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HOSPITAL GERAL DE FORTALEZA ESCOLA DE SAÚDE PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ RESIDÊNCIA DE ANESTESIOLOGIA PHILIPE BARBOSA ASSUNÇÃO ANESTESIA PARA TRANSPLANTE RENAL REVISÃO DE LITERATURA FORTALEZA 2016

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HOSPITAL GERAL DE FORTALEZA

ESCOLA DE SAÚDE PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ

RESIDÊNCIA DE ANESTESIOLOGIA

PHILIPE BARBOSA ASSUNÇÃO

ANESTESIA PARA TRANSPLANTE RENAL – REVISÃO DE LITERATURA

FORTALEZA

2016

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PHILIPE BARBOSA ASSUNÇÃO

ANESTESIA EM TRANSPLANTE RENAL

Trabalho de Conclusão de Curso, como

requisito parcial para término da residência

médica em Anestesiologia, no Hospital Geral

de Fortaleza.

Orientador: Prof. Dr. Rogean Rodrigues Nunes.

FORTALEZA

2016

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PHILIPE BARBOSA ASSUNÇÃO

ANESTESIA EM TRANSPLANTE RENAL

Trabalho de Conclusão de Curso, como

requisito parcial para término da residência

médica em Anestesiologia, no Hospital Geral

de Fortaleza.

Aprovada em ____/____/______

BANCADA EXAMINADORA

_______________________________________

Prof. Dr. Rogean Rodrigues Nunes (Orientador)

Corresponsável CET-HGF

_______________________________________

Prof. Dr. David Silveira Marinho

Corresponsável CET-HGF

_______________________________________

Dr. Roger Benevides Montenegro

Corresponsável CET-HGF

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A Deus.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, por todo o apoio, ensinamento e por ser o alicerce da minha formação e

conduta.

À minha noiva Brenda Maria Gurgel, meu orgulho e exemplo como profissional, pelo

apoio, paciência, compreensão, companheirismo, amor e carinho.

Ao meu irmão por sempre me apoiar e me ajudar nos momentos mais difíceis.

Ao Prof. Dr. Rogean Rodrigues Nunes, orientador desta monografia, por todos os

ensinamentos e pelo exemplo de competência e dedicação incansável à produção

científica e à anestesiologia.

À Dra. Aglaís Gonçalves da Silva Leite, pela coordenação e dedicação ao serviço de

anestesiologia do Hospital Geral de Fortaleza, por sua luta constante no aprimoramento

do serviço e do nosso aprendizado.

Aos Prof. Dr. David Silveira Marinho e Dr. José Carlos Rodrigues Nascimento, pelos

ensinamentos com excelência e dedicação ao serviço de anestesiologia.

A todos os preceptores e anestesiologistas dos cinco hospitais do estado (HGF, HGWA,

HGCC, HIAS e HM) que contribuíram diretamente, ou indiretamente, para minha

formação como profissional com paciência e confiança.

Aos meus colegas de residência pela amizade, companheirismo e agradável convívio

nesses três anos.

A todos os pacientes que confiaram suas vidas aos nossos cuidados.

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RESUMO

O transplante renal ainda se constitui um desafio para as equipes de transplante no Brasil

e no mundo. Isto se justifica pela complexidade do paciente, exposto à doença renal

crônica, muitas vezes por um período considerável, intensificando as complicações sobre

o sistema cardiovascular e demais órgãos, bem como a logística do sistema de captação,

preservação e implante do enxerto no receptor. Algumas peculiaridades no transplante

renal vêm ganhando importância, tais como hidratação intraoperatória, uso de manitol,

alterações hemodinâmicas e tempos de isquemia quente e fria do enxerto, numa tentativa

de melhorar o prognóstico do órgão no receptor, tornando o anestesiologista um dos

profissionais diretamente relacionados com o prognóstico e com a qualidade do

transplante renal.

Palavras-chave: Transplante renal. Doença renal crônica. Enxerto. Necrose tubular

aguda.

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ABSTRACT

Kidney transplantation still represents a major challenge for transplant teams in Brazil and

worldwide. Such demand is related to the complexity of patients exposed to chronic kidney

disease – commonly over a long time span–, intensifying complications on the

cardiovascular system and other organs, as well as the logistics of organ harvesting,

preservation and graft implantation. Some features in kidney transplantation have received

increasing attention, such as intraoperative hydration, mannitol use, hemodynamic

changes and ischemia times, in an attempt to improve graft prognosis, making

anesthesiologists directly related to prognosis and quality of renal transplantation.

Keywords: Kidney transplantation. Chronic kidney disease. Graft. Acute tubular necrosis.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 8

2 CONSIDERAÇÕES PRÉ-OPERATÓRIAS.................................................................. 8

3 MANEJO ANESTÉSICO ............................................................................................. 10

3.1 TÉCNICA ANESTÉSICA .......................................................................................... 10

3.2 MONITORIZAÇÃO HEMODINÂMICA ...................................................................... 11

3.3 HIDRATAÇÃO INTRAOPERATÓRIA ...................................................................... 12

3.4 DIURÉTICOS ............................................................................................................ 13

3.5 ANESTÉSICOS INALATÓRIOS .............................................................................. 14

3.6 HIPNÓTICOS ............................................................................................................ 14

3.7 OPIOIDES ................................................................................................................. 14

3.8 BLOQUEADORES NEUROMUSCULARES ............................................................ 15

4 PROCEDIMENTO CIRÚRGICO ................................................................................. 15

5 ANALGESIA PÓS-OPERATÓRIA .............................................................................. 17

6 LESÃO DE ISQUEMIA E REPERFUSÃO NO TRANSPLANTE RENAL ................... 18

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 20

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 21

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1 INTRODUÇÃO

As primeiras tentativas de transplante renal na história estão datadas do início

do século XX, porém com índice de insucesso considerável. No dia 23 de dezembro de

1954, foi realizado o primeiro transplante renal bem sucedido, realizado entre gêmeos

monozigóticos do sexo masculino de 24 anos de idade1. Tal acontecimento foi um marco

para a realização de outros transplantes renais que, entretanto, viriam a ter problemas

devido à rejeição aguda. Somente em 1962, com o surgimento das drogas

imunossupressoras, houve uma evolução importante na sobrevida dos enxertos,

reduzindo significativamente os episódios de rejeição aguda.

No Brasil, o primeiro transplante renal foi realizado em 1965 no Hospital das

Clínicas da Universidade de São Paulo. Desde então, avanços nos transplantes de

órgãos sólidos vêm melhorando resultados.

Atualmente, o rim é o órgão sólido mais transplantado no Brasil e no mundo.

Dados de 2014 evidenciaram um número absoluto de 5.639 transplantes renais no país.

No mesmo ano, o fígado foi o segundo órgão mais transplantado com 1.755 transplantes

realizados2.

O perfil de pacientes da lista de espera vem mudando bastante. Estima-se que,

nos Estados Unidos, mais da metade dos pacientes da lista de espera para transplante

renal já possua mais de 50 anos de idade, mostrando, ainda, um aumento dos pacientes

na lista com mais de 65 anos. Tais dados alertam para uma maior incidência de

complicações associadas a um maior tempo de exposição a doença renal crônica em

estágio terminal e para uma maior complexidade do planejamento perioperatório para

estes pacientes3.

2 CONSIDERAÇÕES PRÉ-OPERATÓRIAS

O perfil de pacientes que estão a espera do transplante renal é de um paciente

com estágio terminal da doença renal crônica. As principais causas de doença renal

crônica (DRC) no Brasil são nefroesclerose maligna, nefropatia diabética e as

glomerulopatias. Em crianças, há predomínio das malformações genito-urinárias que

cursam com infecções do trato urinário de repetição, levando a lesão renal crônica e

perda da função do órgão4.

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Na DRC em estágio terminal, há declínio significativo da taxa de filtração

glomerular (TFG) e da produção de urina, resultando em manifestações clínicas de

uremia. A doença renal crônica terminal tem efeito em vários órgãos e sistemas, gerando

grande impacto na morbidade e na mortalidade de pacientes, mesmo naqueles em terapia

de substituição renal (TSR)3,4.

Com o início da uremia e da oligúria, ocorre expansão do líquido intravascular,

resultando em edema, hipertensão e sobrecarga hídrica. Distúrbios da regulação de

sódio, potássio, cálcio, magnésio e fósforo também são bastante comuns, levando a

alterações crônicas no metabolismo ósseo, hiperparatireoidismo secundário e aumento do

risco de doenças cardiovasculares. Portanto, na avaliação pré-operatória o

anestesiologista deve ter conhecimento do estado volêmico de seu paciente, comparando

seu “peso seco” com o seu peso atual, atentar para sinais clínicos de congestão sistêmica

e ter informações de sua última diálise. Pacientes submetidos a cirurgia logo após a

diálise podem ser mais propensos à hipotensão intraoperatória por hipovolemia4.

A doença cardiovascular é a causa mais comum de mortalidade em pacientes

com DRC terminal e, mesmo após o transplante renal bem sucedido, continua

representando a principal causa de morte no transplantado renal3. Pacientes com doença

renal crônica possuem um risco aumentado de aterosclerose, contribuindo para o

desenvolvimento de doença aterosclerótica crônica, aumentando o risco de doença

cerebrovascular, síndrome coronariana aguda e doença vascular periférica. A hipertrofia

ventricular esquerda e a disfunção diastólica são anormalidades bem frequentes nestes

pacientes. Logo, uma história clínica (incluindo avaliação da capacidade funcional) e

exame físico bem detalhados, eletrocardiograma de doze derivações e ecocardiografia

transtorácica, na avaliação inicial, estão bem indicados para estes pacientes5.

Alterações hematológicas nestes pacientes estão bem documentadas na

literatura. A anemia na doença renal crônica é multifatorial, porém sua principal etiologia é

o déficit de eritropoetina, hormônio endógeno sintentizado nos rins, resultando numa

anemia normocrômica, normocítica, podendo ser exacerbada pela deficiência de ferro,

anemia da doença crônica e hemodiluição. A anemia crônica costuma ser bem tolerada,

por mecanismos compensatórios, por estes pacientes. Entre os mecanismos

compensatórios destacam-se o aumento do débito cardíaco e do nível sérico do 2,3-

difosfoglicerato (DPG), desviando a curva de dissociação da hemoglobina para direita,

diminuindo a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio e facilitando sua liberação aos

tecidos6,7. Distúrbios da hemostasia primária costumam ocorrer devido a um amplo

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espectro de alterações na função plaquetária, relacionado com a deficiência do fator VIII e

do fator de Von Willebrand. A disfunção plaquetária urêmica melhora após a diálise, com

o uso de crioprecipitado e desmopressina3,4,6.

Pacientes urêmicos normalmente apresentam alterações gastrointestinais, tais

como náuseas, vômitos, dor abdominal e retardo do esvaziamento gástrico. A presença

de obesidade e de diabetes podem reduzir, ainda mais, a motilidade gástrica.

3 MANEJO ANESTÉSICO

3.1 Técnica anestésica

A anestesia geral é a técnica mais utilizada para transplante renal na maioria

dos serviços. As cirurgias de transplante renal têm duração média de 3 a 4 horas na

maioria dos serviços, podendo haver dificuldades no controle hemodinâmico, caso seja

utilizado uma técnica de bloqueio no neuroeixo. Os principais objetivos da anestesia são

manter um plano anestésico adequado, estabilidade hemodinâmica e manter um

relaxamento muscular adequado para facilitar condições cirúrgicas3.

Como referido anteriormente, pacientes com DRC terminal são considerados

de risco para aspiração de conteúdo gástrico, principalmente quando associado à

obesidade e ao diabetes. Logo, a indução em sequência rápida estaria bem indicada

nestes casos. A succinilcolina pode ser utilizada de forma segura em pacientes com nível

sérico de potássio menor que 5,5 mEq.L-1, visto que este pode aumentar transitoriamente

de 0,5 a 1,0 mEq.L-1, durante 10 a 15 minutos, após a utilização deste bloqueador. Caso

haja contraindicação ao bloqueador neuromuscular despolarizante, pode-se optar pelo

rocurônio, um bloqueador neumuscular adespolarizante, utilizando-o na dosagem de 1,2

mg.kg-1. Entretanto, alguns autores recomendam cautela na utilização de rocurônio em

pacientes com DRC estágio terminal, devido ao risco de curarização residual após o

término do procedimento, especialmente quando forem utilizadas doses repetidas do

fármaco3,6,7,8.

Sabe-se que o sugammadex, fármaco utilizado para reversão química do

bloqueio neuromuscular induzido pelo rocurônio, não é recomendado para pacientes com

DRC estágio terminal, pois estudos mostraram o prolongamento do tempo de

recuperação do bloqueio muscular e um maior tempo de circulação do “complexo

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rocurônio-sugammadex”, havendo poucos estudos que comprovem a segurança do

medicamento nesse perfil de pacientes8,9,10,11.

Recomenda-se a instalação de um acesso venoso de grosso calibre, o que

pode representar um desafio para pacientes frequentemente puncionados e que

geralmente costumam evoluir com insuficiência vascular.

3.2 Monitorização hemodinâmica

A monitorização hemodinâmica mínima recomendada consiste na oximetria de

pulso, cardioscopia, capnografia e pressão arterial não invasiva. Deve-se ter especial

atenção com a fístula arteriovenosa (FAV) do paciente, protegendo-a contra frio e trauma

e não realizando punções vasculares próximas a ela.

Não há consenso quanto às metas hemodinâmicas no intraoperatório, e alguns

autores recomendam uma pressão arterial sistólica (PAS) acima de 90 mmHg e uma

pressão arterial média (PAM) acima de 60 mmHg. No entanto, estes parâmetros devem

ser adequados de acordo com o perfil hemodinâmico do paciente. Alguns centros fazem

rotineiramente o uso de acesso venoso central para infusão de fluidos e vasopressores no

perioperatório, bem como o emprego da pressão venosa central (PVC) para guiar

reposição volêmica, estabelecendo como meta durante o transplante uma PVC superior a

10 mmHg12. Entretanto, atualmente, é bem descrito na literatura que a utilização da PVC

para prever fluido responsividade não reflete com segurança o estado volêmico do

paciente, e este uso não é mais recomendado 13,14.

O efeito hemodinâmico esperado após uma expansão volêmica seria um

aumento do volume sistólico (VS), levando a um consequente aumento do débito cardíaco

(DC). Entretanto, essa relação entre pré-carga ventricular e VS não é linear e sim

curvilínea como foi demonstrado por Frank e Starling. Logo, na parte ascendente da

curva, no gráfico pré-carga ventricular versus VS, o aumento da pré-carga ventricular

aumentará o VS e, consequentemente, o DC. Na porção mais plana da curva, não se

observa esta relação, não ocorrendo aumento significativo do DC, resultando somente em

sobrecarga hídrica ao paciente15.

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Figura 1 – Curva de Frank-Starling. A – Porção ascendente: grande resposta à variação de pré-

carga. B – Porção plana: pequena resposta à variação de pré-carga.

Fonte: Oliveira RH, et al., 2005.

Atualmente, os índices dinâmicos de pré-carga (variação de volume sistólico,

variação da pressão de pulso, variação do fluxo sanguíneo aórtico, variação do diâmetro

da veia cava inferior etc.) têm se mostrado bem mais confiáveis em predizer fluido

responsividade, do que as pressões de enchimento, podendo trazer benefícios aos

pacientes transplantados. Entretanto, a grande maioria deles necessita da canulação de

uma artéria, o que traz consigo possibilidade de complicações3,8,15,16.

A monitorização da pressão arterial invasiva e do débito cardíaco pode ser

benéfica em pacientes com obesidade mórbida, insuficiência cardíaca congestiva,

hipertensão arterial sistêmica severa, coronariopatas ou que necessitem de gasometria

arterial seriada.8

3.3 Hidratação intraoperatória

A manutenção do volume intravascular com hidratação abundante é

recomendada para garantir uma boa perfusão renal após a liberação das anastomoses

vasculares. A escolha do tipo de fluido utilizado tem recebido cada vez mais atenção.

Para a grande maioria dos pacientes tem-se recomendado cristaloides. Entretanto, ainda

não há um consenso sobre a solução cristaloide ideal.

Nos Estados Unidos (EUA), a principal solução utilizada durante o transplante

renal continua sendo a solução fisiológica a 0,9%, um dos fatores seria o receio dos

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médicos anestesiologistas de se depararem com complicações intraoperatórias

relacionadas ao aumento agudo dos níveis séricos de potássio17.

Potura et al., em 2015, publicaram um estudo prospectivo, randomizado e

controlado, com 150 pacientes portadores de DRC terminal submetidos à transplante

renal de doador cadavérico, alocando-os em dois grupos. Um grupo controle que recebeu

solução salina a 0,9% no intraoperatório (dados da solução: osmolaridade: 308 mOsmol.L-

1; Na+: 154 mmol.L-1; Cl-: 154 mmol.L-1) e um grupo experimental que recebeu uma

solução cristaloide balanceada (dados da solução: osmolaridade: 302 mOsmol.L-1; Na+:

140 mmol.L-1; Cl-: 108 mmol.L-1; K+: 5 mmol.L-1; Ca2+: 2,5 mmol.L-1; Mg2+: 1,5 mmol.L-1;

Acetato: 45 mmol.L-1). O desfecho primário do estudo seria analisar a presença de

hipercalemia nos pacientes que utilizaram a solução cristaloide tamponada e, como

desfecho secundário, foi analisado acidose, função renal pós-operatória e necessidade

vasopressores no período intraoperatório. A incidência de hipercalemia diferiu em menos

de 17% entre os grupos, sendo discretamente maior no grupo com uso de solução

cristaloide balanceada. Não houve diferença na função renal pós-operatória entre os

grupos, entretanto, o grupo com solução salina a 0,9% curiosamente necessitou de mais

vasopressores e apresentou uma incidência significativamente maior de acidose

metabólica e de hipercloremia18.

Alguns estudos sugerem complicações relacionadas ao uso excessivo de

solução salina a 0,9%, tais como acidose metabólica, hipercloremia e hipoperfusão

tecidual renal, podendo aumentar o risco de disfunção do enxerto. Um estudo, envolvendo

12 pacientes adultos jovens, voluntários, demonstrou uma redução significativa na

velocidade média do fluxo da artéria renal e na perfusão cortical renal após a infusão de 2

litros de solução salina a 0,9%, quando comparada ao grupo que utilizou Plasma-Lyte

14819. Krajewski et al., realizaram uma metanálise com 21 estudos, incluindo 6.253

pacientes, sugerindo um maior risco de lesão renal aguda, acidose metabólica, aumento

da necessidade de transfusão sanguínea e maior tempo de ventilação mecânica em

pacientes que foram submetidos a reanimação volêmica com solução salina a 0,9%.

Entretanto, neste mesmo estudo, não houve aumento estatisticamente significante na

mortalidade20.

No final do ano de 2015, foi publicado o estudo SPLIT, com metodologia

prospectiva, randomizada e duplamente encoberta com 2.278 pacientes oriundos de

quatro grandes centros de terapia intensiva da Nova Zelândia e alocados em dois grupos.

No grupo controle, foi utilizada solução salina a 0,9%, e o grupo experimental recebeu

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uma solução cristaloide balanceada com menor teor de cloro (Plasma-Lyte 148). A

conclusão do estudo foi que, num período de observação de 90 dias, não houve redução

da incidência de lesão renal aguda no grupo experimental. Uma crítica ao estudo é que

ele não englobou pacientes de alto risco para disfunção renal ou com algum grau de lesão

renal prévia, como ocorre no cenário para o contexto dos candidatos a transplante renal21.

3.4 Diuréticos

O uso de furosemida, um diurético de alça potente, de ação rápida e que atua

preferencialmente no ramo ascendente da alça de Henle, para induzir diurese e melhorar

o prognóstico do enxerto no transplante renal permanece indefinido, não sendo apoiado

por estudos clínicos.

O manitol, um diurético osmótico, que atua no túbulo proximal e na alça de

Henle, parece favorecer a ocorrência de diurese precoce e diminuir a incidência de

necrose tubular aguda (NTA) com necessidade de diálise no pós-operatório de

transplante renal22,23,24. Entretanto, estudos recentes têm demonstrado que este benefício

pode não ocorrer caso o receptor não tenha recebido uma hidratação adequada

anteriormente.25 Portanto, recomenda-se a utilização de 20 a 50 gramas de manitol num

período de 5 a 15 minutos antes da liberação das anastomoses do enxerto e,

consequentemente, da reperfusão do rim3,4,8,26. O anestesiologista deve ficar atento aos

efeitos colaterais do manitol, incluindo a sobrecarga hídrica inicial, que pode ser mal

tolerada por pacientes com cardiopatia estrutural ou por aqueles já hipervolêmicos.

Reações alérgicas, hipotensão, hipovolemia, acidose metabólica e distúrbios

hidroeletrolíticos, incluindo hipernatremia e hipocalemia são outros efeitos adversos do

manitol que devem ser considerados27.

3.5 Anestésicos inalatórios

Os anestésicos inalatórios são uma boa opção para anestesia em transplante

renal pela vantagem de sua eliminação pulmonar e de proporcionar estabilidade

hemodinâmica. O receio da formação de composto A (substância comprovadamente

nefrotóxica em ratos) durante a degradação de sevoflurano nos absorvedores de dióxido

de carbono levou, por muito tempo, a se evitar este agente inalatório em pacientes com

doença renal. No entanto, é válido frisar que tal afirmação nunca foi comprovada em

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humanos, e tal precaução parece ser infundada. Alguns estudos, inclusive, já

demostraram a segurança da utilização de sevoflurano em pacientes com doença renal

prévia28,29,30. O único anestésico inalatório comprovadamente nefrotóxico é o

metoxiflurano, já abandonado pela prática anestésica pelos casos de insuficiência renal

poliúrica31. Devido aos altos níveis séricos de fluoreto após o uso de enflurano, com

alguns relatos de insuficiência renal, este também deve ser evitado nesse perfil de

pacientes. Muitos serviços consideram o isoflurano o agente inalatório de escolha,

considerando seu baixo potencial nefrotóxico4. Porém, atualmente, sabe-se que

sevoflurano, isoflurano e desflurano podem ser utilizados com segurança mesmo em

pacientes com risco de desenvolver lesão renal aguda8,32.

3.6 Hipnóticos

O tiopental sódico e o propofol são os agentes de indução mais seguros no

transplante renal, por conta dos perfis farmacodinâmico e farmacocinético. O etomidato

pode ser útil em pacientes urêmicos, hipovolêmicos e com a função cardiovascular

comprometida, porém deve-se ter cuidado com o risco de insuficiência adrenal no pós-

operatório, causado pelo bloqueio de duas enzimas envolvidas na síntese de cortisol: 11-

β-hidroxilase e 17-α-hidroxilase3.

3.7 Opioides

A grande maioria dos opioides possui metabolização hepática, sendo

transformados em compostos inativos e excretados via renal ou biliar. As grandes

exceções são a meperidina e a morfina.

A meperidina, após metabolização hepática, transforma-se em normeperidina,

um metabólito ativo, que causa estimulação do sistema nervoso central, podendo

predispor a crises convulsivas, não sendo recomendada sua utilização em pacientes com

história de doença renal crônica terminal. A morfina, um opioide bastante utilizado no

meio hospitalar, dá origem a dois metabólitos ativos, morfina-3-glicuronídeo (M3G) e

morfina-6-glicuronídeo (M6G), e ambos se acumulam em pacientes com doença renal.

Sabe-se que a M6G possui propriedades semelhantes à morfina, podendo acumular-se

cronicamente, causando narcose e depressão respiratória em pacientes com insuficiência

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renal7,8,33. Fentanil, sufentanil, alfentanil e remifentanil podem ser utilizados com

segurança.8

3.8 Bloqueadores neuromusculares

O uso de bloqueadores neuromusculares adespolarizantes com alguma

metabolização renal (rocurônio e vecurônio) em pacientes com doença renal deve ser

ponderado e, quando utilizado, recomenda-se a monitorização do bloqueio

neuromuscular. O cisatracúrio pode ser utilizado nesses pacientes, pois não apresenta

eliminação renal. O pancurônio, bloqueador neuromuscular de longa duração que possui

mecanismo de excreção renal, não é recomendado neste procedimento3,4,8.

Como já explicado anteriormente, o bloqueador neuromuscular despolarizante

pode ser utilizado com segurança desde que os níveis séricos de potássio estejam abaixo

de 5,5mEq.L-1.

4 PROCEDIMENTO CIRÚRGICO

A cirurgia de transplante renal é considerada uma cirurgia de médio porte e, em

adultos, envolve a colocação de um aloenxerto no espaço retroperitoneal. A incisão é

paramediana, normalmente na fossa ilíaca direita, curvilínea (em “forma de J”) e com 20 a

25 centímetros de comprimento, estendendo-se desde a sínfise púbica até um pouco

acima da espinha ilíaca ântero-superior. A incisão cirúrgica costuma ser de grande

estímulo nociceptivo, podendo gerar uma resposta hemodinâmica exacerbada em alguns

pacientes. É essencial que o paciente esteja com plano anestésico, analgesia e

relaxamento muscular adequados neste momento3,4,7.

Quando o enxerto renal é oriundo de um doador vivo, dá-se preferência ao rim

esquerdo, pois este possui um pedículo vascular maior, facilitando a anastomose no

receptor. Primeiramente, as anastomoses normalmente são realizadas entre a veia renal

do doador e a veia ilíaca externa do receptor. Posteriormente, ocorre anastomose término

terminal da artéria renal do doador com a artéria hipogástrica, ou término lateral com a

artéria ilíaca externa do receptor. Somente após as anastomoses vasculares é que seria

realizado o implante do ureter na bexiga. Um cateter de Foley com três vias é colocado na

bexiga e preenchido com solução contendo antibiótico. O reimplante ureteral pode ser

realizado por várias técnicas, porém em casos selecionados têm-se observado menores

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taxas de complicações ureterais com o uso de um catéter duplo J, sendo removido de 6 a

12 semanas após a cirurgia. Logo após o término da anastomose ureteral, o débito

urinário é quantificado e medido com frequência, ajudando a orientar a hidratação do

período pós-operatório imediato3,4,12.

Fonte: Miller RD, et al., 2015.

Figura 2 – Transplante renal. A – anastomose da artéria

renal do doador com a artéria ilíaca externa do receptor.

B- anastomose da veia renal do doador com a veia ilíaca

externa do receptor. C- implante ureteral na bexiga.

Durante as anastomoses vasculares, a expansão intravascular com solução

cristaloide, deve ser iniciada. Recomenda-se a utilização de manitol, minutos antes da

reperfusão do enxerto, juntamente com a reanimação volêmica, a fim de diminuir o risco

de NTA no pós-operatório. Em raras ocasiões, após a liberação dos clampes vasculares,

pode haver sangramento agudo, com necessidade de nova reanimação volêmica e

vasopressores3,4,7,8.

A hipotensão após a reperfusão deve ser tratada prontamente, pois pode

resultar em hipoperfusão e eventual trombose vascular do enxerto, aumentando o risco de

disfunção do enxerto. A dopamina, durante muito tempo, foi considerada o vasopressor

de escolha, entretanto, atualmente tem perdido espaço, pois não foi comprovada a

melhora de resultados do enxerto e, ao induzir aumento da frequência cardíaca, pode

potencialmente induzir isquemia miocárdica em paciente coronariopatas e arritmias34,35,36.

Após a conclusão das anastomoses vasculares, o ureter do doador é

implantado na bexiga do receptor. O bloqueio neuromuscular deve ser mantido até o

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fechamento da aponeurose, para garantir que uma eventual superficialização do plano

anestésico não comprometa o local onde o enxerto e o seu pedículo vascular serão

alojados. Recomenda-se o cuidadoso monitoramento do bloqueio neuromuscular e a

administração de agentes que revertam a curarização. A extubação deve ocorrer após o

paciente estar bem acordado e com capacidade de proteger via aérea, pois pacientes

urêmicos podem apresentar retardo do esvaziamento gástrico, aumentando o risco de

aspiração do conteúdo gástrico3,4,8.

O pós-operatório do transplante renal geralmente não necessita de UTI,

entretanto, os pacientes que necessitam de admissão em UTI, normalmente, apresentam

uma maior taxa de mortalidade (40% contra 20%) em comparação com pacientes de UTI

não transplantados3.

5 ANALGESIA PÓS-OPERATÓRIA

O controle da dor pós-operatória pode ser feito através de analgesia controlada

pelo paciente (PCA) usando, preferencialmente, opioides sintéticos que não possuam

metabólitos ativos. Anti-inflamatórios não esteroides (AINE’s) estão proscritos para este

perfil de paciente, pois diminuem a síntese de prostaglandinas, que mantém a

vasodilatação renal na vigência de isquemia, podendo aumentar o risco de lesão ao

enxerto. A analgesia peridural para controle da dor pós-transplante renal tem suas

limitações devido ao risco de hematoma peridural em um paciente urêmico com distúrbio

de coagulação por disfunção plaquetária e pela dificuldade que pode ser encontrada na

manutenção de parâmetros cardiovasculares no momento da reperfusão3,4,37.

Recentemente, alguns estudos vêm demonstrando uma boa analgesia com o

bloqueio do plano transverso abdominal ou “TAP (transversus abdominis plane) block”

orientado por ultrassonografia. O método se baseia na inserção da agulha guiada por

ultrassonografia até o plano entre os músculos transverso do abdômen e oblíquo interno,

para bloquear os ramos anteriores dos seis nervos torácicos inferiores (T7-T12) e o

primeiro nervo lombar (L1). A injeção de anestésico local pode fornecer analgesia

unilateral para pele, músculos e peritônio parietal da parede abdominal anterior de T7-L1,

embora a extensão do bloqueio seja bastante variável38. Os pacientes submetidos ao

transplante renal seriam ideais por conta da incisão clássica que se estende desde a

sínfise púbica até próximo à espinha ilíaca ântero-superior, abrangendo, normalmente, os

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dermátomos de T10-L1, sem qualquer extensão intraperitoneal, eliminando o componente

da dor visceral39,40,41.

Figura 3 – (A) Inserção da agulha e distribuição do anestésico local (área sombreada azul) para obter o TAP

Block. EOM: músculo oblíquo externo. IOM: músculo oblíquo interno. TAM: músculo transverso do abdome.

(B) Posição do transdutor no músculo abdominal na linha axilar anterior entre a linha subcostal e a crista

ilíaca.

(A) (B)

Fonte: Hadzic A, et al., 2014.

Mukhtar et al., realizaram um estudo com 20 pacientes para avaliar a analgesia

com o TAP block em pacientes submetidos a transplante renal. Um grupo controle com 10

pacientes recebeu paracetamol 1 g IV, morfina até 10 mg IV e foi infiltrada ferida

operatória com anestésico local, 20 mL de bupivacaína 0,5%. O grupo experimental foi

submetido a TAP block 20 mL de bupivacaína 0,5% após a indução anestésica, bem

como paracetamol e morfina IV. Todos os pacientes receberam no pós-operatório

paracetamol 1 g IV a cada 6 horas e morfina por meio de PCA. Foram avaliados a

incidência de náuseas e de vômitos no pós-operatório, bem como as medidas na escala

de dor em 3, 6, 12 e 24 horas após a cirurgia. Os escores de dor foram significativamente

menores no grupo TAP Block em 3, 6 e 12 horas (p <0,001), mas não houve diferença

nas 24 horas. O consumo de morfina foi significativamente menor do grupo do TAP Block.

A incidência de náuseas e de vômitos foi menor em 3 e 6 horas no grupo do TAP Block

em comparação com o grupo controle39. Concluindo que o TAP Block poderia ser uma

boa opção para analgesia pós-operatória neste procedimento.

6 LESÃO DE ISQUEMIA E REPERFUSÃO NO TRANSPLANTE RENAL

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A NTA, com retardo da função do enxerto, é a causa mais frequente de

comprometimento da função renal no pós-operatório, possuindo uma incidência maior em

receptores de doadores falecidos. Nestes, a NTA costuma ser diretamente relacionada ao

tempo prolongado de isquemia, compatibilidade HLA, idade, doença subjacente do

receptor e uso de vasopressores durante a captação e transplante42.

Do ponto de vista fisiopatológico, atualmente, os estudos passaram a

demonstrar a importância da lesão isquêmica, por meio da hipóxia e da liberação de

radicais livres43,44. Dessa forma, a lesão de isquemia e reperfusão passou a ter um papel

fisiopatogênico central na disfunção do enxerto pós-transplante, com a participação de

diversos mecanismos humorais mediados pelo sistema imunológico. Assim, a hipóxia

tecidual é o insulto inicial e desencadeador dessa lesão que envolve células do sistema

imunológico, principalmente células T e moléculas de ativação celular43,44,45.

Sabe-se que o atual conhecimento fisiopatológico da lesão por isquemia e

reperfusão envolve a ativação do sistema imunológico, especialmente linfócitos CD4+,

com funções de ativação celular, adesão ao endotélio e migração para o sítio de lesão.

Anticorpos depletores de linfócitos têm sido utilizados na profilaxia da rejeição aguda em

transplante renal em pacientes de alto risco, por serem capazes de bloquear parte do

processo e reduzir de forma significativa os efeitos da lesão por isquemia e reperfusão. A

timoglobulina, globulina antitimócito humano produzida a partir do soro de coelho, é um

potente anticorpo policlonal depletor de linfócitos, cuja infusão costuma ser iniciada já no

período intraoperatório, na indução anestésica, reduzindo, dessa forma, os riscos de

rejeição aguda e de disfunção renal no pós-operatório44,46.

Entre a retirada do órgão do doador falecido até a reperfusão do enxerto no

receptor, o tecido renal é exposto a dois tipos diferentes de processo: isquemia quente e

isquemia fria. O tempo de isquemia quente é definido como o período entre o

clampeamento da artéria renal no doador até a perfusão com solução de preservação,

sendo o período de maior dano tecidual e vulnerabilidade do órgão. Durante o tempo de

isquemia quente, ocorre interrupção abruta da oferta de oxigênio ao tecido renal, com

consequente diminuição do metabolismo aeróbico, suspensão da oxidação de glicose e

de ácidos graxos e intensificação do metabolismo anaeróbico. Isto resulta em redução

significativa da oferta de trifosfato de adenosina (ATP) intracelular, gerando redução da

atividade da bomba de Na+/K+/ATPase e desbalanço hidroeletrolítico entre o meio

intracelular e o meio extracelular, culminando com formação de edema celular. Além

disso, o aumento do metabolismo anaeróbico resulta em aumento da quantidade de ácido

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lático, contribuindo para diminuição do pH intracelular. O tempo de isquemia fria

corresponde ao período entre a perfusão do enxerto com as soluções de preservação e o

desclampeamento das anastomoses vasculares no receptor. Apesar do tempo de

isquemia quente ser mais lesivo ao órgão, atualmente, com um sistema de equipes de

captação bem capacitada, raramente este período ultrapassa 5 minutos, passando a ser o

tempo de isquemia fria o principal fator relacionado com o prognóstico do enxerto43,44.

Figura 3 - Impacto da isquemia quente no meio intracelular.

Fonte: Requião-moura et al., 2015.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas últimas décadas, o transplante de órgãos sólidos vêm tendo diversos

avanços no Brasil e no mundo. Muito disso deve-se ao avanço de várias pesquisas na

área médica, fazendo com que houvesse melhorias desde a captação de órgãos, com o

melhor preparo e seleção do doador, até o período perioperatório do transplante, no qual

se insere o anestesiologista. Esses avanços fizeram com que as taxas de mortalidade

caíssem bastante em pacientes transplantados.

O papel do anestesiologista é essencial durante o período perioperatório do

transplante renal, pois envolve um paciente complexo com risco elevado de doenças

cardiovasculares e de distúrbios metabólicos, necessitando de um plano anestésico

adequado durante o procedimento, de uma boa analgesia pós-operatória e da

manutenção dos parâmetros hemodinâmicos no intraoperatório para um melhor

prognóstico do rim transplantado.

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De maneira ampla, serviços de transplante continuam sendo bastante

complexos e demandando conhecimento e empenho de equipes multidisciplinares.

Tamanha complexidade requer investimentos por parte das instituições governamentais e

de pesquisa, a fim de lidar com pacientes muitas vezes estigmatizados pela doença e

necessitando daquele órgão para dar continuidade à sua vida.

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