22 gilberto velho e a antropologia das emoções no brasil – revista... · mead, herbert blumer,...

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RBSE Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 41, agosto de 2015 22 22 22 22 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Gilberto Velho e a an- tropologia das emoções no Brasil. RBSE Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 41, p. 22-37, ago. 2015. ISSN: 1676-8965. ARTIGO http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html Gilberto Velho e a antropologia das emoções no Brasil Mauro Guilherme Pinheiro Koury Recebido: 15.06.2015 Aceito: 30.06.2015 Resumo: Nos anos 1990 se pode afirmar o surgimento de uma antropologia das emoções como interesse de pesquisa no Brasil, e da luta, no interior da academia, por sua consolida- ção. Gilberto Velho pode ser considerado um precursor importante deste novo campo ana- lítico que lida com as relações entre as emoções, cultura e sociedade no país. Este artigo discute a obra de Gilberto Velho e sua importância para o desenvolvimento da antropologia das emoções no Brasil, bem como para a antropologia das sociedades complexas e urbana no país. Aborda os modos metodológicos e as aberturas teóricas que movimentaram e de- ram sentido às pesquisas e ao conjunto da obra de Velho. Palavras-chave: Gilberto Velho, antropologia das emoções, indivíduo psi, projeto, campo de possibilidades Introdução 7 Nos anos 1990 podemos afirmar no Brasil o surgimento de uma antropolo- gia das emoções como interesse de pes- quisa, e a luta por sua consolidação, no interior da academia. Gilberto Velho é considerado um precursor importante deste novo campo analítico que lida 7 Trabalho apresentado no GT 01 Antropologia das Emoções e da Moralidade: Emoções, Luga- res e Memória durante a V Reunião Equatorial de Antropologia e XIV Reunião dos Antropólo- gos do Norte e Nordeste, de 19 a 22 de julho de 2015, Maceió, Alagoas. com as relações entre as emoções, a cultura e a sociedade no país. Este ar- tigo discute a obra de Gilberto Velho e a sua importância para o desenvolvimento da antropologia das emoções, bem co- mo para a antropologia das sociedades complexas e urbana no país (KOURY, 2009). Aborda, portanto, os modos meto- dológicos e as aberturas teóricas que movimentaram e deram sentido às pes- quisas e ao conjunto da obra de Gilberto Velho. Busca entender os papéis e os processos conformadores do indivíduo e a conformação do indivíduo psicoló-

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Page 1: 22 Gilberto Velho e a antropologia das emoções no Brasil – Revista... · Mead, Herbert Blumer, Erving Goffman e Howard Becker. Sem desprezar, con- ... mas de subjetividade e da

RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 41, agosto de 2015

22 22 22 22

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Gilberto Velho e a an-

tropologia das emoções no Brasil. RBSE – Revista Brasileira

de Sociologia da Emoção, v. 14, n. 41, p. 22-37, ago. 2015.

ISSN: 1676-8965.

ARTIGO

http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html

Gilberto Velho e a antropologia das emoções no Brasil

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Recebido: 15.06.2015 Aceito: 30.06.2015

Resumo: Nos anos 1990 se pode afirmar o surgimento de uma antropologia das emoções

como interesse de pesquisa no Brasil, e da luta, no interior da academia, por sua consolida-

ção. Gilberto Velho pode ser considerado um precursor importante deste novo campo ana-

lítico que lida com as relações entre as emoções, cultura e sociedade no país. Este artigo

discute a obra de Gilberto Velho e sua importância para o desenvolvimento da antropologia

das emoções no Brasil, bem como para a antropologia das sociedades complexas e urbana

no país. Aborda os modos metodológicos e as aberturas teóricas que movimentaram e de-

ram sentido às pesquisas e ao conjunto da obra de Velho. Palavras-chave: Gilberto Velho,

antropologia das emoções, indivíduo psi, projeto, campo de possibilidades

Introdução7

Nos anos 1990 podemos afirmar no

Brasil o surgimento de uma antropolo-

gia das emoções como interesse de pes-

quisa, e a luta por sua consolidação, no

interior da academia. Gilberto Velho é

considerado um precursor importante

deste novo campo analítico que lida

7 Trabalho apresentado no GT 01 Antropologia

das Emoções e da Moralidade: Emoções, Luga-

res e Memória durante a V Reunião Equatorial

de Antropologia e XIV Reunião dos Antropólo-

gos do Norte e Nordeste, de 19 a 22 de julho de

2015, Maceió, Alagoas.

com as relações entre as emoções, a

cultura e a sociedade no país. Este ar-

tigo discute a obra de Gilberto Velho e a

sua importância para o desenvolvimento

da antropologia das emoções, bem co-

mo para a antropologia das sociedades

complexas e urbana no país (KOURY,

2009).

Aborda, portanto, os modos meto-

dológicos e as aberturas teóricas que

movimentaram e deram sentido às pes-

quisas e ao conjunto da obra de Gilberto

Velho. Busca entender os papéis e os

processos conformadores do indivíduo e

a conformação do indivíduo psicoló-

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gico, chamado por ele de psi, na socie-

dade complexa, e, também, as relações

impessoais e a sua significação na vida

cotidiana dos indivíduos no urbano con-

temporâneo.

Discute ainda a importância dos pro-

jetos individuais e da categoria projeto

em Velho, e a sua relação direta com a

ampliação do campo de autonomia dos

indivíduos no interior de um contexto

social específico. O correlato aumento

das opções e dos campos de possibili-

dades no constrangimento do indivíduo

contemporâneo em sua inserção social e

o conjunto de vulnerabilidades neles

contidas é outra questão a ser tratada

neste trabalho.

O conjunto da obra de Gilberto Ve-

lho pode ser lido através de uma muta-

ção e aprimoramento constante do seu

arcabouço conceitual. O seu trabalho

parte, contudo, de uma dualidade es-

truturante da realidade brasileira entre

os sistemas hierárquicos e os sistemas

individualistas. Dentro dessa dualidade

estruturante, Velho baseou o seu aporte

para a construção e entendimento da

lógica da hierarquia no Brasil na análise

dumoniana, entre os sistemas holistas e

individualistas.

Para tal, partiu do pressuposto de

uma diversidade de padrões comporta-

mentais e de sistemas individualistas e

holistas na sociedade nacional, e enfati-

zou a necessidade de se procurar com-

preender o social brasileiro das classes

médias urbanas através da lógica indi-

vidualista. Nessa direção aprofunda e

discute a emergência da individualidade

e do que ele chama de indivíduo psico-

lógico no Brasil urbano, e o apareci-

mento de um individualismo crescente

nas camadas médias urbanas das gran-

des metrópoles no país (VELHO, 2000).

Esse conjunto de categorias e suas

aplicações na realidade brasileira, - e

carioca, em particular, - fazem de Velho

um dos autores fundamentais para a

apreensão da questão das relações entre

a subjetividade e a sociabilidade. Ques-

tão esta que movimenta quadros teóri-

cos e dão suporte interpretativo ao pen-

samento recente e estruturador de uma

sociologia e de uma antropologia das

emoções no Brasil.

Gilberto Velho, deste modo, foi um

autor importante na configuração de

uma antropologia e de uma sociologia

das emoções no Brasil. Velho, em seus

estudos e pesquisas, enfatizou a cultura

emocional, principalmente a das classes

médias, no Brasil urbano contemporâ-

neo, principalmente o carioca da zona

sul da cidade.

Em seus trabalhos, deu relevo espe-

cial aos modos de vida e aos comporta-

mentos no urbano. Enfatizou os rear-

ranjos familiares e de amizade e a ló-

gica individualista dos projetos de vida,

em contraposição aos projetos societá-

rios e coletivos. Tais relevos e desta-

ques advieram do interior de uma leitura

teórico-metodológica de grande influ-

ência simmeliana, que mistura a análise

fenomenológica com a análise intera-

cionista dos dois momentos importantes

da Escola de Chicago.

Nesta última, principalmente, através

de autores como Robert Park, George

Mead, Herbert Blumer, Erving Goffman

e Howard Becker. Sem desprezar, con-

tudo, a leitura atenta e atenciosa de au-

tores da escola francesa, como, por e-

xemplo, Marcel Mauss, Claude Lévi-

Strauss e Louis Dumont, da Escola de

Manchester e dos estudos sobre redes

sociais de Max Glukman, Clyde Mit-

chell, Elizabeth Bott, Victor Turner, e

da Antropologia social britânica, de

Evans-Pritchard a Mary Douglas8.

8Ver a entrevista de Gilberto Velho a Maurício

Fiore, publicada no Blog pessoal de Gilberto

Velho [2010]: http://gilbertovelho.blogspot.

com.br/ [lida em 15.04.2015]. Nesta entrevista

Gilberto Velho revela a necessidade de cruzar

diferentes escolas e perspectivas teóricas, prin-

cipalmente verificando as convergências em

temáticas ou assinalando as diferenças no de-

senvolvimento entre as escolas.

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Velho elaborou, deste modo, uma

análise profunda e profícua sobre as

questões ligadas à relação entre as for-

mas de subjetividade e da objetividade

na análise da cultura e do social, bem

como, sobre a problemática das emo-

ções e da cultura emocional urbana na

contemporaneidade brasileira. Proble-

matizou desta forma a tensa relação

entre indivíduos, cultura e sociedade,

fazendo desta tensão um tema recor-

rente em sua obra.

As relações entre indivíduo, cultura e

sociedade, tal como analisada em Ve-

lho, marcam uma dualidade que parece

se manifestar e se expressar - de dife-

rentes formas, - em outras relações, co-

mo, por exemplo, nas relações entre o

grupo e os seus membros ou, nas rela-

ções existentes, ou não, entre os proje-

tos individuais e os campos de possibi-

lidade oferecidos para o seu apareci-

mento e realização. Do mesmo modo,

desponta nas tensões entre a questão das

unidades individual e social, e da frag-

mentação nas sociedades complexas,

ou, ainda, nas questões relacionadas às

tensões permanentes entre o consenso e

o conflito, e entre as normas e o desvio,

na busca de demonstrar o caráter hete-

rogêneo do urbano, onde diferentes pro-

jetos, individuais e coletivos, se chocam

e interpenetram em rearranjos sempre

em movimento.

Iniciamos agora um percurso analí-

tico, quase um mergulho em alguns as-

pectos da obra de um autor contempo-

râneo, o antropólogo Gilberto Velho,

que foi professor titular da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, lotado, até a

sua morte, no Programa de Pós-Gradua-

ção em Antropologia do Museu Nacio-

nal.

Gilberto Velho (1945-2012) é consi-

derado um dos antropólogos brasileiros

mais respeitados e influentes da comu-

nidade antropológica brasileira. Sua

obra possui grande influência na antro-

pologia portuguesa e de países de língua

portuguesa, e da América Latina. A sua

formação e atuação, em muitos aspec-

tos, se confunde com a consolidação da

antropologia no Brasil, e também dos

cursos de pós-graduação no país, so-

bretudo, no caso aqui tratado, das ciên-

cias sociais.

A antropologia acionada por Gilberto

Velho foi inovadora no Brasil em vários

aspectos: o primeiro deles diz respeito à

abertura do olhar antropológico na co-

munidade acadêmica brasileira para o

estudo das sociedades complexas. Nesse

aspecto é pioneiro não só no Brasil, mas

segue uma discussão, ainda em si fa-

zendo e cheia de nós, da crise episte-

mológica vivida pela antropologia e

pelas ciências sociais estadunidense dos

anos de 1970, em suas diversas verten-

tes: antropologia, sociologia e política.

O segundo aspecto diz respeito à in-

fluência da discussão que ocorria na

academia estadunidense, o levando a

defender uma antropologia que estude

também o urbano e sua complexidade.

Nessa direção, afirma que uma antro-

pologia nessa esfera tem que ser uma

antropologia em continuo diálogo com

outros campos temáticos, não só no

interior das ciências sociais, bem como

com outros campos disciplinares como

a filosofia, psicanálise, a psicologia, a

história, a literatura e outras afins.

Estes dois aspectos mudariam com-

pletamente o olhar disciplinar até então

vigente na antropologia brasileira da

época, quase totalmente voltada para as

comunidades indígenas e camponesas.

O que possibilitou, deste modo, a aber-

tura das portas da comunidade antro-

pológica no Brasil para um diálogo mais

denso com outras perspectivas que se

abriam à análise das sociabilidades em

sociedades complexas.

Pode-se afirmar que Gilberto Velho,

nesse sentido, foi um dos nomes im-

portantes para a abertura da antropolo-

gia e sua redefinição, abrigando campos

novos e novas metodologias. A antro-

pologia contemporânea muito deve à

audácia de Gilberto Velho e sua insis-

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tência em abrir campos novos, - especi-

ficamente para a análise das sociedades

complexas, e especialmente, a antropo-

logia urbana, - e estabelecer diálogos

teóricos e metodológicos com áreas

disciplinares das ciências sociais e afins.

Trajetória

Gilberto Velho fez parte da primeira

turma do programa de pós-graduação

em antropologia do Museu Nacional da

Universidade Federal do Rio de Janeiro,

um dos primeiros programas de pós-

graduação em antropologia do pa-

ís. Aberto em 1968, teve a sua primeira

turma em 1969 e primeiras dissertações

defendidas em finais de 1970 e 19719.

Gilberto Velho estava entre os estu-

dantes que defenderam suas disserta-

ções neste final do ano de 1970, com 18

meses de curso. Sua dissertação intitu-

lada Utopia Urbana, tratou da sociabili-

dade do bairro carioca de Copacabana.

A origem desse interesse se deve a

importância do Prof. Dr. Anthony Leeds

da Universidade do Texas, EUA, que na

época atuava como professor visitante

no PPGA do Museu. O Dr. Leeds ofere-

ceu uma disciplina intitulada Antropo-

logia Urbana, onde proporcionou uma

discussão sobre o problema de habita-

ção na América Latina.

Entre os seus alunos se encontrava

Gilberto Velho10

. Com Maggie, - aten-

dendo a proposta do professor de que o

trabalho de final da disciplina deveria

ser uma curta etnografia sobre as formas

de se habitar no estado do Rio de Ja-

neiro, - elabora um projeto para um es-

9O seu doutoramento foi realizado na Universi-

dade de São Paulo (USP), com a Profa. Dra.

Ruth Cardoso. Gilberto Velho (2010) explica que isso se deu devido ao Museu Nacional, onde

havia terminado o mestrado não ter conseguido

abrir no momento o seu curso de doutorado.

Sendo, então, orientado pelo diretor do PPGA

do Museu Nacional, Prof. Dr. Roberto Cardoso

de Oliveira a fazer na USP, intermediando o

contato dele com a Professora Ruth Cardoso. 10E Yvonne Maggie, em tão recém-casada com

o Velho.

tudo sobre os moradores de um pequeno

edifício do bairro de Copacabana, onde

recém-casados residiam.

Este edifício, um prédio de pequenos

apartamentos em Copacabana, era ha-

bitado em sua maioria por pessoas da

baixa classe média e, nas palavras dos

autores [Velho e Maggie], com

um “ aixo a o mo al" e amplamente

conhecido por sua presen a contínua

nas páginas policiais, e símbolo incon-

teste da precariedade urbana. No edifí-

cio residiam cerca de dois mil morado-

res, reunindo em seus doze andares uma

enorme variedade de pessoas em termos

etários, sociais e ocupacionais: de pros-

titutas, a homossexuais, biscateiros e

pequenos marginais a trabalhadores de

serviços públicos urbanos, comerciá-

rios, entre outros tantos.

Os dois estudantes entregam o tra-

balho de pouco mais de 15 páginas, sem

título, com uma descrição sobre os mo-

radores do edifício: quem eram os ha-

bitantes, de onde vieram, porque vieram

morar em Copacabana, onde a pergunta

básica da dissertação de mestrado girou

em torno da decisão de morar naquele

bairro. Em seu relato o texto evoca o

fascínio da zona sul carioca e, princi-

palmente, do bairro de Copacabana na

época, sobre os moradores da zona nor-

te e de cidades da região metropolitana

do Rio de Janeiro11

.

O trabalho recebeu comentários críti-

cos e elogiosos do Professor Anthony

Leeds. Estes comentários e as recomen-

dações para um possível prosseguir do

trabalho de campo entusiasmaram o

aluno Gilberto Velho. O qual, alguns

meses depois, portanto, refez e propôs

como projeto de dissertação de mes-

trado a continuidade do projeto sobre o

11Este pequeno relato etnográfico foi recém-

publicado, em 2013, pela revista Anuário An-

tropológico, do Departamento de Antropologia

da UNB Universidade de Brasília, em uma

homenagem acontecida em 2012, a Gilberto

Velho, cujo falecimento precoce, acabava de

acontecer. (VELHO e MAGGIE, 2013).

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edifício de Copacabana, feito original-

mente para a disciplina Antropologia

Urbana ministrada pelo Professor An-

thony Leeds.

O projeto foi defendido e a disserta-

ção dele resultante, defendida em março

de 1971, e publicada, com poucas re-

formulações e com o mesmo título da

dissertação: A utopia urbana, em 1973.

Nesta dissertação Gilberto Velho in-

forma que o seu trabalho faz “uma aná-

lise da ideologia das camadas médias

urbanas”.

Esta chamada está em destaque para

atrair a atenção sobre ela, já que esta

temática ocupará a sua atenção e foco

analítico por toda a sua vida acadêmica,

seja como objeto de pesquisa: as classes

médias urbanas; seja como universo de

pesquisa: o bairro carioca de Copaca-

bana que Gilberto Velho elegerá tam-

bém como foco permanente de observa-

ção. Pode-se até afirmar, que Copaca-

bana foi o seu laboratório de pesquisa

por excelência: misturando nele experi-

ência pessoal de vida e observação par-

ticipante.

A Utopia Urbana é um trabalho pio-

neiro na análise antropológica brasileira

por muitas razões: a primeira delas por

revelar que a análise trata de um bairro

próximo do autor que o analisava. Fato

que causou muitas objeções no staff do

PPGA, que não via com bons olhos essa

quase blasfêmia à antropologia de en-

tão: estudar o próximo e não as socieda-

des distantes e exóticas, como era o

costume da antropologia da época não

só no Brasil, mas no mundo ocidental.

Como afirma Gilberto Velho, logo no

preâmbulo da sua dissertação, em tom

provocativo: “A Antropologia, tradicio-

nalmente, tem estu a o os ‘outros’ e eu

me propus a estudar o ‘n s’”.

A segunda razão se encontra no usar

a etnografia como modelo interpreta-

tivo, porém, misturada com métodos e

técnicas e conceitos vindos da análise

sociológica: como dados estatísticos,

enquetes, questionário, ao lado de en-

trevistas e observação participante pró-

prios da análise etnográfica. A terceira

razão se localiza na ousadia de advogar

claramente que a compreensão da com-

plexidade urbana não podia se ater ape-

nas à etnografia, mas tinha que abrir

diálogo com outras formas e caminhos

analíticos.

A quarta razão, por fim, tomou forma

no lançamento de um artigo-manifesto,

intitulado ani a o ocial o meio

urbano12

. Neste artigo os auto-

res defendem a urgência e a necessidade

de uma antropologia e de uma sociolo-

gia urbana no Brasil.

Propõem, ainda, que a antropologia e

a sociologia urbana deveriam ser cam-

pos com diálogo aberto a uma plêiade

de disciplinas. E com um espaço analí-

tico que requeria trabalhos conjuntos,

principalmente, entre as disciplinas an-

tropologia e sociologia.

Afirmam várias vezes o diálogo entre

campos acadêmicos diversos como for-

ma de dar conta da complexidade social

e cultural do urbano, e aludem, por fim,

a necessidade de compreensão dos indi-

víduos urbanos como uma com-

plexidade à parte e diferenciada dos

indivíduos vivendo em sociedades me-

nos complexas. Ponto polêmico é bom

frisar, onde querem afirmar a autonomia

individual relativa, a heterogeneidade

do indivíduo urbano e sua fragmenta-

ção.

Na Utopia Urbana, - dissertação de

mestrado de Gilberto Velho, hoje um

clássico da literatura antropológica e da

Antropologia Urbana brasileira, - algu-

mas temáticas serão caras e estarão pre-

sentes na sua reflexão em todos os seus

escritos. Entre estas temáticas, se pode

citar aqui, por também serem caras à

análise da antropologia e da sociologia

das emoções, que veem em Gilberto

Velho um precursor atinado, entre ou-

12Saído no número 1, volume 1, da revis-

ta Anuário Antropológico, em 1976, junto com

o sociólogo Luiz Antônio Machado da Silva

(VELHO e MACHADO DA SILVA, 1976).

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tras: as temáticas que exploram as di-

nâmicas das desculpas, das acusações e

do desvio13

. Em uma entrevista (VE-

LHO, 2010) fala da importância dos

estudos interacionistas para as proble-

máticas da acusação e do desvio no seu

trabalho, associando ainda a influência

dos estudos da antropologia social bri-

tânica sobre a temática da acusação,

principalmente através da leitura de

Evans-Pritchard (2005) e Mary Douglas

(2004).

Estes temas seriam explorados um

pouco mais tarde por Gilberto Velho em

sua tese de doutorado intitulada, Nobre

e anjos: um estu o e t xicos e ie ar-

quia, - defendida em 1975, - onde dis-

cute e busca compreender o modo de

vida urbano de segmentos das classes

médias cariocas residentes no bairro de

Copacabana, através das experiências e

percepções sobre o consumo de drogas

entre eles (VELHO, 1998).

Desde a Utopia Urbana, porém, esta

temática já está sugerida, muito embora

sem aplicar diretamente os conceitos.

Nesta dissertação há um leque de no-

ções que também será importante na

análise de Gilberto Velho no domínio

completo de sua obra: lá já se encon-

13As categorias de acusação e desvio são impor-

tantes na obra de Gilberto Velho. Em sua entre-

vista a Maurício Fiore (VELHO, 2010), fala da importância destas categorias em sua obra. Cita

a sua utilização para além de sua tese de douto-

rado (VELHO, 1998), evocando três artigos

anteriores onde estas categorias foram mais

aprofundadas, dois deles lançados na coletânea

por ele coordenada: Desvio e divergência: uma

crítica da patologia social (VELHO, 1981a),

com primeira edição de 1974. O primeiro artigo,

intitulado: O estudo do comportamento desvian-

te: a contribuição da antropologia social (VE-

LHO, 1981b, p. 11-28), e o segundo com o título: Estigma e comportamento desviante em

Copacabana (VELHO, 1981c, p. 116-124), mas

publicado originalmente em 1971, na revista

América Latina (VELHO, 1971). O terceiro

deles, com o título: Duas categorias de acusa-

ção na cultura brasileira contemporânea, escri-

to no decorrer do ano de 1975, e que se encontra

na coletânea Individualismo e cultura (VELHO,

1981a, p. 55-64).

tram insinuadas as noções de projeto e

de campo de possibilidades.

Noções trazidas à consciência do au-

tor, e dispostas de forma conceituais nas

suas análises posteriormente ao seu

mestrado, através de suas andanças para

formação intelectual como bolsista da

Fundação Ford, em um curso de especi-

alização em Antropologia Urbana nos

Estados Unidos, entre os anos de 1971-

197214

.

Durante a sua estada nos Estados U-

nidos, Gilberto Velho se defronta com a

crise epistemológica nas ciências sociais

local, que passa por uma crítica severa

às razões ocidentais no processo de cri-

ação e consolidação destas ciências e de

sua forma de classificar e diagnosticar o

outro culturalmente diverso. Em sua

trajetória estadunidense, assim, vivencia

as várias aberturas metodológicas e teó-

ricas tecidas em um ambiente de crítica

à tradição das ciências sociais, onde

uma efervescência epistemológica se

processava e, particularmente, para nós,

no seio da antropologia e da sociologia

locais.

Nestas experiências a que teve aces-

so, Gilberto Velho entra em contato

com a análise fenomenológica de Alfred

Schütz, por exemplo, de quem trouxe a

noção de projeto15

. Entra em contato,

também, com a escola interacionista, de

14Gilberto Velho (2010) em sua entrevista a

Maurício Fiori revela a importância de sua esta-

da na academia estadunidense no início da dé-

cada de 1970, e de que os impactos causados

pelas informações recebidas foram importantes

para a sua formação e caminhos futuros, mas

que isso só ficou mais claro bem depois, quan-

do, em primeiro lugar, ele conseguiu compor o

quadro conceitual e o diálogo entre autores até

então assimilados e que mexeram com a sua sensibilidade acadêmica, e, que, em segundo

lugar, no momento de maturidade reflexiva ao

lidar com o passado construído, onde ele pode

retornar como memória ao processo de sua

construção teórico-metodológica. 15Para uma aproximação com a obra de Schütz,

com tradução para o português, vê a miscelânea

de textos publicados pela editora Vozes, sobre

Schütz (2012).

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onde trouxe a ideia de campo de possi-

bilidades, além de uma ligação teórica e

metodológica com os trabalhos de Ge-

org Simmel, chegados até ele através do

contato pessoal e da obra Erving Goff-

man e de Howard Becker (VELHO,

2010). Com este último, por sinal, pri-

vou de uma longa amizade, até a sua

morte precoce16

.

Observando o familiar

Ainda na década de 1970, Gilberto

Velho (1978) lança um desafio meto-

dológico no artigo Observando o fami-

liar, publicado pela primeira vez no ano

de 1978. Este artigo tinha um argu-

mento ousado para a época e, inclusive,

já insinuado na sua dissertação de 1973,

- a Utopia Urbana, - sobre a necessi-

dade da observação do familiar nas

pesquisas em sociedades complexas.

Acredito que todos conheçam esse

clássico da literatura metodológica da

antropologia brasileira. Artigo lido e

relido por todos acadêmicos desde as

introduções à pesquisa em antropologia,

quanto da sociológica, no ensino de

graduação e pós-graduação no país, que

vão da leitura etnográfica aos métodos

qualitativos de análise do social.

O impacto causado por esse pequeno

artigo, onde se informa que o desafio do

pesquisador é o de tentar se colocar no

lugar do outro, mas consciente de que

esse outro sempre envolve distância. E

de que o binômio proximidade e distân-

cia é complexo e se emaranha mais e

mais quando a escolha do que se estudar

recai sobre o próximo urbano como

16Um pouco antes de terminar o doutorado,

Gilberto Velho recebe um convite de Howard

Becker para passar um ano na Northwestern University como professor visitante, para onde

segue um mês depois da defesa de sua tese, em

dezembro de 1975, chegando à cidade de E-

vanston em janeiro de 1976. De acordo com

Gilberto Velho (2010), o convite partiu da leitu-

ra de Becker sobre a sua coletânea Desvio e

divergência, em 1974, iniciando um processo de

troca permanente entre ele (Gilberto) e Becker,

que durou por toda a sua vida.

objeto de pesquisa e a cidade como lu-

gar estratégico para se pensar e compre-

ender a sociabilidade contemporânea.

Nas palavras de Gilberto Velho, em

sua entrevista a Maurício Fiore, o ponto

de vista assumido no artigo é o de que

“alguma coisa ser familiar não signi-

fica que ela seja conhecida e que,

portanto, para você estudar o famili-ar, você tem que desenvolver uma es-

tratégia própria de objetivação, de es-

tranhamento, de distanciamento, nem que seja em um movimento de ir e

vir” (VELHO, 2010),

constante e reflexivo.

No jogo acima montado, a complexi-

dade urbana e a complexidade do indi-

víduo no urbano são o desafio metodo-

lógico e teórico enfrentado. O primeiro

desafio, já lançado em a Utopia Urbana

e agora retomado de forma metodoló-

gica, se encontra no fato do antropólogo

estudar o seu próprio ambiente, se en-

contrando, ao mesmo tempo, como uma

pessoa, personagem do lugar e pesqui-

sador.

Esse primeiro desafio recai sobre a

situação do pesquisador que observa o

que lhe é familiar. Nesta dimensão, sur-

ge a primeira separação metodológica: a

de não confundir o familiar com o co-

nhecido.

Deste modo, se dá a descoberta ini-

cial: a de que nem todo o familiar é ne-

cessariamente conhecido e próximo. E,

de que nem todo o desconhecido é ne-

cessariamente estranho e distante.

A partir desta separação metodoló-

gica e destas descobertas iniciais, Gil-

berto Velho questiona as bases episte-

mológicas da antropologia como a ciên-

cia do outro distante, de outras terras e

de outros mares, e aproxima o seu olhar

para o que está próximo, no cotidiano

da experiência da cidade. Do próximo a

quem e com quem se compartilha o es-

paço da cidade como habitante, mas que

não necessariamente o vê e, quando o

enxerga, o olha sob uma névoa que na-

turaliza o ambiente. O que coloca este

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próximo em uma distância impossível

de ser recuperada pelo pensamento crí-

tico, a não ser pela e através de uma

critica aos valores do próprio pesquisa-

dor.

Lição weberiana, por sinal, seguida à

risca por Velho. É bom frisar, contudo,

que sem consciência desse fato e do seu

uso, já que, nos dois primeiros parágra-

fos do artigo, ataca a objetividade e a

neutralidade axiológica weberiana: con-

fundindo objetividade com verdade; e

neutralidade axiológica com neutrali-

dade em si.

Weber ainda é lido por Velho sob a

influência de um Weber ‘ven i o’ por

Talcott Parsons, que o transformou em

um estrutural funcionalista. Weber é

visto à luz do tratado científico, e o

caminho de leitura de Velho é o ensaio:

a sua opção, ainda não de todo decla-

rada, é por Simmel, mas, feita sob a

influência do olhar geertziano da inter-

pretação, sem ainda perceber o caminho

da crítica a Parsons trazida por Clifford

Geertz na sua desfiliação à grande teoria

parsoniana (GEERTZ, 2012; KUPER,

2002), e a releitura proposta em Geertz

(1978) de um Weber que adota a com-

preensão como entendimento, no cami-

nho da interpretação como linha com-

preensiva do objeto estudado.

Mas, deixando de lado esse equí-

voco, o texto procura achegar-se à di-

nâmica compreensiva weberiana, adota

uma postura ensaística e um resultado

interpretativo que é uma construção

aproximativa do real, e nunca o real em

si. Assim, mesmo sem ter consciência

do uso de Weber, transforma a crítica

axiológica weberiana em um exercício

metodológico de exotizar o próximo e

estranhá-lo.

Exotizar o próximo, ao mesmo tem-

po em que estranha a si mesmo, como

forma de compreensão deste outro pró-

ximo. O outro próximo, agora, estra-

nhado e desnaturalizado como paisa-

gem aparentemente conhecida.

A partir desse estranhamento, por-

tanto, agora distanciado reflexivamente

para melhor compreender as bases em

que se erguem as sociabilidades, a hete-

rogeneidade e as segmentações da e na

cidade, e no e dos indivíduos que nela

habitam, consegue dialogar com as dife-

renças e construir códigos aproximati-

vos de compreensão do real. Um real

onde o pesquisador também habita e

compartilha de uma proximidade cega,

mas, agora estranhada e transformada

em objeto de reflexão.

Por conseguinte, e deste modo, Gil-

berto Velho propõe a máxima de estra-

nhar o que estar próximo para melhor o

compreender e interpretar. Coloca a

ênfase no autor/pesquisador e clarifica

ao leitor possível que a sua análise não é

nada mais do que uma interpretação.

Interpretação esta que o pesquisador faz

da realidade a partir das opções do o-

lhar. Olhar este, que promoveu e pos-

sibilitou o caminho aproximativo ao

objeto estudado. Nada mais weberiano,

portanto, eu diria!

Isso, principalmente, quando a ênfase

de Gilberto Velho recai sobre a validade

científica da interpretação de um autor

sobre um dado objeto, e quando afirma

que esta interpretação passa por uma

crítica de vários outros acadêmicos, que

a leem e a autenticam ou não. Bem co-

mo incide sobre diversos outros per-

sonagens envolvidos em outras lógicas

que não a acadêmica, de onde também

comentam, interferem e corroboram ou

não a interpretação proposta por um

autor.

De novo Weber, portanto! Aquele

diz que o pesquisador é um personagem

do jogo social e, como tal, coberto de

valores, de sentimentos.

Estranhar esses valores, ou seja, ela-

borar uma crítica axiológica, destarte, é

o primeiro passo para conhecer o objeto

que se propôs a estudar. O que quer

dizer que, ao cercar o objeto através da

crítica axiológica dos valores do próprio

pesquisador, remete o pesquisador a

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outro processo de escolha. Nesse novo

processo o pesquisador submete o ob-

jeto estudado a diversas perspectivas de

análise e escolhe o arcabouço teórico e

metodológico que melhor se adeque a

análise do objeto.

O quadro compreensivo, em Weber,

ou o quadro interpretativo em Gilberto

Velho via Geertz, que daí resulta, desta

maneira, é sempre uma construção. É

sempre uma aproximação do real, nun-

ca o real como verdade em si.

Construção essa disposta publica-

mente e analisada, avaliada e aceita ou

refutada pelos pares acadêmicos, e por

outras instituições não acadêmicas que a

abonam, a usam ou rejeitam os signifi-

cados elencados, analisados e expressos

na construção compreensiva e ou inter-

pretativa de um autor pesquisador. Gil-

berto Velho, portanto, neste texto, segue

um Weber lido por interacionistas e

recuperado nos anos de 1970 nos Esta-

dos Unidos e nos anos de 1990 no Bra-

sil.

Muito embora, no momento da edi-

ção do Observando o familiar e da Uto-

pia Urbana, os anos de 1970, - e a ên-

fase se faz aqui necessária, - sem a ple-

na consciência desse fato ousado. E

mais, ele ousa e provoca além, ao cha-

mar as emoções do pesquisador e as

emoções dos pesquisados para o jogo de

cena compreensivo/interpretativo de um

objeto dado em um universo temporal e

espacialmente delimitado.

As noções de projeto e campo de pos-

sibilidades

Após virmos os caminhos e as entra-

das inovadoras de Gilberto Velho, ainda

que mais pejada de sensibilidade do que

de precisão conceitual, em A Utopia

Urbana e no artigo Observando o Fa-

miliar, vamos adentrar em seu esquema

analítico, sempre em maturação, através

de um par de conceitos por mim consi-

derados fundamentais para a antropolo-

gia e para a sociologia em geral e, aqui,

especificamente, para a antropologia e

para a sociologia das emoções. Este par

conceitual atende às noções de projeto e

de campo de possibilidades.

Noções estas que colocam em cena

as relações entre os indivíduos e as for-

mas de sociabilidade em uma cultura e

em um social dados. Alocam também

em cena as emoções, as escolhas e a

formação de curvas de vida nas relações

estabelecidas entre os indivíduos e a

sociedade, trazendo a análise para o

campo fenomenológico de Schütz, e

para o interacionismo de Goffman e

Becker, sempre à luz das análises sim-

melianas e weberianas.

É necessário, aqui, abrir um parên-

tese para uma breve nota sobre Alfred

Schütz e a sua obra. A obra de Alfred

Schütz se constitui de uma formulação

sociológica abaixo considerações de

contorno fenomenológico, buscando

nela realizar uma síntese entre a socio-

logia e a fenomenologia.

As bases de sua obra se encontram

calcadas em dois autores. O primeiro é

Edmund Husserl através de sua filosofia

fenomenológica. Filosofia esta, cujo

ponto de partida tem início nas experi-

ências do ser humano consciente. Indi-

víduo que vive a age em um ‘mundo’

por ele percebido, interpretado e que faz

sentido para ele, através das intenções

do tributário da ação.

Para Husserl, lido por Schütz, assim,

os objetos formados são construções.

Construções erguidas por e através de

um processo de apercepção sintética de

diferentes ‘perspectivas’, por meio das

quais os objetos são montados nas tro-

cas acionais e, a partir de então, vistos e

tipificados.

O segundo autor caro a Schütz é Max

Weber e a sua construção sociológica. A

leitura atenta da sociologia compreen-

siva da ação social weberiana realizada

por Schütz foi de fundamental impor-

tância para a construção de sua síntese

teórica para uma sociologia fenomeno-

lógica.

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Schütz, portanto, desde o seu pri-

meiro grande estudo publicado e du-

rante toda a sequência posterior de suas

pesquisas, confrontou os dois autores

mencionados. Tornou-os, a partir de

então, em toda a sua obra, a base para a

sua busca incessante de uma nova sín-

tese que levasse à constituição de uma

ciência social de base fenomenológica.

A compreensão da importância de

Alfred Schütz na obra de Gilberto Ve-

lho não pode ser lida, todavia, sem indi-

car essa filiação schützeriana à filosofia

de Husserl e à sociologia weberiana. A

importância dada ao indivíduo em sua

complexidade nas trocas sociais, e a

indicação, como ponto de partida, das

experiências dos atores na conformação

de suas próprias trajetórias e trocas com

os diversos mundos sociais com que

lida em sua vida, para Schütz, confor-

mam, nessas trocas, uma trajetória e

uma curva de vida singular e individua-

lizada. Singular e individualizada, sim,

mas, também, misturada.

Trajetórias pessoais e curvas de vida

que vão se singularizando em experiên-

cias e vivências sempre embaralhadas,

combinadas e compostas com os as-

pectos das tradições que os indivíduos

frequentam ou frequentaram durante

todo o conjunto experiencial por eles

vivido. O que significa em Schütz, que

os indivíduos em sociedade vivem a

partir de um determinado momento his-

tórico e temporal em uma sociabilidade

específica, e que suas experiências e ex-

perimentações que conformam a sua

curva de vida, e a sua singularidade,

acontecem nas trocas societárias e nas

opções que esses indivíduos são levados

a tomar ou decidem seguir.

Schütz, portanto, assume os mundos

husserlnianos através das trajetórias dos

indivíduos e das opções arriscadas por

eles em cada situação proposta ou pre-

disposta em cada um dos mundos em

que frequenta. Mas, assume esse cami-

nho metodológico adotando, ao lado e

ao mesmo tempo, o conceito weberiano

de ação como portadora de intenciona-

lidades e sentidos e, neste momento,

como criadora do social e do individual

específicos.

E vai além, ao indicar a consciência

emocional dos atores na conformação

de uma consciência coletiva singular, a

partir de suas trocas sociais com outros

atores e a sociedade. Ou, nas palavras

de Simmel, nas trocas entre as culturas

subjetivas e a cultura objetiva, pondo

em tensão e em modificações contínuas

as redes sociais e individuais constituí-

das nas trocas.

As leituras de Gilberto Velho, de S-

chütz, o introduziram nesse veio rico de

inspirações que conformariam duas dé-

cadas depois a antropologia e a so-

ciologia das emoções: nos anos de

1970, nos Estados Unidos, e nos anos

de 1990, no Brasil. A sua leitura de S-

chütz, nesse primeiro momento, porém,

entre os primeiros anos da década de

1970 até o início dos seus escritos dos

anos de 1980, é ainda intuitiva, e ainda

não tem consciência plena das bases

fundadoras da síntese entre ciências

sociais e a fenomenologia, e de seus

inspiradores Weber e Husserl na socio-

logia schützeriana.

Mas, a intuição criadora está lá, nas

formulações ousadas para a época de

sua criação. Nasce, portanto, um precur-

sor da antropologia e da sociologia das

emoções, com força de um quase fun-

dador destas disciplinas no Brasil.

Velho elaborou, deste modo, uma

análise profunda e profícua sobre as

questões ligadas à relação entre as for-

mas de subjetividade e da objetividade

na análise da cultura e do social, bem

como, sobre a problemática das emo-

ções e da cultura emocional urbana na

contemporaneidade brasileira. Proble-

matizou a tensa relação entre indiví-

duos, cultura e sociedade, fazendo desta

tensão um tema recorrente em sua obra.

As relações entre indivíduo, cultura e

sociedade, tal como analisada em Ve-

lho, marcam uma dualidade que parece

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se manifestar e se expressar de diferen-

tes formas, em outras relações, como,

por exemplo, nas relações entre o grupo

e os seus membros ou, nas relações e-

xistentes, ou não, entre os projetos indi-

viduais e os campos de possibilidade

oferecidos para o seu aparecimento e

realização. Do mesmo modo, parece se

produzir nas tensões entre a relação no

interior das unidades individual e social,

e da fragmentação nas sociedades com-

plexas. Ou, ainda, nas questões relacio-

nadas às tensões permanentes entre o

consenso e o conflito, e entre as normas

e o desvio, na procura de demonstração

do caráter heterogêneo do urbano, onde

diferentes projetos, individuais e coleti-

vos, se chocam e interpenetram em rear-

ranjos sempre em movimento.

A noção de projeto é uma das suas

noções fundamentais, para o tratamento

da questão da heterogeneidade mencio-

nada, e das tensões relacionais entre

indivíduos e a cultura em uma socie-

dade complexa. Para ele, seguindo de

perto a análise realizada por Alfred S-

chütz, a noção de projeto implica em

uma definição de situações em relação

com os meios e os fins das ações huma-

nas coletivas e individuais, estando,

portanto, fortemente vinculada a uma

realidade objetiva e externa.

O que leva o pesquisador, também,

para uma avaliação consciente das con-

dições subjetivas de elaboração dos pro-

jetos, estratégias montadas, e busca de

caminhos para a sua concretização. O

conceito de projeto individual para Ve-

lho, assim, não é um fenômeno pu-

ramente interno e subjetivo, mas, for-

mulado e elaborado dentro de um cam-

po de possibilidades, e circunscrito his-

tórica e culturalmente, tanto em termos

da própria noção de indivíduo no social,

quanto às temáticas, prioridades e para-

digmas culturalmente existentes.

Para ele, seguindo uma lógica sim-

meliana, cada indivíduo é um lócus de

tensão entre os constrangimentos da

cultura, que solicitam o enquadramento

a padrões específicos, e outros cons-

trangimentos de cultura, que pedem ao

indivíduo autonomia e singularidade. O

equilíbrio tenso entre estes constrangi-

mentos faz parte da carga de pressões

cotidianas e das tarefas diárias dos indi-

víduos nas sociedades ocidentais con-

temporâneas.

O que o leva a desenvolver as temá-

ticas sobre o ser no mundo, das ideolo-

gias individualistas, das alianças, das

diferenças individuais, da questão gera-

cional, da problemática da família, da

psicologização das sociedades urbanas

contemporâneas, da relação entre a ra-

cionalidade e as emoções, das relações

entre a cultura objetiva e a cultura sub-

jetiva, - esta última cara à análise sim-

meliana, - por fim, onde a questão as-

cende, como um elemento compreen-

sivo fundamental no jogo ambivalente

de formação dos sujeitos sociais e indi-

viduais, para a análise da sociabilidade

urbana contemporânea. Além e princi-

palmente, para o entendimento da e-

mergência, da fundação, e dos modos de

agir e de significar dos indivíduos, per-

tencentes às camadas médias urbanas,

com ênfase na sociabilidade carioca,

onde concentrou os seus estudos e pes-

quisas, de modo particular.

Gilberto Velho, portanto, pode ser

considerado como um dos autores fun-

damentais para a compreensão da ques-

tão das relações entre a subjetividade e

a sociabilidade que movimenta quadros

teóricos e dão suporte interpretativo ao

pensamento recente e estruturador de

uma sociologia e de uma antropologia

das emoções no Brasil.

Pode ser considerado, assim, um pre-

cursor importante e, talvez, o principal,

deste novo campo analítico que lida,

desde os anos de 1990, com as relações

entre as emoções, cultura e sociedade

no país.

É bom salientar que o par de con-

ceitos projeto e campo de possibilidades

trás a sua volta outra rede conceitual

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que complementa e amplia ao mesmo

tempo a análise de Gilberto Velho. Este

par conceitual vai ser explorado, primei-

ramente, no seu livro Individualismo e

Cultura de 1981 (VELHO, 1981). Mais

tarde no livro Projeto e Metamorfose,

de 1991 (VELHO, 1991), onde trabalha

com as noções de Trajetória individual

e campo de possibilidades17

.

Este par conceitual será depois cons-

tante em todos os demais livros e arti-

gos por ele trabalhados e formarão a

base conceitual de sua obra inteira. O

primeiro capítulo de Individualismo e

Cultura formaliza esta proposta con-

ceitual desde o título: “Projeto, emoção

e orientação em sociedades comple-

xas”. Nele já estão objetivamente for-

muladas as ideias de projeto e de campo

de possibilidades.

No uso conceitual da noção de pro-

jeto, Gilberto Velho utiliza a definição

dada por Alfred Schütz, contida no ar-

tigo The problem of social reality, onde

Schütz (1974), através da noção de pro-

jeto, explora as condutas organizadas

para atingir determinados fins. A no ão

de projeto lida, assim, diretamente, com

a dimensão do indivíduo enquanto su-

jeito emocional, que faz escolhas, que

se organiza e traça caminhos, que con-

segue ou se frustra nesse caminhar pro-

jetado e vivido.

A noção de projeto serve desta ma-

neira, como um instrumento privilegi-

ado à análise de t a et ias coletivas ou

individuais. Serve também às aprecia-

ções de processos de articula ão de dis-

cursos identitários entre indivíduos, em

uma cultura e sociedade delimitada

tempo e espacialmente.

A noção de campo de possibilidades,

por sua ve , corresponde ao espa o para

17

Um exemplo de aplicabilidade do par concei-

tual projeto e campo de possibilidades: ambos

os conceitos podem ser lidos na sua análise do

estudo de caso da trajetória de uma migrante

portuguesa de nome Catarina em terras estadu-

nidense da cidade de Boston (VELHO, 1991).

a formula ão e implementa ão

dos projetos individuais ou coletivos

elaborados. Satisfaz, portanto, às opções

construídas no interior de um processo

sóciohistórico dado e com um grande

potencial interpretativo do mundo sim-

lico a cultura.

Isso tanto em relação aos aspectos li-

gados às categorias sociais distinguíveis

e com certa permanência, como, por

exemplo, os elementos de estratificação,

bem como com respeito aos aspectos

ligados às ideias de complexidade e de

heterogeneidade cultural.

Opções realizadas e vivenciadas no

tráfego em vários mundos sociais que

um mesmo indivíduo ou grupos fre-

quentam e dão sentido em suas trajetó-

rias, criando possibilidades de coexis-

tência de espaços díspares e até antagô-

nicos nos trajetos experimentados pelos

indivíduos que os caminham. Coexis-

tência sempre tensa, é bom salientar,

por se situar em uma pluralidade de

tradições e ordenamentos simbólicos.

Tradições e ordenamentos simbóli-

cos estes que se abrem em diversas por-

tas e possibilidades, que vão desde sis-

temas ocupacionais, sexuais, etários,

étnicos, e outros, que levam, encami-

nham tensamente os atores em proces-

sos e a estilos e modos de vida múlti-

plos. Processos e estilos de vida que

coabitam um mesmo tempo-espaço e,

no interior desse social tempo-espacial

definido, e através dele, se colocam

como originais e únicos e se defrontam

ou se aproximam, dando um matiz es-

pecial aos indivíduos e grupos partici-

pantes do jogo social e cultural neles

vividos.

Os projetos individuais, assim, sem-

pre interagem com outros projetos, in-

dividuais e coletivos, no interior de um

campo de possibilidades aberto no trá-

fego e no trajeto experimentado por um

mesmo indivíduo ou grupo. Os projetos

em interação tensionam e modificam os

próprios indivíduos que os construíram

e os experimentam, assim como o es-

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paço cultural e social onde acontecem

essa construção e vivência, e sendo por

eles modificados.

Deste modo, se pode compreender

que os projetos individuais não operam

em um vazio, mas através de premissas

e paradigmas culturais compartilhados

por e em universos específicos. E os

projetos sociais e culturais, por sua vez,

não são produtos de uma mão desconhe-

cida que opera independente dos ho-

mens, mas, também são constituídos e

operam nos e através dos processos in-

teracionais entre os indivíduos sociais.

Neste sentido, são processos com-

plexos. E esta complexidade aumenta ao

se perceber que os indivíduos, grupos e

sociabilidades portam não apenas vários

projetos, mas projetos diferentes e até

contraditórios entre si.

A pertinência e as relevâncias dos

projetos, deste modo, são definidas con-

textualmente dentro de um jogo tenso e

conflitual. Jogo que conforma um cam-

po processual sempre tênue e marcado

pelo diálogo e pela negociação perma-

nente entre os indivíduos e grupos.

As ideias que norteiam as noções de

trajetória individual, grupal ou socio-

cultural, bem como as de curvas de vi-

das, de singularidade e diversidade, de

harmonia e conflito, e ajudam a com-

preender e interpretar uma determinada

cultura emocional e os indivíduos moral

e emocionalmente dispostos nela. São

ideias que se fortalecem e ao mesmo

tempo complementam o par conceitual

projeto e campo de possibilidades na

obra de Gilberto Velho e sua antropolo-

gia e sociologia das sociedades comple-

xas, largamente situada no campo inte-

racionista de um Goffman, e fenome-

nológico de um Schütz.

Como uma consequência do jogo en-

tre projetos, e na definição de uma indi-

vidualidade, Gilberto Velho utiliza e

amplia metodologicamente o conceito

de metamorfose. Este conceito indica

que na experimentação e na procura de

realização de uma plêiade de projetos

em vários mundos sociais habitado por

um indivíduo, se vai produzindo cami-

nhos diferenciados e singulares, próxi-

mos ou afastados em relação aos outros

indivíduos e grupos com que comparti-

lha trajetos nos diversos mundos sociais

que frequenta, tais como a família, os

amigos, a escola, o trabalho, entre tanto

outros.

Mundos e relações onde tais projetos

foram gerados ou sofreram resistência.

O que institui, entre os indivíduos e

grupos em relação, um processo perma-

nente de disputa, de definição e de ne-

gociação da realidade. Noções estas

caras à análise simmeliana e entre os

interacionistas.

Neste jogo tenso de definição, dis-

puta e negociação, as curvas de vida

individuais vão se formando e se afir-

mando em um processo constante e an-

gustiante de rupturas, conflitos, tensões,

mas, também, de gozo, de aceitação, de

conformação e de continuidade das re-

lações entre os pares, gerando processos

cada vez mais heterogêneos e cada vez

mais complexos.

A viabilidade das realizações proje-

tadas dos indivíduos, assim, depende do

jogo interacional com outras projeções

individuais e grupais em mundos sociais

diversos onde um indivíduo frequenta e

compartilha no interior de um contexto

histórico, social e cultural dado. Assim

como é dependente da natureza dinâ-

mica do campo de possibilidades indi-

vidual, nos mundos sociais onde os in-

divíduos se encontram inseridos e nas

formas de organização pessoal interior a

cada agente.

Os indivíduos, desta forma, po-

dem acertar e concluir os seus projetos,

ou se perder em seus trajetos, como

também podem redefinir os caminhos

adequando os meios aos fins projetados.

É a este jogo, que só se constrói na

vivência e manejos e adequações por

que passam os projetos, experimentados

nos campos de possibilidades abertos a

cada individualidade ou grupo específi-

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cos, que a noção de metamorfose re-

mete. Isto é, os indivíduos sonham, pro-

jetam, elaboram nas buscas de suas rea-

lizações, às vezes conseguem, às vezes

têm que se desviar do rumo traçado,

voltando um tempo depois, abandonam

caminhos, seguem outros, se sentem

realizados ou não, e nessa trajetória

consolidam uma curva de vida que é o

resultado da experiência múltipla e das

mudanças sofridas pessoalmente ou

grupalmente através de tocarem para

frente os seus projetos.

Nesse jogo se processam como ho-

mens e mulheres individualizados mas

em relações, sempre tênues e sempre

negociadas e sempre conflituais, de on-

de se veem como passado e presente e

reprojetam futuros, em novas mudanças

para realizações e para frustrações, para

aproximações e para afastamentos de

mundos sociais novos e velhos. E de

onde constroem saudades, significações,

caminhares; mas também, de onde ve-

lhos mundos deixam de ter significa-

ções nas escolhas atuais e os indivíduos

que nele se situavam são sentidos atra-

vés de sua pequenez, ou o seu contrário,

onde mundos sociais que desejava per-

tencer não os aceitaram e são vistos

sobre os olhos do ressentimento, da re-

volta contida ou não, da frustração e da

exclusão.

Através dessas mudanças, desses go-

zos, dos sofrimentos, dos não sentidos

ou do ressentimento, os indivíduos e

grupos traçam trajetórias e conformam

curvas de vida. Uma curva de vida, as-

sim, nada mais é do que o conjunto de

trajetórias, de negociações, de mudan-

ças e experimentações de um indivíduo

em relação com outros,

Uma curva de vida retrata uma vida

individual e sua singularidade frente a

outras vidas. Sempre como resultado de

opções, negociações e disputas no inte-

rior de um campo de possibilidades, isto

é, dentro das perspectivas abertas pelo

contexto socio-histórico e cultural em

que um indivíduo está inserido.

As heranças ou tradições sociocultu-

rais de um determinado contexto histó-

rico, assim, vistas aqui através da noção

de projeto coletivo não é, em Gilberto

Velho, experimentado e vivenciado de

maneira igual por todos os indivíduos

que o compartilham. Existem diferentes

curvas de vida, existem diferentes for-

mas de apreensão geracional, de gê-

nero, de vivências de trajetórias apa-

rentemente comuns, do que se considera

normal ou desviante, do que se consi-

dera vitória ou frustração, que alteram o

contexto a todo o momento, e criam

tensão e negociação entre os indivíduos

envolvidos.

Estas são ideias trazidas das tradi-

ções interacionistas, de um Erving

Goffman, de um Howard Becker, mas

também de um Robert Park, Louis Wir-

th, Howard Hughes, entre outros. E fe-

nomenológica, de um Alfred Schütz e

de um Peter Berger. Assim como das

análises simmelianas, em sua sociologia

formal, e weberiana, com a sua análise

compreensiva.

Ao mesmo tempo em que Gilberto

velho acrescenta em sua leitura das tra-

dições simmeliana, weberiana, intera-

cionista e fenomenológica o debate e a

reflexão da tradição antropológica de

um Marcel Mauss, Bronislaw Mali-

nowski, Louis Dumont, Lévi-Strauss,

Clifford Geertz, Victor Turner, Evans-

Pritchard, Franz Boas, Roberto Cardoso

de Oliveira, Roberto DaMatta, Viveiros

de Castro, entre tantos outros contempo-

râneos. E com outras tradições e lugares

de fala, a partir das interrelações havi-

das com a psicanálise e a psicologia, a

história e a literatura para a análise do

indivíduo e das individualidades emer-

gentes em um sistema social complexo

e heterogêneo.

A análise conflitual, mas ao mesmo

tempo complementar, entre projeto in-

dividual e projeto social ou coletivo em

Gilberto Velho, enfim, demonstra à di-

nâmica, por um lado, entre um ethos

que permite indivíduos pertencentes a

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RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 14, n.41, agosto de 2015

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um mesmo espaço e tempo cultural e

societal se comunicarem, e deterem uma

cultura emocional comum. Ao mesmo

tempo em que, por outro lado, se con-

formarem como individualidades sin-

gulares, com projetos próprios, com

desejos e ambições próprias. E traça-

rem, assim, as suas trajetórias em curvas

de vida singulares.

Curvas de vida produzidas e monta-

das no elenco das opções feitas para os

caminhos projetados, que levaram à

realização ou à frustração pessoal, e que

montaram perspectivas novas sobre as

já traçadas. E que as exploram, as ne-

gam, as compartilham sempre com os

outros em um plano harmonioso ou

complementar, ou em bases conflituais

e desgastantes, encaradas moralmente

como desejadas, ou como desviantes do

percurso desejado socialmente como

‘normal’.

Conclusão

Os conceitos de projeto e de campo

de possibilidades deste modo, em Gil-

berto Velho, organizam e tecem uma

teia que molda um aparato teórico e

metodológico significativo, para se pen-

sar o Brasil contemporâneo, e para se

pensar a complexidade social e cultural

em sociabilidades quaisquer. Através de

noções que giram em torno desse par

conceitual, como individualismo de

diferença, prestígio, ascensão social,

motivação social e psicológica, biogra-

fia, visão de mundo e estilos de vida,

bem como as categorias de desculpa e

acusação e desvio, Gilberto Velho orga-

niza um modelo analítico que mais tarde

será utilizado largamente para a relei-

tura proposta às ciências sociais brasi-

leira, nos anos de 1990 em diante, pelos

organizadores e pelos que fazem a an-

tropologia e a sociologia das emoções

no país.

Gilberto Velho é considerado, por-

tanto, um precursor desses novos cam-

pos. Com ele, mais do que outros auto-

res também considerados precursores, a

discussão das relações entre as emo-

ções, a cultura e a sociedade foi acio-

nada em suas significações mais afina-

das e encaixadas de hoje que concebem

a categoria Emoções como a categoria

chave de explicação antropológica e

sociológica.

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Abstract: In the 1990s it can be

said the emergence of an anthro-

pology of emotions as a research

interest in Brazil, and the struggle

within the academic field, for its

consolidation. Gilberto Velho can

be considered an important pre-

cursor of this new analytical field

that deals with the relationship be-

tween emotions, culture and soci-

ety in the country. This article

discusses the work of Gilberto

Velho and its importance for the

development of anthropology of

emotions in Brazil, as well as the anthropology of complex and ur-

ban societies in the country. Ad-

dresses the methodological and

theoretical modes openings

moved and gave meaning to re-

search, as the whole of Gilberto

Velho's work. Key-words: Gil-

berto Velho, anthropology of

emotions, individual psi, design,

field of possibilities