intervalo de tempo durante o qual os eventos representadostiveram lugar (embora o filme de Andy Warhol Empire State durasse as oito horas completas doevento que retratava uma pessoa dormindo). Representaes escritas em geral, mas nonecessariamente, omitem todos os elementos visuais da experincia (os leitores ainda ficamsurpresos quando um romancista como W.G. Seybald incorpora fotografias sua histria). 7 Todomeio exclui tudo que ocorre depois que cessamos nossas atividades representacionais. Ele descreveo que ocorre at certo momento, e depois para. Alguns socilogos salientam que as representaesnumricas deixam de fora o elemento humano, ou as emoes, ou o significado simbolicamentenegociado esses estudiosos recorrem ao critrio da completude para criticar um trabalho de queno gostam. Mas ningum, nem usurios nem produtores, jamais considera a incompletude em simesma um crime. Em vez disso, reconhecem-na como a maneira como esse tipo de coisa feita.Mapas rodovirios, interpretaes extremamente abstratas e incompletas da realidade geogrfica querepresentam, satisfazem at ao crtico mais severo das representaes incompletas. Eles contmapenas aquilo de que os motoristas precisam para ir de um lugar a outro (mesmo que por vezesdesorientem os pedestres).

    Como qualquer representao sempre e necessariamente exclui elementos da realidade, asquestes interessantes e passveis de investigao so estas: quais dos elementos possveis soincludos? Quem considera essa seleo razovel e aceitvel? Quem se queixa dela? Que critrios aspessoas aplicam quando fazem esses julgamentos? Alguns critrios, para sugerir as possibilidades,relacionam-se a gnero (se no incluir isto [ou se incluir aquilo], no realmente um romance [ou

  • fotografia, ou etnografia, ou tabela, ou ...); ou os verdadeiros profissionais ( assim queestatsticos [ou cineastas, ou historiadores, ou ...] sempre fazem isso).

    TRADUO: Penso em traduo como uma funo que transpe um conjunto de elementos (as partes darealidade que os produtores querem representar) para outro conjunto de elementos (aqueles fatoresconvencionais disponveis no meio tal como so correntemente usados). Antroplogos transformamsuas observaes in loco em anotaes de campo, a partir das quais constroem uma descrioetnogrfica padronizada; pesquisadores de recenseamento transformam entrevistas de campo emnmeros, a partir dos quais criam tabelas e diagramas; historiadores combinam suas fichas dearquivo em narrativas, perfis de personalidades e anlises; cineastas editam e montam filmagensbrutas em sequncias, cenas e filmes. Usurios de representaes jamais lidam com a prpriarealidade, mas com a realidade traduzida para materiais e linguagens convencionais de um gneroparticular.

    Maneiras habituais de representaes do aos produtores um conjunto usual de elementos parautilizar na construo de seus dispositivos, inclusive materiais, e suas capacidades: pelculas comuma sensibilidade particular luz, muitos gros de material sensvel luz por centmetro quadrado,um grau particular de resoluo, que torna possvel a representao de elementos de certo tamanho,mas no menores; elementos conceituais, como a ideia de enredo ou personagem na fico; eunidades convencionais de significado, como os wipes (transio), fades e outros truquestransicionais de cinema que indicam a passagem do tempo.

    Os produtores esperam que elementos tpicos tenham efeitos tpicos, de modo que osconsumidores de representaes feitas com esses efeitos respondam de maneiras tpicas. E osusurios esperam a mesma coisa em sentido inverso: que os produtores se sirvam de elementostpicos, com que esto familiarizados e aos quais sabem responder. As representaes feitas quandoessa condio est presente quando tudo funciona exatamente como compreendido por todas aspartes envolvidas so perfeitas. Tudo funciona exatamente como todos esperam. Mas essacondio jamais existe completamente. Os materiais no se comportam como dizem os anncios. Opblico no compreende o que o produtor pensou que compreenderia. A linguagem disponvel nopode, afinal, expressar a ideia do produtor. Que acontece quando essas representaesinevitavelmente inadequadas so apresentadas a um pblico que no sabe o que deveria saber? Commuita frequncia, a maioria das pessoas, tanto produtores quanto usurios e especialmente aquelescuja opinio conta, porque so poderosos e importantes , reage de maneira bastante prxima aoque os produtores originais pretendiam de modo que os resultados sejam aceitveis para todos osenvolvidos.

    Os critrios que definem a aceitabilidade variam. Consideremos a questo da transparncia daprosa, das tabelas e figuras que as pessoas usam para relatar resultados cientficos. Tanto osprodutores quanto os usurios de representaes cientficas gostariam que as linguagens verbal,numrica e visual que empregam em seus artigos e relatrios fossem os tpicos elementos neutros quenada acrescentam ao que est sendo relatado. Como uma vidraa limpa, permitiriam que osresultados fossem vistos atravs deles, sem serem afetados. Kuhn, como observei antes, argumentouconvincentemente que essa linguagem cientfica descritiva transparente no possvel, que todasas descries so carregadas de teoria.8 Mais relevante ainda: claro que at a largura das barrasnum diagrama de barras e o tamanho e o estilo dos tipos numa tabela, para no falar dos substantivose adjetivos numa etnografia ou narrativa histrica, afetam nossa interpretao do que relatado.Barras largas num diagrama fazem com que as quantidades nos paream maiores do que pareceriam

  • se elas fossem estreitas. Quando chamamos convencionalmente usurios de drogas ilegais dedependentes ou viciados, comunicamos muito mais que um fato cientificamente definido. Mastodos esses mtodos de retratar a realidade social foram considerados aceitveis por pblicoscientficos e leigos, cujos integrantes aprenderam a aceitar, ignorar ou no levar em conta os efeitosindesejados dos elementos comunicativos que aceitavam como padro.

    Os elementos tpicos tm as caractersticas j encontradas em investigaes de mundo feitas pelaarte. Tornam possvel a comunicao de ideias e fatos criando uma abreviatura conhecida por todosque precisam do material. Simultaneamente, porm, limitam o que um produtor pode fazer, porquecada conjunto de tradues torna mais fcil dizer certas coisas e mais difcil dizer outras. Para tomarum exemplo contemporneo, cientistas sociais convencionalmente representam a discriminao deraa e gnero presente nas promoes no emprego com uma equao de regresso mltipla, tcnicaestatstica usual cujos resultados mostram que proporo da variao em promoes entre subgruposnuma populao se deve aos efeitos independentes de variveis isoladas como raa, gnero,educao e tempo de trabalho. Mas como Charles Ragin, Susan Meyer e Kriss Drass mostraram, essamaneira de representar a discriminao no responde s perguntas formuladas por socilogosinteressados em processos sociais gerais, ou tribunais que tentam decidir se as leis contra adiscriminao racial foram violadas.9 Os resultados de uma regresso mltipla no podem nos dizercomo as chances de promoo para um homem branco e jovem diferem das de uma mulher negra e demeia-idade; eles s podem nos dizer o peso de uma varivel como idade ou gnero numa equao, oque no em absoluto a mesma coisa. Ragin, Meyer e Drass defendem que se considere outroelemento estatstico tpico: o algoritmo booleano,10 que representa a discriminao como asdiferenas em chances de promoo para uma pessoa com uma combinao particular daquelesatributos em relao a taxas mdias relativas a uma populao inteira. isso o que cientistas sociaise tribunais querem saber.11

    Algumas limitaes ao que uma representao pode nos dizer surgem da maneira como a atividaderepresentacional organizada. Oramentos limitados do ponto de vista organizacional tantodinheiro quanto tempo e ateno limitam o potencial de meios e formatos. Livros e filmes so tolongos quanto permitido aos produtores pelas condies que eles tm; alm disso, so limitados pelaquantidade de ateno que os usurios se dispem a lhes dar. Se os produtores tivessem maisdinheiro e os usurios se dispusessem a l-las, as etnografias deveriam conter todas as anotaes decampo feitas pelos antroplogos e todos os passos do processo analtico (o que Clyde Kluckhohnpensava ser a nica maneira de publicar materiais sobre uma histria de vida12). Esses elementosainda podem ser oferecidos, mas no por um preo, em termos de tempo e dinheiro que algumqueira pagar.

    ARRANJO: Uma vez escolhidos e traduzidos os elementos da situao, os fatos que uma representaodescreve, as interpretaes que faz deles, deve ser arranjada em alguma ordem para que os usuriospossam compreender o que est sendo dito. A ordem dada aos elementos ao mesmo tempoarbitrria sempre sabemos que poderiam ter sido ordenados de modo diferente e determinadapor maneiras usuais de fazer as coisas, da mesma forma que os elementos. O arranjo faz narrativas apartir de elementos aleatrios. Comunica noes como causalidade, para que os observadorespossam ver a ordem das fotografias na parede de uma galeria ou num livro como significativa,interpretando as fotos anteriores no arranjo como as condies que produziram as consequnciasrepresentadas nas posteriores. Quando conto uma histria (pessoal, histrica ou sociolgica), osouvintes escutaro os primeiros elementos como explicaes daqueles que vm depois: as aes

  • de um personagem num episdio tornam-se evidncias de uma personalidade que se revela maiscompletamente em episdios posteriores. Os que estudam tabelas e grficos estatsticos soparticularmente sensveis aos efeitos do arranjo sobre interpretaes.

    Nenhum produtor de representaes da sociedade pode evitar esta questo, pois, como muitosestudos mostraram, os usurios de representaes veem ordem e lgica mesmo em arranjosaleatrios de elementos. As pessoas encontram lgica no arranjo de fotografias, quer o fotgrafotenha pretendido isso ou no, e reagem a tipos como frvolos, srios ou cientficos,independentemente do contedo de um texto. Cientistas sociais e estudiosos de metodologia aindadevem tratar isso como um problema srio; o que fazer uma das coisas que so transmitidas comosabedoria profissional (Edward Tufte, no entanto, dedicou muita ateno maneira como elementosgrficos, tipogrficos e arranjos afetam a interpretao de exposies estatsticas13).

    INTERPRETAO: Representaes s existem plenamente quando algum as usa, l, v ou ouve,completando a comunicao ao interpretar os resultados e construir para si mesmo uma realidade apartir do que o produtor lhe apresentou. O mapa rodovirio existe quando eu o uso para chegar prxima cidade, os romances de Dickens, quando os leio e imagino a Inglaterra vitoriana, uma tabelaestatstica, quando examino e avalio as proposies que sugere. Essas coisas alcanam seu plenopotencial na utilizao.

    O que os usurios sabem fazer interpretativamente torna-se assim uma importante limitao para oque uma representao pode realizar. Usurios devem saber e ser capazes de utilizar os elementosconvencionais e formatos do meio e do gnero. Produtores no podem dar por certo esseconhecimento e capacidade. Estudos histricos mostraram que foi s num momento avanado dosculo XIX que a maioria dos habitantes dos Estados Unidos adquiriu conhecimentos bsicos dearitmtica, tornando-se capaz de compreender e realizar as quatro operaes.14 Estudosantropolgicos mostram que aquilo que crticos literrios como Roland Barthes e Susan Sontaginsistem ser o apelo universal ao nosso senso de realidade incorporado em fotografias imveis efilmes , ao contrrio, uma habilidade aprendida. Campos profissionalizados esperam que osusurios se tornem consumidores instrudos de representaes pela formao em escolas de ps-graduao ou profissionalizantes, embora o que se espera que seja conhecido varie de um momentopara outro. Departamentos de ps-graduao em sociologia esperam que seus alunos adquiram certograu de sofisticao estatstica (o que deve ser entendido, em parte, como capacidade de lerfrmulas e tabelas), mas poucos supem que seus alunos saibam muito sobre modelos matemticos.

    Os usurios interpretam representaes encontrando nelas as respostas para dois tipos deperguntas. Por um lado, querem saber os fatos: o que aconteceu na batalha de Bull Run, onde sesituam os bairros miserveis de Los Angeles, qual a renda mdia dos subrbios habitados porcolarinhos-brancos, qual era a correlao entre raa, renda e educao nos Estados Unidos em 1980,como realmente ser astronauta. As respostas a perguntas como estas, em todos os nveis deespecificidade, ajudam as pessoas a orientar suas aes. Por outro lado, usurios querem respostaspara questes morais: no apenas qual a correlao entre raa, educao e renda, mas por que arelao como , por culpa de quem e o que deveria ser feito acerca disso. Querem saber se aGuerra Civil, e portanto a batalha de Bull Run, foi necessria ou poderia ter sido evitada, se oastronauta John Glenn era o tipo de homem que merecia ser presidente, e assim por diante. Ao examemais superficial, quase qualquer questo factual acerca da sociedade exibe uma forte dimensomoral, que explica as frequentes batalhas ferozes ocorridas a propsito de matrias aparentementepouco importantes de interpretao tcnica. Os erros estatsticos de Arthur Jensen na anlise dos

  • resultados de testes de inteligncia perturbaram aqueles que no eram estatsticos.

    Usurios e produtores

    Todos ns agimos como usurios e como produtores de representaes, contando histrias eouvindo-as, fazendo anlises causais e lendo-as. Como em qualquer outra relao de servio, emgeral os interesses de produtores e usurios diferem consideravelmente, em particular quando, comoacontece tantas vezes, os produtores so profissionais que fazem essas representaes em tempointegral, em troca de um pagamento, e os usurios so amadores que as utilizam ocasionalmente, deuma maneira habitual e irrefletida.15 Os mundos representacionais diferem de acordo com o conjuntode interesses dominante.

    Em mundos dominados por produtores, as representaes assumem a forma de uma argumentao,uma apresentao apenas daquele material que constitui os aspectos que o produtor quer tornarclaros, e nada mais (o trabalho atual sobre a retrica da escrita cientfica, mencionado antes, defendeesta ideia). Num mundo profissionalizado de feitura de representao, os produtores em geralcontrolam as circunstncias dessa feitura, por todas as razes que Hughes mostrou: o que fora docomum para a maioria dos usurios de seus resultados o que eles fazem o dia inteiro. Mesmo queoutros tenham um poder substancial, os profissionais sabem to mais sobre como manipular oprocesso que conservam grande controle. Usurios poderosos que se dedicam feitura derepresentao durante um longo perodo de tempo aprendem o bastante para superar essaincapacidade, mas isso raramente acontece com usurios casuais. Assim, representaes feitasprofissionalmente incorporam as escolhas e os interesses dos produtores e, de modo indireto, daspessoas que tm condies de contrat-los, e desse modo podem no mostrar os morros de cujaexistncia um pedestre gostaria de saber.

    Os membros de mundos dominados por usurios, por outro lado, empregam representaes comofichrios, arquivos a serem revistados em busca de respostas para todas as perguntas que qualquerusurio competente possa ter em mente e de informao que se preste a qualquer utilizao que osusurios queiram lhe dar. Pense na diferena entre o mapa de ruas que voc compra na loja e o mapadetalhado, anotado, que desenhei para lhe mostrar como chegar minha casa, um mapa que leva emconta o tempo de que voc dispe para a viagem, seu possvel interesse em ver algumas paisagensinteressantes e sua averso a congestionamentos. Representaes leigas so tipicamente maislocalizadas e mais atentas aos desejos dos usurios que aquelas feitas por profissionais. De maneirasemelhante, instantneos amadores satisfazem a necessidade que seus produtores de documentos tmpara mostrar a um crculo de amigos ntimos que conhecem todos nas fotos, ao passo que asfotografias feitas por jornalistas, artistas e cientistas sociais, orientadas para os padres decomunidades profissionais, pretendem agradar a seus colegas profissionais e outros observadoresaltamente instrudos.16

    Alguns artefatos parecem ser essencialmente arquivos. Um mapa, afinal, parece ser um simplesrepositrio de fatos geogrficos e outros, que os usurios podem consultar para seus prpriosobjetivos. Na verdade, os mapas podem ser feitos de maneiras diversas, e nenhuma delas umasimples traduo da realidade, de modo que eles so, num sentido importante, argumentos destinadosa persuadir seus usurios de alguma coisa, nem que seja apenas dando tal coisa por certa. Assim,algumas pessoas outrora sem voz afirmam que os mapas que dominam o pensamento mundial soeurocntricos, que as escolhas tcnicas que os moldaram levam a resultados que fazem,

  • arbitrariamente, a Europa e a Amrica do Norte estarem no centro do mundo. Pode-se dizer que essesmapas corporificam o argumento de que a Europa e a Amrica do Norte so mais importantes queaqueles outros lugares deslocados para as margens do mapa.

    Argumentos e arquivos, no entanto, no so tipos de objetos, mas tipos de usos, maneiras de fazercoisas, e no coisas. Podemos ver isso quando percebemos que os usurios no so impotentes e, defato, muitas vezes refazem os produtos que lhes so apresentados para que atendam a seus prpriosdesejos e necessidades. Estudiosos em todos os campos ignoram rotineiramente os argumentosapresentados pelos artigos acadmicos que citam e apenas saqueiam a literatura em busca deresultados que possam servir a seus objetivos. Em suma, usam a literatura no como o corpo deargumentos que seus produtores pretenderam construir, mas como um arquivo de resultados com queresponder a perguntas em que os autores originais nunca pensaram. Esse tipo de utilizao rebelde deprodutos culturais foi estudado em outras reas: a sociologia da tecnologia,17 os usos inventivos dejogos digitais e outros fenmenos da internet18 e estudos culturais. Constance Penley descreveu umgrupo bastante grande de mulheres heterossexuais da classe trabalhadora que tinham se apossado dospersonagens de Jornada nas estrelas para seu prprio trabalho criativo: histrias erticashomossexuais envolvendo os principais personagens (o capito Kirk e o dr. Spock eram um casalfavorito) e distribudas pela internet.19 Em todos esses casos, usurios refaziam completamente o queos produtores tinham pretendido que fosse uma comunicao de mo nica, transformando-a emmatria-prima para suas prprias construes, feitas para seus propsitos e aplicaes. Usuriossempre podem se apossar das coisas dessa maneira.

    E ento?

    O que eu disse implica uma viso realista do conhecimento, pelo menos neste grau: o modo comofazemos perguntas e o modo como formulamos respostas podem ser muito diversificados osvrios exemplos que citei atestam isso , e no h uma forma garantida de escolher entre eles, jque todos so bons para transmitir alguma coisa. A mesma realidade pode ser descrita de muitasmaneiras, j que as descries podem ser respostas para qualquer uma entre as diversas perguntas.Podemos concordar em princpio que nossos procedimentos devem nos deixar obter a mesmaresposta para a mesma pergunta, mas de fato s fazemos a mesma pergunta quando as circunstnciasde interao social e organizao produziram consenso em relao ao que constitui uma boapergunta. Isso no acontece com muita frequncia, somente quando as condies em que as pessoasvivem levam-nas a ver certos problemas como comuns, como se exigissem rotineiramente certostipos de representaes da realidade social, levando assim ao desenvolvimento de profisses eofcios que produzem essas representaes para uso rotineiro.

    Desse modo, algumas questes so formuladas e respondidas, enquanto outras, igualmente boas,interessantes, meritrias e at cientificamente importantes, so ignoradas, pelo menos at que asociedade mude o suficiente para que as pessoas que precisam delas venham a controlar os recursosque lhes permitiro obter uma resposta. At l, os pedestres continuaro a ser surpreendidos pelosmorros de So Francisco.