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1 A PRODUÇÃO COLETIVA DA ARTE: ARTISTAS, MUNDOS SOCIAIS E CONVENÇÕES RESUMO Segundo Howard S. Becker, obras de arte resultam das atividades cooperativas e de troca dos participantes de uma espécie particular de mundos sociais: os mundos da arte. Ele critica a sociologia da arte dominante por apoiar-se primordialmente sobre critérios estéticos e propõe uma abordagem alternativa, derivada das sociologias do trabalho e da ação coletiva. Sua análise enumera os tipos de atividades necessárias ao funcionamento dos mundos da arte, indica as convenções compartilhadas que viabilizam as interações entre os participantes e examina a ideologia de artista que dá aos mundos da arte contemporâneos sua feição distintiva. Apresentamos a seguir algumas dessas idéias e conceitos. PALAVRAS-CHAVE Mundos da arte Convenções Interações Artistas Trabalho INTRODUÇÃO "Toda obra de arte é o produto coletivo de todos os que tiveram alguma função, qualquer que seja, na sua realização" (Becker 1999:14). Esta proposição resume o pensamento do seu autor sobre a arte. Consideremos suas implicações polêmicas e construtivas para a sociologia da arte. As citações em língua estrangeira são traduções do autor do artigo, que aproveita a oportunidade para agradecer as críticas e as sugestões dos pareceristas.

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A PRODUÇÃO COLETIVA DA ARTE: ARTISTAS, MUNDOS SOCIAIS E

CONVENÇÕES

RESUMO

Segundo Howard S. Becker, obras de arte resultam das atividades cooperativas e de troca

dos participantes de uma espécie particular de mundos sociais: os mundos da arte. Ele

critica a sociologia da arte dominante por apoiar-se primordialmente sobre critérios

estéticos e propõe uma abordagem alternativa, derivada das sociologias do trabalho e da

ação coletiva. Sua análise enumera os tipos de atividades necessárias ao funcionamento dos

mundos da arte, indica as convenções compartilhadas que viabilizam as interações entre os

participantes e examina a ideologia de artista que dá aos mundos da arte contemporâneos

sua feição distintiva. Apresentamos a seguir algumas dessas idéias e conceitos.

PALAVRAS-CHAVE

Mundos da arte

Convenções

Interações

Artistas

Trabalho

INTRODUÇÃO

"Toda obra de arte é o produto coletivo de todos os que tiveram alguma função, qualquer

que seja, na sua realização" (Becker 1999:14). Esta proposição resume o pensamento do

seu autor sobre a arte. Consideremos suas implicações polêmicas e construtivas para a

sociologia da arte.

As citações em língua estrangeira são traduções do autor do artigo, que aproveita a oportunidade para

agradecer as críticas e as sugestões dos pareceristas.

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O predicado desta proposição, "produto coletivo", apenas designa as condições de

possibilidade da obra de arte, evitando determinar o que ela é, aquilo em que ela consiste.

Para Becker, não compete ao sociólogo dizer o que é ou não é arte, já que esta definição é

feita nos mundos da arte, devendo ser considerada como parte constitutiva do conjunto de

entendimentos em uso que orientam as percepções e os planos de ação dos participantes

desses mundos.

Sua abordagem sociológica da arte faz perguntas mais contingentes que só a

pesquisa empírica pode responder, tais como: quais são as definições de obra de arte

correntes em cada mundo da arte? como elas orientam as ações dos atores relevantes

durante as fases de produção, distribuição e recepção das obras? como e em que

circunstâncias elas se formam e mudam?

É uma compreensão relativista, não-essencialista, dos mundos da arte, que questiona

a prática de aceitar, sem crítica, o princípio estético que prevalece nestes mundos. As

sociologias da arte que Becker critica, por exemplo, a de Lucien Goldmann (Becker 1982:

365-7), concebem a obra de arte como o produto da criação de um autor singular, o artista,

cujo trabalho expressa simbolicamente, através da "transposição artística", o mundo social

ao qual pertence. Tais sociologias esposam, explícita ou implicitamente, a teoria que afirma

que toda obra é a expressão pessoal das experiências sociais, psicológicas e culturais do seu

autor. Do ponto de vista sociológico, tal teoria tem funções tanto teóricas – como a de

fundamentar a interpretação e a explicação das obras de arte – quanto práticas –

especialmente nas arenas onde se travam as lutas simbólicas.

A maioria dos sociólogos da arte faz uma sociologia dos autores, aos quais vincula

uma obra ou conjunto de obras. Os autores das obras são tratados como representativos de,

ou correspondendo a, certas épocas históricas e estruturas sociais, das quais eles seriam os

"produtos". Isola como objeto de investigação o conjunto das obras de um artista ou grupo

de artistas, reunidos por algum critério, como o de geração ou o de estilo, por exemplo, e

define esse artista ou grupo como o sujeito da obra.

Mas tal sujeito é apenas aparente: na verdade, são as determinações e as condições

imediatas ou mediatas do seu fazer, como sua classe de origem ou de pertencimento, as

instituições sociais e políticas da sua sociedade, as ideologias que constroem sua visão de

mundo etc., que assumem tal posição.

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Ao ler as obras desses autores de trás para frente, o analista transforma as formas

que elas exibem e as significações que veiculam em vias de acesso às crenças, aos pontos

de vista, valores e concepções de mundo dos seus autores. Estas, por sua vez, são

entendidas como expressões ideológicas da consciência coletiva de um grupo ou classe

social, de uma nação ou época histórica. A estratégia sociológica correspondente a esta

abordagem da arte pode ser chamada de modelo da correspondência ou da homologia

estrutural, conforme o caso.

Lucien Goldmann (1964: 36), por exemplo, afirma que "a forma do romance nos

parece ser a transposição sobre o plano literário da vida cotidiana na sociedade

individualista nascida da produção para o mercado. Há uma homologia rigorosa entre a

forma literária do romance [...] e a relação cotidiana dos homens com os bens em geral e,

por extensão, dos homens com os outros homens, em uma sociedade produtora para o

mercado" (grifos do autor).

Considerando o surgimento de uma nova forma do romance no século XX,

caracterizada "pela dissolução progressiva e desaparição do personagem individual, [pelo

abandono do] herói problemático e da biografia individual, [em que o autor se esforça por]

escrever o romance da ausência do sujeito", Goldmann conclui que esta "transformação da

forma romanesca" é "paralela" à da vida econômica e à "substituição da economia de livre

concorrência por uma economia de cartéis e de monopólios" (Goldmann 1964: 49-51).1

É evidente que nenhuma sociologia pode negar que o artista é um "ser social",

histórico, contextualizado etc., e que a arte é um "produto social" (ver, por exemplo, Janet

Wolff 1982: 13 e ss.). A questão sociológica pertinente e produtiva, contudo, é distribuir

adequadamente a função da autoria da obra entre o artista que recebe os créditos pela sua

produção e aquilo que, tanto no corpo da obra quanto na sua existência social (anterior e

posterior), resulta do "contexto" da obra e do seu autor.

A revisão goldmanniana do ponto de vista marxista clássico a esse respeito (1964:

342-3) procura evitar as conhecidas armadilhas da transposição direta, reducionista e não-

dialética, das determinações da classe social a que pertence o artista para as obras que

1 Wolfgang Iser, explicando as tarefas e as dificuldades que ele e H. R. Jauss enfrentaram (entre outros, o de

descobrir a função dos textos literários em seu contexto) para fundar e desenvolver as estéticas da recepção e

do efeito na esfera da literatura, diz que foi preciso "defender-se contra este sociologismo simplista que

compreendia o texto literário como a alegoria da sociedade" (Iser 1996: 10; grifo nosso).

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produz. Para Goldmann, o verdadeiro sujeito da obra é, não a classe, mas, "em última

instância, o grupo dos criadores culturais", que ele chama de "grupo privilegiado".

Este grupo, à diferença dos demais (como as famílias, os grupos profissionais etc.,

cuja consciência coletiva, no seu entender, é de caráter ideológico), elabora visões de

mundo, "orientados para uma reorganização global de todas as relações humanas e das

relações entre o homem e a natureza ou para uma conservação global da estrutura social

existente". Para Goldmann, a criação cultural é "privilegiada" na medida em que tende à

coerência e à universalidade; os criadores individuais são compreendidos como

"mediadores" entre o grupo dos criadores e a "obra verdadeiramente importante"

(Goldmann 1978: 281-3).

Pierre Bourdieu chama a atenção para "o efeito de refração [sobre o trabalho do

artista] que exerce o campo da produção cultural". Criticando a "sociologia que liga

diretamente as características das obras às origens sociais dos autores", observa que

Goldmann "pensa a relação entre o mundo social e as obras segundo a lógica do reflexo"

(Bourdieu 1992: 322; grifos do autor). Supor que "compreender a obra de arte é igual a

compreender a visão de mundo própria ao grupo social a partir do qual ou em cuja intenção

o artista teria composto a obra", e que, em vista disto, "se exprimiria através do artista,

capaz de explicitar sem o saber verdades e valores dos quais o grupo expressado não está

necessariamente consciente", resulta em reduzir a obra às suas condições externas

(Bourdieu 1992: 284).

Para ele, o trabalho do artista "encontra seu princípio em toda a estrutura e história

do campo de produção e, através dele, em toda a estrutura e história do mundo social

considerado" (Bourdieu 1992: 285; grifo do autor). Portanto, "o sujeito da obra de arte não

é nem um artista singular, causa aparente, nem um grupo social (a grande burguesia

bancária e comercial que, na Florença do quattrocento, chega ao poder, nem a noblesse de

robe, em Goldmann), mas o campo da produção artística em seu conjunto". O sujeito da

obra, diz ainda, é "um habitus em relação a uma função, isto é, a um campo" (Bourdieu

1983: 165-6). 2

2 O conceito de campo cumpre, na sociologia da arte de Bourdieu, uma função análoga ao de mundo na

sociologia de Becker, exposto na próxima seção deste artigo: tanto os campos artísticos bourdieuanos quanto

os mundos da arte beckerianos produzem e mantêm as condições sociais de possibilidade das práticas e das

atividades artísticas. Assim, ambos evitam as armadilhas da redução da arte às condições socioeconômicas,

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Howard S. Becker não se interessa pelo problema da autoria enquanto tal, a não ser

como crença que dirige e estrutura as percepções e o comportamento dos participantes dos

mundos da arte e que, portanto, não deve ser pressuposta pelo analista antes de sua entrada

no campo. Além disto, a expressão "sujeito", com a família de conceitos associados

("intenção", "consciência", "visão de mundo" etc.), é inteiramente estranha ao seu

repertório de conceitos.

Ele se contenta com observar (1982: 14-24) que a noção de atividade artística

enquanto expressão pessoal de um autor depende e se harmoniza com a crença

generalizada de que fazer arte e ser um artista requer talentos, dons ou capacidades

especiais e, em geral, raros – logo, valiosos. Segundo esta crença, artistas e obras estão em

relação recíproca quanto ao mérito: este é atribuído ao artista, como prêmio e

reconhecimento concedido pelo público de arte, que "sabe" (isto é, crê) que um artista tem

dons especiais por causa das obras incomuns que faz. Se elas produzem experiências

emocionais e estéticas elevadas, é porque seu autor deve ter habilidades excepcionais e

vice-versa: dá-se valor a uma obra de arte porque as qualidades criativas do seu autor a

impregnam; e nega-se este valor quando o autor não as tem.

Decorre destas afirmações que as obras de arte não se caracterizam apenas por

resultar das atividades desta classe particular de trabalhadores, os artistas; e não só

significam alguma coisa para os que se devotam a produzi-las e apreciá-las: elas também

criam e fazem circular valor nos espaços sociais onde aparecem, circulam e se oferecem a

um público, sendo alvos de juízos que, se qualificam, apropriadamente, como estéticos.

As crenças sobre a arte como expressão criativa de um autor e sobre o mérito

estético constituem o núcleo da moderna ideologia do artista: a sociologia da arte não deve

tomá-las como categorias a priori de pensamento e observação, segundo Becker. O mérito

de uma obra de arte, estabelecido pelos juízos estéticos não é intrínseco à obra, mas decorre

inteiramente desses juízos. Tais juízos se tornam socialmente efetivos, criando valor

objetivo, quando são emitidos por árbitros culturais, os especialistas em arte, pessoas

institucionalmente autorizadas a classificar e avaliar obras de arte (críticos, professores,

outros artistas etc).

históricas. As semelhanças entre os dois conceitos param aí, no entanto: campos, para Bourdieu, são espaços

estruturados e construídos de relações de competição entre posições, e mundos, para Becker, são redes de

relações de troca e cooperação concretas entre pessoas e atividades.

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O problema sociológico interessante e digno de exame é que os juízos sobre uma

obra de arte conferem ao seu autor uma determinada espécie de honra e constituem a sua

reputação.

"'Arte' é uma categoria honorífica, uma palavra que a sociedade decide tratar como

especialmente valiosa. [Muitos] trabalhos que parecem partilhar as qualidades

observáveis do que vem a ser chamado de grande arte nunca recebe essa distinção, e isso

sugere que a diferença não repousa no trabalho assim honrado, mas antes no processo de

honrar" (Becker 1986: 23-4).

Para Becker, os sociólogos devem questionar a propensão das "versões mais

tradicionais da sociologia da arte" a fazer juízos de qualidade sobre as obras de arte,

traduzida por expressões como "obra verdadeiramente importante" e "grande arte". Obras

que merecem tal qualificação são aquelas sobre cujo valor há consenso, pois sobreviveram

à passagem do tempo, sendo apreciadas continuamente por muitas pessoas. "É razoável ver

a durabilidade como um fenômeno de reputação. Isto é, uma obra que perdura é uma obra

que mantém boa reputação por muito tempo" (Becker: 1982: 365-6).

CULTURA E AÇÃO COLETIVA

A abordagem beckeriana da arte segue os princípios de teoria e método do interacionismo

simbólico, que ele aprendeu estudando sociologia em Chicago com Herbert Blumer e

Everett Hughes (Becker 1986: 25-31; 1999: 8-9, 16-7). Esta tradição de pesquisa

problematizou e tratou sistematicamente os problemas sociológicos da ação coletiva e das

relações entre os níveis micro e macro da análise. O tema da ação coletiva, particularmente

relevante para a definição beckeriana das atividades artísticas, foi traduzido pela expressão

doing things together (Becker 1986).

São pertinentes à discussão da ação coletiva as seguintes idéias interacionistas

(Blumer 1969: 1-60; McCall & Becker 1990: 3-4):

1. Todo evento humano pode ser entendido levando em conta que as pessoas

envolvidas neste evento ajustam continuamente o que fazem à luz do que fazem as outras,

de modo a fazer as várias linhas de ação individual ajustarem-se mutuamente.

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2. As pessoas agem tipicamente de maneira não automática. Elas constroem uma

linha de ação levando em conta a significação do que as outras fazem em resposta às suas

ações anteriores.

3. Isto é feito pela incorporação das respostas das outras ao seu próprio ato,

antecipando o que provavelmente ocorrerá (idéia expressa pela fórmula take the role of the

acting other).

4. Neste processo de interação com as outras e consigo mesmas, as pessoas criam

um self, no sentido de G. H. Mead.3

5. Se todo mundo pode fazer e faz isso, ações conjuntas complexas podem

acontecer.

Buscar as significações contingentes dos atos das pessoas interagindo umas com as

outras e consigo mesmas orienta o pesquisador a levar ativamente em conta e a descrever

detalhadamente a dimensão simbólica da ação humana. Porque a "auto-interação" do

indivíduo (perceber-se, agir sobre si mesmo) permite que ele alinhe suas ações com as dos

outros.

Por outro lado, a sociedade não é constituída por objetos dotados de significado

intrínseco: ao invés, o significado dos objetos repousa nos planos de ação dos indivíduos

(Denzin 1970: 6-7). É preciso distinguir "coisas" de "objetos": as coisas existem antes e

independentemente das pessoas e dos seus atos; já os objetos existem em relação aos atos

das pessoas, ou seja, coisas são convertidas em objetos pelos atos das pessoas.

O sociólogo deve esclarecer e descrever os processos de definição dos objetos das

ações coletivas, inclusive os constantes trabalhos de redefinição, realinhamento etc, que

novas situações e desenvolvimentos imprevistos tornam obrigatórios a cada passo. Para a

ação de um grupo de pessoas sobre um objeto ser significativa, é preciso haver definições

suficientemente consensuais deste objeto, isto é, acordos sobre as significações que o objeto

tem para elas. Tais acordos pressupõem linguagens compartilhadas, sistemas simbólicos

3 Para Mead, o self não é um receptáculo passivo da internalização de componentes da cultura e da estrutura

social. É ativo e criativo e não pode ser reduzido às forças internas e externas que agem sobre ele. A noção de

self implica levar em conta a interação da pessoa consigo mesma, enquanto indicação dos assuntos com que

ela se defronta na situação em que está engajada. É pela interpretação desses assuntos que ela organiza a ação

a empreender. Segundo Mead, o self é reflexivo, podendo ser tanto sujeito quanto objeto de suas ações

(Strauss 1956: 199-246).

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que ligam convencionalmente um conjunto de significantes às significações que o estoque

cultural do grupo retém como relevantes para as situações em pauta.

Na visão interacionista, as pessoas aprendem os símbolos básicos, forjam suas

concepções do self e elaboram as definições que atribuem aos objetos sociais através das

interações mútuas – através de conversas consigo mesmas e com seus outros significativos.

(Denzin 1970: 7).

O modo como Becker trata o conceito de cultura (obviamente pertinente à nossa

exposição e definida por ele, apud Robert Redfield, como "entendimentos convencionais

manifestos em atos e artefatos" – Becker 1986: 12) é caracteristicamente pragmático. A

cultura é sociologicamente conceituada e tratada pelo trabalho que é chamada a fazer: no

caso, permitir uma explicação para ações coordenadas, quando as pessoas envolvidas

compartilham entendimentos. É, pois, uma conseqüência da existência de um grupo de

pessoas agindo – é vista como um dos recursos usados por elas para coordenar suas

atividades (Becker 1986: 12-4).

"O processo cultural consiste em pessoas fazendo alguma coisa alinhada com seus

entendimentos sobre o que é melhor fazer naquelas circunstâncias. [...] Se todas têm as

mesmas idéias gerais na cabeça e fazem coisas congruentes com esta imagem ou coleção de

idéias, o que elas fazem se ajustará" (Becker 1986: 16).

Entendimentos compartilhados permitem às pessoas definir a situação onde se

encontram e buscar soluções aos problemas que ela apresenta ao grupo. Neste sentido, são

dados de antemão, preexistem à situação em que são usados. Quando se provam

inadequados – por exemplo, pela mudança das condições de sua aplicação –, o grupo

experimenta dar novas definições da situação e inventa novas estratégias de solução aos

problemas do agir conjuntamente. Podemos falar, então, de mudança cultural, da criação de

novos entendimentos, de novos consensos, de novas maneiras de definir a situação e de,

doravante, agir de acordo com elas (Becker 1986: 17-9).

O pesquisador deve dirigir a atenção tanto para as situações sociais onde ocorrem as

interações quanto para as significações simbólicas compartilhadas que moldam os modos

como as pessoas vêem tais situações. Quando se trata de interações dirigidas a produzir,

distribuir e responder a obras de arte, esta atenção deve focalizar as definições aceitas de

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arte que prevalecem entre os participantes nessas interações e os modos específicos da

cooperação deles nas atividades destinadas a estes fins.4

De Everett Hughes, Becker adotou o ponto de vista de que "tudo é o trabalho de

alguém", que nas sociedades complexas praticamente todos os aspectos da vida cotidiana

resultam do trabalho em tempo integral de especialistas. Portanto, podemos compreender

quase todas as situações sociais estudando-as pelo ângulo do trabalho (Becker 1999: 8-9).

Ele definiu sua abordagem da arte como uma "sociologia das ocupações aplicada ao

trabalho artístico" e trata a arte como "o trabalho que algumas pessoas fazem,

[preocupando-se mais] com os padrões de cooperação entre as pessoas que fazem as obras

do que com as próprias obras ou com aqueles definidos convencionalmente como seus

criadores" (Becker 1982: IX-XI).

É pela cooperação das pessoas, porque elas trabalham conjuntamente e têm que

resolver os problemas que necessariamente surgem quando devem cooperar (inclusive os

desacordos e conflitos entre pontos de vista e interesses divergentes), que as obras de arte

vêm a existir e continuam a existir – que elas podem ser feitas, distribuídas e conservadas,

para que outras pessoas as vejam, leiam ou ouçam.

Portanto, as obras de arte, como produtos coletivos das atividades de atores

associados em função de projetos comuns, presumem a existência de redes de relações

interpessoais que se estendem no tempo histórico e no espaço social e recebem no

interacionismo simbólico o nome característico de mundos sociais.

MUNDOS SOCIAIS, MUNDOS DA ARTE

Samuel Gilmore (1999: 150) diz que um mundo social, conceito desenvolvido por Tomatsu

Shibutani e Anselm Strauss, aplicável a variadas tarefas coletivas e arenas ideológicas,

consiste em "atividades e preocupações comuns ou conjuntas, amarradas por uma rede de

comunicação". Uma característica de tais mundos é a sua forma social amorfa e difusa, sem

4 Por exemplo, dada a importância, para o estudo da arte, do problema dos entendimentos, ou regras,

referentes à linguagem e à significação das obras (como as definições do que é e o que não é arte, de quando

uma certa obra é ou não artística) e o que ocorre quando as regras são transgredidas – como nas rupturas

produzidas endemicamente pelos movimentos de vanguarda na arte moderna –, é interessante considerar,

como sugere Blumer, que "é o processo social na vida do grupo que cria e sustenta as regras, e não as regras

que criam e sustentam a vida do grupo" (citado em McCall & Becker 1990: 5-6).

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fronteiras espaciais nítidas ou população especificada de participantes. Em virtude disto,

este conceito permite "uma abordagem alternativa à organização social, que funciona tanto

com formas emergentes de organização quanto com padrões relativamente estáveis de troca

e interação" (Gilmore 1990: 152).

Como instrumento analítico, enfatiza o mecanismo relacional da interação, ou troca,

entre pessoas específicas, focalizando as atividades colaborativas que ligam estas pessoas

em relações diretas que têm significado para elas. Este feixe de pessoas interagindo "produz

uma agregação de relações relativamente estável, que representa um mundo social". Sua

utilidade como unidade interacionista de organização social prende-se à sua ênfase dual em

elementos estruturais e culturais (Gilmore 1990: 149-50).

O conceito de mundo da arte (art world), entendido como forma particular de

mundo social, é a espinha dorsal da análise beckeriana, sua "unidade de análise básica".

Designa uma "rede de pessoas cuja atividade cooperativa, organizada via o conhecimento

conjunto que têm dos meios convencionais de fazer coisas, produz a espécie de obras de

arte pelas quais um mundo da arte é conhecido" (Becker 1982: X). Consiste em "todas as

pessoas cujas atividades são necessárias à produção das obras características que este

mundo, e talvez também outros, definem como arte" (Becker 1982: 34; grifo nosso).

Estas pessoas cooperam repetidamente, até mesmo rotineiramente e de maneiras

semelhantes, para produzir obras semelhantes e coordenam suas atividades referindo-se a

"um corpo de entendimentos convencionais incorporados na prática comum e em artefatos

usados freqüentemente" (Becker 1982: 34). Algumas redes são grandes, especializadas e

complicadas, outras são pequenas e pouco especializadas, podendo, em casos limite,

consistir apenas na pessoa que faz a obra e, para tal, usa materiais fornecidos por pessoas

que não pretendem cooperar com elas ou não sabem que o estão fazendo.

Mundos da arte não têm fronteiras que nos permitam distinguir quem pertence a eles

ou não. Para isolar e identificar um mundo da arte qualquer, procuramos grupos de pessoas

que cooperam para produzir coisas que elas chamam de arte. "Quando as encontramos,

procuramos outras pessoas que são também necessárias a esta produção, construindo

gradualmente um retrato o mais completo possível de toda a rede de cooperação que se

irradia da obra em questão" (Becker 1982: 35; grifo nosso).

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A cooperação de algumas pessoas encontradas nesta pesquisa "por irradiação" pode

ser periférica e relativamente sem importância. Mas tal desimportância não é dada a priori

nem é definitiva. Pode mudar quando, por exemplo, o que elas fazem se torna escasso ou

difícil de obter; ou quando, por motivos de evolução dos gostos ou dos estilos e gêneros, o

que elas fazem move-se em direção ao centro.

Este gênero de pesquisa pode buscar informações e evidências através de diferentes

técnicas de observação e de coleta de dados: observação direta, entrevistas, documentos,

histórias de vida, arqueologia das obras etc. A natureza heteróclita e muitas vezes

problemática dos dados obtidos por tais técnicas não deve ser uma objeção à sua validez e

confiabilidade, desde que o pesquisador seja suficientemente rigoroso no controle das

fontes de erro mais comuns a cada uma delas: inferências baseadas em probabilidade

qualitativa, autenticidade duvidosa das informações do tipo histórico, contaminação da

situação observada pela presença do observador, informação insuficiente e outras.5

O pesquisador espera assim reconstruir um mundo da arte específico, dotado de um

caráter único, para o qual é adequada a imagem do mosaico:

"Cada peça acrescentada num mosaico contribui para nossa compreensão do quadro

como um todo. Quando muitas peças foram colocadas, podemos ver, mais ou menos

claramente, os objetos e as pessoas que estão no quadro, e sua relação uns com os outros.

Diferentes fragmentos contribuem diferentemente para nossa compreensão: alguns são

úteis por sua cor, outros porque realçam os contornos de um objeto. Nenhuma das peças

tem uma função maior a cumprir; se não tivermos sua contribuição, há ainda outras

maneiras para chegarmos a uma compreensão maior do todo" (Becker 1993: 104-5).

Becker propôs também, em texto recente, uma abordagem genética ao estudo

sociológico das obras e dos mundos da arte, complementar à que chamamos de pesquisa

por irradiação (2003: 1). Esta abordagem implica duas espécies de pesquisa.

Numa, estuda-se, a jusante (upstream), passo a passo, como veio a existir um

fenômeno artístico qualquer – uma obra individual, um estilo, um gênero ou um mundo da

arte – procurando reconstituir a seqüência de todas as coisas feitas, as decisões e escolhas

feitas pelos produtores da obra, os criadores do novo estilo, gênero ou mundo da arte, antes

deles assumirem forma definitiva.

5 Becker enumera os cuidados para prevenir tais erros e as conseqüentes críticas à credibilidade das técnicas

qualitativas em Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais (1993: 9-133).

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Na outra, movendo-se para baixo (downstream), estuda-se a continuação da história

da obra, estilo etc, o que acontece com eles depois da data que o pesquisador decidiu ser

apropriada para considerá-los concluídos. A propósito, Becker cita Bruno Latour: "o

destino do que dizemos e fazemos repousa nas mãos dos futuros usuários".

No caso da pesquisa upstream, a tarefa do pesquisador é explicitar e tornar evidente

a rede de relações entre pessoas e grupos, as múltiplas decisões e escolhas feitas, assim

como a variedade de meios empregados pelos produtores desse fenômeno. No caso da

pesquisa downstream, traçar as linhas descendentes, em forma de árvore invertida, que

partem dele, e descrever os caminhos que ele percorre ao ser recebido, apropriado e

transformado por outros grupos de pessoas.

Tanto a pesquisa por irradiação quanto a genética obrigam o pesquisador a uma

postura aberta quanto ao escopo da pesquisa, já que dificilmente ele pode saber, de

antemão, onde irá traçar as fronteiras que encerram o mundo da arte ou fenômeno artístico

estudado. Mesmo a escolha do momento inicial, ou corte temporal, da pesquisa genética,

que divide o fluxo histórico em "antes" e "depois", é relativamente arbitrária, dependendo

mais das perguntas feitas pelo pesquisador e da disponibilidade dos dados do que de

"alguma coisa inerente aos eventos que estamos estudando" (Becker 2003: 2).

A incerteza sobre onde traçar as fronteiras dos mundos da arte também decorre do

problema sempre difícil de resolver, seja para o sociólogo, seja para os seus membros, de

estabelecer se e quando uma obra é "realmente artística", ou apenas "artesanal" ou

"comercial". Para o sociólogo, é crucial detectar onde e quando os participantes traçam as

linhas divisórias, tarefa à qual "tipicamente devotam considerável atenção". Observar como

isto é feito é crucial à compreensão do que acontece neste mundo (Becker 1982: 36).

As atividades necessárias à produção, distribuição e recepção das obras de arte,

compreendidas como momentos distintos da descrição e da análise sociológica, são:

1. Ter a idéia da obra a fazer e da forma específica que ela deve assumir. A

variedade de maneiras de criar uma obra é praticamente inesgotável, mas nenhuma delas

garante sua qualidade estética. Corresponde ao momento convencionalmente designado

como "criativo" da obra de arte.

2. Executar esta idéia. Neste momento, são particularmente relevantes (embora a

execução não se limite a isto) os aspectos técnicos da arte. Não se deve postular a

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anterioridade temporal ou lógica da ideação da obra sobre a sua execução: habitualmente há

interação entre elas, um processo de mútua correção e desenvolvimento de possibilidades.

(Normalmente, na divisão do trabalho nos mundos da arte, as tarefas de ideação e execução

das obras de arte cabem aos artistas, mas não só – uma multiplicidade variável de

colaboradores pode ser necessária à execução e, mesmo, à ideação.)

3. Manufaturar e distribuir materiais e equipamentos, especialmente durante a

execução da obra, mas também quando se trata de distribuí-las e exibi-las publicamente.

Todo mundo da arte requer, e deve providenciar que haja, uma organização artesanal e/ou

industrial de confecção e manutenção desses instrumentos e equipamentos.

4. Conseguir recursos (financeiros, humanos, materiais etc.) para produzir e

distribuir a obra e possibilitar o acesso de um público a ela. Alguém – indivíduo, empresa,

Estado, organização cultural – deve bancar a obra, esperando algum retorno, econômico ou

simbólico. Grande parte das energias dos produtores das obras é despendida nesta

atividade.

5. Pessoal de apoio é indispensável a qualquer obra, mesmo as mais individuais e

solitárias. Mundos da arte empregam grande variedade de pessoas nas tarefas menos

prestigiosas e quase sempre invisíveis que possibilitam a produção e a circulação das obras.

6. A atividade de resposta e apreciação deve ocorrer para que a obra tenha

existência social. Toda obra visa um público, que não precisa ser conhecido pelos seus

produtores, mas é sempre antecipado como destinatário virtual. Responder e apreciar uma

obra exige sua acessibilidade, não só material: ela deve poder ser compreendida,

significativa e emocionalmente.

7. A arte precisa justificar sua existência, dizer para quê ela "serve": não só a

própria arte, enquanto reveste-se muitas vezes da aura da gratuidade e desinteresse6, mas

também nas formas específicas que assumem as obras particulares. Estas formulações são

traduzidas e usadas pelos realizadores das obras (por exemplo, para decidir o que fazer em

casos particulares), pelos distribuidores ao publicizarem-nas e pelos receptores para dar-

6 Toda atividade social exige justificações, sobretudo perante os que não estão envolvidos nela. A justificação

da arte tem a dificuldade particular de apoiar-se em argumentos de natureza estética, relativos à espécie de

prazer que proporciona. Os tópicos do desinteresse e da gratuidade, centrais às ideologias modernas da arte,

não são examinados por Becker com atenção equivalente à que lhes dedica Pierre Bourdieu (ver, por

exemplo, 1992: 237-45, sobre "a produção da crença" e 299-310, sobre "campo literário e campo do poder"),

que afirma serem eles valores indispensáveis à compreensão das lutas pela autonomia que atravessam e

constituem os campos culturais.

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lhes sentido e propósito. Em geral, como tarefa especializada, são as obras dos estetas e dos

críticos.

8. Treinar as pessoas envolvidas na feitura, distribuição e recepção das obras. A

formação das competências próprias a cada tarefa pode ser obtida em instituições

especializadas (como escolas de belas artes, de música, de dança etc.) ou por aprendizagem

no local de trabalho (on the job training).

9. Os mundos da arte requerem estabilidade nas regras do jogo, ou condições de

"ordem cívica". Por exemplo, os sistemas de produção e distribuição de obras de arte

precisam apoiar-se em direitos de propriedade e de recompensas institucionalmente

garantidas. Hoje em dia, tal função cabe principalmente ao Estado (Becker 1982: 2-5).

Não é preciso que todas estas atividades ocorram, nem nesta ordem precisa, para

uma obra cumprir seu ciclo. Uma ou várias delas podem faltar ou podem ocorrer em ordem

diversa – na produção de uma obra pode não haver pessoal de apoio; a distribuição pode ser

inviável e a obra permanecer ignorada; o público pode não se interessar e a obra não ser

recebida; etc. Estas atividades são condições para a existência social da obra tal como se

espera que ela deva ocorrer, mas nem sempre ela ocorre como "deveria".

Quando agem como sistemas de produção, mundos sociais se parecem com

organizações formais porque, como estas, focalizam em produtos coletivos e exibem grau

elevado de especialização e diferenciação social e de tarefas. A diferença entre eles reside

no caráter de sistema aberto dos mundos sociais, já que os colaboradores não são

especificamente ligados uns aos outros ou identificados explicitamente antes da troca

ocorrer. Mundos sociais não têm, como as organizações formais, listas fechadas de

membros entre os quais se dão as interações.

"Nos mundos da arte, por exemplo, as pessoas desenvolvem por si mesmas certas

habilidades artísticas e engendram contribuições pessoais à atividade coletiva visando um

colaborador genérico, não específico" (Gilmore 1990: 151). Há grande liberdade de entrada

e saída das redes de troca e comunicação. Os projetos artísticos dependem de iniciativas

pessoais ou de grupos de produtores, tipicamente não previstas, para as quais há,

geralmente, uma disponibilidade virtual, tanto no nível das disposições individuais quanto

organizacionalmente.

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A variedade de atividades nos mundos da arte implica algum tipo e grau de divisão

do trabalho, variável de caso a caso e de um meio artístico a outro, cabendo a cada pessoa

envolvida nessas atividades um pacote específico de tarefas, assim como as recompensas

associadas a ela – financeiras, simbólicas etc. "Uma divisão do trabalho bem estabelecida

forma a base para a troca regular e rotineira entre os participantes que cooperam uns com os

outros no mundo da arte" (Gilmore 1990: 151).

OS ARTISTAS E A ATIVIDADE NUCLEAR DOS MUNDOS DA ARTE

A crença amplamente difundida de que um verdadeiro artista possui dons criativos e produz

obras de grande importância para a sociedade é a fonte da posição central que o papel de

artista ocupa na divisão do trabalho nos mundos da arte. Disto decorre que a criação da

obra veio a ser a atividade nuclear entre as acima descritas. É uma crença nas virtudes

extraordinárias do produto artístico, na sua superioridade intrínseca vis-à-vis os produtos

industriais e artesanais, em que a criatividade individual tem papel secundário. Artistas

criativos e originais ocupam lugar privilegiado nesses mundos, sobretudo quanto à honra e

às vantagens auferidas em virtude disto. As atividades de financiamento, apoio e

distribuição são reputadas como mais banais, menos necessárias, menos dignas de respeito

(Becker 1982: 16-7).

Tal crença depende da idéia, gestada no mundo das artes plásticas italiano durante o

período renascentista e que frutificou e se afirmou nos séculos seguintes no Ocidente

(tornando-se, por exemplo, a idéia motriz do movimento romântico), de que a obra de arte

consiste fundamentalmente – e como tal deve ser compreendida e valorizada – na

expressão pessoal de um artista individual.

Até então, diz George Kubler, na Idade Média européia, o artista individual era

invisível. Ficava por trás das fachadas corporativas da Igreja e da guilda. No fim do

quattrocento italiano, as atividades do pintor, do escultor e do arquiteto foram consideradas

como diferentes dos negócios manuais e atingiram a dignidade das artes "liberais". "O

artista não é mais um artesão, mas um criador, uma espécie de alter deus livre das normas

comuns; a representação carismática do artista se funde com uma imagem aristocrática da

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obra de arte, única e insubstituível. Este é o ponto de partida para a idéia moderna do

criador e do objeto criado" (Kubler 1962; citado por Becker 1982: 353).

Idéia que constitui a base do moderno culto do artista. Arnold Hauser diz que a

descoberta da idéia de gênio é a novidade da concepção artística do Renascimento: que "a

obra de arte é criação da personalidade autônoma, e que esta personalidade está acima da

tradição, da doutrina e das regras e, inclusive, da própria obra; a obra recebe sua lei daquela

personalidade; em outras palavras, a personalidade é mais rica e mais profunda do que a

obra e não pode chegar a expressar-se por completo em nenhuma realização objetiva"

(Hauser 1976, vol I: 407).

Michael Baxandall, tratando as pinturas como "fósseis da vida econômica" (um

exemplo da abordagem genética), escavou a gênese desta nova maneira de ver o artista

estudando a estrutura do mercado de pintura na Itália do século XV, "a fim de descobrir a

base econômica para o culto do talento pictural" (Baxandall 1991: 9-10).

As convenções e as instituições em vigor no mundo da pintura italiana durante o

quattrocento autorizavam o cliente a influir determinantemente no caráter das pinturas. Do

ponto de vista do comprador, era uma relação comercial, predominantemente do tipo

consumo conspícuo. Quadros eram, então, considerados "objetos de boa qualidade", artigos

de luxo cuja posse proporcionava satisfação ao comprador, tendo ainda as funções de servir

à glória de Deus e à honra da cidade e de contribuir para a memória do seu proprietário,

sem falar no prazer de contemplar boas pinturas (Baxandall 1991: 22-4).

"No século XV, diz Baxandall, a pintura era uma coisa importante demais para ser

deixada nas mãos dos pintores", tradicionalmente definidos como mestres de ofício que

dividiam a execução da obra com auxiliares sob seu comando. Aos poucos, a habilidade de

um pintor, seu virtuosismo no desempenho do ofício, tornou-se o principal critério de

determinação do valor da obra, em detrimento do "esplendor dourado" pelo qual até então

se media o valor dos objetos de arte. A afluência de novos-ricos nas cidades italianas levou

a aristocracia a procurar distinguir-se deles não somente pela riqueza, mas pela qualidade

mais imponderável do refinamento do gosto. No caso, pelo consumo da arte enquanto tal,

segundo a dicotomia entre a dimensão material e a dimensão qualitativa, de tipo

"espiritual", dos bens culturais (Baxandall 1991: 23-7).

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A nova relevância da habilidade do artista se expressou nos contratos, que passaram

a estipular, na divisão do trabalho nos ateliês, a exigência da presença da "mão do mestre"

nas partes do quadro onde melhor se evidenciasse sua arte, entendida como maestria e

habilidade. Os contratos passaram a especificar também diferenças de pagamento entre

eles. Progressivamente, a habilidade pictural adquiriu valor, tanto simbólico quanto

econômico, e a consciência da individualidade do artista cresceu (Baxandall 1991: 27-31).

Pierre Bourdieu entende que esta valorização propriamente estética do trabalho

artístico representa um momento, de caráter genético, do esforço dos pintores para

aumentar sua autonomia, "afirmando seu domínio sobre o que lhes é devido na divisão do

trabalho de produção simbólica, isto é, a maneira, a forma, o estilo". A autonomia do pintor

no desempenho do seu ofício, os graus de liberdade de que ele pode gozar na criação da

obra, dependem da autonomia do campo da produção artística, obtida através das lutas

entre o grupo dos produtores artísticos e as instâncias externas de poder – políticas,

econômicas e religiosas (Bourdieu 1992: 434-6).

A emergência histórica desta personagem investida de novos direitos e funções,

definida por qualidades e valores inéditos, o artista, de quem o pintor italiano é um caso

exemplar, coincide com a invenção deste novo objeto de percepção e de apreciação, a obra

de arte no sentido moderno da palavra, de objeto destacado, destinado à contemplação

estética dita "desinteressada" (isto é, não-utilitária).

A ideologia que postula haver "correlação perfeita entre fazer a atividade nuclear e

ser um artista" (Becker 1982: 18) é, pois, uma ideologia de artista. Deve ser entendida

tanto como um a priori teórico que orienta a interpretação e o juízo de valor a serem feitos

pelos receptores das obras, quanto como arma de combate dos artistas para adquirir

controle sobre seus meios de produção. A noção de gênio, com os termos imponderáveis

que formam seu halo semântico – talento, sensibilidade, criatividade, espontaneidade,

habilidade –, é a ênfase mágico-mística desta reivindicação, uma espécie de hipertrofia

retórica que fundamentou a reivindicação da liberdade de criação. Traduziu uma exaltação

dos direitos da pessoa e da sua presumida necessidade de "expressar-se autenticamente":

nesta ideologia de artista, a obra de arte converte-se na materialização, na exteriorização de

uma verdade íntima e singular, através da qual o sujeito da criação artística afirmou a sua

existência social e histórica.

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Na "vida real", porém, esta ideologia deve fazer compromissos – o artista precisa de

meios materiais para viver e fazer seu trabalho, enfrenta censuras morais e de gosto, deve

fazer concessões a quem lhe paga, seja a Igreja, o Rei ou o burguês amante das artes. Veja-

se o caso de uma célebre pintura (Las Meninas): mesmo pondo-se no lugar de autor do

quadro em que se pintou pintando, Diego Velásquez sabia perfeitamente de quem era ele o

pintor, mesmo se fez do casal real apenas um reflexo no espelho que paira atrás dele,

Velásquez. É para o casal real, o motivo ausente/presente do espaço da representação, que

convergem os olhares da Infanta, da dama de honor que o saúda, da anã e, last but not the

least, do pintor do rei.

Analogamente, Fernand Léger pode ter sido um dos orgulhosos motores do

modernismo da vanguarda parisiense, um dos articuladores do projeto de "aniquilação do

mundo" pelos poderes da pintura, criador de "uma linguagem artística cujo assunto era ela

mesma", como diz Sergio Miceli – ao cumprir sua parte no contrato de entregar ao magnata

paulista Paulo Prado as "paisagens animadas" encomendadas ("Allo, allo, Monsieur

Prado"), ele forjou "uma versão palatável e digestiva do vocabulário modernista",

adequada aos "padrões de gosto, um bocado passadista" de seu cliente não-europeu (Miceli

2003: 9-11).

Concessões e compromissos são resultados de lutas sobre as convenções acerca da

forma e do conteúdo da representação artística. Estão implícitas na idéia de colaboração

entre os participantes dos mundos da arte (que incluem também os patronos), que não

exclui discordâncias, desentendimentos, conflitos e rivalidades. As lutas de poder nos

mundos da arte são multifárias, assumindo freqüentemente a forma de lutas de definições,

seja quanto a noções práticas e teóricas, seja quanto a situações de colaboração e de troca.

Em certos casos, quando não é evidente quem é o verdadeiro autor de uma obra, no

sentido da responsabilidade final sobre a sua criação, acordos são raros e pouco estáveis,

dependendo de fatores como o consenso dos produtores e dos entendidos, a energia e a

reputação de atores individuais envolvidos nas disputas e os desenvolvimentos técnicos e

econômicos no mundo da arte em questão.

Becker observa que, no estudo sociológico dos processos de trabalho, os momentos

mais frutíferos para o sociólogo são aqueles em que os participantes discordam, discutem e

brigam. Porque, nestes momentos, algum acordo, seja realmente existente, seja esperado,

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foi quebrado e "uma expectativa subjacente que funcionava como premissa que garantia a

interação se revela ao analista". Conflitos ocorrem freqüentemente na margem social entre

dois grupos, por exemplo, na interação entre profissionais de especialidades diferentes

durante a produção das obras de arte, porque "cada grupo encontra o outro trazendo um

conjunto estabelecido de idéias sobre como as coisas devem ser feitas, quem dá as ordens,

como o dinheiro é divido e distribuído e assim por diante" (Becker 2003: 2).

O cinema propicia numerosos exemplos disto, porque é, ao mesmo tempo, uma arte

onde a criação é coletiva, implicando divisão do trabalho entre roteirista, diretor, fotógrafo,

montador, cenógrafo e outros (funções quase sempre ocupadas por especialistas com uma

formação profissional e correspondente reputação a zelar); e um ramo da indústria cultural,

fortemente dependente da lógica econômica da racionalização das etapas da produção e da

comercialização, visando à rentabilidade financeira do produto (havendo, neste ponto, uma

interseção, freqüentemente conflitiva, entre os princípios sociológicos definidores de

mundo social e de organização formal).

Como lembra o historiador Marc Ferro (1977: 16), a realização de um filme

freqüentemente secreta rivalidades, lutas de influência surdas ou abertas que raramente

transparecem publicamente, opondo o diretor aos produtores, os produtores aos

distribuidores, o roteirista aos atores etc, segundo processos que variam de filme a filme e

que deixam sua marca no resultado final.

Ele estudou o caso de The Third Man (O Terceiro Homem, filme inglês de 1949) e

das divergências entre o diretor, Carol Reed, que lhe imprimiu marca fortemente

anticomunista e pró-britânica, e o autor do roteiro, Graham Greene, que via o filme apenas

como uma diversão moral, menos chauvinista e mais universal. Orson Welles, ator do filme

que representou o personagem Harry Lime, "o terceiro homem", com uma breve aparição

no fim do filme, roubou de Reed os créditos do público e da crítica pela beleza e a

estranheza do filme e devolveu-lhe a feição moralmente ambígua desejada por Greene

(Ferro 1977: 61-9).7

7 Como diretor de filmes, Orson Welles é um caso exemplar de wonder boy genial, no sentido renascentista

do termo "gênio", que nunca cessou de lutar contra o studio system pelo direito ao final cut, numa guerra sem

mercê que resultou na vitória da máquina hollywoodiana (sendo o final cut o ponto nevrálgico do direito de

propriedade dos produtores sobre o filme, porque é na edição que um filme define seu caráter).

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A "política dos autores", termo de combate cunhado pelos críticos dos Cahiers du

Cinéma nos anos 1950, atacou os problemas da criação coletiva e da natureza industrial do

cinema com a ideologia de artista já vista, afirmando, ao mesmo tempo, a diferença

específica do cinema em relação às demais artes (sobretudo a literatura) e a sua igualdade,

no sentido de valor artístico, em relação a elas.

A resposta dos críticos franceses à pergunta que assombrou por muito tempo os

teóricos do cinema – "qual é o específico fílmico?" – foi: o ato de filmar. É filmando com

uma câmera, e não escrevendo com uma caneta, que o diretor do filme afirma a diferença

do cinema. É filmando que ele expressa a sua personalidade e impregna o filme, através do

seu estilo, com sua visão do mundo. Se for capaz de fazê-lo, é um autor de pleno direito

(Stam 2003: 103-4).

O "autorismo" foi, na sua época, uma resposta estético-política ao menosprezo

elitista dos intelectuais literatizantes pelo cinema e um instrumento de luta contra as

restrições à liberdade de criação (leia-se: controle sobre os meios de produção) do autor de

filme pelo studio system. Como toda teoria, não teve implicações somente teóricas: como

crença e definição prévia do seu objeto, orientou as percepções e as ações dos participantes

do mundo do cinema, assim como aumentou o poder do diretor na feitura da obra e o

volume das recompensas auferidas, tanto simbólicas quanto materiais. Deve, pois, ser

entendida como um caso de conflito "nas margens entre grupos profissionais" com

interesses e expectativas distintas.

A hegemonia conquistada pela teoria do autor no mundo do cinema é o que permite

dizer, hoje, que um filme é "de" tal ou qual diretor; que livros e cursos de cinema sejam

ordenados pela ordem canônica dos metteurs en scène; que as premiações das academias e

dos festivais de cinema contemplem os diretores dos melhores filmes; etc.

Esta breve resenha da ascensão do artista ao centro do mundo da arte, exemplificada

pelas conquistas dos pintores renascentistas e dos diretores de filmes da posição de autores

(relativamente) livres das suas obras, não pode dar conta da variedade das formas e dos

meios de valorização do artista, da sua maior ou menor autonomia criativa e dos diferentes

papéis que ele desempenha hoje nos mundos da arte. Há que estudar empiricamente cada

caso, porque "o status de qualquer atividade particular como atividade nuclear que requer

dons artísticos especiais ou apenas como de apoio, pode mudar" (Becker 1982: 17).

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Os mundos da arte criam critérios e mecanismos especiais para separar quem é e

quem não é um "verdadeiro artista". São processos estruturados e instâncias institucionais

de reconhecimento social e legitimação da distribuição seletiva do mérito artístico, que

constituem a sua reputação. Neste particular, é crucial a opinião dos "entendidos", os juízes

de gosto, cuja autoridade funda-se no reconhecimento do seu saber específico e na

competência anteriormente provada no domínio artístico em que se movem.

Esses juízes devem apoiar os juízos particulares que emitem sobre uma obra ou um

artista em razões de caráter abstrato, válidas em geral. Sendo a Estética uma disciplina

naturalmente contenciosa, desde que Platão e Aristóteles polemizaram sobre a natureza e o

valor da representação artística, tais razões variam tipicamente em função de um sem

número de fatores, alguns de caráter interno, outros de caráter externo à disciplina.

Algumas razões são bem conhecidas: a originalidade da obra, inseparável da noção

de expressão pessoal do artista como personalidade singular; a espontaneidade da criação,

que depende da suposição da genialidade do autor e da valorização do seu frescor, por sua

vez associado à facilidade que a obra revela, por oposição a um possível caráter maquinal

da composição e execução da obra; a responsabilidade pela forma final e o estilo da obra

que, no caso das que são propriamente coletivas, induzem a disputas sobre qual é a

atividade efetivamente nuclear daquele meio de expressão; a autenticidade, no sentido de

saber quem realmente fez a obra, havendo sempre a possibilidade de colaborações ou

interferências ignoradas no resultado final (Becker 1982: 18-24).

CONVENÇÕES

Outra diferença entre mundos sociais e organizações formais, segundo Gilmore, é a

ausência de relações de autoridade preestabelecidas entre os participantes daqueles. Nas

organizações formais, as elites organizacionais, agindo como mecanismo de coordenação,

determinam objetivos e meios da colaboração e os subordinados seguem as orientações ou

diretivas formuladas. Nos mundos sociais, a ausência de relações de autoridade

formalmente estabelecidas implica que os participantes devem coordenar eles mesmos suas

atividades durante cada transação (Gilmore 1990: 151-2).

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Para a abordagem beckeriana dos mundos da arte, é capital lembrar que, se não há

relações de vinculação formal e de autoridade legal entre os participantes, a função de

coordenação para distribuir e determinar as práticas comuns que ligam atividades

interdependentes se faz através de convenções aceitas, ao invés de por uma elite

administrativa formal.

Uma convenção é um acordo sobre determinada atividade ou assunto que obedece a

entendimentos prévios e a normas baseadas na experiência recíproca, implicando em

práticas comuns pressupostas antes de começarem. Os colaboradores numa atividade

qualquer concordam em se conformar com práticas passadas porque esperam que outros

participantes façam o mesmo, expectativa que facilita a troca entre eles e, por outro lado,

dificulta mudar tais práticas (Becker 1982: 32-4).

Os participantes também usam convenções para formar identidades que lhes

permitem determinar suas posições e ser posicionados por outros colaboradores. Tais

identidades devem ser entendidas como propriedades relacionais e não como atributos do

indivíduo, independentes dos contextos onde elas se formam, se mantêm ou se modificam.

Nos mundos da arte, as convenções artísticas ajudam a circunscrever e definir o estilo

pessoal que estabelece a identidade de cada artista, permitindo-lhe distinguir-se dos demais

(inclusive, quando for o caso, pela ruptura com as convenções estilísticas aceitas).

A noção de convenção equivale, para Becker, à de entendimentos compartilhados.

É, por exemplo, o que permite a um grupo de músicos tocarem juntos, assim como ao

público aceitar e apreciar o que ouve. A música executada é previamente conhecida, o

arranjo que escolhem faz parte do repertório de arranjos possíveis que trazem consigo, já

incorporados pela experiência musical adquirida, como parte das virtualidades de arranjá-la

"bem", de acordo com certos princípios de gosto etc. Por sua vez, a audiência tem certas

expectativas sobre o que quer ouvir e definições prévias do que é boa música, virtuosismo

interpretativo e outros critérios de gosto. Dadas essas expectativas, reagirá com prazer,

desprazer, indiferença ou hostilidade.

Convenções raramente são estabelecidas formalmente, de acordo com um código

explícito. Quase sempre, são implícitas e dependentes de interpretações e negociações ad

hoc. Podem, neste sentido, ser exploradas e adquirir novos usos e sentidos como, por

exemplo, ocorre com um gênero artístico cujas virtualidades permitem desdobramentos,

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fusões com figuras pertencentes a outros gêneros e soluções a problemas novos não

antevistos em usos prévios do gênero.

Equipamentos, materiais, instalações, sistemas de codificação e de anotação

empregados rotineiramente têm possibilidades de entendimento e de uso que supõem e

incorporam, até fisicamente, convenções estabelecidas, taken for granted pelos

participantes de cada mundo da arte, inclusive pelo público receptor. Por exemplo, nas

câmeras, lentes e filmes na fotografia, no cinema e no vídeo; nas telas, tintas e pincéis na

pintura; em palcos, espaços para as platéias e parafernália técnica no teatro; nas escalas

cromáticas embutidas em instrumentos musicais; etc.

Além disto, convenções usadas costumeiramente não existem isoladamente:

relacionam-se umas às outras em sistemas complexamente interdependentes, de tal modo

que uma mudança em uma delas exige mudanças correspondentes em outras convenções.

Esta é uma das razões que tornam difíceis de produzir e fazer aceitar mudanças mais

profundas em convenções aceitas e freqüentemente usadas, limitando o âmbito de

inovações radicais que artistas podem introduzir.

Tais limitações não são impossíveis de superar, desde que se esteja preparado para

pagar o preço – aumento do esforço necessário para a realização da obra ou diminuição da

audiência, por exemplo – que implica uma inovação radical. Podemos compreender cada

obra de arte como o resultado de uma "escolha entre a facilidade e o sucesso convencionais

e a dificuldade não-convencional e a falta de reconhecimento" (Becker 1982: 33-4).

Inovações não dizem respeito apenas à forma e ao conteúdo de uma obra, uma vez

que exigem mudanças nas formas habituais de cooperação entre os que a produzem,

distribuem e recebem: equipes de produtores devem inventar novas técnicas e formas de

linguagem, com resultados emocionais e estéticos difíceis de prever, distribuidores devem

preparar o público para os estranhamentos que certamente ocorrerão e os destinatários da

obra devem ajustar seus padrões de gosto e esquemas de percepção e entendimento (Becker

1982: 302).

Via de regra, mudanças em obras de arte e nos padrões de cooperação requeridos

são graduais e virtualmente imperceptíveis. Ocorrem pela acumulação de pequenas

mudanças nas soluções dos problemas comuns a uma tradição artística específica, cada

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nova solução resultando em novos problemas, que, por sua vez, alteram o problema,

inclusive pela alteração do âmbito de soluções a este problema (Becker 1982: 303).

Um exemplo deste padrão acumulativo de micro-mudanças como soluções pontuais

a um problema comumente definido, desdobrado em inumeráveis sub-problemas

impossíveis de prever de antemão, é oferecido pelo esforço coletivo, secular, do mundo das

artes plásticas no Ocidente, desde a revolução grega (e sua ênfase no "como", ao invés de

no "o quê" da representação visual), visando encontrar formas cada vez mais precisas e

verossímeis de representação realista, ilusionista, do mundo visível (ver, sobre isso,

Gombrich 1986).

Algumas micro-mudanças não são definidas como mudanças pelos mundos da arte

por não requererem reorganizações radicais nas atividades cooperativas. Outras mudanças

mais importantes exigem dos participantes aprender e fazer coisas diferentes, o que pode

ser inconveniente para alguns eles e ameaçar seus interesses – mesmo assim, são

habitualmente vistas como normais e esperadas, salvo pelos que não se adaptam (Becker

1982: 304).

Já mudanças revolucionárias, como, por exemplo, as rupturas vanguardistas nas

artes plásticas modernas (cubismo, dadaísmo etc.), implicam transformações na linguagem

convencional da arte e perturbam padrões rotineiros de cooperação (sobre quem pode agir

junto com quem para fazer o que), afetando deliberadamente as redes de cooperação. Seus

promotores atacam ideológica e organizacionalmente – através de manifestos e ensaios

críticos, revisões da história da arte, investidas contra os cânones vigentes etc. (ver a

"revolução modernista" de 22 no Brasil), e ações do tipo político-institucional visando

apossar-se de fontes de financiamento e apoio, dos meios de divulgação e exibição, do

favor do público etc. (idem) – os padrões de atividades predominantes no mundo da arte em

questão (Becker 1982: 304-5; também Miceli 2003).

Como toda convenção implica uma estética e uma moralidade associada a ela,

atacar uma convenção estabelecida é tanto um assalto à estética correspondente, na sua

definição de beleza artística, quanto às crenças sobre o que é "certo" e "natural". Nos

círculos moralmente rígidos (conservadores) do público de arte, a obra vanguardista (como,

por exemplo, o Abaporu, de Tarsila do Amaral, espécie de emblema da revolução

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modernista brasileira) é recebida com o horror e a repugnância reservados às abominações

"contra a natureza".

Ataques aos cânones institucionalizados ameaçam sistemas existentes de

estratificação nos mundos da arte. Os artistas que ocupam o topo das hierarquias de status

destes mundos vêem atacadas as reputações de que gozam, quanto às competências e ao

domínio que possuem das técnicas e linguagens, até então aceitas como legítimas e

valiosas. Portanto, são forçados a combater as ameaças ao seu controle sobre os recursos e

as recompensas que advêm do reconhecimento dos dons artísticos que são o componente

principal das suas reputações.

Um aspecto importante das convenções artísticas estabelecidas é a sua tradução em

vocabulários mais ou menos esotéricos, próprios a cada forma de arte: isto é, redes de

termos em uso, mutuamente referidos, que, por um lado, apontam para exemplos concretos

(paradigmas), suficientemente conhecidos pelos participantes, que condensam, como uma

taquigrafia, experiências passadas ou atuais; e, por outro lado, tornam possível e facilitam a

comunicação entre eles – seja durante a fase de produção da obra, seja na sua recepção.

Uma qualidade da imagem fotográfica exemplifica esta idéia: a "profundidade de

campo", que diz respeito ao grau de nitidez dos objetos visíveis ("em foco") no quadro

recortado pelas bordas da imagem, considerando sua distância em relação à objetiva da

câmera. Trata-se de uma variável, que pode ir de um máximo – onde todos os objetos

enquadrados no campo visual, próximos ou distantes, estão em foco – a um mínimo – onde

apenas os objetos a uma determinada distância o estão (Aumont 1993: 223-4).

Supõe-se que esta expressão é plenamente compreendida pelo diretor de um filme,

pelo fotógrafo, pelo iluminador e outros membros da equipe de filmagem quando, no

momento 2 da divisão de atividades no mundo da arte (execução da idéia), o primeiro

ordena uma "imagem em profundidade de campo". Igualmente, supõe-se que o espectador

"entendido", no momento 6 desta divisão (resposta e apreciação), saiba distinguir entre

imagens "em profundidade" e "sem profundidade" e reconhecer as diferenças técnicas e

estéticas entre elas.

Essas expressões quase sempre se revestem de caráter técnico, formando um jargão

com o qual os participantes do mundo da arte correspondente, inclusive os membros bem

socializados do público, devem familiarizar-se para atingir a plena compreensão do "jogo

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de linguagem" próprio a cada arte. Esta idéia wittgensteiniana de jogo é plenamente

aplicável aqui e particularmente relevante para o entendimento dos processos de entrada

dos participantes num mundo da arte e a aptidão requerida para desempenharem

adequadamente seus papéis.

Segundo Christiane Chauviré (1991: 90-5), "os jogos são livres criações do espírito

e da vontade, autônomos e governados por regras. Saber jogar um jogo é uma capacidade

que supõe o domínio de uma técnica, consecutiva a uma aprendizagem. O fosso que separa

a regra da sua aplicação é preenchido pelo treinamento ou o adestramento (Abrichtung), a

familiaridade, a prática do jogo" (grifos da autora).

O vocabulário corrente em um mundo da arte não cumpre apenas o papel de

designar certos objetos, aspectos de obras ou procedimentos de produção e interpretação de

obras. Em primeiro lugar, porque, estando ligados uns aos outros por suposição mútua

(compreende-se cada um por suas diferenças em relação aos demais), cada um dos seus

termos integra um sistema de nomes que resulta ser condensação de memórias (de

invenções, aperfeiçoamentos, rupturas e conservações de técnicas e de linguagens) e remete

à tradição específica daquela arte. Em vista disso, são estratégicos para a análise

sociológica, no sentido de constituírem pistas para mapear as sub-culturas particulares da

arte em questão.

Em segundo lugar, porque têm caráter pragmático, isto é, sugerem "jogadas"

possíveis em cada situação particular (do tipo "aqui é possível fazer isso ou aquilo"). Os

termos de um vocabulário em uso remetem implicitamente às regras do jogo que está sendo

jogado e configuram paradigmas de ação, pois só pelo em casos concretos eles são efetivos

e ganham significação – no sentido wittgensteiniano, não-reificado, de que uma gramática

(tanto no sentido sintático quanto semântico) só existe através das suas efetuações.

A profundidade de campo, que resulta de um avanço tecnológico que depende de

outros que lhe são correlatos (como o desenvolvimento da sensibilidade do filme), é

também um recurso da linguagem cinematográfica cujos aperfeiçoamento e emprego

sistemático, entre os anos 30 e 40, assinalam a ruptura com um padrão estético anterior que

críticos e historiadores do cinema resumem na idéia de "evolução do realismo

cinematográfico". André Bazin (1975: 63-80), tratando da evolução da linguagem do

cinema, mostra como a profundidade de campo e o uso do plano-seqüência são inseparáveis

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de um novo interesse pela realidade do mundo fenomênico, configurando uma revolução

estética e moral na História do cinema.

Termos como profundidade de campo são, contudo, expressões sem significado

fixo, sendo suficientemente imprecisos para permitir variações no seu emprego e na sua

interpretação contextual. Suas definições (por oposição às definições verbais) têm quase

sempre o caráter "ostensivo" que, na metodologia da ciência, tipifica os conceitos cujo

entendimento requer um aprendizado não-verbal, através de casos e exemplos que se pode

"apontar com o dedo" (Zetterberg 1971: 38-9).

MODERNIDADE, MUNDOS SOCIAIS E INTERPRETAÇÃO

Samuel Gilmore (1990: 148-9) diz que abordar a arte através do conceito de mundo social

permite integrar os níveis comportamental e organizacional da análise, propiciando uma

solução, distinta do modelo da correspondência, ao problema da relação entre os níveis

micro e macro da análise sociológica da arte.

No modelo da correspondência, as variações nas estratégias formais e nas visões de

mundo veiculadas pelas obras de arte, as diferenças sobre o que elas significam (em outros

termos, sobre as intenções, conscientes ou não, que elas expressam), são compreendidas

como resultados dos mecanismos e dos processos através dos quais os artistas internalizam,

ou subjetivam, as características do seu ambiente, pelas correlações entre essas

características e os modos (temas, linguagens etc.) como elas são traduzidas no corpo das

obras. A internalização de normas e visões de mundo é, então, o mecanismo que realiza a

passagem do macro ao micro. "O foco explicativo se volta para os atributos compartilhados

pelo indivíduo e pelo contexto social" (Gilmore 1990: 150).

Já na sociologia interacionista, os níveis micro e macro da análise são integrados

através de um mecanismo relacional, "[pela] interação ou troca entre pessoas específicas, e

não [por] um mecanismo atributivo que descreve a distribuição de atributos individuais e

sua correlação com comportamentos ou atitudes". As relações no nível macro são uma

extensão das relações micro e vice-versa (Gilmore 1990: 149).

Um mundo da arte fornece uma armação (framework) para um conjunto agregado

de relações. Os artistas são integrados ao ambiente social pelas redes de apoio de que

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participam. Tais redes e os processos sociais através dos quais interagem artistas e pessoal

de apoio permitem explicar variações nas formas coletivas de expressão artística. Os

participantes dos mundos da arte compartilham entendimentos que guiam seus interesses e

atividades conjuntas e lhes fornecem identidades coletivas. São, neste sentido, like-minded

(Gilmore 1990: 149-51).

Essa like-mindedness aponta, mais indireta do que diretamente, para uma

característica bem conhecida das sociedades modernas, a diferenciação histórica das

atividades e das funções sociais que acompanha a crescente divisão social do trabalho na

modernidade. O processo milenar de passagem do homogêneo ao heterogêneo, da

indiferenciação primitiva dos domínios da economia, da religião, da política, da arte etc.,

em direção à crescente especialização das diferentes esferas de atividades e à instituição de

legalidades próprias a cada uma dessas esferas, é um dos temas centrais das sociologias

durkheimiana e weberiana, por exemplo.

É um processo que está no miolo da teoria estrutural-genética bourdieuana dos

campos, que visa construir sistematicamente os fundamentos e os desdobramentos da

hipótese weberiana sobre a efetivação da "legalidade específica" dessas esferas de

atividade, realizada pela sociedade capitalista, burocrático-industrial. É na medida em que

os campos simbólicos (científico, artístico, jurídico etc) possuem regras do jogo e objetos

de disputa (enjeus) específicos, irredutíveis às regras e enjeus de outros campos, que eles

tendem a lutar pela autonomia, sobretudo vis-à-vis o campo de poder (político e econômico,

sobretudo); e vice-versa.

O acento estrutural-genético da sociologia bourdieuana é, contudo, estranho à

abordagem beckeriana (e interacionista simbólica, de modo geral). Nunca encontraremos

nela expressões características desta sociologia, como "espaço estruturado de posições",

"estrutura da distribuição do capital específico do campo" ou "cumplicidade objetiva

subjacente a todos os antagonismos" (Bourdieu 1983: 89-94).

É certo, porém, que, segundo Anselm Strauss (1993: 212-5), os mundos sociais (e,

ipso facto, os mundos da arte) estão sempre às voltas com disputas internas para determinar

seus limites, as fronteiras incertas e variáveis que os separam do "mundo externo", assim

como com lutas referentes às hierarquizações internas dos seus participantes, como acentua

Becker. O conceito straussiano de mundo social visa precisamente responder, tanto teórica

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quanto metodologicamente, à complexidade, à fluidez interna e à variedade de tipos de

universos ou esferas de atividades próprias às sociedades contemporâneas. Mas sua ênfase

é mais sobre a cooperação mediada por acordos mais ou menos tácitos do que sobre

conflitos pela apropriação de capital legítimo e mais sobre redes de troca e comunicação do

que sobre lutas em relação a posições de poder.

O foco da sociologia da arte beckeriana é sobre as ações coletivas e os eventos que

elas produzem, entendidas como a unidade básica da pesquisa sociológica, e não sobre

estruturas de posições "ocupadas" por agentes. Para Becker, expressões como "organização

social" e "estrutura social" são apenas metáforas para referir-se a redes de comunicação e

de trocas entre pessoas que tornam possível a ocorrência dos eventos e objetos ditos

"artísticos". "Quando sociólogos falam de estrutura social ou de sistemas sociais, a

metáfora implica (embora seu usuário não prove ou discuta isto) que a ação coletiva

envolvida ocorre regular ou freqüentemente [...] e, além disso, que as pessoas envolvidas

agem juntas para produzir uma ampla variedade de eventos" (Becker 1982: 370).

A estratégia beckeriana não consiste em explicar o mesmo objeto (a obra de arte)

por algum conjunto alternativo de causas, remotas ou próximas – por exemplo, em explicar

as significações das obras pelos fatores que as antecedem e contextualizam. Esta tarefa

interpretativo-valorativa compete aos estetas, grupos de pessoas que "estudam as premissas

e os argumentos que as pessoas usam para justificar a classificação de coisas e atividades

como 'belas', 'artísticas', 'arte', não arte', 'boa arte', arte má' e assim por diante" (Becker

1982: 131).8 Ele não está interessado primariamente na significação ou no mérito cultural

da obra de arte, nem se dedica a elaborar ou aprimorar uma metodologia da interpretação.

Isto não implica desconsiderar as significações das obras, pois elas devem significar

algo para serem eventos simbólicos motivadoras de situações de interação. O que ele não

faz é oferecer, enquanto sociólogo doublé de hermeneuta, as significações que porventura

possa encontrar nelas, como o fazem autores como Goldmann. Significações são questões

dos participantes dos mundos da arte, que estão, por assim dizer, embutidas nos seus planos

de ação.

8 É a atividade dos estetas que permite dar um sentido menos apodítico à proposição de Bourdieu (1983: 92),

segundo a qual "há efeito de campo quando se torna impossível compreender uma obra (e seu valor, isto é, a

crença que lhe é dada; grifo do autor) sem conhecer a história do campo de produção da obra", embora

Becker, certamente, preferisse falar em sistemas de produção em lugar de "campos".

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Becker não focaliza a pesquisa sobre a reconstituição e a descrição das

interpretações das obras. Ele procura o que está "antes" e "em torno" das interpretações –

isto é, as convenções pertinentes, que são os instrumentos de coordenação da ação coletiva.

As interpretações da obra de arte traduzem as projeções sobre ela (ao modo de conjecturas

ad hoc, em princípio negociáveis, refutáveis e retificáveis) dos entendimentos sobre a

linguagem que ela "fala", o gênero que permite classificá-la, os procedimentos expressivos

que ela emprega, a intenção do autor etc.

A significação, como condição e resultado da atividade interpretativa, emerge

tentativamente do empenho dos produtores e dos receptores em dar sentido cognitivo e

emocional à obra sobre a qual convergem seus interesses e paixões. Ao sociólogo cabe

descrever e relatar como isto é feito, postulando e levando em conta as condições de

possibilidade propiciadas pela existência, lógica e empiricamente antecedente, dos mundos

da arte.

ABSTRACT

Howard S. Becker says that art works are the products of the cooperative and exchange

activities of the participants in a specific kind of social worlds: the art worlds. He criticizes

the mainstream sociology of art's stress on aesthetical criteria and suggests an alternative

approach, grounded on the sociologies of occupations and of collective action. He specifies

the kinds of activities needed to the functioning of art worlds, indicates the shared

conventions that enable interactions among participants and scrutinizes the artist's ideology

that gives contemporary art worlds its distinctive feature. Here, we present and develop

some of these ideas and concepts.

KEY WORDS

Art worlds

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Conventions

Interactions

Artists

Work

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