hÉlade - volume 3, número 3helade.uff.br/helade_v3_n3_edicaocompleta.pdf · 2018. 9. 20. · 3 o...

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Page 1: HÉLADE - Volume 3, Número 3helade.uff.br/helade_v3_n3_edicaocompleta.pdf · 2018. 9. 20. · 3 O primeiro número da nova série (v. 1, n. 1) foi uma edição especial em que convidamos

Volume 3 Nuacutemero 3 - Dezembro de 2017

Universidade Federal Fluminense (UFF)Instituto de Histoacuteria (IHT)

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH)Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA)

REVISTA HEacuteLADE - ISSN 1518-2541Ano 3 Volume 3 - Nuacutemero 3

Dexembro de 2017

EditoresProf Dr Alexandre Santos de Moraes (UFF)

Profa Dra Adriene Baron Tacla (UFF)Prof Dr Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF)

Assistentes de EdiccedilatildeoProfa Thaiacutes Rodrigues dos Santos (UFF)Grad Geovani dos Santos Canuto (UFF)

Profa Beatriz Moreira da Costa (UFF)

Conselho EditorialProfa Dra Ana Livia Bomfim Vieira (UEMA)

Profa Dra Ana Teresa Marques Gonccedilalves (UFG)Profa Dra Claudia Beltratildeo da Rosa (UNIRIO)

Prof Dr Faacutebio Faversani (UFOP)Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa (UFRJ)

Prof Dr Gilvan Ventura da Silva (UFES)Prof Dr Joseacute Antocircnio Dabdab Trabulsi (UFMG)

Profa Dra Maria Beatriz Borba Florenzano (USP)Profa Dra Monica Selvatici (UEL)

Prof Dr Pedro Paulo de Abreu Funari (UNICAMP)

Conselho ConsultivoProf Dr Aacutelvaro Alfredo Braganccedila Juacutenior - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof Dr Alvaro Hashizume Allegrette - Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)Prof Dr Antonio Brancaglion Juacutenior - Museu NacionalUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof Dr Andreacutes Zarankin - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)Sir Barry Cunliffe - Universidade de Oxford (Inglaterra)

Profa Dra Elaine Hirata - Universidade de Satildeo Paulo (USP)Dr Elif Keser Kayaalp - Universidade Mardin Artuklu (Turquia)

Prof Dr Faacutebio Duarte Joly - Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)Prof Dr Joatildeo Lupi - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Profa Dra Luciane Munhoz de Omena - Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)Profa Titular Lynette G Mitchell - Universidade de Exeter (Inglaterra)

Profa Dra Maacutercia Severina Vasques - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)Profa Dra Maria Aparecida de Oliveira Silva - Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Profa Dra Margarida Maria de Carvalho - Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP- Franca)Profa Dra Maria Cristina Nicolau Kormikiari Passos - Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Profa Dra Maria de Faacutetima Sousa e Silva - Universidade de Coimbra (Portugal)Profa Dra Maria Isabel drsquoAgostino Fleming - Universidade de Satildeo Paulo (USP)

PD Dr Philipp W Stockhammer - Universidade de Heidelberg (Alemanha)Profa Dra Renata Senna Garraffoni - Universidade Federal do Paranaacute (UFPR)Profa Dra Violaine Sebillotte Cuchet - Universiteacute Paris 1 Pantheacuteon-Sorbonne

Professor Emeacuterito Wolfgang Meid - Universidade de Innsbruck (Aacuteustria)

A responsabilidade pelas opiniotildees emitidas pelas informaccedilotildees e ideias divulgadas satildeo exclusivas dos proacuteprios

autores

SUMAacuteRIO

EDITORIALHEacuteLADE PRIMEIRO TRIEcircNIO DA NOVA SEacuteRIE p 4Alexandre Santos de Moraes

ARTIGOS DE TEMA LIVRE

O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEMACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA p 9Talita Nunes Silva Gonccedilalves

GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTICAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLICA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES p 19Decircnis Renan Correcirca

MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDAD Y ETERNA MEMORIA p 36Julio Loacutepez Saco

ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO p 48Camila Alves Jourdan

A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTIGUIDADE p 59Renata Cardoso de Sousa

COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeOAS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacuteTICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA p 83Alexandre Santos de Moraes

A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTODOS PODERES PARENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS p 96Bruno DrsquoAmbros

TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES p 106Paulo Pires Duprates

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO p 130

4

Editorial

Editorial

HEacuteLADE PRIMEIRO TRIEcircNIO DA NOVA SEacuteRIE

Alexandre Santos de Moraes1

Thaiacutes Rodrigues dos Santos2

Passaram-se trecircs anos desde 2015 quando decidimos pelo retorno da Heacutelade e estivemos diante de trecircs desafios interdependentes Em primeiro lugar nosso objetivo era resgatar o conteuacutedo da seacuterie original que por forccedila do tempo e das circunstacircncias encontrava-se bastante disperso e em parte inacessiacutevel Esse esforccedilo devolveu agrave comunidade acadecircmica um total de 48 artigos completamente reeditados Em segundo lugar em constacircncia com essa disposiccedilatildeo buscamos recuperar a histoacuteria da revista as iniciativas que caracterizaram sua seacuterie inicial e os princiacutepios editoriais da primeira revista eletrocircnica brasileira exclusivamente dedicada aos estudos da Antiguidade Finalmente em terceiro lugar concentramos nossas energias para consolidar a Heacutelade como um espaccedilo isonocircmico de publicaccedilatildeo amplo receptivo e democraacutetico aberto a pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do exterior Com esse nuacutemero chegamos ao primeiro triecircnio da nova seacuterie periacuteodo razoavelmente seguro para lanccedilar um olhar retrospectivo e fazer um balanccedilo dessa nova fase da revista

Ao longo desses trecircs anos foram publicados oito nuacutemeros dois em 2015 trecircs em 2016 e outros trecircs em 2017 A mudanccedila na periodicidade tem a ver com a generosa acolhida da revista junto aos especialistas e o correspondente apoio de pareceristas ad hoc que asseguraram natildeo apenas a viabilidade do sistema de avaliaccedilatildeo agraves cegas mas tambeacutem a melhoria significativa dos

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e colaborador do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) Editor da Heacutelade

2 Mestranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense (PPGHUFF) Membra do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) Assistente editorial da Heacutelade

Editorial

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trabalhos apoacutes as criacuteticas e sugestotildees pertinentes A opccedilatildeo pela publicaccedilatildeo de dossiecircs3 estimulou diversas reflexotildees acerca de temaacuteticas prementes do nosso presente referendando natildeo apenas o fato de que toda Histoacuteria eacute por princiacutepio contemporacircnea mas tambeacutem que a Antiguidade eacute um locus privilegiado para refletirmos sobre nossos dilemas e conflitos Os nuacutemeros que sintetizam esse trabalho satildeo bastante elucidativos foram publicados ateacute o momento um total de 67 artigos o que assegura uma meacutedia de pouco mais de 8 artigos por nuacutemero

Desde o iniacutecio a revista buscou garantir a ampla participaccedilatildeo de especialistas que se dedicam ao estudo da Antiguidade Uma vez que os artigos satildeo avaliados pelo sistema ldquoduplo-cegordquo os editores partiram da premissa de que a qualidade estava antes associada ao meacuterito dos trabalhos do que pura e simplesmente agrave titulaccedilatildeo Nesse sentido ao longo desses trecircs anos acolhemos com entusiasmo artigos assinados por mestres doutorandos e doutores4 contrariando a loacutegica do doutoramento obrigatoacuterio comumente adotado como criteacuterio nas avaliaccedilotildees Outrossim como indicam os nuacutemeros 682 dos artigos foram enviados por especialistas com doutorado5 (45 no total) e 318 por mestres (22 no total) Trata-se em certa medida de uma proporccedilatildeo esperada tendo em vista que eacute usual acumular mais debates e reflexotildees agrave medida que possuiacutemos mais tempo dedicado agraves pesquisas Outrossim a participaccedilatildeo de pesquisadores em estaacutegios iniciais de formaccedilatildeo tambeacutem foi assegurada atraveacutes de artigos em coautoria Do total 56 artigos (833) foram assinados individualmente e 11 (166) em coautoria Ao longo do triecircnio a Heacutelade contou a participaccedilatildeo de 70 autores desses apenas 6 (87) assinaram mais de um artigo

3 O primeiro nuacutemero da nova seacuterie (v 1 n 1) foi uma ediccedilatildeo especial em que convidamos autores

da primeira seacuterie da revista a revisitarem os temas publicados haacute 15 anos Em seguida publicamos

dossiecircs com os seguintes tiacutetulos Literatura Antiga Tempo e Tradiccedilatildeo (v 1 n 2) Jogos Desporto e Praacuteticas Corporais na Antiguidade (v 2 n 1) Religiotildees no Mundo Antigo (v2 n 2) Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) e Etnicidade e

as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2)

4 Aleacutem de graduandos graduados e mestrados desde que em coautoria com doutores como

indicado em nossas normas de publicaccedilatildeo (httpwwwheladeuffbrnormashtml)

5 Incluindo os artigos em coautoria e nesse caso considerando a titulaccedilatildeo maacutexima de um dos

autores

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EditorialA diversidade teoacuterico-metodoloacutegica foi assegurada pela ampla participaccedilatildeo de pesquisadores e pesquisadoras de Histoacuteria Letras Psicologia Filosofia e Arqueologia A pluralidade de temas tambeacutem ficou marcada por artigos que versavam sobre questotildees associadas agrave Antiguidade Claacutessica ao Antigo Oriente Proacuteximo e ao Ensino de Histoacuteria Em relaccedilatildeo agrave origem institucional dos autores os nuacutemeros indicam uma crescente ampliaccedilatildeo do escopo da revista e a recusa intransigente a qualquer possibilidade de endogenia A maioria dos participantes estaacute vinculada a universidades brasileiras6 (803)

6 Lista de universidades brasileiras participantes Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Universidade do Estado do Amapaacute (UEAP) Universidade Estadual do Maranhatildeo (UEMA)

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Universidade Federal do Espiacuterito Santo

(UFES) Universidade Federal Fluminense (UFF) Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Universidade Federal do Paranaacute (UFPR)

Universidade Federal do Recocircncavo da Bahia (UFRB) Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC) Universidade de Brasiacutelia (UnB) Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP) Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Editorial

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mas a diversidade institucional dos autores estrangeiros7 (197 do total) sinaliza uma tendecircncia bastante significativa de internacionalizaccedilatildeo da Heacutelade No total foram vinte universidades brasileiras e dez universidades estrangeiras representadas por seus autores ao longo desse primeiro triecircnio

A preocupaccedilatildeo com a divulgaccedilatildeo dos trabalhos tambeacutem marcou e consolidou a participaccedilatildeo ativa da Heacutelade nas redes sociais em particular no Facebook (httpswwwfacebookcomrevistaheladeuff) Atualmente nessa rede social 4755 usuaacuterios acompanham nossas publicaccedilotildees Aleacutem de replicarmos notiacutecias relativas agrave Antiguidade divulgarmos a abertura de concursos puacuteblicos entrevistas lanccedilamentos editoriais e nuacutemeros de revistas tambeacutem dedicadas ao estudo do mundo antigo a divulgaccedilatildeo dos dossiecircs aproximou a Histoacuteria Antiga de um puacuteblico muitas vezes privado do acesso agrave produccedilatildeo acadecircmica pela forma com que nosso campo se estrutura O iacutendice de alcance das publicaccedilotildees eacute um poderoso indicativo desse movimento O uacuteltimo dossiecirc publicado Etnicidade e as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2) teve um alcance de 36272 pessoas Nuacutemero decerto bastante expressivo mas em nada equiparado ao de temaacuteticas que dialogam diretamente com questotildees poliacuteticas em que estamos diretamente envolvidos no presente da vida social O dossiecirc Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) por exemplo atingiu 51116 pessoas menos da metade das 127540 pessoas alcanccediladas pelo dossiecirc Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Esta atuaccedilatildeo atraveacutes das redes sociais seraacute ampliada no iniacutecio de 2018 com a construccedilatildeo de uma paacutegina no Academiaedu

A Heacutelade eacute resultado do envolvimento coletivo dos membros do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA) vinculado ao Departamento de Histoacuteria e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF) Trata-se de uma iniciativa somente possiacutevel no marco de um trabalho em equipe que envolve editores assistentes de ediccedilatildeo conselho editorial e conselho consultivo O crescimento e consolidaccedilatildeo da Heacutelade tambeacutem eacute a expressatildeo do suporte assegurado pela universidade puacuteblica e pelo trabalho que busca recrudescer seu caraacuteter democraacutetico assegurando o compromisso com uma instituiccedilatildeo que

7 Lista de universidades estrangeiras participantes Universidad Central de Venezuela Universidad

de Alicante Universidad de Moroacuten Universidad Nacional de Mar del Plata Universidade Aberta

de Lisboa Universitagrave degli studi di Roma ldquoTor Vergatardquo Universitagrave degli Studi di Verona

University of London Newcastle University e Universidade de Coimbra

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Editorial

deve ser sempre gratuita e cada vez mais apta a fomentar ensino pesquisa e extensatildeo de qualidade Ainda que os nuacutemeros ajudem a produzir uma siacutentese do trabalho realizado nesse triecircnio e forneccedilam dados estatiacutesticos para os planejamentos futuros eles satildeo incapazes de representar nosso contentamento pelo acolhimento da revista A equipe da Heacutelade agradece os leitores assim como aos autores dos artigos que tambeacutem possibilitam que este trabalho aconteccedila Seguiremos com a mesma disposiccedilatildeo

Tema Livre

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O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEM ACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA

Talita Nunes Silva Gonccedilalves1

Resumo O presente artigo visa fazer uma breve discussatildeo sobre o conceito de alteridade e seu uso nas pesquisas referentes a antiguidade grega para posteriormente abordar a construccedilatildeo da identidade helecircnica e mais especificamente a do cidadatildeo ateniense por meio da contraposiccedilatildeo com o femininoPalavras-chaves Identidade alteridade cidadatildeo Atenas feminino

Este artigo tem por objetivo inicial apresentar como o conceito de lsquoalteridadersquo tem sido abordado nas pesquisas em Histoacuteria Antiga e particularmente na Antiguidade Grega Num segundo momento propomos uma reflexatildeo concernente agrave construccedilatildeo da identidade helecircnica em contraposiccedilatildeo a figura do lsquoOutrorsquo o que se deu principalmente apoacutes o fim das guerras contra os persas Por uacuteltimo abordamos a alteridade feminina e a sua particularidade de se constituir um lsquoOutrorsquo dentro da proacutepria cultura grega e especificamente na ateniense

A noccedilatildeo moderna de lsquoalteridadersquo surge na deacutecada de 1960 no bojo dos estudos feministas e das pesquisas relativas aos esquecidos isto eacute aos excluiacutedos da histoacuteria (dentre os quais podemos citar as mulheres os escravos e os pobres) Tais estudos refletem intensamente sobre o significado deste conceito na sociedade As concepccedilotildees relativas agrave lsquoalteridadersquo se disseminaram por outros campos de estudo como a antropologia e a ciecircncia poliacutetica por meio da adaptaccedilatildeo gradativa das ideias do filoacutesofo Emmanuel Leacutevinais Seu pensamento encontra-se articulado em Alteriteacute e transcendance (1995) obra que reuacutene uma coleccedilatildeo de artigos publicados entre a deacutecada de 60 e o final dos anos 80

1 Doutora em Histoacuteria Antiga e professora substituta da Universidade Federal Fluminense Endereccedilo eletrocircnico talitanunesuolcombr

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Tema Livre

Raphaeumll Weyland pesquisador que trabalhou com o tema Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (2012) ao refletir sobre a lsquoalteridadersquo pondera que os trabalhos publicados nos uacuteltimos anos sobre o assunto ldquonos mostram que cada um rejeita por meio da figura do lsquooutrorsquo (uma figura externa) as caracteriacutesticas que sua cultura considera negativasrdquo (WEYLAND 2012 p 4) O autor observa que ldquoeste lsquooutrorsquo natildeo eacute necessariamente eacutetnico ele pode ser tambeacutem econocircmico sexual ou mesmo poliacutetico O estudo da maneira como o outro eacute representado permite portanto compreender melhor os valores importantes da sociedade do emissor destas opiniotildees

O trabalho de Weyland relativamente recente mostra que a noccedilatildeo de lsquoalteridadersquo e os questionamentos suscitados por ela alcanccedilaram igualmente as pesquisas em histoacuteria antiga Haacute um bom nuacutemero de publicaccedilotildees que se inserem nesta perspectiva dentre as quais podemos destacar o livro O espelho de Heroacutedoto (1999) do historiador francecircs Franccedilois Hartog Esta obra tem sido desde sua publicaccedilatildeo muito importante para a reflexatildeo relativa agrave alteridade e a maneira como ela foi descrita Neste livro Hartog se concentra especialmente sobre o modo como Heroacutedoto descreveu os costumes dos citas e apresenta as contradiccedilotildees entre os relatos do historiador antigo e os dados arqueoloacutegicos Por meio da anaacutelise das Histoacuterias de Heroacutedoto o historiador francecircs busca examinar a lsquopsiquecircrsquo grega Para Hartog a identidade de um povo na antiguidade eacute definida pela documentaccedilatildeo textual por meio da contraposiccedilatildeo a um lsquooutrorsquo A identidade grega seria portanto delineada em oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de outros povos Obras como as de Edith Hall Inventing the Barbarian (1989) e de Paul Cartledge The Greeks A Portrait of Self and Others (1993) se inserem igualmente nesta perspectiva

Quanto agraves publicaccedilotildees mais recentes destacamos aqui Rethinking the Other in Antiquity (2011) de Erich Gruen The Invention of Racism in Classical Antiquity (2004) de Benjamin Isaac e The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus (2012) de Joseph Edward Skinner A escolha por mencionar estas obras se deve a fornecerem um indicativo das discussotildees atuais referentes agrave questatildeo lsquoalteridadersquo e lsquoantiguidadersquo Gruen se concentra nos gregos romanos e judeus enquanto Isaac nos dois primeiros e Skinner especificamente na Greacutecia antiga Erich Gruen busca se contrapor aos trabalhos publicados sobre alteridade na documentaccedilatildeo antiga Ele critica a visatildeo prevalecente entre os classicistas de que os povos da antiguidade reforccedilavam sua auto-percepccedilatildeo se contrapondo com o lsquoOutrorsquo frequentemente atraveacutes de estereoacutetipos e caricaturas hostis Gruen pretende mostrar como as atitudes dos antigos com relaccedilatildeo ao lsquoOutrorsquo natildeo expressam simplesmente contraste e alienaccedilatildeo

Tema Livre

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mas tambeacutem constantemente reciprocidade e conexatildeo No entanto acaba exagerando a importacircncia das passagens que descrevem o lsquoOutrorsquo de forma positiva Jaacute Benjamin Isaac reitera a persistecircncia dos comentaacuterios negativos com relaccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo povos na documentaccedilatildeo antiga Isaac procura refutar a crenccedila comum de que os antigos gregos e romanos nutriam preconceitos eacutetnicos e culturais mas natildeo raciais Sua definiccedilatildeo de lsquoracismorsquo e o fato de se concentrar na documentaccedilatildeo textual tem sido criticados

Quanto ao livro de Skinner seu objetivo eacute suplantar a visatildeo tradicional de que a etnografia grega eacute um feito do seacuteculo V aC O autor analisa os escritos deixados pelos grandes autores da antiguidade com o intuito de perceber como os gregos antigos representavam outros povos e a si mesmos Neste sentido busca mostrar que os discursos de alteridade e identidade satildeo na realidade muito mais antigos do que os apresentados na literatura etnograacutefica relativa agraves guerras entre gregos e persas Skinner vecirc o percurso da etnografia grega como comeccedilando com Homero e segue este movimento ateacute Heroacutedoto Para ele a obra deste historiador antigo fundamental para a etnografia helecircnica delimita o que eacute ser grego Com relaccedilatildeo a este aspecto isto eacute ao que eacute ser grego Jonathan Hall reconhece a guerra contra os persas como um momento decisivo no modo como os helenos concebiam sua proacutepria identidade Ateacute entatildeo observa o autor a afiliaccedilatildeo eacutetnica (identidade eacutetnica) era preponderante na construccedilatildeo da auto-identidade helecircnica

Em Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture (2002) Jonathan Hall define a etnicidade Destacamos aqui alguns dos elementos de sua definiccedilatildeo 1) O grupo eacutetnico eacute uma auto-definiccedilatildeo de uma coletividade social que se constitui em oposiccedilatildeo a outros grupos de uma ordem semelhante 2) Liacutengua religiatildeo traccedilos culturais e elementos bioloacutegicos podem parecer ser marcadores de identificaccedilatildeo mas em uacuteltima instacircncia eles natildeo definem o grupo eacutetnico Eles satildeo marcadores superficiais 3) Os elementos centrais que determinam a participaccedilatildeo no grupo eacutetnico - e o distingue das demais coletividades sociais - satildeo uma suposta descendecircncia comum e parentesco uma associaccedilatildeo a um territoacuterio especiacutefico e um sentido histoacuterico compartilhado Nesta definiccedilatildeo a descendecircncia e parentesco comum (fictiacutecio ou natildeo) assumem uma posiccedilatildeo central Jonathan Hall no entanto argumenta que a base definidora da identidade helecircnica mudou de eacutetnica para um criteacuterio cultural durante o seacuteculo V aC Para Hall assim como para a maioria dos historiadores a guerra contra os persas fez entrar em cena a figura do baacuterbaro que passou a ser equivalente a lsquonatildeo-gregorsquo A emergecircncia da imagem estereotipada do baacuterbaro no seacuteculo V aC foi frequentemente considerada como um fator fundamental para a auto-

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Tema Livre

definiccedilatildeo helecircnica Entretanto regularmente se supocircs que helenos e baacuterbaros eram categorias irremediavelmente opostas

Contrariamente a essa posiccedilatildeo Jonathan Hall considera que mais comumente os baacuterbaros natildeo eram vistos como uma categoria diametralmente oposta Pois se considerava que poderiam ser incluiacutedos entre os helenos Isto eacute um baacuterbaro poderia se tornar grego se adotasse a liacutengua os costumes e as praacuteticas gregas Para hall a possibilidade desse cruzamento soacute era possiacutevel porque a identidade grega passara a ser compreendida primeiramente em termos culturais O historiador observa tambeacutem que a definiccedilatildeo de helenicidade no Livro VIII das Histoacuterias de Heroacutedoto coloca os laccedilos de sangue no mesmo niacutevel dos criteacuterios culturais Contudo no plano de fundo das Histoacuterias as consideraccedilotildees culturais acabam por superar as noccedilotildees eacutetnicas nas definiccedilotildees dos grupos populacionais Jonathan Hall observa que mesmo em Tuciacutedides os baacuterbaros aparecem num estaacutegio de desenvolvimento cultural mais primitivo do que os gregos Mas haacute uma suposiccedilatildeo impliacutecita de que os baacuterbaros podem se tornar mais helecircnicos por meio da convergecircncia cultural Os escritores antigos do seacuteculo V aC mas tambeacutem do IV aC conceberiam assim as diferenccedilas humanas em termos mais culturais

Neste sentido Geneviegraveve Proulx em Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens (2008) pontua que Heroacutedoto ao desenvolver o tema central de suas Histoacuterias (as guerras entre os gregos e persas) e considerar a questatildeo das diferenccedilas culturais acaba por conceder um lugar agraves mulheres no estudo dos nomoi dos baacuterbaros Deste modo as atividades das mulheres nas exposiccedilotildees etnograacuteficas tornam-se importantes criteacuterios de descriccedilotildees Das 375 ocorrecircncias de mulheres nas Histoacuterias segundo Carolyn Dewald em Women and culture in Herodotusrsquo Histories (1981) 212 as apresentam como ativas (agindo de vaacuterias maneiras) e neste caso mais da metade das ocorrecircncias se encontram em descriccedilotildees etnograacuteficas Aleacutem disso Geneviegraveve Proulx mostra que as personagens femininas que aparecem individualizadas satildeo tambeacutem muito presentes em Heroacutedoto Estas mulheres que desempenham um papel no desenvolvimento dos eventos satildeo mais frequentemente pertencentes aos lsquobaacuterbarosrsquo O fato destas mulheres que aparecem como personagens individualizadas e das passagens que retratam as mulheres em posiccedilatildeo ativa se referirem mais comumente a natildeo-gregas apontam distinccedilotildees entre os costumes dos helenos e dos lsquobaacuterbarosrsquo

Desta forma notamos que o lsquoOutrorsquo assume um importante papel na definiccedilatildeo da identidade grega especialmente apoacutes as guerras contra os persas quando o termo lsquobaacuterbaroirsquo que se refere - como nos mostra Edith Hall - primeiramente aos persas acaba por incorporar o significado mais geneacuterico

Tema Livre

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de natildeo-grego No entanto a definiccedilatildeo do que eacute ser grego natildeo se daacute apenas em oposiccedilatildeo ao baacuterbaro Ele natildeo eacute o lsquoOutrorsquo absoluto A cidade grega - e destacamos aqui que natildeo soacute as poacuteleis com regimes democraacuteticos -subsistia por meio de exclusotildees isto eacute por meio da segregaccedilatildeo das diferenccedilas existentes internamente Barbara Cassin e Nicole Loraux no prefaacutecio da obra Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros (1993) asseveram que a cidade grega se referindo as poacuteleis que foram democracias funcionava por meio de dois tipos de exclusotildees exteriores (estrangeiros e baacuterbaros) e interiores agrave poacutelis (mulheres metecos escravos) Isto posto iremos nos concentrar daqui em diante no papel da mulher como lsquoOutrorsquo ou seja como um dos lsquoOutrosrsquo em contraposiccedilatildeo aos quais o homem grego se definia Ademais centraremos nossa anaacutelise na Atenas Claacutessica e no papel do feminino na construccedilatildeo da cidadania ateniense isto eacute na definiccedilatildeo do cidadatildeo

Marta Mega de Andrade ao falar de seu livro A cidade das mulheres cidadania e alteridade feminina na Atenas Claacutessica (2001) afirma que ele tenta evidenciar a profunda alteridade que o gecircnero feminino representa na cultura claacutessica Nesta obra por meio do teatro ateniense de Euriacutepides e Aristoacutefanes Andrade busca observar o papel das mulheres (particularmente das lsquocidadatildesrsquo) na construccedilatildeo da cidadania ateniense A relaccedilatildeo do feminino com a cidadania surge devido ao fato de que a definiccedilatildeo da cidadania implica o reconhecimento de si e a delimitaccedilatildeo do lsquoOutrorsquo Sua definiccedilatildeo se daacute portanto em oposiccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo ou seja aos natildeo-cidadatildeos O feminino faz parte desta lsquoalteridadersquo e no espaccedilo do teatro a representa Em Euriacutepides e Aristoacutefanes vemos a mulher como o lsquoOutrorsquo na poacutelis No entanto a alteridade que ela simboliza eacute fundamental para a existecircncia da comunidade poliacuteade e da cidadania Natildeo soacute pelo papel que a poacutelis institucional lhe reserva na procriaccedilatildeo de filhos legiacutetimos e nas festas ciacutevicas mas tambeacutem pela sua atuaccedilatildeo no cotidiano (os espaccedilos que ocupa na poacutelis dos habitantes) O teatro mostra assim que o papel da mulher era muito mais amplo do que o que lhe era destinado pela lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo Assumindo a sua lsquoalteridadersquo seu caraacuteter duacutebio e potencialmente subversivo vemos em Euriacutepides as mulheres inseridas em espaccedilos que lhe satildeo negados como o da discussatildeo poliacutetica Jaacute em Aristoacutefanes a presenccedila delas na cidade eacute apresentada como uma possibilidade de governo do feminino

Em nosso entender Marta Mega de Andrade considera que ao assumir sua lsquoalteridadersquo as mulheres (e aqui se refere agraves lsquocidadatildesrsquo) ocupavam a poacutelis no cotidiano assumindo deste modo uma relaccedilatildeo ativa com a cidade Ao contraacuterio do que o modelo de recato silecircncio e reclusatildeo lhes prescrevia ao ocupar a lsquocidade do cotidianorsquo as lsquocidadatildesrsquo se apropriavam da sua caracteriacutestica como lsquoOutrorsquo A autora pontua que ao representar as mulheres ocupando espaccedilos

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Tema Livre

o teatro as mostra por meio do desempenho de sua alteridade tomando uma posiccedilatildeo ativa na poacutelis Jaacute os discursos poliacuteticos como o Econocircmico de Xenofonte apagariam a caracteriacutestica do feminino como lsquoOutrorsquo ao mostrar as mulheres integradas ao papel (lsquorainha do larrsquo) que a cidade lhes confere como vemos abaixo

Entatildeo ordenei a minha esposa a se acostumar a ser tambeacutem disse ela mesma a guardiatilde das leis de nossa casa a inspecionar quando a ela mesma parecesse conveniente os utensiacutelios da casa como o comandante de uma guarniccedilatildeo inspeciona e examina se cada soldado estaacute em boa condiccedilatildeo como o conselho examina os cavalos e seus cavaleiros a elogiar e a honrar como uma rainha a quem for digno de ser e a reprovar e castigar a quem disso precisa (XENOFONTE Econocircmico IX 14-15)

Deste modo para a historiadora a poacutelis ateniense era tambeacutem uma lsquopoacutelis das mulheresrsquo

Marta Mega de Andrade pretende assim fazer ver que o tal lsquoclube de homensrsquo que teria sido a cidade grega (modelo que a historiografia ao longo do tempo reproduziu) era na verdade apenas uma parte do que constituiacutea a cidade A poacutelis que as mulheres ocupavam (a cidade das mulheres) natildeo era a lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo a poacutelis institucionalizada mas sim a lsquocidade cotidianarsquo As lsquocidadatildesrsquo transitavam entre as duas cidades A dos cidadatildeos e suas famiacutelias (a lsquocidade dos incluiacutedosrsquo) e a dos outros (ocupada pelos lsquoexcluiacutedosrsquo isto eacute por aqueles que natildeo eram cidadatildeos) Ademais segundo Violaine Sebillotte Cuchet as mulheres tambeacutem desempenhariam o poliacutetico Embora natildeo como os cidadatildeos masculinos que o desempenhavam por exemplo por meio de sua atuaccedilatildeo na assembleacuteia De acordo com a historiadora a

praacutetica ciacutevica funcionava factualmente graccedilas agrave inclusatildeo do lado escondido do ldquopoliacuteticordquo ou seja as cidadatildes () Nas praacuteticas ciacutevicas uacutenicos lugares efetivos do poliacutetico operavam cidadatildeos e cidadatildes Essas praacuteticas incluiacuteam para os primeiros assembleias deliberativas e judiciaacuterias e para todos os rituais comuns (incluindo o teatro) o intercacircmbio de bens (terras principalmente) e de pessoas (casamentos e adoccedilotildees) (CUCHET 2015 pp 17-18)

Isto posto retomemos a perspectiva de anaacutelise de Marta Mega de Andrade com relaccedilatildeo a caracterizaccedilatildeo de feminino em Xenofonte

Ao contraacuterio do que Andrade afirma natildeo consideramos que ldquoa alteridade feminina se perde em Xenofonterdquo Acreditamos que ela ainda estaacute presente em

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seu discurso Mesmo que o perigo do lsquoOutrorsquo feminino pareccedila apaziguado pela integraccedilatildeo da mulher como esposa e rainha do lar a alteridade representada pelo feminino ainda estaacute presente Pois no Econocircmico as atividades de Iscocircmaco e os espaccedilos em que deveria desenvolver preferencialmente suas funccedilotildees (o espaccedilo puacuteblico) se contrapotildeem as atividades de sua esposa e ao espaccedilo no qual as deveria desempenhar (o oicirckos) Embora as atividades de Iscocircmaco e de sua esposa se complementem natildeo deixam de ser diferentes Por conseguinte o papel do lsquocidadatildeorsquo e suas atribuiccedilotildees satildeo delimitados em contraposiccedilatildeo ao da lsquocidadatildersquo Desta forma mesmo neste discurso no qual o feminino eacute integrado (adequado) ele ainda representa o lsquoOutrorsquo E consideramos que mesmo quando a lsquocidadatildersquo procura observar os preceitos de comedimento silecircncio e reclusatildeo elas carregam o estigma da suspeita Violaine Sebillotte Cuchet pontua que

as cidadatildes nunca foram uma classe agrave parte nem tampouco foram percebidas pelos cidadatildeos como um grupo ameaccedilador ou reivindicativo Agraves vezes as mulheres enquanto matildees e esposas enquanto parceiras sexuais e parceiras de filiaccedilatildeo excitaram a imaginaccedilatildeo o desejo ou o oacutedio dos homens e natildeo as cidadatildes enquanto tais (CUCHET 2015 pp 17-18)

No entanto mesmo que as lsquocidadatildesrsquo enquanto grupo natildeo despertassem o temor dos homens consideramos que como mulheres elas levavam consigo o peso do estigma referido acima Pois as mulheres satildeo lsquofilhas de Pandorarsquo personagem miacutetica que personifica a alteridade do feminino no pensamento grego

Pandora eacute a primeira mulher Dela descende todo o genos gunaikon A narrativa miacutetica de sua criaccedilatildeo se encontra nos poemas Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo O mito de Pandora assim como os de outras sociedades se insere no conjunto de narrativas miacuteticas que ao abordar a criaccedilatildeo da mulher explicam o porquecirc existem dois sexos e natildeo apenas um Em tais narrativas a mulher eacute frequentemente um adendo na criaccedilatildeo Isto eacute ela eacute criada posteriormente a emergecircncia do homem O motivo dessa criaccedilatildeo secundaacuteria eacute explicado com frequumlecircncia nos mitos por uma atitude de uma divindade masculina visando atingir os homens Na tradiccedilatildeo judaico-cristatilde a criaccedilatildeo de Eva no livro do Gecircneses eacute mostrada como um ato de compaixatildeo divina a mulher eacute criada para amenizar a solidatildeo do homem Jaacute no mito grego o surgimento de Pandora decorre da fuacuteria de Zeus Independente do motivo de sua criaccedilatildeo o surgimento da mulher estabelece a condiccedilatildeo humana Isto eacute a mulher ldquointroduz a morte a anguacutestia e o mal no mundordquo assim como o trabalho penoso (ZEITLIN 2003 p 59)

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Eacute esta temaacutetica o estabelecimento da condiccedilatildeo humana - a diferenciaccedilatildeo entre homens e deuses juntamente com a origem do cosmos e a reparticcedilatildeo das prerrogativas e domiacutenios entre as divindades oliacutempicas que constitui o assunto da Teogonia Como puniccedilatildeo ao ardil do titatilde Prometeu por roubar o fogo Zeus cria a mulher um mal sobre a aparecircncia de um bem E mesmo se o homem resolve se apartar dele fugindo do casamento natildeo fica imune aos efeitos danosos que surgem com a criaccedilatildeo da mulher

Quem quer que fugindo do casamentoe atos perniciosos das mulheresescolhe natildeo se casar chega a velhice destrutivasem algueacutem para cuidar dele em sua avanccedilada idade(HESIacuteODO Teogonia vv 603-605)

Em Os Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo tambeacutem aborda a partir dessa perspectiva o surgimento da mulher

Entatildeo encolerizado disse o agrega-nuvens ZeuslsquoFilho de Jaacutepeto sobre todos haacutebil em suas tramas apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhasgrande praga para ti e para os homens vindourospara esses em lugar do fogo eu darei um mal e todos se alegraratildeo no acircnimo mimando muito este malrsquo(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 53-105)

Por conseguinte neste poema o poeta tambeacutem aborda o estabelecimento da condiccedilatildeo humana a partir da mulher Hesiacuteodo nomeia a primeira mulher como Pandora e se concentra na descriccedilatildeo detalhada dos dons (dolos) que lhe foram conferidos pelos deuses Pandora que eacute dada ao irmatildeo de Prometeu Epimeteu abre a jarra que continha todos os males os espalhando pelo mundo A partir de entatildeo os homens conviveratildeo com doenccedilas e muitas anguacutestias

Antes vivia sobre a terra a grei dos humanosa recato dos males dos difiacuteceis trabalhos das terriacuteveis doenccedilas que ao homem potildeem fimmas a mulher a grande tampa do jarro alccedilando dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 90-95)

No entanto de acordo com Pauline Schmitt Pantel o mito grego da criaccedilatildeo da mulher vai mais longe do que outras narrativas da criaccedilatildeo em sua avaliaccedilatildeo negativa das mulheres (2009) Pois como vimos Pandora eacute um ardil criado por ordem de Zeus e utilizado com o objetivo de se vingar da astuacutecia

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de Prometeu Criada com a intenccedilatildeo de causar um dano a natureza da mulher eacute ser um mal (SCHMITT PANTEL 2009 p 196) Aleacutem disto as mulheres (o geacutenos gunaikon) no mito grego aparece como um grupo a parte Embora a forma da mulher se assemelhe a humana ela natildeo pertence agrave humanidade Entretanto ela natildeo pertence igualmente ao acircmbito divino O feminino eacute um lsquooutrorsquo por natureza Sua alteridade estaacute ligada a ser um ardil um engano e a sua natureza ambiacutegua (natildeo faz parte da humanidade e nem da esfera divina) Marta Mega de Andrade pontua que eacute devido a alteridade do feminino estar ligada a sua ambiguumlidade que ele pode representar o lsquoOutrorsquo dentro de um nomos

Destarte em Hesiacuteodo jaacute podemos ver bem delineada a alteridade do feminino Seus poemas segundo Pauline Schmitt-Pantel se tornaram canocircnicos no pensamento grego como narrativas da criaccedilatildeo da ordem vigente do mundo e como base dos valores gregos O mito de criaccedilatildeo de Pandora representado em seus poemas teve portanto um impacto sobre a maneira como as mulheres foram vistas e o lugar que ocuparam na sociedade da Greacutecia Antiga A negatividade com que Hesiacuteodo representou agraves mulheres se tornou a base de uma atitude permanente com relaccedilatildeo a este lsquoOutrorsquo Desta forma seus poemas influenciaram os autores gregos das eacutepocas posteriores que as trataram como uma ameaccedila a unidade da sociedade masculina (SCHMITT-PANTEL 2009 p 198) Acreditamos que essa atitude negativa com relaccedilatildeo ao feminino baseada nas caracteriacutesticas que lhe foram atribuiacutedas pelo mito de criaccedilatildeo e que foram reproduzidas pelos demais autores gregos tiveram ressonacircncia na lsquoexclusatildeorsquo das mulheres da poacutelis institucionalizada

Abstract The present article aims to make a brief discussion about the concept of alterity and its use in researches concerning Greek antiquity to later address the construction of the hellenic identity and more specifically that of the athenian citizen through the opposition with the feminineKeywords Identity alterity citizen Athens feminine

Bibliografia

Documentaccedilatildeo TextualHESIacuteODO Teogonia Trad Jaa Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2006________ Os Trabalhos e os Dias TradLuiz Otaacutevio de Figueiredo Satildeo Paulo

Odysseus 2011XEacuteNOPHON Eacuteconomique Paris Les Belles Lettres 1949

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Referecircncias BibliograacuteficasANDRADE Marta Mega de A cidade das mulheres cidadania e alteridade

feminina na Atenas Claacutessica Rio de Janeiro LHIA 2001 CARTLEDGE Paul The Greeks A Portrait of Self and Others Oxford Oxford

University Press 1993CASSIN Barbara LORAUX Nicole PESCHANSKI Catherine Gregos

Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros Editora 34 1993 DEWALD C Women and culture in Herodotusrsquo Histories In Reflections of

Women in Antiquity New York Routledge 1981GRUEN Erich S Rethinking the Other in Antiquity Princeton Princeton

University Press 2011HALL Edith Inventing the Barbarian Inventing the Barbarian Greek Self-

Definition through Tragedy Oxford Clarendon Press 1989HARTOG Franccedilois O Espelho de Heroacutedoto ensaio sobre a representaccedilatildeo do

outro Belo Horizonte UFMG 1999HALL Jonathan Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture University of

Chicago Press 2002 ISAAC Benjamin The Invention of Racism in Classical Antiquity Princeton

Princeton University Press 2004LEacuteVINAIS Emmanuel Alteriteacute e transcendance Fata Morgana 1995PROULX Geneviegraveve Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens Tese

(Doutorado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Doctorat en histoire Queacutebec Canada 2008

SCHMITT-PANTEL Pauline Aithra et Pandora Femmes Genre et Citeacute dans la Gregravece antique Paris LrsquoHarmattan 2009

SEBILLOTTE CUCHET Violaine Cidadatildeos e cidadatildes na cidade grega claacutessica Onde atua o gecircnero Revista Tempo Niteroacutei v21 n38 2015 p1-20 SKINNER Joseph Edward The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus New York Oxford University Press 2012

WEYLAND Raphaeumll Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (Ammien Marcellin Theacuteodoret de Cyr Procope de Ceacutesareacutee) Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Queacutebec Canada 2012

ZEITLIN Froma I lsquoCap4 Signifying difference the myth of Pandorarsquo In HAWLEY Richard LEVICK Barbara (ed) Women in Antiquity new assessments 2003 p58-74

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GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTI-CAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLI-CA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES

Decircnis Renan Correcirca1

ldquoPor que fazer o elogio do anacronismo quando se eacute historiador Talvez para convidar os historiadores a se dispor agrave escuta do nosso tempo de incertezas prestando atenccedilatildeo a tudo que ultrapassa o tempo da narraccedilatildeo ordenada as disparadas assim como as ilhas de imobilidade negam o tempo na histoacuteria mas fazem o tempo da histoacuteriardquoNicole Loraux Eacuteloge de lrsquoanachronisme em histoire 2005

Resumo O artigo aborda o vocabulaacuterio e a estrutura de referecircncias sobre rupturas poliacuteticas e institucionais na aristoteacutelica Constituiccedilatildeo dos Atenienses com o intuito de problematizar a ideia de golpe juriacutedico-parlamentar contra a presidente brasileira Dilma Roussef em 2016 e os imbroacuteglios eacuteticos e conceituais desde tipo de mudanccedila poliacutetica O texto discute o vocabulaacuterio antigo especialmente no contexto ateniense com ecircnfase no pensamento poliacutetico de Aristoacuteteles Palavras-chave Constituiccedilatildeo dos Atenienses golpes de Estado rupturas poliacuteticas

1 A definiccedilatildeo de golpe de Estado eacute difiacutecil e polecircmica O termo significa a deposiccedilatildeo do poder de alguma pessoa ou instituiccedilatildeo legalmente investida de autoridade com diferentes graus de violecircncia eou cerceamento poliacutetico Sua formulaccedilatildeo claacutessica remonta ao seacuteculo XVII na obra Consideacuterations politiques sur les coups drsquoestat de Gabriel Naudeacute Concebida no contexto intelectual do debate sobre as ldquorazotildees de Estadordquo a obra oferece uma visatildeo mais ampla e positiva da ideia de golpe de Estado do a que utilizamos hoje podendo ser definida como uma medida extraordinaacuteria que excede as leis mas que um priacutencipe se vecirc obrigado a executar em vista do bem comum (GONCcedilALVES 2015 p 10 p

1 Prof Adjunto de Histoacuteria Antiga da UFRB Eacute Licenciado e Mestre em Histoacuteria pela UFRGS e atualmente realiza doutoramento em Estudos Claacutessicos pela Universidade de Coimbra E-mail para contato dniscorreagmailcom

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26-33) Trata-se claramente de uma defesa maquiaveacutelica da estrateacutegia poliacutetica na qual governantes desrespeitam as leis do Estado e fazem uso de violecircncia ilegal com uma racionalidade poliacutetica especiacutefica e supostamente nobre No entanto na contemporaneidade o termo eacute qualificado pela violecircncia poliacutetica expliacutecita e portanto possui um tom predominantemente negativo

No vocabulaacuterio histoacuterico contemporacircneo golpe de Estado faz fronteira semacircntica (e eacutetica) com a expressatildeo revoluccedilatildeo social pois possui sentido semelhante mas natildeo coincidente Ateacute o seacuteculo XVII o termo revoluccedilatildeo expressava a rotaccedilatildeo ciacuteclica e natural dos astros mas no XVIII ele toma forma como uma operaccedilatildeo histoacuterica proacutepria de uma ideologia do progresso (KOSELLECK 2006 p 37) A distinccedilatildeo reside na emergecircncia de algo inteiramente novo na Histoacuteria (ARENDT 1988 p 17-23) diferentemente das mudanccedilas ciacuteclicas concebidas por Naudeacute e Maquiavel Sendo um produto linguiacutestico da modernidade europeia a revoluccedilatildeo passa a expressar ambivalentemente golpes poliacuteticos sangrentos e inovaccedilotildees cientiacuteficas (KOSELLECK 2006 p 62) o que jaacute denota seu verniz mais positivo em contraste com a racionalidade de Estado maquiaveacutelica com que Naudeacute defendeu o golpe de Estado Nas concepccedilotildees iluministas e marxistas revoluccedilatildeo pressupotildee mudanccedilas natildeo apenas no aparelho estatal mas tambeacutem na proacutepria tessitura da sociedade tendo como exemplo as revoluccedilotildees liberais e socialistas na Europa contra o Antigo Regime

Em resumo revoluccedilatildeo social se distingue de golpe de Estado pela noccedilatildeo de progresso social e histoacuterico que de certa forma justifica a ruptura poliacutetica e social violenta Desta forma configura-se uma dicotomia entre golpe de Estado e revoluccedilatildeo social no que diz respeito agraves rupturas institucionais que remetem agraves ideias de retrocesso e progresso social e histoacuterico No entanto esta dicotomia faz sentido ainda hoje Qual outro arcabouccedilo conceitual se pode procurar para explicar perturbaccedilotildees poliacuteticas contemporacircneas

Os exemplos na histoacuteria recente do Brasil tecircm sido definidos a partir da dicotomia descrita acima em livros didaacuteticos brasileiros a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ainda eacute mencionada ambiguamente como Revoluccedilatildeo de 30 ou Golpe de 30 assim como de forma menos frequente o Golpe de Estado Civil-Militar de 64 tambeacutem eacute caracterizada como revoluccedilatildeo ainda que somente por seus defensores mais abertos entre eles figuras protofascistas como o parlamentar Jair Bolsonaro que goza de relativa popularidade na sociedade brasileira Desta forma o golpe de Estado natildeo se caracteriza soacute por ser violento mas por

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ser um retrocesso portanto algo negativo Recentemente este imbroacuteglio eacutetico-conceitual se abre novamente com a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 no qual os seus opositores acusam um golpe de Estado ainda que juriacutedico-parlamentar sem apoio militar

Ainda que amparado por forccedilas poliacuteticas legiacutetimas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal o processo que derrubou Rousseff eacute flagrantemente fruto de um regime de exceccedilatildeo que fez da Presidenta um bode expiatoacuterio de escacircndalos de corrupccedilatildeo que penetram em quase toda classe poliacutetica brasileira especialmente os protagonistas da sua deposiccedilatildeo o entatildeo presidente da Cacircmara dos Deputados Eduardo Cunha e o vice-presidente Michel Temer Cerca de um ano depois do Impeachment Eduardo Cunha encontra-se condenado a 15 anos de prisatildeo por corrupccedilatildeo e o Presidente em exerciacutecio Michel Temer vive intensa crise de legitimidade devido a gravaccedilotildees que comprovam seu envolvimento em crimes de corrupccedilatildeo Golpe Impeachment A discussatildeo precisa partir do consenso da irregularidade do sistema poliacutetico brasileiro que atuou na deposiccedilatildeo Aleacutem disso precisa desnudar as forccedilas sociais atuantes neste processo

O que o pensamento poliacutetico grego claacutessico tem a nos dizer sobre tal imbroacuteglio eacutetico-conceitual contemporacircneo Grosso modo os termos golpe de Estado e revoluccedilatildeo social natildeo tecircm correspondentes na antiguidade (ARENDT 1988 p 17) e comparar sociedades tatildeo diacutespares eacute obviamente arriscado Por outro lado a proacutepria estrutura de referecircncias a partir de qual o pensamento moderno atribui sentido ao jogo poliacutetico eacute oriundo do vocabulaacuterio claacutessico poliacutetica democracia oligarquia povo e aristocracia satildeo termos inequiacutevocos desta aproximaccedilatildeo entre antigos e modernos O objetivo aqui eacute discutir quais eram as referecircncias para a ideia de ruptura poliacutetica na Atenas antiga e especular como elas podem ajudar a compreender as disputas e reviravoltas contemporacircneas Para tanto opta-se por analisar a Constituiccedilatildeo dos Atenienses obra escrita em Atenas na segunda metade do seacutec IV a C pela escola peripateacutetica sob direccedilatildeo de Aristoacuteteles Ao fim do artigo voltarei a discutir o Impeachment de 2016 ao governo de Dilma Rousseff

Os noticiaacuterios da poliacutetica brasileira se assemelham a um enredo de traiccedilotildees delaccedilotildees e reviravoltas constantes mas eacute providencial extrair daiacute alguma racionalidade que nos ajude a sair do ciacuterculo vicioso de crise e paralisia poliacutetica imposta por instrumentos oligaacuterquicos de poder Como historiador e antiquista sigo o espiacuterito da epiacutegrafe que abre este artigo e disponho-me a

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escutar este tempo de incertezas de forma que o recurso das fontes antigas possa gerar o estranhamento necessaacuterio que dissolva o assombro intelectual diante das maliacutecias do poder contemporacircneo

2 No capiacutetulo 412 a Constituiccedilatildeo dos Atenienses enumera as mudanccedilas (μεταβολαί) no regime poliacutetico (πολιτεία2) ateniense ateacute a eacutepoca de sua escrita entre os anos 329 e 322 a C (RHODES 1992 p 51-58) A uacuteltima mudanccedila ocorre em 403 quando Trasiacutebulo liderou a facccedilatildeo popular que ocupava militarmente a regiatildeo portuaacuteria (ldquoFilerdquo e ldquoPireurdquo na citaccedilatildeo abaixo) numa guerra aberta contra os Trinta Tiranos que haviam sido postos no poder com apoio do estratego espartano Lisandro apoacutes a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso O cap 412 passa em resumo as mudanccedilas que ocorreram desde o periacuteodo heroico ateacute esta restauraccedilatildeo de 403

Das mudanccedilas [de regime] esta foi a deacutecima primeira em quantidade Desde o princiacutepio a primeira aconteceu com a migraccedilatildeo de Ion e seus companheiros pois entatildeo pela primeira vez foram formadas as quatro tribos e se estabeleceram os reis das tribos A segunda mas a primeira a ter uma forma de regime poliacutetico foi a ocorrida na eacutepoca de Teseu pouco divergindo da realeza Depois desta foi a da eacutepoca de Draacutecon na qual leis foram publicadas pela primeira vez A terceira depois da staacutesis na eacutepoca de Soacutelon e a partir da qual se tornou o comeccedilo da democracia A quarta foi a tirania na eacutepoca de Pisiacutestrato A quinta apoacutes a derrubada dos tiranos foi a de Cliacutestenes mais democraacutetica que a de Soacutelon A sexta foi depois das Guerras com os Medos estando a cargo do Conselho do Areoacutepago A seacutetima depois desta foi a que Aristides comeccedilou e Efialtes completou tendo derrubado o Conselho do Areoacutepago e nesta aconteceram muitos equiacutevocos por causa dos demagogos e do impeacuterio mariacutetimo A oitava foi o estabelecimento dos Quatrocentos e logo em seguida a nona foi a democracia de novo A deacutecima foi a tirania dos Trinta e a dos Dez A deacutecima primeira foi depois do retorno daqueles de File e do Pireu a partir da qual se desenvolveu ateacute a que existe hoje sempre aumentando o poder para a multidatildeo3

2 O termo denomina os direitos poliacuteticos individuais e o sentimento de pertencimento dos cidadatildeos das poacuteleis antigas mas tambeacutem o regime poliacutetico de uma poacutelis tradicional dividido num esquema tripartite do criteacuterio de extensatildeo da soberania poliacutetica para apenas um individuo (monarquia) para poucos (oligarquia) ou para muitos (democracia) Esta classificaccedilatildeo teraacute desdobramentos em outros tipos e tambeacutem existira na tradiccedilatildeo claacutessica todo um gecircnero literaacuterio das politeiacuteai do qual a proacutepria Constituicao dos Atenienses faz parte Ver BORDES 1982 16-46 231-260

3 Todas Traduccedilotildees de textos antigos satildeo de minha autoria Constituiccedilatildeo dos Atenienses 412 ἦν δὲ τῶν μεταβολῶν ἑνδεκάτη τὸν ἀριθμὸν αὕτη πρώτη μὲν γὰρ ἐγένετο μετάστασις τῶν ἐξ ἀρχῆς Ἴωνος καὶ τῶν μετrsquo αὐτοῦ συνοικησάντων τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς καὶ τοὺς φυλοβασιλέας κατέστησαν δευτέρα δὲ καὶ πρώτη μετὰ

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As rupturas institucionais satildeo chamadas μεταβολαί isto eacute mudanccedilas e estas somam onze no periacuteodo narrado pela obra Mas o que satildeo tais mudanccedilas Obviamente implicam num novo regime poliacutetico mas o que isto significa Certamente nada semelhante ao novo da revoluccedilatildeo Moderna (ARENDT 1988 p 17) A derrubada de pessoas em cargos de poder ou de uma instituiccedilatildeo Elas sempre ocorrem de forma violenta Um novo regime pode advir legalmente e pacificamente Quais os criteacuterios da Constituiccedilatildeo dos Atenienses para definir uma μεταβολή

O comeccedilo da obra estaacute mutilado e natildeo temos informaccedilatildeo sobre as duas primeiras mudanccedilas aleacutem do texto acima nada mais do que a racionalizaccedilatildeo dos mitos heroicos de Ion e Teseu A obra destaca a novidade de cada mudanccedila na de Ion foram formadas as quatro tribos pela primeira vez (τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς) na de Teseu o governo assumiu a forma de πολιτεία pela primeira vez (πρώτη μετὰ ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις) ainda que pouco divergindo da realeza (μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς) Da terceira mudanccedila temos apenas uma breve descriccedilatildeo no cap 4 que eacute considerado uma interpolaccedilatildeo por muitos autores (RHODES 1992 84-88 FRITZ 1954) e esta tambeacutem destaca uma novidade Draacutecon publicou leis pela primeira vez (ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον) Cabe notar a estranha redaccedilatildeo na qual a mudanccedila de Draacutecon natildeo eacute contabilizada a que vem a seguir eacute listada como ldquoterceirardquo (τρίτη) o que soacute reforccedila a ideia de tratar-se de fato de uma interpolaccedilatildeo inserida posteriormente

A terceira mudanccedila apresenta um ingrediente que acompanharaacute todas as seguintes a στάσις na cidade gera uma μεταβολή na πολιτεία ateniense O termo στάσις significa ldquotomar posiccedilatildeordquo mas tambeacutem ldquolevantar-serdquo (BAILLY 1901) assim como a ideia moderna de um ldquolevanterdquo mas nem sempre enquanto combate violento A στάσις eacute frequentemente traduzida por ldquoguerra civilrdquo mas eacute importante distinguir da bellum civile romana como a que opocircs Maacuterio e Sula sendo o exemplo romano uma guerra de fato cada lado constituiacutedo

ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις ἡ ἐπὶ Θησέως γενομένη μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς μετὰ δὲ ταύτην ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον τρίτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν στάσιν ἡ ἐπὶ Σόλωνος ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο τετάρτη δrsquo ἡ ἐπὶ Πεισιστράτου τυραννίς πέμπτη δrsquo ἡ μετὰ ltτὴνgt τῶν τυράννων κατάλυσιν ἡ Κλεισθένους δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος ἕκτη δrsquo ἡ μετὰ τὰ Μηδικά τῆς ἐξ Ἀρείου πάγου βουλῆς ἐπιστατούσης ἑβδόμη δὲ ἡ μετὰ ταύτην ἣν Ἀριστείδης μὲν ὑπέδειξεν Ἐφιάλτης δrsquo ἐπετέλεσεν καταλύσας τὴν Ἀρεοπαγῖτιν βουλήν ἐν ᾗ πλεῖστα συνέβη τὴν πόλιν διὰ τοὺς δημαγωγοὺς ἁμαρτάνειν διὰ τὴν τῆς θαλάττης ἀρχήν ὀγδόη δrsquo ἡ τῶν τετρακοσίων κατάστασις καὶ ltἡgt μετὰ ταύτην ἐνάτη δέ ἡ δημοκρατία πάλιν δεκάτη δrsquo ἡ τῶν τριάκοντα καὶ ἡ τῶν δέκα τυραννίς ἑνδεκάτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν ἀπὸ Φυλῆς καὶ ἐκ Πειραιέως κάθοδον ἀφrsquo ἧς διαγεγένηται μέχρι τῆς νῦν ἀεὶ προσεπιλαμβάνουσα τῷ πλήθει τὴν ἐξουσίαν

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por um exeacutercito organizado pois os latinos chamariam στάσις de seditio ou secessio sediccedilatildeo ou secessatildeo (BOTTERI 1989 pp 87-100) Estas ocorrem dentro do coletivo de cidadatildeos e natildeo entre dois grupos de cidades diferentes o que designa o termo πόλεμος guerra (LORAUX 2009 p 41 pp 51-52 p 61) logo στάσις estaacute fora do modelo tradicional de guerra e seu ideal ciacutevico de combate militar Em contraste com este caraacuteter positivo da πόλεμος a στάσις eacute vista como negativa como uma interrupccedilatildeo do equiliacutebrio e da ordem ou mesmo uma doenccedila da cidade (LORAUX 2009 p 58 p 61) Tal negatividade se expressa na religiosidade pois a recuperaccedilatildeo de uma στάσις muitas vezes pode exigir alguma forma de purificaccedilatildeo religiosa como a que o saacutebio Epimecircnides de Creta realizou em Atenas apoacutes a tentativa de tomar o poder na cidade realizada por Ciacutelon (Constituiccedilatildeo dos Atenienses cap 11)

Aleacutem disso a στάσις grega opotildee dois grupos de cidadatildeos de um lado o povo (δῆμος) ou multidatildeo (πλῆθος) do outro os notaacuteveis (γνώριμοι) ricos (πλούσιοι) ou poucos (ολίγοι) A oposiccedilatildeo se expressa na forma de antiacutetese e assimetria um polo eacute formado pelos que satildeo muitos anocircnimos e pobres enquanto o outro pelos que satildeo poucos ilustres e ricos4 Natildeo por acaso a Constituiccedilatildeo dos Atenienses destaca que o regime de Soacutelon apoacutes a στάσις que ele arbitrou sem tomar partido tornou-se o comeccedilo da democracia5 (ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο) Segundo John J Keaney (1963 pp 128-136) a obra narra a expansatildeo do poder do povo sobre as instituiccedilotildees da poacutelis especificamente os Tribunais a Assembleia e as magistraturas e cada uma das mudanccedilas de regime representa um avanccedilo ou recuo do povo sobre tais instituiccedilotildees De fato a partir de Soacutelon a obra natildeo menciona mais aquilo que aconteceu pela primeira vez em cada regime mas sempre destaca o conflito entre estas forccedilas antiteacuteticas e assimeacutetricas como a causa de um novo regime

Boa parte destas στάσεις da obra consiste na instauraccedilatildeo ou derrubada de tiranias de forma violenta (quarta quinta deacutecima e deacutecima primeira mudanccedilas) portanto estas analisarei estas pois satildeo conflitos militares com campos bem definidos Natildeo discutirei tambeacutem o complexo termo τυραννίς mas eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a ruptura institucional e os conflitos sociais nas cidades antigas (TRABULSI 1984 e IRWIN 2008 pp 205-261) No entanto haacute στάσεις que natildeo se confundem com πόλεμοι ou seja natildeo satildeo conflitos militares portanto satildeo operadas dentro de limites legais tornando-

4Observa-se o eco do pensamento aristoteacutelico da Poliacutetica 1296a segundo a qual o lado vencedor impotildee um regime de natureza oligaacuterquica ou democraacutetica

5Segundo a ideia tipicamente aristoteacutelica que Soacutelon foi o criador do regime mas natildeo previu suas caracteriacutesticas negativas posteriores Ver a Constituiccedilatildeo dos Atenienses 92 e a Poliacutetica II 1274a-b

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se um objeto interessante para comparaccedilatildeo com a situaccedilatildeo brasileira em 2016 Por qual motivo a obra natildeo distingue mudanccedilas institucionais paciacuteficas com rupturas violentas Qual eacute o criteacuterio principal para a definiccedilatildeo de uma μεταβολή

3 Vejamos o exemplo da sexta mudanccedila no cap 231

Depois das Guerras Meacutedicas o Conselho do Areoacutepago tornou-se forte de novo governava a cidade sem que nenhum decreto lhe garantisse a hegemonia mas porque assumira a responsabilidade na batalha naval de Salamina De fato com a hesitaccedilatildeo dos estrategos em relaccedilatildeo aos acontecimentos tendo proclamado que cada um se salvasse por si o Areoacutepago proveu oito dracmas para cada um e distribui e embarcou os barcos6

O conselho do Areoacutepago eacute uma instituiccedilatildeo oligaacuterquica pois dele soacute participam indiviacuteduos que jaacute ocuparam um dos cargos dentre os nove arcontes magistraturas para as quais estavam aptos somente membros das duas mais abastadas classes de cidadatildeos os cavaleiros e os pentacosiomedmnos7 Em contraste com este caraacuteter oligaacuterquico o regime anterior a quinta mudanccedila realizada por Cliacutestenes eacute descrita no cap 412 como ldquomais democraacutetica do que a de Soacutelonrdquo (δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος) A obra eacute clara ao afirmar que o poder do Areoacutepago natildeo adveacutem de nenhum decreto (οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν) e sim eacute fruto do vaacutecuo poliacutetico criado pela crise militar durante a guerra contra os Persas um vaacutecuo de poder que uma vez preenchido torna-se poder de fato pelos proacuteximos dezessete anos (cap 251)

Esta concepccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses estaacute certamente ligada ao movimento saudosista do seacutec IV do ldquoregime ancestralrdquo que idealizava a Atenas do periacuteodo anterior agrave Guerra do Peloponeso (FINLEY 1989 cap 2 LEAtildeO 2001 p 43-72 e ATACK 2010) Este regime idealizado eacute descrito como uma constituiccedilatildeo ldquomoderadardquo (Isoacutecrates Areopagiacutetico) ou ldquomistardquo (Aristoacuteteles Poliacutetica 1295b) com equiliacutebrio entre oligarquia e democracia A ideia eacute que em meados do seacutec V o regime era gerido de fato pelo Areoacutepago cuja natureza oligaacuterquica garantia o domiacutenio da elite enquanto que as instituiccedilotildees

6 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 231 μετὰ δὲ τὰ Μηδικὰ πάλιν ἴσχυσεν ἡ ἐν Ἀρείῳ πάγῳ βουλὴ καὶ διῴκει τὴν πόλιν οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν ἀλλὰ διὰ τὸ γενέσθαι τῆς περὶ Σαλαμῖνα ναυμαχίας αἰτία τῶν γὰρ στρατηγῶν ἐξαπορησάντων τοῖς πράγμασι καὶ κηρυξάν των σῴ[ζ]ειν ἕκαστον ἑαυτόν πορίσασα δραχμὰς ἑκάστῳ ὀκτὼ διέδωκε καὶ ἐνεβίβασεν εἰς τὰς ναῦς

7A criaccedilatildeo desta classificaccedilatildeo censitaacuteria eacute atribuiacuteda na obra agrave Soacutelon ver cap 73-4 no entanto ela seraacute mais ou menos vigente por todo o periacuteodo da democracia ateniense claacutessica

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democraacuteticas como a Assembleia e os Tribunais Populares equilibravam os excessos da elite e davam um quinhatildeo se poder ao povo O poder do Areoacutepago seraacute drasticamente restringido na seacutetima mudanccedila a seguir e voltaraacute a crescer durante o seacutec IV novamente ligado agrave ideia de ldquoregime ancestralrdquo (HANSEN 1999 p 288)

No seacutec V a hegemonia do Areoacutepago durou cerca de dezessete anos (cap 251) sendo este despojado do poder aos poucos atraveacutes de processos contra os areopagitas e suas prerrogativas impetrados pelos liacutederes do povo Aristides (412) e depois Efialtes (251-2) tanto nos Tribunais Populares como na Assembleia Nesta στάσις as armas satildeo processos legais de lideranccedilas democraacuteticas como Aristides e Temiacutestocles (233-5) este uacuteltimo segundo o autor a mente por traacutes de Efialtes assassinado em condiccedilotildees suspeitas (253-4) Portanto a hegemonia do Areoacutepago e sua posterior derrubada (sexta e seacutetima mudanccedilas de regime) satildeo descritas como resultados de uma espeacutecie de στάσις fria sem o calor da violecircncia e da ruptura institucional O enfrentamento das facccedilotildees antiteacuteticas e assimeacutetricas (o povo e a elite) ocorre nos Tribunais e Assembleias mas natildeo desemboca em conflito militar O uacutenico assassinato mencionado na obra de Efialtes ocorre no contexto de vitoacuteria de sua facccedilatildeo popular A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona apenas certo Aristoacutedico de Tacircnagra como assassino enquanto que Plutarco conta a versatildeo (Vida de Peacutericles 10) que o proacuteprio Plutarco natildeo daacute creacutedito de que o mandante do crime foi o sucessor de Efialtes como liacuteder do povo Peacutericles

Apoacutes a seacutetima mudanccedila Peacutericles seguiu tornando o regime mais popular retirando mais atribuiccedilotildees do Conselho do Areoacutepago (271) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses passa entatildeo a criticar os excessos demagoacutegicos deste periacuteodo especialmente o relaxamento do regime realizado por demagogos (261) o que se intensificou apoacutes morte de Peacutericles (281) Um dos aspectos deste relaxamento eacute que comeccedilaram a aceitar no arcontado os membros da classe dos zeugitas menos abastados do que os cavaleiros e os pentacosiomedmnos (262) uma medida certamente democraacutetica Peacutericles tambeacutem criou a remuneraccedilatildeo pela participaccedilatildeo nos Tribunais Populares (273) outra medida de caraacuteter anti-oligaacuterquico A obra destaca que depois de Peacutericles foi ldquoquando pela primeira vez o povo adotou um liacuteder que natildeo gozava de boa reputaccedilatildeo entre os capazesrdquo (πρῶτον γὰρ τότε προστάτην ἔλαβεν ὁ δῆμος οὐκ εὐδοκιμοῦντα παρὰ τοῖς ἐπιεικέσιν 281) O eufemismo da palavra ἐπιεικής ldquocapazesrdquo ldquoaptosrdquo obviamente descreve os mesmos oligarcas que se opuseram ao povo nas στάσεις de outrora pois o mesmo termo eacute utilizado tambeacutem no cap 261 para designar a facccedilatildeo oligaacuterquica Natildeo haacute sangue nestas mudanccedilas de regime mas haacute facccedilotildees e seus respectivos liacutederes logo haacute στάσις ainda que fria

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4 A oitava mudanccedila foi o estabelecimento do regime dos Quatrocentos no contexto da Guerra do Peloponeso e da desastrosa expediccedilatildeo contra Siracusa na Siciacutelia Nesta ocorrem claros sinais de esquentamento da στάσις ateniense Veja-se o cap 291

Entretanto depois do que aconteceu na Siciacutelia a posiccedilatildeo dos Lacedemocircnios ficou mais forte por causa da alianccedila com o Rei [da Peacutersia] e foram forccedilados ao regime dos Quatrocentos tendo posto em accedilatildeo a derrubada da democracia () mas muitos foram persuadidos sobretudo por achar que o Rei iria se aliar a eles se fizessem uma oligarquia8

Ainda que influenciada pela guerra externa o novo regime natildeo implica numa tomada violenta do poder Pelo contraacuterio a obra menciona que muitos foram persuadidos que tornar o regime mais oligaacuterquico era uma estrateacutegia para conquistar a alianccedila Persa e a salvaccedilatildeo da cidade Haacute relatos discrepantes sobre o clima poliacutetico desta mudanccedila de regime como descreve Tuciacutedides em VIII 66

Mas o povo e o Conselho ainda se reuniam na mesma forma de sorteio natildeo deliberavam nada que natildeo fosse da opiniatildeo dos conspiradores aleacutem disso os oradores eram todos deles e com eles examinavam o que estava prestes a ser dito Nenhum dos outros falava contra eles tendo medo e vendo a grande organizaccedilatildeo [dos conspiradores] se algueacutem falasse contra era diretamente executado de forma raacutepida Natildeo ocorria nem busca dos culpados nem justiccedila se fossem suspeitos mas o povo se mantinha quieto e tatildeo perplexo que se considerava lucro natildeo ter sofrido alguma violecircncia se ficasse calado9

O medo da violecircncia mantinha o povo calado ainda que as instituiccedilotildees democraacuteticas continuassem a funcionar As violecircncias contra opositores natildeo

8 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 291 ἐπεὶ δὲ μετὰ τὴν ἐν Σικελίᾳ γενομένην συμφορὰν ἰσχυρότερα τὰ τῶν Λακεδαιμονίων ἐγένετο διὰ τὴν πρὸς βασιλέα συμμαχίαν ἠναγκάσθησαν κι[νήσα]ντες τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι τὴνἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν ()μάλιστα δὲ συμπεισθέν των τῶν πολλῶν διὰ τὸ νομίζειν βασιλέα μᾶ[λ]λον ἑαυτοῖς συμπολεμήσειν ἐὰν διrsquo ὀλίγων ποιήσωνται τὴν πολιτείαν

9 Histoacuteria da Guerra dos Peloponeacutesios e Atenienses VIII 66 δῆμος μέντοι ὅμως ἔτι καὶ βουλὴ ἡ ἀπὸ τοῦ κυάμου ξυνελέγετο ἐβούλευον δὲ οὐδὲν ὅτι μὴ τοῖς ξυνεστῶσι δοκοίη ἀλλὰ καὶ οἱ λέγοντες ἐκ τούτων ἦσαν καὶ τὰ ῥηθησόμενα πρότερον αὐτοῖς προύσκεπτο ἀντέλεγέ τε οὐδεὶς ἔτι τῶν ἄλλων δεδιὼς καὶ ὁρῶν πολὺ τὸ ξυνεστηκός εἰ δέ τις καὶ ἀντείποι εὐθὺς ἐκ τρόπου τινὸς ἐπιτηδείου ἐτεθνήκει καὶ τῶν δρασάντων οὔτε ζήτησις οὔτrsquo εἰ ὑποπτεύοιντο δικαίωσις ἐγίγνετο ἀλλrsquoἡσυχίαν εἶχεν ὁ δῆμος καὶ κατάπληξιν τοιαύτην ὥστε κέρδος ὁ μὴ πάσχων τι βίαιον εἰ καὶ σιγῴη ἐνόμιζεν

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eram investigadas o que ajudava a manter as aparecircncias e alimentava o medo de opor-se aos conspiradores O relato de Tuciacutedides eacute brutal especialmente vindo de algueacutem que narra a conspiraccedilatildeo de perto como se dela tivesse participado (CANFORA 2015 pp 298-299) Em seguida Tuciacutedides conta (VIII 69-70) como os conspiradores mantiveram-se proacuteximos agraves armas ou com punhais escondidos mas permanecendo o povo quieto a violecircncia natildeo se fez necessaacuteria Trata-se da mesma στάσις entre povo e elite que pouco a pouco se torna mais quente e secretamente violenta ainda que haja esforccedilo para manter as aparecircncias institucionais

Vejamos o contraste com Tuciacutedides no cap 294 da Constituiccedilatildeo dos Atenienses

Os eleitos [para redigir proposiccedilotildees para a salvaccedilatildeo da cidade] primeiro escreveram ser compulsoacuterio aos priacutetanes submeter ao voto todos os pronunciamentos sobre a salvaccedilatildeo [da cidade] em seguida anularam as accedilotildees de ilegalidade as denuacutencias e as intimaccedilotildees para que assim qualquer um dos atenienses pudesse debater sobre as propostas como quisesse se algueacutem por conta disso multar ou intimar ou denunciar no Tribunal Popular que seja feito o depoimento e a prisatildeo dele diante dos estrategos e estes o entregariam aos Onze10 para a pena de morte11

A γραφή παρανόμων e a εἰσαγγελία aqui traduzidas como ldquoaccedilotildees de ilegalidaderdquo e ldquodenuacutenciasrdquo eram modalidade de processos juriacutedicos contra respectivamente proposiccedilotildees de leis e cidadatildeos que cometessem abusos contra as leis e o povo Possuiacuteam um caraacuteter eminentemente poliacutetico e atuavam como instrumentos contra abusos de poder de magistrados e tambeacutem como perseguiccedilatildeo contra adversaacuterios (HANSEN 1999 pp 205-218) Aos oligarcas pareceu necessaacuterio neutralizar tais instrumentos legais que poderiam se voltar contra eles e punir com a morte quem abrisse processos contra suas reformas ou seja neutralizar as armas legais da qual dispunha o povo para resistir agrave mudanccedila de regime A obra eacute clara ao descrever o regime dos Quatrocentos como uma ldquoderrubada da democraciardquo (291 τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι

10 Os Onze satildeo magistrados cuja funccedilatildeo era aplicar prisotildees e sentenccedilas de morte aos condenados nos tribunais

11 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 294 οἱ δrsquo αἱρεθέντες πρῶτον μὲν ἔγραψαν ἐπάναγκες εἶναι τοὺς πρυτάνεις ἅπαντα τὰ λεγόμενα περὶ τῆς σωτηρίας ἐπιψηφίζειν ἔπειτα τὰς τῶν παρανόμων γραφὰς καὶ τὰς εἰσαγγελίας καὶ τὰς προσκλήσεις ἀνεῖλον ὅπως ἂν οἱ ἐθέλοντες Ἀθηναίων συμβουλεύωσι περὶ τῶν προκειμένων ἐὰν δέ τις τούτων χάριν ἢ ζημιοῖ ἢ προςκαλῆται ἢ εἰσάγῃ εἰς δικαστήριον ἔνδειξιν αὐτοῦ εἶναι καὶ ἀπαγωγὴν πρὸς τοὺς στρατηγούς τοὺς δὲ στρατηγοὺς παραδοῦναι τοῖς ἕνδεκα θανάτῳ ζημιῶσαι

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τὴν ἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν) mas enquanto Tuciacutedides menciona duas vezes que os Quatrocentos assassinaram seus opositores (VIII 66 e 70) a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona tais mortes O contraste eacute claro na comparaccedilatildeo com a descriccedilatildeo que a mesma obra faz do regime dos Trinta Tiranos ao qual atribui a morte de milhares de cidadatildeos (354)

Os Quatrocentos prometeram entregar o regime aos Cinco Mil cidadatildeos mais capacitados por ldquosuas pessoasrdquo e por suas riquezas (295 τὴν δrsquo ἄλλην πολιτείαν ἐπιτρέψαι πᾶσαν Ἀθηναίων τοῖς δυνατωτάτοις καὶ τοῖς σώμασιν καὶ τοῖς χρήμασιν λῃτουργεῖν μὴ ἔλαττον ἢ πεντακισχιλίοις) Os capiacutetulos seguintes (cap 30 e 31) descrevem como seria este hipoteacutetico regime que nunca veio a existir uma vez que os Quatrocentos foram depostos quatro meses depois (331) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona em paraacutefrase a Tuciacutedides (VIII 68) que era a primeira vez que se estabelecera uma oligarquia em Atenas nos uacuteltimos 100 anos desde a expulsatildeo dos tiranos (322 ἡ μὲν οὖν ὀλιγαρχία τοῦτον κατέστη τὸν τρόπον () ἔτεσιν δrsquo ὕστερον τῆς τῶν τυράννων ἐκβολῆς μάλιστα ἑκατὸν)

Segundo a obra o regime dos Quatrocentos ruiu devido agrave defecccedilatildeo de alguns dos conspiradores entre eles Teracircmenes12 insatisfeitos com o fato que os Cinco Mil foram eleitos apenas nominalmente e os Quatrocentos governaram a cidade de fato (323) A administraccedilatildeo eacute brevemente remetida diretamente aos Cinco Mil (331-2) e em seguida ldquoo povo depotildee estes do regime com rapidezrdquo (341 Τούτους μὲν οὖν ἀφείλετο τὴν πολιτείαν ὁ δῆμος διὰ τάχους) restabelecendo a democracia novamente (412) Esta eacute a nona mudanccedila mais uma vez uma στάσις fria jaacute que a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona nenhuma violecircncia nesta deposiccedilatildeo enquanto Tuciacutedides descreve como ela foi antecedida pelo assassinato de um dos liacutederes dos Quatrocentos Friacutenico e a prisatildeo de outros por tropas sublevadas sob lideranccedila de Teracircmenes quando perceberam uma tentativa de facilitar a invasatildeo espartana (VIII 92) Todos foram julgados pelos Tribunais como conveacutem na democracia antiga e muitos foram condenados Apesar disso pode-se dizer que a derrubada dos Quatrocentos tambeacutem foi uma στάσις fria pois as condenaccedilotildees natildeo foram por derrubar a democracia Os processos contra os liacutederes dos Quatrocentos os acusavam de enviar embaixadas para Esparta em navio inimigo e atraveacutes de territoacuterios ocupados com propostas de paz desvantajosas para Atenas (CANFORA 2015 p 343-347) Entre estes processos incluem-se o insoacutelito caso contra o cadaacutever de Friacutenico (condenado depois de ter sido assassinado) e

12 Sobre a polecircmica historiograacutefica que se abre em torno da figura controversa de Teracircmenes na qual a Constituiccedilatildeo dos Atenienes se engaja avidamente nos cap 285 ver CANFORA 2015 p 411-427

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tambeacutem contra o ceacutelebre orador Antifonte A defecccedilatildeo de Teracircmenes e outros permitiu a reintegraccedilatildeo de boa parte dos apoiadores dos Quatrocentos ao corpo poliacutetico da cidade enquanto os restantes foram responsabilizados por tentarem negociar uma paz desvantajosa por Esparta mas natildeo por algo que os historiadores modernos chamam de golpe oligaacuterquico dos Quatrocentos

5 A guerra aberta a στάσις quente sanguinaacuteria e traumaacutetica aconteceraacute em 404 com a instalaccedilatildeo dos Trinta Tiranos apoacutes a derrota por Esparta (deacutecima mudanccedila) Apoacutes uma acachapante derrota na batalha naval de Egospoacutetamo Atenas eacute ocupada pelo general espartano Lisandro que no tratado de paz exige que a cidade adote o ldquoregime ancestralrdquo (342-3) Mais uma vez a στάσις se faz presente (343)

De um lado os populares tentavam preservar a democracia do outro aqueles associados em confrarias de notaacuteveis e aqueles dentre os exilados que retornaram depois da paz desejavam a oligarquia () Sendo Lisandro favoraacutevel aos oligarcas o povo apavorado foi forccedilado a votar a oligarquia13

Aqui natildeo haacute duacutevida do caraacuteter impositivo do regime por um exeacutercito ocupante natildeo por acaso eacute usado o termo ldquotiraniardquo para descrever um regime cujo ideaacuterio era oligarca Os Trinta revogaram as leis que restringiam o poder do Areoacutepago (352) comeccedilam a perseguir opositores causando enorme mortandade na cidade segundo a obra natildeo menos que mil e quinhentas pessoas (354) Entre os mortos estaacute Teracircmenes que eacute expulso do regime e condenado agrave morte por ter traiacutedo os Quatrocentos (371)

A expulsatildeo dos Trinta Tiranos (deacutecima primeira mudanccedila) ocorre graccedilas ao exeacutercito ateniense que permanecera democraacutetico e retornara da cidade aliada de Samos para reconquistar Atenas pela regiatildeo portuaacuteria em 403 (cap 37 e 38) Apoacutes este restabelecimento de democracia e a execuccedilatildeo dos liacutederes dos Trinta a negociaccedilatildeo de paz a Anistia ndash natildeo por acaso o mesmo termo usado no fim da Ditadura Civil-Militar brasileira ndash eacute longa traumaacutetica e complexa Os partidaacuterios do Trinta foram isolados no distrito de Elecircusis e proibidos de transitar em Atenas (cap 39 e 40) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses silencia sobre isso mas Xenofonte (Helecircnicas II 43) relata que os conflitos natildeo cessaram e alguns liacutederes de Elecircusis foram massacrados numa emboscada

13 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 343 οἱμὲνδημοτικοὶδιασῴζεινἐπειρῶντοτὸνδῆμον τῶν δὲ γνωρίμων οἱ μὲν ἐν ταῖς ἑταιρείαις ὄντες καὶ τῶν φυγάδων οἱ μετὰ τὴν εἰρήνην κατελθόντες ὀλιγαρχίας ἐπεθύμουν ()Λυσάνδρου δὲ προσθεμένου τοῖς ὀλιγαρχικοῖς καταπλαγεὶς ὁ δῆμος ἠναγκάσθη χειροτονεῖν τὴν ὀλιγαρχίαν

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em 40014 Quatro anos passaram-se entre a instalaccedilatildeo dos Trinta em 404 e o uacuteltimo acerto de contas em 400 Quatro anos para a στάσις ateniense esfriar novamente e os assassinatos e combates entre cidadatildeos cessarem iniciando um longo periacuteodo de oitenta anos nos quais a obra natildeo identifica nenhuma mudanccedila de regime A στάσις natildeo deixa de existir apenas torna-se novamente fria

6 Pode-se concluir que as mudanccedilas de regime na Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo residem na ideia de rompimento do Estado de Direito ou seja do sistema institucional vigente uma vez que as instituiccedilotildees podem ser legalmente reformadas ou mesmo extintas sem que haja distinccedilatildeo entre reformas e golpes de Estado para a Constituiccedilatildeo dos Atenienses todas satildeo μεταβολαί Tais mudanccedilas no entanto soacute ocorrem dentro de uma oscilaccedilatildeo dos trecircs tipos de regime (monarquia oligarquia democracia) e suas variantes positivas e negativas Ou seja elas refletem sempre os conflitos entre grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos os ricos contra os pobres os notaacuteveis contra a multidatildeo15 A raiz histoacuterica desta concepccedilatildeo estaacute na idealizaccedilatildeo do regime de Soacutelon cuja poesia eacute um testemunho de um pensamento que tenta equilibrar as tensotildees entre pobres e ricos multidatildeo e notaacuteveis16 Minha contribuiccedilatildeo central eacute perceber tais στάσεις podem assumir a forma de combates armados (στάσις quente) ou de processos juriacutedicos e emendas legislativas (στάσις fria)

Inexiste no pensamento poliacutetico claacutessico e aristoteacutelico a ideia de progresso histoacuterico que marca as concepccedilotildees modernas de revoluccedilatildeo social e golpe de Estado O ideal que se busca eacute de equiliacutebrio e moderaccedilatildeo diminuir os excessos e desigualdades dos extremos e natildeo necessariamente tomar o partido do povo algo provavelmente estranho ao pensamento peripateacutetico e tambeacutem agrave esmagadora maioria dos autores claacutessicos membros das elites Os proacuteprios democratas natildeo se enxergavam como ldquomais progressistasrdquo que os oligarcas Ao contraacuterio ambas facccedilotildees viam a si mesmos como legiacutetimas representantes de um idealizado regime ancestral de Atenas

O diaacutelogo constante entre o contemporacircneo e o antigo eacute perigoso e o anacronismo inevitaacutevel A democracia ateniense era muito diferente da moderna pressupunha participaccedilatildeo direta bem como a exclusatildeo de mulheres metecos e escravos O diaacutelogo pode ser uacutetil quando conceitos poliacuteticos do

14 Ver CANFORA 2015 pp 437-450

15 Esta concepccedilatildeo no qual a desigualdade eacute a causa motriz de toda στάσις natildeo estaacute distante daquilo que eacute discutido no livro 5 da Poliacutetica

16 Sobre a representaccedilatildeo de Soacutelon na obra ver o comentaacuterio dos cap 2 5-12 em CORREA 2012 pp 83-91

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contemporacircneo satildeo redefinidos com o contraste do antigo Investigar este diaacutelogo nos ajuda a elucidar os sentidos contemporacircneos atribuiacutedos aos termos antigos bem como a levantar questotildees que natildeo enunciamos mais por nossa incapacidade de olhar com estranhamento para nossos proacuteprios referenciais eacuteticos e conceituais

Neste sentido cabe notar que um dos aspectos centrais da crise poliacutetica instaurada no Brasil desde 2016 eacute a insuficiecircncia da diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais na sociedade brasileira isto eacute da distacircncia entre ricos e pobres A bonanccedila econocircmica dos Governos Lula garantiram estabilidade poliacutetica e a renda miacutenima dos setores mais vulneraacuteveis sem no entanto combater privileacutegios de setores oligaacuterquicos Pelo contraacuterio adotou-se um presidencialismo de coalizaccedilatildeo no qual a cooptaccedilatildeo de partidos ocorre atraveacutes de uma poliacutetica patrimonialista transpartidaacuteria e parasitaacuteria ao Estado que se pode chamar ldquoPemedebismordquo (NOBRE 2013) Esta eacute uma modalidade oligaacuterquica da poliacutetica que tomou forma desde a redemocratizaccedilatildeo de 1985 e se caracteriza pela ampla utilizaccedilatildeo de corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural no proacuteprio aparelho administrativo do Estado nas empresas estatais e tambeacutem em oligopoacutelios privados que negociam apoio financeiro a Partidos em troca de vantagens em contratos e licitaccedilotildees puacuteblicas Se tal praacutetica jaacute era presente nos governos de caraacuteter neo-liberal e privatista do Partido da Social Democracia Brasileira (1995-2002) parece ter se intensificado nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)

Dilma Rousseff foi derrubada do poder pelo o Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal instituiccedilotildees legiacutetimas mas o contexto histoacuterico que marca o processo natildeo eacute uma suacutebita vontade de aplicaccedilatildeo rigorosa da lei mas uma crise poliacutetica intensa que criou a oportunidade para reformas poliacuteticas de teor oligaacuterquico que visam o estancamento de poliacuteticas de diminuiccedilatildeo de desigualdade no contexto de recesso econocircmico Dilma Roussef eacute um bode expiatoacuterio de todos os crimes de morosidade e corrupccedilatildeo da classe poliacutetica brasileira e o sucessor Michel Temer rapidamente se apresentou como um ldquoreformadorrdquo isto eacute algueacutem que reverte todo o processo instaurado anteriormente Eacute uma στάσις fria entre os grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos de ricos e pobres do povo e dos donos do poder O Brasil conheceu processo semelhante no Golpe Militar de 64 contra o Governo Joatildeo Goulart sendo entatildeo uma στάσις quente com violecircncia institucional expliacutecita Em ambos os casos a Miacutedia tem papel predominante em pautar o debate puacuteblico e criar identidades junto agraves camadas populares que simpatizam com as reformas oligaacuterquicas a partir do seu teor conservador moralista de manutenccedilatildeo do

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status quo ameaccedilado pelas poliacuteticas de distribuiccedilatildeo de renda e discussotildees eacuteticas em torno da politicas identitaacuterias

O presidencialismo de coalizaccedilatildeo entrou em curto-circuito apoacutes a reeleiccedilatildeo de Dilma Roussehf em 2014 e o iniacutecio de uma poliacutetica de ajuste econocircmico que contrariava a propaganda eleitoral da candidata Este embuste eleitoral somado agraves poliacuteticas de combate agrave corrupccedilatildeo iniciadas pelo proacuteprio governo que acabaram se voltando contra ele proacuteprio e sua base partidaacuteria fez uma crise econocircmica torna-se tambeacutem poliacutetica A miacutedia e o sistema juriacutedico criaram uma situaccedilatildeo de fragilidade na qual os setores oligaacuterquicos se rebelam contra um Governo de centro-esquerda enfraquecido radicalizando a στάσις brasileira Apoacutes 13 anos o Partido dos Trabalhadores foi sacado do Poder natildeo por invasores externos mas por seus fiadores oligaacuterquicos que se identificam pelo patrimonialismo pela corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural do Pemedebismo somado agrave forccedila conservadora da Miacutedia e demais setores privados

A στάσις brasileira pendeu para o lado oligaacuterquico revelando o esgotamento do presidencialismo de coalizaccedilatildeo e pondo a nu os limites da poliacutetica de cooptaccedilatildeo da base atraveacutes de corrupccedilatildeo sistecircmica Natildeo por acaso os escacircndalos que atingem a esquerda ainda que reais e condenaacuteveis satildeo bodes expiatoacuterios nos quais a Miacutedia o Sistema Judiciaacuterio e a oligarquia poliacutetica descarregam seu rancor contra as poliacuteticas de diminuiccedilatildeo da desigualdade Mesmo quando estes setores oligaacuterquicos tentam fazer valer a mesma letra dura da lei para o lado conservador satildeo barrados por outras forccedilas que natildeo correspondem agrave luta contra corrupccedilatildeo mas sim agrave στάσις o conflito de interesses entre pobres e ricos entre multidatildeo e elite

A Esquerda partidaacuteria se ainda reivindica defender interesses populares e democraacuteticos precisa declarar uma guerra irrestrita agrave cultura poliacutetica patrimonialista do Pemedebismo Esta guerra natildeo pode ser combatida somente atraveacutes do sistema partidaacuterio-eleitoral uma vez que o Pemedebismo jaacute estaacute instalado em quase todos os Partidos e tem forte influecircncia no Judiciaacuterio alianccedila esta que permitiu a derrubada de Dilma Rousseff Eacute preciso atacar a fonte de poder do Pemedebismo o aparelhamento do Estado e o patrimonialismo parasitaacuterio e satildeo outras formas de radicalizaccedilatildeo da democracia que podem cumprir este papel Nesta luta a liccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses pode ser uacutetil a στάσις eacute uma luta de grupos antiteacuteticos assimeacutetricos de um lado uma multidatildeo pobre e anocircnima do outro poliacuteticos profissionais oligaacuterquicos grupos midiaacuteticos e corporativos conservadores Se a esquerda quer ter um papel nesta luta precisa juntar forccedilas com um destes grupos mas jamais com o outro

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Abstract The paper approaches the vocabulary and the structure of references about political and institutional ruptures in the Aristotelian Athenian Constitution in order to problematize the idea of legal and parliamentary coup against the Brazilian president Dilma Roussef in 2016 and the ethical and conceptual imbroglio of such kind of political change The text discusses the ancient vocabulary especially in the Athenian context and emphasize Aristotlersquos political thoughtKeywords Athenian Constitution Coup drsquoeacutetat political overthrow

Bibliografia

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MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDADY ETERNA MEMORIA

Julio Loacutepez Saco1

Resumen Los mitos de origen griego vinculados con la muerte asiacute como los deseos de alcanzar la inmortalidad y una nueva vida en el Maacutes Allaacute a traveacutes de la eterna perduracioacuten del alma impregnaron la imaginacioacuten religiosa romana Con posterioridad a la muerte el ser humano se transformaba en una serie de entidades (lemures manes larvae penates lares) de no siempre faacutecil identificacioacuten Desde la oacuteptica romana la muerte requeriacutea una serie de honores funerarios bien establecidos para evitar la conversioacuten del fallecido en un fantasma sin descanso y para de ese modo apaciguar los componentes malignos o negativos En la antigua Roma la muerte era un acto social que en cuanto a los lugares de inhumacioacuten modos de celebracioacuten y cultos no igualaba a los fallecidos existiendo notables diferencias seguacuten la condicioacuten social o el estatus del muertoPalabras clave muerte inframundo rito culto

Introduccioacuten

El significado social del mundo de la muerte en la antiguumledad romana solamente puede conocerse gracias a determinada documentacioacuten literaria y epigraacutefica (inscripciones funerarias) la presencia de monumentos histoacutericos y necroacutepolis (con sus tipos de tumbas y ajuares funerarios) a la ritualidad que envolviacutea el duelo asiacute como a la interpretacioacuten de los mitos (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 5)

En la antiguumledad dos de los temas baacutesicos maacutes relevantes en los que se centraron los relatos eacutepicos y mitoloacutegicos fueron sin duda la adquisicioacuten de la

1 Doctor en Ciencias Sociales y Doctor en Historia Investigador y Profesor Titular Escuela de Historia Universidad Central de Venezuela Caracas Doctorado en Historia FHE-UCV E-mail julosaucvgmailcom

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inmortalidad y la buacutesqueda de la eterna juventud (PLATOacuteN Fedro 245e)2 En el trasfondo de tal buacutesqueda se encuentra la preocupacioacuten por la muerte tal y como innumerables mitos han reflejado de modos bastante variados (Gilgamesh Orfeo Heracles)

En teacuterminos generales los mitos de la muerte en la mitologiacutea (particularmente griega) afirmaban que las almas de los difuntos viajaban al mundo subterraacuteneo de Plutoacuten y Perseacutefone guiadas por Mercurio la deidad psicopompa por excelencia Se veiacutean obligadas a atravesar la laguna Estigia en la balsa conducida por Caronte El mundo subterraacuteneo teniacutea en su entrada un temible custodio el Can Cerbero (veacutease ilustracioacuten 3) Una vez en el inframundo se llevaba a cabo un juicio a las almas Despueacutes del veredicto las mismas eran trasladadas a siete regiones seguacuten fuese el caso La primera estaba destinada a los infantes no natos que no eran juzgados en la segunda moraban los inocentes condenados injustamente la tercera correspondiacutea a los suicidas mientras que la cuarta denominada Campo de Lagrimas era la zona en la que permaneciacutean los amantes infieles la quinta estaba habitada por heacuteroes crueles en tanto que la sexta era el famoso Taacutertaro lugar en el que se procediacutea a castigar a los perversos y finalmente la seacuteptima correspondiacutea a los Campos Eliacuteseos sitio de morada de las almas bondadosas en la felicidad eterna

Muerte e inmortalidad en las fuentes claacutesicas

Si bien ya los pitagoacutericos mencionan el alma seraacute PLATOacuteN (Repuacuteblica 580e Fedoacuten 69e-84b) quien ofrezca la posibilidad de una esperanza ante la muerte Lo mortal y lo inanimado es el cuerpo fiacutesico mientras que lo animado el aacutenima es lo que pervive el alma Las almas transmigran idea que tambieacuten defiende en el aacutembito romano OVIDIO (Metamorfosis XV 165-166) SALUSTIO (Sobre los dioses y el mundo 20-21) y VIRGILIO (Eneida VI 730-750) Este uacuteltimo autor sentildeala que el alma al morir ascendiacutea por mediacioacuten del aire para luego atravesar las aguas que habiacutea sobre el aire y al fin recorrer la atmoacutesfera que estaacute expuesta a los rayos solares Tal viaje suponiacutea una purificacioacuten del alma mediante los elementos el aire el agua y el sol (fuego) de modo que pudiese lograr estar limpia (purificada) para acceder al Eliacuteseo (PEREA YEBENES S 2012 pp 34-36 RHODE E 1948 pp

2 La fama la gloria imperecedera asiacute como la permanencia en el recuerdo de los vivos (ademaacutes de la descendencia) siempre constituyoacute una forma peculiar de inmortalidad Una preocupacioacuten evidente en heacuteroes guerreros como Aquiles o en grandes generales conquistadores como Alejandro Magno pero tambieacuten en personalidades como Julio Ceacutesar La inmortalidad seguacuten Platoacuten seraacute asiacute una prerrogativa del alma humana

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145-149 y ss) En el Eliacuteseo podiacutea permanecer o tambieacuten ser conducida al Leteo (olvido) para afrontar una nueva existencia terrenal

Tambieacuten CICEROacuteN en Suentildeo de Escipioacuten (Sobre la Repuacuteblica VI 13-26) defendiacutea la permanencia y por consiguiente la inmortalidad del alma Para los estoicos como SEacuteNECA (Cartas a Lucilio XLIV 2 De la Consolacioacuten a Helvia XI 7) el alma es aquello que el ser humano tiene de racional ademaacutes de divino Es la que ayudada por la filosofiacutea nos haraacute resistir a la fortuna y saber por tanto afrontar la muerte

Por el contrario los epicuacutereos negaban la inmortalidad El espiacuteritu que conferiacutea vida se disolviacutea en el aire y se perdiacutea para siempre tras la muerte Ello implicaba que las personas no teniacutean entonces por queacute temer el mundo del maacutes allaacute de modo que podiacutean dedicarse a disfrutar de este (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 87 PEREA YEBENES S 2012 p 40-45)

No hubo conceptos concretos en el mundo romano en relacioacuten a en queacute se convertiacutean los difuntos despueacutes de fallecer En cualquier caso la tradicioacuten romana vislumbra la existencia de los espiacuteritus de los muertos Se trataba de los Dii parentes et Manes iacutentimamente asociados a los Genii Tales genios permaneciacutean activos durante la vida diferenciaacutendose por sus valores morales que se prolongaban tras su muerte Dichos genios continuaban habitando en las sepulturas un factor que motivoacute su identificacioacuten con la osamenta las cenizas e incluso con los propios sepulcros

Los autores antiguos presentan disparidades en relacioacuten a la entidad en la que se trasformaba el ser humano con posterioridad a la muerte del cuerpo En tal sentido existieron distintas denominaciones (COULIANO I P 1993 pp 122-125 FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 346-348 y ss) El Genius del difunto se relacionaba con el vocablo Manes (los ilustres) emparentado a su vez con Lares Penates Larvae y Lemures La profusioacuten de denominaciones demuestra en cualquier caso la existencia de la creencia en la inmortalidad del alma tras la desaparicioacuten del cuerpo

Entidades del maacutes allaacute los Manes

Aquellos difuntos bondadosos que velaban por sus descendientes se denominaban Lares familiares mientras que los inquietos perturbadores o sencillamente nocivos y que ademaacutes asustaban con apariciones nocturnas se llamaban Larvae (PICCALUNGA 1961 pp 87-89 y ss) Si no se sabiacutea

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con seguridad en queacute se habiacutea convertido el alma del fallecido se nombraba Manes3 Manes eran en general los espiacuteritus de los muertos Los Manes familiares eran aquellos difuntos que pasaban a formar parte del conjunto de espiacuteritus metamorfoseados en divinidades Se puede decir que era la sombra del difunto su espiacuteritu santificado por el deceso y en consecuencia proclive a ser objeto de veneracioacuten y respeto aunque al tiempo de temor y ofuscacioacuten a lo desconocido

De una manera o de la otra lo cierto era que habiacutea que distinguir entre genios buenos y malos En tal sentido las almas de los difuntos eran ldquodiosesrdquo de los muertos o en todo caso entidades que se hallaban en el mundo de los muertos al lado de las divinidades infernales (Orcus por ejemplo) De esta forma los Manes podiacutean ser identificados con esas deidades (MONTERO HERRERO S 1990 p 42)

Desde la eacutepoca de Augusto algunos autores sobre todo Virgilio y LIVIO (Ab Urbe condita III 5811) emplearon el teacutermino Manes para detallar a ciertas divinidades infernales y sombras de los muertos SERVIO por su parte (Commentarius ad Aeneidam III 63) menciona que en tanto los dioses celestes eran los de los vivos las otras deidades en concreto los Manes eran los dioses de los muertos Seriacutean entonces unos dioses secundarios que dominaban las tinieblas nocturnas Se podriacutea decir al modo de TAacuteCITO (Vida de Agriacutecola) que eran sombras espiacuteritus fantasmales (PROPERCIO Elegiacutea IV 6-7)4

En teacuterminos generales el hombre comuacuten no sabiacutea con exactitud el significado de los Manes esto es si representaban el alma del difunto o se trataba de deidades de ultratumba En las inscripciones funerarias (veacutease ilustracioacuten 1) se mencionan estas divinidades sin precisar ni caraacutecter ni funciones ni atributos particulares (MONTERO HERRERO S 1990 p 43 COULIANO I P 1993 p 126 y ss) En ocasiones aparecen al lado de DM o Dis Manibus epiacutetetos como inferi (con lo cual se implicariacutea su calidad

3 Aunque designe el alma de un muerto el vocablo se usaba en plural Es probable que ello se deba a las arcaicas costumbres funerarias de la cultura Terramara por la cual se inhumaban los fallecidos en recintos comunes De tal modo el alma de los muertos permaneciacutea ldquovivardquo entre sus descendientes convirtieacutendose en espiacuteritus familiares VARROacuteN (De Lingua Latina VI 324 IX 3861) confunde los Manes con los Lares Los considera a ambos figuras eteacutereas Habitualmente se confundiacutea Lares con Larvae y con los Manes

4 Este autor sentildeala que los Manes existen y que en correspondencia la muerte no es el final definitivo Horacio expone que los Manes eran como ceniza sombras un recuerdo

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de dioses de ultratumba protectores de los fallecidos CIL II 2464 2722 VI 12311 X 2322 2565) y unas pocas veces otros como sacer o castus5

Para algunos autores como APULEYO (De Deo Socratis 25) el espiacuteritu humano despueacutes de haber salido del cuerpo se transformaba en una suerte de demonio que los antiguos llamaban Lemures

La ritualidad de la muerte

En los funerales era imprescindible que se tributara los honores debidos al fallecido (Iusta) Si se produciacutea alguacuten olvido o una irregularidad el difunto se convertiriacutea en un fantasma que no descansariacutea hasta que sus allegados o parientes le hicieran la debida justicia Esa necesidad de unos ritos funerarios que atendieran al difunto se continuaba tiempo despueacutes de la inhumacioacuten para asegurar su descanso eterno Existiacutea entonces la necesidad de que se recordara al difunto se dejara constancia de su existencia y se le rindiera culto a su numen (y a su nomen) para que perviviese en la memoria eterna

Un relevante nuacutemero de rituales se orientaban maacutes hacia el objetivo de apaciguar los componentes malignos de los difuntos que hacia una imprescindible suacuteplica como deidades activas En todos los casos se inmolaban viacutectimas se realizaban juegos combates de gladiadores como homenaje se ofrendaban alimentos en la tumba en determinados diacuteas concretos6 (cumpleantildeos diacutea de difuntos) y se conformaba un ajuar de diversos objetos

La muerte se concebiacutea en la antigua Roma como un acto social y en cierta medida puacuteblico El tiempo de luto para los familiares directos era de diez meses El funeral (funus) comenzaba en casa del difunto (BELAYCHE N 1993 pp 158-159 FREDOUILLE J C 1987 p 174) La familia acompantildeaba al moribundo a su cama y le daba un uacuteltimo beso para retener asiacute el alma que se escapaba por su boca Despueacutes de producirse el deceso se le

5 Con Dis Inferis Manibus se infiere el caraacutecter sacro de la tumba Los teacuterminos que delimitaban el sepulcro podiacutean considerarse sagrados En este caso la inscripcioacuten habitual era Dis Manibus Sacrum (DMS) que los primeros cristianos primitivos conservaron reinterpretaacutendola como Deo Magno Sancto

6 Los diacuteas de difuntos (Parentalia) se celebraban en febrero Otras fiestas dedicadas a los muertos fueron las Lemurias (celebradas en mayo) En esos especiales diacuteas las almas cuyos cuerpos no habiacutean recibido sepultura merodeaban en los hogares Por tal motivo el padre de familia debiacutea representar un ritual para alejar a esos espiacuteritus errantes Despueacutes de lavarse las manos como sentildea de purificacioacuten se metiacutea nueve habas negras en la boca Luego descalzo se desplazaba por la casa escupiendo las habas una a una para que nutriesen a los espiacuteritus malignos conocidos como Lemures

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cerraban los ojos y se le llamaba tres veces por su nombre para asiacute corroborar que realmente habiacutea fallecido A continuacioacuten el cuerpo era lavado perfumado con unguumlentos y finalmente vestido Seguacuten la costumbre griega se depositaba al lado del cadaacutever una moneda para que Caronte se cobrase por el transporte de su alma (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 34) El cuerpo se ubicaba sobre una litera con los pies mirando hacia la puerta de entrada y rodeado de flores un siacutembolo de la fragilidad de la vida pero a la par de la renovacioacuten Durante tres a siete diacuteas permaneciacutea expuesto el difunto Encima de la puerta de entrada de la casa se poniacutean ramas de abeto o de cipreacutes para asiacute avisar a los viandantes de la presencia de un muerto en el interior

El difunto en particular en los casos de romanos de alta condicioacuten social era trasladado por las calles de la ciudad (GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 43-56 y ss FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 355-356) Delante y detraacutes de la comitiva fuacutenebre (pompa funebris) se desplazaba un cortejo compuesto de esclavos tocando instrumentos musicales como flautas trompetas o trompas los portadores de antorchas el propio difunto en un atauacuted de madera abierta sobre una suerte de camilla (tambieacuten podiacutea ser llevado a hombros por miembros de la familia) (Veacutease ilustracioacuten 2) Detraacutes del difunto iba el resto del cortejo fuacutenebre formado por la familia y los amigos ademaacutes de una comitiva de personal pagado (plantildeideras mimos bailarines) y finalmente las fasces las representaciones de los momentos significativos de la vida del fallecido o aacuterboles genealoacutegicos del difunto (HINARD F 1995 p 98 PRIEUR J 1986 pp 112-115 y ss TIEMBLO MAGRO A 2011 p 167)

Hasta finales de la primera centuria de nuestra era el funeral se celebraba por la noche con la ayuda de la luz de antorchas Esto era asiacute porque la muerte era un suceso que se consideraba contaminante Sin embargo en siglos posteriores se comenzaron a realizar los ritos durante el diacutea excepto aquellos de nintildeos indigentes o suicidas

La tumba definitiva se consagraba con el sacrificio de una cerda (ilustracioacuten 5) Una vez que el sepulcro estaba ya finalizado y todo dispuesto se llamaba tres veces al alma del difunto para que pudiera entrar en la morada que se le habiacutea preparado para su nueva vida Despueacutes del entierro se levantaba una estatua del difunto en un lugar visible de la casa dentro de en una hornacina de madera

En el caso de la incineracioacuten la ceremonia se celebraba encima de una pira en forma de altar sobre la que se depositaba el atauacuted con el cadaacutever Se le abriacutean los ojos para que pudiera observar coacutemo su alma de dirigiacutea hacia el cielo

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(GNOLI G amp VERNANT JP 1982 p 60 FREDOUILLE J C 1987 pp 177-179) Se sacrificaban e incineraban animales y se arrojaban sobre la pira ofrendas de alimentos y perfumes Se le nombraba una uacuteltima vez y se encendiacutea la pira con antorchas El rito concluiacutea vertiendo agua y vino sobre la pira Finalmente los asistentes se despediacutean del difunto deseaacutendole que la tierra le fuera ligera Sit Tibi Terra Levis (STTL) una foacutermula muy habitual en las inscripciones funerarias

Es conveniente recordar que los monumentos funerarios de los romanos se ubicaban al margen de los liacutemites de la ciudad a ambos lados de la calzada principal Soliacutean ornarse con jardines

Al fallecer alguno de los componentes de la familia romana de inmediato pasaba a formar parte de los antepasados familiares verdaderos Manes protectores a los que se les homenajeaba manteniendo siempre ardiendo el fuego del hogar La tumba elegida no podiacutea ser cambiada de lugar pues los manes requeriacutean una morada fija (que se suponiacutea eterna) a la que se asociaban todos los difuntos de la familia

En teacuterminos generales se piensa que los muertos no llevaban una existencia que podriacutea considerarse feliz Es por ello que habiacutea que abastecer las tumbas con todo aquello que el fallecido necesitara (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 172 HINARD F 1995 p 102) Para apaciguar a los espiacuteritus de los muertos y hacerles maacutes llevadera su infelicidad se ofrendaban alimentos (leche vino miel pan huevos) en los sepulcros en nombre de las familias de las asociaciones profesionales o de las propias ciudades Habiacutea una suerte de obligacioacuten en ello no soacutelo de cara a los fallecidos pues se entendiacutea que la carencia de homenajes a los Manes provocaba pesadillas y enfermedades a los vivos

Los lugares para la eternidad

Los sepulcros no eran espacios sombriacuteos luacutegubres pues se entendiacutea que la muerte conviviacutea con la vida7 Los difuntos no debiacutean ser olvidados y por ello sus lugares de reposo final se vinculaban con el entorno circundante (CUMONT F 1942 p 63) En los epitafios no se vislumbran deseos

7El espacio dedicado al enterramiento sepulchrum adquiriacutea el caraacutecter de sitio sacro lucus religiosus inamovible inviolable e inalienable Al recinto uacutenicamente podiacutean acceder los familiares del fallecido

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inframundanos sino que abundan expresiones que se asocian con los vivos y con la vida mundana En general se escribiacutean para que el transeuacutente los leyera y asiacute hubiera una constancia de su paso por la vida que ya dejoacute (LAVAGNE H 1987 pp 163-164 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1144-1146 y ss CUMONT F 1942 pp 65-68) Por eso en ellos se encuentran relatos de la vida del muerto saludos o explicaciones de coacutemo murioacute En algunos incluso se hallan consejos y hasta pensamientos de tipo poliacutetico (BAYET J 1957 pp 42-45 y ss)

Ilustracioacuten 1 Inscripcioacuten funeraria del altar de Quinto Fulvio Fausto y Fulvio Prisco Siglo I Museo Nazionale Romano

Ilustracioacuten 2 Relieve en maacutermol de Amiternum en la que se representa la pompa funebris de un entierro Museo Aquilano siglo I aec

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Ilustraciones 3 y 4 (Izquierda) Hades y Cerbero Museo Arqueoloacutegico de Creta (derecha) urna cineraria del Museo Arqueoloacutegico de Palermo La inscripcioacuten reza asiacute D(is) M(anibus) S(acrum)

L(ucio) CORNELIO LAETO FILIO DVLCISSIMO QVI VIX(it) AN(nos) XVI M(enses) II D(ies) XXIIII SER(vius) CORNEL(ius) LAETVS PAT FEC

Ilustracioacuten 5 Ara de los Vicomagistri del vicus Aesculetus (fines del siglo I aec) Los magistrados (cuatro por cada vicus o barrio) eran elegidos anualmente para organizar las ceremonias sacrificiales

asociadas a los Lares Compitales a los que se ofreciacutea un cerdo y al Genius del princeps al que iba destinado un toro La inscripcioacuten habla del antildeo noveno desde la reorganizacioacuten de este culto por Augusto A la derecha los magistrados con la cabeza cubierta indicando una funcioacuten sacerdotal

Tambieacuten se observa un muacutesico con auloacutes Abajo los animales para el sacrificio

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Existieron en el mundo romano diferentes tipos de enterramientos Aquellas tumbas maacutes lujosas eran los sepulcros monumentales los mausoleos que podiacutean adquirir la forma de una casa o un templo Por su parte los columbaria era una gran tumba en cuyos muros se ubicaban nichos para depositar las urnas con las cenizas de los difuntos Aparecen desde el siglo I aec siendo empleadas hasta el siglo III y son inhumaciones colectivas propias de corporaciones funerarias Habiacutea tambieacuten fosas simples excavadas en el suelo algunas de ellas revestidas con cajas de ladrillo y con cubiertas de maacutermol (VAN ANDRINGA W 2006 p 1149)

Desde el siglo II la incineracioacuten fue paulatinamente reemplazada por la inhumacioacuten No obstante hubo una coexistencia de ambos modos funerarios La distincioacuten se relacionaba con la condicioacuten social o el estatus del fallecido En este sentido la inhumacioacuten se reservaba para la gente humilde y para los esclavos mientras que la incineracioacuten se usaba con los miembros de familias nobles patricias (GALINIER M 1999 pp 114-115 BELAYCHE N 1993 p 182) Asiacute poco a poco en lugar de utilizar urnas funerarias propias de la incineracioacuten (veacutease ilustracioacuten 4) se fue extendiendo la costumbre de enterrar a los muertos en cajas bien de madera o de piedra de las cuales derivariacutean los sarcoacutefagos (por otro lado conocidos ya en Etruria y en ciertas regiones del aacutembito heleniacutestico) usados en las inhumaciones Los sarcoacutefagos formaban parte de un monumento funerario (LAVAGNE H 1987 p 168) Soliacutean ser decorados con elementos simboacutelicos y con disentildeos geomeacutetricos (como los surcos ondulados o strigiles)

Los enterramientos individuales presentaban numerosos tipos de monumento funerario Las laacutepidas eran un elemento clave (PRIEUR J 1986 pp 127-128 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1150-1152 GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 91-92) Podiacutean ser estelas exentas coronadas por frontones piedras esculpidas con forma semiciliacutendrica (cupae) propias de esclavos y libertos pedestales y altares ornados con decoracioacuten vegetal o relieves con los bustos de los muertos empotrados en los muros de la tumba Enterramientos muy modestos eran por su parte las cajas de losas de pizarra de aacutenforas (muy empleadas para la inhumacioacuten de infantes) o tegulas reusadas

Conclusioacuten

El concepto de la pervivencia del alma humana en otra esfera es el punto de inicio a partir del cual la antiguumledad romana dedicoacute esfuerzos al recuerdo de sus fallecidos de sus antepasados Al margen de una relativamente confusa profusioacuten de entidades fantasmales como habitantes habituales del maacutes allaacute

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hubo siempre una necesidad de homenajear al difunto con rituales apropiados y en habitaacuteculos adecuados La diferenciacioacuten existente en las ceremonias fuacutenebres y en los propios lugares de descanso de unos y otros se asocioacute con la condicioacuten social o el estatus del fallecido A pesar de la falta de igualdad tras el deceso persistioacute siempre no obstante la creencia en la inmortalidad y la imperiosa necesidad de la pervivencia a traveacutes de la memoria eterna

Abstract The myths of origin Greek linked with the death as well as wishes of achieve the immortality and a new life in the more beyond through the eternal endurance of the soul permeated the imagination religious Roman After death the human turned into a series of entities (lemurs lares manes larvae penates) not always easy to identify From the Roman standpoint death required a series of well-established funeral honors to prevent the conversion of the deceased in a ghost without a break and to thereby appease the evil or negative components In ancient Rome the death was a social event which in terms of the places of burial ways of celebration and worship not equal to the deceased there are notable differences according to social condition or the status of the deadKeywords death underworld ritual cult

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ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO

Camila Alves Jourdan1

Resumo O poder do mar pode ser compreendido em sua capacidade de submersatildeo em sua imensidatildeo e vastidatildeo em sua profundidade e seu constante movimento Estas cinco caracteriacutesticas atribuiacutedas por Astrid Lindenlauf (2003) em seu estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno nos possibilita perceber as potencialidades do mar na atuaccedilatildeo do desaparecimento eou no encobrimento de rastros indesejados Deste modo pretendemos neste artigo analisar passagens que nos permitam elucidar a relaccedilatildeo de accedilotildees consideradas vergonhosascriminosas pela sociedade helecircnica com o mar em obras textuais dos periacuteodos arcaico e claacutessico e representaccedilatildeo imageacuteticaPalavras-chave Mar desaparecimento crimes

1 Alguns apontamentos sobre a morte

Um dos principais estudiosos acerca da questatildeo da morte foi Edgar Morin (1970) Para ele a ideia de morte soacute se torna compreensiacutevel quando podemos representaacute-la e conceitualizaacute-la ndash o que natildeo fazem os animais Para Morin a consciecircncia de morte estaacute relacionada agrave vida em sociedade humanamente organizada Deste modo somente os seres humanos dispotildeem de um arcabouccedilo cognitivo capaz de decodificar e assim compreender o ato de morrer bem como suas implicaccedilotildees aos vivos O reconhecimento da morte implica em uma consciecircncia do indiviacuteduo e de sua individualidade mesmo estando em sociedade A percepccedilatildeo de perda da proacutepria individualidade mostra um indiviacuteduo consciente de si Consciente de sua morte O enterramento dos cadaacuteveres marca a percepccedilatildeo de finitude da mortalidade humana Quando se inicia esse processamento e reflexatildeo sobre os seus mortos a morte ldquonatildeo se trata mais de uma questatildeo de instinto mas jaacute da aurora do pensamento humano que se traduz por uma espeacutecie de revolta contra a morterdquo (MORIN 1970 p 31)

1 Mestra e doutoranda em Histoacuteria Social pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA-UFF) E-mail camilaajourdangmailcom

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A morte eacute sobretudo um ato social E como social a morte natildeo se refere apenas ao indiviacuteduo mas a coletividade que estaacuteestava a sua volta ndash famiacutelia comunidade ciacuterculos de amizade e de outras formas de relacionamento Um rompimento de viacutenculos que ocorre quando o morto deixa de existir Entretanto eacute a ambiguidade que marca este momento crucial na interpretaccedilatildeo de Joseacute Carlos Rodrigues (2006 p 34) o morto apenas se libertou de seu aspecto terrestre para que assim pudesse dar continuidade agrave sua existecircncia em outro lugar ou seja de fato o morto natildeo deixa de existir pois a crenccedila na sobrevivecircncia de uma parte deste morto de um duplo permeia diversas sociedades De acordo com Maacutercia Maria de Medeiros

Uma antropologia histoacuterica da morte mostra com efeito que os homens das sociedades arcaicas repugnavam a ideacuteia de uma destruiccedilatildeo definitiva e total e consideravam que os mortos continuavam a levar a nosso lado uma vida invisiacutevel e natildeo cessam de intervir no curso da existecircncia daqueles que chamam a si mesmos de vivos (DASTUR Apud MEDEIROS 2008 p 154)

Esta interpretaccedilatildeo nos permite compreender o conjunto do imaginaacuterio helecircnico acerca do processo pelo qual passava o morto ndash a morte imputada por Thanatos ndash dos processos de manutenccedilatildeo de sua continuidade ndash ritos fuacutenebres ndash dos lugares-imaginados como locais de permanecircncia desse defunto ndash como os domiacutenios de Hades o reino dos mortos A ambiguidade neste cenaacuterio reside no fato de que a morte eacute a princiacutepio um ato de exclusatildeo de desligamento Entrementes esta exclusatildeo necessita ser compensada com a re-inserccedilatildeo do indiviacuteduo em uma espeacutecie de renascimento em uma nova vida em um novo grupo social em um novo mundo (RODRIGUES 2006 p 34) Esta nova inserccedilatildeo necessita de um trabalho de desagregaccedilatildeo em um domiacutenio e a inserccedilatildeo em um novo Esta accedilatildeo exige um esforccedilo nos campos simboacutelico e cognitivo para reorganizar tais desestruturaccedilotildees e reestruturaccedilotildees de relacionamentos sociais Deste modo eacute atraveacutes dos ritos fuacutenebres do enterro do defunto o meio que a sociedade encontrou para assegurar todo este processo (RODRIGUES 2006 p 42)

Os ritos fuacutenebres funcionam entatildeo como marca dessa nova inserccedilatildeo desse processo de continuidade Buscando o entendimento de todo o processamento das relaccedilotildees sociais do receacutem-morto e dos novos viacutenculos sociais criados pelos vivos Rodrigues parte da proposiccedilatildeo conceitual de Van Gennep para compreender os ritos fuacutenebres O ldquorito de passagemrdquo permite ao autor articular o processo de separaccedilatildeo do morto da sociedade dos vivos no qual afere a ideia de que a morte natildeo eacute um fim inexoraacutevel para o morto mas

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uma passagem de uma ldquoforma de vida social a uma outra ela natildeo eacute o fim da vida mas iniciaccedilatildeo a uma novardquo (RODRIGUES 2006 p 43)

Destarte a partir deste luto os ritos vinculados a morte representam um conjunto de condutas culturais que possuem grande importacircncia e que tem como funccedilatildeo a constituiccedilatildeo de uma memoacuteria coletiva sobre o morto (MEDEIROS 2008 p 154) E com isto eacute perceptiacutevel como a morte e os ritos que lhe seguem satildeo de caraacuteter social e fundamentais para a manutenccedilatildeo da ordem no mundo dos vivos e dos mortos

Sendo assim Jean-Pierre Vernant afirma que para os gregos a ldquoideacuteia que a morte eacute um limiar intransponiacutevel atraacutes do qual se encontra um mundo que eacute um mundo de horror de anonimato um magma onde todos se perdemrdquo (VERNANT 2009 p 83) A morte para os gregos estaacute presente na ldquovida da poacutelisrdquo isto eacute a praacutetica de cuidar dos tuacutemulos renderem-lhes honras fuacutenebres a existecircncia de dias de festivais dedicados aos mortos a ponto de ser uma preocupaccedilatildeo de ordem econocircmica para os legisladores da cidade (BURKERT1993 pp 376-379)

Morrer adquire um status paradoxal implica na morte do indiviacuteduo a sua ldquoviagem para o esquecimentordquo mas a rememoraccedilatildeo constante feita pelos vivos seja pelo canto dos poetas seja pelo memorial funeraacuterio Era fundamental assim que a singularidade da existecircncia do indiviacuteduo de seus feitos do que havia sido permanecessem inscritos para sempre na memoacuteria dos homens (VERNANT 2009 p 86)

2 As passagens relacionadas ao morrer no mar

Homero eacute o primeiro a nos apontar a construccedilatildeo de um discurso sobre a morte no mar Na passagem do canto IV nos versos 708-711 ressalta que o arauto Meacutedon conta agrave Peneacutelope sobre a empreitada de Telecircmaco e a armadilha preparada pelos pretendentes visando findar com a vida de seu filho Nesta fala afirma que a morte no mar permite o esquecimento do defunto

Em nau veloz cavalo salso marinho em plena imensidatildeo aquosa natildeo carecia que zarpasse O proacuteprio nome quer que naufrague entre os humanos (HOMERO Odisseia IV 708-711)2

2 οὐδέ τί μιν χρεὼ νηῶν ὠκυπόρων ἐπιβαινέμεν αἵ θ᾽ ἁλὸς ἵπποι ἀνδράσι γίγνονται περόωσι δὲ πουλὺν ἐφ᾽ ὑγρήν ἦ ἵνα μηδ᾽ ὄνομ᾽ αὐτοῦ ἐν ἀνθρώποισι λίπηται

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A armadilha feita pelos inimigos conduziria agrave morte o jovem Telecircmaco fazendo seu corpo perdesse entre as ondas do mar Com o corpo perdido o crime seria encoberto e o a memoacuteria do jovem perdida por natildeo ser realizado o enterramento corretamente

Neste mesmo sentido o poeta do VII seacuteculo aC Arquiacuteloco enfatiza num mesmo sentido discursivo que natildeo eacute possiacutevel conceder as honras fuacutenebres aos mortos no mar Posidon oculta a dor aos parentes jaacute que natildeo poderiam ver os corpos sendo queimados na ldquochama de Hefestosrdquo com a seguinte passagem

Se Hefesto tivesse envolvido em seu vestido a cabeccedila e os membros dele Oculta os dolorosos presentes do Senhor Poseidon (ARQUIacuteLOCO vv 5-6)

No entanto eacute com Hipocircnax poeta do seacuteculo VI aC que vemos a primeira relaccedilatildeo entre a morte no mar e um ato de puniccedilatildeo

diga-me o modo para que lsquoesse infamersquo morra de uma maneira infame apedrejado por decisatildeo conjunta das pessoas agraves margens do mar esteacuteril (HIPOcircNAX 135 vv 3-4)

Nesta passagem o autor faz referecircncia a morte por apedrejamento junto a beira do mar O mar completa a cena de uma morte com caraacuteter negativo infame com esterilidade

Percebemos ateacute aqui que durante o periacuteodo arcaico a morte no mar eacute algo natildeo desejado pelos helenos algo que gera uma problemaacutetica no sistema dos ritos fuacutenebres Tambeacutem eacute na construccedilatildeo de um discurso socialmente construiacutedo que relaciona a negatividade atribuiacuteda agrave morte no meio inoacutespito ao cenaacuterio de uma morte sem gloacuteria calcada na proposiccedilatildeo de ampliar a puniccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da morte de ldquoum infamerdquo Esse discurso perpassa os valores helecircnicos ateacute se cristalizar no discurso herodotiano

Na primeira das trecircs passagens Heroacutedoto nos relata um caso em que os nautai tentam usurpar os bens de um renomado aedo durante a travessia do mar Vejamos

Confiando em nenhum mais do que os Coriacutentios ele contratou um navio Coriacutentio para levaacute-lo a partir de Tarento Mas quando eles estavam em alto mar a tripulaccedilatildeo conspirarou para tomar o dinheiro de Arion e lanccedilaacute-lo ao mar Descobrindo isso ele suplicou fervorosamente pedindo por sua vida e oferecendo-lhes o seu dinheiro Mas a tripulaccedilatildeo natildeo iria ouvi-lo e disse-lhe quer se matar

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e assim receber o sepultamento em terra ou saltar para o mar de uma vez Abandonado a estes extremos Arion pediu que uma vez que eles tinham decido em suas mentes o deixassem ficar no conveacutes do navio com toda a sua regalia e cantar e ele prometeu que depois de cantar ele iria se entregar Os homens satisfeitos com a ideia de ouvir o melhor cantor do mundo afastaram-se em direccedilatildeo ao meio da nau a partir da popa Arion colocando todos os seus bens e tendo sua lira levantou-se no conveacutes e cantou a lsquoNomo orthiorsquo e quando a muacutesica terminou ele lanccedilou-se ao mar com todos os seus bens Assim a equipe partiu para Corinto mas um golfinho (assim diz a histoacuteria) tomou Arion em suas costas e o levou a Teacutenaro Desembarcando laacute ele foi para Corinto com seus bens e quando ele chegou ele relatou tudo o que havia acontecido Periandro ceacutetico manteve-o em regime de confinamento deixando-o ir a lugar nenhum e esperou pelos marinheiros Quando eles chegaram eles foram convocados e perguntou se trouxeram notiacutecias de Arion Enquanto eles estavam dizendo que ele estava seguro na Itaacutelia e que o tinha deixado satildeo e bem em Tarento Arion apareceu diante deles assim como foi quando ele pulou do navio espantado que natildeo podia mais negar o que foi provado contra eles (HEROacuteDOTO Histoacuterias I 24 2-7)3

Nesta passagem denotamos que para encobrir o crime a ser cometido contra Arion os navegantes optam por lanccedila-lo ao mar desaparecendo com seu corpo e escondendo o crime cometido Satildeo as atribuiccedilotildees que caracterizam o mar que apresentaremos em breve que aqui fica evidenciado o mar faz com que o corpo desapareccedila Aleacutem disso a oposiccedilatildeo ldquolanccedilar-se ao marrdquo e ldquoreceber o sepultamentordquo fica notadamente evidenciada nesta passagem Morrer no mar caso ele saltasse significaria a ausecircncia dos devidos ritos fuacutenebres

A passagem seguinte de Heroacutedoto mostra uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre o ato criminoso e a capacidade do mar de encobrir o corpo

3 οὔκων δὴ πείθειν αὐτὸν τούτοισι ἀλλὰ κελεύειν τοὺς πορθμέας ἢ αὐτὸν διαχρᾶσθαί μιν ὡς ἂν ταφῆς ἐν γῇ τύχῃ ἢ ἐκπηδᾶν ἐς τὴν θάλασσαν τὴν ταχίστην ἀπειληθέντα δὴ τὸν Ἀρίονα ἐς ἀπορίην παραιτήσασθαι ἐπειδή σφι οὕτω δοκέοι περιιδεῖν αὐτὸν ἐν τῇ σκευῇ πάσῃ στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι ἀεῖσαι ἀείσας δὲ ὑπεδέκετο ἑωυτὸν κατεργάσασθαι καὶ τοῖσι ἐσελθεῖν γὰρ ἡδονὴν εἰ μέλλοιεν ἀκούσεσθαι τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀοιδοῦ ἀναχωρῆσαι ἐκ τῆς πρύμνης ἐς μέσην νέα τὸν δὲ ἐνδύντα τε πᾶσαν τὴν σκευὴν καὶ λαβόντα τὴν κιθάρην στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι διεξελθεῖν νόμον τὸν ὄρθιον τελευτῶντος δὲ τοῦ νόμου ῥῖψαί μιν ἐς τὴν θάλασσαν ἑωυτὸν ὡς εἶχε σὺν τῇ σκευῇ πάσῃ καὶ τοὺς μὲν ἀποπλέειν ἐς Κόρινθον τὸν δὲ δελφῖνα λέγουσι ὑπολαβόντα ἐξενεῖκαι ἐπὶ Ταίναρον ἀποβάντα δέ αὐτὸν χωρέειν ἐς Κόρινθον σὺν τῇ σκευῇ καὶ ἀπικόμενον ἀπηγέεσθαι πᾶν τὸ γεγονός Περίανδρον δὲ ὑπὸ ἀπιστίης Ἀρίονα μὲν ἐν φυλακῇ ἔχειν οὐδαμῇ μετιέντα ἀνακῶς δὲ ἔχειν τῶν πορθμέων ὡς δὲ ἄρα παρεῖναι αὐτούς κληθέντας ἱστορέεσθαι εἴ τι λέγοιεν περὶ Ἀρίονος φαμένων δὲ ἐκείνων ὡς εἴη τε σῶς περὶ Ἰταλίην καί μιν εὖ πρήσσοντα λίποιεν ἐν Τάραντι ἐπιφανῆναί σφι τὸν Ἀρίονα ὥσπερ ἔχων ἐξεπήδησε καὶ τοὺς ἐκπλαγέντας οὐκ ἔχειν ἔτι ἐλεγχομένους ἀρνέεσθαι

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Temendo pois para si mesmo para que seu irmatildeo poderia mataacute-lo e assim por ser rei ele enviou Prexaspes o mais confiaacutevel de seus persas para a Peacutersia para mataacute-lo Prexaspes foi para Susa e matou Esmeacuterdis levando-o para caccedilar de acordo alguns ou de acordo com os outros levando ao mar Eritreu e laacute jogou-o nas aacuteguas profundas (HEROacuteDOTO Histoacuterias III 30 3)4

Na segunda passagem Cambises receoso por um sonho ordenou a morte de seu irmatildeo Esmeacuterdis com medo deste tirar seu trono Aqui o mar aparece como um lugar vinculado agrave ideia de morte escondida no qual natildeo haacute evidecircncias O fratriciacutedio real ainda que cometido por terceiros na visatildeo helecircnica era puniacutevel pois seria cometido um crime de sangue

Por fim a terceira passagem nos apresenta a histoacuteria de Estearco que induzido por sua nova esposa de que sua filha era uma prostituta pede a seu hoacutespede Temison que jogue sua filha ao mar Natildeo somente o pai se nega a cometer diretamente um crime familiar matando sua filha mas tambeacutem solicita-o ao hoacutespede ndash que acaba sentindo-se na necessidade de retribuir a hospitalidade de Estearco Na passagem vecirc-se ldquoe o manda que a jogue no marrsquo (HEROacuteDOTO Histoacuterias IV 154 3)5

O mar aparece novamente como aquele com o poder de encobrir os crimes cometidos atraveacutes da destruiccedilatildeo do corpo Nem o corpo nem o crime seriam levados de volta agrave sociedade O mar eacute entatildeo o espaccedilo do desaparecimento aquilo capaz de ldquoEsconder os corpos e os crimesrdquo

3 O mar que esconde os corpos e os crimes

Em um estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno realizado por Astrid Lindenlauf (2003 pp 416-433) no qual o Mediterracircneo servia como um toacutepos para o descarte de objetos indesejados6 percebemos que o mar era

4 πρὸς ὦν ταῦτα δείσας περὶ ἑωυτοῦ μή μιν ἀποκτείνας ὁ ἀδελφεὸς ἄρχῃ πέμπει Πρηξάσπεα ἐς Πέρσας ὃς ἦν οἱ ἀνὴρ Περσέων πιστότατος ἀποκτενέοντά μιν ὁ δὲ ἀναβὰς ἐς Σοῦσα ἀπέκτεινε Σμέρδιν οἳ μὲν λέγουσι ἐπ᾽ ἄγρην ἐξαγαγόντα οἳ δὲ ἐς τὴν Ἐρυθρὴν θάλασσαν προαγαγόντα καταποντῶσαι

5 καὶ ταύτην ἐκέλευε καταποντῶσαι ἀπαγαγόντα

6 Exemplos que a autora expotildee lanccedilamento de estaacutetua de liacutederes poliacuteticos indesejado que representaria uma declaraccedilatildeo poliacutetica simboacutelica visando o apagamento da memoacuteria O lanccedilamento do corpo de um inimigo assassinado representava a negaccedilatildeo do enterro (LINDENLAUF 2003 pp 420-421)

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compreendido entre os helenos antigos como um lugar de onde nada ndash exceto em alguns casos ndash retornava de volta agraves vistas da sociedade A profundidade sua capacidade de submersatildeo a imensidatildeo a vastidatildeo e o constante movimento do mar geravam a percepccedilatildeo do mar como uma possibilidade do desaparecimento por completo (LINDENLAUF 2003 pp 423-424) Assim tambeacutem ocorreria para aqueles que morriam em meio mariacutetimo Todo este imaginaacuterio de poder de desaparecimento de objetos e pessoas indesejadas nos reforccedila a ideia do mar como um local de morte sem retorno

A partir destas capacidades que geram os desaparecimentos em algumas das passagens destacadas percebemos sua utilizaccedilatildeo para o encobrimento de atos considerados criminosos Fosse pela trama dos pretendentes contra Telecircmaco fosse pelo assassinato de Esmeacuterdis por ordem do irmatildeo a temaacutetica e as discussotildees sobre os atos infracionais na ordem social tambeacutem eram pontuados pelos tragedioacutegrafos Sem nos adentrarmos especificamente nestas dramatizaccedilotildees cabe-nos ressaltar que a ideia de crime de sangue ndash caso de alguns de nossos apontamentos anteriores ndash poderia ser considerado um dos piores tipos de crime Deste modo as trageacutedias estatildeo repletas de personagens que cometem crimes e satildeo julgados e punidos por estas accedilotildees Do parriciacutedio de Eacutedipo do matriciacutedio de Orestes dos filiciacutedios de Medeacuteia e Agamecircmnon do fratriciacutedio de Eteacuteocles e Polinices os helenos conviviam com estes embates em cenas e em seu imaginaacuterio onde havia o conflito entre forccedilas opostas no qual se deturpava a ordem anteriormente estabelecida Aos personagens traacutegicos temos a oposiccedilatildeo do ethhos (caraacuteter) e do daacuteimon (destino) no qual seus destinos satildeo previamente traccedilados pelos deuses e que ainda assim satildeo responsaacuteveis por seus atos criminosos (SANTOS 2005 pp 63-64)

Entre a capacidade do mar para o encobrimento de objetos e a necessidade de se esconder os corpos de crimes abjetos o mar proporciona em diversos niacuteveis esta possibilidade Natildeo satildeo somente as cinco caracteriacutesticas destacadas por Lindenlauf mas tambeacutem se deve considerar os seres que habitam o mar e que compotildeem este cenaacuterio de destruiccedilatildeo Como aponta Papadoupolos e Ruscillo o poder do mar centrava-se na capacidade de engolir e esconder um ser humano completamente aleacutem de contar com as inuacutemeras criaturas comedoras de carne em suas profundezas deste modo a morte no mar era parte da tradiccedilatildeo poeacutetica grega (2012 p 215) ldquoDesde Homero que o mar eacute o lugar dos heroacuteis o percurso a ser desbravado com coragem astuacutecia e ajuda dos deuses Entretanto isso natildeo quer dizer que o medo natildeo estivesse presente

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Os gregos sabiam o que um naufraacutegio representavardquo (VIEIRA 2010 p 60) Tanto que encontramos imagens em ceracircmica que representam o naufraacutegio e o poder destrutivo dos seres que o habitam

Esta cena estaacute em uma cratera datada de final do seacuteculo VIII aC encontrada em Pitecussa em estilo geomeacutetrico tardio (BUCHNER 1966 p 8) Nela podemos ver o naufraacutegio de um navio e seus tripulantes Em cena uacutenica vemos uma grande nau virada para baixo e dois navegantes entre os peixes logo abaixo dela Mais a esquerda da cena um enorme peixe devora um homem sua cabeccedila jaacute estando dentro da boca do peixe inclusive No restante da cena temos outros corpos e uma grande variedade de peixes

Neste contexto do periacuteodo arcaico a navegaccedilatildeo no Mediterracircneo ocidental estava pautada no processo de expansatildeo helecircnica tanto territorial quanto comercial O imaginaacuterio dos perigos do mar e dos animais que o habitavam ndash verdadeiros devoradores de homens ndash permeavam tambeacutem a construccedilatildeo imageacutetica

Da cena que apresentamos quanto destes homens poderiam ter sobrevivido Em qual situaccedilatildeo os corpos dos cadaacuteveres estariam se fossem encontrados Este imaginaacuterio de horror de uma morte longe das vistas da poacutelis de ausecircncia do corpo em ritos fuacutenebres marca a capacidade do mar e dos seres que o habitam de encobrir as mortes que ali ocorriam fossem por tempestades ou perigos inerentes agrave navegaccedilatildeo fossem por crimes cometidos e que se desejavam esconder da sociedade

4 Consideraccedilotildees finais

Podemos ver a partir da documentaccedilatildeo em que realizamos anaacutelise que essa morte marinha se coloca como o oposto da morte com seus rituais e a aproxima de atos criminosos ndash no sentido de encobrir tais atos O corpo se perdeu entre as ondas do mar foi danificado natildeo pode receber as honras fuacutenebres Natildeo eacute a ldquobela morterdquo de um guerreiro em batalha ndash morte tatildeo

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valorizada nos discursos ndash mas a ausecircncia do indiviacuteduo no qual o corpo se decompotildee no mar

A morte no mar representa o ldquolsquoultraje ao cadaacuteverrsquo ou seja o tratamento que se quer infligir aos inimigos mortos para que natildeo se tornem memoraacuteveis para os deixar apodrecerrdquo (VERNANT 2009 p 91) Natildeo eacute somente o corpo mas o esquecimento que o indiviacuteduo teraacute na memoacuteria dos vivos Os rituais fuacutenebres marcam a mnemosyne ndash Memoacuteria ndash guardam a lembranccedila e a manteacutem viva

Como aponta Joseacute Carlos Rodrigues ldquoa morte do corpo pode ser a morte do siacutembolo que o corpo eacute a morte do siacutembolo da estrutura socialrdquo (RODRIGUES 2006 p40) A simbolizaccedilatildeo da vida do defunto lhe eacute impressa em seu enterramento seu corpo faz parte da demarcaccedilatildeo social Quando haacute a ausecircncia do corpo como se realiza a marca de sua vida no enterramento

Eacute neste sentido que os rituais fuacutenebres emergem como complexos ritos que projetam a vida coletiva da sociedade no enterramento Estes ritos dependeratildeo estreitamente do tipo de morte da condiccedilatildeo do morto do status social dos sobreviventesvivos e sua relaccedilatildeo com o desaparecidomorto (Idem) Assim a ausecircncia do corpo nos ritos fuacutenebres traz problemaacuteticas a serem sanadas pelos vivos Morrer no mar eacute em muitos casos perder o corpo natildeo voltar Realizar uma demarcaccedilatildeo espacial e conceder ao morto um novo lugar para habitar atraveacutes da estela funeraacuteria O ldquocorpo se perde entre as ondasrdquo como jaacute cantavam os antigos aedos e rapsodos E uma vez perdidos entre as ondas como descobrir a forma de sua morte Como se diz que foi uma morte por naufraacutegio ou assassinato em alto-mar O mar desde os antigos mostra assim todas as suas potencialidades Potencialidades diversas que os helenos buscaram compreender dominar e representar

Abstract The power of the sea can be understood in its submersion capacity in its immensity and vastness in its depth and its constant movement These five characteristics ascribed by Astrid Lindenlauf (2003) in their study of the sea as a place of ldquono-returnrdquo enable us to perceive the potentialities of the sea in the disappearance and or cover-up of unwanted traces Thus we intend in this article to analyze passages that allow us to elucidate the relation of actions considered shameful criminal by Hellenic society with the sea in textual works of the archaic and classic periods and imagery representationKeywords Sea disappearance crimes

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A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTI-GUIDADE

Renata Cardoso de Sousa1

Existe por exemplo o gosto pela viagem ndash um prazer muito especial que natildeo deve ser confundido com fuga evasatildeo ou escapismo Eacute o gosto pela imersatildeo no desconhecido pelo conhecimento do outro pela exploraccedilatildeo da diversidade A satisfaccedilatildeo de se deixar transportar para outro tempo e outro espaccedilo viver outra vida com experiecircncias diferentes do cotidiano (MACHADO 2009 p 19 e 20)

Resumo Propomos pensar como eacute possiacutevel trabalhar o tema da etnicidade e do etnocentrismo na sala de aula a partir do uso de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade Para tal primeiramente eacute necessaacuterio estabelecer alguns criteacuterios para a utilizaccedilatildeo dessa literatura que ainda gera debates acerca da sua proficuidade bem como conceituar a etnicidade Partiremos dos conceitos de etnicidade (proposto por Fredrik Barth) e identidade-alteridade (de Marc Augeacute) para depois nos debruccedilarmos sobre propostas de trabalho com algumas adaptaccedilotildees selecionadasPalavras-chave Ensino de Histoacuteria adaptaccedilotildees literaacuterias etnicidade

Objetivamos nesse artigo pensar algumas questotildees concernentes tanto ao Ensino de Histoacuteria quanto agrave validade da utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade em sala de aula como forma de estiacutemulo agrave leitura Dentre essas questotildees estatildeo a) Por que tratar o tema da etnicidade e do etnocentrismo em sala de aula b) Por que recorrer agrave Antiguidade para (re)pensar a etnicidade c) Por que utilizar adaptaccedilotildees em sala de aula se podemos mediar a leitura do claacutessico com os alunos

Para tal proposta primeiro propomos pensar acerca do proacuteprio conceito e de sua importacircncia dentro do contexto escolar para depois pensarmos o

1 Professora Doutoranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada (PPGHC-UFRJ) Orientada pelo Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa Bolsista CAPES E-mail renatacardoso1990gmailcom

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conceito na Antiguidade grega Em seguida discutiremos a proficuidade das adaptaccedilotildees e definiremos mesmo o que seriam elas No final propomos algumas soluccedilotildees para o trabalho com o conceito de etnicidade utilizando adaptaccedilotildees da Odisseia em sala de aula com exemplos praacuteticos

10 ldquoA Histoacuteria eacute decorebardquo ou ldquoA Histoacuteria ensina fatos do passado natildeo do presenterdquo o senso comum e o Ensino de

Histoacuteria

Quem eacute professor de Histoacuteria em algum momento jaacute deve ter ouvido essas duas frases de alunos pais de alunos ou ateacute mesmo de diretores ou coordenadores Entretanto quando nos deparamos com as pesquisas no acircmbito do Ensino de Histoacuteria (e na aacuterea de ensino em geral) percebemos o quanto essas duas visotildees estatildeo ultrapassadas Os proacuteprios Paracircmetros Curriculares Nacionais do Ensino de Histoacuteria (PCN) desconstroem essa ideia

A construccedilatildeo de noccedilotildees interfere nas estruturas cognitivas do aluno modificando a maneira como ele compreende os elementos do mundo e as relaccedilotildees que esses elementos estabelecem entre si Isso significa dizer que quando o estudante apreende uma noccedilatildeo grande parte do que ele sabe e pensa eacute reorganizado a partir dela Na medida em que o ensino de Histoacuteria lhe possibilita construir noccedilotildees ocorrem mudanccedilas no seu modo de entender a si mesmo os outros as relaccedilotildees sociais e a Histoacuteria Os novos domiacutenios cognitivos do aluno podem interferir de certo modo nas suas relaccedilotildees pessoais e sociais e nos seus compromissos e afetividades com as classes os grupos sociais as culturas os valores e as geraccedilotildees do passado e do futuro (BRASIL 1998 p 35)

Sendo assim o Ensino de Histoacuteria deixa de se basear na mera reproduccedilatildeo dos fatos histoacutericos e a cobranccedila deles nas provas ele comeccedila a elaborar uma seacuterie de objetivos (como os proacuteprios objetivos gerais do PCN ndash BRASIL 1998 p 43) que buscam a utilizaccedilatildeo da Histoacuteria para construir pessoas criacuteticas capazes de utilizar o arcabouccedilo conceitual que possuem para discutir acerca da sua proacutepria realidade e tambeacutem modificaacute-la

Fato eacute que frequentemente nos deparamos com esses dois estereoacutetipos do Ensino de Histoacuteria os quais dificultam (mas natildeo impossibilitam) o avanccedilo da aplicaccedilatildeo da pesquisa agrave praacutetica escolar (algo tambeacutem tatildeo caro ao PCN2) Ainda nos deparamos com muitos estereoacutetipos nos livros didaacuteticos

2 ldquoNas uacuteltimas deacutecadas por diferentes razotildees nota-se uma crescente preocupaccedilatildeo dos professores do ensino fundamental em acompanhar e participar do debate historiograacutefico criando

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de Histoacuteria (como a ldquoIdade Meacutedia trevosardquo ou a ldquoinvasatildeo dos baacuterbarosrdquo) bem como agraves vezes somos pressionados como professores a fazer provas que satildeo meras verificaccedilotildees e natildeo avaliaccedilotildees (LUCKESI 2008 p 93) A Histoacuteria eacute para ser compreendida natildeo decorada por meio de um questionaacuterio E ela eacute para ser compreendida natildeo para servir de exemplo mas para fazer refletir acerca do nosso proacuteprio presente e nos fazer entender como chegamos ao ponto em que estamos

A avaliaccedilatildeo nesse sentido deixaria de se ater apenas agrave verificaccedilatildeo de um conteuacutedo fatual inculcado mas traria situaccedilotildees-problema e questotildees culturais do proacuteprio cotidiano e da realidade nacional e internacional para que o aluno pudesse aplicar os conhecimentos acerca do estudo da Histoacuteria Ele demonstraria que de fato aprendeu a pensar historicamente e a aplicar esse pensamento agrave sua realidade e natildeo apenas decorou o conteuacutedo para passar de ano

Isso natildeo significa abandonar o fato histoacuterico mas sobretudo utilizaacute-los para pensar acerca do presente e instigar o contato com a alteridade por parte do educando a fim de que ele possa assim reconhecer sua proacutepria identidade e natildeo desrespeitar ou repudiar as maneiras pelas quais o Outro constroacutei sua proacutepria identidade Esse eacute outro ponto (o respeito agraves alteridades) que toca o PCN (BRASIL 1998 p 35 e 36) de modo natildeo a simplesmente ldquoformar cidadatildeos brasileirosrdquo como era a proposta majoritaacuteria no Ensino de Histoacuteria (NADAI 2017 p 30) mas formar pessoas que tecircm o respeito como valor maacuteximo

Em tempos sombrios nos quais cada vez mais vemos um retrocesso em relaccedilatildeo ao respeito aos direitos humanos e agraves pessoas que pensamagem diferente de noacutes nos quais a liberdade de expressatildeo eacute confundida com liberdade de opressatildeo e liberdade de ofensa eacute mister que o exerciacutecio da alteridade seja um dos nortes da Educaccedilatildeo Para isso eacute preciso compreender alguns conceitos como os de identidade alteridade etnicidade e etnocentrismo Eacute por esse motivo que eacute importante na sala de aula natildeo soacute ldquopassarmos todo o conteuacutedordquo mas tambeacutem fazer os educandos refletirem acerca dos conceitos que perpassam a Histoacuteria

As conceituaccedilotildees e as noccedilotildees em vez de serem trabalhadas por meio de suas caracteriacutesticas geneacutericas assumem especificaccedilotildees histoacutericas possibilitando

aproximaccedilotildees entre o conhecimento histoacuterico e o saber histoacuterico escolar Reconhece-se que o conhecimento cientiacutefico tem seus objetivos sociais e eacute reelaborado de diversas maneiras para o conjunto da sociedade Na escola ele adquire ainda uma relevacircncia especiacutefica quando eacute recriado para fins didaacuteticosrdquo (BRASIL 1998 p 30)

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o diaacutelogo entre os sujeitos que falam pelos documentos legados ao presente e aqueles que os interpretam Nesse sentido eacute importante recuperar na Histoacuteria a historicidade dos conceitos sua relaccedilatildeo com a interpretaccedilatildeo e categorizaccedilatildeo de fenocircmenos em contextos temporais especiacuteficos (BRASIL 1998 p 82)

ldquoRevoluccedilatildeordquo ldquodescobrimentordquo ldquonacionalismordquo ldquoidentidaderdquo ldquoalteridaderdquo e ldquoetnicidaderdquo satildeo exemplos de conceitos que estatildeo presentes em vaacuterias eacutepocas em vaacuterias sociedades e inclusive na nossa proacutepria sociedade Aleacutem disso esses conceitos satildeo passiacuteveis de interpretaccedilotildees diversas revelando a reflexatildeo acerca deles bastante profiacutecua para o aluno entender melhor o que eacute a Histoacuteria e o que eacute o processo histoacuterico No entanto eacute preciso que o professor saiba lidar com esses conceitos

Se o professor natildeo tiver clareza sobre o sentido e aplicaccedilatildeo de conceitos como cidadania diferenccedila semelhanccedila permanecircncia transformaccedilatildeo questionamento convivecircncia e outros que compotildeem o vocabulaacuterio dos programas e materiais de ensino como seraacute possiacutevel conduzir ou mesmo participar de um projeto de aprendizagem (MICELI 2017 p 40 ndash grifos do autor)

Por isso eacute necessaacuterio que antes de entrarmos no meacuterito do trabalho com o conceito de etnicidade compreendecirc-lo melhor sobretudo no que tange a Greacutecia Antiga nosso foco de anaacutelise

20 O que eacute a etnicidade

Essa eacute uma pergunta sem resposta definitiva desde os anos 1960 se tenta fechar o conceito de etnicidade mas sem sucesso uma vez que essas tentativas como a de Burgess em 1978 de se cristalizar de modo estanque o conceito acaba mais por generalizaacute-lo do que defini-lo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Contudo precisamos considerar que a etnicidade diferentemente da alteridade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a origem em comum de um povo conectada com um territoacuterio especiacutefico

Eacute Fredrik Barth quem estabelece um conceito de etnicidade bastante proacuteximo do que entendemos por etnicidade o autor afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidaderdquo

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afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (2011 p 141) eacute aquele que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees raciaisrdquo

Aleacutem disso Barth enfoca justamente nos limites do grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo (LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)

Por colocar em jogo essa relaccedilatildeo entre o ldquoNoacutesrdquo e o ldquoElesrdquo eacute imprescindiacutevel aliar agraves anaacutelises eacutetnicas o par conceitual identidadealteridade Seguimos o norte teoacuterico do antropoacutelogo Marc Augeacute que natildeo enxerga esses dois conceitos de maneira diametralmente oposta mas como um par complementaacuterio a identidade natildeo existe sem definiccedilotildees de alteridade e vice-versa (AUGEacute 1998 p 28) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no contato entre os colonizadores e os nativos e procuramos reapropriar proficuamente seu arcabouccedilo conceitual para a anaacutelise do nosso objeto histoacuterico-discursivo

O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica assim como o de etnicidade o contato com outras culturas eacute imbuiacutedo de choques No entanto Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de Outro retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) O proacuteprio conectivo adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 pp 63-64) o ldquooutrordquo assemelha-se ao ldquomasrdquo ao adverso

Os estudos de etnicidade em relaccedilatildeo agrave Antiguidade grega satildeo recentes e encontraram em Edith Hall Jonathan Hall e Irad Malkin grande expressatildeo Este uacuteltimo sobretudo adentra mais ainda o tema retirando das Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) o suposto meacuterito de ter contribuiacutedo para o desenvolvimento de relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e seus Outros se debruccedilando sobre a Odisseia de Homero

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No nosso trabalho de doutorado objetivamos incluir a Iliacuteada no centro das discussotildees acerca da etnicidade tambeacutem bem como pensar a construccedilatildeo de um processo discursivo em torno da etnicidade e da identidade-alteridade em Homero Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides sendo o primeiro o arquitexto desses trecircs uacuteltimos Objetivamos analisar como as fronteiras eacutetnicas entre os gregos e seus Outros (e posteriormente entre a poacutelis ateniense e as demais sobretudo as peloponeacutesicas) satildeo construiacutedas desde as epopeias homeacutericas inclusive a Iliacuteada no bojo da relaccedilatildeo de inimizade na guerra entre troianos e aqueus

Na Odisseia de fato as relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e os seus Outros ficam mais evidentes por conta dos enfrentamentos de Odisseu com a alteridade em sua viagem de retorno a Iacutetaca Embora ele se depare com diversos povos (como os ciacutecones os lestrigotildees os lotoacutefagos e ateacute mesmo os feaacutecios que embora muito parecidos com os gregos em sua cultura resistem agrave amizade ritual elemento distintivo entre eles e os baacuterbaros no processo discursivo helecircnico) e pessoas (como Circe e Calipso que satildeo feiticeiras) que destoam do ideal de conduta e civilizaccedilatildeo gregas eacute no episoacutedio dos ciclopes que as marcas eacutetnicas entre os gregos e seus Outros ficaratildeo mais evidentes

Esse episoacutedio eacute tatildeo marcante que ele natildeo se restringe apenas ao Canto IX no qual ele eacute narrado em vaacuterios Cantos da Odisseia o Ciacuteclope reaparece mesmo que seja apenas mencionado (HOMERO Odisseia I vv 69-73 II vv 19-20 X vv 200 e 435 XII vv 209-212 XX vv 18-21 XXIII vv 312-314) Haacute uma construccedilatildeo de fronteiras eacutetnicas flagrante nesse encontro que seraacute explorada no seacuteculo V aC por Euriacutepides no seu drama satiacuterico O Ciacuteclope Eles satildeo descritos do seguinte modo por Odisseu ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεμίστων ἱκόμεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)

Polifemo eacute descrito como um monstro aos olhos do heroacutei eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) como os outros Ciclopes O Ciclope nega uma suacuteplica ao natildeo hospedar Odisseu Isso gera um estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) A consequecircncia da perdiccedilatildeo dele eacute o vazamento de seu uacutenico olho pelo heroacutei da epopeia Contudo a proacutepria hyacutebris (desmedida) de Odisseu ao se vangloriar de tal feito o faz vagar mais pelo mar ateacute conseguir chegar em sua terra natal Iacutetaca

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Para definir o que ele entende por civilizaccedilatildeo ele utiliza a definiccedilatildeo do Outro os gregos respeitam a lei porque os Outros natildeo o fazem a agricultura eacute a atividade que concede identidade aos gregos porque os Outros natildeo a praticam o patildeo eacute o alimento por excelecircncia dos gregos porque os outros natildeo cozinham o alimento nem o fabricam E assim por diante Do mesmo modo noacutes fazemos nos orgulhamos de certos traccedilos eacutetnicos porque satildeo exclusivos a noacutes no plano discursivo natildeo satildeo compartilhados com os Outros

Para levar essa discussatildeo para a sala de aula propomos a utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees Para tal devemos primeiramente definir o que entendemos por adaptaccedilatildeo e debater acerca das particularidades do uso e estudo delas

30 Consideraccedilotildees iniciais acerca da recepccedilatildeo das adaptaccedilotildees

Quando vamos ao cinema assistir a um filme baseado em um livro eacute comum sairmos frustrados acabamos chegando agrave conclusatildeo de que era melhor ter lido o livro somente Cenas satildeo cortadas ou amalgamadas os personagens e os cenaacuterios nem sempre correspondem agrave descriccedilatildeo do livro os diaacutelogos satildeo suprimidos e ou simplificados Isso ocorre porque um livro na verdade satildeo muitos livros cada vez que algueacutem o lecirc interpreta e imagina de um jeito os personagens cenaacuterios cenas diaacutelogos Eacute como se fosse um filme interior passando dentro de nossas cabeccedilas E nenhum cineasta pode estar dentro de nossas cabeccedilas para imaginar como gostariacuteamos de ver um livro representado nas telas Afinal ele mesmo imaginou e criou o mundo do livro em seus pensamentos tambeacutem

Aleacutem disso haacute a questatildeo da narrativa a dinacircmica de um livro eacute diferente da de um roteiro de cinema dos planos cinematograacuteficos que existem no discurso fiacutelmico Seguindo o mesmo raciociacutenio podemos pensar acerca das adaptaccedilotildees literaacuterias O adaptador leu o livro imaginou-o viveu todas aquelas cenas e personagens em sua mente Entretanto ele decide natildeo ficar com isso somente para si ele quer contar para crianccedilas e jovens o que leu o que imaginou o que interpretou E faz a adaptaccedilatildeo daquele livro para um puacuteblico infanto-juvenil cuja literatura demanda um outro tipo de linguagem um outro tipo de discurso diferente daquele do livro para um puacuteblico adulto ou para um puacuteblico infanto-juvenil de eacutepocas precedentes

Por conta disso as adaptaccedilotildees satildeo vistas agraves vezes como elementos empobrecedores dos claacutessicos

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A adaptaccedilatildeo das obras claacutessicas das literaturas nacional e mundial eacute um tema que desperta polecircmica e divide opiniotildees Natildeo poderia ser diferente jaacute que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo natildeo se reduz a um sentido consensual pode ser associada tanto agrave noccedilatildeo de ldquoenriquecimentordquo quanto agrave de ldquoempobrecimentordquo Geralmente argumenta-se que empobreceria as literaturas claacutessicas em virtude de um processo de atualizaccedilatildeo e de simplificaccedilatildeo que visaria a atender a puacuteblicos especiacuteficos como o infantil e o infanto-juvenil Por razotildees semelhantes tornaria possiacutevel o enriquecimento da formaccedilatildeo educativa desses puacuteblicos introduzindo obras de difiacutecil acesso cuja linguagem seria ldquocomplexardquo ou temporalmente distante da linguagem com a qual tais leitores estariam habituados Em ambos os casos a adaptaccedilatildeo seria um conceito amplo que abarcaria as mais diversas formas de linguagem como histoacuteria em quadrinhos adaptaccedilotildees cinematograacuteficas e televisivas desenhos animados audio-books e os trabalhos em forma de narrativa (AMORIM 2005 p 119)

De fato a adaptaccedilatildeo ou releitura daquele livro natildeo seraacute igual ao original assim como o filme do livro natildeo eacute igual ao livro afinal a proposta eacute diferente e os autores satildeo diferentes ldquoA reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a lsquomesma coisarsquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidaderdquo (AMORIM 2005 p 95) Se nos deparamos com uma adaptaccedilatildeo de Miguel de Cervantes William Shakespeare ou Homero natildeo satildeo mais Cervantes Shakespeare e Homero que estatildeo contando aquela histoacuteria eacute o autor da proacutepria adaptaccedilatildeo

Parece oacutebvio afirmar isso mas ainda existe uma preocupaccedilatildeo em denunciar as dissonacircncias entre a adaptaccedilatildeo e o original em detrimento de analisar os porquecircs daquelas dissonacircncias Os textos claacutessicos satildeo arquitextos tanto para as adaptaccedilotildees ou releituras quanto para outros textos que natildeo faccedilam referecircncia direta a esses claacutessicos Os temas da morte que gera vinganccedila por parte daquele que ainda vive dos erros do heroacutei que o leva ao amadurecimento do reconhecimento da bestializaccedilatildeo do ser humano do ponto fraco do heroacutei satildeo vistos inuacutemeras vezes na literatura mundial e estatildeo presentes em textos que remontam agrave Antiguidade Claacutessica Deveria ser Robinson Crusoeacute menos claacutessico que Odisseu Ou Robin Hood menos claacutessico que Paacuteris Afinal o tema da permanecircncia em lugares hostis e da descoberta do filho perdido natildeo foram criados por Defoe e Dumas respectivamente O proacuteprio Alexandre Dumas ao escrever seu As aventuras de Robin Hood estava recriando o personagem das gestas medievais que foram cristalizadas na escrita tempos depois de terem sido cantadas por seacuteculos Afinal

A reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a ldquomesma coisardquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em

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novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidade (AMORIM 2005 p 95)

40 Afinal o que eacute uma adaptaccedilatildeo

Yves Gambier logo no iniacutecio do seu artigo escreve que a adaptaccedilatildeo natildeo teve ainda algum estudo rigoroso ou sistemaacutetico sendo caracterizada sobretudo pela ldquofetichizaccedilatildeordquo do original ldquoA partir de quando podemos dizer que ela [a adaptaccedilatildeo] desfigura lsquotrairsquo o original Segundo quais normas ela se realizardquo (GAMBIER 1992 p 421 e 424)

Objetivamos pensar aqui a adaptaccedilatildeo como ldquolsquohistoacuterias recontadasrsquo reescrituras de obras claacutessicas das literaturas estrangeira e nacional direcionadas a um puacuteblico especiacutefico como o infanto-juvenilrdquo (AMORIM 2005 p 16) Satildeo ldquotextos novos construiacutedos sobre enredos antigosrdquo (FEIJOacute 2010 p 42) Essas adaptaccedilotildees natildeo deixam de ser traduccedilotildees e tambeacutem releituras uma vez que estatildeo recontando as histoacuterias originais a fim de tornaacute-las inteligiacuteveis para o sujeito destinataacuterio delas as crianccedilas e os jovens

Yves Gambier (1992 p 422) inclusive critica uma tentativa de diferenciar adaptaccedilatildeo de traduccedilatildeo mostrando que adaptaccedilatildeo pode ser concebida como a) praacutetica de ldquoadicionar eou omitir para que o texto de chegada (TC) tenha o lsquomesmo efeitorsquo que o texto de partida (TP) dando-se enfoque aos receptores (cultura e liacutengua de chegada)rdquo b) ldquofazer obra original a partir de uma outra composta no mesmo sistema de signos ou natildeordquo c) ldquotransformar um texto visando um certo leitorado por razotildees e segundo criteacuterios socioeconocircmicos declarados ou natildeordquo Desse modo inclusive ele ratifica o conceito de ldquotradaptaccedilatildeordquo de Michel Garneau que viria a eliminar as dicotomias entre a adaptaccedilatildeo e a traduccedilatildeo

O fato de o sujeito destinataacuterio delas serem crianccedilas e jovens natildeo implica que as adaptaccedilotildees sejam exclusivas a esse puacuteblico uma vez que adultos podem se tornar sujeitos receptores desses textos O contraacuterio tambeacutem acontece ldquoPode ateacute acontecer que a crianccedila entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o natildeo foi venha a preferir o segundo Tudo eacute misterioso nesse reino que o homem comeccedila a desconhecer desde que o comeccedila a abandonarrdquo (MEIRELES 2016 p 19)

As adaptaccedilotildees satildeo ldquoum tipo especial de traduccedilatildeo que envolve[m] seleccedilatildeo de conteuacutedo ndash pois resume[m] o enredo ndash e adequaccedilatildeo da linguagem para apresentar a obra escolhida aos jovens de um novo tempo e assim a tradiccedilatildeo

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se perpetua e se legitima por meio da renovaccedilatildeordquo (FEIJOacute 2010 p 44) Ela eacute a ldquoatualizaccedilatildeo de um discurso literaacuteriordquo (FEIJOacute 2010 p 63) pois ldquo[] as obras tradicionais satildeo reelaboradas ou reinterpretadas agrave luz das preocupaccedilotildees sociais morais e literaacuterias de cada momento histoacutericordquo (COLOMER 2017 p 25)

Em defesa das adaptaccedilotildees existe uma tendecircncia a se utilizar o conceito de interdiscurso3 arquitexto4 ou intertexto5 oriundos da Anaacutelise do Discurso no intuito de se dizer que assim como os diversos textos contemporacircneos utilizam os claacutessicos e natildeo satildeo criticados as adaptaccedilotildees assim tambeacutem natildeo o devem ser6 Contudo natildeo compartilhamos dessa ideia os processos interdiscursivos que perpassam os textos natildeo devem ser confundidos ou assemelhados a uma tentativa de tornar inteligiacutevel e acessiacutevel textos por parte de um puacuteblico leitor iniciante como eacute o caso da adaptaccedilatildeo

As adaptaccedilotildees geralmente (mas natildeo necessariamente) estatildeo atreladas agrave literatura infanto-juvenil Foi a partir do seacuteculo XVIII (quando uma noccedilatildeo de infacircncia comeccedila a surgir) que a literatura infanto-juvenil comeccedila a aparecer7 mas com esses fins exclusivamente exemplares Teresa Colomer (2017 p 19)

3 Interdiscurso eacute o conjunto de discursos que antecedem um texto e que o perpassam

4 O arquitexto eacute um texto claacutessico

5 Intertexto satildeo os textos que estatildeo presentes em outros textos seja por meio de citaccedilatildeo direta ou referecircncia sem necessariamente apontar a autoria original

6 ldquoEm favor da posiccedilatildeo de [Monteiro] Lobato e Nelly [Novaes Coelho] seria interessante ainda argumentar que se aceitamos o conceito de intertexto ou seja essa ideia de que a literatura se constroacutei como infinito mosaico de citaccedilotildees e influecircncias mais ou menos remotas a desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees deveria ser amenizada Afinal se eacute vaacutelida a premissa de que alguns lsquoclaacutessicosrsquo satildeo obras fundadoras ou canocircnicas que ao longo do tempo se tornam balizas significativas para um dado patrimocircnio cultural ateacute que ponto as demais obras produzidas natildeo podem ser compreendidas como contiacutenuas lsquoadaptaccedilotildeesrsquo literaacuterias dessas matrizesrdquo (CECCANTINI 2004 p 86)ouldquoSe aceitarmos a ideia de que os claacutessicos podem ser classificados como lsquotextos primeirosrsquo [esse seria o arquitexto] e dar origem indefinidamente a novos textos ndash sempre atualizados com o contexto histoacuterico em que satildeo produzidos e com puacuteblico a que se destinam ndash entatildeo poderemos pensar a adaptaccedilatildeo como um procedimento habitual e inerente agrave renovaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria como perpetuaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos cacircnonesrdquo (FEIJOacute 2010 p 43)

7 Teresa Colomer se refere aqui agrave literatura cujo sujeito destinataacuterio eram as crianccedilas e jovens Podemos entender melhor essa ideia se analisarmos as trecircs categorias de livros infantis natildeo-intencionais que Ceciacutelia Meireles (2016 p 52) distingue em 1951 1) a redaccedilatildeo escrita das tradiccedilotildees orais (como Perrault e Grimm) 2) os livros escritos para uma determinada crianccedila que depois passaram para uso geral (como La Fontaine) 3) livros natildeo escritos para crianccedilas que vieram a cair em suas matildeos e dos quais se fizeram adaptaccedilotildees visando tornaacute-los mais compreensiacuteveis ou adequados ao puacuteblico infantil

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afirma que por muito tempo a literatura voltada para crianccedilas e adolescentes focou na exemplaridade e no didatismo Natildeo que os textos antigos como Homero natildeo trouxessem coacutedigos de conduta a serem seguidos (ateacute porque esses textos eram utilizados na formaccedilatildeo dos gregos poliacuteades) mas eles natildeo foram escritos com tal propoacutesito (MEIRELES 2016 p 43)

Colomer (2017 p 20) defende que a literatura infanto-juvenil estaacute aleacutem disso ela vai ldquo1) Iniciar o acesso ao imaginaacuterio compartilhado por uma determinada sociedade 2) Desenvolver o domiacutenio da linguagem atraveacutes das formas narrativas poeacuteticas e dramaacuteticas do discurso literaacuterio 3) Oferecer uma representaccedilatildeo articulada do mundo que sirva como instrumento de socializaccedilatildeo das novas geraccedilotildeesrdquo A literatura infantil natildeo serve soacute para ensinar exemplos mas para tornar a crianccedila um leitor literaacuterio (COLOMER 2017 p 31)

Para o Ensino da Histoacuteria a primeira e a terceira funccedilatildeo satildeo essenciais para que consideremos o uso dessa literatura na sala de aula As primeiras adaptaccedilotildees inclusive foram feitas por professores (FEIJOacute 2010 p 61) Daiacute a importacircncia da atividade pedagoacutegica para o bom aproveitamento de uma adaptaccedilatildeo Para trabalhar com esse tipo de literatura eacute necessaacuterio ler o original a fim de tanto poder selecionar melhor as adaptaccedilotildees aos propoacutesitos da atividade pedagoacutegica proposta quanto trabalhar melhor com a adaptaccedilatildeo na sala de aula (FEIJOacute 2010 p 150)

No Brasil as adaptaccedilotildees se popularizaram nos anos 1970 junto com a literatura infanto-juvenil em geral (FEIJOacute 2010) Entretanto jaacute no iniacutecio do seacuteculo temos as primeiras adaptaccedilotildees literaacuterias aqui feitas por Monteiro Lobato A partir dele muitos outros autores renomados da literatura brasileira se dedicaram agrave adaptaccedilatildeo Clarice Lispector Rubem Braga Paulo Mendes Campos Ana Maria Machado Essa uacuteltima inclusive aleacutem de escrever adaptaccedilotildees refletiu acerca delas em seu Como e por que ler os claacutessicos universais desde cedo

Defendemos que a adaptaccedilatildeo natildeo pode ser tratada como literatura inferior uma vez que isso seria tratar a literatura infanto-juvenil do mesmo modo Aleacutem disso quantas pessoas natildeo comeccedilaram a ler os claacutessicos porque leram boas adaptaccedilotildees deles na infacircncia Joatildeo Luiacutes Ceccantini em 1997 escreveu para o jornal Proleitura um artigo sobre as adaptaccedilotildees de claacutessicos e afirmou que ldquoa cada adaptaccedilatildeo bem realizada de um claacutessico (nas vaacuterias linguagens) eacute grande o nuacutemero de leitores que se dirige aos textos originaisrdquo (CECCANTINI 2004 p 87) Fato este que atestei inuacutemeras vezes ao longo da minha experiecircncia como professora do Instituto de Histoacuteria da Universidade

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Federal do Rio de Janeiro quando alunos vinham me abordar para conversar sobre as epopeias homeacutericas e as trageacutedias e mostrando que o interesse deles era derivado de eles terem lido quando crianccedilas adaptaccedilotildees desses claacutessicos

A adaptaccedilatildeo manteacutem na memoacuteria o original o claacutessico mas tambeacutem gesta mudanccedilas que dialogam com a escrita contemporacircnea agrave adaptaccedilatildeo (AMORIM 2005 p 30)

As inuacutemeras adaptaccedilotildees realizadas em momentos histoacutericos distintos concretizam o postulado de que a literatura natildeo se apresenta como uma uacutenica resposta para as diferentes perguntas surgidas em cada eacutepoca porque tanto o leitor como suas inquietaccedilotildees se modificam O olhar direcionado para obra busca compreender o presente ou mesmo o passado mas a sua histoacuteria natildeo eacute a igual a dos leitores preteacuteritos logo as questotildees formuladas ao texto seratildeo outras Cabe ao adaptador sujeito histoacuterico do seu tempo compreender as indagaccedilotildees dos leitores infanto-juvenis e as possibilidades da obra ao ser adaptada de respondecirc-las (CARVALHO 2006 p 18)

Desse modo eacute mais profiacutecuo analisar as adaptaccedilotildees como textos que dialogam com seus proacuteprios contextos de produccedilatildeo natildeo com os contextos de seus originais Afinal o autor das adaptaccedilotildees eacute um sujeito receptor a posteriori que natildeo estaacute inserido no contexto dos sujeitos destinataacuterios e receptores da eacutepoca em que o claacutessico foi composto (o que natildeo impede de procurar saber acerca desse contexto devendo inclusive fazecirc-lo para que sua adaptaccedilatildeo seja de boa qualidade)

50 Colocando em praacutetica ndash algumas breves sugestotildees

Por que trabalhar com a Antiguidade Claacutessica para se falar de etnicidade Ana Maria Machado ao falar sobre a literatura claacutessica afirma que

Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade a cultura grega antiga sempre despertou o entusiasmo de leitores apaixonados em diferentes eacutepocas histoacutericas Satildeo uma fonte inesgotaacutevel onde sempre podemos beber Para muita gente eles satildeo os mais fascinantes de todos os claacutessicos Provavelmente satildeo os que mais marcaram toda a cultura ocidental (MACHADO 2009 p 26)

Contudo um outro aspecto preocupa o professor o da obrigatoriedade da leitura como algo prejudicial ao interesse do aluno Maacuterio Feijoacute (2010 p 14) e Ana Maria Machado (2009 p 13) ao escreverem sobre a questatildeo da obrigatoriedade da leitura na sala de aula defendem cada um a seu modo

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que ningueacutem deve ser obrigado a ler algo de que natildeo goste uma vez que isso pode ndash em vez de gerar o efeito pretendido que eacute fazer a crianccedila ou o jovem tomar gosto pela leitura ndash gerar o efeito inverso e fazer com que eles tenham ojeriza agrave leitura Teresa Colomer defende essa obrigatoriedade (COLOMER p 92 e 93)

[] na atualidade aumentam as vozes que defendem a responsabilidade social de oferecer aos meninos e agraves meninas o acesso a uma tradiccedilatildeo cultural compartilhada pela coletividade Isso requer a criaccedilatildeo de um horizonte de leituras ldquoclaacutessicasrdquo entendidas como um conjunto formado pelo folclore os tiacutetulos mais valorizados da literatura infantil e o iniacutecio da leitura das grandes obras universais (COLOMER 2017 p 127)

Contudo ela tambeacutem defende que essa literatura natildeo pode ser maccedilante levando em consideraccedilatildeo sempre os interesses dos alunos uma vez que eles natildeo satildeo meros receptores dos conhecimentos Para ela ldquoos melhores livros satildeo aqueles que estabelecem um compromisso entre o que as crianccedilas podem entender sozinhas e o que podem compreender por meio de um esforccedilo da imaginaccedilatildeo que seja suficientemente compensadordquo (COLOMER 2017 p 37)

Eacute fato que os poemas de Homero possuem uma linguagem a qual a crianccedila e o jovem do seacuteculo XXI podem natildeo conseguir acessar sem mediaccedilatildeo Ana Maria Machado (2009 p 11 e 12) coloca que

Eacute claro que hoje em dia o ensino eacute diferente e o mundo eacute outro Natildeo se concebe que as crianccedilas sejam postas a estudar latim e grego ou a ler pesadas versotildees completas e originais de livros antigos ndash como jaacute foi de praxe em vaacuterias famiacutelias de algumas sociedades haacute um seacuteculo Apenas natildeo precisamos cair no extremo oposto Ou seja o de achar que qualquer leitura de claacutessico pelos jovens perdeu o sentido e portanto deve ser abandonada nestes tempos de primazia da imagem e domiacutenio das diferentes telas sobre a palavra impressa em papel

Assim a mediaccedilatildeo entre os educandos e esses claacutessicos pode ser feita tanto pelos professores quanto pelas proacuteprias adaptaccedilotildees Sugerimos aqui um trabalho que conjugue ambos a adaptaccedilatildeo caminhando junto com o claacutessico A adaptaccedilatildeo sozinha natildeo daacute a dimensatildeo do claacutessico eacute preciso que noacutes mediadores conheccedilamos bem esse claacutessico para que consigamos ter um bom aproveitamento das adaptaccedilotildees

As boas adaptaccedilotildees satildeo aquelas que conseguem manter o mesmo fio condutor da obra original e traga as mesmas imagens marcantes da mesma Uma adaptaccedilatildeo da Odisseia sem o Ciclope por exemplo natildeo seria uma boa

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adaptaccedilatildeo uma vez que essa imagem eacute muito marcante ateacute mesmo dentro da proacutepria obra como jaacute vimos Sendo assim propomos aqui dois modos de trabalho com adaptaccedilotildees Contudo em ambos os casos cremos ser necessaacuterio trazer um pouco do original para que o aluno tenha dimensatildeo do claacutessico e como ele foi composto

Esse trabalho natildeo deve estar inserido no planejamento como se fosse uma mera curiosidade acerca do mundo grego antigo ele deve dialogar com o conteuacutedo programaacutetico Isso auxilia o professor nas estrateacutegias de ensino desse conteuacutedo bem como faz com que ele aproveite o tempo em sala de aula Muito se fala da questatildeo da ldquofata de tempordquo para se fazer atividades luacutedicas e diferentes com os alunos mas pouco se fala da inaptidatildeo do professor em conseguir associar essas atividades luacutedicas ao proacuteprio ensino do ldquoconteuacutedordquo em si

De fato satildeo muitos conteuacutedos para administrar em pouco tempo por isso essas atividades que a priori seriam tidas como ldquoextraclasserdquo devem ser incluiacutedas como metodologia mesmo de ensino deles Um documento (seja ele texto escrito imagem filme) natildeo deve ser utilizado para ilustrar um conteuacutedo mas para auxiliar na sua compreensatildeo Eacute possiacutevel tambeacutem utilizar esses documentos para avaliaccedilotildees fazendo com que o aluno relacione o conteuacutedo com o proacuteprio documento e estimulando-o a pensar acerca da sua proacutepria realidade a partir daquele documento A avaliaccedilatildeo resultante do trabalho com adaptaccedilatildeo natildeo deve ser o preenchimento de uma ficha de leitura ou um questionaacuterio pois isso acaba se tornando uma verificaccedilatildeo nos moldes que jaacute discutimos

Sendo assim escolhemos duas adaptaccedilotildees para trabalhar de dois modos distintos a Odisseia adaptada por Marcos Maffei e ilustrada por Eloar Guazzelli Filho para a Coleccedilatildeo Recontar (Escala Educacional 2004) e Odisseia de Homero (Segundo Joatildeo Viacutetor) de Gustavo Piqueira Em ambos os casos pensamos atividades para dois tempos de aula Existem duas opccedilotildees pedir para os alunos lerem a adaptaccedilatildeo previamente ou lecirc-la junto com eles em sala de aula apontando durante a leitura o conteuacutedo programaacutetico de Greacutecia a ser trabalhado

51 Odisseia de Marcos Maffei e Eloar Guazzelli Filho

Essa coleccedilatildeo segundo os editores foi feita para levar aos pequenos histoacuterias atemporais que continuam a divertir e ensinar O caraacuteter pedagoacutegico da literatura infantil ainda aparece aqui como norte A Odisseia especificamente eacute dividida em vinte e quatro capiacutetulos bem como a obra original eacute dividida em vinte e quatro cantos

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O intuito do adaptador eacute resumir os principais acontecimentos da Odisseia sem contudo desrespeitar a divisatildeo em cantos feita pelos saacutebios alexandrinos Sendo assim a histoacuteria segue a narrativa homeacuterica poreacutem de maneira adaptada agrave linguagem e agrave dinacircmica da narraccedilatildeo em prosa

O ideal eacute que o professor leia junto com os alunos a obra e selecione um dos capiacutetulos para trazer o canto original e lecirc-lo tambeacutem com os alunos incentivando-os a compreender as diferenccedilas entre uma narrativa e outra tanto em relaccedilatildeo ao gecircnero quanto em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees escolhidas para a contagem da histoacuteria Nesse momento eacute possiacutevel introduzir aos alunos os conteuacutedos relativos agrave literatura grega bem como o proacuteprio contexto no qual as epopeias homeacutericas estatildeo ancoradas (como o proacuteprio processo de formaccedilatildeo de apoikiacuteai ndash ldquocolocircniasrdquo ndash gregas ao longo do Mediterracircneo) O professor pode mostrar como cada povo que Odisseu encontra eacute marcado pela sua presenccedila

Propomos aqui eleger o capiacutetulo 9 referente ao canto IX o qual relata o encontro de Odisseu com o Ciclope Eacute um dos capiacutetulos mais extensos do livro e que traz a seguinte caracterizaccedilatildeo do Ciclope

Fomos entatildeo parar noutra ilha onde havia aacutegua e muitas cabras Dali se via uma terra que parecia habitada e no dia seguinte decidi ir ateacute laacute soacute com meu navio Ancoramos onde havia uma grande caverna Escolhi doze de meus homens e fomos ateacute ela levando odres de vinho para ter algo a oferecer Na enorme caverna havia cestos cheios de queijos e cercados com filhotes de ovelhas e cabras mas seu dono levara seus rebanhos para pastar Ele natildeo demorou a chegar com um feixe de lenha tatildeo grande que fez um estrondo ao ser largado no chatildeo e corremos a nos esconder pois era um Ciclope um gigante enorme de um olho soacute Ele fechou a caverna com uma pedra imensa e muito pesada e ao acender o fogo nos viu e perguntou com sua voz tremenda quem eacuteramos (MAFFEI 2004 p 20)

Aqui o exagero (no corpo na voz nos atos do Ciclope) eacute reiterado vaacuterias vezes a fim de mostrar a monstruosidade do personagem A imagem do pelṓrios eacute aqui evidente bem como nas ilustraccedilotildees que os mostram extremamente gigantes frente aos navios gregos O texto continua de modo a narrar como o Ciclope devora os homens de Odisseu reiterando a imagem de que ele natildeo eacute um ldquohomem comedor de patildeordquo Esses satildeo os signos de etnicidade e alteridade que se repetem na adaptaccedilatildeo

No texto de Homero (IX vv 176-301) outros elementos se destacam como a dicotomia entre o cru e o cozido (com a presenccedila da fumaccedila dos fornos) o desconhecimento das leis a convivecircncia em comunidade e a ausecircncia

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de amizade ritual Todos esses elementos tecircm a ver com a construccedilatildeo da dicotomia entre o grego e seus Outros e mais tarde entre o grego e o baacuterbaro

A terra dos ciclopes que perto viviam observaacutevamossua fumaccedila e o som de ovelhas e cabrasQuando o sol mergulhou e vieram as trevasentatildeo repousamos na rebentaccedilatildeo do marQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosentatildeo eu realizando assembleia disse entre eleslsquoOs outros voacutes aqui ficai meus leais companheirosmas eu com minha nau e meus companheirosvou verificar esses homens de que tipo eles satildeose desmedidos selvagens e natildeo civilizadosou hospitaleiros com mente que teme o deusrsquoDito isso embarquei e pedi aos companheirosque tambeacutem embarcassem e os cabos soltassemLogo embarcaram e sentaram-se junto aos calccedilose alinhados golpeavam o mar cinzento com remosMas ao chegarmos a esse lugar que perto ficavalaacute vimos no extremo uma caverna junto ao maralta agrave sombra de loureiros Laacute grande rebanhoovelhas e cabras pernoitava em torno cercaalta se construiacutera com blocos de uma pedreiracom grandes pinheiros e carvalhos alta-copaLaacute pernoitava um varatildeo portentoso ele que o rebanhosozinho apascentava afastado aos outros natildeovisitava mas longe vivendo normas ignoravaDe fato era um assombro portentoso natildeo pareciaum varatildeo come-patildeo mas um pico matosodos altos montes que surge soacute longe dos outrosEntatildeo aos demais leais companheiros pedique laacute junto agrave nau ficassem e guardassem a naumas eu apoacutes escolher doze nobres companheirosfui Levava um odre de cabra com vinho escurodoce que me dera Maacuteron filho de Euantessacerdote de Apolo que zela por Ismarosporque junto com filho e esposa noacutes o protegemosvenerando-o pois habitava bosque arvorejadode Febo Apolo Deu-me presentes radiantesde ouro bem trabalhado sete pesos me deume deu acircnfora toda de prata e depoisvinho em doze acircnforas dupla-alccedila ao todo verteudoce puro bebida divina A esse ningueacutemconhecia nem escravo nem criado em sua casasoacute ele proacuteprio a cara esposa e uma soacute governantaQuando algueacutem bebesse esse vinho tinto doce como melenchia um caacutelice e doze medidas de aacutegua

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vertia um doce aroma da acircnfora emanavaprodigioso entatildeo impossiacutevel seria abster-seEu trazia um grande odre cheio dele e tambeacutem acepipesno alforje logo meu acircnimo orgulhoso pensouque encontraria varatildeo vestido com grande bravuraselvagem natildeo conhecendo bem tradiccedilotildees nem normasCeacuteleres nos dirigimos ao antro e dentro natildeoo achamos mas apascentava no pasto gordos rebanhosApoacutes chegar ao antro a tudo contemplamoscestos abarrotados de queijo cercados repletosde ovelhas e cabritos separados por categoriasencerrados agrave parte os mais velhos agrave parte medianosagrave parte filhotes Todas as vasilhas transbordavam de soroe baldes e tigelas fabricadas com as quais ordenhavaLaacute os companheiros suplicaram-me para primeiropegar algum queijo e voltar e depoisligeiro ateacute a nau veloz cabritos e ovelhasdos cercados arrastar e navegar pela aacutegua salgadamas natildeo obedeci (e teria sido muito mais vantajoso)para poder vecirc-lo esperando que me desse regalosPois apoacutes surgir natildeo seria amaacutevel com os companheirosTendo laacute aceso o fogo sacrificamos e tambeacutem noacutescomemos parte do queijo e dentro o esperamossentados ateacute voltar com ovelhas trazia ponderoso pesode madeira seca que seria usado para seu jantarLanccedilando-o fora do antro produziu um estrondonoacutes com medo recuamos ateacute o fundo do antroEle agrave ampla gruta tocou o gordo rebanhotantas quantas ordenhava e os machos deixou foracarneiros e bodes no exterior atraacutes da alta cercaEntatildeo ergueu e pocircs na entrada grande rochaponderosa a ela nem vinte e dois carrosoacutetimos de quatro rodas solevariam do solotal rochedo alcantilado colocou na entradaSentado ordenhava ovelhas e cabras balentestudo com adequaccedilatildeo e pocircs um filhote sob cada umaLogo metade do branco leite separou para coalhare pocircs os coalhos apoacutes juntaacute-los em cestos tranccediladosmetade laacute colocou em barris para que estivessedisponiacutevel para ele beber em seu jantarMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zeloentatildeo ao acender o fogo viu-nos e perguntoulsquoEstranhos quem sois Donde navegastes por fluentes viasAcaso devido a um assunto ou levianos vagaistal qual piratas ao mar Esses vagamarriscando suas vidas levando dano a gentes alheiasrsquoAssim falou e nosso coraccedilatildeo rachou-se

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atemorizados com a voz pesada e o portento em siMesmo assim com palavras respondendo disse-lhelsquoNoacutes aqueus vindos de Troia vagamos longe do cursodevido a todos os ventos pelo grande abismo de mare ansiando ir para casa por outra rota outros percursosviemos assim talvez Zeus quis armar um planoTropa de Agamecircmnon filho de Atreu proclamamos serdesse cuja fama eacute agora a maior sob o paacuteramodevastou grande cidade e tropas dilaceroumuitas Noacutes poreacutem chegando a esses teus joelhosnos dirigimos esperando nos hospedares bem ou mesmodares um regalo o que eacute costume entre hoacutespedesMas respeita os deuses poderoso somos teus suplicantesZeus eacute o vingador de suplicantes e hoacutespedeso dos-hoacutespedes que respeitaacuteveis hoacutespedes acompanharsquoAssim falei e logo respondeu com impiedoso acircnimolsquoEacutes tolo estrangeiro ou vieste de longetu que me pedes aos deuses temer ou evitarOs ciclopes natildeo se preocupam com Zeus porta-eacutegidenem com deuses ditosos pois somos bem mais poderososnem eu para evitar a braveza de Zeus a ti poupariaou a teus companheiros se o acircnimo natildeo me pedisseMas dize-me onde aportaste a nau engenhosaalgures no extremo ou perto preciso saberrsquoAssim falou testando-me e eu bem arguto percebirespondendo disse-lhe com palavras ardilosaslsquoMinha nau sucumbiu a Posecircidon treme-solocontra rochedo lanccedilou-a nos limites de vossa terralevando-a rumo ao cabo vento trouxe-a do marMas eu com esses aiacute escapei do abrupto fimrsquoAssim falei e natildeo me respondeu com impiedoso acircnimomas de suacutebito sobre os companheiros estendeu as matildeose tendo dois agarrado como cachorrinhos ao chatildeoarrojou-os miolos escorriam no chatildeo e molhavam o soloApoacutes cortaacute-los em pedaccedilos aprontou o jantarcomia-os como leatildeo da montanha e nada deixouviacutesceras carnes e ossos cheios de tutanoNoacutes aos prantos erguemos os braccedilos a Zeusvendo o feito terriacutevel e a impotecircncia deteve o acircnimoMas quando o ciclope encheu o grande estocircmagoapoacutes comer carne humana e depois beber leite purodeitou-se no antro esticando-se entre o rebanhoConsiderei no eneacutergico acircnimo dele chegarmais perto puxar a espada afiada da coxae golpear no peito onde o diafragma segura o fiacutegadoapoacutes alcanccedilar com a matildeo mas outro acircnimo impediuLaacute mesmo tambeacutem noacutes nos finariacuteamos em abrupto fimda alta entrada natildeo teriacuteamos conseguido no braccedilo

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afastar a ponderosa pedra que laacute depositaraAssim gemendo aguardamos a divina AuroraQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosele acendeu o fogo e ordenhou esplecircndido rebanhotudo com adequaccedilatildeo e sob cada fecircmea deixou o filhoteMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zelode novo ele agarrou dois de noacutes e o almoccedilo preparou8

O interessante eacute aleacutem de destacar esses elementos poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais da Greacutecia Antiga fazer o aluno pensar instigando-o a reconhecer os elementos de diferenciaccedilatildeo entre o grego e o Outro dentro das duas narrativas (a adaptaccedilatildeo e o canto IX) Aleacutem disso podemos incitaacute-lo a uma discussatildeo atual o que diferencia o brasileiro do estrangeiro hoje O que caracteriza a nossa cultura Qual tem sido a nossa postura em relaccedilatildeo aos estrangeiros dentro do nosso paiacutes Nossas fronteiras eacutetnicas satildeo as mesmas dos gregos Por quecirc

52 A Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor)

O livro de Gustavo Piqueira talvez seja uma das recontagens da Odisseia menos convencionais com ilustraccedilotildees dele mesmo traz a histoacuteria da Odisseia contada pelos olhos de Joatildeo Viacutetor aluno de recuperaccedilatildeo do 6ordm ano do Ensino Fundamental II (e pela construccedilatildeo do personagem ao longo da narrativa de famiacutelia conservadora e de classe meacutedia) que precisa ler esse eacutepico para entregar um trabalho final e conseguir finalmente passar de ano O problema eacute que em vez de retirar na biblioteca da escola uma adaptaccedilatildeo (como fez seu amigo Fumaccedila) ele vai com o claacutessico original para casa

Ao longo de todo o livro Joatildeo Viacutetor se depara com situaccedilotildees completamente estranhas para ele que rendem comentaacuterios jocosos de sua parte Em caixa normal temos a recontagem feita pelo aluno mas em negrito e itaacutelico temos os comentaacuterios dele aos episoacutedios que ele narra o que nos possibilita conhecer a personalidade dele e o mundo em que ele vive Logo na capa do trabalho (PIQUEIRA 2013 p 7) o aluno se vecirc obrigado a colocar ldquoResumo e interpretaccedilatildeo do livro Odisseia escrito por Homero da Silvardquo visto que ldquona ediccedilatildeo que peguei na biblioteca natildeo havia sobrenome do autor apenas o primeiro nome Homero Como todo mundo tem sobrenome coloquei um bem comumrdquo

Logo na narrativa do Canto I vemos uma situaccedilatildeo que inspira reflexotildees acerca do etnocentrismo e da alteridade Joatildeo Viacutetor natildeo reconhece o politeiacutesmo

8 Traduccedilatildeo de Christian Werner

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grego questionando Homero Afinal natildeo existe ldquoUm deus chamado Poseidonrdquo porque ldquoDeus soacute tem um e ele se chama Deus mesmo E seu filho natildeo eacute nenhum lsquociclope Polifemorsquo mas Jesus Que ateacute o Fumaccedila sabe foi crucificado natildeo cegadordquo (PIQUEIRA 2013 p 16) Adiante (PIQUEIRA 2013 p 17) ele reafirma que ldquopelo visto neste livro tem um punhado de deuses entatildeo natildeo vou mais discuti ok Se Homero da Silva natildeo sabe que soacute existe um Deus problema dele Eacute tarde da noite tenho o livro inteiro para ler e preciso passar de anordquo

Pode parecer a priori que eacute apenas uma crianccedila que desconhece o politeiacutesmo e se vecirc estranhando a religiatildeo do Outro no entanto a postura de Joatildeo Viacutetor eacute combativa reafirmando suas crenccedilas em detrimento da tentativa de contemplaccedilatildeo e compreensatildeo do Outro A ideia de que existe uma religiatildeo uacutenica e verdadeira denota como o etnocentrismo estaacute entranhado na visatildeo de Joatildeo Viacutetor (mesmo que ele natildeo tenha consciecircncia de que estaacute sendo etnocecircntrico) Eacute esse tipo de visatildeo preconceituosa (no sentido mesmo do termo de preacute-julgar) que deve ser questionada em sala de aula e levada agrave reflexatildeo

No entanto ao continuar a descriccedilatildeo do Canto I ele se depara com Athenaacute se transformando em Mentes um homem e fica confuso ldquoProfessora estou na duacutevida se chamo Atena de lsquoorsquo ou lsquoarsquo agora que ela mudou de sexo O que devo fazer Hoje em dia eacute um assunto tatildeo delicado natildeo quero soar preconceituosordquo (PIQUEIRA 2013 p 17) As questotildees de gecircnero satildeo mais palpaacuteveis para Joatildeo Viacutetor do que as questotildees de etnicidade uma vez que ele tem a sensibilidade de querer saber como ele deveria identificar Athenaacute que na sua visatildeo seria um transgecircnero O adaptador aqui mostra que os debates acerca desse tipo de intoleracircncia satildeo mais frequentes na sociedade

O Canto IX eacute um dos mais extensos (satildeo 6 paacuteginas escritas e mais 3 de ilustraccedilotildees) Eacute interessante perceber como a construccedilatildeo da cena do Ciacuteclope se daacute de modo diverso em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees precedentes e o proacuteprio texto homeacuterico No livro Joatildeo Viacutetor vecirc Odisseu como um malfeitor

Ulisses revela a Alciacutenoo sua identidade e comeccedila a contar tudo que lhe aconteceu desde que deixara Troia Primeiro deu uma passada em Iacutesmaro onde saqueou cidades e chacinou homens aleacutem de tomar mulheres e tesouros que dividiu com os outros para que ningueacutem reclamasse Ou seja bandido Natildeo haacute outra palavra para definir Ulisses a natildeo ser essa professora Denise Ladratildeo assassino e sequestrador Bandido E o pior conta seus crimes tranquilatildeo ldquoChacinei homens levei suas mulheresrdquo Como pode professora Eacute muita impunidade natildeo Muita Meus pais vivem comentando sobre isso aqui em casa Dizem que

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os ricos cometem as maiores barbaridades e sempre se safam Que moramos no paiacutes do colarinho branco Pelo visto Ulisses tambeacutem tinha costas quentes Do contraacuterio natildeo arriscaria tagarelar por aiacute suas falcatruas (PIQUEIRA 2013 p 62)

O interessante perceber eacute que aqui diferentemente da Odisseia original e da adaptaccedilatildeo que trabalhamos anteriormente natildeo haacute uma tentativa de reforccedilar as fronteiras eacutetnicas gregas Joatildeo Viacutetor critica o ldquoGreek way of liferdquo pondo em xeque tanto a ideia de civilizaccedilatildeo dentro do poema quanto a imagem do heroacutei na Greacutecia Antiga Como assim ser um heroacutei implica em praticar atitudes que hoje em dia seriam condenaacuteveis Daiacute a importacircncia de retornar a esse original a fim de que os alunos compreendam o porquecirc dessa mudanccedila

Os ciclopes satildeo descritos como ldquohorriacuteveis gigantes de um olho soacuterdquo (PIQUEIRA 2013 p 63) o Ciclope como um ldquomedonho giganterdquo (PIQUEIRA 2013 p 67) reforccedilando a ideia da monstruosidade deles Contudo Joatildeo Viacutetor ao comentar a atitude do Ciclope de devorar amigos de Odisseu escreve ldquoQuem mandou entrar de bico na casa dos outros Daacute nissordquo (PIQUEIRA 2013 p 67) As atitudes de Odisseu e de seus companheiros satildeo bastantes questionadas mostrando o estranhamento do menino em relaccedilatildeo agrave cultura helecircnica

Nessa adaptaccedilatildeo podemos chamar a atenccedilatildeo para a proacutepria construccedilatildeo de civilidade dentro de ambas sociedades a helecircnica arcaica (em Homero) e a brasileira do seacuteculo XXI (na adaptaccedilatildeo a realidade de Joatildeo Viacutetor) mostrando como mudaram as nossas noccedilotildees de civilidade barbaridade e fronteiras eacutetnicas ao longo do tempo histoacuterico Em vez de uma repulsa ao Ciclope aqui vemos uma empatia pautada pelo desconhecimento de Joatildeo Viacutetor das fronteiras eacutetnicas helecircnicas e do ideal de civilizaccedilatildeo construiacutedo por eles com a legitimaccedilatildeo dessas fronteiras Aleacutem disso ela eacute interessante para discutir a nossa proacutepria relaccedilatildeo de alteridade em relaccedilatildeo aos gregos a fim de desconstruir o etnocentrismo presente em nossas concepccedilotildees contemporacircneas

60 Consideraccedilotildees finais

Em virtude do apresentado pudemos concluir que eacute imprescindiacutevel abordar conceitos no Ensino da Histoacuteria a fim de que o aluno possa melhor compreender e modificar de maneira mais efetiva o seu cotidiano Por isso defendemos a abordagem do conceito de etnicidade na sala de aula mas sem antes reforccedilar que o professor deve ele mesmo compreender bem o conceito antes de trabalhar com ele

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Do mesmo modo o professor deve conhecer bem os textos claacutessicos com os quais ele quer trabalhar mesmo que ele vaacute utilizar adaptaccedilotildees Aleacutem disso vemos como eacute importante a leitura como Ana Maria Machado (2009 p 13) colocou ler eacute uma forma de resistecircncia sendo a utilizaccedilatildeo de textos imprescindiacutevel para a formaccedilatildeo natildeo somente de um leitor literaacuterio mas de uma pessoa criacutetica e consciente

[] a forccedila educativa da literatura reside precisamente no que facilita formas e materiais para essa ampliaccedilatildeo de possibilidades permite estabelecer uma visatildeo distinta sobre o mundo pocircr-se no lugar do outro e ser capaz de adotar uma visatildeo contraacuteria distanciar-se das palavras usuais ou da realidade em que algueacutem estaacute imerso e vecirc-lo como se o contemplasse pela primeira vez (COLOMER 2017 p 21)

A boa adaptaccedilatildeo nesse sentido ajuda a perpetuar na memoacuteria o claacutessico ldquoComo entatildeo se daacute a real permanecircncia da obra literaacuteria Ora pela conquista de novos leitores A adaptaccedilatildeo constitui uma estrateacutegia para apresentar a uma nova geraccedilatildeo de leitores um discurso literaacuterio legitimado pela instituiccedilatildeo escolarrdquo (FEIJOacute 2010 p 43) Assim como Odisseu o aluno ao ler viaja por mundos Outros que o faz refletir acerca de sua proacutepria realidade ao conhecer outras realidades

Utilizar a Histoacuteria Antiga para abordar um conceito tatildeo caro a noacutes cotidianamente que vemos nos noticiaacuterios as empreitadas dos refugiados para fugirem das guerras e serem recebidos de maneira deploraacutevel em diversos paiacuteses as tensotildees crescentes entre diversas etnias ao redor do mundo e a nossa proacutepria falta de sensibilidade agraves vezes em compreender o Outro em sua cultura e etnicidade mostra como cada vez mais eacute necessaacuterio retornar ao claacutessico para pensarmos o contemporacircneo A Histoacuteria Antiga ainda natildeo estaacute ultrapassada

Abstract We propose to think how to enter the ethnicity and ethnocentrism theme in classrooms by using adaptations of the Antiquity classics To accomplish this aim it is necessary to establish some criteria to use this kind of literature which still generates debates on its profitability as well as to define ethnicity We will start with the following concepts ethnicity (as Fredrik Barth pointed it) and identity-otherness (as Marc Augeacute does) in order to propose some activities with selected adaptationsKeywords History Teaching literary adaptations ethnicity

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O Ensino de Histoacuteria e a criaccedilatildeo do fato Satildeo Paulo Contexto 2017 p 27-35PIQUEIRA G Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor) Satildeo Paulo Editora

Gaivota 2013POUTIGNAT Ph STREIFF-FENART J Teorias da etnicidade Seguido de

Grupos eacutetnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth Satildeo Paulo Ed UNESP 1998

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COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeO AS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacute-TICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA

Alexandre Santos de Moraes1

Resumo O objetivo desse artigo eacute observar as tensotildees entre Aquiles e Agamecircmnon atraveacutes do binocircmio conceitual competiccedilatildeocooperaccedilatildeo Busca-se entender natildeo apenas as variaacuteveis dessa oposiccedilatildeo mas tambeacutem como as ideias de competiccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo que se instauram ao longo da querela sugere um modo de ser eacutetico-poliacutetico que distingue os heroacuteisPalavras-chave Competiccedilatildeo Cooperaccedilatildeo Aquiles Agamecircmnon Iliacuteada

Do ponto de vista conceitual cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo satildeo duas ideias tatildeo abrangentes que escapam ao monopoacutelio das aacutereas do saber institucionalizadas Natildeo haacute nenhuma poliacutecia acadecircmica que resguarde para si e para seus escolhidos a possibilidade de uso desse binocircmio que parece anunciar natildeo apenas um modelo de entendimento de dinacircmicas sociais mas verdadeiramente um modo de ser eacutetico-poliacutetico no mundo

Veja por exemplo que do ponto de vista comercial estimula-se mecanismos de competiccedilatildeo entre os funcionaacuterios para impulsionar as vendas ao mesmo tempo em que se defende disposiccedilotildees cooperativas que estimulem a coesatildeo do grupo para que haja o que vender (MACEDO 1961 p 105) Tal vieacutes no marco da Nova Sociologia Econocircmica identifica a dificuldade de correlacionar cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo entre empresas e o papel do Estado como seu guardiatildeo e criador2 O tema eacute complexo e natildeo se dispotildee na visatildeo de muitos analistas agrave polarizaccedilatildeo que defende os males e benefiacutecios de uma e outra como dado essencial bem como o valor estrutural que cada uma das

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) E-mail asmoraesgmailcom

2 Veja por exemplo o debate presente em FLIGSTEIN Neil Markets as politics political-cultural approach to market institutions In American Sociological Review v 61 1996

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disposiccedilotildees parece ensejar em um ambiente especiacutefico Marx por exemplo identificava que a cooperaccedilatildeo era instrumento fundamental para organizar o trabalho no mundo capitalista (MARX 1980 p 347) diferentemente do que pensam muitos defensores do (neo)liberalismo para os quais a concorrecircncia (identificada com a competiccedilatildeo) eacute beneacutefica a todos em um ambiente de mercado autorregulado regido por entes privados que supostamente conspiram ao lado de seus lucros pessoais para uma situaccedilatildeo de bem-estar social3

Para aleacutem do pensamento econocircmico as anaacutelises acerca de competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo frequentemente debatidas no marco dos princiacutepios organizativos de grupos e agrupamentos estimulando pesquisas em diversas aacutereas das Ciecircncias Humanas e Sociais Some-se a elas as pesquisas sobre Evoluccedilatildeo que avaliam as habilidades de indiviacuteduos de diversas espeacutecies em especial dos hominiacutedeos e de primatas natildeo-humanos4 Em muitos casos haacute uma evidente ecircnfase no princiacutepio cooperativo (ou altruiacutesta ou de solidariedade muacutetua) que atuaria no fundamento de nossa proacutepria existecircncia

Obviamente diante da variedade vertiginosa de possibilidades de entendimento desse binocircmio eacute preciso fazer algumas escolhas Por princiacutepio ao longo desse artigo consideraremos que 1) Competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo disposiccedilotildees atitudinais que envolvem sujeitos ou grupos em funccedilatildeo de objetivos especiacuteficos 2) Atitudes cooperativas e competitivas natildeo representam aspectos gerais do modus vivendi especiacutefico de uma ou outra formaccedilatildeo social ou seja natildeo haacute comunidades que sejam exclusivamente competitivas eou cooperativas 3) disposiccedilotildees cooperativas eou competitivas satildeo por princiacutepio situacionais ainda que haja mecanismos sociais que ensejem uma ou outra postura em determinadas situaccedilotildees 4) Ainda que haja discordacircncias identificamos a tendecircncia de associar a uma disposiccedilatildeo cooperativa a prevalecircncia do bem comum sobre o individual e na competitiva a valorizaccedilatildeo do individual em detrimento do bem comum e por fim 5) em determinado evento ou acontecimento grupos e sujeitos natildeo apresentam necessariamente um padratildeo de disposiccedilotildees coeso podendo variar em funccedilatildeo das circunstacircncias e objetivos almejados

O caso de um conflito armado envolvendo diferentes grupos eacute bastante elucidativo Em uma guerra por princiacutepio haacute pelo menos duas partes

3 Eacute possiacutevel ateacute mesmo identificar a defesa da competiccedilatildeo como um discurso de competecircncia fundado em caracteriacutesticas psicoloacutegicas O debate eacute longo e repleto de variaacuteveis (BENDASSOLLI 2001 p 65-76 NEVES 2009)

4 Nos uacuteltimos anos tem se delineado um especial interesse pela loacutegica cooperativa explorada em diversos trabalhos A tiacutetulo de referecircncia sobre esse debate vale consultar AXELROD 1997 HAMMERSTEIN 2003 MARSHALL 2010 PATTON 2009 WILLER 2009

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que competem entre si para alcanccedilar um objetivo Na ausecircncia de acordos diplomaacuteticos o sucesso de uma parte depende necessariamente do fracasso da outra parte Tomando isoladamente cada uma das partes haacute tambeacutem o pressuposto de que eacute necessaacuterio existir uma razoaacutevel coesatildeo entre seus membros para que o objetivo final qual seja a superaccedilatildeo do adversaacuterio seja alcanccedilado de tal modo que em um ambiente de batalha os integrantes de um mesmo exeacutercito precisam cooperar entre si Essa loacutegica geral contudo natildeo resiste necessariamente a situaccedilotildees que provocam disputas internas produzindo ruiacutedos entre os agentes quando haacute disposiccedilotildees contraacuterias que fazem exceder nas relaccedilotildees imediatas o fim uacuteltimo por que conspiram em suas accedilotildees conjuntas

Com base nesse exemplo quando fazemos a remissatildeo agrave experiecircncia dos povos antigos a lembranccedila imediata confunde-se tambeacutem com a narrativa mais recuada de que temos notiacutecia e que se desvela diante de noacutes como um excelente campo de experimentaccedilatildeo Na Iliacuteada a dissenccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon natildeo eacute apenas o substrato discursivo que assegura a coerecircncia e a loacutegica interna do poema mas tambeacutem a proacutepria manifestaccedilatildeo do nuacutecleo narrativo do eacutepico que conduz com os auspiacutecios dos deuses os eventos ulteriores na Guerra de Troacuteia Mais do que indicar os efeitos da dissensatildeo suas consequecircncias e caracteriacutesticas eacute desejaacutevel analisar o binocircmio competiccedilatildeocooperaccedilatildeo no marco de uma separaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica que o antecede e que parece situar os heroacuteis em duas formas distintas de ser no mundo Tais formas representam um topos que enseja por forccedila da incompletude dos proacuteprios sujeitos uma espeacutecie de ldquogatilhordquo o possiacutevel estopim para o conflito interno sempre que a poliacutetica entra em estado de falecircncia

Somos levados a conhecer logo nos versos prologais o anuacutencio da coacutelera (μῆνις) de Aquiles A causa como bem se sabe tem a ver com um ruiacutedo envolvendo os privileacutegios em torno da divisatildeo do butim de guerra Apoacutes o saque a Tebas foram recolhidos os despojos e os aqueus dividiram-nos entre si A Agamecircmnon coube Criseida filha de Crises sacerdote de Apolo ao passo que a Aquiles coube Briseida Daacute-se que o pai de Criseida o velho Crises suplicou aos aqueus que devolvessem sua filha em troca do pagamento de um resgate mas teve seu pedido negado Mais do que isso Agamecircmnon o mandou embora com aacutesperas palavras O anciatildeo recorreu agrave Apolo e pediu que tal ofensa seja retaliada ldquoQue paguem com tuas setas os Dacircnaos as minhas laacutegrimasrdquo (HOMERO Iliacuteada I v 42)

O pedido foi acolhido pelo deus Por nove dias as setas faziam as piras arderem continuamente na cremaccedilatildeo dos mortos Tambeacutem uma peste atingiu o acampamento aqueu Tatildeo grave era a situaccedilatildeo que por influecircncia de Hera

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uma assembleia foi convocada para discutirem e buscarem remeacutedio para tais males Aquiles tomou a palavra e sugeriu para que natildeo voltassem frustrados a casa que o adivinho Calcas fosse consultado para que todos soubessem atraveacutes de sua videcircncia como solucionar a querela Calcas tergiversou e disse ter receio de encolerizar ldquoaquele que rege poderoso os Argivos e a quem obedecem os Aqueusrdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 78-79) Aquiles assegurou sua fala e disse que iria protegecirc-lo Calcas entatildeo diz que Agamecircmnon deveria abrir matildeo de Criseida Tem iniacutecio a querela

Eacute preciso aqui esclarecer brevemente os sentidos da reaccedilatildeo de Agamecircmnon Uma vez conquistada a vitoacuteria e tendo sido pilhada uma cidade derrotada os produtos do saque satildeo colocados em comum para serem divididos Eacute o momento oportuno de observar os privileacutegios (γέρεα) que cabem aos sujeitos mais destacados assegurando a ldquoparte de honrardquo (τιμή) que toca cada um e seu precircmio (γέρας) correspondente5 O precircmio de Agamecircmnon ndash no caso Criseida ndash representava natildeo somente um bem de valor material mas tambeacutem e principalmente um siacutembolo de prestiacutegio a marca de deferecircncia que permite que o grupo o identifique como um sujeito de destaque Sua outorga visa reforccedilar publicamente a distinccedilatildeo social do outorgado O geacuteras6 portanto ratifica a posiccedilatildeo de soberania e atua para demarcar do ponto de vista das estruturas altamente hierarquizadas de poder a coesatildeo interna desse proacuteprio grupo7 A preocupante condiccedilatildeo de ἀγέραστος ldquodesprovido de precircmiordquo eacute vista como uma afronta grave agrave economia de prestiacutegio e agrave honra do heroacutei

A honra como aposta Finley (1958 p 143) em seu bem conhecido trabalho eacute um valor sobretudo competitivo ldquoEn la naturaleza del honor estaacute

5 Como diz Neyde Theml (1995 p 150) ldquoo exerciacutecio do poder real eacute em Homero resultado de acumulaccedilotildees de geacuterea privileacutegios que distinguem o rei com seus direitos e deveres para com a comunidade global Os γέρεα reais na Iliacuteada satildeo de 4 tipos a parte de honra (timeacute) sobre o botim praacuteticas especiais no banquete um teacutemenos presentes (dons e contra-dons) e direitos especiaisrdquo

6 Os sentidos de γέρας eacute importante frisar vatildeo muito aleacutem da loacutegica associada a um bem material Tambeacutem pode significar num sentido imaterial ldquoprerrogativardquo ou ldquoprivileacutegio honoriacuteficordquo A tiacutetulo de exemplo Neacutestor diz que por ser idoso natildeo teria meios de participar ativamente do combate como participava outrora mas que incitaria os guerreiros e com suas decisotildees e palavras afinal ldquoeacute esse o privileacutegio dos anciatildeosrdquo - τὸ γὰρ γέρας ἐστὶ γερόντων (HOMERO Iliacuteada IV v 323)

7 E natildeo custa recordar as epopeias apresentam ldquouma sociedade notadamente dividida em dois estratos de um lado os basileis os nobres os ricos proprietaacuterios de um domiacutenio de terra do oicirckos os chefes de guerra que ocupam o topo da hierarquia social e deteacutem os privileacutegios e as honras e do outro lado a massa de homens comuns O proacuteprio gecircnero da epopeia por ser destinado por princiacutepio a um puacuteblico aristocraacutetico obviamente faz com que o interesse dos poetas se associem essencialmente aos fatos e gestos dos basileisrdquo (SCHEID-TISSINIER 2002 p 1)

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que tiene que ser exclusivo o por lo menos jeraacuterquico Si todos adquieren igual honor no hay honor para ninguno Asiacute el mundo de Odiseo era necessariamente de fiera competecircncia porque cada heacuteroe luchava para sobrepasar a los otrosrdquo Ainda que Finley esteja correto essa natureza competitiva se aplica a um tipo de disputa que presume um ambiente belicoso em que dois adversaacuterios se enfrentem sendo outrossim incapaz de explicar as tensotildees em torno da timeacute em que supostos aliados como Aquiles e Agamecircmnon se percebem envolvidos como bem observou Margalit Finkelberg (1998 p 16) A visatildeo de Finley presume a competiccedilatildeo exclusivamente envolvendo adversaacuterios e natildeo sujeitos do mesmo grupo Como adiantamos as disposiccedilotildees competitivas e cooperativas satildeo situacionais o que exige uma observaccedilatildeo atenta de sua manifestaccedilatildeo

Em uma situaccedilatildeo corriqueira uma vez distribuiacutedos os butins de guerra a posse dos gerea seria respeitada e ningueacutem por princiacutepio deveria devolver o lote de honra que recebeu A crise que a fuacuteria apoliacutenea inaugura exige que haja uma revisatildeo da distribuiccedilatildeo que tendencialmente seria irreversiacutevel de tal modo que aleacutem das setas que matam e da peste que adoece Apolo tambeacutem instaura a discoacuterdia que enfraquece Agamecircmnon que eacute absolutamente consciente de seus privileacutegios se vecirc obrigado a revecirc-los para cooperar com a mesma coletividade que os assegura O Atrida poreacutem tenta fazecirc-lo conciliando o inconciliaacutevel Em resposta a Calcas apoacutes acusaacute-lo de soacute profetizar desgraccedilas diz

ldquoMas apesar disso restituiacute-la-ei se for isso a coisa melhor Quero que o povo seja salvo de preferecircncia a que pereccedila Mas preparai pra mim outro precircmio para que natildeo seja soacute eu entre os Argivos que fico sem precircmio pois tal seria indecoroso Pois deves todos voacutes como o meu precircmio vai para outra parterdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 116-120)

Em certo sentido a devoluccedilatildeo de Criseida representou simultaneamente uma disposiccedilatildeo cooperativa e competitiva cooperativa em primeiro lugar porque Agamecircmnon concordou com a devoluccedilatildeo de seu geacuteras competitiva em segundo porque natildeo admitiu ser o uacutenico a ficar sem precircmio exigindo que o butim fosse novamente redistribuiacutedo para que inevitavelmente outro guerreiro fosse ageiacuteratos e natildeo ele preservando assim seus privileacutegios e soberania Aquiles fiando-se na tradiccedilatildeo discordou da proposta de Agamecircmnon e argumentou ldquoNada sabemos de riqueza que jaza num fundo comum mas os despojos das cidades saqueadas foram distribuiacutedos e seria

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indecoroso tentar reaver tais coisas de junto do povordquo (HOMERO Iliacuteada I vv 124-126) Mais do que isso em caraacuteter compensatoacuterio sugeriu que os aqueus o recompensariam em trecircs ou quatro vezes quando Troacuteia fosse saqueada

Impossiacutevel natildeo identificar na fala do filho de Peleu uma tentativa de negociaccedilatildeo face ao conflito Agamecircmnon contudo reconhece no discurso de Aquiles uma tentativa de engano e faz uma assertiva ainda mais dura se os aqueus natildeo substituiacuterem o precircmio perdido iria retiraacute-lo agrave forccedila de quem quer que seja (HOMERO Iliacuteada I vv 138-139) A tensatildeo aumenta e a loacutegica competitiva envolvendo o liacuteder das multidotildees e o melhor dos aqueus atinge seu cliacutemax Como eacute bem conhecido Agamecircmnon decide que seria Briseida o geacuteras de Aquiles a recompensa pela devoluccedilatildeo de Criseida Nesse momento decreta-se a falecircncia da poliacutetica e nenhuma negociaccedilatildeo se torna possiacutevel pois o filho de Peleu eacute envolvido pessoalmente na soluccedilatildeo de uma questatildeo coletiva e sua honra eacute visceralmente maculada Segue-se uma seacuterie de acusaccedilotildees ofensas e mesmo em uma tentativa de assassinato natildeo fosse contido por Atena Aquiles teria sacado o glaacutedio e decepado a cabeccedila do basileu (HOMERO Iliacuteada I vv 187-195) O resultado final eacute o afastamento voluntaacuterio de Aquiles que se isola no acampamento dos Mirmidotildees e desaparece natildeo apenas do combate mas da proacutepria narrativa jaacute que suas accedilotildees soacute voltam a ser descritas no Canto IX O reaparecimento aliaacutes se daacute de uma maneira bastante insoacutelita Aacutejax Odisseu e Fecircnix o encontram deleitando-se com sua lira tendo apenas Paacutetroclo como audiecircncia em uma atitude fugidia e descompromissada com o calor do conflito que entatildeo aumentava devido agrave sua ausecircncia (HOMERO Iliacuteada IX vv 185-191)

Esse reencontro soacute ocorre porque Agamecircmnon reconhece que sem Aquiles o asseacutedio dos troianos aumentaria e chegaria o momento em que as naus dos aqueus seriam incendiadas sacramentando a derrota Em outras palavras seria derrotado da competiccedilatildeo com os troianos em funccedilatildeo da competiccedilatildeo particular que estabeleceu com o Peacutelida Quem o convence a retroceder eacute Neacutestor uma voz sempre atuante e eficaz na negociaccedilatildeo de conflitos ldquotiraste a jovem Briseida da tenda do furibundo Aquiles coisa que natildeo aprovamos Na verdade eu proacuteprio tudo fiz para te dissuadir mas tu cedeste ao teu espiacuterito altivo e sobre um homem excelente honrado pelos deuses lanccedilaste desonrardquo (HOMERO Iliacuteada IX vv 106-111) Agamecircmnon concorda com avaliaccedilatildeo e atribui a dissensatildeo ao desvario (ἄτη) de que foi viacutetima Mais do que isso concorda em abandonar a disposiccedilatildeo competitiva

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e buscar a reconciliaccedilatildeo com a oferta de uma imensa quantidade de presentes (δῶρον) incluindo a proacutepria Briseida acompanhada da promessa de que natildeo foi sexualmente tocada (HOMERO Iliacuteada IX vv 133-134) O Atrida percebe que se natildeo fizesse do adversaacuterio seu aliado o inimigo comum venceria o preacutelio e todos perderiam Tenta desse modo resgatar a poliacutetica falida por seu proacuteprio desatino

Desta vez a inflexibilidade fica a cargo de Aquiles e o custo da recusa agrave poliacutetica seria plenamente sentido Aacutejax Odisseu e Fecircnix satildeo enviados para tentar convencecirc-lo mas seus esforccedilos foram em vatildeo Aquiles resistiu Posteriormente tambeacutem Paacutetroclo fez uma criacutetica severa tatildeo dura quanto inuacutetil Apoacutes prestar assistecircncia meacutedica aos feridos observou que Diomedes Odisseu Agamecircmnon e Euriacutepilo os melhores combatentes estavam impedidos de lutar e nesse sentido ponderou

ldquoQue sobre mim nunca recaia esta ira que tu alimentaspois terriacutevel eacute teu pensar Que homem vindouro a tirecorreraacute se (vergonhoso) natildeo evitas a ruiacutena dos AqueusImpiedoso Natildeo aceito que Peleu condutor de cavalos seja teu painem que Teacutetis seja tua matildee Foste parido pelo glauco mar epelas rochas escapardas Por isso tens a mente peacutetrea durardquo (HOMERO Iliacuteada XVI vv 30-35)

Aquiles novamente manteacutem-se irredutiacutevel Volta a mencionar as tristezas que se abateram com a tomada de Briseida e recorda que soacute lutaria caso o combate se aproximasse de suas proacuteprias naus (HOMERO Iliacuteada XVI vv 49-63) Eacute bem verdade que Aquiles se sensibilizou quando as primeiras naus argivas foram incendiadas Tambeacutem concordou que Paacutetroclo fosse combater (HOMERO Iliacuteada XVI vv 126-129) e chegou a organizar as falanges a incitar os guerreiros e a fazer uma libaccedilatildeo a Zeus suplicando pelo sucesso da empreitada Aquiles por fim resolve ver (εἶδον) as lutas entre aqueus e troianos (HOMERO Iliacuteada XVI vv 255-256) abdicando da indiferenccedila Apesar disso manteacutem seu afastamento voluntaacuterio para assegurar a vivacidade da competiccedilatildeo com o Atrida

Os resultados destes combates foram decisivos para que Aquiles reavaliasse os sentidos de sua coacutelera pois cumpriu-se a prediccedilatildeo de Zeus Paacutetroclo morto eacute uma puniccedilatildeo ao seu afastamento bem como o evento catalizador que obrigaacute-lo-aacute a rever seu ostracismo A reaccedilatildeo agrave morte do amigo foi absolutamente intempestiva e do sofrimento (πένθος) nasce a constataccedilatildeo de sua proacutepria responsabilidade Teacutetis que ouviu o pranto do filho foi ter com

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ele para consolaacute-lo Aquiles em resposta disse ldquoQue imediatamente eu morra pois natildeo socorri o companheiro quando morto ele foirdquo (HOMERO Iliacuteada XVIII vv 98-99) Mas ao longo da mesma resposta Aquiles natildeo limita sua responsabilidade agrave morte de Paacutetroclo e a despeito de todas as recompensas todos os pedidos e todas as suacuteplicas eacute apenas por meio da dor que lanccedila um olhar retrospectivo em direccedilatildeo agrave proacutepria conduta

Que a discoacuterdia se exile dos homens e dos deusese a raiva amarga que oprime ateacute o mais inventivo de todos raiva muito doce dulciacutessima mais que o mel a escorrere que se expande como fumaccedila no peito dos homensassim a ira me causou Agamecircmnon soberano entre os homensMas tudo isso torna-se passado apesar de todo o sofrimento no peito refreando o coraccedilatildeo pois as urgecircncias sobrepujam(HOMERO Iliacuteada XVIII vv 107-113)

Trata-se de uma nova etapa a ira que nutria em relaccedilatildeo a Agamecircmnon eacute convertida na fuacuteria doravante dirigida a Heacutector reestabelecendo a competiccedilatildeo com o inimigo externo e a cooperaccedilatildeo com os aliados no conflito Quando a proacutepria Teacutetis recomenda ao filho que renuncie agrave coacutelera8 contra Agamecircmnon e convoque a assembleia para se reapresentar ao exeacutercito aqueu (HOMERO Iliacuteada XIX vv 34-36) enseja o derradeiro movimento de reconciliaccedilatildeo com a coletividade E Aquiles o faz atendendo os auspiacutecios maternos Com todos os seus pares reunidos o Pelida assume o centro da assembleia e proclama

Atrida teraacute sido isto o melhor para ambospara ti e para mim quando com os coraccedilotildees lutuososdevorados no imo nos enfrentamos por conta da donzelaPudera que em minhas naus Aacutertemis a tivesse matado com sua seta no dia em que a tomei como espoacutelio do saque a LirnessoSoacute assim natildeo teriam incontaacuteveis aqueus crivado os dentes no solopelas matildeos inimigas enquanto eu perseverava em minha ira(HOMERO Iliacuteada XIX vv 56-62)

O ritmo da dissensatildeo envolve nesse sentido um jogo intenso de competiccedilatildeo em torno da loacutegica da honra e seus privileacutegios de negociaccedilotildees frustradas de conflitos insoluacuteveis e soluccedilotildees que ultrapassam a poliacutetica Por forccedila talvez de sua juventude e da intemperanccedila que eacute tiacutepica dos jovens em Homero Aquiles soacute foi interpelado pela forccedila compulsoacuteria da pedagogia do

8 Afinal ldquoa ordem social e a vida comunitaacuteria civilizada ndash consequentemente a Cultura Grega ndash foi imaginada pelo menos em parte sobre o deslocamento da erisrdquo (WILSON 1938 p 132)

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sofrimento do ldquoaprender pelo sofrerrdquo (πάθει μάθος)9 que parece colocar no marco das relaccedilotildees sociais natildeo a competiccedilatildeo mas a cooperaccedilatildeo como valor fundante que preside a relaccedilatildeo do sujeito com seus pares e que envolve a assunccedilatildeo de responsabilidades

Esse debate nos remete ao claacutessico Merity and Responsability (1960) tese de doutorado de Arthur W Adkins O autor se dedicou a investigar no acircmbito da eacutetica grega o desenvolvimento do conceito de responsabilidade moral Em linhas gerais Adkins considerou que o sistema de valores homeacuterico era caracterizado pela dimensatildeo competitiva em torno da areteacute prevalecendo desta forma sobre um padratildeo cooperativo (ADKINS 1960 p 46) Sua abordagem apesar da importacircncia foi alvo de inuacutemeras criacuteticas com destaque para aquelas expressas pelas publicaccedilotildees de Long (1970) Lloyd-Jones (1971) Rowe (1983) e Cairns (1993) Os argumentos dependiam da percepccedilatildeo de que existia de um lado o espiacuterito agoniacutestico competitivo centrado em uma tocircnica individualista e do outro lado o princiacutepio cooperativo necessaacuterio para a apoio muacutetuo centrado nos ideais coletivos Nancy Demand chega ao ponto de associar estes princiacutepios aos contatos estabelecidos entre os oikoi no Periacuteodo Claacutessico para ela tal relaccedilatildeo era ldquomais competitiva do que cooperativa pois as casas se desafiavam em uma competiccedilatildeo por honra e ciuacuteme e neste enfrentamento todas estavam continuamente vulneraacuteveis agrave perdardquo (DEMAND 2004 p 3) o que decerto soacute poderia fazer sentido em casos isolados mas nunca como regra geral Graham Zanker (1997 p 2) em sua criacutetica a Adkins entende essa questatildeo como uma falsa dicotomia ao passo que ldquoeacute faacutecil encontrar momentos na Iliacuteada em que guerreiros competem uns com os outros na batalha para atingir um objetivo comum de vitoacuteriardquo

A tendecircncia geral do debate radica-se em certo sentido em esforccedilos para definir se a competiccedilatildeo ou a cooperaccedilatildeo tomadas em um sentido holiacutestico representam cada qual um paradigma a partir da qual a outra parte do binocircmio seria vista sob regime de exceccedilatildeo Em outras palavras se o modo de ser eacutetico-poliacutetico eacute por excelecircncia competitivo a cooperaccedilatildeo se torna

9 Ainda que natildeo apareccedila expresso nesses termos na Iliacuteada o πάθει μάθος de Aquiles se tornou objeto de discussatildeo a partir de um bem conhecido artigo Pearl Cleveland Wilson Nele o autor argumenta ldquoEm sua primeira apariccedilatildeo ele [Aquiles] eacute altamente considerado com todas as qualidades que pertencem ao heroiacutesmo juvenil No entanto com o desenrolar da trama ele natildeo mostra preocupaccedilatildeo com qualquer outro sofrimento que natildeo seja seu proacuteprio O que lhe falta neste sentido eacute aquilo que Heacutector possui cuja compreensatildeo leva o leitor moderno a cultivar simpatia por ele Esse sentimento continua sendo desconhecido por Aquiles natildeo por que ele seja incapaz de conhececirc-lo mas porque ainda natildeo foi despertado para essa experiecircnciardquo (WILSON 1938 p 560) O tema tambeacutem eacute conhecido pelo debate de Bruno Snell (2005 p 19) para quem o πάθει μάθος atua como um ldquomal necessaacuteriordquo ldquopois este aprende com um mal a precaver-se contra outro malrdquo

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ocasional do mesmo modo que se eacute feita a opccedilatildeo pela loacutegica cooperativa a competiccedilatildeo eacute aquilo que foge agrave regra A tarefa eacute bastante difiacutecil porque variaacuteveis incidem o tempo inteiro para colocar em xeque uma pretensa ordem que sobrepairava sobre as relaccedilotildees sociais forccedilando-nos a duvidar se tal dicotomia eacute empiricamente observaacutevel em um todo que nem de longe se permite e se propotildee coerente

Fato significativo eacute que a mentalidade grega identifica o permanente estado de incompletude dos sujeitos razatildeo pela qual sobrepaira um estado latente que transita entre o conflito (no qual as diferenccedilas satildeo inconciliaacuteveis) e a complementaridade (quando as diferenccedilas satildeo justapostas em prol de um objetivo comum) Eacute precisamente esse o uacuteltimo ponto que julgamos importante pocircr em evidecircncia para compreender a relaccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon

A justificativa bem conhecida estaacute assente em um topos religioso os deuses natildeo datildeo aos homens tudo ao mesmo tempo Trata-se de um sintoma bem observado em diversas situaccedilotildees e das muitas que poderiacuteamos usar como exemplo vale recordar a dupla moira de Aquiles que sua matildee divina previu se ficasse em Troacuteia e combatesse os troianos morreria jovem e teria gloacuteria eterna se para casa retornasse teria vida longa mas seu nome seria esquecido (HOMERO Iliacuteada IX vv 410-416) Haacute para cada bem um mal correspondente Na Odisseia o aedo Demoacutedoco que celebrava os festins na feaacutecia tambeacutem prefigura essa loacutegica irremediaacutevel posto que a Musa muito o amava ldquoDera-lhe tanto o bem como o mal Privara-o da vista dos olhos mas um doce canto lhe concederardquo (HOMERO Odisseia VIII vv 63-64) Uma das melhores formulaccedilotildees dessa loacutegica pode ser lida na fala de Polidamante a Heacutector

ldquoHeitor muita dificuldade tens tu em dar ouvidos a bons conselhosPorque o deus te concedeu preeminecircncia nas faccedilanhas guerreirasTambeacutem por isso queres estar acima de todos no conselhoSoacute que tu proacuteprio natildeo seraacutes capaz de abarcar todas as coisas Eacute que a um homem daacute o deus as faccedilanhas guerrilhasA outro a danccedila e a outro ainda a lira e o cantoE no peito de outro coloca Zeus que vecirc ao ao longeUma mente excelente de que muitos homens tiram vantagemA muitos ele consegue salvar coisa que sabe mais que todosrdquo(HOMERO Iliacuteada XIII vv 724-734)

Na troca de acusaccedilotildees entre Agamecircmnon e Aquiles a potecircncia guerreira do melhor dos aqueus claramente confrontava a lideranccedila poliacutetica do Atrida De um lado um basileu que ainda que combatesse tinha seus meacuteritos pouco

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associados agrave superaccedilatildeo dos adversaacuterios em campo de batalha do outro um jovem guerreiro que a todos superava no combate mas que era inaacutebil com as palavras Agamecircmnon diz a Aquiles ldquoDe todos os reis criados por Zeus eacutes para mim o mais odioso Sempre te satildeo gratos os conflitos as guerras e as lutas Se eacutes excepcionalmente possante eacute porque um deus tal te concedeurdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 176-178) Aquiles por sua vez diz a Agamecircmnon ldquoRei voraz com o proacuteprio povo eacute sobre nulidades que tu reinas se assim natildeo fosse oacute Atrida esta agora seria a tua uacuteltima insolecircnciardquo (HOMERO Iliacuteada I vv 231-232) Quem percebe a gravidade da dissensatildeo e busca intervir eacute Neacutestor precisamente pela sabedoria que se acumulou ao longo dos anos Falando primeiramente a Agamecircmnon diz

ldquoQue natildeo procures tu nobre embora sejas tirar-lhe a donzelaMas deixa-a estar foi a ele primeiro que os aqueus deram o precircmioQuanto a ti oacute Pelida natildeo procures agrave forccedila conflitos com o reiPois natildeo eacute honra qualquer a de um rei detentor de ceptroA quem Zeus concedeu a gloacuteriaEmbora sejas tu o mais forte pois eacute uma deusa que tens por matildeeEle eacute mais poderoso uma vez que reina sobre muitos maisrdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 275-281)

A fala ponderada de Neacutestor eacute um sintoma da perspectiva natildeo apenas dos poetas mas das aristocracias a quem cantavam e que gostariam de se sentir representadas nos versos hexameacutetricos O anciatildeo consegue criticar a decisatildeo de Agamecircmnon sem colocar em suspenso sua soberania Ao mesmo tempo dirige-se a Aquiles louvando seu meacuterito guerreiro sem abdicar da necessidade de submissatildeo ao poder de quem reina sobre mais gente Neacutestor percebeu que no interior do exeacutercito aqueu cada uma das partes exacerbava a ausecircncia da outra e que isoladamente competindo entre si o enfraquecimento dos gregos abriria espaccedilo para o fortalecimento dos troianos

Eacute precisamente nesse ponto que competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo dialogam natildeo como pares antiteacuteticos mas como um modo de ser que depende fundamentalmente do objetivo comum compete-se contra o outro e coopera-se internamente para atingir o mesmo fim Qualquer ruiacutedo qualquer idiossincrasia uma palavra que excede ou uma negociaccedilatildeo que se frustra arrasta consigo consequecircncias funestas graccedilas agrave incapacidade de dar a cada parte do binocircmio o espaccedilo consagrado que lhe cabe

Por fim e sobretudo haacute um modo de ser que pode ser complementar ou excludente ensejando por correspondecircncia a cooperaccedilatildeo ou competiccedilatildeo Se a fala de Neacutestor sugere que a cooperaccedilatildeo entre aliados eacute absolutamente

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necessaacuteria e deve ser tomada como princiacutepio orientador das relaccedilotildees sociais as proacuteprias diferenccedilas divinamente justificadas (os deuses natildeo datildeo tudo a todos) ensejam o amaacutelgama da competiccedilatildeo e fazem com que esteja sempre agrave espreita rodeando os heroacuteis no marco de suas potecircncias e carecircncias O fiel da balanccedila o ponto de apoio o ldquonoacute goacuterdiordquo que assegura a coesatildeo ou conflito eacute insisto a poliacutetica Eacute pela poliacutetica que o ser eacutetico-poliacutetico se manifesta e consegue pocircr a si proacuteprio e o outro em perspectiva olhando as diferenccedilas como possiacuteveis complementos e natildeo como foco de dissociaccedilatildeo Apolo sabia disso quando lanccedilou a discoacuterdia Agamecircmnon se apercebeu quando reconheceu seu desvario Aquiles aprendeu quando perdeu Paacutetroclo Neacutestor jaacute sabia antecipadamente E se haacute um sentido embora esquecido que preside a busca pela poliacutetica eacute certamente bem comum ainda que muitos insistam que eacute possiacutevel atingi-lo fora de uma disposiccedilatildeo cooperativa

Abstract The aim of this article is to observe the tensions between Achilles and Agamemon through the conceptual bionmial competitioncooperation Itrsquos intend not only understand the variables of this opposition but also how the ideas of competition and cooperation sets a quarrel and suggest an ethical-political way of being that distinghishes those heroesKeywords Competition Cooperation Achilles Agamenon Iliad

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Documentaccedilatildeo Textual

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A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTO DOS PODERES PA-RENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS

Bruno DrsquoAmbros1

Resumo Mostramos neste artigo que a democracia grega nasceu efetivamente com a reorganizaccedilatildeo territorial aacutetica de Cliacutestenes em 508 aC atraveacutes do enfraquecimento dos genoi e phratriai em prol dos demoi A democracia assim desde seu surgimento parece ter sido uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema semelhante do conflito entre a distribuiccedilatildeo de poder local e regional Palavras-chave Cliacutestenes Democracia Greacutecia antiga Oligarquias

A escassa produccedilatildeo bibliograacutefica histoacuterica sobre o tema do nascimento da democracia na Greacutecia Antiga por vezes gera certa simplificaccedilatildeo da temaacutetica criando uma idealizaccedilatildeo da democracia participativa grega e esquecendo os variados elementos que a constituiacuteram Sem a adequada compreensatildeo dos detalhes histoacutericos que compuseram o nascimento da democracia arriscamos dizer eacute quase impossiacutevel compreender adequadamente Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e toda a produccedilatildeo filosoacutefica subsequente sobre o tema da poliacutetica As vaacuterias criacuteticas que os filoacutesofos antigos fizeram agrave democracia grega adveacutem de muitos elementos histoacutericos factuais que natildeo estatildeo naturalmente presentes nos textos destes pensadores e soacute podem ser compreendidos agrave luz da histoacuteria poliacutetica grega

Heroacutedoto em seu relato fictiacutecio na sua Histoacuterias relaciona trecircs reis persas ndash Otanes Megabises e Dario ndash com respectivamente os trecircs regimes poliacuteticos claacutessicos ndash democracia aristocracia e monarquia Este relato ajudou a consolidar no imaginaacuterio grego estas trecircs formas de governo e jaacute nele se percebe uma valoraccedilatildeo negativa da democracia Isoacutecrates em seu Evaacutegoras tambeacutem vecirc negativamente a democracia grega por seu caraacuteter igualitarista poreacutem elogia Soacutelon e Cliacutestenes que em sua opiniatildeo foram homens que foram

1 Doutorando em filosofia pela UFPR E-mail dambrosbrunogmailcom

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capazes de construir uma cidade-estado longe da monarquia Xenofonte nos Memoraacuteveis e Ciropeacutedia despreza a democracia que para ele era um regime calcado na indisciplina popular e portanto um regime titubeante A famosa criacutetica platocircnica agrave democracia na Repuacuteblica natildeo inova exceto na sua teoria da degenerescecircncia dos regimes poliacuteticos partindo do melhor para o pior ou seja a democracia esta seria ruim porque se baseia num homem sem virtude Aristoacuteteles em sua Poliacutetica rejeita a teoria platocircnica da degenerescecircncia das formas de governo e afirma que a democracia eacute uma forma de governo degenerada que exclui o interesse comum e beneficia o interesse de uma classe particular os mais pobres

Em suma percebe-se que a democracia ao menos para as classes cultas natildeo era um regime bem No entanto se atentarmos somente para os argumentos presentes nos textos destes autores citados excluindo o contexto histoacuterico anterior natildeo compreenderemos esta antipatia agrave democracia em sua totalidade Eacute preciso portanto voltar-se para os acontecimentos histoacutericos

O principal evento para a consolidaccedilatildeo da democracia aleacutem das reformas anteriores de Soacutelon e dos Pisistraacutetidas foi sem duacutevida a reforma territorial sob Cliacutestenes ocorrida por volta de 508 aC Foi esta reforma que ao reconfigurar a demografia aacutetica enfraqueceu os laccedilos parentais das famiacutelias aristocraacuteticas aacuteticas e possibilitou a participaccedilatildeo poliacutetica efetiva nas eleiccedilotildees e nas instituiccedilotildees democraacuteticas atenienses O que houve em outros termos foi que os novos demoi nascentes como nova divisatildeo territorial administrativa se contrapocircs com a divisatildeo familiar tradicional de parentesco denominada genos o que contribuiu para a exacerbaccedilatildeo da antiacutetese entre uma aristocracia familiar local estabelecida e uma democracia poliacutetica translocal introduzida2 Todo o debate filosoacutefico poliacutetico concernente sobre a democracia tinha como pano de fundo os nuacutecleos de gens na Greacutecia antiga e a nova configuraccedilatildeo demograacutefica de Cliacutestenes os demoi

Cliacutestenes nasceu por volta de 570 aC e era membro do clatilde dos Alcmeocircnidas neto do tirano Cliacutestenes de Siacutecion tio de Peacutericles e avocirc de Alcebiacuteades Quanto ao seu legado Cliacutestenes tomou uma seacuterie de medidas reformatoacuterias principalmente no que tange agrave reorganizaccedilatildeo poliacutetica do territoacuterio da Aacutetica mudando a organizaccedilatildeo poliacutetica ateniense que era baseada em quatro tradicionais tribos com fortes laccedilos de parentesco entre si que foram responsaacuteveis pelas tiranias anteriores A fim de impedir que a tirania se

2 Sobre a diferenccedila entre γένος e δῆμος na Aacutetica claacutessica faz-se mister conferir o capiacutetulo X da parte II da obra de Fustel de Coulanges (2009) jaacute bem conhecida entre os helenistas e latinistas onde o autor defende a tese de que a gens era a famiacutelia em sua primitiva organizaccedilatildeo de parentesco e unidade e natildeo como se pensava na eacutepoca um artifiacutecio administrativo de relaccedilotildees de parentesco

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instalasse novamente atraveacutes destas relaccedilotildees de parentesco Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em dez tribos de acordo com sua area de residecircncia o seu dēmos Estas reformas territoriais foram na verdade uma ldquodessacralizaccedilatildeo da paacutetriardquo (KERCKHOVE 1980 p 27) e consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo em curso na Greacutecia Arcaica (DrsquoAMBROS 2014)

Os principais feitos de Cliacutestenes durante seu arcontado foram basicamente seis a reorganizaccedilatildeo demograacutefica do territoacuterio aacutetico o consequumlente fortalecimento dos dēmos em detrimento das antigas phratriai a reorganizaccedilatildeo da boulḗ em 500 participantes a reorganizaccedilatildeo da dikasteria a corte popular a instituiccedilatildeo do ostracismo e a cunhagem do conceito de isonomia que durante o seacuteculo V iria desembocar no conceito de democracia

Quanto a estas outras reformas o estabelecimento de corpos legislativos feitos de indiviacuteduos escolhidos por eleiccedilatildeo foi tambeacutem mais um atentado contra o parentesco e a hereditariedade aristocraacutetica Ainda sua reorganizaccedilatildeo da Boulecirc que primariamente foi feita por 400 membros para 500 membros 50 de cada tribo e a introduccedilatildeo do juramento bouleacutetico que propunha antecipadamente a agenda a ser discutida na ekkleacutesia foram importantes para esta desestabilizaccedilatildeo aristocraacutetica A reorganizaccedilatildeo do tribunal da dikasteria e a criaccedilatildeo do ostracismo usado pela primeira vez em 487 aC com a finalidade de expulsar da cidade qualquer um que ameaccedilasse a democracia foram mecanismos uacuteteis para o enfraquecimento do poder parental-aristocraacutetico

A ascensatildeo de Cliacutestenes ao arcontado se deu apoacutes a expulsatildeo de Hiacuteppias de Atenas quando Isaacutegoras entra na disputa pelo arcontado com Cliacutestenes ambos aristocratas Isaacutegoras aliou-se com o rei Cleomenes I de Esparta e exilou Cliacutestenes junto com 700 famiacutelias e tornou-se arconte epocircnimo em 507 aC Seu grande erro poreacutem foi tentar dissolver a boulḗ3 que resistiu e angariou o apoio do povo e forccedilou Isaacutegoras a fugir para a Acroacutepolis que laacute permaneceu por dois dias sendo expulso no terceiro junto com os espartanos aliados (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 721ndash2) Cliacutestenes entatildeo junto com os outros exilados retornou a Atenas e tornou-se arconte com apoio do povo e dos aristocratas hetairoi (cavalaria)

Conflitos entre aristocratas como entre Isaacutegoras e Cliacutestenes estava se tornando ldquofora de modardquo (BUCKLEY 2010 p 118) O povo de modo geral e igualmente a parcela de nobres por meacuterito financeiro estava enfastiada de disputas entre facccedilotildees aristocraacuteticas que natildeo percebendo a mudanccedila dos tempos ainda sustentava valores e coacutedigos de honra anacrocircnicos Cliacutestenes

3 Na verdade Heroacutedoto natildeo explicita se foi a Bouleacute ou o Areoacutepago que Isaacutegoras quis remover

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arguto poliacutetico e membro da aristocracia percebeu isso jaacute durante o periacuteodo de tirania onde os tiranos para se manter no poder adotavam medidas populistas que natildeo os tornavam dependentes dos humores inconstantes das facccedilotildees aristocraacuteticas mas do proacuteprio povo E lidar com o povo ignorante cujos interesses satildeo miacutenimos eacute muito mais faacutecil que lidar com uma aristocracia com infinitos interesses econocircmicos e poliacuteticos e coacutedigos de honra fastidiosos

Inspirado no bem suscedido populismo4 precedente dos pisistraacutetidas Cliacutestenes toma medidas igualmente populistas para se manter no poder desagradando naturalmente a classe aristocraacutetica da qual ele mesmo fazia parte Dentre estas medidas as principais foram duas a reforma demograacutefica e a ampliaccedilatildeo dos poderes da ekklesia Heroacutedoto (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 662 692) sublinha este caraacuteter oportunista das medidas de Cliacutestenes e igualmente Aristoacuteteles quando diz que ldquoCliacutestenes trouxe o povo para o seu lado cedendo o controle do Estado para o plethos (plebe)rdquo (ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 202) Portanto apesar de Cliacutestenes ser considerado o real fundador da primeira democracia na histoacuteria seus interesses natildeo foram altruiacutestas mas permeados de interesses pessoais e aristocraacuteticos ou mais amenamente uma ldquocombinaccedilatildeo de auto-interesse e acuidade puacuteblicardquo (BUCKLEY 2010 p 120)

Assim a democracia ateniense nasce propriamente com Cliacutestenes em funccedilatildeo de sua reforma demograacutefica do territoacuterio Aacutetico Os principais motores destas reformas foram dois que se inter-relacionam o problema da cidadania ateniense e o problema das unidades parental-aristocraacuteticas Passemos a seguir a explicaacute-las

Durante o arcontado de Soacutelon muitos estrangeiros vieram para Atenas por sua prosperidade crescente com sua abertura econocircmica para trabalhar nos mais diversos ramos sendo o principal o artesanato Igualmente durante

4 O populismo termo moderno eacute um fenocircmeno que liga-se diretamente agrave tirania O tirano era essencialmente um populista estava ao lado do povo e contra os aristocratas Heroacutedoto (V 926) diz que a sanha do tirano eacute essencialmente a igualdade ldquocortar todas as espigas maiores que as outrasrdquo Glotz (1988 p 92) resume magistralmente qual era de fato o objetivo do tirano ldquoreduzir os poderes da aristocracia e exalccedilar os humildesrdquo Por isso na tipologia poliacutetica platocircnica agrave democracia natildeo eacute reservado a ela um bom lugar pois o intervalo entre a democracia e o populismo e portanto agrave tirania eacute curto O povo no baixo medievo grego cultuava deuses locais ctocircnicos sendo um deles Dioniso (lembremos que como Cristo ele desceu ao Hades e ressuscitou segundo o Hino Homeacuterico LIII) A aristocracia cultuava deuses com caraacuteter universal os deuses oliacutempicos Para agradar o povo Pisiacutestrato promove os cultos ctocircnicos populares sendo o principal o culto a Dioniso construindo um templo e instituindo o festival da Grande Dionisia onde em 535 aC foi encenado a primeira trageacutedia tendo como vencedor Thespis de Icaacuteria Assim nasce oficialmente o culto a Dioniso e a Trageacutedia grega sob os auspiacutecios do populismo tiracircnico (cf GLOTZ 1988 p 93)

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os pisistraacutetidas muitas novas pessoas vieram para Atenas para servir como mercenaacuterios do exeacutercito puacuteblico Assim durante todo o seacuteculo VI Atenas recebeu uma quantidade crescente de estrangeiros que no governo de Soacutelon vieram para trabalhar como artesatildeos de vasos e no governo dos pisistraacutetidas vieram para trabalhar como mercenaacuterios no exeacutercito puacuteblico estes foram os famosos meacutetoikos (estrangeiros)

Durante o governo de Cliacutestenes Atenas jaacute era habitada pelos netos e bisnetos destas pessoas no entanto sem cidadania aacutetica ainda Assim tiacutenhamos trecircs geraccedilotildees de estrangeiros que ainda natildeo tinham a cidadania ateniense plena Atenas durante o seacuteculo VI aC teve um crescimento demograacutefico significativo e a propaganda poliacutetica dos pisistraacutetidas em transformar Atenas no centro cultural Aacutetico foi bem-sucedida ao trazerem os festivais dionisiacuteacos teatro e os jogos oliacutempicos para a cidade Desde modo aleacutem dos descendentes daqueles estrangeiros que vieram para Atenas sob Soacutelon e os pisistraacutetidas sob Cliacutestenes afluiacuteram para Atenas muitos outros estrangeiros

A uacutenica prova formal de cidadania ateniense antes de Cliacutestenes eram as fratriai que reivindicavam para si uma origem miacutetica como seus nomes atestam Assim quando Cliacutestenes fez a reforma geopoliacutetica aacutetica criando os demoi ele automaticamente aboliu o antigo criteacuterio de cidadania criando um novo os demoi (BUCKLEY 2010 p 120) O termo deme tem um sentido muito especiacutefico na Aacutetica pois de fato se refere ldquounidade poliacutetica associada com as reformas de Cliacutestenesrdquo (TRAILL 1975 p73)

Para compreender a natureza e extensatildeo da reforma geopoliacutetica aacutetica de Cliacutestenes em deme eacute preciso compreender a natureza das quatro unidades parental-aristocraacuteticas aacuteticas anteriores phylai phratriai genē e oikoi ou anchisteia Eric Voegelin (2012 p 190) chama-as de ldquoestruturas gentiacutelicasrdquo de sinecismo da civilizaccedilatildeo helecircnica e as apresenta em niacuteveis da maior para a menor respectivamente5 Estas estruturas gentiacutelicas da civilizaccedilatildeo helecircnica tinham caracteriacutesticas tribais e foram determinantes do processo de sinecismo aacutetico ou seja na uniatildeo dos vaacuterios vilarejos aacuteticos em torno de um centro poliacutetico uacutenico Atenas durante o seacuteculo V ac

Ao longo do seacuteculo VII ac as phratriai satildeo a base da sociedade englobam tambeacutem os genē e se legitima como poder poliacutetico tendo regras proacuteprias podendo promulgar decretos proacuteprios possuir bens e dignitaacuterios

5 Contudo natildeo sabemos exatamente se os philai eram partes das phratriai ou contrariamente se as phratriai eram parte das philai (LAMBERT 1993 p 1516)

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tem seu proacuteprio sacerdote e culto As lideranccedilas das phratriai eram hereditaacuterias e portanto natildeo-democraacuteticas (BUCKLEY 2010 p 122) As phratriai eram o foco da aristocracia e uma vez que a aristocracia era um problema para o povo logo eram igualmente o foco do problema As phratriai podiam dividir-se ou fundir-se conforme sua fraqueza ou forccedila poliacutetica e segundo as circunstacircncias (LAMBERT 1993 p 11) e esta grande mobilidade espontacircnea foi provavelmente o motivo que as fizeram sobreviver durante os 200 anos de democracia como ldquoorganizaccedilotildees extra-urbanasrdquo ( JONES 1999 p 210)

A fundaccedilatildeo das phratriai foi atribuiacuteda agrave figura miacutetica de Ion personificaccedilatildeo da identidade jocircnica (LAMBERT 1993 p 3) Atenas estava organizada em quatro tribos jocircnicas agrupadas em phratriai e genē baseadas num parentesco miacutetico com algum heroacutei (FINE 1983 p 229) Este recurso genealoacutegico a um ancestral miacutetico comum foi recorrente em todas as phratriai e pode se atestar tanto pelo sufixo patroniacutemico -idai nos nomes das phratriai como Alkmeonidai e Demotionidai como pelo famoso festival de Apatouria cujo nome derivaria de homopatoria ou seja ldquomesmo pairdquo (LAMBERT 1993 p 8) Apesar de o recurso genealoacutegico-miacutetico natildeo ser verdadeiro como hoje compreendemos a noccedilatildeo de verdade como correspondecircncia de fato as phratriai consistiam de pessoas com uma ancestralidade comum chamados homogalaktes e a membresia nas phratriai natildeo era reservada somente aos ricos eupatridai (FINE 1983 p 186) mas estendida a todos os que vinham a pertencer a uma phratriai Deste modo as phratriai eram organizaccedilotildees de parentesco primordialmente constituiacutedas por phraacuteter vizinhos proacuteximos e amigos de famiacutelia Haacute trecircs evidecircncias segundo Lambert (1993 pp 4-5) da existecircncia das phratriai aacuteticas trinta inscriccedilotildees arqueoloacutegicas preservadas obras tardias dos seacuteculos V e IV aC em especial Isaeus e Demoacutestenes e scholia variados como os ensaios de Plutarco Pausanias e Ateneu Em Homero a fratria eacute uma ldquosubdivisatildeo da tribordquo e uma ldquobase de organizaccedilatildeo militarrdquo de modo que o homem sem fratria eacute considerado um ldquofora de leirdquo (VIAL 2013 p189) A palavra phrater significa literalmente irmatildeo mas em Homero natildeo se usa a palavra phrater para se referir a irmatildeo mas sim adelphos e kasignetos (FINE 1983 p 35) O termo phratria eacute mencionado pela primeira vez na Iliacuteada (II vv 362-363 IX vv 63-64) quando Nestor fala a Agamenon para dividir os homens por tribos e phratriai Uma hipoacutetese para a origem das phratriai bem aceita eacute a de que na ldquoEra das Trevasrdquo grega os nobres agrupados em genē organizaram seus dependentes em phratriai para melhor controle cada uma estando sob o domiacutenio de um ou mais gene (FINE 1983 p 186) Assim a organizaccedilatildeo em phratriai formam um modo de organizaccedilatildeo dos genē e de fato as phratriai organizaram a vida social e poliacutetica grega desde sua

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apariccedilatildeo por volta de 2000 aC ateacute seu fim no segundo seacuteculo II aC como atesta uma inscriccedilatildeo em uma colocircnia grega em Naacutepoles

As outras estruturas gentiacutelicas phylai genē e anchisteia satildeo partes constituintes do que seratildeo as poleis futuramente Agrave medida que a noccedilatildeo de sujeito vai tomando escopo ndash como se pode atestar pela epopeacuteia liacuterica e trageacutedia ateacute seu ponto culminante com a filosofia ndash o mundo tribal aristocraacutetico vai dando lugar ao mundo das poleis democraacuteticas O sujeito ldquo[] sempre permaneceu numa posiccedilatildeo de mediaccedilatildeo por meio dos parentescos sanguiacuteneos tribais fictiacutecios e estreitos no interior da poacutelisrdquo (VOEGELIN 2012 p 189)

Cliacutestenes mudou a situaccedilatildeo poliacutetica aacutetica mudando a situaccedilatildeo geopoliacutetica Agora o centro das decisotildees poliacuteticas natildeo eram mais as phratriai mas os demoi Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em trecircs regiotildees geopoliacuteticas Paralia Mesogeia e Astu E cada uma destas aacutereas foi subdividida em dez partes chamadas tritiacuteas6 que por sua vez englobavam um certo nuacutemero de demes (BRAADEN 1955 p 22) De acordo com Braaden (1955 p 28) ldquoas tritiacuteas eram aacutereas geograacuteficas compactas e em alguns lugares contiacuteguasrdquo A subdivisatildeo aacutetica foi uma forma de ldquomisturar o povordquo (BUCKLEY 2010 p 128 BRAADEN 1995 p 23) As reformas de Cliacutestenes ldquopodem ter intentado transcender barreiras locais juntando homens dos distritos rurais urbanos e costeiros e desenvolver um sentimento de uniatildeordquo (HIGNETT 1952 p 141) Esta divisatildeo aacutetica foi a maneira achada para solucionar os conflitos parental-aristocraacuteticos entre as diversas facccedilotildees e partidos7

A principal diferenccedila entre as phratriai e os demoi era a ldquoconstituiccedilatildeo democraacuteticardquo (BUCKLEY 2010 p123) destes uacuteltimos Todos os temas concernentes aos demoi eram decididos natildeo mais por uma pequena phratria seleta mas por todo o demos

Alguns especialistas sustentam que Cliacutestenes com sua reforma demograacutefica desejava aumentar o poder das cidades e outros que ao contraacuterio

6 As dez era a dos Erectidas Egeus Pandion Leocircnides Acamantes Oineis Cecroacutepides Hipotoontes Eacircntides e Antiacuteoques e estavam espalhadas por todo o territoacuterio aacutetico em diferentes locais tendo muitas vezes a mesma tribo em locais diferentes totalizando assim trinta tritiacuteas Na mesma tritiacutea havia vaacuterios demoi e se crecirc ter havido cerca de 140 dēmoi em toda a Aacutetica Cada tribo eacute composta por trecircs tritiacuteas a da costa cidade e planiacutecie Cada tritiacutea foi nomeada segundo o demo dominante

7Alguns partidos regionais do seacuteculo VI aC eram pedieis cujo nuacutecleo estava concentrado na aacuterea de planiacutecie e tinha Licurgo como liacuteder paralioi cujo nuacutecleo era a aacuterea costeira e era famoso por ser a regiatildeo dos Alcmeocircnidas e por fim os hyperacrioi os ldquoaleacutem dos montesrdquo Cliacutestenes desejava quebrar a velha rivalidade entre os pediakoi paralioi e diakrioi e a influecircncia dos eupatridai (BRAADEN 1955 pp 23- 25)

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ele desejava diminuir De fato Cliacutestenes estava mais interessado dentre as trecircs grandes aacutereas em que a Aacutetica foi divida na aacuterea urbana provavelmente porque a maior parte das famiacutelias nobres eram de centros urbanos (BRAADEN 1955 pp 28-29) Aleacutem disso ldquoas tritiacuteas da Cidade consistiam de somente um demos que como a evidecircncia arqueoloacutegica mostra era a sede poliacutetica dos Alcmeocircnidasrdquo (BUCKLEY 2010 p 127) ou seja a proacutepria facccedilatildeo de Cliacutestenes

Deste modo as reformas tribais de Cliacutestenes foram um grande senatildeo o mais importante fator no desenvolvimento da democracia ateniense mas foram tambeacutem um meio de fortalecer a permanecircncia poliacutetica dos Alcmeocircnidas agraves custas de seus oponentes (BUCKLEY 2010 p 128)

Estas famiacutelias mantiveram influecircncia poliacutetica sobre o territoacuterio de onde vieram apesar de suas residecircncias estarem em aacutereas urbanas Alguns alegam como Braaden (1955 p 29) que a reforma territorial de Cliacutestenes natildeo foi um meio de beneficiar a plebe mas os aristocratas porque ldquoera necessaacuterio inventar um sistema pelo qual elas pudessem ser espalhadas por todas as tribos enquanto ainda usando localidade como a base para a cidadaniardquo

As rivalidades e conflitos entre as facccedilotildees podem ter sido causadas pela ambiccedilatildeo de poucas famiacutelias ou clatildes aristocraacuteticos que eram capazes de usar seus domiacutenios de certas regiotildees da Aacutetica como arma poliacutetica Cliacutestenes percebeu que estes blocos regionais de poder com seus liacutederes aristocraacuteticos sustentados em poder pode seus amigos e dependentes pela rede de velhas lealdades e alianccedilas eram o maior obstaacuteculo para a estabilidade poliacutetica Consequentemente houve uma radical reorganizaccedilatildeo do corpo citadino e por isso das quatro tribos jocircnicas sob os fundamentos que a dependecircncia poliacutetica do povo comum poderia somente ser quebrada pela separaccedilatildeo poliacutetica de seus liacutederes aristocraacuteticos (BUCKLEY 2010 p 126)

A artificializaccedilatildeo do territoacuterio atraveacutes de uma reforma geopoliacutetica foi o modo encontrado para enfraquecer o poder das fratrias fortalecer o poder do povo e ldquoquebrar os fortalecidos poderes regionais destes clatildes aristocraacuteticos e suas facccedilotildees acabando com as funccedilotildees poliacuteticas das fratrias e das velhas tribos [hellip] (BUCKLEY 2010 p 122) No entanto ao mesmo tempo foi um modo de fortalecer o poder de uma fratria especiacutefica a proacutepria de Cliacutestenes e descentralizar as decisotildees poliacuteticas e unificar o estado Poderiacuteamos dizer assim que a democracia ateniense foi consequumlecircncia de uma demografia antes de tudo

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Como dito acima um dos problemas sociais mais urgentes resolvidos sob Cliacutestenes ao final do seacuteculo VI eram os novos cidadatildeos sem cidadania ateniense plena A nova base de cidadania instituiacuteda por Cliacutestenes foi a localidade de nascimento e isso facilitou a inclusatildeo de novos cidadatildeos (BRAADEN 1955 p 22) Com as phratriai enfraquecidas a base de confianccedila para a cidadania agora natildeo eram mais o parentesco fictiacutecio com algum heroacutei mas simplesmente o demos ao qual algueacutem fazia parte Os deme garantiriam cidadania ateniense natildeo soacute para antigos habitantes mas tambeacutem para os novos conforme relata o proacuteprio Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses 214) Voegelin tambeacutem nos confirma ao dizer que ldquoa cidadania agora dependia do pertencimento a um dos demoirdquo e diz que a consequecircncia geral deste feito foi uma ldquodemocratizaccedilatildeo bem-sucedida da constituiccedilatildeo dissolvendo o poder da antiga estrutura gentiacutelica (VOEGELIN 2012 p190)

Aleacutem deste alargamento da cidadania a reforma demograacutefica clisteneana repercutiu na organizaccedilatildeo militar pois agora os ldquogenerais de qualquer tribo poderia vir de qualquer uma das trecircs regiotildees da Aacuteticardquo (BRAADEN 1955 p 26) A reforma territorial de Cliacutestenes foi ldquoum sistema pelo qual os Eupatridai seus inimigos talvez mas ainda homens de habilidade pudessem ser usados para favorecer na posiccedilatildeo militar e na nova e poderosa posiccedilatildeo de Prytaneisrdquo (BRAADEN 1955 p 30)

Este eacute um sistema extremamente complexo e foi implantado por Cliacutestenes com a finalidade de abolir os privileacutegios patroniacutemicos em favor dos demoniacutemicos o que aumentou o senso de pertenccedila a um dēmos nos indiviacuteduos ficando as relaccedilotildees familiares de genos cada vez mais tecircnues O dēmos portanto foi uma divisatildeo territorial artificial para impedir a forccedila poliacutetica dos genos Poderiacuteamos dizer que esse conflito entre genos e demos eacute o conflito entre a lei do Estado e o direito familiar ou ainda o conflito entre poder central e poderes regionais que estaraacute presente durante toda a histoacuteria da poliacutetica e da filosofia poliacutetica culminando em soluccedilotildees futuras como federalismo e a teoria da divisatildeo dos poderes

Esta estrateacutegia geopoliacutetica se deu justamente pela excessiva forccedila das relaccedilotildees parentais que o genos proporcionava frequentemente levando ao poder um membro proeminente de um genos que natildeo legislaria em favor do puacuteblico O genos assim se tornava representante por excelecircncia da aristocracia Logicamente a decisatildeo de Cliacutestenes natildeo foi inicialmente bem vista pois diluiacutea as relaccedilotildees familiares tradicionais do genos em troca de relaccedilotildees artificiais novas do dēmos O que se tornava decisivo daqui em diante para a poliacutetica Aacutetica natildeo era mais o nascimento a estirpe a hereditariedade miacutetica reivindicada pela aristocracia A arete saia do campo de virtudes familiares para virtudes sociais

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sempre tendo em vista a comunidade Cliacutestenes desta forma literalmente instituiu a democracia

O que foi entatildeo a democracia Aacutetica antiga Foi uma divisatildeo territorial uma estrateacutegia geopoliacutetica em prol de todas as pessoas e natildeo somente de grupos familiares bem instituiacutedos Portanto para a democracia Aacutetica antiga foi de suma importacircncia a artificializaccedilatildeo do territoacuterio Soacute desta forma pode-se afrouxar os laccedilos parentais tradicionais que sempre tenderam a se agrupar e formar oligarquias em prol de laccedilos puacuteblicos que por estarem territorialmente distantes e natildeo terem proximidades familiares auxiliaram no sentimento de pertenccedila territorial

Abstract We show in this article that Greek democracy was actually born with the Attic territorial reorganization of Cliacutestenes in 508 bC through the weakening of the genoi and phratriai in favor of the demoi Democracy then since its inception seems to have been an attempt to solve the similar problem of the conflict between the distribution of local and regional powerKeywords Cleisthenes Democracy Ancient Greece Oligarchies

Referecircncias

ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 2ordf Ed Lisboa Calouste Goubenkian 2009

BRADEEN Donald The trittyes in Cleisthenesrsquo reforms In Transactions and proceedings of the American philological association Vol86 1955 pp22-30

BUCKLEY Terry Aspects of Greek history 750ndash323bc A source-based approach London Routledge 2010

COULANGES Fustel de A cidade antiga Satildeo Paulo Martin Claret 2009DrsquoAMBROS Bruno Rodrigo Um estudo histoacuterico sobre a emergecircncia da

democracia como consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo na Greacutecia arcaica (594ndash508 aC) Orientador Jean Gabriel Castro - Florianoacutepolis SC 2014 119 p Trabalho de Conclusatildeo de Curso (graduaccedilatildeo) Universidade Federal de Santa Catarina

FINE John Van Antwerp The ancient greeks a critical history Harvard University Press 1983

GLOTZ Gustave A cidade grega Satildeo Paulo Bertrand Brasil 1988HEROacuteDOTO Histoacuterias livro V Lisboa Ediccedilotildees 70 2007JONES Nicholas The associations of classical Athens the response to

democracy Oxford University Press 1999KERCKHOVE Derrick De A Theory of Greek Tragedy SubStance Vol 9 No

4 Issue 29 (1980) pp 23-36

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LAMBERT SD The phratries of Attica Michigan Monographs in Classical Antiquity Michigan University Press 1993

TRAILL John S The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council Hesperia Supplements v 14 - The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council 1975 pp 139-169

VIAL Claude Vocabulaacuterio da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2013VOEGELIN Eric Histoacuteria das ideias poliacuteticas 1 Helenismo Roma e

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2012

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TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES

Paulo Pires Duprat1

Miserius nihil est quam mulier ldquoNada eacute mais miseraacutevel do que uma mulherrdquo

(PLAUTO As Baacutequides 41)

Resumo Muito se escreveu sobre gecircnero no mundo romano Natildeo obstante algo parece estar faltando a parte que cabe agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica desta sociedade Passado presente ou futuro as mulheres constituem no miacutenimo metade da populaccedilatildeo ao redor do globo uma forccedila de trabalho imprescindiacutevel seja em sociedades antigas ou modernas Sabemos que desde o comeccedilo dos tempos a maioria das mulheres foi submetida ao trabalho duro sob a forma de tarefas cansativas e repetitivas impostas de forma arbitraacuteria Tais atividades comeccedilavam ainda na infacircncia e jamais receberam o devido reconhecimento O objetivo deste trabalho eacute portanto resgatar o papel do trabalho das mulheres nas economias da Hispacircnia romana com especial atenccedilatildeo ao caso de Tarraco entre finais da Repuacuteblica ateacute o Principado levantando subsiacutedios locais e alhures para demonstrar a parte que coube agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica da sociedade romana

Palavras-chave Estudos claacutessicos Economia romana Trabalho feminino Estudos de gecircnero Poacutes-modernismo

Estudos claacutessicos e a naturalizaccedilatildeo dos preconceitos

Lamentamos iniciar este artigo afirmando que os estudos claacutessicos satildeo com certeza um dos campos acadecircmicos mais conservadores hieraacuterquicos e patriarcais (SKINNER 1983 p 183) Eminentes classicistas criacuteticos reconheceram que ldquoos estudos claacutessicos tecircm sido com poucas exceccedilotildees antiteoacutericos em geral e antifeministas em particularrdquo nas palavras de Nancy Sorkin Rabinowitz em sua provocante introduccedilatildeo ao Feminist theory and

1 Doutorando em Histoacuteria pela Unicamp sob orientaccedilatildeo de Pedro Paulo Abreu Funari Servidor puacuteblico federal ativo desde 2005 atuando como bibliotecaacuterio lotado na FAUUFRJ E-mail ppdupratyahoocombr

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the Classics (1993 p 1) Os estudos claacutessicos tecircm reforccedilado pontos de vista conservadores de diversas maneiras na maioria dos casos ao apoiarem-se em uma leitura empirista a partir do senso comum dos documentos antigos O uso do senso comum para a manutenccedilatildeo de relaccedilotildees iniacutequas de poder segundo as agudas observaccedilotildees do linguista britacircnico Norman Fairclough (1990 pp 84-91) contribui para que relaccedilotildees de poder injustas sejam mantidas pela naturalizaccedilatildeo dos discursos Rejeitamos portanto esta abordagem derivada do senso comum na medida em que apenas uma anaacutelise criacutetica permite compreender o ldquomasculinordquo e o ldquofemininordquo como construccedilotildees sociais que variam em termos de classe social gecircnero e etnicidade em diferentes periacuteodos histoacutericos e em diferentes sociedades (FUNARI 1995b pp 179-80) O trecho abaixo deixa claro nossa percepccedilatildeo

Eacute uma histoacuteria circular que se torna mais intensa agrave medida em que a contamos Eacute um meio de controle social e tem sido usado para regular as atividades e aspiraccedilotildees de grupos laquonaturalmenteraquo subordinados Haacute muitos presentes e passados a serem narrados mas os perdedores do jogo satildeo frequentemente os mesmos grupos subordinados (SCOTT 1993 p 8)

Enfim haacute caminhos mais justos e viaacuteveis O vieacutes com o qual nos propomos a investigar o papel nas mulheres na sociedade romana eacute declaradamente inspirado no movimento feminista que convenceu alguns historiadores2 a substituir sua perspectiva de ldquosexordquo para ldquogecircnerordquo aqui entendida como construccedilatildeo social e natildeo como categoria natural como jaacute aludido

Desconstruindo preconceitos

Por ocasiatildeo da virada do seacuteculo XX para o XXI observamos abordagens de vanguarda que transformaram os estudos claacutessicos Os historiadores do mundo romano acostumados com narrativas de cunho poliacutetico econocircmico ou militar se depararam com o surgimento de uma geraccedilatildeo de estudiosos preocupados com a revisatildeo de conceitos consagrados de criacuteticas a modelos interpretativos de cunho normativo aleacutem de muacuteltiplas propostas sobre temas ineacuteditos sendo explorados Reflexotildees sobre a cultura romana as relaccedilotildees de

2 Dentre os quais me incluo No que concerne ao meu caso em particular francamente inspirado pela teoria desconstrutivista presente nas obras de Foucault e nas leituras feministas e poacutes-feministas indicadas pela linha de pesquisa das profordfs Luana Tvardovskas Margareth Rago e Pedro Paulo Funari a partir das aulas ministradas em no 1ordm e 2ordm semestres de 2017 seguindo as prerrogativas do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Unicamp

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gecircnero conflitos eacutetnicos ou a formaccedilatildeo das novas identidades a partir do embate entre romanos e natildeo romanos passaram a figurar com mais intensidade nas publicaccedilotildees acadecircmicas especializadas Este processo que estaacute inserido em um contexto muito mais amplo resulta de questionamentos epistemoloacutegicos que as Ciecircncias Humanas tecircm enfrentado desde a deacutecada de 1960 As criacuteticas de M Foucault3 por exemplo proporcionaram uma revisatildeo no papel dos acadecircmicos e aos poucos foi se concretizando a percepccedilatildeo na qual o historiador produz discursos sobre o passado constantemente ressignificados a partir de suas proacuteprias convicccedilotildees preconceitos e limitaccedilotildees Assim vaacuterios pressupostos tatildeo arraigados na historiografia tais como a neutralidade a objetividade a busca pelo real a essecircncia de sujeitos universais e o ordenamento dos acontecimentos a partir da noccedilatildeo de classes sociais e seus conflitos socioeconocircmicos entraram em xeque e foram revistos e criticados abrindo espaccedilo para repensar as categorias de anaacutelise do passado e as metodologias empregadas para sua interpretaccedilatildeo (FUNARI GARRAFFONI 2008 p 102)

Nossas reflexotildees acerca do mundo romano inserem-se neste contexto Afinal consideramos que o estudo da Antiguidade Claacutessica natildeo precisa reforccedilar preconceitos nem constituir-se em elemento de opressatildeo (FUNARI 1995a p 31) Por outro lado devemos ter em conta que a cultura material eacute o resultado direto do trabalho humano enquanto o documento escrito eacute uma representaccedilatildeo ideoloacutegica da realidade transposta para o texto Os documentos escritos informam-nos sobre as ideias de seus autores em geral uma elite masculina que sabia ler e escrever A escrita assim eacute um instrumento de poder de classe (FUNARI 2003 p 40)

Deste modo acreditamos que muitas pesquisas que se baseiam exclusivamente em obras literaacuterias podem incorrer em imprecisotildees naturalizando discursos e cristalizando opiniotildees que na realidade natildeo eram compartilhadas pela maioria da sociedade A observaccedilatildeo abaixo resume nossa posiccedilatildeo

Para um periacuteodo como o da Histoacuteria romana ou grega () apenas a Arqueologia podia trazer informaccedilotildees concretas e se tinha a consciecircncia clara que a literatura era ldquofonterdquo mas de um valor decerto relativo erudito elitista () Quem lia Quem escrevia Quem nos garantia a fidelidade das versotildees chegadas ateacute noacutes (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

3 Margareth Rago (1995 p 72) considera que as perspectivas de Foucault representaram uma verdadeira revoluccedilatildeo na historiografia uma ldquonova maneira de problematizar a Histoacuteria de pensar o evento e as categorias atraveacutes das quais se constroacutei o discurso do historiadorrdquo (grifo da autora)

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Por tais razotildees destacamos a centralidade da Arqueologia como ferramenta natildeo soacute para compor quadro mais amplo de evidecircncias como tambeacutem para refutar algumas ideias contidas nessas fontes escritas que muitas vezes informam mais sobre a opiniatildeo dos seus autores do que da ldquorealidaderdquo que eles julgavam contar4 Felizmente jaacute acumulamos alguma tradiccedilatildeo de pesquisa arqueoloacutegica no campo da economia romana Graccedilas ao grande nuacutemero de evidecircncias disponiacuteveis o conhecimento tem evoluiacutedo tanto no campo das economias provinciais quanto no da metroacutepole Inuacutemeros artefatos resultantes de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas e o rico material epigraacutefico recuperado tecircm fomentado pesquisas que oferecem um quadro mais representativo das atividades econocircmicas desenvolvidas5 Haacute casos em que a evidecircncia eacute relativamente abundante e homogecircnea tais como por exemplo as inscriccedilotildees e os artefatos arqueoloacutegicos de Pompeacuteia ou os arquivos dos papiros gregos do Egito (BERDOWSKI 2007 p 283) que apontam para um quadro econocircmico-social muito mais multifacetado do que alguns vieses querem nos fazer crer6

As mulheres e sua Histoacuteria

Nas uacuteltimas deacutecadas temos observado sistemaacuteticos estudos sobre a atividade das mulheres na economia romana nos quais satildeo evidenciados seus papeis como forccedila de trabalho ou mesmo como empreendedoras Esta nova historiografia ao abordar as relaccedilotildees entre os sexos como resultado de uma

4 A misoginia dos autores da Antiguidade eacute flagrante e salta aos olhos Um bom exemplo disto eacute Taacutecito As mulheres descritas nos Anais de Taacutecito foram dissecadas remontadas e analisadas a partir de perspectivas psicoloacutegicas literaacuterias e ateacute dramaacuteticas Embora suas caracterizaccedilotildees sejam repletas de elementos retoacutericos em algumas ocasiotildees o autor retratou as mulheres como pessoas obcecadas pelo poder Ao referir-se agrave Agripina matildee de Nero fica patente sua fixaccedilatildeo no estereoacutetipo da dux femina e seu temor da influecircncia feminina sobre os homens - que ele considerava maligna ndash e seu alerta quanto aos ldquoperigosrdquo do abuso de poder por parte das mulheres (LrsquoHOIR 1994 McHUGH 2012 MELLOR 2010 p 131) Natildeo vamos nos aprofundar neste tema pois a noacutes interessa para o momento a atuaccedilatildeo econocircmica da mulher romana de classe baixa e meacutedia

5 A epigrafia representa portanto um manancial insubstituiacutevel Conforme aponta Encarnaccedilatildeo ldquopouco saberiacuteamos da organizaccedilatildeo romana na Peniacutensula Ibeacuterica se natildeo tiveacutessemos os documentos epigraacuteficosrdquo (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

6 O tema da economia na Antiguidade continua sendo perpassado por conflitantes visotildees acerca das rupturas e continuidades com o mundo moderno evidenciado pela polecircmica entre ldquoprimitivistasrdquo e ldquomodernistasrdquo Inicialmente conhecido como ldquoBuumlcher-Meyer Controversyrdquo este debate se encontra estigmatizado por incorrer em variaccedilotildees de uma mesma temaacutetica Seus principais artiacutefices satildeo Weber Rostovtzeff Polanyi com especial destaque para as teorias minimalistas de Moses Finley A controveacutersia eacute antiga mas estaacute distante de seu esgotamento (DUPRAT 2015 p 16) O caminho mais seguro eacute o do meio (SALLER 2002 p 252 DUPRAT 2015 pp 23-51)

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construccedilatildeo social (RAGO 1995 p 80) modificou os meacutetodos e as perspectivas da histoacuteria tradicional7 tornando-a cada vez menos descritiva mais relacional e para muitos mais problematizada A rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade8

Eacute importante ressaltar que a noccedilatildeo de economia tratada nesta pesquisa pode estar mais proacutexima do conceito original de oikonomia do mundo antigo do que a do atual a etimologia grega traduziria este termo como ldquogestatildeo domeacutesticardquo noccedilatildeo complexa com diversas implicaccedilotildees9 Sua raiz estaacute no oikos unidade domeacutestica de produccedilatildeo na qual se baseava a polis grega e cujo modelo seraacute transmitido agrave Roma Assim sendo a economia greco-romana repousava sobre nuacutecleos domeacutesticos de produccedilatildeo10 onde a participaccedilatildeo das mulheres eacute evidente Neste sentido o oikos se configura como ceacutelula econocircmica baacutesica local onde se garante a subsistecircncia aleacutem de promover a reproduccedilatildeo humana Trata-se por conseguinte de uma unidade de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo em si mesma (MIROacuteN PEacuteREZ 2004 p 67 apud MEDINA QUINTANA 2014 pp 22-23)

No mais devemos elaborar uma abordagem holiacutestica de modo a contemplar o caraacuteter diverso das relaccedilotildees de gecircnero na Antiguidade Precisamos

7 Segundo Rago (1995 p 71) ldquoos historiadores do grupo dos Annales se preocuparam com as estruturas e os diferentes ritmos e temporalidades dos fenocircmenos histoacutericos privilegiando as longas permanecircncias mentais sociais geograacuteficas e etc que Braudel identificaria posteriormente como la longue dureacutee ou seja a longa duraccedilatildeo em detrimento das mudanccedilas sociaisrdquo Bengoochea Jove (1998 p 243) acrescenta que ldquoa historiografia acadecircmica tradicional centrava sua investigaccedilatildeo na experiecircncia histoacuterica do varatildeo (grifo meu) e quando abordava a participaccedilatildeo da mulher era sempre sob o vieacutes da santa regente reformadora ou estadista Nem a revista Annales (publicada desde 1929) nem a historiografia marxista embora tenha cunhado o enfoque metodoloacutegico da ldquoHistoacuteria totalrdquo se ocuparam da problemaacutetica da mulher a natildeo ser sob perspectivas tradicionaisrdquo

8 Bengoochea Jove (1998 p 243) potildee nestes termos concluindo que a invisibilidade da mulher adveio da proacutepria concepccedilatildeo androcecircntrica e eurocecircntrica da histoacuteria que selecionou os acontecimentos que julgava dignos de anaacutelise em detrimento de outros que relegou ao esquecimento

9 Resguardo-me assim da polecircmica acerca do emprego do termo ldquoeconomiardquo para descrever realidades do mundo antigo pois haacute o argumento ldquofiloloacutegicordquo de que nem a palavra nem o conceito remontam agrave Antiguidade mas a momentos posteriores e portanto estranhos agrave consciecircncia antiga Para maiores informaccedilotildees sobre o tema sugiro Juumlrgen Deininger (2012) Ciro Cardoso (2011) e Pedro Paulo Funari

10 A famiacutelia romana foi a principal unidade de produccedilatildeo reproduccedilatildeo consumo e transmissatildeo intergeracional de propriedade e conhecimentos que englobam a produccedilatildeo no mundo romano Esta declaraccedilatildeo aparentemente banal tem implicaccedilotildees de longo alcance Na antiguidade romana (bem como em outras sociedades preacute-industriais) a famiacutelia organizava o trabalho em fazendas familiares e em oficinas urbanas tomando decisotildees sobre como implementar os esforccedilos de homens mulheres e crianccedilas (SALLER 2011 p 116)

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ter em mente que os estudos claacutessicos por conta de seu caraacuteter transdisciplinar demandam o estudo da Histoacuteria Filologia Literatura Antropologia Sociologia Arqueologia Arquitetura Histoacuteria da Arte Geografia Metalurgia Biologia entre muitas outras Tais vieses estatildeo naturalmente abertos para uma abordagem dos temas sob uma oacutetica multicultural e pluralista Em uacuteltima anaacutelise a interdisciplinaridade seraacute a ferramenta decisiva as ciecircncias natildeo satildeo apenas auxiliares umas das outras elas se locupletam Afinal os dados materiais podem confirmar complementar ou mesmo contradizer as informaccedilotildees das fontes histoacutericas (FUNARI 2003 pp 85-86)

Mulheres romanas convenccedilotildees leis e exclusatildeo social

A exclusatildeo das mulheres da histoacuteria do trabalho na Antiguidade pode ser considerada uma omissatildeo intencional no registro de sua atuaccedilatildeo Portanto se o pesquisador natildeo estiver procurando os sinais do trabalho feminino nas fontes eacute evidente que ele natildeo vai encontraacute-los As fontes literaacuterias pouco ajudam a delinear a participaccedilatildeo das mulheres e eacute faacutecil compreender o porquecirc muitos dos ideais filosoacuteficos gregos foram incorporados ao modo de vida romano (ALFARO GINER 2009 p 15) Entre os gregos havia a percepccedilatildeo de que o trabalho diaacuterio alienava o indiviacuteduo e seria degradante Eles consideravam que os ofiacutecios manuais deformavam o corpo e o espiacuterito representava um castigo para os seres humanos um esforccedilo individual grave ou um dever penoso11

De tal forma que o trabalho diaacuterio sobretudo o manual era estigmatizado no mundo antigo e jamais obteve o status de atividade ldquodignificanterdquo que logrou alcanccedilar apoacutes o advento da moderna sociedade de consumo Segundo a loacutegica machista dos letrados escritores da Antiguidade o que conferia dignidade era a atividade fundiaacuteria participar da economia como um abastado proprietaacuterio de terras do sexo masculino e viver do trabalho de seus escravos dispondo de tempo livre para o oacutecio (otium) e assim poder refletir sobre causas mais elevadas envolvendo-se em atividades consideradas artisticamente valiosas ou iluminadoras (tais como a Retoacuterica a Literatura ou a Filosofia) Devido a este modo elitista de pensar o trabalho das pessoas comuns acabou sendo destituiacutedo de qualquer valor sobretudo o das mulheres uma vez que os escritores que contaram esta histoacuteria faziam parte desta elite e menosprezaram o peso econocircmico e social que suportaram as pessoas dos demais extratos da sociedade ou seja aqueles que precisavam trabalhar diariamente para viver ou seja a grande maioria da populaccedilatildeo

11 Cf XENOFONTE Oecon IV 2 VI 5 Cir V 3 47 ARISTOacuteTELES Poliacutetica III 5 3 IV 4 9 apoacutes ALFARO GINER 2009 p 16)

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Aqui entendido como um discurso de poder este ideal greco-romano sustentava tambeacutem que homens e mulheres deveriam viver em esferas separadas O domiacutenio puacuteblico seria prerrogativa masculina enquanto que a mulher permanecia na privacidade da esfera domeacutestica Por implicaccedilatildeo o direito de engajar-se abertamente nas artes artesanato e o comeacutercio seria teoricamente reservado aos homens12 A disseminaccedilatildeo deste ldquoidealrdquo eacute predominante nas fontes literaacuterias e haacute uma pecha elitista fortemente ligada a ele (GROEN-VALLINGA 2013 p 295) Para a elite a atuaccedilatildeo da mulher estava limitada agrave esfera da famiacutelia e da household13 a casa por excelecircncia da Antiguidade aqui entendida como unidade de produccedilatildeo o que pressupunha certa autossuficiecircncia alimentar bem como a confecccedilatildeo das vestimentas num mundo onde inexistiam as facilidades proporcionadas pelas modernas redes varejistas que dispomos atualmente Tal configuraccedilatildeo econocircmica e social determinou que

A mulher tinha um papel especiacutefico e determinado no seio da casa e portanto na cidade A famiacutelia patriarcal impocircs limites sociais que as circunscreveram ao interior do lugar Os objetivos ter certeza sobre a legitimidade da descendecircncia e usar a mulher como moeda de troca nos assuntos da famiacutelia Uma ampla seacuterie de teorias para obter a submissatildeo da mulher a esses ldquopapeis marcadosrdquo foram desenvolvendo um corpo doutrinaacuterio Partindo da base da maior forccedila masculina e da debilidade da mulher se argumenta sua diferente capacidade para a realizaccedilatildeo das vaacuterias atividades (ALFARO GINER 2009 p 16)

A fraqueza fiacutesica atribuiacuteda agraves mulheres14 intimamente relacionada com seu papel bioloacutegico como matildee foi e continua sendo uma grande

12 Na Antiguidade a noccedilatildeo que emergiu a partir dos escritos de Aristoacuteteles Xenofonte e Columela era de que a divisatildeo baacutesica do trabalho confinava ldquonaturalmenterdquo as mulheres aos ambientes fechados ocupadas em tarefas domeacutesticas enquanto o papel dos homens era adquirir fora da casa os recursos necessaacuterios segundo essas fontes literaacuterias o trabalho feminino fora da casa seria uma anomalia (FOXHALL 1989 apud BERG 2016 p 51) Este eacute um discurso de elite e nossa pesquisa busca contestar tal noccedilatildeo apoiada pela Arqueologia e por uma nova abordagem multidisciplinar

13 A concepccedilatildeo de famiacutelia na sociedade greco-romana era muito diferente da moderna O latim claacutessico natildeo nos fornece termo ou expressatildeo para o que hoje compreendemos como ldquofamiacuteliardquo na cultura ocidental contemporacircnea tampouco para o que entendemos como constitutivo do nuacutecleo parental ou familiar - matildee pai filhos A centralidade que esse nuacutecleo parental desempenhava no entanto na sociedade romana onde um vasto nuacutemero de escravos e clientes pertencia e compunha aquilo que eles chamavam de famiacutelia (um ramo da gens da linhagem patrilinear) tem sido assunto de debates e estudos normalmente envolvendo a fusatildeo ou a distinccedilatildeo entre os sentidos que damos hodiernamente agrave noccedilatildeo de famiacutelia (como family) e o que os angloacutefonos entendem como ldquohouseholdldquo (TAMANINI 2014 p 215)

14 Para uma anaacutelise pormenorizada sobre o tema vide Grubbs (2002)

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inibiccedilatildeo para sua participaccedilatildeo no mercado de trabalho As mulheres foram naturalmente predestinadas a cuidar das crianccedilas e muitas vezes ficaram em casa para fazecirc-lo como consequecircncia a gestatildeo da famiacutelia tambeacutem se tornou sua responsabilidade (GROEN-VALLINGA 2013 p 297) De tal modo que as mulheres normalmente eram exaltadas pelo seu papel familiar por sua performance em prol da sobrevivecircncia da prole e natildeo por sua produccedilatildeo econocircmica Consideremos o famoso epitaacutefio de Amymone

Hic sita est Amymone Marci optima et pulcherrima lanifica pia pudica frugi casta domiseda

Aqui jaz enterrada Amymone (esposa) de Marcus melhor e mais bonita fiandeira obediente modesta frugal casta e dona-de-casa (CIL 6 11602)15

Natildeo eacute difiacutecil perceber que a capacidade reprodutora da mulher delineou esta convenccedilatildeo social que conhecemos bem a mulher ideal deve ser fiel boa matildee e dona de casa exemplar a perfeita matrona Contudo a desigualdade de gecircnero na economia natildeo eacute imposta somente atraveacutes de uma divisatildeo de trabalho desfavoraacutevel16 Ela decorre por conta da elaboraccedilatildeo de leis que tambeacutem instituem direitos desfavoraacuteveis Na legislaccedilatildeo greco-romana os direitos das mulheres de possuir comprar e vender legar e receber legados foram severamente restritos Ademais uma ampla gama de convenccedilotildees culturais e ideoloacutegicas restringiu o progresso econocircmico das mulheres (BERG 2016 p 50)

Em iniacutecios do periacuteodo republicano as mulheres tiveram reduzidas oportunidades para administrar seus proacuteprios negoacutecios Todos os membros femininos da famiacutelia romana se encontravam sob a autoridade legal do paterfamilias17 o chefe masculino da famiacutelia (em geral o progenitor) que tinha

15 Traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Groen-Vallinga (2013 p 297) versatildeo para o portuguecircs minha

16 Tanto as leis quanto a divisatildeo do trabalho foram altamente desfavoraacuteveis agraves mulheres na Antiguidade A divisatildeo do trabalho continua bastante desigual na maioria das sociedades de modo que algumas ocupaccedilotildees ainda satildeo consideradas exclusivamente femininas ou masculinas A quantidade eou a qualidade de qualquer tipo de matildeo de obra atribuiacuteda a um determinado indiviacuteduo tambeacutem foi naturalmente fortemente ditado por fatores diversos aleacutem do gecircnero tais como status social classe riqueza idade cidadania educaccedilatildeo ambiente urbano ou rural (BERG 2016 p 50)

17 Alguns autores suspeitam que a autoridade do paterfamilias romano natildeo era tatildeo absolu-ta quanto se apregoa e pode obscurecer nossa perspectiva da realidade laquoeacute importante olhar cuidadosamente para a forccedila da convenccedilatildeo que provavelmente atenuou o exerciacutecio da autoridade paterna dando agrave matildee muitos direitos efetivos que tinham pouca ou nenhuma base na lei formalraquo (DIXON 1988 p 43)

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prerrogativa em todos os tipos de accedilotildees legais dentre as quais comprar vender contrair diacutevidas intermediar transaccedilotildees etc O poder (potestas) do paterfamilias alcanccedilava todos os membros desta grande famiacutelia romana esposa filhos escravos e outros membros do clatilde natildeo necessariamente ligados por laccedilos de sangue Se uma filha se casasse com o parceiro sob o regime sine manu18 isso significava que ela permanecia sob as ordens de seu pai Caso contraacuterio ela passava para a ldquomatildeordquo (in manu) de seu marido Em alguns casos quando o marido natildeo detinha direitos plenos a mulher podia ficar sob a potestas do seu sogro (BERDOWSKI 2007 p 285)

Em ambos os casos as mulheres natildeo administravam seus proacuteprios bens e sequer tinham direito agrave propriedade conjunta com seus cocircnjuges No entanto se uma mulher permanecia sob a potestas do paterfamilias ela poderia ganhar uma independecircncia relativa apoacutes a morte do pai tornando-se sui iuris19 Este regime juriacutedico eacute apontado por alguns estudiosos como aquele que concedia mais liberdade agraves mulheres embora esta ainda tivesse que estar sob alguma forma de ldquotutela para mulheresrdquo (tutela mulierum)20 Durante a Repuacuteblica o tutor era geralmente algueacutem da famiacutelia patrilinear por exemplo um tio paterno (GRUBBS 2002 p 24) Seu papel era realizar algumas atividades legais e negoacutecios em nome da mulher tais como um testamento transacionar algum tipo de propriedade (res mancipii) ou emancipar escravos etc Berdowski (2007 p 285) defende que este instrumento flexibilizava o poder masculino sobre a mulher jaacute que nem sempre o tutor convivia no mesmo espaccedilo domeacutestico que a mulher e muito provavelmente seu controle natildeo seria tatildeo efetivo assim De tal forma que a partir do final da Repuacuteblica cada vez menos mulheres optaram por regimes que colocavam suas propriedades e a si proacuteprias sob o jugo do marido - ao inveacutes disso elas se tornavam sui iuris apoacutes a morte de seus

18 Segundo Pomeroy (1987 p 177) e Laacutezaro Guillamoacuten (2003 p 157) a partir do seacutec II a C a maioria dos matrimocircnios eram celebrados sob o regime sine manu o que na praacutetica originou um regime de separaccedilatildeo de bens que favoreceu a independecircncia econocircmica da mulher

19 As fontes arqueoloacutegicas indicam que o trabalho tecircxtil das filhas e escravas excediam a esfera domeacutestica embora elas fossem dependentes do pai ou do dono do empreendimento Natildeo eacute difiacutecil imaginar que este contexto pudesse contribuir para que filhas ou escravas pudessem alcanccedilar respectivamente o status de sui iuris ou mesmo de libertas e como tais pudessem seguir dedicando-se profissionalmente ao ofiacutecio ao qual se especializaram (LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 p 175)

20 Parece que o propoacutesito original da instituiccedilatildeo tutela mulierum era salvaguardar a heranccedila paterna da mulher para usufruto dos familiares masculinos do pai que por sua vez seriam seus herdeiros assim que ela morresse (GRUBBS 2002 p 24) Pelo visto sempre foi muito importante que o dinheiro e as propriedades ficassem sob a guarda da famiacutelia originaacuteria o que acabou por influenciar fortemente na evoluccedilatildeo das leis de heranccedila

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pais e adquiriam um tutor ou tutores (DIXON 1988 p 43) Ou seja havia espaccedilo para resistecircncia ainda que fosse velada

Entre o final da Repuacuteblica e iniacutecios do Principado a instituiccedilatildeo da tutela mulierum foi diminuindo em relevacircncia Em 9 d C Otaacutevio Augusto introduziu a ius (trium) liberorum uma lei que liberava do jugo da tutela mulerium as mulheres livres que tivessem parido trecircs filhos e para as libertas quatro (GRUBBS 2002 p 20) O imperador Claudio (41-54 d C) por sua vez aboliu a tutela para as mulheres nascidas livres (BERDOWSKI 2007 p 286)

O direito romano tardio21 seguiu esta loacutegica progressista com o reconhecimento legal dos direitos de heranccedila da matildee e mesmo dos filhos ilegiacutetimos tendecircncia jaacute observada na legislaccedilatildeo do segundo seacuteculo Muitas leis imperiais tardias foram dedicadas agrave bona materna O direito do pai sobre a bona materna foi sendo modificado de forma a que o marido detivesse apenas o usufruto (uso e posse em vida mas natildeo a propriedade absoluta ou o direito de vender e dispor) dos bens que seus filhos viessem a receber pelo lado de sua matildee (GRUBBS 2002 p 220)

Enfim haacute diversas evidecircncias de que a instituiccedilatildeo da tutela mulerium natildeo teria sido determinante para cercear a iniciativa nem a independecircncia econocircmica das mulheres deixando espaccedilo para aquelas que demonstraram habilidades comerciais e foram empreendedoras na antiga Roma (BERG 2016 DIXON 1988 amp 1992 GRUBBS 2002 LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 BERDOWSKI 2007 amp 2008) Havia espaccedilo para promoccedilatildeo social no mundo romano e muitas mulheres estavam no jogo num contexto pautado por ampla diversidade E a Arqueologia pode nos ajudar a comprovar Observem a figura nordm 1 abaixo

21 A fonte mais importante para o conhecimento do direito romano ldquoclaacutessicordquo eacute o Digesto de Justiniano que compreende cinquenta livros selecionados a partir das volumosas contribuiccedilotildees dos mais influentes juristas romanos atraveacutes dos tempos O Digesto foi compilado sob as ordens do imperador Justiniano do seacuteculo VI (reinou entre 527-565 d C) ou seja em periacuteodo bastante posterior ao apreciado neste trabalho mas serve para indicar uma tendecircncia evolutiva Justiniano instruiu sua equipe de juristas a ler milhares de paacuteginas de textos legais claacutessicos e sintetizaacute-los em um trabalho mais exiacuteguo preservando apenas o que ainda era vaacutelido e uacutetil naquele momento histoacuterico Tal medida permitiu que os estudiosos modernos reconstruiacutessem - ainda que de forma indireta e limitada - o conteuacutedo das obras originais que atualmente estatildeo perdidas (GRUBBS 2010 p 1)

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Figura 1 Relevo funeraacuterio em maacutermore de um accedilougueiro 2 d C Fonte Foto Elke Estel Skulpturensammlung Staatliche Kunstsammlungen Dresden Germany Cor-tesia de Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz BerlinStaatliche Kunstsammlungen DresdenElke EstelArt Resource NY In KNAPP 2013 p 75

Acima relevo funeraacuterio do seacutec 2 d C com representaccedilatildeo de cena cotidiana em um accedilougue em Roma indicando de modo claro o trabalho cooperativo o homem fatia as carnes enquanto a mulher toma conta dos livros Observem agora a figura 2

Figura 2 Escultura em relevo ca2 d C Ostia Museo Ostiense Ostia Antica Itaacutelia Inv 134 Fonte Foto Schwanke (Neg 19803236) Cortesia The Deutsches Archaumlologisches Institut em

Roma In KNAPP 2013 p 75

Temos acima uma escultura em relevo (ca 2 d c) com representaccedilatildeo de cena cotidiana no mercado duas mulheres trabalhando em uma loja atendendo os clientes na compra de gecircneros alimentiacutecios Outra atividade profissional desempenhada por mulheres pode ser depreendida a partir da

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figura 3 abaixo onde apresento mais uma representaccedilatildeo de cena cotidiana no comeacutercio da cidade monumento funeraacuterio datado entre o 1 e o 2 seacutec d C dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia que exercia uma profissatildeo que eacute considerada masculina ateacute os dias atuais Seraacute que as melhores fabricantes de sapatos em tempos romanos foram as mulheres A saber

Figura 3 monumento funeraacuterio dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia data-do entre o seacutec 1 a 2 d C Fonte (CIL 144698 apud LOacuteVEN 2016 p 210)

Enfim as figuras 1 2 e 3 representam mulheres em diferentes atuaccedilotildees profissionais e reforccedilam as evidecircncias que elas faziam parte do mercado de trabalho no mundo romano Este tipo de trabalho escultoacuterio era encomendado por interessados de diversos niacuteveis sociais e natildeo haacute motivos para supor que os artistas representassem cenas fictiacutecias ou imaginaacuterias

A discriminaccedilatildeo de gecircnero sem duacutevida circunscreveu a realidade do mercado de trabalho urbano romano mas isso natildeo deve nos cegar para as variadas e vitais contribuiccedilotildees das mulheres romanas para a economia

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Dispomos de documentaccedilatildeo arqueoloacutegica comprovando que as mulheres tinham ocupaccedilotildees muito amplas que vatildeo desde sapateiras ateacute escravas que fizeram da fiaccedilatildeo (quasillaria) suas vidsa Eacute necessaacuterio explicar ao inveacutes de justificar a ocorrecircncia regular de mulheres romanas que natildeo coincidem perfeitamente com a imagem da matrona domeacutestica (GROEN-VALLINGA 2013 p 296)

O trabalho feminino e a epigrafia

A epigrafia se apresenta como uma fonte direta de informaccedilotildees pois foram pessoas de diferentes estatutos juriacutedicos que mandaram realizar as inscriccedilotildees que tomando-se as devidas precauccedilotildees podem oferecer dados capazes de apoiar algumas conclusotildees vaacutelidas (MEDINA QUINTANA 2014 p 22) Portanto essa ciecircncia tem sido utilizada para elucidar aspectos da economia romana e para evidenciar os papeacuteis econocircmicos das mulheres Cabe aqui ressaltar o trabalho inovador que foi desenvolvido por Susan Treggiari que publicou trecircs artigos sobre as ocupaccedilotildees femininas (1975 1976 e 1979) baseados nas evidecircncias epigraacuteficas da cidade de Roma no periacuteodo imperial revelando uma tendecircncia de grande interesse pela histoacuteria das mulheres no final do seacutec XX Seu estudo recuperou imensa quantidade de dados acerca das ocupaccedilotildees profissionais femininas existentes na casa imperial e equipes domeacutesticas de famiacutelias abastadas na cidade de Roma bem como entre os setores artesanais e comerciais da cidade A pesquisa alcanccedilou vaacuterias conclusotildees importantes sobre empregos masculinos e femininos e representa uma contribuiccedilatildeo valiosa para o tema Infelizmente natildeo inspirou pesquisas subsequentes capazes de oferecer uma continuaccedilatildeo adequada em relaccedilatildeo aos temas que ela desenvolveu Portanto o trabalho de Treggiari continua atual e representa um formidaacutevel ponto de partida para novos estudos sobre os papeacuteis ocupacionais das mulheres romanas (LOVEacuteN 2016 p 201)

O principal corpus disponiacutevel para a Peniacutensula Ibeacuterica eacute o CIL - Corpus Inscriptionum Latinarum a primeira grande coleccedilatildeo epigraacutefica iniciada por Theacuteodor Mommsen em meados do seacuteculo XIX haacute tambeacutem diversas revistas especializadas sobre epigrafiacutea tais como LrsquoAnneacutee Epigraphique Hispania Epigraphica ou Hispania Antiqua Epigraphica que tecircm sido atualizadas a partir da incorporaccedilatildeo de novas inscriccedilotildees ou de renovadas interpretaccedilotildees de epiacutegrafes jaacute conhecidas Haacute tambeacutem recompilaccedilotildees de epiacutegrafes romanas localizadas nas proviacutencias linha que Geacuteza Alfoumlldy iniciou em 1975 com as inscriccedilotildees de Tarraco (GOROSTIDI 2013 pp 135-143 MEDINA QUINTANA 2014 p 22)

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As mulheres fiandeiras

Dentre os trabalhos tipicamente relegados agraves mulheres um se destaca o ofiacutecio de fiar latilde ou lanificium siacutembolo da feminilidade da bondade e da castidade Uma das imagens ideais de feminilidade no mundo antigo eacute representado por uma mulher fiando Ao longo da histoacuteria o imaginaacuterio patriarcal se apropriou desta icocircnica atividade para apresentar como deveria ser o comportamento ideal de toda mulher respeitaacutevel quieta trabalhadora e pudica - o que nos remete agrave imagem da fiel Peneacutelope sempre ocupada com seu tear e aguardando o retorno de Odisseu seu marido A figura das fiandeiras se encontra bastante representada na iconografia greco-romana de tal modo que a boa esposa dos ideais greco-romanos conseguiu transcender esses mundos e permaneceu viva no imaginaacuterio burguecircs Talvez por essa razatildeo vaacuterios estudos exploraram a relaccedilatildeo entre as mulheres e o mundo tecircxtil seja sob o vieacutes simboacutelico ou instrumental O fuso e roca satildeo portanto dois elementos associados com o feminino sendo apresentadas sob as mais diversas representaccedilotildees peccedilas de teatro objetos da vida cotidiana (vasos acircnforas espelhos) enxovais mosaicos pinturas parietais estelas funeraacuterias (MEDINA QUINTANA 2009 p 52) Vejam abaixo uma das representaccedilotildees de Peneacutelope em um vaso de figuras negras do seacutec V a C

Figura 4 Peneacutelope em seu tear assistida por Telecircmaco representado em um skyphos do seacuteculo V a C Fonte lthttpwwwperseustuftseduhopperimageimg=Perseusimage1993010667gt Acesso em 26122017

Diante destas questotildees podemos sugerir que a produccedilatildeo de tecidos rompia as barreiras sociais e unia todas as romanas uma vez que esta atividade representa um ldquofiordquo condutor entre as matronas de famiacutelia de alta posiccedilatildeo

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econocircmica suas escravas e as mulheres livres de baixa condiccedilatildeo social que desempenhavam a atividade para obter seu sustento Cada grupo feminino mantinha relaccedilatildeo muito peculiar com esta atividade com certeza muito diferentes entre si No caso das aristocratas consistia mais numa representaccedilatildeo simboacutelica - especialmente durante os finais da Repuacuteblica (133-31 a C) e o Principado (31 a C - 284 d C) - enquanto que para as escravas e as mulheres livres de condiccedilatildeo humilde representou um ofiacutecio verdadeiro (idem 2009 53) Presume-se que uma das razotildees para que este trabalho fosse tatildeo difundido na Antiguidade se deve por ter alccedilado o status de uacuteltimo recurso de sobrevivecircncia das mulheres pobres livres detendo a mesma importacircncia que a costura teve para a histoacuteria do trabalho feminino no seacuteculo XIX (TREGGIARI 1979 p 69)

Fulvia Lintearia em Tarraco

Para o caso da Hispacircnia romana Cartago Nova e Tarraco foram centros portuaacuterios artesanais cosmopolitas intimamente ligados agrave Roma e ldquoconectadosrdquo com as uacuteltimas tendecircncias contando com elevado percentual populacional de cidadatildeos fluentes em latim tais como soldados membros da administraccedilatildeo provincial negociantes e comerciantes Satildeo oriundas destas duas cidades as mais conhecidas epiacutegrafes latinas em pedra na Hispacircnia para o periacuteodo Republicano muitas delas estatildeo ligadas agrave esfera civil e religiosa fazendo parte de grandes complexos sepulcrais alguns com esculturas de togados sinalizando a ligaccedilatildeo entre epigrafia e monumentalizaccedilatildeo enquanto outras refletem suas crenccedilas religiosas Com frequecircncia satildeo epitaacutefios e nestas duas cidades a epigrafia latina se apresenta como um trabalho sobretudo encomendado por particulares (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 42-43)

Tarraco22 foi uma das cidades mais prestigiadas da Antiguidade Laacute podemos identificar um grupo de mulheres e homens membros da elite social da eacutepoca graccedilas agrave epigrafia preservada (DOMINGUEZ ARRANZ GREGORIO NAVARRO 2014 p 253) Felizmente nos tempos antigos era comum utilizar a pedra como suporte para inscriccedilatildeo de textos o que permitiu que recuperaacutessemos parte da histoacuteria desses povos Vale lembrar que este conjunto de epiacutegrafes conservadas representa iacutenfima fraccedilatildeo da produccedilatildeo escrita destas sociedades jaacute que os suportes da escrita que eles costumavam utilizar eram materiais mais baratos de origem mineral vegetal e animal

22 ldquoDentre as cidades da Hispacircnia romana a Colonia Iulia Urbs Triumphalis Tarraco eacute aquela com o mais rico patrimocircnio epigraacutefico () Eacute inestimaacutevel para o estudo da histoacuteria da cidade e do mundo em geral bem como a histoacuteria social (ALFOumlLDY apud GOROSTIDI 2013 p 135)

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tais como o pergaminho o papiro tabuletas de madeira placas de argila ou cera peles e etc Mas a natureza pereciacutevel destes materiais os condenou ao desaparecimento salvo rariacutessimas exceccedilotildees como as tabuletas encontradas em Vindolanda ou na Campacircnia (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 21-22)

Como jaacute aludido muito frequentemente as inscriccedilotildees funeraacuterias aludem ao trabalho em latilde que a defunta realizava (lanifica) Mas este universo era mais complexo e diversificado as artesatildes se especializavam de acordo com a fibra empregada Por exemplo a especialista em fiar o linho23 eacute a lintearia Beltraacuten Lloris e Estaraacuten Tolosa (2011 18) vatildeo aleacutem e natildeo soacute confirmam que a palavra lintearia se refere agrave profissatildeo de tecedora de linho bem como que esta ocupaccedilatildeo sem duacutevida ocorria na cidade de Tarraco haja visto que esta era conhecida pelo cultivo da planta que produz esta fibra como jaacute foi aludido por Pliacutenio o Velho (PLIacuteNIO Hist Nat XIX 10) Pois bem algueacutem em Tarraco dedicou uma epiacutegrafe para Fulvia lintearia (datada por volta da mudanccedila de Era inscriccedilatildeo hoje desaparecida) Medina Quintana (2009 p 61) esclarece que lintearia significa ldquovendedora de lenccedilosrdquo Treggiari (1979 p 70) acrescenta que provavelmente ela seria uma vendedora de roupas e que ela proacutepria deveria fiar o tecido para produzir as peccedilas que vendia

Devo ressaltar mais uma vez o trabalho de Geacuteza Alfoumlldy (1935ndash2011) apontado como o mais proeminente cientista no campo da epigrafia latina claacutessica e um dos principais especialistas no campo da Histoacuteria Social do mundo romano - que dedicou parte de sua trajetoacuteria acadecircmica ao levantamento epigraacutefico da cidade de Tarraco Em seguida dispomos a inscriccedilatildeo perdida tal como foi registrada pelo ceacutelebre professor

Fulvia lintearia

(CIL 02 04318a apud ALFOumlLDY 1975 p 1)

Abaixo a figura 5 sugere como deveria ser a aparecircncia de uma loja de tecidos no mundo romano

23 O linho proveacutem de uma planta herbaacutecea que chega a atingir um metro de altura e pertence agrave famiacutelia das linaacuteceas Abrange um certo nuacutemero de subespeacutecies reunidas pelos botacircnicos sob o nome de Linum Usitatissimum Fonte Wikipeacutedia

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Figura 5 Estabelecimento de comeacutercio de tecidos Florenccedila Itaacutelia I d C Fonte (GLAD sd 2)

O casal enquanto unidade de produccedilatildeo

Nosso objetivo neste trabalho foi traccedilar um panorama geral de como podemos alcanccedilar a histoacuteria econocircmica das mulheres romanas atraveacutes da Arqueologia e de uma abordagem multidisciplinar adotando uma postura acadecircmica pautada pela equidade preocupada com a igualdade de gecircnero - obviamente sem a pretensatildeo de esgotar o tema Esta pesquisa pretende conscientizar que apesar das restriccedilotildees legais ideoloacutegicas e culturais pelas quais as mulheres passaram e continuam passando elas sempre desempenharam papel primordial na economia de todos os tempos Podemos resgatar suas trajetoacuterias natildeo somente como forccedila de trabalho como tambeacutem podemos destacar sua atuaccedilatildeo empreendedora lutando empenhadas em fazer sobreviver a famiacutelia e gerar sua descendecircncia aleacutem da de seu marido perpetuando um sistema As mulheres romanas se envolveram com certeza em atividades comerciais e negoacutecios em geral decerto natildeo de forma equivalente mas similar aos homens Mas natildeo soacute atuaram sempre como as inseparaacuteveis companheiras configurando-se como a outra variaacutevel da mesma equaccedilatildeo parte indissociaacutevel do casal enquanto unidade de produccedilatildeo Para os homens do povo as mulheres representavam uma oportunidade de viver mais e melhor de trabalhar e prosperar de aumentar sua qualidade de vida e garantir suas chances de transmitir seus genes adiante cumprindo o papel bioloacutegico original de ambos os sexos A uniatildeo faz a forccedila A ideia eacute antiga mas eficiente Para

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a iconografia romana do periacuteodo o gesto do dextrarum iunctio ndash o famoso aperto de matildeos direitas ndash quando realizada entre um homem e uma mulher geralmente retrata um casal legalmente casado representando um siacutembolo da uniatildeo pelo bem comum que visa instintivamente agrave perpetuaccedilatildeo da espeacutecie Tal como demonstra a figura 6 abaixo

Figura 6 Placa funeraacuteria do lanarius de C Cafurnius Antonchus e de sua esposa Veturia Deuteria em Roma ca1 d C Fonte (CIL 69489 apud LOacuteVEN 2016 p 213)

Em suma para prosperar de forma efetiva o homem precisa da mulher provavelmente mais do que a mulher precisa do homem Mas esta polecircmica fica para pesquisas posteriores

Trabalho feminino hoje

Desde o Periacuteodo Claacutessico ateacute bem recentemente o mundo do trabalho feminino seguiu sem grandes modificaccedilotildees durante milecircnios ateacute que as revoluccedilotildees do seacuteculo XIX promoveram as mudanccedilas necessaacuterias para que novos sistemas educativos permitissem o acesso da mulher agrave cultura promovendo sua atuaccedilatildeo fora de casa e sua incorporaccedilatildeo agrave toda uma seacuterie de trabalhos que num primeiro momento representaram um mero prolongamento das tarefas desempenhadas no acircmbito domeacutestico ateacute que com o tempo foram ampliando sua participaccedilatildeo nos setores reconhecidamente produtivos (BENGOOCHEA JOVE 1998 p 242)

A partir da consolidaccedilatildeo do sistema capitalista do advento do movimento sufragista e da luta pelo direito agrave representaccedilatildeo poliacutetica a evoluccedilatildeo

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da legislaccedilatildeo no que se refere aos direitos das mulheres evoluiu respondendo aos novos anseios da sociedade Apesar destas conquistas a desigualdade e exploraccedilotildees continuaram a ocorrer Natildeo obstante apoacutes as 1ordf e 2ordf Guerras Mundiais as mulheres tiveram a efetiva chance de ocupar seu espaccedilo no mercado de trabalho e desde entatildeo elas tecircm feito a diferenccedila No que se refere ao mundo ocidental estatiacutesticas apontam que as mulheres estatildeo avanccedilando em todas as aacutereas Elas respondem pela maior parte das vagas nas universidades Estatildeo conseguindo emprego com mais facilidade e seus rendimentos estatildeo crescendo em ritmo mais acelerado Contudo mesmo apoacutes tanta luta ainda natildeo alcanccedilaram posiccedilatildeo de igualdade perante os homens haja visto que continuam ocorrendo discriminaccedilotildees asseacutedios violecircncias e preconceitos que podem ser exemplificadas pela desigualdade salarial que persiste entre homens e mulheres na ordem de 30 em meacutedia Como se jaacute natildeo bastasse a representatividade das mulheres na poliacutetica e seu acesso aos cargos mais elevados do mundo corporativo e do serviccedilo puacuteblico continuam deixando muito a desejar

Isto posto fica claro de que as mulheres jaacute caminharam muito mas ainda haacute um longo caminho pela frente Contudo elas contam agora com o apoio de muitos homens que satildeo aderentes agrave sua causa e de vieses interpretativos que privilegiam a igualdade Eacute um processo que natildeo tem retorno Embora estejamos permanentemente agraves voltas com as reaccedilotildees do conservadorismo seraacute como jaacute o dissemos a rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade (BENGOOCHEA JOVE1998 p 243)

Contudo para continuarmos caminhando na direccedilatildeo da justiccedila sempre vamos precisar de mulheres que natildeo se conformam com as imposiccedilotildees da sociedade que sejam transgressoras ousadas valentes excecircntricas e fujam das normas recusem casamentos tranquilos e abram matildeo da paz do lar domesticado para descobrirem outros rumos ou para encontrarem-se consigo mesmas produzindo novos modos de estar no mundo A leitura feminista do passado permite um fortalecimento de si e das outras no presente (RAGO 2013 p 311)

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Abstract Much ink has been spilled about gender in the Roman world Nonetheless something seems to be lacking the part that is up to the women in economic production of this society Past present or future women constitute at least half the population around the globe an indispensable working force either in ancient or modern times We know that since the beginning of the ages most women were forced to work hard in tedious and repetitive tasks arbitrarily imposed The activities used to start as early as childhood and it had never been properly recognized The aim of this work is therefore to recover the role of the womenrsquos work in the economies of Roman Hispania with special attention to the case of Tarraco starting from the end of the Roman Republic until the Principate Period raising local and elsewhere evidence to show the position women deserve in the economic production of Roman societyKeywords Classical studies Roman economy Womenrsquos work Gender studies Postmodernism

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Normas de Publicaccedilatildeo

Normas de Publicaccedilatildeo

A Heacutelade eacute estruturada em trecircs seccedilotildees

a) Dossiecircs

b) Artigos de tema livre

c) Resenhas

Os dossiecircs satildeo propostos pelo Conselho Editorial que pode tanto convidar especialistas no tema quanto receber contribuiccedilotildees de autores interessados As chamadas satildeo puacuteblicas e feitas a cada ediccedilatildeo da revista Os artigos de tema livre podem abordar questotildees diversas desde que versem sobre a Antiguidade Seratildeo aceitas resenhas de livros ou coletacircneas com temaacuteticas associadas agrave Antiguidade que tenham sido publicados haacute pelo menos trecircs anos (considerando a data de envio da resenha)

Instruccedilotildees aos autores

- Exige-se que os autores tenham pelo menos o tiacutetulo de mestre Alunos de graduaccedilatildeo poderatildeo publicar artigos desde que em coautoria com doutores

- Todos os artigos satildeo avaliados por pelo menos dois pareceristas ad-hoc externos e anocircnimos no sistema de avaliaccedilatildeo por pares (duplo-cego) A publicaccedilatildeo depende tanto de sua aprovaccedilatildeo quanto da decisatildeo final do Conselho Editorial que pode recusar caso natildeo julgue adequado para compor a ediccedilatildeo

- Seratildeo aceitos artigos ineacuteditos escritos em portuguecircs francecircs inglecircs espanhol e italiano

- Os autores satildeo responsaacuteveis pela revisatildeo geral do texto

- Todas as propostas devem ser enviadas exclusivamente para o e-mail revistaheladegmailcom

Formato dos artigos

Todos os artigos deveratildeo ser enviados em formato Word (doc ou docx) margens 3 cm A4 fonte Times New Roman 12 pt Os tiacutetulos devem ser centralizados em caixa alta e negrito Abaixo do tiacutetulo agrave direita em itaacutelico e caixa normal deve constar o nome do autor com uma nota de rodapeacute indicando a maior titulaccedilatildeo a filiaccedilatildeo institucional e um e-mail para contato Em seguida

os resumos e palavras-chave em portuguecircs e liacutengua estrangeira alinhadas agrave esquerda No corpo do artigo todas as citaccedilotildees com mais de trecircs linhas devem ser destacadas As citaccedilotildees devem ser feitas da seguinte forma

- Se forem indicaccedilotildees bibliograacuteficas devem ser inseridas no corpo do texto entre parecircnteses Em caso de produccedilatildeo historiograacutefica deveraacute ser feita com sobrenome do autor ano e paacuteginas Exemplo (FINLEY 2013 p 71)

- Para citaccedilatildeo de textos antigos a indicaccedilatildeo seraacute feita com o nome do autor tiacutetulo da obra em negrito cantocapiacutetulo e passagem Exemplo (HOMERO Iliacuteada III 345)

- No caso de notas explicativas numerar e remeter ao final do artigo

Apoacutes o uacuteltimo paraacutegrafo dos artigos devem constar as Referecircncias lis-tadas em ordem alfabeacutetica pelo sobrenome do autor seguindo as normas da ABNT (NBR 10520) como nos exemplos

Para livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Ed-itora ano

Ex FINLEY Moses I Economia e Sociedade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

Para capiacutetulo de livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do Artigo In SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Editora ano p

Ex THOMAS Rosalind Ethnicity Genealogy and Hellenism in Herodo-tus In MALKIN Irad Ancient Perceptions of Greek Ethnicity Washing-ton DC Harvard University Press 2001 p 213-234

Para artigos de perioacutedicos

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do artigo Tiacutetulo do Perioacutedico Cidade v n ano p

Ex CARDOSO Ciro Flamarion O Egito e o Antigo Oriente Proacuteximo na segunda metade do segundo milecircnio aC Heacutelade Niteroacutei v 1 n 1 2000 p 16-29

Em caso de utilizaccedilatildeo de fontes especiais (grego aacuterabe hieroacuteglifo etc) o autor deveraacute enviar uma coacutepia das mesmas Caso utilize imagens aleacutem de constarem no corpo do texto as mesmas deveratildeo ser enviadas separadamente em uma resoluccedilatildeo de 300 dpi

wwwheladeuffbr

Page 2: HÉLADE - Volume 3, Número 3helade.uff.br/helade_v3_n3_edicaocompleta.pdf · 2018. 9. 20. · 3 O primeiro número da nova série (v. 1, n. 1) foi uma edição especial em que convidamos

Universidade Federal Fluminense (UFF)Instituto de Histoacuteria (IHT)

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH)Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA)

REVISTA HEacuteLADE - ISSN 1518-2541Ano 3 Volume 3 - Nuacutemero 3

Dexembro de 2017

EditoresProf Dr Alexandre Santos de Moraes (UFF)

Profa Dra Adriene Baron Tacla (UFF)Prof Dr Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF)

Assistentes de EdiccedilatildeoProfa Thaiacutes Rodrigues dos Santos (UFF)Grad Geovani dos Santos Canuto (UFF)

Profa Beatriz Moreira da Costa (UFF)

Conselho EditorialProfa Dra Ana Livia Bomfim Vieira (UEMA)

Profa Dra Ana Teresa Marques Gonccedilalves (UFG)Profa Dra Claudia Beltratildeo da Rosa (UNIRIO)

Prof Dr Faacutebio Faversani (UFOP)Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa (UFRJ)

Prof Dr Gilvan Ventura da Silva (UFES)Prof Dr Joseacute Antocircnio Dabdab Trabulsi (UFMG)

Profa Dra Maria Beatriz Borba Florenzano (USP)Profa Dra Monica Selvatici (UEL)

Prof Dr Pedro Paulo de Abreu Funari (UNICAMP)

Conselho ConsultivoProf Dr Aacutelvaro Alfredo Braganccedila Juacutenior - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof Dr Alvaro Hashizume Allegrette - Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)Prof Dr Antonio Brancaglion Juacutenior - Museu NacionalUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof Dr Andreacutes Zarankin - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)Sir Barry Cunliffe - Universidade de Oxford (Inglaterra)

Profa Dra Elaine Hirata - Universidade de Satildeo Paulo (USP)Dr Elif Keser Kayaalp - Universidade Mardin Artuklu (Turquia)

Prof Dr Faacutebio Duarte Joly - Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)Prof Dr Joatildeo Lupi - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Profa Dra Luciane Munhoz de Omena - Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)Profa Titular Lynette G Mitchell - Universidade de Exeter (Inglaterra)

Profa Dra Maacutercia Severina Vasques - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)Profa Dra Maria Aparecida de Oliveira Silva - Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Profa Dra Margarida Maria de Carvalho - Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP- Franca)Profa Dra Maria Cristina Nicolau Kormikiari Passos - Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Profa Dra Maria de Faacutetima Sousa e Silva - Universidade de Coimbra (Portugal)Profa Dra Maria Isabel drsquoAgostino Fleming - Universidade de Satildeo Paulo (USP)

PD Dr Philipp W Stockhammer - Universidade de Heidelberg (Alemanha)Profa Dra Renata Senna Garraffoni - Universidade Federal do Paranaacute (UFPR)Profa Dra Violaine Sebillotte Cuchet - Universiteacute Paris 1 Pantheacuteon-Sorbonne

Professor Emeacuterito Wolfgang Meid - Universidade de Innsbruck (Aacuteustria)

A responsabilidade pelas opiniotildees emitidas pelas informaccedilotildees e ideias divulgadas satildeo exclusivas dos proacuteprios

autores

SUMAacuteRIO

EDITORIALHEacuteLADE PRIMEIRO TRIEcircNIO DA NOVA SEacuteRIE p 4Alexandre Santos de Moraes

ARTIGOS DE TEMA LIVRE

O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEMACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA p 9Talita Nunes Silva Gonccedilalves

GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTICAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLICA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES p 19Decircnis Renan Correcirca

MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDAD Y ETERNA MEMORIA p 36Julio Loacutepez Saco

ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO p 48Camila Alves Jourdan

A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTIGUIDADE p 59Renata Cardoso de Sousa

COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeOAS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacuteTICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA p 83Alexandre Santos de Moraes

A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTODOS PODERES PARENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS p 96Bruno DrsquoAmbros

TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES p 106Paulo Pires Duprates

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO p 130

4

Editorial

Editorial

HEacuteLADE PRIMEIRO TRIEcircNIO DA NOVA SEacuteRIE

Alexandre Santos de Moraes1

Thaiacutes Rodrigues dos Santos2

Passaram-se trecircs anos desde 2015 quando decidimos pelo retorno da Heacutelade e estivemos diante de trecircs desafios interdependentes Em primeiro lugar nosso objetivo era resgatar o conteuacutedo da seacuterie original que por forccedila do tempo e das circunstacircncias encontrava-se bastante disperso e em parte inacessiacutevel Esse esforccedilo devolveu agrave comunidade acadecircmica um total de 48 artigos completamente reeditados Em segundo lugar em constacircncia com essa disposiccedilatildeo buscamos recuperar a histoacuteria da revista as iniciativas que caracterizaram sua seacuterie inicial e os princiacutepios editoriais da primeira revista eletrocircnica brasileira exclusivamente dedicada aos estudos da Antiguidade Finalmente em terceiro lugar concentramos nossas energias para consolidar a Heacutelade como um espaccedilo isonocircmico de publicaccedilatildeo amplo receptivo e democraacutetico aberto a pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do exterior Com esse nuacutemero chegamos ao primeiro triecircnio da nova seacuterie periacuteodo razoavelmente seguro para lanccedilar um olhar retrospectivo e fazer um balanccedilo dessa nova fase da revista

Ao longo desses trecircs anos foram publicados oito nuacutemeros dois em 2015 trecircs em 2016 e outros trecircs em 2017 A mudanccedila na periodicidade tem a ver com a generosa acolhida da revista junto aos especialistas e o correspondente apoio de pareceristas ad hoc que asseguraram natildeo apenas a viabilidade do sistema de avaliaccedilatildeo agraves cegas mas tambeacutem a melhoria significativa dos

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e colaborador do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) Editor da Heacutelade

2 Mestranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense (PPGHUFF) Membra do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) Assistente editorial da Heacutelade

Editorial

5

trabalhos apoacutes as criacuteticas e sugestotildees pertinentes A opccedilatildeo pela publicaccedilatildeo de dossiecircs3 estimulou diversas reflexotildees acerca de temaacuteticas prementes do nosso presente referendando natildeo apenas o fato de que toda Histoacuteria eacute por princiacutepio contemporacircnea mas tambeacutem que a Antiguidade eacute um locus privilegiado para refletirmos sobre nossos dilemas e conflitos Os nuacutemeros que sintetizam esse trabalho satildeo bastante elucidativos foram publicados ateacute o momento um total de 67 artigos o que assegura uma meacutedia de pouco mais de 8 artigos por nuacutemero

Desde o iniacutecio a revista buscou garantir a ampla participaccedilatildeo de especialistas que se dedicam ao estudo da Antiguidade Uma vez que os artigos satildeo avaliados pelo sistema ldquoduplo-cegordquo os editores partiram da premissa de que a qualidade estava antes associada ao meacuterito dos trabalhos do que pura e simplesmente agrave titulaccedilatildeo Nesse sentido ao longo desses trecircs anos acolhemos com entusiasmo artigos assinados por mestres doutorandos e doutores4 contrariando a loacutegica do doutoramento obrigatoacuterio comumente adotado como criteacuterio nas avaliaccedilotildees Outrossim como indicam os nuacutemeros 682 dos artigos foram enviados por especialistas com doutorado5 (45 no total) e 318 por mestres (22 no total) Trata-se em certa medida de uma proporccedilatildeo esperada tendo em vista que eacute usual acumular mais debates e reflexotildees agrave medida que possuiacutemos mais tempo dedicado agraves pesquisas Outrossim a participaccedilatildeo de pesquisadores em estaacutegios iniciais de formaccedilatildeo tambeacutem foi assegurada atraveacutes de artigos em coautoria Do total 56 artigos (833) foram assinados individualmente e 11 (166) em coautoria Ao longo do triecircnio a Heacutelade contou a participaccedilatildeo de 70 autores desses apenas 6 (87) assinaram mais de um artigo

3 O primeiro nuacutemero da nova seacuterie (v 1 n 1) foi uma ediccedilatildeo especial em que convidamos autores

da primeira seacuterie da revista a revisitarem os temas publicados haacute 15 anos Em seguida publicamos

dossiecircs com os seguintes tiacutetulos Literatura Antiga Tempo e Tradiccedilatildeo (v 1 n 2) Jogos Desporto e Praacuteticas Corporais na Antiguidade (v 2 n 1) Religiotildees no Mundo Antigo (v2 n 2) Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) e Etnicidade e

as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2)

4 Aleacutem de graduandos graduados e mestrados desde que em coautoria com doutores como

indicado em nossas normas de publicaccedilatildeo (httpwwwheladeuffbrnormashtml)

5 Incluindo os artigos em coautoria e nesse caso considerando a titulaccedilatildeo maacutexima de um dos

autores

6

EditorialA diversidade teoacuterico-metodoloacutegica foi assegurada pela ampla participaccedilatildeo de pesquisadores e pesquisadoras de Histoacuteria Letras Psicologia Filosofia e Arqueologia A pluralidade de temas tambeacutem ficou marcada por artigos que versavam sobre questotildees associadas agrave Antiguidade Claacutessica ao Antigo Oriente Proacuteximo e ao Ensino de Histoacuteria Em relaccedilatildeo agrave origem institucional dos autores os nuacutemeros indicam uma crescente ampliaccedilatildeo do escopo da revista e a recusa intransigente a qualquer possibilidade de endogenia A maioria dos participantes estaacute vinculada a universidades brasileiras6 (803)

6 Lista de universidades brasileiras participantes Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Universidade do Estado do Amapaacute (UEAP) Universidade Estadual do Maranhatildeo (UEMA)

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Universidade Federal do Espiacuterito Santo

(UFES) Universidade Federal Fluminense (UFF) Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Universidade Federal do Paranaacute (UFPR)

Universidade Federal do Recocircncavo da Bahia (UFRB) Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC) Universidade de Brasiacutelia (UnB) Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP) Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Editorial

7

mas a diversidade institucional dos autores estrangeiros7 (197 do total) sinaliza uma tendecircncia bastante significativa de internacionalizaccedilatildeo da Heacutelade No total foram vinte universidades brasileiras e dez universidades estrangeiras representadas por seus autores ao longo desse primeiro triecircnio

A preocupaccedilatildeo com a divulgaccedilatildeo dos trabalhos tambeacutem marcou e consolidou a participaccedilatildeo ativa da Heacutelade nas redes sociais em particular no Facebook (httpswwwfacebookcomrevistaheladeuff) Atualmente nessa rede social 4755 usuaacuterios acompanham nossas publicaccedilotildees Aleacutem de replicarmos notiacutecias relativas agrave Antiguidade divulgarmos a abertura de concursos puacuteblicos entrevistas lanccedilamentos editoriais e nuacutemeros de revistas tambeacutem dedicadas ao estudo do mundo antigo a divulgaccedilatildeo dos dossiecircs aproximou a Histoacuteria Antiga de um puacuteblico muitas vezes privado do acesso agrave produccedilatildeo acadecircmica pela forma com que nosso campo se estrutura O iacutendice de alcance das publicaccedilotildees eacute um poderoso indicativo desse movimento O uacuteltimo dossiecirc publicado Etnicidade e as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2) teve um alcance de 36272 pessoas Nuacutemero decerto bastante expressivo mas em nada equiparado ao de temaacuteticas que dialogam diretamente com questotildees poliacuteticas em que estamos diretamente envolvidos no presente da vida social O dossiecirc Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) por exemplo atingiu 51116 pessoas menos da metade das 127540 pessoas alcanccediladas pelo dossiecirc Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Esta atuaccedilatildeo atraveacutes das redes sociais seraacute ampliada no iniacutecio de 2018 com a construccedilatildeo de uma paacutegina no Academiaedu

A Heacutelade eacute resultado do envolvimento coletivo dos membros do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA) vinculado ao Departamento de Histoacuteria e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF) Trata-se de uma iniciativa somente possiacutevel no marco de um trabalho em equipe que envolve editores assistentes de ediccedilatildeo conselho editorial e conselho consultivo O crescimento e consolidaccedilatildeo da Heacutelade tambeacutem eacute a expressatildeo do suporte assegurado pela universidade puacuteblica e pelo trabalho que busca recrudescer seu caraacuteter democraacutetico assegurando o compromisso com uma instituiccedilatildeo que

7 Lista de universidades estrangeiras participantes Universidad Central de Venezuela Universidad

de Alicante Universidad de Moroacuten Universidad Nacional de Mar del Plata Universidade Aberta

de Lisboa Universitagrave degli studi di Roma ldquoTor Vergatardquo Universitagrave degli Studi di Verona

University of London Newcastle University e Universidade de Coimbra

8

Editorial

deve ser sempre gratuita e cada vez mais apta a fomentar ensino pesquisa e extensatildeo de qualidade Ainda que os nuacutemeros ajudem a produzir uma siacutentese do trabalho realizado nesse triecircnio e forneccedilam dados estatiacutesticos para os planejamentos futuros eles satildeo incapazes de representar nosso contentamento pelo acolhimento da revista A equipe da Heacutelade agradece os leitores assim como aos autores dos artigos que tambeacutem possibilitam que este trabalho aconteccedila Seguiremos com a mesma disposiccedilatildeo

Tema Livre

9

O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEM ACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA

Talita Nunes Silva Gonccedilalves1

Resumo O presente artigo visa fazer uma breve discussatildeo sobre o conceito de alteridade e seu uso nas pesquisas referentes a antiguidade grega para posteriormente abordar a construccedilatildeo da identidade helecircnica e mais especificamente a do cidadatildeo ateniense por meio da contraposiccedilatildeo com o femininoPalavras-chaves Identidade alteridade cidadatildeo Atenas feminino

Este artigo tem por objetivo inicial apresentar como o conceito de lsquoalteridadersquo tem sido abordado nas pesquisas em Histoacuteria Antiga e particularmente na Antiguidade Grega Num segundo momento propomos uma reflexatildeo concernente agrave construccedilatildeo da identidade helecircnica em contraposiccedilatildeo a figura do lsquoOutrorsquo o que se deu principalmente apoacutes o fim das guerras contra os persas Por uacuteltimo abordamos a alteridade feminina e a sua particularidade de se constituir um lsquoOutrorsquo dentro da proacutepria cultura grega e especificamente na ateniense

A noccedilatildeo moderna de lsquoalteridadersquo surge na deacutecada de 1960 no bojo dos estudos feministas e das pesquisas relativas aos esquecidos isto eacute aos excluiacutedos da histoacuteria (dentre os quais podemos citar as mulheres os escravos e os pobres) Tais estudos refletem intensamente sobre o significado deste conceito na sociedade As concepccedilotildees relativas agrave lsquoalteridadersquo se disseminaram por outros campos de estudo como a antropologia e a ciecircncia poliacutetica por meio da adaptaccedilatildeo gradativa das ideias do filoacutesofo Emmanuel Leacutevinais Seu pensamento encontra-se articulado em Alteriteacute e transcendance (1995) obra que reuacutene uma coleccedilatildeo de artigos publicados entre a deacutecada de 60 e o final dos anos 80

1 Doutora em Histoacuteria Antiga e professora substituta da Universidade Federal Fluminense Endereccedilo eletrocircnico talitanunesuolcombr

10

Tema Livre

Raphaeumll Weyland pesquisador que trabalhou com o tema Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (2012) ao refletir sobre a lsquoalteridadersquo pondera que os trabalhos publicados nos uacuteltimos anos sobre o assunto ldquonos mostram que cada um rejeita por meio da figura do lsquooutrorsquo (uma figura externa) as caracteriacutesticas que sua cultura considera negativasrdquo (WEYLAND 2012 p 4) O autor observa que ldquoeste lsquooutrorsquo natildeo eacute necessariamente eacutetnico ele pode ser tambeacutem econocircmico sexual ou mesmo poliacutetico O estudo da maneira como o outro eacute representado permite portanto compreender melhor os valores importantes da sociedade do emissor destas opiniotildees

O trabalho de Weyland relativamente recente mostra que a noccedilatildeo de lsquoalteridadersquo e os questionamentos suscitados por ela alcanccedilaram igualmente as pesquisas em histoacuteria antiga Haacute um bom nuacutemero de publicaccedilotildees que se inserem nesta perspectiva dentre as quais podemos destacar o livro O espelho de Heroacutedoto (1999) do historiador francecircs Franccedilois Hartog Esta obra tem sido desde sua publicaccedilatildeo muito importante para a reflexatildeo relativa agrave alteridade e a maneira como ela foi descrita Neste livro Hartog se concentra especialmente sobre o modo como Heroacutedoto descreveu os costumes dos citas e apresenta as contradiccedilotildees entre os relatos do historiador antigo e os dados arqueoloacutegicos Por meio da anaacutelise das Histoacuterias de Heroacutedoto o historiador francecircs busca examinar a lsquopsiquecircrsquo grega Para Hartog a identidade de um povo na antiguidade eacute definida pela documentaccedilatildeo textual por meio da contraposiccedilatildeo a um lsquooutrorsquo A identidade grega seria portanto delineada em oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de outros povos Obras como as de Edith Hall Inventing the Barbarian (1989) e de Paul Cartledge The Greeks A Portrait of Self and Others (1993) se inserem igualmente nesta perspectiva

Quanto agraves publicaccedilotildees mais recentes destacamos aqui Rethinking the Other in Antiquity (2011) de Erich Gruen The Invention of Racism in Classical Antiquity (2004) de Benjamin Isaac e The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus (2012) de Joseph Edward Skinner A escolha por mencionar estas obras se deve a fornecerem um indicativo das discussotildees atuais referentes agrave questatildeo lsquoalteridadersquo e lsquoantiguidadersquo Gruen se concentra nos gregos romanos e judeus enquanto Isaac nos dois primeiros e Skinner especificamente na Greacutecia antiga Erich Gruen busca se contrapor aos trabalhos publicados sobre alteridade na documentaccedilatildeo antiga Ele critica a visatildeo prevalecente entre os classicistas de que os povos da antiguidade reforccedilavam sua auto-percepccedilatildeo se contrapondo com o lsquoOutrorsquo frequentemente atraveacutes de estereoacutetipos e caricaturas hostis Gruen pretende mostrar como as atitudes dos antigos com relaccedilatildeo ao lsquoOutrorsquo natildeo expressam simplesmente contraste e alienaccedilatildeo

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mas tambeacutem constantemente reciprocidade e conexatildeo No entanto acaba exagerando a importacircncia das passagens que descrevem o lsquoOutrorsquo de forma positiva Jaacute Benjamin Isaac reitera a persistecircncia dos comentaacuterios negativos com relaccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo povos na documentaccedilatildeo antiga Isaac procura refutar a crenccedila comum de que os antigos gregos e romanos nutriam preconceitos eacutetnicos e culturais mas natildeo raciais Sua definiccedilatildeo de lsquoracismorsquo e o fato de se concentrar na documentaccedilatildeo textual tem sido criticados

Quanto ao livro de Skinner seu objetivo eacute suplantar a visatildeo tradicional de que a etnografia grega eacute um feito do seacuteculo V aC O autor analisa os escritos deixados pelos grandes autores da antiguidade com o intuito de perceber como os gregos antigos representavam outros povos e a si mesmos Neste sentido busca mostrar que os discursos de alteridade e identidade satildeo na realidade muito mais antigos do que os apresentados na literatura etnograacutefica relativa agraves guerras entre gregos e persas Skinner vecirc o percurso da etnografia grega como comeccedilando com Homero e segue este movimento ateacute Heroacutedoto Para ele a obra deste historiador antigo fundamental para a etnografia helecircnica delimita o que eacute ser grego Com relaccedilatildeo a este aspecto isto eacute ao que eacute ser grego Jonathan Hall reconhece a guerra contra os persas como um momento decisivo no modo como os helenos concebiam sua proacutepria identidade Ateacute entatildeo observa o autor a afiliaccedilatildeo eacutetnica (identidade eacutetnica) era preponderante na construccedilatildeo da auto-identidade helecircnica

Em Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture (2002) Jonathan Hall define a etnicidade Destacamos aqui alguns dos elementos de sua definiccedilatildeo 1) O grupo eacutetnico eacute uma auto-definiccedilatildeo de uma coletividade social que se constitui em oposiccedilatildeo a outros grupos de uma ordem semelhante 2) Liacutengua religiatildeo traccedilos culturais e elementos bioloacutegicos podem parecer ser marcadores de identificaccedilatildeo mas em uacuteltima instacircncia eles natildeo definem o grupo eacutetnico Eles satildeo marcadores superficiais 3) Os elementos centrais que determinam a participaccedilatildeo no grupo eacutetnico - e o distingue das demais coletividades sociais - satildeo uma suposta descendecircncia comum e parentesco uma associaccedilatildeo a um territoacuterio especiacutefico e um sentido histoacuterico compartilhado Nesta definiccedilatildeo a descendecircncia e parentesco comum (fictiacutecio ou natildeo) assumem uma posiccedilatildeo central Jonathan Hall no entanto argumenta que a base definidora da identidade helecircnica mudou de eacutetnica para um criteacuterio cultural durante o seacuteculo V aC Para Hall assim como para a maioria dos historiadores a guerra contra os persas fez entrar em cena a figura do baacuterbaro que passou a ser equivalente a lsquonatildeo-gregorsquo A emergecircncia da imagem estereotipada do baacuterbaro no seacuteculo V aC foi frequentemente considerada como um fator fundamental para a auto-

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definiccedilatildeo helecircnica Entretanto regularmente se supocircs que helenos e baacuterbaros eram categorias irremediavelmente opostas

Contrariamente a essa posiccedilatildeo Jonathan Hall considera que mais comumente os baacuterbaros natildeo eram vistos como uma categoria diametralmente oposta Pois se considerava que poderiam ser incluiacutedos entre os helenos Isto eacute um baacuterbaro poderia se tornar grego se adotasse a liacutengua os costumes e as praacuteticas gregas Para hall a possibilidade desse cruzamento soacute era possiacutevel porque a identidade grega passara a ser compreendida primeiramente em termos culturais O historiador observa tambeacutem que a definiccedilatildeo de helenicidade no Livro VIII das Histoacuterias de Heroacutedoto coloca os laccedilos de sangue no mesmo niacutevel dos criteacuterios culturais Contudo no plano de fundo das Histoacuterias as consideraccedilotildees culturais acabam por superar as noccedilotildees eacutetnicas nas definiccedilotildees dos grupos populacionais Jonathan Hall observa que mesmo em Tuciacutedides os baacuterbaros aparecem num estaacutegio de desenvolvimento cultural mais primitivo do que os gregos Mas haacute uma suposiccedilatildeo impliacutecita de que os baacuterbaros podem se tornar mais helecircnicos por meio da convergecircncia cultural Os escritores antigos do seacuteculo V aC mas tambeacutem do IV aC conceberiam assim as diferenccedilas humanas em termos mais culturais

Neste sentido Geneviegraveve Proulx em Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens (2008) pontua que Heroacutedoto ao desenvolver o tema central de suas Histoacuterias (as guerras entre os gregos e persas) e considerar a questatildeo das diferenccedilas culturais acaba por conceder um lugar agraves mulheres no estudo dos nomoi dos baacuterbaros Deste modo as atividades das mulheres nas exposiccedilotildees etnograacuteficas tornam-se importantes criteacuterios de descriccedilotildees Das 375 ocorrecircncias de mulheres nas Histoacuterias segundo Carolyn Dewald em Women and culture in Herodotusrsquo Histories (1981) 212 as apresentam como ativas (agindo de vaacuterias maneiras) e neste caso mais da metade das ocorrecircncias se encontram em descriccedilotildees etnograacuteficas Aleacutem disso Geneviegraveve Proulx mostra que as personagens femininas que aparecem individualizadas satildeo tambeacutem muito presentes em Heroacutedoto Estas mulheres que desempenham um papel no desenvolvimento dos eventos satildeo mais frequentemente pertencentes aos lsquobaacuterbarosrsquo O fato destas mulheres que aparecem como personagens individualizadas e das passagens que retratam as mulheres em posiccedilatildeo ativa se referirem mais comumente a natildeo-gregas apontam distinccedilotildees entre os costumes dos helenos e dos lsquobaacuterbarosrsquo

Desta forma notamos que o lsquoOutrorsquo assume um importante papel na definiccedilatildeo da identidade grega especialmente apoacutes as guerras contra os persas quando o termo lsquobaacuterbaroirsquo que se refere - como nos mostra Edith Hall - primeiramente aos persas acaba por incorporar o significado mais geneacuterico

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de natildeo-grego No entanto a definiccedilatildeo do que eacute ser grego natildeo se daacute apenas em oposiccedilatildeo ao baacuterbaro Ele natildeo eacute o lsquoOutrorsquo absoluto A cidade grega - e destacamos aqui que natildeo soacute as poacuteleis com regimes democraacuteticos -subsistia por meio de exclusotildees isto eacute por meio da segregaccedilatildeo das diferenccedilas existentes internamente Barbara Cassin e Nicole Loraux no prefaacutecio da obra Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros (1993) asseveram que a cidade grega se referindo as poacuteleis que foram democracias funcionava por meio de dois tipos de exclusotildees exteriores (estrangeiros e baacuterbaros) e interiores agrave poacutelis (mulheres metecos escravos) Isto posto iremos nos concentrar daqui em diante no papel da mulher como lsquoOutrorsquo ou seja como um dos lsquoOutrosrsquo em contraposiccedilatildeo aos quais o homem grego se definia Ademais centraremos nossa anaacutelise na Atenas Claacutessica e no papel do feminino na construccedilatildeo da cidadania ateniense isto eacute na definiccedilatildeo do cidadatildeo

Marta Mega de Andrade ao falar de seu livro A cidade das mulheres cidadania e alteridade feminina na Atenas Claacutessica (2001) afirma que ele tenta evidenciar a profunda alteridade que o gecircnero feminino representa na cultura claacutessica Nesta obra por meio do teatro ateniense de Euriacutepides e Aristoacutefanes Andrade busca observar o papel das mulheres (particularmente das lsquocidadatildesrsquo) na construccedilatildeo da cidadania ateniense A relaccedilatildeo do feminino com a cidadania surge devido ao fato de que a definiccedilatildeo da cidadania implica o reconhecimento de si e a delimitaccedilatildeo do lsquoOutrorsquo Sua definiccedilatildeo se daacute portanto em oposiccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo ou seja aos natildeo-cidadatildeos O feminino faz parte desta lsquoalteridadersquo e no espaccedilo do teatro a representa Em Euriacutepides e Aristoacutefanes vemos a mulher como o lsquoOutrorsquo na poacutelis No entanto a alteridade que ela simboliza eacute fundamental para a existecircncia da comunidade poliacuteade e da cidadania Natildeo soacute pelo papel que a poacutelis institucional lhe reserva na procriaccedilatildeo de filhos legiacutetimos e nas festas ciacutevicas mas tambeacutem pela sua atuaccedilatildeo no cotidiano (os espaccedilos que ocupa na poacutelis dos habitantes) O teatro mostra assim que o papel da mulher era muito mais amplo do que o que lhe era destinado pela lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo Assumindo a sua lsquoalteridadersquo seu caraacuteter duacutebio e potencialmente subversivo vemos em Euriacutepides as mulheres inseridas em espaccedilos que lhe satildeo negados como o da discussatildeo poliacutetica Jaacute em Aristoacutefanes a presenccedila delas na cidade eacute apresentada como uma possibilidade de governo do feminino

Em nosso entender Marta Mega de Andrade considera que ao assumir sua lsquoalteridadersquo as mulheres (e aqui se refere agraves lsquocidadatildesrsquo) ocupavam a poacutelis no cotidiano assumindo deste modo uma relaccedilatildeo ativa com a cidade Ao contraacuterio do que o modelo de recato silecircncio e reclusatildeo lhes prescrevia ao ocupar a lsquocidade do cotidianorsquo as lsquocidadatildesrsquo se apropriavam da sua caracteriacutestica como lsquoOutrorsquo A autora pontua que ao representar as mulheres ocupando espaccedilos

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o teatro as mostra por meio do desempenho de sua alteridade tomando uma posiccedilatildeo ativa na poacutelis Jaacute os discursos poliacuteticos como o Econocircmico de Xenofonte apagariam a caracteriacutestica do feminino como lsquoOutrorsquo ao mostrar as mulheres integradas ao papel (lsquorainha do larrsquo) que a cidade lhes confere como vemos abaixo

Entatildeo ordenei a minha esposa a se acostumar a ser tambeacutem disse ela mesma a guardiatilde das leis de nossa casa a inspecionar quando a ela mesma parecesse conveniente os utensiacutelios da casa como o comandante de uma guarniccedilatildeo inspeciona e examina se cada soldado estaacute em boa condiccedilatildeo como o conselho examina os cavalos e seus cavaleiros a elogiar e a honrar como uma rainha a quem for digno de ser e a reprovar e castigar a quem disso precisa (XENOFONTE Econocircmico IX 14-15)

Deste modo para a historiadora a poacutelis ateniense era tambeacutem uma lsquopoacutelis das mulheresrsquo

Marta Mega de Andrade pretende assim fazer ver que o tal lsquoclube de homensrsquo que teria sido a cidade grega (modelo que a historiografia ao longo do tempo reproduziu) era na verdade apenas uma parte do que constituiacutea a cidade A poacutelis que as mulheres ocupavam (a cidade das mulheres) natildeo era a lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo a poacutelis institucionalizada mas sim a lsquocidade cotidianarsquo As lsquocidadatildesrsquo transitavam entre as duas cidades A dos cidadatildeos e suas famiacutelias (a lsquocidade dos incluiacutedosrsquo) e a dos outros (ocupada pelos lsquoexcluiacutedosrsquo isto eacute por aqueles que natildeo eram cidadatildeos) Ademais segundo Violaine Sebillotte Cuchet as mulheres tambeacutem desempenhariam o poliacutetico Embora natildeo como os cidadatildeos masculinos que o desempenhavam por exemplo por meio de sua atuaccedilatildeo na assembleacuteia De acordo com a historiadora a

praacutetica ciacutevica funcionava factualmente graccedilas agrave inclusatildeo do lado escondido do ldquopoliacuteticordquo ou seja as cidadatildes () Nas praacuteticas ciacutevicas uacutenicos lugares efetivos do poliacutetico operavam cidadatildeos e cidadatildes Essas praacuteticas incluiacuteam para os primeiros assembleias deliberativas e judiciaacuterias e para todos os rituais comuns (incluindo o teatro) o intercacircmbio de bens (terras principalmente) e de pessoas (casamentos e adoccedilotildees) (CUCHET 2015 pp 17-18)

Isto posto retomemos a perspectiva de anaacutelise de Marta Mega de Andrade com relaccedilatildeo a caracterizaccedilatildeo de feminino em Xenofonte

Ao contraacuterio do que Andrade afirma natildeo consideramos que ldquoa alteridade feminina se perde em Xenofonterdquo Acreditamos que ela ainda estaacute presente em

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seu discurso Mesmo que o perigo do lsquoOutrorsquo feminino pareccedila apaziguado pela integraccedilatildeo da mulher como esposa e rainha do lar a alteridade representada pelo feminino ainda estaacute presente Pois no Econocircmico as atividades de Iscocircmaco e os espaccedilos em que deveria desenvolver preferencialmente suas funccedilotildees (o espaccedilo puacuteblico) se contrapotildeem as atividades de sua esposa e ao espaccedilo no qual as deveria desempenhar (o oicirckos) Embora as atividades de Iscocircmaco e de sua esposa se complementem natildeo deixam de ser diferentes Por conseguinte o papel do lsquocidadatildeorsquo e suas atribuiccedilotildees satildeo delimitados em contraposiccedilatildeo ao da lsquocidadatildersquo Desta forma mesmo neste discurso no qual o feminino eacute integrado (adequado) ele ainda representa o lsquoOutrorsquo E consideramos que mesmo quando a lsquocidadatildersquo procura observar os preceitos de comedimento silecircncio e reclusatildeo elas carregam o estigma da suspeita Violaine Sebillotte Cuchet pontua que

as cidadatildes nunca foram uma classe agrave parte nem tampouco foram percebidas pelos cidadatildeos como um grupo ameaccedilador ou reivindicativo Agraves vezes as mulheres enquanto matildees e esposas enquanto parceiras sexuais e parceiras de filiaccedilatildeo excitaram a imaginaccedilatildeo o desejo ou o oacutedio dos homens e natildeo as cidadatildes enquanto tais (CUCHET 2015 pp 17-18)

No entanto mesmo que as lsquocidadatildesrsquo enquanto grupo natildeo despertassem o temor dos homens consideramos que como mulheres elas levavam consigo o peso do estigma referido acima Pois as mulheres satildeo lsquofilhas de Pandorarsquo personagem miacutetica que personifica a alteridade do feminino no pensamento grego

Pandora eacute a primeira mulher Dela descende todo o genos gunaikon A narrativa miacutetica de sua criaccedilatildeo se encontra nos poemas Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo O mito de Pandora assim como os de outras sociedades se insere no conjunto de narrativas miacuteticas que ao abordar a criaccedilatildeo da mulher explicam o porquecirc existem dois sexos e natildeo apenas um Em tais narrativas a mulher eacute frequentemente um adendo na criaccedilatildeo Isto eacute ela eacute criada posteriormente a emergecircncia do homem O motivo dessa criaccedilatildeo secundaacuteria eacute explicado com frequumlecircncia nos mitos por uma atitude de uma divindade masculina visando atingir os homens Na tradiccedilatildeo judaico-cristatilde a criaccedilatildeo de Eva no livro do Gecircneses eacute mostrada como um ato de compaixatildeo divina a mulher eacute criada para amenizar a solidatildeo do homem Jaacute no mito grego o surgimento de Pandora decorre da fuacuteria de Zeus Independente do motivo de sua criaccedilatildeo o surgimento da mulher estabelece a condiccedilatildeo humana Isto eacute a mulher ldquointroduz a morte a anguacutestia e o mal no mundordquo assim como o trabalho penoso (ZEITLIN 2003 p 59)

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Eacute esta temaacutetica o estabelecimento da condiccedilatildeo humana - a diferenciaccedilatildeo entre homens e deuses juntamente com a origem do cosmos e a reparticcedilatildeo das prerrogativas e domiacutenios entre as divindades oliacutempicas que constitui o assunto da Teogonia Como puniccedilatildeo ao ardil do titatilde Prometeu por roubar o fogo Zeus cria a mulher um mal sobre a aparecircncia de um bem E mesmo se o homem resolve se apartar dele fugindo do casamento natildeo fica imune aos efeitos danosos que surgem com a criaccedilatildeo da mulher

Quem quer que fugindo do casamentoe atos perniciosos das mulheresescolhe natildeo se casar chega a velhice destrutivasem algueacutem para cuidar dele em sua avanccedilada idade(HESIacuteODO Teogonia vv 603-605)

Em Os Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo tambeacutem aborda a partir dessa perspectiva o surgimento da mulher

Entatildeo encolerizado disse o agrega-nuvens ZeuslsquoFilho de Jaacutepeto sobre todos haacutebil em suas tramas apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhasgrande praga para ti e para os homens vindourospara esses em lugar do fogo eu darei um mal e todos se alegraratildeo no acircnimo mimando muito este malrsquo(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 53-105)

Por conseguinte neste poema o poeta tambeacutem aborda o estabelecimento da condiccedilatildeo humana a partir da mulher Hesiacuteodo nomeia a primeira mulher como Pandora e se concentra na descriccedilatildeo detalhada dos dons (dolos) que lhe foram conferidos pelos deuses Pandora que eacute dada ao irmatildeo de Prometeu Epimeteu abre a jarra que continha todos os males os espalhando pelo mundo A partir de entatildeo os homens conviveratildeo com doenccedilas e muitas anguacutestias

Antes vivia sobre a terra a grei dos humanosa recato dos males dos difiacuteceis trabalhos das terriacuteveis doenccedilas que ao homem potildeem fimmas a mulher a grande tampa do jarro alccedilando dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 90-95)

No entanto de acordo com Pauline Schmitt Pantel o mito grego da criaccedilatildeo da mulher vai mais longe do que outras narrativas da criaccedilatildeo em sua avaliaccedilatildeo negativa das mulheres (2009) Pois como vimos Pandora eacute um ardil criado por ordem de Zeus e utilizado com o objetivo de se vingar da astuacutecia

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de Prometeu Criada com a intenccedilatildeo de causar um dano a natureza da mulher eacute ser um mal (SCHMITT PANTEL 2009 p 196) Aleacutem disto as mulheres (o geacutenos gunaikon) no mito grego aparece como um grupo a parte Embora a forma da mulher se assemelhe a humana ela natildeo pertence agrave humanidade Entretanto ela natildeo pertence igualmente ao acircmbito divino O feminino eacute um lsquooutrorsquo por natureza Sua alteridade estaacute ligada a ser um ardil um engano e a sua natureza ambiacutegua (natildeo faz parte da humanidade e nem da esfera divina) Marta Mega de Andrade pontua que eacute devido a alteridade do feminino estar ligada a sua ambiguumlidade que ele pode representar o lsquoOutrorsquo dentro de um nomos

Destarte em Hesiacuteodo jaacute podemos ver bem delineada a alteridade do feminino Seus poemas segundo Pauline Schmitt-Pantel se tornaram canocircnicos no pensamento grego como narrativas da criaccedilatildeo da ordem vigente do mundo e como base dos valores gregos O mito de criaccedilatildeo de Pandora representado em seus poemas teve portanto um impacto sobre a maneira como as mulheres foram vistas e o lugar que ocuparam na sociedade da Greacutecia Antiga A negatividade com que Hesiacuteodo representou agraves mulheres se tornou a base de uma atitude permanente com relaccedilatildeo a este lsquoOutrorsquo Desta forma seus poemas influenciaram os autores gregos das eacutepocas posteriores que as trataram como uma ameaccedila a unidade da sociedade masculina (SCHMITT-PANTEL 2009 p 198) Acreditamos que essa atitude negativa com relaccedilatildeo ao feminino baseada nas caracteriacutesticas que lhe foram atribuiacutedas pelo mito de criaccedilatildeo e que foram reproduzidas pelos demais autores gregos tiveram ressonacircncia na lsquoexclusatildeorsquo das mulheres da poacutelis institucionalizada

Abstract The present article aims to make a brief discussion about the concept of alterity and its use in researches concerning Greek antiquity to later address the construction of the hellenic identity and more specifically that of the athenian citizen through the opposition with the feminineKeywords Identity alterity citizen Athens feminine

Bibliografia

Documentaccedilatildeo TextualHESIacuteODO Teogonia Trad Jaa Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2006________ Os Trabalhos e os Dias TradLuiz Otaacutevio de Figueiredo Satildeo Paulo

Odysseus 2011XEacuteNOPHON Eacuteconomique Paris Les Belles Lettres 1949

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Referecircncias BibliograacuteficasANDRADE Marta Mega de A cidade das mulheres cidadania e alteridade

feminina na Atenas Claacutessica Rio de Janeiro LHIA 2001 CARTLEDGE Paul The Greeks A Portrait of Self and Others Oxford Oxford

University Press 1993CASSIN Barbara LORAUX Nicole PESCHANSKI Catherine Gregos

Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros Editora 34 1993 DEWALD C Women and culture in Herodotusrsquo Histories In Reflections of

Women in Antiquity New York Routledge 1981GRUEN Erich S Rethinking the Other in Antiquity Princeton Princeton

University Press 2011HALL Edith Inventing the Barbarian Inventing the Barbarian Greek Self-

Definition through Tragedy Oxford Clarendon Press 1989HARTOG Franccedilois O Espelho de Heroacutedoto ensaio sobre a representaccedilatildeo do

outro Belo Horizonte UFMG 1999HALL Jonathan Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture University of

Chicago Press 2002 ISAAC Benjamin The Invention of Racism in Classical Antiquity Princeton

Princeton University Press 2004LEacuteVINAIS Emmanuel Alteriteacute e transcendance Fata Morgana 1995PROULX Geneviegraveve Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens Tese

(Doutorado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Doctorat en histoire Queacutebec Canada 2008

SCHMITT-PANTEL Pauline Aithra et Pandora Femmes Genre et Citeacute dans la Gregravece antique Paris LrsquoHarmattan 2009

SEBILLOTTE CUCHET Violaine Cidadatildeos e cidadatildes na cidade grega claacutessica Onde atua o gecircnero Revista Tempo Niteroacutei v21 n38 2015 p1-20 SKINNER Joseph Edward The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus New York Oxford University Press 2012

WEYLAND Raphaeumll Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (Ammien Marcellin Theacuteodoret de Cyr Procope de Ceacutesareacutee) Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Queacutebec Canada 2012

ZEITLIN Froma I lsquoCap4 Signifying difference the myth of Pandorarsquo In HAWLEY Richard LEVICK Barbara (ed) Women in Antiquity new assessments 2003 p58-74

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GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTI-CAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLI-CA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES

Decircnis Renan Correcirca1

ldquoPor que fazer o elogio do anacronismo quando se eacute historiador Talvez para convidar os historiadores a se dispor agrave escuta do nosso tempo de incertezas prestando atenccedilatildeo a tudo que ultrapassa o tempo da narraccedilatildeo ordenada as disparadas assim como as ilhas de imobilidade negam o tempo na histoacuteria mas fazem o tempo da histoacuteriardquoNicole Loraux Eacuteloge de lrsquoanachronisme em histoire 2005

Resumo O artigo aborda o vocabulaacuterio e a estrutura de referecircncias sobre rupturas poliacuteticas e institucionais na aristoteacutelica Constituiccedilatildeo dos Atenienses com o intuito de problematizar a ideia de golpe juriacutedico-parlamentar contra a presidente brasileira Dilma Roussef em 2016 e os imbroacuteglios eacuteticos e conceituais desde tipo de mudanccedila poliacutetica O texto discute o vocabulaacuterio antigo especialmente no contexto ateniense com ecircnfase no pensamento poliacutetico de Aristoacuteteles Palavras-chave Constituiccedilatildeo dos Atenienses golpes de Estado rupturas poliacuteticas

1 A definiccedilatildeo de golpe de Estado eacute difiacutecil e polecircmica O termo significa a deposiccedilatildeo do poder de alguma pessoa ou instituiccedilatildeo legalmente investida de autoridade com diferentes graus de violecircncia eou cerceamento poliacutetico Sua formulaccedilatildeo claacutessica remonta ao seacuteculo XVII na obra Consideacuterations politiques sur les coups drsquoestat de Gabriel Naudeacute Concebida no contexto intelectual do debate sobre as ldquorazotildees de Estadordquo a obra oferece uma visatildeo mais ampla e positiva da ideia de golpe de Estado do a que utilizamos hoje podendo ser definida como uma medida extraordinaacuteria que excede as leis mas que um priacutencipe se vecirc obrigado a executar em vista do bem comum (GONCcedilALVES 2015 p 10 p

1 Prof Adjunto de Histoacuteria Antiga da UFRB Eacute Licenciado e Mestre em Histoacuteria pela UFRGS e atualmente realiza doutoramento em Estudos Claacutessicos pela Universidade de Coimbra E-mail para contato dniscorreagmailcom

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26-33) Trata-se claramente de uma defesa maquiaveacutelica da estrateacutegia poliacutetica na qual governantes desrespeitam as leis do Estado e fazem uso de violecircncia ilegal com uma racionalidade poliacutetica especiacutefica e supostamente nobre No entanto na contemporaneidade o termo eacute qualificado pela violecircncia poliacutetica expliacutecita e portanto possui um tom predominantemente negativo

No vocabulaacuterio histoacuterico contemporacircneo golpe de Estado faz fronteira semacircntica (e eacutetica) com a expressatildeo revoluccedilatildeo social pois possui sentido semelhante mas natildeo coincidente Ateacute o seacuteculo XVII o termo revoluccedilatildeo expressava a rotaccedilatildeo ciacuteclica e natural dos astros mas no XVIII ele toma forma como uma operaccedilatildeo histoacuterica proacutepria de uma ideologia do progresso (KOSELLECK 2006 p 37) A distinccedilatildeo reside na emergecircncia de algo inteiramente novo na Histoacuteria (ARENDT 1988 p 17-23) diferentemente das mudanccedilas ciacuteclicas concebidas por Naudeacute e Maquiavel Sendo um produto linguiacutestico da modernidade europeia a revoluccedilatildeo passa a expressar ambivalentemente golpes poliacuteticos sangrentos e inovaccedilotildees cientiacuteficas (KOSELLECK 2006 p 62) o que jaacute denota seu verniz mais positivo em contraste com a racionalidade de Estado maquiaveacutelica com que Naudeacute defendeu o golpe de Estado Nas concepccedilotildees iluministas e marxistas revoluccedilatildeo pressupotildee mudanccedilas natildeo apenas no aparelho estatal mas tambeacutem na proacutepria tessitura da sociedade tendo como exemplo as revoluccedilotildees liberais e socialistas na Europa contra o Antigo Regime

Em resumo revoluccedilatildeo social se distingue de golpe de Estado pela noccedilatildeo de progresso social e histoacuterico que de certa forma justifica a ruptura poliacutetica e social violenta Desta forma configura-se uma dicotomia entre golpe de Estado e revoluccedilatildeo social no que diz respeito agraves rupturas institucionais que remetem agraves ideias de retrocesso e progresso social e histoacuterico No entanto esta dicotomia faz sentido ainda hoje Qual outro arcabouccedilo conceitual se pode procurar para explicar perturbaccedilotildees poliacuteticas contemporacircneas

Os exemplos na histoacuteria recente do Brasil tecircm sido definidos a partir da dicotomia descrita acima em livros didaacuteticos brasileiros a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ainda eacute mencionada ambiguamente como Revoluccedilatildeo de 30 ou Golpe de 30 assim como de forma menos frequente o Golpe de Estado Civil-Militar de 64 tambeacutem eacute caracterizada como revoluccedilatildeo ainda que somente por seus defensores mais abertos entre eles figuras protofascistas como o parlamentar Jair Bolsonaro que goza de relativa popularidade na sociedade brasileira Desta forma o golpe de Estado natildeo se caracteriza soacute por ser violento mas por

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ser um retrocesso portanto algo negativo Recentemente este imbroacuteglio eacutetico-conceitual se abre novamente com a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 no qual os seus opositores acusam um golpe de Estado ainda que juriacutedico-parlamentar sem apoio militar

Ainda que amparado por forccedilas poliacuteticas legiacutetimas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal o processo que derrubou Rousseff eacute flagrantemente fruto de um regime de exceccedilatildeo que fez da Presidenta um bode expiatoacuterio de escacircndalos de corrupccedilatildeo que penetram em quase toda classe poliacutetica brasileira especialmente os protagonistas da sua deposiccedilatildeo o entatildeo presidente da Cacircmara dos Deputados Eduardo Cunha e o vice-presidente Michel Temer Cerca de um ano depois do Impeachment Eduardo Cunha encontra-se condenado a 15 anos de prisatildeo por corrupccedilatildeo e o Presidente em exerciacutecio Michel Temer vive intensa crise de legitimidade devido a gravaccedilotildees que comprovam seu envolvimento em crimes de corrupccedilatildeo Golpe Impeachment A discussatildeo precisa partir do consenso da irregularidade do sistema poliacutetico brasileiro que atuou na deposiccedilatildeo Aleacutem disso precisa desnudar as forccedilas sociais atuantes neste processo

O que o pensamento poliacutetico grego claacutessico tem a nos dizer sobre tal imbroacuteglio eacutetico-conceitual contemporacircneo Grosso modo os termos golpe de Estado e revoluccedilatildeo social natildeo tecircm correspondentes na antiguidade (ARENDT 1988 p 17) e comparar sociedades tatildeo diacutespares eacute obviamente arriscado Por outro lado a proacutepria estrutura de referecircncias a partir de qual o pensamento moderno atribui sentido ao jogo poliacutetico eacute oriundo do vocabulaacuterio claacutessico poliacutetica democracia oligarquia povo e aristocracia satildeo termos inequiacutevocos desta aproximaccedilatildeo entre antigos e modernos O objetivo aqui eacute discutir quais eram as referecircncias para a ideia de ruptura poliacutetica na Atenas antiga e especular como elas podem ajudar a compreender as disputas e reviravoltas contemporacircneas Para tanto opta-se por analisar a Constituiccedilatildeo dos Atenienses obra escrita em Atenas na segunda metade do seacutec IV a C pela escola peripateacutetica sob direccedilatildeo de Aristoacuteteles Ao fim do artigo voltarei a discutir o Impeachment de 2016 ao governo de Dilma Rousseff

Os noticiaacuterios da poliacutetica brasileira se assemelham a um enredo de traiccedilotildees delaccedilotildees e reviravoltas constantes mas eacute providencial extrair daiacute alguma racionalidade que nos ajude a sair do ciacuterculo vicioso de crise e paralisia poliacutetica imposta por instrumentos oligaacuterquicos de poder Como historiador e antiquista sigo o espiacuterito da epiacutegrafe que abre este artigo e disponho-me a

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escutar este tempo de incertezas de forma que o recurso das fontes antigas possa gerar o estranhamento necessaacuterio que dissolva o assombro intelectual diante das maliacutecias do poder contemporacircneo

2 No capiacutetulo 412 a Constituiccedilatildeo dos Atenienses enumera as mudanccedilas (μεταβολαί) no regime poliacutetico (πολιτεία2) ateniense ateacute a eacutepoca de sua escrita entre os anos 329 e 322 a C (RHODES 1992 p 51-58) A uacuteltima mudanccedila ocorre em 403 quando Trasiacutebulo liderou a facccedilatildeo popular que ocupava militarmente a regiatildeo portuaacuteria (ldquoFilerdquo e ldquoPireurdquo na citaccedilatildeo abaixo) numa guerra aberta contra os Trinta Tiranos que haviam sido postos no poder com apoio do estratego espartano Lisandro apoacutes a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso O cap 412 passa em resumo as mudanccedilas que ocorreram desde o periacuteodo heroico ateacute esta restauraccedilatildeo de 403

Das mudanccedilas [de regime] esta foi a deacutecima primeira em quantidade Desde o princiacutepio a primeira aconteceu com a migraccedilatildeo de Ion e seus companheiros pois entatildeo pela primeira vez foram formadas as quatro tribos e se estabeleceram os reis das tribos A segunda mas a primeira a ter uma forma de regime poliacutetico foi a ocorrida na eacutepoca de Teseu pouco divergindo da realeza Depois desta foi a da eacutepoca de Draacutecon na qual leis foram publicadas pela primeira vez A terceira depois da staacutesis na eacutepoca de Soacutelon e a partir da qual se tornou o comeccedilo da democracia A quarta foi a tirania na eacutepoca de Pisiacutestrato A quinta apoacutes a derrubada dos tiranos foi a de Cliacutestenes mais democraacutetica que a de Soacutelon A sexta foi depois das Guerras com os Medos estando a cargo do Conselho do Areoacutepago A seacutetima depois desta foi a que Aristides comeccedilou e Efialtes completou tendo derrubado o Conselho do Areoacutepago e nesta aconteceram muitos equiacutevocos por causa dos demagogos e do impeacuterio mariacutetimo A oitava foi o estabelecimento dos Quatrocentos e logo em seguida a nona foi a democracia de novo A deacutecima foi a tirania dos Trinta e a dos Dez A deacutecima primeira foi depois do retorno daqueles de File e do Pireu a partir da qual se desenvolveu ateacute a que existe hoje sempre aumentando o poder para a multidatildeo3

2 O termo denomina os direitos poliacuteticos individuais e o sentimento de pertencimento dos cidadatildeos das poacuteleis antigas mas tambeacutem o regime poliacutetico de uma poacutelis tradicional dividido num esquema tripartite do criteacuterio de extensatildeo da soberania poliacutetica para apenas um individuo (monarquia) para poucos (oligarquia) ou para muitos (democracia) Esta classificaccedilatildeo teraacute desdobramentos em outros tipos e tambeacutem existira na tradiccedilatildeo claacutessica todo um gecircnero literaacuterio das politeiacuteai do qual a proacutepria Constituicao dos Atenienses faz parte Ver BORDES 1982 16-46 231-260

3 Todas Traduccedilotildees de textos antigos satildeo de minha autoria Constituiccedilatildeo dos Atenienses 412 ἦν δὲ τῶν μεταβολῶν ἑνδεκάτη τὸν ἀριθμὸν αὕτη πρώτη μὲν γὰρ ἐγένετο μετάστασις τῶν ἐξ ἀρχῆς Ἴωνος καὶ τῶν μετrsquo αὐτοῦ συνοικησάντων τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς καὶ τοὺς φυλοβασιλέας κατέστησαν δευτέρα δὲ καὶ πρώτη μετὰ

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As rupturas institucionais satildeo chamadas μεταβολαί isto eacute mudanccedilas e estas somam onze no periacuteodo narrado pela obra Mas o que satildeo tais mudanccedilas Obviamente implicam num novo regime poliacutetico mas o que isto significa Certamente nada semelhante ao novo da revoluccedilatildeo Moderna (ARENDT 1988 p 17) A derrubada de pessoas em cargos de poder ou de uma instituiccedilatildeo Elas sempre ocorrem de forma violenta Um novo regime pode advir legalmente e pacificamente Quais os criteacuterios da Constituiccedilatildeo dos Atenienses para definir uma μεταβολή

O comeccedilo da obra estaacute mutilado e natildeo temos informaccedilatildeo sobre as duas primeiras mudanccedilas aleacutem do texto acima nada mais do que a racionalizaccedilatildeo dos mitos heroicos de Ion e Teseu A obra destaca a novidade de cada mudanccedila na de Ion foram formadas as quatro tribos pela primeira vez (τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς) na de Teseu o governo assumiu a forma de πολιτεία pela primeira vez (πρώτη μετὰ ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις) ainda que pouco divergindo da realeza (μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς) Da terceira mudanccedila temos apenas uma breve descriccedilatildeo no cap 4 que eacute considerado uma interpolaccedilatildeo por muitos autores (RHODES 1992 84-88 FRITZ 1954) e esta tambeacutem destaca uma novidade Draacutecon publicou leis pela primeira vez (ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον) Cabe notar a estranha redaccedilatildeo na qual a mudanccedila de Draacutecon natildeo eacute contabilizada a que vem a seguir eacute listada como ldquoterceirardquo (τρίτη) o que soacute reforccedila a ideia de tratar-se de fato de uma interpolaccedilatildeo inserida posteriormente

A terceira mudanccedila apresenta um ingrediente que acompanharaacute todas as seguintes a στάσις na cidade gera uma μεταβολή na πολιτεία ateniense O termo στάσις significa ldquotomar posiccedilatildeordquo mas tambeacutem ldquolevantar-serdquo (BAILLY 1901) assim como a ideia moderna de um ldquolevanterdquo mas nem sempre enquanto combate violento A στάσις eacute frequentemente traduzida por ldquoguerra civilrdquo mas eacute importante distinguir da bellum civile romana como a que opocircs Maacuterio e Sula sendo o exemplo romano uma guerra de fato cada lado constituiacutedo

ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις ἡ ἐπὶ Θησέως γενομένη μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς μετὰ δὲ ταύτην ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον τρίτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν στάσιν ἡ ἐπὶ Σόλωνος ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο τετάρτη δrsquo ἡ ἐπὶ Πεισιστράτου τυραννίς πέμπτη δrsquo ἡ μετὰ ltτὴνgt τῶν τυράννων κατάλυσιν ἡ Κλεισθένους δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος ἕκτη δrsquo ἡ μετὰ τὰ Μηδικά τῆς ἐξ Ἀρείου πάγου βουλῆς ἐπιστατούσης ἑβδόμη δὲ ἡ μετὰ ταύτην ἣν Ἀριστείδης μὲν ὑπέδειξεν Ἐφιάλτης δrsquo ἐπετέλεσεν καταλύσας τὴν Ἀρεοπαγῖτιν βουλήν ἐν ᾗ πλεῖστα συνέβη τὴν πόλιν διὰ τοὺς δημαγωγοὺς ἁμαρτάνειν διὰ τὴν τῆς θαλάττης ἀρχήν ὀγδόη δrsquo ἡ τῶν τετρακοσίων κατάστασις καὶ ltἡgt μετὰ ταύτην ἐνάτη δέ ἡ δημοκρατία πάλιν δεκάτη δrsquo ἡ τῶν τριάκοντα καὶ ἡ τῶν δέκα τυραννίς ἑνδεκάτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν ἀπὸ Φυλῆς καὶ ἐκ Πειραιέως κάθοδον ἀφrsquo ἧς διαγεγένηται μέχρι τῆς νῦν ἀεὶ προσεπιλαμβάνουσα τῷ πλήθει τὴν ἐξουσίαν

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por um exeacutercito organizado pois os latinos chamariam στάσις de seditio ou secessio sediccedilatildeo ou secessatildeo (BOTTERI 1989 pp 87-100) Estas ocorrem dentro do coletivo de cidadatildeos e natildeo entre dois grupos de cidades diferentes o que designa o termo πόλεμος guerra (LORAUX 2009 p 41 pp 51-52 p 61) logo στάσις estaacute fora do modelo tradicional de guerra e seu ideal ciacutevico de combate militar Em contraste com este caraacuteter positivo da πόλεμος a στάσις eacute vista como negativa como uma interrupccedilatildeo do equiliacutebrio e da ordem ou mesmo uma doenccedila da cidade (LORAUX 2009 p 58 p 61) Tal negatividade se expressa na religiosidade pois a recuperaccedilatildeo de uma στάσις muitas vezes pode exigir alguma forma de purificaccedilatildeo religiosa como a que o saacutebio Epimecircnides de Creta realizou em Atenas apoacutes a tentativa de tomar o poder na cidade realizada por Ciacutelon (Constituiccedilatildeo dos Atenienses cap 11)

Aleacutem disso a στάσις grega opotildee dois grupos de cidadatildeos de um lado o povo (δῆμος) ou multidatildeo (πλῆθος) do outro os notaacuteveis (γνώριμοι) ricos (πλούσιοι) ou poucos (ολίγοι) A oposiccedilatildeo se expressa na forma de antiacutetese e assimetria um polo eacute formado pelos que satildeo muitos anocircnimos e pobres enquanto o outro pelos que satildeo poucos ilustres e ricos4 Natildeo por acaso a Constituiccedilatildeo dos Atenienses destaca que o regime de Soacutelon apoacutes a στάσις que ele arbitrou sem tomar partido tornou-se o comeccedilo da democracia5 (ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο) Segundo John J Keaney (1963 pp 128-136) a obra narra a expansatildeo do poder do povo sobre as instituiccedilotildees da poacutelis especificamente os Tribunais a Assembleia e as magistraturas e cada uma das mudanccedilas de regime representa um avanccedilo ou recuo do povo sobre tais instituiccedilotildees De fato a partir de Soacutelon a obra natildeo menciona mais aquilo que aconteceu pela primeira vez em cada regime mas sempre destaca o conflito entre estas forccedilas antiteacuteticas e assimeacutetricas como a causa de um novo regime

Boa parte destas στάσεις da obra consiste na instauraccedilatildeo ou derrubada de tiranias de forma violenta (quarta quinta deacutecima e deacutecima primeira mudanccedilas) portanto estas analisarei estas pois satildeo conflitos militares com campos bem definidos Natildeo discutirei tambeacutem o complexo termo τυραννίς mas eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a ruptura institucional e os conflitos sociais nas cidades antigas (TRABULSI 1984 e IRWIN 2008 pp 205-261) No entanto haacute στάσεις que natildeo se confundem com πόλεμοι ou seja natildeo satildeo conflitos militares portanto satildeo operadas dentro de limites legais tornando-

4Observa-se o eco do pensamento aristoteacutelico da Poliacutetica 1296a segundo a qual o lado vencedor impotildee um regime de natureza oligaacuterquica ou democraacutetica

5Segundo a ideia tipicamente aristoteacutelica que Soacutelon foi o criador do regime mas natildeo previu suas caracteriacutesticas negativas posteriores Ver a Constituiccedilatildeo dos Atenienses 92 e a Poliacutetica II 1274a-b

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se um objeto interessante para comparaccedilatildeo com a situaccedilatildeo brasileira em 2016 Por qual motivo a obra natildeo distingue mudanccedilas institucionais paciacuteficas com rupturas violentas Qual eacute o criteacuterio principal para a definiccedilatildeo de uma μεταβολή

3 Vejamos o exemplo da sexta mudanccedila no cap 231

Depois das Guerras Meacutedicas o Conselho do Areoacutepago tornou-se forte de novo governava a cidade sem que nenhum decreto lhe garantisse a hegemonia mas porque assumira a responsabilidade na batalha naval de Salamina De fato com a hesitaccedilatildeo dos estrategos em relaccedilatildeo aos acontecimentos tendo proclamado que cada um se salvasse por si o Areoacutepago proveu oito dracmas para cada um e distribui e embarcou os barcos6

O conselho do Areoacutepago eacute uma instituiccedilatildeo oligaacuterquica pois dele soacute participam indiviacuteduos que jaacute ocuparam um dos cargos dentre os nove arcontes magistraturas para as quais estavam aptos somente membros das duas mais abastadas classes de cidadatildeos os cavaleiros e os pentacosiomedmnos7 Em contraste com este caraacuteter oligaacuterquico o regime anterior a quinta mudanccedila realizada por Cliacutestenes eacute descrita no cap 412 como ldquomais democraacutetica do que a de Soacutelonrdquo (δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος) A obra eacute clara ao afirmar que o poder do Areoacutepago natildeo adveacutem de nenhum decreto (οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν) e sim eacute fruto do vaacutecuo poliacutetico criado pela crise militar durante a guerra contra os Persas um vaacutecuo de poder que uma vez preenchido torna-se poder de fato pelos proacuteximos dezessete anos (cap 251)

Esta concepccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses estaacute certamente ligada ao movimento saudosista do seacutec IV do ldquoregime ancestralrdquo que idealizava a Atenas do periacuteodo anterior agrave Guerra do Peloponeso (FINLEY 1989 cap 2 LEAtildeO 2001 p 43-72 e ATACK 2010) Este regime idealizado eacute descrito como uma constituiccedilatildeo ldquomoderadardquo (Isoacutecrates Areopagiacutetico) ou ldquomistardquo (Aristoacuteteles Poliacutetica 1295b) com equiliacutebrio entre oligarquia e democracia A ideia eacute que em meados do seacutec V o regime era gerido de fato pelo Areoacutepago cuja natureza oligaacuterquica garantia o domiacutenio da elite enquanto que as instituiccedilotildees

6 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 231 μετὰ δὲ τὰ Μηδικὰ πάλιν ἴσχυσεν ἡ ἐν Ἀρείῳ πάγῳ βουλὴ καὶ διῴκει τὴν πόλιν οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν ἀλλὰ διὰ τὸ γενέσθαι τῆς περὶ Σαλαμῖνα ναυμαχίας αἰτία τῶν γὰρ στρατηγῶν ἐξαπορησάντων τοῖς πράγμασι καὶ κηρυξάν των σῴ[ζ]ειν ἕκαστον ἑαυτόν πορίσασα δραχμὰς ἑκάστῳ ὀκτὼ διέδωκε καὶ ἐνεβίβασεν εἰς τὰς ναῦς

7A criaccedilatildeo desta classificaccedilatildeo censitaacuteria eacute atribuiacuteda na obra agrave Soacutelon ver cap 73-4 no entanto ela seraacute mais ou menos vigente por todo o periacuteodo da democracia ateniense claacutessica

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democraacuteticas como a Assembleia e os Tribunais Populares equilibravam os excessos da elite e davam um quinhatildeo se poder ao povo O poder do Areoacutepago seraacute drasticamente restringido na seacutetima mudanccedila a seguir e voltaraacute a crescer durante o seacutec IV novamente ligado agrave ideia de ldquoregime ancestralrdquo (HANSEN 1999 p 288)

No seacutec V a hegemonia do Areoacutepago durou cerca de dezessete anos (cap 251) sendo este despojado do poder aos poucos atraveacutes de processos contra os areopagitas e suas prerrogativas impetrados pelos liacutederes do povo Aristides (412) e depois Efialtes (251-2) tanto nos Tribunais Populares como na Assembleia Nesta στάσις as armas satildeo processos legais de lideranccedilas democraacuteticas como Aristides e Temiacutestocles (233-5) este uacuteltimo segundo o autor a mente por traacutes de Efialtes assassinado em condiccedilotildees suspeitas (253-4) Portanto a hegemonia do Areoacutepago e sua posterior derrubada (sexta e seacutetima mudanccedilas de regime) satildeo descritas como resultados de uma espeacutecie de στάσις fria sem o calor da violecircncia e da ruptura institucional O enfrentamento das facccedilotildees antiteacuteticas e assimeacutetricas (o povo e a elite) ocorre nos Tribunais e Assembleias mas natildeo desemboca em conflito militar O uacutenico assassinato mencionado na obra de Efialtes ocorre no contexto de vitoacuteria de sua facccedilatildeo popular A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona apenas certo Aristoacutedico de Tacircnagra como assassino enquanto que Plutarco conta a versatildeo (Vida de Peacutericles 10) que o proacuteprio Plutarco natildeo daacute creacutedito de que o mandante do crime foi o sucessor de Efialtes como liacuteder do povo Peacutericles

Apoacutes a seacutetima mudanccedila Peacutericles seguiu tornando o regime mais popular retirando mais atribuiccedilotildees do Conselho do Areoacutepago (271) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses passa entatildeo a criticar os excessos demagoacutegicos deste periacuteodo especialmente o relaxamento do regime realizado por demagogos (261) o que se intensificou apoacutes morte de Peacutericles (281) Um dos aspectos deste relaxamento eacute que comeccedilaram a aceitar no arcontado os membros da classe dos zeugitas menos abastados do que os cavaleiros e os pentacosiomedmnos (262) uma medida certamente democraacutetica Peacutericles tambeacutem criou a remuneraccedilatildeo pela participaccedilatildeo nos Tribunais Populares (273) outra medida de caraacuteter anti-oligaacuterquico A obra destaca que depois de Peacutericles foi ldquoquando pela primeira vez o povo adotou um liacuteder que natildeo gozava de boa reputaccedilatildeo entre os capazesrdquo (πρῶτον γὰρ τότε προστάτην ἔλαβεν ὁ δῆμος οὐκ εὐδοκιμοῦντα παρὰ τοῖς ἐπιεικέσιν 281) O eufemismo da palavra ἐπιεικής ldquocapazesrdquo ldquoaptosrdquo obviamente descreve os mesmos oligarcas que se opuseram ao povo nas στάσεις de outrora pois o mesmo termo eacute utilizado tambeacutem no cap 261 para designar a facccedilatildeo oligaacuterquica Natildeo haacute sangue nestas mudanccedilas de regime mas haacute facccedilotildees e seus respectivos liacutederes logo haacute στάσις ainda que fria

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4 A oitava mudanccedila foi o estabelecimento do regime dos Quatrocentos no contexto da Guerra do Peloponeso e da desastrosa expediccedilatildeo contra Siracusa na Siciacutelia Nesta ocorrem claros sinais de esquentamento da στάσις ateniense Veja-se o cap 291

Entretanto depois do que aconteceu na Siciacutelia a posiccedilatildeo dos Lacedemocircnios ficou mais forte por causa da alianccedila com o Rei [da Peacutersia] e foram forccedilados ao regime dos Quatrocentos tendo posto em accedilatildeo a derrubada da democracia () mas muitos foram persuadidos sobretudo por achar que o Rei iria se aliar a eles se fizessem uma oligarquia8

Ainda que influenciada pela guerra externa o novo regime natildeo implica numa tomada violenta do poder Pelo contraacuterio a obra menciona que muitos foram persuadidos que tornar o regime mais oligaacuterquico era uma estrateacutegia para conquistar a alianccedila Persa e a salvaccedilatildeo da cidade Haacute relatos discrepantes sobre o clima poliacutetico desta mudanccedila de regime como descreve Tuciacutedides em VIII 66

Mas o povo e o Conselho ainda se reuniam na mesma forma de sorteio natildeo deliberavam nada que natildeo fosse da opiniatildeo dos conspiradores aleacutem disso os oradores eram todos deles e com eles examinavam o que estava prestes a ser dito Nenhum dos outros falava contra eles tendo medo e vendo a grande organizaccedilatildeo [dos conspiradores] se algueacutem falasse contra era diretamente executado de forma raacutepida Natildeo ocorria nem busca dos culpados nem justiccedila se fossem suspeitos mas o povo se mantinha quieto e tatildeo perplexo que se considerava lucro natildeo ter sofrido alguma violecircncia se ficasse calado9

O medo da violecircncia mantinha o povo calado ainda que as instituiccedilotildees democraacuteticas continuassem a funcionar As violecircncias contra opositores natildeo

8 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 291 ἐπεὶ δὲ μετὰ τὴν ἐν Σικελίᾳ γενομένην συμφορὰν ἰσχυρότερα τὰ τῶν Λακεδαιμονίων ἐγένετο διὰ τὴν πρὸς βασιλέα συμμαχίαν ἠναγκάσθησαν κι[νήσα]ντες τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι τὴνἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν ()μάλιστα δὲ συμπεισθέν των τῶν πολλῶν διὰ τὸ νομίζειν βασιλέα μᾶ[λ]λον ἑαυτοῖς συμπολεμήσειν ἐὰν διrsquo ὀλίγων ποιήσωνται τὴν πολιτείαν

9 Histoacuteria da Guerra dos Peloponeacutesios e Atenienses VIII 66 δῆμος μέντοι ὅμως ἔτι καὶ βουλὴ ἡ ἀπὸ τοῦ κυάμου ξυνελέγετο ἐβούλευον δὲ οὐδὲν ὅτι μὴ τοῖς ξυνεστῶσι δοκοίη ἀλλὰ καὶ οἱ λέγοντες ἐκ τούτων ἦσαν καὶ τὰ ῥηθησόμενα πρότερον αὐτοῖς προύσκεπτο ἀντέλεγέ τε οὐδεὶς ἔτι τῶν ἄλλων δεδιὼς καὶ ὁρῶν πολὺ τὸ ξυνεστηκός εἰ δέ τις καὶ ἀντείποι εὐθὺς ἐκ τρόπου τινὸς ἐπιτηδείου ἐτεθνήκει καὶ τῶν δρασάντων οὔτε ζήτησις οὔτrsquo εἰ ὑποπτεύοιντο δικαίωσις ἐγίγνετο ἀλλrsquoἡσυχίαν εἶχεν ὁ δῆμος καὶ κατάπληξιν τοιαύτην ὥστε κέρδος ὁ μὴ πάσχων τι βίαιον εἰ καὶ σιγῴη ἐνόμιζεν

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eram investigadas o que ajudava a manter as aparecircncias e alimentava o medo de opor-se aos conspiradores O relato de Tuciacutedides eacute brutal especialmente vindo de algueacutem que narra a conspiraccedilatildeo de perto como se dela tivesse participado (CANFORA 2015 pp 298-299) Em seguida Tuciacutedides conta (VIII 69-70) como os conspiradores mantiveram-se proacuteximos agraves armas ou com punhais escondidos mas permanecendo o povo quieto a violecircncia natildeo se fez necessaacuteria Trata-se da mesma στάσις entre povo e elite que pouco a pouco se torna mais quente e secretamente violenta ainda que haja esforccedilo para manter as aparecircncias institucionais

Vejamos o contraste com Tuciacutedides no cap 294 da Constituiccedilatildeo dos Atenienses

Os eleitos [para redigir proposiccedilotildees para a salvaccedilatildeo da cidade] primeiro escreveram ser compulsoacuterio aos priacutetanes submeter ao voto todos os pronunciamentos sobre a salvaccedilatildeo [da cidade] em seguida anularam as accedilotildees de ilegalidade as denuacutencias e as intimaccedilotildees para que assim qualquer um dos atenienses pudesse debater sobre as propostas como quisesse se algueacutem por conta disso multar ou intimar ou denunciar no Tribunal Popular que seja feito o depoimento e a prisatildeo dele diante dos estrategos e estes o entregariam aos Onze10 para a pena de morte11

A γραφή παρανόμων e a εἰσαγγελία aqui traduzidas como ldquoaccedilotildees de ilegalidaderdquo e ldquodenuacutenciasrdquo eram modalidade de processos juriacutedicos contra respectivamente proposiccedilotildees de leis e cidadatildeos que cometessem abusos contra as leis e o povo Possuiacuteam um caraacuteter eminentemente poliacutetico e atuavam como instrumentos contra abusos de poder de magistrados e tambeacutem como perseguiccedilatildeo contra adversaacuterios (HANSEN 1999 pp 205-218) Aos oligarcas pareceu necessaacuterio neutralizar tais instrumentos legais que poderiam se voltar contra eles e punir com a morte quem abrisse processos contra suas reformas ou seja neutralizar as armas legais da qual dispunha o povo para resistir agrave mudanccedila de regime A obra eacute clara ao descrever o regime dos Quatrocentos como uma ldquoderrubada da democraciardquo (291 τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι

10 Os Onze satildeo magistrados cuja funccedilatildeo era aplicar prisotildees e sentenccedilas de morte aos condenados nos tribunais

11 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 294 οἱ δrsquo αἱρεθέντες πρῶτον μὲν ἔγραψαν ἐπάναγκες εἶναι τοὺς πρυτάνεις ἅπαντα τὰ λεγόμενα περὶ τῆς σωτηρίας ἐπιψηφίζειν ἔπειτα τὰς τῶν παρανόμων γραφὰς καὶ τὰς εἰσαγγελίας καὶ τὰς προσκλήσεις ἀνεῖλον ὅπως ἂν οἱ ἐθέλοντες Ἀθηναίων συμβουλεύωσι περὶ τῶν προκειμένων ἐὰν δέ τις τούτων χάριν ἢ ζημιοῖ ἢ προςκαλῆται ἢ εἰσάγῃ εἰς δικαστήριον ἔνδειξιν αὐτοῦ εἶναι καὶ ἀπαγωγὴν πρὸς τοὺς στρατηγούς τοὺς δὲ στρατηγοὺς παραδοῦναι τοῖς ἕνδεκα θανάτῳ ζημιῶσαι

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τὴν ἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν) mas enquanto Tuciacutedides menciona duas vezes que os Quatrocentos assassinaram seus opositores (VIII 66 e 70) a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona tais mortes O contraste eacute claro na comparaccedilatildeo com a descriccedilatildeo que a mesma obra faz do regime dos Trinta Tiranos ao qual atribui a morte de milhares de cidadatildeos (354)

Os Quatrocentos prometeram entregar o regime aos Cinco Mil cidadatildeos mais capacitados por ldquosuas pessoasrdquo e por suas riquezas (295 τὴν δrsquo ἄλλην πολιτείαν ἐπιτρέψαι πᾶσαν Ἀθηναίων τοῖς δυνατωτάτοις καὶ τοῖς σώμασιν καὶ τοῖς χρήμασιν λῃτουργεῖν μὴ ἔλαττον ἢ πεντακισχιλίοις) Os capiacutetulos seguintes (cap 30 e 31) descrevem como seria este hipoteacutetico regime que nunca veio a existir uma vez que os Quatrocentos foram depostos quatro meses depois (331) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona em paraacutefrase a Tuciacutedides (VIII 68) que era a primeira vez que se estabelecera uma oligarquia em Atenas nos uacuteltimos 100 anos desde a expulsatildeo dos tiranos (322 ἡ μὲν οὖν ὀλιγαρχία τοῦτον κατέστη τὸν τρόπον () ἔτεσιν δrsquo ὕστερον τῆς τῶν τυράννων ἐκβολῆς μάλιστα ἑκατὸν)

Segundo a obra o regime dos Quatrocentos ruiu devido agrave defecccedilatildeo de alguns dos conspiradores entre eles Teracircmenes12 insatisfeitos com o fato que os Cinco Mil foram eleitos apenas nominalmente e os Quatrocentos governaram a cidade de fato (323) A administraccedilatildeo eacute brevemente remetida diretamente aos Cinco Mil (331-2) e em seguida ldquoo povo depotildee estes do regime com rapidezrdquo (341 Τούτους μὲν οὖν ἀφείλετο τὴν πολιτείαν ὁ δῆμος διὰ τάχους) restabelecendo a democracia novamente (412) Esta eacute a nona mudanccedila mais uma vez uma στάσις fria jaacute que a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona nenhuma violecircncia nesta deposiccedilatildeo enquanto Tuciacutedides descreve como ela foi antecedida pelo assassinato de um dos liacutederes dos Quatrocentos Friacutenico e a prisatildeo de outros por tropas sublevadas sob lideranccedila de Teracircmenes quando perceberam uma tentativa de facilitar a invasatildeo espartana (VIII 92) Todos foram julgados pelos Tribunais como conveacutem na democracia antiga e muitos foram condenados Apesar disso pode-se dizer que a derrubada dos Quatrocentos tambeacutem foi uma στάσις fria pois as condenaccedilotildees natildeo foram por derrubar a democracia Os processos contra os liacutederes dos Quatrocentos os acusavam de enviar embaixadas para Esparta em navio inimigo e atraveacutes de territoacuterios ocupados com propostas de paz desvantajosas para Atenas (CANFORA 2015 p 343-347) Entre estes processos incluem-se o insoacutelito caso contra o cadaacutever de Friacutenico (condenado depois de ter sido assassinado) e

12 Sobre a polecircmica historiograacutefica que se abre em torno da figura controversa de Teracircmenes na qual a Constituiccedilatildeo dos Atenienes se engaja avidamente nos cap 285 ver CANFORA 2015 p 411-427

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tambeacutem contra o ceacutelebre orador Antifonte A defecccedilatildeo de Teracircmenes e outros permitiu a reintegraccedilatildeo de boa parte dos apoiadores dos Quatrocentos ao corpo poliacutetico da cidade enquanto os restantes foram responsabilizados por tentarem negociar uma paz desvantajosa por Esparta mas natildeo por algo que os historiadores modernos chamam de golpe oligaacuterquico dos Quatrocentos

5 A guerra aberta a στάσις quente sanguinaacuteria e traumaacutetica aconteceraacute em 404 com a instalaccedilatildeo dos Trinta Tiranos apoacutes a derrota por Esparta (deacutecima mudanccedila) Apoacutes uma acachapante derrota na batalha naval de Egospoacutetamo Atenas eacute ocupada pelo general espartano Lisandro que no tratado de paz exige que a cidade adote o ldquoregime ancestralrdquo (342-3) Mais uma vez a στάσις se faz presente (343)

De um lado os populares tentavam preservar a democracia do outro aqueles associados em confrarias de notaacuteveis e aqueles dentre os exilados que retornaram depois da paz desejavam a oligarquia () Sendo Lisandro favoraacutevel aos oligarcas o povo apavorado foi forccedilado a votar a oligarquia13

Aqui natildeo haacute duacutevida do caraacuteter impositivo do regime por um exeacutercito ocupante natildeo por acaso eacute usado o termo ldquotiraniardquo para descrever um regime cujo ideaacuterio era oligarca Os Trinta revogaram as leis que restringiam o poder do Areoacutepago (352) comeccedilam a perseguir opositores causando enorme mortandade na cidade segundo a obra natildeo menos que mil e quinhentas pessoas (354) Entre os mortos estaacute Teracircmenes que eacute expulso do regime e condenado agrave morte por ter traiacutedo os Quatrocentos (371)

A expulsatildeo dos Trinta Tiranos (deacutecima primeira mudanccedila) ocorre graccedilas ao exeacutercito ateniense que permanecera democraacutetico e retornara da cidade aliada de Samos para reconquistar Atenas pela regiatildeo portuaacuteria em 403 (cap 37 e 38) Apoacutes este restabelecimento de democracia e a execuccedilatildeo dos liacutederes dos Trinta a negociaccedilatildeo de paz a Anistia ndash natildeo por acaso o mesmo termo usado no fim da Ditadura Civil-Militar brasileira ndash eacute longa traumaacutetica e complexa Os partidaacuterios do Trinta foram isolados no distrito de Elecircusis e proibidos de transitar em Atenas (cap 39 e 40) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses silencia sobre isso mas Xenofonte (Helecircnicas II 43) relata que os conflitos natildeo cessaram e alguns liacutederes de Elecircusis foram massacrados numa emboscada

13 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 343 οἱμὲνδημοτικοὶδιασῴζεινἐπειρῶντοτὸνδῆμον τῶν δὲ γνωρίμων οἱ μὲν ἐν ταῖς ἑταιρείαις ὄντες καὶ τῶν φυγάδων οἱ μετὰ τὴν εἰρήνην κατελθόντες ὀλιγαρχίας ἐπεθύμουν ()Λυσάνδρου δὲ προσθεμένου τοῖς ὀλιγαρχικοῖς καταπλαγεὶς ὁ δῆμος ἠναγκάσθη χειροτονεῖν τὴν ὀλιγαρχίαν

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em 40014 Quatro anos passaram-se entre a instalaccedilatildeo dos Trinta em 404 e o uacuteltimo acerto de contas em 400 Quatro anos para a στάσις ateniense esfriar novamente e os assassinatos e combates entre cidadatildeos cessarem iniciando um longo periacuteodo de oitenta anos nos quais a obra natildeo identifica nenhuma mudanccedila de regime A στάσις natildeo deixa de existir apenas torna-se novamente fria

6 Pode-se concluir que as mudanccedilas de regime na Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo residem na ideia de rompimento do Estado de Direito ou seja do sistema institucional vigente uma vez que as instituiccedilotildees podem ser legalmente reformadas ou mesmo extintas sem que haja distinccedilatildeo entre reformas e golpes de Estado para a Constituiccedilatildeo dos Atenienses todas satildeo μεταβολαί Tais mudanccedilas no entanto soacute ocorrem dentro de uma oscilaccedilatildeo dos trecircs tipos de regime (monarquia oligarquia democracia) e suas variantes positivas e negativas Ou seja elas refletem sempre os conflitos entre grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos os ricos contra os pobres os notaacuteveis contra a multidatildeo15 A raiz histoacuterica desta concepccedilatildeo estaacute na idealizaccedilatildeo do regime de Soacutelon cuja poesia eacute um testemunho de um pensamento que tenta equilibrar as tensotildees entre pobres e ricos multidatildeo e notaacuteveis16 Minha contribuiccedilatildeo central eacute perceber tais στάσεις podem assumir a forma de combates armados (στάσις quente) ou de processos juriacutedicos e emendas legislativas (στάσις fria)

Inexiste no pensamento poliacutetico claacutessico e aristoteacutelico a ideia de progresso histoacuterico que marca as concepccedilotildees modernas de revoluccedilatildeo social e golpe de Estado O ideal que se busca eacute de equiliacutebrio e moderaccedilatildeo diminuir os excessos e desigualdades dos extremos e natildeo necessariamente tomar o partido do povo algo provavelmente estranho ao pensamento peripateacutetico e tambeacutem agrave esmagadora maioria dos autores claacutessicos membros das elites Os proacuteprios democratas natildeo se enxergavam como ldquomais progressistasrdquo que os oligarcas Ao contraacuterio ambas facccedilotildees viam a si mesmos como legiacutetimas representantes de um idealizado regime ancestral de Atenas

O diaacutelogo constante entre o contemporacircneo e o antigo eacute perigoso e o anacronismo inevitaacutevel A democracia ateniense era muito diferente da moderna pressupunha participaccedilatildeo direta bem como a exclusatildeo de mulheres metecos e escravos O diaacutelogo pode ser uacutetil quando conceitos poliacuteticos do

14 Ver CANFORA 2015 pp 437-450

15 Esta concepccedilatildeo no qual a desigualdade eacute a causa motriz de toda στάσις natildeo estaacute distante daquilo que eacute discutido no livro 5 da Poliacutetica

16 Sobre a representaccedilatildeo de Soacutelon na obra ver o comentaacuterio dos cap 2 5-12 em CORREA 2012 pp 83-91

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contemporacircneo satildeo redefinidos com o contraste do antigo Investigar este diaacutelogo nos ajuda a elucidar os sentidos contemporacircneos atribuiacutedos aos termos antigos bem como a levantar questotildees que natildeo enunciamos mais por nossa incapacidade de olhar com estranhamento para nossos proacuteprios referenciais eacuteticos e conceituais

Neste sentido cabe notar que um dos aspectos centrais da crise poliacutetica instaurada no Brasil desde 2016 eacute a insuficiecircncia da diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais na sociedade brasileira isto eacute da distacircncia entre ricos e pobres A bonanccedila econocircmica dos Governos Lula garantiram estabilidade poliacutetica e a renda miacutenima dos setores mais vulneraacuteveis sem no entanto combater privileacutegios de setores oligaacuterquicos Pelo contraacuterio adotou-se um presidencialismo de coalizaccedilatildeo no qual a cooptaccedilatildeo de partidos ocorre atraveacutes de uma poliacutetica patrimonialista transpartidaacuteria e parasitaacuteria ao Estado que se pode chamar ldquoPemedebismordquo (NOBRE 2013) Esta eacute uma modalidade oligaacuterquica da poliacutetica que tomou forma desde a redemocratizaccedilatildeo de 1985 e se caracteriza pela ampla utilizaccedilatildeo de corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural no proacuteprio aparelho administrativo do Estado nas empresas estatais e tambeacutem em oligopoacutelios privados que negociam apoio financeiro a Partidos em troca de vantagens em contratos e licitaccedilotildees puacuteblicas Se tal praacutetica jaacute era presente nos governos de caraacuteter neo-liberal e privatista do Partido da Social Democracia Brasileira (1995-2002) parece ter se intensificado nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)

Dilma Rousseff foi derrubada do poder pelo o Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal instituiccedilotildees legiacutetimas mas o contexto histoacuterico que marca o processo natildeo eacute uma suacutebita vontade de aplicaccedilatildeo rigorosa da lei mas uma crise poliacutetica intensa que criou a oportunidade para reformas poliacuteticas de teor oligaacuterquico que visam o estancamento de poliacuteticas de diminuiccedilatildeo de desigualdade no contexto de recesso econocircmico Dilma Roussef eacute um bode expiatoacuterio de todos os crimes de morosidade e corrupccedilatildeo da classe poliacutetica brasileira e o sucessor Michel Temer rapidamente se apresentou como um ldquoreformadorrdquo isto eacute algueacutem que reverte todo o processo instaurado anteriormente Eacute uma στάσις fria entre os grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos de ricos e pobres do povo e dos donos do poder O Brasil conheceu processo semelhante no Golpe Militar de 64 contra o Governo Joatildeo Goulart sendo entatildeo uma στάσις quente com violecircncia institucional expliacutecita Em ambos os casos a Miacutedia tem papel predominante em pautar o debate puacuteblico e criar identidades junto agraves camadas populares que simpatizam com as reformas oligaacuterquicas a partir do seu teor conservador moralista de manutenccedilatildeo do

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status quo ameaccedilado pelas poliacuteticas de distribuiccedilatildeo de renda e discussotildees eacuteticas em torno da politicas identitaacuterias

O presidencialismo de coalizaccedilatildeo entrou em curto-circuito apoacutes a reeleiccedilatildeo de Dilma Roussehf em 2014 e o iniacutecio de uma poliacutetica de ajuste econocircmico que contrariava a propaganda eleitoral da candidata Este embuste eleitoral somado agraves poliacuteticas de combate agrave corrupccedilatildeo iniciadas pelo proacuteprio governo que acabaram se voltando contra ele proacuteprio e sua base partidaacuteria fez uma crise econocircmica torna-se tambeacutem poliacutetica A miacutedia e o sistema juriacutedico criaram uma situaccedilatildeo de fragilidade na qual os setores oligaacuterquicos se rebelam contra um Governo de centro-esquerda enfraquecido radicalizando a στάσις brasileira Apoacutes 13 anos o Partido dos Trabalhadores foi sacado do Poder natildeo por invasores externos mas por seus fiadores oligaacuterquicos que se identificam pelo patrimonialismo pela corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural do Pemedebismo somado agrave forccedila conservadora da Miacutedia e demais setores privados

A στάσις brasileira pendeu para o lado oligaacuterquico revelando o esgotamento do presidencialismo de coalizaccedilatildeo e pondo a nu os limites da poliacutetica de cooptaccedilatildeo da base atraveacutes de corrupccedilatildeo sistecircmica Natildeo por acaso os escacircndalos que atingem a esquerda ainda que reais e condenaacuteveis satildeo bodes expiatoacuterios nos quais a Miacutedia o Sistema Judiciaacuterio e a oligarquia poliacutetica descarregam seu rancor contra as poliacuteticas de diminuiccedilatildeo da desigualdade Mesmo quando estes setores oligaacuterquicos tentam fazer valer a mesma letra dura da lei para o lado conservador satildeo barrados por outras forccedilas que natildeo correspondem agrave luta contra corrupccedilatildeo mas sim agrave στάσις o conflito de interesses entre pobres e ricos entre multidatildeo e elite

A Esquerda partidaacuteria se ainda reivindica defender interesses populares e democraacuteticos precisa declarar uma guerra irrestrita agrave cultura poliacutetica patrimonialista do Pemedebismo Esta guerra natildeo pode ser combatida somente atraveacutes do sistema partidaacuterio-eleitoral uma vez que o Pemedebismo jaacute estaacute instalado em quase todos os Partidos e tem forte influecircncia no Judiciaacuterio alianccedila esta que permitiu a derrubada de Dilma Rousseff Eacute preciso atacar a fonte de poder do Pemedebismo o aparelhamento do Estado e o patrimonialismo parasitaacuterio e satildeo outras formas de radicalizaccedilatildeo da democracia que podem cumprir este papel Nesta luta a liccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses pode ser uacutetil a στάσις eacute uma luta de grupos antiteacuteticos assimeacutetricos de um lado uma multidatildeo pobre e anocircnima do outro poliacuteticos profissionais oligaacuterquicos grupos midiaacuteticos e corporativos conservadores Se a esquerda quer ter um papel nesta luta precisa juntar forccedilas com um destes grupos mas jamais com o outro

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Abstract The paper approaches the vocabulary and the structure of references about political and institutional ruptures in the Aristotelian Athenian Constitution in order to problematize the idea of legal and parliamentary coup against the Brazilian president Dilma Roussef in 2016 and the ethical and conceptual imbroglio of such kind of political change The text discusses the ancient vocabulary especially in the Athenian context and emphasize Aristotlersquos political thoughtKeywords Athenian Constitution Coup drsquoeacutetat political overthrow

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MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDADY ETERNA MEMORIA

Julio Loacutepez Saco1

Resumen Los mitos de origen griego vinculados con la muerte asiacute como los deseos de alcanzar la inmortalidad y una nueva vida en el Maacutes Allaacute a traveacutes de la eterna perduracioacuten del alma impregnaron la imaginacioacuten religiosa romana Con posterioridad a la muerte el ser humano se transformaba en una serie de entidades (lemures manes larvae penates lares) de no siempre faacutecil identificacioacuten Desde la oacuteptica romana la muerte requeriacutea una serie de honores funerarios bien establecidos para evitar la conversioacuten del fallecido en un fantasma sin descanso y para de ese modo apaciguar los componentes malignos o negativos En la antigua Roma la muerte era un acto social que en cuanto a los lugares de inhumacioacuten modos de celebracioacuten y cultos no igualaba a los fallecidos existiendo notables diferencias seguacuten la condicioacuten social o el estatus del muertoPalabras clave muerte inframundo rito culto

Introduccioacuten

El significado social del mundo de la muerte en la antiguumledad romana solamente puede conocerse gracias a determinada documentacioacuten literaria y epigraacutefica (inscripciones funerarias) la presencia de monumentos histoacutericos y necroacutepolis (con sus tipos de tumbas y ajuares funerarios) a la ritualidad que envolviacutea el duelo asiacute como a la interpretacioacuten de los mitos (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 5)

En la antiguumledad dos de los temas baacutesicos maacutes relevantes en los que se centraron los relatos eacutepicos y mitoloacutegicos fueron sin duda la adquisicioacuten de la

1 Doctor en Ciencias Sociales y Doctor en Historia Investigador y Profesor Titular Escuela de Historia Universidad Central de Venezuela Caracas Doctorado en Historia FHE-UCV E-mail julosaucvgmailcom

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inmortalidad y la buacutesqueda de la eterna juventud (PLATOacuteN Fedro 245e)2 En el trasfondo de tal buacutesqueda se encuentra la preocupacioacuten por la muerte tal y como innumerables mitos han reflejado de modos bastante variados (Gilgamesh Orfeo Heracles)

En teacuterminos generales los mitos de la muerte en la mitologiacutea (particularmente griega) afirmaban que las almas de los difuntos viajaban al mundo subterraacuteneo de Plutoacuten y Perseacutefone guiadas por Mercurio la deidad psicopompa por excelencia Se veiacutean obligadas a atravesar la laguna Estigia en la balsa conducida por Caronte El mundo subterraacuteneo teniacutea en su entrada un temible custodio el Can Cerbero (veacutease ilustracioacuten 3) Una vez en el inframundo se llevaba a cabo un juicio a las almas Despueacutes del veredicto las mismas eran trasladadas a siete regiones seguacuten fuese el caso La primera estaba destinada a los infantes no natos que no eran juzgados en la segunda moraban los inocentes condenados injustamente la tercera correspondiacutea a los suicidas mientras que la cuarta denominada Campo de Lagrimas era la zona en la que permaneciacutean los amantes infieles la quinta estaba habitada por heacuteroes crueles en tanto que la sexta era el famoso Taacutertaro lugar en el que se procediacutea a castigar a los perversos y finalmente la seacuteptima correspondiacutea a los Campos Eliacuteseos sitio de morada de las almas bondadosas en la felicidad eterna

Muerte e inmortalidad en las fuentes claacutesicas

Si bien ya los pitagoacutericos mencionan el alma seraacute PLATOacuteN (Repuacuteblica 580e Fedoacuten 69e-84b) quien ofrezca la posibilidad de una esperanza ante la muerte Lo mortal y lo inanimado es el cuerpo fiacutesico mientras que lo animado el aacutenima es lo que pervive el alma Las almas transmigran idea que tambieacuten defiende en el aacutembito romano OVIDIO (Metamorfosis XV 165-166) SALUSTIO (Sobre los dioses y el mundo 20-21) y VIRGILIO (Eneida VI 730-750) Este uacuteltimo autor sentildeala que el alma al morir ascendiacutea por mediacioacuten del aire para luego atravesar las aguas que habiacutea sobre el aire y al fin recorrer la atmoacutesfera que estaacute expuesta a los rayos solares Tal viaje suponiacutea una purificacioacuten del alma mediante los elementos el aire el agua y el sol (fuego) de modo que pudiese lograr estar limpia (purificada) para acceder al Eliacuteseo (PEREA YEBENES S 2012 pp 34-36 RHODE E 1948 pp

2 La fama la gloria imperecedera asiacute como la permanencia en el recuerdo de los vivos (ademaacutes de la descendencia) siempre constituyoacute una forma peculiar de inmortalidad Una preocupacioacuten evidente en heacuteroes guerreros como Aquiles o en grandes generales conquistadores como Alejandro Magno pero tambieacuten en personalidades como Julio Ceacutesar La inmortalidad seguacuten Platoacuten seraacute asiacute una prerrogativa del alma humana

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145-149 y ss) En el Eliacuteseo podiacutea permanecer o tambieacuten ser conducida al Leteo (olvido) para afrontar una nueva existencia terrenal

Tambieacuten CICEROacuteN en Suentildeo de Escipioacuten (Sobre la Repuacuteblica VI 13-26) defendiacutea la permanencia y por consiguiente la inmortalidad del alma Para los estoicos como SEacuteNECA (Cartas a Lucilio XLIV 2 De la Consolacioacuten a Helvia XI 7) el alma es aquello que el ser humano tiene de racional ademaacutes de divino Es la que ayudada por la filosofiacutea nos haraacute resistir a la fortuna y saber por tanto afrontar la muerte

Por el contrario los epicuacutereos negaban la inmortalidad El espiacuteritu que conferiacutea vida se disolviacutea en el aire y se perdiacutea para siempre tras la muerte Ello implicaba que las personas no teniacutean entonces por queacute temer el mundo del maacutes allaacute de modo que podiacutean dedicarse a disfrutar de este (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 87 PEREA YEBENES S 2012 p 40-45)

No hubo conceptos concretos en el mundo romano en relacioacuten a en queacute se convertiacutean los difuntos despueacutes de fallecer En cualquier caso la tradicioacuten romana vislumbra la existencia de los espiacuteritus de los muertos Se trataba de los Dii parentes et Manes iacutentimamente asociados a los Genii Tales genios permaneciacutean activos durante la vida diferenciaacutendose por sus valores morales que se prolongaban tras su muerte Dichos genios continuaban habitando en las sepulturas un factor que motivoacute su identificacioacuten con la osamenta las cenizas e incluso con los propios sepulcros

Los autores antiguos presentan disparidades en relacioacuten a la entidad en la que se trasformaba el ser humano con posterioridad a la muerte del cuerpo En tal sentido existieron distintas denominaciones (COULIANO I P 1993 pp 122-125 FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 346-348 y ss) El Genius del difunto se relacionaba con el vocablo Manes (los ilustres) emparentado a su vez con Lares Penates Larvae y Lemures La profusioacuten de denominaciones demuestra en cualquier caso la existencia de la creencia en la inmortalidad del alma tras la desaparicioacuten del cuerpo

Entidades del maacutes allaacute los Manes

Aquellos difuntos bondadosos que velaban por sus descendientes se denominaban Lares familiares mientras que los inquietos perturbadores o sencillamente nocivos y que ademaacutes asustaban con apariciones nocturnas se llamaban Larvae (PICCALUNGA 1961 pp 87-89 y ss) Si no se sabiacutea

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con seguridad en queacute se habiacutea convertido el alma del fallecido se nombraba Manes3 Manes eran en general los espiacuteritus de los muertos Los Manes familiares eran aquellos difuntos que pasaban a formar parte del conjunto de espiacuteritus metamorfoseados en divinidades Se puede decir que era la sombra del difunto su espiacuteritu santificado por el deceso y en consecuencia proclive a ser objeto de veneracioacuten y respeto aunque al tiempo de temor y ofuscacioacuten a lo desconocido

De una manera o de la otra lo cierto era que habiacutea que distinguir entre genios buenos y malos En tal sentido las almas de los difuntos eran ldquodiosesrdquo de los muertos o en todo caso entidades que se hallaban en el mundo de los muertos al lado de las divinidades infernales (Orcus por ejemplo) De esta forma los Manes podiacutean ser identificados con esas deidades (MONTERO HERRERO S 1990 p 42)

Desde la eacutepoca de Augusto algunos autores sobre todo Virgilio y LIVIO (Ab Urbe condita III 5811) emplearon el teacutermino Manes para detallar a ciertas divinidades infernales y sombras de los muertos SERVIO por su parte (Commentarius ad Aeneidam III 63) menciona que en tanto los dioses celestes eran los de los vivos las otras deidades en concreto los Manes eran los dioses de los muertos Seriacutean entonces unos dioses secundarios que dominaban las tinieblas nocturnas Se podriacutea decir al modo de TAacuteCITO (Vida de Agriacutecola) que eran sombras espiacuteritus fantasmales (PROPERCIO Elegiacutea IV 6-7)4

En teacuterminos generales el hombre comuacuten no sabiacutea con exactitud el significado de los Manes esto es si representaban el alma del difunto o se trataba de deidades de ultratumba En las inscripciones funerarias (veacutease ilustracioacuten 1) se mencionan estas divinidades sin precisar ni caraacutecter ni funciones ni atributos particulares (MONTERO HERRERO S 1990 p 43 COULIANO I P 1993 p 126 y ss) En ocasiones aparecen al lado de DM o Dis Manibus epiacutetetos como inferi (con lo cual se implicariacutea su calidad

3 Aunque designe el alma de un muerto el vocablo se usaba en plural Es probable que ello se deba a las arcaicas costumbres funerarias de la cultura Terramara por la cual se inhumaban los fallecidos en recintos comunes De tal modo el alma de los muertos permaneciacutea ldquovivardquo entre sus descendientes convirtieacutendose en espiacuteritus familiares VARROacuteN (De Lingua Latina VI 324 IX 3861) confunde los Manes con los Lares Los considera a ambos figuras eteacutereas Habitualmente se confundiacutea Lares con Larvae y con los Manes

4 Este autor sentildeala que los Manes existen y que en correspondencia la muerte no es el final definitivo Horacio expone que los Manes eran como ceniza sombras un recuerdo

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de dioses de ultratumba protectores de los fallecidos CIL II 2464 2722 VI 12311 X 2322 2565) y unas pocas veces otros como sacer o castus5

Para algunos autores como APULEYO (De Deo Socratis 25) el espiacuteritu humano despueacutes de haber salido del cuerpo se transformaba en una suerte de demonio que los antiguos llamaban Lemures

La ritualidad de la muerte

En los funerales era imprescindible que se tributara los honores debidos al fallecido (Iusta) Si se produciacutea alguacuten olvido o una irregularidad el difunto se convertiriacutea en un fantasma que no descansariacutea hasta que sus allegados o parientes le hicieran la debida justicia Esa necesidad de unos ritos funerarios que atendieran al difunto se continuaba tiempo despueacutes de la inhumacioacuten para asegurar su descanso eterno Existiacutea entonces la necesidad de que se recordara al difunto se dejara constancia de su existencia y se le rindiera culto a su numen (y a su nomen) para que perviviese en la memoria eterna

Un relevante nuacutemero de rituales se orientaban maacutes hacia el objetivo de apaciguar los componentes malignos de los difuntos que hacia una imprescindible suacuteplica como deidades activas En todos los casos se inmolaban viacutectimas se realizaban juegos combates de gladiadores como homenaje se ofrendaban alimentos en la tumba en determinados diacuteas concretos6 (cumpleantildeos diacutea de difuntos) y se conformaba un ajuar de diversos objetos

La muerte se concebiacutea en la antigua Roma como un acto social y en cierta medida puacuteblico El tiempo de luto para los familiares directos era de diez meses El funeral (funus) comenzaba en casa del difunto (BELAYCHE N 1993 pp 158-159 FREDOUILLE J C 1987 p 174) La familia acompantildeaba al moribundo a su cama y le daba un uacuteltimo beso para retener asiacute el alma que se escapaba por su boca Despueacutes de producirse el deceso se le

5 Con Dis Inferis Manibus se infiere el caraacutecter sacro de la tumba Los teacuterminos que delimitaban el sepulcro podiacutean considerarse sagrados En este caso la inscripcioacuten habitual era Dis Manibus Sacrum (DMS) que los primeros cristianos primitivos conservaron reinterpretaacutendola como Deo Magno Sancto

6 Los diacuteas de difuntos (Parentalia) se celebraban en febrero Otras fiestas dedicadas a los muertos fueron las Lemurias (celebradas en mayo) En esos especiales diacuteas las almas cuyos cuerpos no habiacutean recibido sepultura merodeaban en los hogares Por tal motivo el padre de familia debiacutea representar un ritual para alejar a esos espiacuteritus errantes Despueacutes de lavarse las manos como sentildea de purificacioacuten se metiacutea nueve habas negras en la boca Luego descalzo se desplazaba por la casa escupiendo las habas una a una para que nutriesen a los espiacuteritus malignos conocidos como Lemures

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cerraban los ojos y se le llamaba tres veces por su nombre para asiacute corroborar que realmente habiacutea fallecido A continuacioacuten el cuerpo era lavado perfumado con unguumlentos y finalmente vestido Seguacuten la costumbre griega se depositaba al lado del cadaacutever una moneda para que Caronte se cobrase por el transporte de su alma (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 34) El cuerpo se ubicaba sobre una litera con los pies mirando hacia la puerta de entrada y rodeado de flores un siacutembolo de la fragilidad de la vida pero a la par de la renovacioacuten Durante tres a siete diacuteas permaneciacutea expuesto el difunto Encima de la puerta de entrada de la casa se poniacutean ramas de abeto o de cipreacutes para asiacute avisar a los viandantes de la presencia de un muerto en el interior

El difunto en particular en los casos de romanos de alta condicioacuten social era trasladado por las calles de la ciudad (GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 43-56 y ss FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 355-356) Delante y detraacutes de la comitiva fuacutenebre (pompa funebris) se desplazaba un cortejo compuesto de esclavos tocando instrumentos musicales como flautas trompetas o trompas los portadores de antorchas el propio difunto en un atauacuted de madera abierta sobre una suerte de camilla (tambieacuten podiacutea ser llevado a hombros por miembros de la familia) (Veacutease ilustracioacuten 2) Detraacutes del difunto iba el resto del cortejo fuacutenebre formado por la familia y los amigos ademaacutes de una comitiva de personal pagado (plantildeideras mimos bailarines) y finalmente las fasces las representaciones de los momentos significativos de la vida del fallecido o aacuterboles genealoacutegicos del difunto (HINARD F 1995 p 98 PRIEUR J 1986 pp 112-115 y ss TIEMBLO MAGRO A 2011 p 167)

Hasta finales de la primera centuria de nuestra era el funeral se celebraba por la noche con la ayuda de la luz de antorchas Esto era asiacute porque la muerte era un suceso que se consideraba contaminante Sin embargo en siglos posteriores se comenzaron a realizar los ritos durante el diacutea excepto aquellos de nintildeos indigentes o suicidas

La tumba definitiva se consagraba con el sacrificio de una cerda (ilustracioacuten 5) Una vez que el sepulcro estaba ya finalizado y todo dispuesto se llamaba tres veces al alma del difunto para que pudiera entrar en la morada que se le habiacutea preparado para su nueva vida Despueacutes del entierro se levantaba una estatua del difunto en un lugar visible de la casa dentro de en una hornacina de madera

En el caso de la incineracioacuten la ceremonia se celebraba encima de una pira en forma de altar sobre la que se depositaba el atauacuted con el cadaacutever Se le abriacutean los ojos para que pudiera observar coacutemo su alma de dirigiacutea hacia el cielo

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(GNOLI G amp VERNANT JP 1982 p 60 FREDOUILLE J C 1987 pp 177-179) Se sacrificaban e incineraban animales y se arrojaban sobre la pira ofrendas de alimentos y perfumes Se le nombraba una uacuteltima vez y se encendiacutea la pira con antorchas El rito concluiacutea vertiendo agua y vino sobre la pira Finalmente los asistentes se despediacutean del difunto deseaacutendole que la tierra le fuera ligera Sit Tibi Terra Levis (STTL) una foacutermula muy habitual en las inscripciones funerarias

Es conveniente recordar que los monumentos funerarios de los romanos se ubicaban al margen de los liacutemites de la ciudad a ambos lados de la calzada principal Soliacutean ornarse con jardines

Al fallecer alguno de los componentes de la familia romana de inmediato pasaba a formar parte de los antepasados familiares verdaderos Manes protectores a los que se les homenajeaba manteniendo siempre ardiendo el fuego del hogar La tumba elegida no podiacutea ser cambiada de lugar pues los manes requeriacutean una morada fija (que se suponiacutea eterna) a la que se asociaban todos los difuntos de la familia

En teacuterminos generales se piensa que los muertos no llevaban una existencia que podriacutea considerarse feliz Es por ello que habiacutea que abastecer las tumbas con todo aquello que el fallecido necesitara (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 172 HINARD F 1995 p 102) Para apaciguar a los espiacuteritus de los muertos y hacerles maacutes llevadera su infelicidad se ofrendaban alimentos (leche vino miel pan huevos) en los sepulcros en nombre de las familias de las asociaciones profesionales o de las propias ciudades Habiacutea una suerte de obligacioacuten en ello no soacutelo de cara a los fallecidos pues se entendiacutea que la carencia de homenajes a los Manes provocaba pesadillas y enfermedades a los vivos

Los lugares para la eternidad

Los sepulcros no eran espacios sombriacuteos luacutegubres pues se entendiacutea que la muerte conviviacutea con la vida7 Los difuntos no debiacutean ser olvidados y por ello sus lugares de reposo final se vinculaban con el entorno circundante (CUMONT F 1942 p 63) En los epitafios no se vislumbran deseos

7El espacio dedicado al enterramiento sepulchrum adquiriacutea el caraacutecter de sitio sacro lucus religiosus inamovible inviolable e inalienable Al recinto uacutenicamente podiacutean acceder los familiares del fallecido

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inframundanos sino que abundan expresiones que se asocian con los vivos y con la vida mundana En general se escribiacutean para que el transeuacutente los leyera y asiacute hubiera una constancia de su paso por la vida que ya dejoacute (LAVAGNE H 1987 pp 163-164 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1144-1146 y ss CUMONT F 1942 pp 65-68) Por eso en ellos se encuentran relatos de la vida del muerto saludos o explicaciones de coacutemo murioacute En algunos incluso se hallan consejos y hasta pensamientos de tipo poliacutetico (BAYET J 1957 pp 42-45 y ss)

Ilustracioacuten 1 Inscripcioacuten funeraria del altar de Quinto Fulvio Fausto y Fulvio Prisco Siglo I Museo Nazionale Romano

Ilustracioacuten 2 Relieve en maacutermol de Amiternum en la que se representa la pompa funebris de un entierro Museo Aquilano siglo I aec

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Ilustraciones 3 y 4 (Izquierda) Hades y Cerbero Museo Arqueoloacutegico de Creta (derecha) urna cineraria del Museo Arqueoloacutegico de Palermo La inscripcioacuten reza asiacute D(is) M(anibus) S(acrum)

L(ucio) CORNELIO LAETO FILIO DVLCISSIMO QVI VIX(it) AN(nos) XVI M(enses) II D(ies) XXIIII SER(vius) CORNEL(ius) LAETVS PAT FEC

Ilustracioacuten 5 Ara de los Vicomagistri del vicus Aesculetus (fines del siglo I aec) Los magistrados (cuatro por cada vicus o barrio) eran elegidos anualmente para organizar las ceremonias sacrificiales

asociadas a los Lares Compitales a los que se ofreciacutea un cerdo y al Genius del princeps al que iba destinado un toro La inscripcioacuten habla del antildeo noveno desde la reorganizacioacuten de este culto por Augusto A la derecha los magistrados con la cabeza cubierta indicando una funcioacuten sacerdotal

Tambieacuten se observa un muacutesico con auloacutes Abajo los animales para el sacrificio

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Existieron en el mundo romano diferentes tipos de enterramientos Aquellas tumbas maacutes lujosas eran los sepulcros monumentales los mausoleos que podiacutean adquirir la forma de una casa o un templo Por su parte los columbaria era una gran tumba en cuyos muros se ubicaban nichos para depositar las urnas con las cenizas de los difuntos Aparecen desde el siglo I aec siendo empleadas hasta el siglo III y son inhumaciones colectivas propias de corporaciones funerarias Habiacutea tambieacuten fosas simples excavadas en el suelo algunas de ellas revestidas con cajas de ladrillo y con cubiertas de maacutermol (VAN ANDRINGA W 2006 p 1149)

Desde el siglo II la incineracioacuten fue paulatinamente reemplazada por la inhumacioacuten No obstante hubo una coexistencia de ambos modos funerarios La distincioacuten se relacionaba con la condicioacuten social o el estatus del fallecido En este sentido la inhumacioacuten se reservaba para la gente humilde y para los esclavos mientras que la incineracioacuten se usaba con los miembros de familias nobles patricias (GALINIER M 1999 pp 114-115 BELAYCHE N 1993 p 182) Asiacute poco a poco en lugar de utilizar urnas funerarias propias de la incineracioacuten (veacutease ilustracioacuten 4) se fue extendiendo la costumbre de enterrar a los muertos en cajas bien de madera o de piedra de las cuales derivariacutean los sarcoacutefagos (por otro lado conocidos ya en Etruria y en ciertas regiones del aacutembito heleniacutestico) usados en las inhumaciones Los sarcoacutefagos formaban parte de un monumento funerario (LAVAGNE H 1987 p 168) Soliacutean ser decorados con elementos simboacutelicos y con disentildeos geomeacutetricos (como los surcos ondulados o strigiles)

Los enterramientos individuales presentaban numerosos tipos de monumento funerario Las laacutepidas eran un elemento clave (PRIEUR J 1986 pp 127-128 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1150-1152 GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 91-92) Podiacutean ser estelas exentas coronadas por frontones piedras esculpidas con forma semiciliacutendrica (cupae) propias de esclavos y libertos pedestales y altares ornados con decoracioacuten vegetal o relieves con los bustos de los muertos empotrados en los muros de la tumba Enterramientos muy modestos eran por su parte las cajas de losas de pizarra de aacutenforas (muy empleadas para la inhumacioacuten de infantes) o tegulas reusadas

Conclusioacuten

El concepto de la pervivencia del alma humana en otra esfera es el punto de inicio a partir del cual la antiguumledad romana dedicoacute esfuerzos al recuerdo de sus fallecidos de sus antepasados Al margen de una relativamente confusa profusioacuten de entidades fantasmales como habitantes habituales del maacutes allaacute

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hubo siempre una necesidad de homenajear al difunto con rituales apropiados y en habitaacuteculos adecuados La diferenciacioacuten existente en las ceremonias fuacutenebres y en los propios lugares de descanso de unos y otros se asocioacute con la condicioacuten social o el estatus del fallecido A pesar de la falta de igualdad tras el deceso persistioacute siempre no obstante la creencia en la inmortalidad y la imperiosa necesidad de la pervivencia a traveacutes de la memoria eterna

Abstract The myths of origin Greek linked with the death as well as wishes of achieve the immortality and a new life in the more beyond through the eternal endurance of the soul permeated the imagination religious Roman After death the human turned into a series of entities (lemurs lares manes larvae penates) not always easy to identify From the Roman standpoint death required a series of well-established funeral honors to prevent the conversion of the deceased in a ghost without a break and to thereby appease the evil or negative components In ancient Rome the death was a social event which in terms of the places of burial ways of celebration and worship not equal to the deceased there are notable differences according to social condition or the status of the deadKeywords death underworld ritual cult

Bibliografiacutea

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Fouille de la neacutecropole de Porta Pariacutes Les Belles-Lettres 2006 pp 1131-1161

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ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO

Camila Alves Jourdan1

Resumo O poder do mar pode ser compreendido em sua capacidade de submersatildeo em sua imensidatildeo e vastidatildeo em sua profundidade e seu constante movimento Estas cinco caracteriacutesticas atribuiacutedas por Astrid Lindenlauf (2003) em seu estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno nos possibilita perceber as potencialidades do mar na atuaccedilatildeo do desaparecimento eou no encobrimento de rastros indesejados Deste modo pretendemos neste artigo analisar passagens que nos permitam elucidar a relaccedilatildeo de accedilotildees consideradas vergonhosascriminosas pela sociedade helecircnica com o mar em obras textuais dos periacuteodos arcaico e claacutessico e representaccedilatildeo imageacuteticaPalavras-chave Mar desaparecimento crimes

1 Alguns apontamentos sobre a morte

Um dos principais estudiosos acerca da questatildeo da morte foi Edgar Morin (1970) Para ele a ideia de morte soacute se torna compreensiacutevel quando podemos representaacute-la e conceitualizaacute-la ndash o que natildeo fazem os animais Para Morin a consciecircncia de morte estaacute relacionada agrave vida em sociedade humanamente organizada Deste modo somente os seres humanos dispotildeem de um arcabouccedilo cognitivo capaz de decodificar e assim compreender o ato de morrer bem como suas implicaccedilotildees aos vivos O reconhecimento da morte implica em uma consciecircncia do indiviacuteduo e de sua individualidade mesmo estando em sociedade A percepccedilatildeo de perda da proacutepria individualidade mostra um indiviacuteduo consciente de si Consciente de sua morte O enterramento dos cadaacuteveres marca a percepccedilatildeo de finitude da mortalidade humana Quando se inicia esse processamento e reflexatildeo sobre os seus mortos a morte ldquonatildeo se trata mais de uma questatildeo de instinto mas jaacute da aurora do pensamento humano que se traduz por uma espeacutecie de revolta contra a morterdquo (MORIN 1970 p 31)

1 Mestra e doutoranda em Histoacuteria Social pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA-UFF) E-mail camilaajourdangmailcom

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A morte eacute sobretudo um ato social E como social a morte natildeo se refere apenas ao indiviacuteduo mas a coletividade que estaacuteestava a sua volta ndash famiacutelia comunidade ciacuterculos de amizade e de outras formas de relacionamento Um rompimento de viacutenculos que ocorre quando o morto deixa de existir Entretanto eacute a ambiguidade que marca este momento crucial na interpretaccedilatildeo de Joseacute Carlos Rodrigues (2006 p 34) o morto apenas se libertou de seu aspecto terrestre para que assim pudesse dar continuidade agrave sua existecircncia em outro lugar ou seja de fato o morto natildeo deixa de existir pois a crenccedila na sobrevivecircncia de uma parte deste morto de um duplo permeia diversas sociedades De acordo com Maacutercia Maria de Medeiros

Uma antropologia histoacuterica da morte mostra com efeito que os homens das sociedades arcaicas repugnavam a ideacuteia de uma destruiccedilatildeo definitiva e total e consideravam que os mortos continuavam a levar a nosso lado uma vida invisiacutevel e natildeo cessam de intervir no curso da existecircncia daqueles que chamam a si mesmos de vivos (DASTUR Apud MEDEIROS 2008 p 154)

Esta interpretaccedilatildeo nos permite compreender o conjunto do imaginaacuterio helecircnico acerca do processo pelo qual passava o morto ndash a morte imputada por Thanatos ndash dos processos de manutenccedilatildeo de sua continuidade ndash ritos fuacutenebres ndash dos lugares-imaginados como locais de permanecircncia desse defunto ndash como os domiacutenios de Hades o reino dos mortos A ambiguidade neste cenaacuterio reside no fato de que a morte eacute a princiacutepio um ato de exclusatildeo de desligamento Entrementes esta exclusatildeo necessita ser compensada com a re-inserccedilatildeo do indiviacuteduo em uma espeacutecie de renascimento em uma nova vida em um novo grupo social em um novo mundo (RODRIGUES 2006 p 34) Esta nova inserccedilatildeo necessita de um trabalho de desagregaccedilatildeo em um domiacutenio e a inserccedilatildeo em um novo Esta accedilatildeo exige um esforccedilo nos campos simboacutelico e cognitivo para reorganizar tais desestruturaccedilotildees e reestruturaccedilotildees de relacionamentos sociais Deste modo eacute atraveacutes dos ritos fuacutenebres do enterro do defunto o meio que a sociedade encontrou para assegurar todo este processo (RODRIGUES 2006 p 42)

Os ritos fuacutenebres funcionam entatildeo como marca dessa nova inserccedilatildeo desse processo de continuidade Buscando o entendimento de todo o processamento das relaccedilotildees sociais do receacutem-morto e dos novos viacutenculos sociais criados pelos vivos Rodrigues parte da proposiccedilatildeo conceitual de Van Gennep para compreender os ritos fuacutenebres O ldquorito de passagemrdquo permite ao autor articular o processo de separaccedilatildeo do morto da sociedade dos vivos no qual afere a ideia de que a morte natildeo eacute um fim inexoraacutevel para o morto mas

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uma passagem de uma ldquoforma de vida social a uma outra ela natildeo eacute o fim da vida mas iniciaccedilatildeo a uma novardquo (RODRIGUES 2006 p 43)

Destarte a partir deste luto os ritos vinculados a morte representam um conjunto de condutas culturais que possuem grande importacircncia e que tem como funccedilatildeo a constituiccedilatildeo de uma memoacuteria coletiva sobre o morto (MEDEIROS 2008 p 154) E com isto eacute perceptiacutevel como a morte e os ritos que lhe seguem satildeo de caraacuteter social e fundamentais para a manutenccedilatildeo da ordem no mundo dos vivos e dos mortos

Sendo assim Jean-Pierre Vernant afirma que para os gregos a ldquoideacuteia que a morte eacute um limiar intransponiacutevel atraacutes do qual se encontra um mundo que eacute um mundo de horror de anonimato um magma onde todos se perdemrdquo (VERNANT 2009 p 83) A morte para os gregos estaacute presente na ldquovida da poacutelisrdquo isto eacute a praacutetica de cuidar dos tuacutemulos renderem-lhes honras fuacutenebres a existecircncia de dias de festivais dedicados aos mortos a ponto de ser uma preocupaccedilatildeo de ordem econocircmica para os legisladores da cidade (BURKERT1993 pp 376-379)

Morrer adquire um status paradoxal implica na morte do indiviacuteduo a sua ldquoviagem para o esquecimentordquo mas a rememoraccedilatildeo constante feita pelos vivos seja pelo canto dos poetas seja pelo memorial funeraacuterio Era fundamental assim que a singularidade da existecircncia do indiviacuteduo de seus feitos do que havia sido permanecessem inscritos para sempre na memoacuteria dos homens (VERNANT 2009 p 86)

2 As passagens relacionadas ao morrer no mar

Homero eacute o primeiro a nos apontar a construccedilatildeo de um discurso sobre a morte no mar Na passagem do canto IV nos versos 708-711 ressalta que o arauto Meacutedon conta agrave Peneacutelope sobre a empreitada de Telecircmaco e a armadilha preparada pelos pretendentes visando findar com a vida de seu filho Nesta fala afirma que a morte no mar permite o esquecimento do defunto

Em nau veloz cavalo salso marinho em plena imensidatildeo aquosa natildeo carecia que zarpasse O proacuteprio nome quer que naufrague entre os humanos (HOMERO Odisseia IV 708-711)2

2 οὐδέ τί μιν χρεὼ νηῶν ὠκυπόρων ἐπιβαινέμεν αἵ θ᾽ ἁλὸς ἵπποι ἀνδράσι γίγνονται περόωσι δὲ πουλὺν ἐφ᾽ ὑγρήν ἦ ἵνα μηδ᾽ ὄνομ᾽ αὐτοῦ ἐν ἀνθρώποισι λίπηται

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A armadilha feita pelos inimigos conduziria agrave morte o jovem Telecircmaco fazendo seu corpo perdesse entre as ondas do mar Com o corpo perdido o crime seria encoberto e o a memoacuteria do jovem perdida por natildeo ser realizado o enterramento corretamente

Neste mesmo sentido o poeta do VII seacuteculo aC Arquiacuteloco enfatiza num mesmo sentido discursivo que natildeo eacute possiacutevel conceder as honras fuacutenebres aos mortos no mar Posidon oculta a dor aos parentes jaacute que natildeo poderiam ver os corpos sendo queimados na ldquochama de Hefestosrdquo com a seguinte passagem

Se Hefesto tivesse envolvido em seu vestido a cabeccedila e os membros dele Oculta os dolorosos presentes do Senhor Poseidon (ARQUIacuteLOCO vv 5-6)

No entanto eacute com Hipocircnax poeta do seacuteculo VI aC que vemos a primeira relaccedilatildeo entre a morte no mar e um ato de puniccedilatildeo

diga-me o modo para que lsquoesse infamersquo morra de uma maneira infame apedrejado por decisatildeo conjunta das pessoas agraves margens do mar esteacuteril (HIPOcircNAX 135 vv 3-4)

Nesta passagem o autor faz referecircncia a morte por apedrejamento junto a beira do mar O mar completa a cena de uma morte com caraacuteter negativo infame com esterilidade

Percebemos ateacute aqui que durante o periacuteodo arcaico a morte no mar eacute algo natildeo desejado pelos helenos algo que gera uma problemaacutetica no sistema dos ritos fuacutenebres Tambeacutem eacute na construccedilatildeo de um discurso socialmente construiacutedo que relaciona a negatividade atribuiacuteda agrave morte no meio inoacutespito ao cenaacuterio de uma morte sem gloacuteria calcada na proposiccedilatildeo de ampliar a puniccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da morte de ldquoum infamerdquo Esse discurso perpassa os valores helecircnicos ateacute se cristalizar no discurso herodotiano

Na primeira das trecircs passagens Heroacutedoto nos relata um caso em que os nautai tentam usurpar os bens de um renomado aedo durante a travessia do mar Vejamos

Confiando em nenhum mais do que os Coriacutentios ele contratou um navio Coriacutentio para levaacute-lo a partir de Tarento Mas quando eles estavam em alto mar a tripulaccedilatildeo conspirarou para tomar o dinheiro de Arion e lanccedilaacute-lo ao mar Descobrindo isso ele suplicou fervorosamente pedindo por sua vida e oferecendo-lhes o seu dinheiro Mas a tripulaccedilatildeo natildeo iria ouvi-lo e disse-lhe quer se matar

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e assim receber o sepultamento em terra ou saltar para o mar de uma vez Abandonado a estes extremos Arion pediu que uma vez que eles tinham decido em suas mentes o deixassem ficar no conveacutes do navio com toda a sua regalia e cantar e ele prometeu que depois de cantar ele iria se entregar Os homens satisfeitos com a ideia de ouvir o melhor cantor do mundo afastaram-se em direccedilatildeo ao meio da nau a partir da popa Arion colocando todos os seus bens e tendo sua lira levantou-se no conveacutes e cantou a lsquoNomo orthiorsquo e quando a muacutesica terminou ele lanccedilou-se ao mar com todos os seus bens Assim a equipe partiu para Corinto mas um golfinho (assim diz a histoacuteria) tomou Arion em suas costas e o levou a Teacutenaro Desembarcando laacute ele foi para Corinto com seus bens e quando ele chegou ele relatou tudo o que havia acontecido Periandro ceacutetico manteve-o em regime de confinamento deixando-o ir a lugar nenhum e esperou pelos marinheiros Quando eles chegaram eles foram convocados e perguntou se trouxeram notiacutecias de Arion Enquanto eles estavam dizendo que ele estava seguro na Itaacutelia e que o tinha deixado satildeo e bem em Tarento Arion apareceu diante deles assim como foi quando ele pulou do navio espantado que natildeo podia mais negar o que foi provado contra eles (HEROacuteDOTO Histoacuterias I 24 2-7)3

Nesta passagem denotamos que para encobrir o crime a ser cometido contra Arion os navegantes optam por lanccedila-lo ao mar desaparecendo com seu corpo e escondendo o crime cometido Satildeo as atribuiccedilotildees que caracterizam o mar que apresentaremos em breve que aqui fica evidenciado o mar faz com que o corpo desapareccedila Aleacutem disso a oposiccedilatildeo ldquolanccedilar-se ao marrdquo e ldquoreceber o sepultamentordquo fica notadamente evidenciada nesta passagem Morrer no mar caso ele saltasse significaria a ausecircncia dos devidos ritos fuacutenebres

A passagem seguinte de Heroacutedoto mostra uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre o ato criminoso e a capacidade do mar de encobrir o corpo

3 οὔκων δὴ πείθειν αὐτὸν τούτοισι ἀλλὰ κελεύειν τοὺς πορθμέας ἢ αὐτὸν διαχρᾶσθαί μιν ὡς ἂν ταφῆς ἐν γῇ τύχῃ ἢ ἐκπηδᾶν ἐς τὴν θάλασσαν τὴν ταχίστην ἀπειληθέντα δὴ τὸν Ἀρίονα ἐς ἀπορίην παραιτήσασθαι ἐπειδή σφι οὕτω δοκέοι περιιδεῖν αὐτὸν ἐν τῇ σκευῇ πάσῃ στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι ἀεῖσαι ἀείσας δὲ ὑπεδέκετο ἑωυτὸν κατεργάσασθαι καὶ τοῖσι ἐσελθεῖν γὰρ ἡδονὴν εἰ μέλλοιεν ἀκούσεσθαι τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀοιδοῦ ἀναχωρῆσαι ἐκ τῆς πρύμνης ἐς μέσην νέα τὸν δὲ ἐνδύντα τε πᾶσαν τὴν σκευὴν καὶ λαβόντα τὴν κιθάρην στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι διεξελθεῖν νόμον τὸν ὄρθιον τελευτῶντος δὲ τοῦ νόμου ῥῖψαί μιν ἐς τὴν θάλασσαν ἑωυτὸν ὡς εἶχε σὺν τῇ σκευῇ πάσῃ καὶ τοὺς μὲν ἀποπλέειν ἐς Κόρινθον τὸν δὲ δελφῖνα λέγουσι ὑπολαβόντα ἐξενεῖκαι ἐπὶ Ταίναρον ἀποβάντα δέ αὐτὸν χωρέειν ἐς Κόρινθον σὺν τῇ σκευῇ καὶ ἀπικόμενον ἀπηγέεσθαι πᾶν τὸ γεγονός Περίανδρον δὲ ὑπὸ ἀπιστίης Ἀρίονα μὲν ἐν φυλακῇ ἔχειν οὐδαμῇ μετιέντα ἀνακῶς δὲ ἔχειν τῶν πορθμέων ὡς δὲ ἄρα παρεῖναι αὐτούς κληθέντας ἱστορέεσθαι εἴ τι λέγοιεν περὶ Ἀρίονος φαμένων δὲ ἐκείνων ὡς εἴη τε σῶς περὶ Ἰταλίην καί μιν εὖ πρήσσοντα λίποιεν ἐν Τάραντι ἐπιφανῆναί σφι τὸν Ἀρίονα ὥσπερ ἔχων ἐξεπήδησε καὶ τοὺς ἐκπλαγέντας οὐκ ἔχειν ἔτι ἐλεγχομένους ἀρνέεσθαι

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Temendo pois para si mesmo para que seu irmatildeo poderia mataacute-lo e assim por ser rei ele enviou Prexaspes o mais confiaacutevel de seus persas para a Peacutersia para mataacute-lo Prexaspes foi para Susa e matou Esmeacuterdis levando-o para caccedilar de acordo alguns ou de acordo com os outros levando ao mar Eritreu e laacute jogou-o nas aacuteguas profundas (HEROacuteDOTO Histoacuterias III 30 3)4

Na segunda passagem Cambises receoso por um sonho ordenou a morte de seu irmatildeo Esmeacuterdis com medo deste tirar seu trono Aqui o mar aparece como um lugar vinculado agrave ideia de morte escondida no qual natildeo haacute evidecircncias O fratriciacutedio real ainda que cometido por terceiros na visatildeo helecircnica era puniacutevel pois seria cometido um crime de sangue

Por fim a terceira passagem nos apresenta a histoacuteria de Estearco que induzido por sua nova esposa de que sua filha era uma prostituta pede a seu hoacutespede Temison que jogue sua filha ao mar Natildeo somente o pai se nega a cometer diretamente um crime familiar matando sua filha mas tambeacutem solicita-o ao hoacutespede ndash que acaba sentindo-se na necessidade de retribuir a hospitalidade de Estearco Na passagem vecirc-se ldquoe o manda que a jogue no marrsquo (HEROacuteDOTO Histoacuterias IV 154 3)5

O mar aparece novamente como aquele com o poder de encobrir os crimes cometidos atraveacutes da destruiccedilatildeo do corpo Nem o corpo nem o crime seriam levados de volta agrave sociedade O mar eacute entatildeo o espaccedilo do desaparecimento aquilo capaz de ldquoEsconder os corpos e os crimesrdquo

3 O mar que esconde os corpos e os crimes

Em um estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno realizado por Astrid Lindenlauf (2003 pp 416-433) no qual o Mediterracircneo servia como um toacutepos para o descarte de objetos indesejados6 percebemos que o mar era

4 πρὸς ὦν ταῦτα δείσας περὶ ἑωυτοῦ μή μιν ἀποκτείνας ὁ ἀδελφεὸς ἄρχῃ πέμπει Πρηξάσπεα ἐς Πέρσας ὃς ἦν οἱ ἀνὴρ Περσέων πιστότατος ἀποκτενέοντά μιν ὁ δὲ ἀναβὰς ἐς Σοῦσα ἀπέκτεινε Σμέρδιν οἳ μὲν λέγουσι ἐπ᾽ ἄγρην ἐξαγαγόντα οἳ δὲ ἐς τὴν Ἐρυθρὴν θάλασσαν προαγαγόντα καταποντῶσαι

5 καὶ ταύτην ἐκέλευε καταποντῶσαι ἀπαγαγόντα

6 Exemplos que a autora expotildee lanccedilamento de estaacutetua de liacutederes poliacuteticos indesejado que representaria uma declaraccedilatildeo poliacutetica simboacutelica visando o apagamento da memoacuteria O lanccedilamento do corpo de um inimigo assassinado representava a negaccedilatildeo do enterro (LINDENLAUF 2003 pp 420-421)

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compreendido entre os helenos antigos como um lugar de onde nada ndash exceto em alguns casos ndash retornava de volta agraves vistas da sociedade A profundidade sua capacidade de submersatildeo a imensidatildeo a vastidatildeo e o constante movimento do mar geravam a percepccedilatildeo do mar como uma possibilidade do desaparecimento por completo (LINDENLAUF 2003 pp 423-424) Assim tambeacutem ocorreria para aqueles que morriam em meio mariacutetimo Todo este imaginaacuterio de poder de desaparecimento de objetos e pessoas indesejadas nos reforccedila a ideia do mar como um local de morte sem retorno

A partir destas capacidades que geram os desaparecimentos em algumas das passagens destacadas percebemos sua utilizaccedilatildeo para o encobrimento de atos considerados criminosos Fosse pela trama dos pretendentes contra Telecircmaco fosse pelo assassinato de Esmeacuterdis por ordem do irmatildeo a temaacutetica e as discussotildees sobre os atos infracionais na ordem social tambeacutem eram pontuados pelos tragedioacutegrafos Sem nos adentrarmos especificamente nestas dramatizaccedilotildees cabe-nos ressaltar que a ideia de crime de sangue ndash caso de alguns de nossos apontamentos anteriores ndash poderia ser considerado um dos piores tipos de crime Deste modo as trageacutedias estatildeo repletas de personagens que cometem crimes e satildeo julgados e punidos por estas accedilotildees Do parriciacutedio de Eacutedipo do matriciacutedio de Orestes dos filiciacutedios de Medeacuteia e Agamecircmnon do fratriciacutedio de Eteacuteocles e Polinices os helenos conviviam com estes embates em cenas e em seu imaginaacuterio onde havia o conflito entre forccedilas opostas no qual se deturpava a ordem anteriormente estabelecida Aos personagens traacutegicos temos a oposiccedilatildeo do ethhos (caraacuteter) e do daacuteimon (destino) no qual seus destinos satildeo previamente traccedilados pelos deuses e que ainda assim satildeo responsaacuteveis por seus atos criminosos (SANTOS 2005 pp 63-64)

Entre a capacidade do mar para o encobrimento de objetos e a necessidade de se esconder os corpos de crimes abjetos o mar proporciona em diversos niacuteveis esta possibilidade Natildeo satildeo somente as cinco caracteriacutesticas destacadas por Lindenlauf mas tambeacutem se deve considerar os seres que habitam o mar e que compotildeem este cenaacuterio de destruiccedilatildeo Como aponta Papadoupolos e Ruscillo o poder do mar centrava-se na capacidade de engolir e esconder um ser humano completamente aleacutem de contar com as inuacutemeras criaturas comedoras de carne em suas profundezas deste modo a morte no mar era parte da tradiccedilatildeo poeacutetica grega (2012 p 215) ldquoDesde Homero que o mar eacute o lugar dos heroacuteis o percurso a ser desbravado com coragem astuacutecia e ajuda dos deuses Entretanto isso natildeo quer dizer que o medo natildeo estivesse presente

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Os gregos sabiam o que um naufraacutegio representavardquo (VIEIRA 2010 p 60) Tanto que encontramos imagens em ceracircmica que representam o naufraacutegio e o poder destrutivo dos seres que o habitam

Esta cena estaacute em uma cratera datada de final do seacuteculo VIII aC encontrada em Pitecussa em estilo geomeacutetrico tardio (BUCHNER 1966 p 8) Nela podemos ver o naufraacutegio de um navio e seus tripulantes Em cena uacutenica vemos uma grande nau virada para baixo e dois navegantes entre os peixes logo abaixo dela Mais a esquerda da cena um enorme peixe devora um homem sua cabeccedila jaacute estando dentro da boca do peixe inclusive No restante da cena temos outros corpos e uma grande variedade de peixes

Neste contexto do periacuteodo arcaico a navegaccedilatildeo no Mediterracircneo ocidental estava pautada no processo de expansatildeo helecircnica tanto territorial quanto comercial O imaginaacuterio dos perigos do mar e dos animais que o habitavam ndash verdadeiros devoradores de homens ndash permeavam tambeacutem a construccedilatildeo imageacutetica

Da cena que apresentamos quanto destes homens poderiam ter sobrevivido Em qual situaccedilatildeo os corpos dos cadaacuteveres estariam se fossem encontrados Este imaginaacuterio de horror de uma morte longe das vistas da poacutelis de ausecircncia do corpo em ritos fuacutenebres marca a capacidade do mar e dos seres que o habitam de encobrir as mortes que ali ocorriam fossem por tempestades ou perigos inerentes agrave navegaccedilatildeo fossem por crimes cometidos e que se desejavam esconder da sociedade

4 Consideraccedilotildees finais

Podemos ver a partir da documentaccedilatildeo em que realizamos anaacutelise que essa morte marinha se coloca como o oposto da morte com seus rituais e a aproxima de atos criminosos ndash no sentido de encobrir tais atos O corpo se perdeu entre as ondas do mar foi danificado natildeo pode receber as honras fuacutenebres Natildeo eacute a ldquobela morterdquo de um guerreiro em batalha ndash morte tatildeo

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valorizada nos discursos ndash mas a ausecircncia do indiviacuteduo no qual o corpo se decompotildee no mar

A morte no mar representa o ldquolsquoultraje ao cadaacuteverrsquo ou seja o tratamento que se quer infligir aos inimigos mortos para que natildeo se tornem memoraacuteveis para os deixar apodrecerrdquo (VERNANT 2009 p 91) Natildeo eacute somente o corpo mas o esquecimento que o indiviacuteduo teraacute na memoacuteria dos vivos Os rituais fuacutenebres marcam a mnemosyne ndash Memoacuteria ndash guardam a lembranccedila e a manteacutem viva

Como aponta Joseacute Carlos Rodrigues ldquoa morte do corpo pode ser a morte do siacutembolo que o corpo eacute a morte do siacutembolo da estrutura socialrdquo (RODRIGUES 2006 p40) A simbolizaccedilatildeo da vida do defunto lhe eacute impressa em seu enterramento seu corpo faz parte da demarcaccedilatildeo social Quando haacute a ausecircncia do corpo como se realiza a marca de sua vida no enterramento

Eacute neste sentido que os rituais fuacutenebres emergem como complexos ritos que projetam a vida coletiva da sociedade no enterramento Estes ritos dependeratildeo estreitamente do tipo de morte da condiccedilatildeo do morto do status social dos sobreviventesvivos e sua relaccedilatildeo com o desaparecidomorto (Idem) Assim a ausecircncia do corpo nos ritos fuacutenebres traz problemaacuteticas a serem sanadas pelos vivos Morrer no mar eacute em muitos casos perder o corpo natildeo voltar Realizar uma demarcaccedilatildeo espacial e conceder ao morto um novo lugar para habitar atraveacutes da estela funeraacuteria O ldquocorpo se perde entre as ondasrdquo como jaacute cantavam os antigos aedos e rapsodos E uma vez perdidos entre as ondas como descobrir a forma de sua morte Como se diz que foi uma morte por naufraacutegio ou assassinato em alto-mar O mar desde os antigos mostra assim todas as suas potencialidades Potencialidades diversas que os helenos buscaram compreender dominar e representar

Abstract The power of the sea can be understood in its submersion capacity in its immensity and vastness in its depth and its constant movement These five characteristics ascribed by Astrid Lindenlauf (2003) in their study of the sea as a place of ldquono-returnrdquo enable us to perceive the potentialities of the sea in the disappearance and or cover-up of unwanted traces Thus we intend in this article to analyze passages that allow us to elucidate the relation of actions considered shameful criminal by Hellenic society with the sea in textual works of the archaic and classic periods and imagery representationKeywords Sea disappearance crimes

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Greacutecia Antiga Satildeo Luis Cafeacute amp Laacutepis e Editora UEMA 2011

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A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTI-GUIDADE

Renata Cardoso de Sousa1

Existe por exemplo o gosto pela viagem ndash um prazer muito especial que natildeo deve ser confundido com fuga evasatildeo ou escapismo Eacute o gosto pela imersatildeo no desconhecido pelo conhecimento do outro pela exploraccedilatildeo da diversidade A satisfaccedilatildeo de se deixar transportar para outro tempo e outro espaccedilo viver outra vida com experiecircncias diferentes do cotidiano (MACHADO 2009 p 19 e 20)

Resumo Propomos pensar como eacute possiacutevel trabalhar o tema da etnicidade e do etnocentrismo na sala de aula a partir do uso de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade Para tal primeiramente eacute necessaacuterio estabelecer alguns criteacuterios para a utilizaccedilatildeo dessa literatura que ainda gera debates acerca da sua proficuidade bem como conceituar a etnicidade Partiremos dos conceitos de etnicidade (proposto por Fredrik Barth) e identidade-alteridade (de Marc Augeacute) para depois nos debruccedilarmos sobre propostas de trabalho com algumas adaptaccedilotildees selecionadasPalavras-chave Ensino de Histoacuteria adaptaccedilotildees literaacuterias etnicidade

Objetivamos nesse artigo pensar algumas questotildees concernentes tanto ao Ensino de Histoacuteria quanto agrave validade da utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade em sala de aula como forma de estiacutemulo agrave leitura Dentre essas questotildees estatildeo a) Por que tratar o tema da etnicidade e do etnocentrismo em sala de aula b) Por que recorrer agrave Antiguidade para (re)pensar a etnicidade c) Por que utilizar adaptaccedilotildees em sala de aula se podemos mediar a leitura do claacutessico com os alunos

Para tal proposta primeiro propomos pensar acerca do proacuteprio conceito e de sua importacircncia dentro do contexto escolar para depois pensarmos o

1 Professora Doutoranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada (PPGHC-UFRJ) Orientada pelo Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa Bolsista CAPES E-mail renatacardoso1990gmailcom

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conceito na Antiguidade grega Em seguida discutiremos a proficuidade das adaptaccedilotildees e definiremos mesmo o que seriam elas No final propomos algumas soluccedilotildees para o trabalho com o conceito de etnicidade utilizando adaptaccedilotildees da Odisseia em sala de aula com exemplos praacuteticos

10 ldquoA Histoacuteria eacute decorebardquo ou ldquoA Histoacuteria ensina fatos do passado natildeo do presenterdquo o senso comum e o Ensino de

Histoacuteria

Quem eacute professor de Histoacuteria em algum momento jaacute deve ter ouvido essas duas frases de alunos pais de alunos ou ateacute mesmo de diretores ou coordenadores Entretanto quando nos deparamos com as pesquisas no acircmbito do Ensino de Histoacuteria (e na aacuterea de ensino em geral) percebemos o quanto essas duas visotildees estatildeo ultrapassadas Os proacuteprios Paracircmetros Curriculares Nacionais do Ensino de Histoacuteria (PCN) desconstroem essa ideia

A construccedilatildeo de noccedilotildees interfere nas estruturas cognitivas do aluno modificando a maneira como ele compreende os elementos do mundo e as relaccedilotildees que esses elementos estabelecem entre si Isso significa dizer que quando o estudante apreende uma noccedilatildeo grande parte do que ele sabe e pensa eacute reorganizado a partir dela Na medida em que o ensino de Histoacuteria lhe possibilita construir noccedilotildees ocorrem mudanccedilas no seu modo de entender a si mesmo os outros as relaccedilotildees sociais e a Histoacuteria Os novos domiacutenios cognitivos do aluno podem interferir de certo modo nas suas relaccedilotildees pessoais e sociais e nos seus compromissos e afetividades com as classes os grupos sociais as culturas os valores e as geraccedilotildees do passado e do futuro (BRASIL 1998 p 35)

Sendo assim o Ensino de Histoacuteria deixa de se basear na mera reproduccedilatildeo dos fatos histoacutericos e a cobranccedila deles nas provas ele comeccedila a elaborar uma seacuterie de objetivos (como os proacuteprios objetivos gerais do PCN ndash BRASIL 1998 p 43) que buscam a utilizaccedilatildeo da Histoacuteria para construir pessoas criacuteticas capazes de utilizar o arcabouccedilo conceitual que possuem para discutir acerca da sua proacutepria realidade e tambeacutem modificaacute-la

Fato eacute que frequentemente nos deparamos com esses dois estereoacutetipos do Ensino de Histoacuteria os quais dificultam (mas natildeo impossibilitam) o avanccedilo da aplicaccedilatildeo da pesquisa agrave praacutetica escolar (algo tambeacutem tatildeo caro ao PCN2) Ainda nos deparamos com muitos estereoacutetipos nos livros didaacuteticos

2 ldquoNas uacuteltimas deacutecadas por diferentes razotildees nota-se uma crescente preocupaccedilatildeo dos professores do ensino fundamental em acompanhar e participar do debate historiograacutefico criando

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de Histoacuteria (como a ldquoIdade Meacutedia trevosardquo ou a ldquoinvasatildeo dos baacuterbarosrdquo) bem como agraves vezes somos pressionados como professores a fazer provas que satildeo meras verificaccedilotildees e natildeo avaliaccedilotildees (LUCKESI 2008 p 93) A Histoacuteria eacute para ser compreendida natildeo decorada por meio de um questionaacuterio E ela eacute para ser compreendida natildeo para servir de exemplo mas para fazer refletir acerca do nosso proacuteprio presente e nos fazer entender como chegamos ao ponto em que estamos

A avaliaccedilatildeo nesse sentido deixaria de se ater apenas agrave verificaccedilatildeo de um conteuacutedo fatual inculcado mas traria situaccedilotildees-problema e questotildees culturais do proacuteprio cotidiano e da realidade nacional e internacional para que o aluno pudesse aplicar os conhecimentos acerca do estudo da Histoacuteria Ele demonstraria que de fato aprendeu a pensar historicamente e a aplicar esse pensamento agrave sua realidade e natildeo apenas decorou o conteuacutedo para passar de ano

Isso natildeo significa abandonar o fato histoacuterico mas sobretudo utilizaacute-los para pensar acerca do presente e instigar o contato com a alteridade por parte do educando a fim de que ele possa assim reconhecer sua proacutepria identidade e natildeo desrespeitar ou repudiar as maneiras pelas quais o Outro constroacutei sua proacutepria identidade Esse eacute outro ponto (o respeito agraves alteridades) que toca o PCN (BRASIL 1998 p 35 e 36) de modo natildeo a simplesmente ldquoformar cidadatildeos brasileirosrdquo como era a proposta majoritaacuteria no Ensino de Histoacuteria (NADAI 2017 p 30) mas formar pessoas que tecircm o respeito como valor maacuteximo

Em tempos sombrios nos quais cada vez mais vemos um retrocesso em relaccedilatildeo ao respeito aos direitos humanos e agraves pessoas que pensamagem diferente de noacutes nos quais a liberdade de expressatildeo eacute confundida com liberdade de opressatildeo e liberdade de ofensa eacute mister que o exerciacutecio da alteridade seja um dos nortes da Educaccedilatildeo Para isso eacute preciso compreender alguns conceitos como os de identidade alteridade etnicidade e etnocentrismo Eacute por esse motivo que eacute importante na sala de aula natildeo soacute ldquopassarmos todo o conteuacutedordquo mas tambeacutem fazer os educandos refletirem acerca dos conceitos que perpassam a Histoacuteria

As conceituaccedilotildees e as noccedilotildees em vez de serem trabalhadas por meio de suas caracteriacutesticas geneacutericas assumem especificaccedilotildees histoacutericas possibilitando

aproximaccedilotildees entre o conhecimento histoacuterico e o saber histoacuterico escolar Reconhece-se que o conhecimento cientiacutefico tem seus objetivos sociais e eacute reelaborado de diversas maneiras para o conjunto da sociedade Na escola ele adquire ainda uma relevacircncia especiacutefica quando eacute recriado para fins didaacuteticosrdquo (BRASIL 1998 p 30)

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o diaacutelogo entre os sujeitos que falam pelos documentos legados ao presente e aqueles que os interpretam Nesse sentido eacute importante recuperar na Histoacuteria a historicidade dos conceitos sua relaccedilatildeo com a interpretaccedilatildeo e categorizaccedilatildeo de fenocircmenos em contextos temporais especiacuteficos (BRASIL 1998 p 82)

ldquoRevoluccedilatildeordquo ldquodescobrimentordquo ldquonacionalismordquo ldquoidentidaderdquo ldquoalteridaderdquo e ldquoetnicidaderdquo satildeo exemplos de conceitos que estatildeo presentes em vaacuterias eacutepocas em vaacuterias sociedades e inclusive na nossa proacutepria sociedade Aleacutem disso esses conceitos satildeo passiacuteveis de interpretaccedilotildees diversas revelando a reflexatildeo acerca deles bastante profiacutecua para o aluno entender melhor o que eacute a Histoacuteria e o que eacute o processo histoacuterico No entanto eacute preciso que o professor saiba lidar com esses conceitos

Se o professor natildeo tiver clareza sobre o sentido e aplicaccedilatildeo de conceitos como cidadania diferenccedila semelhanccedila permanecircncia transformaccedilatildeo questionamento convivecircncia e outros que compotildeem o vocabulaacuterio dos programas e materiais de ensino como seraacute possiacutevel conduzir ou mesmo participar de um projeto de aprendizagem (MICELI 2017 p 40 ndash grifos do autor)

Por isso eacute necessaacuterio que antes de entrarmos no meacuterito do trabalho com o conceito de etnicidade compreendecirc-lo melhor sobretudo no que tange a Greacutecia Antiga nosso foco de anaacutelise

20 O que eacute a etnicidade

Essa eacute uma pergunta sem resposta definitiva desde os anos 1960 se tenta fechar o conceito de etnicidade mas sem sucesso uma vez que essas tentativas como a de Burgess em 1978 de se cristalizar de modo estanque o conceito acaba mais por generalizaacute-lo do que defini-lo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Contudo precisamos considerar que a etnicidade diferentemente da alteridade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a origem em comum de um povo conectada com um territoacuterio especiacutefico

Eacute Fredrik Barth quem estabelece um conceito de etnicidade bastante proacuteximo do que entendemos por etnicidade o autor afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidaderdquo

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afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (2011 p 141) eacute aquele que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees raciaisrdquo

Aleacutem disso Barth enfoca justamente nos limites do grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo (LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)

Por colocar em jogo essa relaccedilatildeo entre o ldquoNoacutesrdquo e o ldquoElesrdquo eacute imprescindiacutevel aliar agraves anaacutelises eacutetnicas o par conceitual identidadealteridade Seguimos o norte teoacuterico do antropoacutelogo Marc Augeacute que natildeo enxerga esses dois conceitos de maneira diametralmente oposta mas como um par complementaacuterio a identidade natildeo existe sem definiccedilotildees de alteridade e vice-versa (AUGEacute 1998 p 28) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no contato entre os colonizadores e os nativos e procuramos reapropriar proficuamente seu arcabouccedilo conceitual para a anaacutelise do nosso objeto histoacuterico-discursivo

O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica assim como o de etnicidade o contato com outras culturas eacute imbuiacutedo de choques No entanto Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de Outro retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) O proacuteprio conectivo adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 pp 63-64) o ldquooutrordquo assemelha-se ao ldquomasrdquo ao adverso

Os estudos de etnicidade em relaccedilatildeo agrave Antiguidade grega satildeo recentes e encontraram em Edith Hall Jonathan Hall e Irad Malkin grande expressatildeo Este uacuteltimo sobretudo adentra mais ainda o tema retirando das Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) o suposto meacuterito de ter contribuiacutedo para o desenvolvimento de relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e seus Outros se debruccedilando sobre a Odisseia de Homero

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No nosso trabalho de doutorado objetivamos incluir a Iliacuteada no centro das discussotildees acerca da etnicidade tambeacutem bem como pensar a construccedilatildeo de um processo discursivo em torno da etnicidade e da identidade-alteridade em Homero Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides sendo o primeiro o arquitexto desses trecircs uacuteltimos Objetivamos analisar como as fronteiras eacutetnicas entre os gregos e seus Outros (e posteriormente entre a poacutelis ateniense e as demais sobretudo as peloponeacutesicas) satildeo construiacutedas desde as epopeias homeacutericas inclusive a Iliacuteada no bojo da relaccedilatildeo de inimizade na guerra entre troianos e aqueus

Na Odisseia de fato as relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e os seus Outros ficam mais evidentes por conta dos enfrentamentos de Odisseu com a alteridade em sua viagem de retorno a Iacutetaca Embora ele se depare com diversos povos (como os ciacutecones os lestrigotildees os lotoacutefagos e ateacute mesmo os feaacutecios que embora muito parecidos com os gregos em sua cultura resistem agrave amizade ritual elemento distintivo entre eles e os baacuterbaros no processo discursivo helecircnico) e pessoas (como Circe e Calipso que satildeo feiticeiras) que destoam do ideal de conduta e civilizaccedilatildeo gregas eacute no episoacutedio dos ciclopes que as marcas eacutetnicas entre os gregos e seus Outros ficaratildeo mais evidentes

Esse episoacutedio eacute tatildeo marcante que ele natildeo se restringe apenas ao Canto IX no qual ele eacute narrado em vaacuterios Cantos da Odisseia o Ciacuteclope reaparece mesmo que seja apenas mencionado (HOMERO Odisseia I vv 69-73 II vv 19-20 X vv 200 e 435 XII vv 209-212 XX vv 18-21 XXIII vv 312-314) Haacute uma construccedilatildeo de fronteiras eacutetnicas flagrante nesse encontro que seraacute explorada no seacuteculo V aC por Euriacutepides no seu drama satiacuterico O Ciacuteclope Eles satildeo descritos do seguinte modo por Odisseu ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεμίστων ἱκόμεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)

Polifemo eacute descrito como um monstro aos olhos do heroacutei eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) como os outros Ciclopes O Ciclope nega uma suacuteplica ao natildeo hospedar Odisseu Isso gera um estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) A consequecircncia da perdiccedilatildeo dele eacute o vazamento de seu uacutenico olho pelo heroacutei da epopeia Contudo a proacutepria hyacutebris (desmedida) de Odisseu ao se vangloriar de tal feito o faz vagar mais pelo mar ateacute conseguir chegar em sua terra natal Iacutetaca

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Para definir o que ele entende por civilizaccedilatildeo ele utiliza a definiccedilatildeo do Outro os gregos respeitam a lei porque os Outros natildeo o fazem a agricultura eacute a atividade que concede identidade aos gregos porque os Outros natildeo a praticam o patildeo eacute o alimento por excelecircncia dos gregos porque os outros natildeo cozinham o alimento nem o fabricam E assim por diante Do mesmo modo noacutes fazemos nos orgulhamos de certos traccedilos eacutetnicos porque satildeo exclusivos a noacutes no plano discursivo natildeo satildeo compartilhados com os Outros

Para levar essa discussatildeo para a sala de aula propomos a utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees Para tal devemos primeiramente definir o que entendemos por adaptaccedilatildeo e debater acerca das particularidades do uso e estudo delas

30 Consideraccedilotildees iniciais acerca da recepccedilatildeo das adaptaccedilotildees

Quando vamos ao cinema assistir a um filme baseado em um livro eacute comum sairmos frustrados acabamos chegando agrave conclusatildeo de que era melhor ter lido o livro somente Cenas satildeo cortadas ou amalgamadas os personagens e os cenaacuterios nem sempre correspondem agrave descriccedilatildeo do livro os diaacutelogos satildeo suprimidos e ou simplificados Isso ocorre porque um livro na verdade satildeo muitos livros cada vez que algueacutem o lecirc interpreta e imagina de um jeito os personagens cenaacuterios cenas diaacutelogos Eacute como se fosse um filme interior passando dentro de nossas cabeccedilas E nenhum cineasta pode estar dentro de nossas cabeccedilas para imaginar como gostariacuteamos de ver um livro representado nas telas Afinal ele mesmo imaginou e criou o mundo do livro em seus pensamentos tambeacutem

Aleacutem disso haacute a questatildeo da narrativa a dinacircmica de um livro eacute diferente da de um roteiro de cinema dos planos cinematograacuteficos que existem no discurso fiacutelmico Seguindo o mesmo raciociacutenio podemos pensar acerca das adaptaccedilotildees literaacuterias O adaptador leu o livro imaginou-o viveu todas aquelas cenas e personagens em sua mente Entretanto ele decide natildeo ficar com isso somente para si ele quer contar para crianccedilas e jovens o que leu o que imaginou o que interpretou E faz a adaptaccedilatildeo daquele livro para um puacuteblico infanto-juvenil cuja literatura demanda um outro tipo de linguagem um outro tipo de discurso diferente daquele do livro para um puacuteblico adulto ou para um puacuteblico infanto-juvenil de eacutepocas precedentes

Por conta disso as adaptaccedilotildees satildeo vistas agraves vezes como elementos empobrecedores dos claacutessicos

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A adaptaccedilatildeo das obras claacutessicas das literaturas nacional e mundial eacute um tema que desperta polecircmica e divide opiniotildees Natildeo poderia ser diferente jaacute que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo natildeo se reduz a um sentido consensual pode ser associada tanto agrave noccedilatildeo de ldquoenriquecimentordquo quanto agrave de ldquoempobrecimentordquo Geralmente argumenta-se que empobreceria as literaturas claacutessicas em virtude de um processo de atualizaccedilatildeo e de simplificaccedilatildeo que visaria a atender a puacuteblicos especiacuteficos como o infantil e o infanto-juvenil Por razotildees semelhantes tornaria possiacutevel o enriquecimento da formaccedilatildeo educativa desses puacuteblicos introduzindo obras de difiacutecil acesso cuja linguagem seria ldquocomplexardquo ou temporalmente distante da linguagem com a qual tais leitores estariam habituados Em ambos os casos a adaptaccedilatildeo seria um conceito amplo que abarcaria as mais diversas formas de linguagem como histoacuteria em quadrinhos adaptaccedilotildees cinematograacuteficas e televisivas desenhos animados audio-books e os trabalhos em forma de narrativa (AMORIM 2005 p 119)

De fato a adaptaccedilatildeo ou releitura daquele livro natildeo seraacute igual ao original assim como o filme do livro natildeo eacute igual ao livro afinal a proposta eacute diferente e os autores satildeo diferentes ldquoA reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a lsquomesma coisarsquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidaderdquo (AMORIM 2005 p 95) Se nos deparamos com uma adaptaccedilatildeo de Miguel de Cervantes William Shakespeare ou Homero natildeo satildeo mais Cervantes Shakespeare e Homero que estatildeo contando aquela histoacuteria eacute o autor da proacutepria adaptaccedilatildeo

Parece oacutebvio afirmar isso mas ainda existe uma preocupaccedilatildeo em denunciar as dissonacircncias entre a adaptaccedilatildeo e o original em detrimento de analisar os porquecircs daquelas dissonacircncias Os textos claacutessicos satildeo arquitextos tanto para as adaptaccedilotildees ou releituras quanto para outros textos que natildeo faccedilam referecircncia direta a esses claacutessicos Os temas da morte que gera vinganccedila por parte daquele que ainda vive dos erros do heroacutei que o leva ao amadurecimento do reconhecimento da bestializaccedilatildeo do ser humano do ponto fraco do heroacutei satildeo vistos inuacutemeras vezes na literatura mundial e estatildeo presentes em textos que remontam agrave Antiguidade Claacutessica Deveria ser Robinson Crusoeacute menos claacutessico que Odisseu Ou Robin Hood menos claacutessico que Paacuteris Afinal o tema da permanecircncia em lugares hostis e da descoberta do filho perdido natildeo foram criados por Defoe e Dumas respectivamente O proacuteprio Alexandre Dumas ao escrever seu As aventuras de Robin Hood estava recriando o personagem das gestas medievais que foram cristalizadas na escrita tempos depois de terem sido cantadas por seacuteculos Afinal

A reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a ldquomesma coisardquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em

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novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidade (AMORIM 2005 p 95)

40 Afinal o que eacute uma adaptaccedilatildeo

Yves Gambier logo no iniacutecio do seu artigo escreve que a adaptaccedilatildeo natildeo teve ainda algum estudo rigoroso ou sistemaacutetico sendo caracterizada sobretudo pela ldquofetichizaccedilatildeordquo do original ldquoA partir de quando podemos dizer que ela [a adaptaccedilatildeo] desfigura lsquotrairsquo o original Segundo quais normas ela se realizardquo (GAMBIER 1992 p 421 e 424)

Objetivamos pensar aqui a adaptaccedilatildeo como ldquolsquohistoacuterias recontadasrsquo reescrituras de obras claacutessicas das literaturas estrangeira e nacional direcionadas a um puacuteblico especiacutefico como o infanto-juvenilrdquo (AMORIM 2005 p 16) Satildeo ldquotextos novos construiacutedos sobre enredos antigosrdquo (FEIJOacute 2010 p 42) Essas adaptaccedilotildees natildeo deixam de ser traduccedilotildees e tambeacutem releituras uma vez que estatildeo recontando as histoacuterias originais a fim de tornaacute-las inteligiacuteveis para o sujeito destinataacuterio delas as crianccedilas e os jovens

Yves Gambier (1992 p 422) inclusive critica uma tentativa de diferenciar adaptaccedilatildeo de traduccedilatildeo mostrando que adaptaccedilatildeo pode ser concebida como a) praacutetica de ldquoadicionar eou omitir para que o texto de chegada (TC) tenha o lsquomesmo efeitorsquo que o texto de partida (TP) dando-se enfoque aos receptores (cultura e liacutengua de chegada)rdquo b) ldquofazer obra original a partir de uma outra composta no mesmo sistema de signos ou natildeordquo c) ldquotransformar um texto visando um certo leitorado por razotildees e segundo criteacuterios socioeconocircmicos declarados ou natildeordquo Desse modo inclusive ele ratifica o conceito de ldquotradaptaccedilatildeordquo de Michel Garneau que viria a eliminar as dicotomias entre a adaptaccedilatildeo e a traduccedilatildeo

O fato de o sujeito destinataacuterio delas serem crianccedilas e jovens natildeo implica que as adaptaccedilotildees sejam exclusivas a esse puacuteblico uma vez que adultos podem se tornar sujeitos receptores desses textos O contraacuterio tambeacutem acontece ldquoPode ateacute acontecer que a crianccedila entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o natildeo foi venha a preferir o segundo Tudo eacute misterioso nesse reino que o homem comeccedila a desconhecer desde que o comeccedila a abandonarrdquo (MEIRELES 2016 p 19)

As adaptaccedilotildees satildeo ldquoum tipo especial de traduccedilatildeo que envolve[m] seleccedilatildeo de conteuacutedo ndash pois resume[m] o enredo ndash e adequaccedilatildeo da linguagem para apresentar a obra escolhida aos jovens de um novo tempo e assim a tradiccedilatildeo

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se perpetua e se legitima por meio da renovaccedilatildeordquo (FEIJOacute 2010 p 44) Ela eacute a ldquoatualizaccedilatildeo de um discurso literaacuteriordquo (FEIJOacute 2010 p 63) pois ldquo[] as obras tradicionais satildeo reelaboradas ou reinterpretadas agrave luz das preocupaccedilotildees sociais morais e literaacuterias de cada momento histoacutericordquo (COLOMER 2017 p 25)

Em defesa das adaptaccedilotildees existe uma tendecircncia a se utilizar o conceito de interdiscurso3 arquitexto4 ou intertexto5 oriundos da Anaacutelise do Discurso no intuito de se dizer que assim como os diversos textos contemporacircneos utilizam os claacutessicos e natildeo satildeo criticados as adaptaccedilotildees assim tambeacutem natildeo o devem ser6 Contudo natildeo compartilhamos dessa ideia os processos interdiscursivos que perpassam os textos natildeo devem ser confundidos ou assemelhados a uma tentativa de tornar inteligiacutevel e acessiacutevel textos por parte de um puacuteblico leitor iniciante como eacute o caso da adaptaccedilatildeo

As adaptaccedilotildees geralmente (mas natildeo necessariamente) estatildeo atreladas agrave literatura infanto-juvenil Foi a partir do seacuteculo XVIII (quando uma noccedilatildeo de infacircncia comeccedila a surgir) que a literatura infanto-juvenil comeccedila a aparecer7 mas com esses fins exclusivamente exemplares Teresa Colomer (2017 p 19)

3 Interdiscurso eacute o conjunto de discursos que antecedem um texto e que o perpassam

4 O arquitexto eacute um texto claacutessico

5 Intertexto satildeo os textos que estatildeo presentes em outros textos seja por meio de citaccedilatildeo direta ou referecircncia sem necessariamente apontar a autoria original

6 ldquoEm favor da posiccedilatildeo de [Monteiro] Lobato e Nelly [Novaes Coelho] seria interessante ainda argumentar que se aceitamos o conceito de intertexto ou seja essa ideia de que a literatura se constroacutei como infinito mosaico de citaccedilotildees e influecircncias mais ou menos remotas a desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees deveria ser amenizada Afinal se eacute vaacutelida a premissa de que alguns lsquoclaacutessicosrsquo satildeo obras fundadoras ou canocircnicas que ao longo do tempo se tornam balizas significativas para um dado patrimocircnio cultural ateacute que ponto as demais obras produzidas natildeo podem ser compreendidas como contiacutenuas lsquoadaptaccedilotildeesrsquo literaacuterias dessas matrizesrdquo (CECCANTINI 2004 p 86)ouldquoSe aceitarmos a ideia de que os claacutessicos podem ser classificados como lsquotextos primeirosrsquo [esse seria o arquitexto] e dar origem indefinidamente a novos textos ndash sempre atualizados com o contexto histoacuterico em que satildeo produzidos e com puacuteblico a que se destinam ndash entatildeo poderemos pensar a adaptaccedilatildeo como um procedimento habitual e inerente agrave renovaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria como perpetuaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos cacircnonesrdquo (FEIJOacute 2010 p 43)

7 Teresa Colomer se refere aqui agrave literatura cujo sujeito destinataacuterio eram as crianccedilas e jovens Podemos entender melhor essa ideia se analisarmos as trecircs categorias de livros infantis natildeo-intencionais que Ceciacutelia Meireles (2016 p 52) distingue em 1951 1) a redaccedilatildeo escrita das tradiccedilotildees orais (como Perrault e Grimm) 2) os livros escritos para uma determinada crianccedila que depois passaram para uso geral (como La Fontaine) 3) livros natildeo escritos para crianccedilas que vieram a cair em suas matildeos e dos quais se fizeram adaptaccedilotildees visando tornaacute-los mais compreensiacuteveis ou adequados ao puacuteblico infantil

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afirma que por muito tempo a literatura voltada para crianccedilas e adolescentes focou na exemplaridade e no didatismo Natildeo que os textos antigos como Homero natildeo trouxessem coacutedigos de conduta a serem seguidos (ateacute porque esses textos eram utilizados na formaccedilatildeo dos gregos poliacuteades) mas eles natildeo foram escritos com tal propoacutesito (MEIRELES 2016 p 43)

Colomer (2017 p 20) defende que a literatura infanto-juvenil estaacute aleacutem disso ela vai ldquo1) Iniciar o acesso ao imaginaacuterio compartilhado por uma determinada sociedade 2) Desenvolver o domiacutenio da linguagem atraveacutes das formas narrativas poeacuteticas e dramaacuteticas do discurso literaacuterio 3) Oferecer uma representaccedilatildeo articulada do mundo que sirva como instrumento de socializaccedilatildeo das novas geraccedilotildeesrdquo A literatura infantil natildeo serve soacute para ensinar exemplos mas para tornar a crianccedila um leitor literaacuterio (COLOMER 2017 p 31)

Para o Ensino da Histoacuteria a primeira e a terceira funccedilatildeo satildeo essenciais para que consideremos o uso dessa literatura na sala de aula As primeiras adaptaccedilotildees inclusive foram feitas por professores (FEIJOacute 2010 p 61) Daiacute a importacircncia da atividade pedagoacutegica para o bom aproveitamento de uma adaptaccedilatildeo Para trabalhar com esse tipo de literatura eacute necessaacuterio ler o original a fim de tanto poder selecionar melhor as adaptaccedilotildees aos propoacutesitos da atividade pedagoacutegica proposta quanto trabalhar melhor com a adaptaccedilatildeo na sala de aula (FEIJOacute 2010 p 150)

No Brasil as adaptaccedilotildees se popularizaram nos anos 1970 junto com a literatura infanto-juvenil em geral (FEIJOacute 2010) Entretanto jaacute no iniacutecio do seacuteculo temos as primeiras adaptaccedilotildees literaacuterias aqui feitas por Monteiro Lobato A partir dele muitos outros autores renomados da literatura brasileira se dedicaram agrave adaptaccedilatildeo Clarice Lispector Rubem Braga Paulo Mendes Campos Ana Maria Machado Essa uacuteltima inclusive aleacutem de escrever adaptaccedilotildees refletiu acerca delas em seu Como e por que ler os claacutessicos universais desde cedo

Defendemos que a adaptaccedilatildeo natildeo pode ser tratada como literatura inferior uma vez que isso seria tratar a literatura infanto-juvenil do mesmo modo Aleacutem disso quantas pessoas natildeo comeccedilaram a ler os claacutessicos porque leram boas adaptaccedilotildees deles na infacircncia Joatildeo Luiacutes Ceccantini em 1997 escreveu para o jornal Proleitura um artigo sobre as adaptaccedilotildees de claacutessicos e afirmou que ldquoa cada adaptaccedilatildeo bem realizada de um claacutessico (nas vaacuterias linguagens) eacute grande o nuacutemero de leitores que se dirige aos textos originaisrdquo (CECCANTINI 2004 p 87) Fato este que atestei inuacutemeras vezes ao longo da minha experiecircncia como professora do Instituto de Histoacuteria da Universidade

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Federal do Rio de Janeiro quando alunos vinham me abordar para conversar sobre as epopeias homeacutericas e as trageacutedias e mostrando que o interesse deles era derivado de eles terem lido quando crianccedilas adaptaccedilotildees desses claacutessicos

A adaptaccedilatildeo manteacutem na memoacuteria o original o claacutessico mas tambeacutem gesta mudanccedilas que dialogam com a escrita contemporacircnea agrave adaptaccedilatildeo (AMORIM 2005 p 30)

As inuacutemeras adaptaccedilotildees realizadas em momentos histoacutericos distintos concretizam o postulado de que a literatura natildeo se apresenta como uma uacutenica resposta para as diferentes perguntas surgidas em cada eacutepoca porque tanto o leitor como suas inquietaccedilotildees se modificam O olhar direcionado para obra busca compreender o presente ou mesmo o passado mas a sua histoacuteria natildeo eacute a igual a dos leitores preteacuteritos logo as questotildees formuladas ao texto seratildeo outras Cabe ao adaptador sujeito histoacuterico do seu tempo compreender as indagaccedilotildees dos leitores infanto-juvenis e as possibilidades da obra ao ser adaptada de respondecirc-las (CARVALHO 2006 p 18)

Desse modo eacute mais profiacutecuo analisar as adaptaccedilotildees como textos que dialogam com seus proacuteprios contextos de produccedilatildeo natildeo com os contextos de seus originais Afinal o autor das adaptaccedilotildees eacute um sujeito receptor a posteriori que natildeo estaacute inserido no contexto dos sujeitos destinataacuterios e receptores da eacutepoca em que o claacutessico foi composto (o que natildeo impede de procurar saber acerca desse contexto devendo inclusive fazecirc-lo para que sua adaptaccedilatildeo seja de boa qualidade)

50 Colocando em praacutetica ndash algumas breves sugestotildees

Por que trabalhar com a Antiguidade Claacutessica para se falar de etnicidade Ana Maria Machado ao falar sobre a literatura claacutessica afirma que

Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade a cultura grega antiga sempre despertou o entusiasmo de leitores apaixonados em diferentes eacutepocas histoacutericas Satildeo uma fonte inesgotaacutevel onde sempre podemos beber Para muita gente eles satildeo os mais fascinantes de todos os claacutessicos Provavelmente satildeo os que mais marcaram toda a cultura ocidental (MACHADO 2009 p 26)

Contudo um outro aspecto preocupa o professor o da obrigatoriedade da leitura como algo prejudicial ao interesse do aluno Maacuterio Feijoacute (2010 p 14) e Ana Maria Machado (2009 p 13) ao escreverem sobre a questatildeo da obrigatoriedade da leitura na sala de aula defendem cada um a seu modo

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que ningueacutem deve ser obrigado a ler algo de que natildeo goste uma vez que isso pode ndash em vez de gerar o efeito pretendido que eacute fazer a crianccedila ou o jovem tomar gosto pela leitura ndash gerar o efeito inverso e fazer com que eles tenham ojeriza agrave leitura Teresa Colomer defende essa obrigatoriedade (COLOMER p 92 e 93)

[] na atualidade aumentam as vozes que defendem a responsabilidade social de oferecer aos meninos e agraves meninas o acesso a uma tradiccedilatildeo cultural compartilhada pela coletividade Isso requer a criaccedilatildeo de um horizonte de leituras ldquoclaacutessicasrdquo entendidas como um conjunto formado pelo folclore os tiacutetulos mais valorizados da literatura infantil e o iniacutecio da leitura das grandes obras universais (COLOMER 2017 p 127)

Contudo ela tambeacutem defende que essa literatura natildeo pode ser maccedilante levando em consideraccedilatildeo sempre os interesses dos alunos uma vez que eles natildeo satildeo meros receptores dos conhecimentos Para ela ldquoos melhores livros satildeo aqueles que estabelecem um compromisso entre o que as crianccedilas podem entender sozinhas e o que podem compreender por meio de um esforccedilo da imaginaccedilatildeo que seja suficientemente compensadordquo (COLOMER 2017 p 37)

Eacute fato que os poemas de Homero possuem uma linguagem a qual a crianccedila e o jovem do seacuteculo XXI podem natildeo conseguir acessar sem mediaccedilatildeo Ana Maria Machado (2009 p 11 e 12) coloca que

Eacute claro que hoje em dia o ensino eacute diferente e o mundo eacute outro Natildeo se concebe que as crianccedilas sejam postas a estudar latim e grego ou a ler pesadas versotildees completas e originais de livros antigos ndash como jaacute foi de praxe em vaacuterias famiacutelias de algumas sociedades haacute um seacuteculo Apenas natildeo precisamos cair no extremo oposto Ou seja o de achar que qualquer leitura de claacutessico pelos jovens perdeu o sentido e portanto deve ser abandonada nestes tempos de primazia da imagem e domiacutenio das diferentes telas sobre a palavra impressa em papel

Assim a mediaccedilatildeo entre os educandos e esses claacutessicos pode ser feita tanto pelos professores quanto pelas proacuteprias adaptaccedilotildees Sugerimos aqui um trabalho que conjugue ambos a adaptaccedilatildeo caminhando junto com o claacutessico A adaptaccedilatildeo sozinha natildeo daacute a dimensatildeo do claacutessico eacute preciso que noacutes mediadores conheccedilamos bem esse claacutessico para que consigamos ter um bom aproveitamento das adaptaccedilotildees

As boas adaptaccedilotildees satildeo aquelas que conseguem manter o mesmo fio condutor da obra original e traga as mesmas imagens marcantes da mesma Uma adaptaccedilatildeo da Odisseia sem o Ciclope por exemplo natildeo seria uma boa

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adaptaccedilatildeo uma vez que essa imagem eacute muito marcante ateacute mesmo dentro da proacutepria obra como jaacute vimos Sendo assim propomos aqui dois modos de trabalho com adaptaccedilotildees Contudo em ambos os casos cremos ser necessaacuterio trazer um pouco do original para que o aluno tenha dimensatildeo do claacutessico e como ele foi composto

Esse trabalho natildeo deve estar inserido no planejamento como se fosse uma mera curiosidade acerca do mundo grego antigo ele deve dialogar com o conteuacutedo programaacutetico Isso auxilia o professor nas estrateacutegias de ensino desse conteuacutedo bem como faz com que ele aproveite o tempo em sala de aula Muito se fala da questatildeo da ldquofata de tempordquo para se fazer atividades luacutedicas e diferentes com os alunos mas pouco se fala da inaptidatildeo do professor em conseguir associar essas atividades luacutedicas ao proacuteprio ensino do ldquoconteuacutedordquo em si

De fato satildeo muitos conteuacutedos para administrar em pouco tempo por isso essas atividades que a priori seriam tidas como ldquoextraclasserdquo devem ser incluiacutedas como metodologia mesmo de ensino deles Um documento (seja ele texto escrito imagem filme) natildeo deve ser utilizado para ilustrar um conteuacutedo mas para auxiliar na sua compreensatildeo Eacute possiacutevel tambeacutem utilizar esses documentos para avaliaccedilotildees fazendo com que o aluno relacione o conteuacutedo com o proacuteprio documento e estimulando-o a pensar acerca da sua proacutepria realidade a partir daquele documento A avaliaccedilatildeo resultante do trabalho com adaptaccedilatildeo natildeo deve ser o preenchimento de uma ficha de leitura ou um questionaacuterio pois isso acaba se tornando uma verificaccedilatildeo nos moldes que jaacute discutimos

Sendo assim escolhemos duas adaptaccedilotildees para trabalhar de dois modos distintos a Odisseia adaptada por Marcos Maffei e ilustrada por Eloar Guazzelli Filho para a Coleccedilatildeo Recontar (Escala Educacional 2004) e Odisseia de Homero (Segundo Joatildeo Viacutetor) de Gustavo Piqueira Em ambos os casos pensamos atividades para dois tempos de aula Existem duas opccedilotildees pedir para os alunos lerem a adaptaccedilatildeo previamente ou lecirc-la junto com eles em sala de aula apontando durante a leitura o conteuacutedo programaacutetico de Greacutecia a ser trabalhado

51 Odisseia de Marcos Maffei e Eloar Guazzelli Filho

Essa coleccedilatildeo segundo os editores foi feita para levar aos pequenos histoacuterias atemporais que continuam a divertir e ensinar O caraacuteter pedagoacutegico da literatura infantil ainda aparece aqui como norte A Odisseia especificamente eacute dividida em vinte e quatro capiacutetulos bem como a obra original eacute dividida em vinte e quatro cantos

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O intuito do adaptador eacute resumir os principais acontecimentos da Odisseia sem contudo desrespeitar a divisatildeo em cantos feita pelos saacutebios alexandrinos Sendo assim a histoacuteria segue a narrativa homeacuterica poreacutem de maneira adaptada agrave linguagem e agrave dinacircmica da narraccedilatildeo em prosa

O ideal eacute que o professor leia junto com os alunos a obra e selecione um dos capiacutetulos para trazer o canto original e lecirc-lo tambeacutem com os alunos incentivando-os a compreender as diferenccedilas entre uma narrativa e outra tanto em relaccedilatildeo ao gecircnero quanto em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees escolhidas para a contagem da histoacuteria Nesse momento eacute possiacutevel introduzir aos alunos os conteuacutedos relativos agrave literatura grega bem como o proacuteprio contexto no qual as epopeias homeacutericas estatildeo ancoradas (como o proacuteprio processo de formaccedilatildeo de apoikiacuteai ndash ldquocolocircniasrdquo ndash gregas ao longo do Mediterracircneo) O professor pode mostrar como cada povo que Odisseu encontra eacute marcado pela sua presenccedila

Propomos aqui eleger o capiacutetulo 9 referente ao canto IX o qual relata o encontro de Odisseu com o Ciclope Eacute um dos capiacutetulos mais extensos do livro e que traz a seguinte caracterizaccedilatildeo do Ciclope

Fomos entatildeo parar noutra ilha onde havia aacutegua e muitas cabras Dali se via uma terra que parecia habitada e no dia seguinte decidi ir ateacute laacute soacute com meu navio Ancoramos onde havia uma grande caverna Escolhi doze de meus homens e fomos ateacute ela levando odres de vinho para ter algo a oferecer Na enorme caverna havia cestos cheios de queijos e cercados com filhotes de ovelhas e cabras mas seu dono levara seus rebanhos para pastar Ele natildeo demorou a chegar com um feixe de lenha tatildeo grande que fez um estrondo ao ser largado no chatildeo e corremos a nos esconder pois era um Ciclope um gigante enorme de um olho soacute Ele fechou a caverna com uma pedra imensa e muito pesada e ao acender o fogo nos viu e perguntou com sua voz tremenda quem eacuteramos (MAFFEI 2004 p 20)

Aqui o exagero (no corpo na voz nos atos do Ciclope) eacute reiterado vaacuterias vezes a fim de mostrar a monstruosidade do personagem A imagem do pelṓrios eacute aqui evidente bem como nas ilustraccedilotildees que os mostram extremamente gigantes frente aos navios gregos O texto continua de modo a narrar como o Ciclope devora os homens de Odisseu reiterando a imagem de que ele natildeo eacute um ldquohomem comedor de patildeordquo Esses satildeo os signos de etnicidade e alteridade que se repetem na adaptaccedilatildeo

No texto de Homero (IX vv 176-301) outros elementos se destacam como a dicotomia entre o cru e o cozido (com a presenccedila da fumaccedila dos fornos) o desconhecimento das leis a convivecircncia em comunidade e a ausecircncia

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de amizade ritual Todos esses elementos tecircm a ver com a construccedilatildeo da dicotomia entre o grego e seus Outros e mais tarde entre o grego e o baacuterbaro

A terra dos ciclopes que perto viviam observaacutevamossua fumaccedila e o som de ovelhas e cabrasQuando o sol mergulhou e vieram as trevasentatildeo repousamos na rebentaccedilatildeo do marQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosentatildeo eu realizando assembleia disse entre eleslsquoOs outros voacutes aqui ficai meus leais companheirosmas eu com minha nau e meus companheirosvou verificar esses homens de que tipo eles satildeose desmedidos selvagens e natildeo civilizadosou hospitaleiros com mente que teme o deusrsquoDito isso embarquei e pedi aos companheirosque tambeacutem embarcassem e os cabos soltassemLogo embarcaram e sentaram-se junto aos calccedilose alinhados golpeavam o mar cinzento com remosMas ao chegarmos a esse lugar que perto ficavalaacute vimos no extremo uma caverna junto ao maralta agrave sombra de loureiros Laacute grande rebanhoovelhas e cabras pernoitava em torno cercaalta se construiacutera com blocos de uma pedreiracom grandes pinheiros e carvalhos alta-copaLaacute pernoitava um varatildeo portentoso ele que o rebanhosozinho apascentava afastado aos outros natildeovisitava mas longe vivendo normas ignoravaDe fato era um assombro portentoso natildeo pareciaum varatildeo come-patildeo mas um pico matosodos altos montes que surge soacute longe dos outrosEntatildeo aos demais leais companheiros pedique laacute junto agrave nau ficassem e guardassem a naumas eu apoacutes escolher doze nobres companheirosfui Levava um odre de cabra com vinho escurodoce que me dera Maacuteron filho de Euantessacerdote de Apolo que zela por Ismarosporque junto com filho e esposa noacutes o protegemosvenerando-o pois habitava bosque arvorejadode Febo Apolo Deu-me presentes radiantesde ouro bem trabalhado sete pesos me deume deu acircnfora toda de prata e depoisvinho em doze acircnforas dupla-alccedila ao todo verteudoce puro bebida divina A esse ningueacutemconhecia nem escravo nem criado em sua casasoacute ele proacuteprio a cara esposa e uma soacute governantaQuando algueacutem bebesse esse vinho tinto doce como melenchia um caacutelice e doze medidas de aacutegua

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vertia um doce aroma da acircnfora emanavaprodigioso entatildeo impossiacutevel seria abster-seEu trazia um grande odre cheio dele e tambeacutem acepipesno alforje logo meu acircnimo orgulhoso pensouque encontraria varatildeo vestido com grande bravuraselvagem natildeo conhecendo bem tradiccedilotildees nem normasCeacuteleres nos dirigimos ao antro e dentro natildeoo achamos mas apascentava no pasto gordos rebanhosApoacutes chegar ao antro a tudo contemplamoscestos abarrotados de queijo cercados repletosde ovelhas e cabritos separados por categoriasencerrados agrave parte os mais velhos agrave parte medianosagrave parte filhotes Todas as vasilhas transbordavam de soroe baldes e tigelas fabricadas com as quais ordenhavaLaacute os companheiros suplicaram-me para primeiropegar algum queijo e voltar e depoisligeiro ateacute a nau veloz cabritos e ovelhasdos cercados arrastar e navegar pela aacutegua salgadamas natildeo obedeci (e teria sido muito mais vantajoso)para poder vecirc-lo esperando que me desse regalosPois apoacutes surgir natildeo seria amaacutevel com os companheirosTendo laacute aceso o fogo sacrificamos e tambeacutem noacutescomemos parte do queijo e dentro o esperamossentados ateacute voltar com ovelhas trazia ponderoso pesode madeira seca que seria usado para seu jantarLanccedilando-o fora do antro produziu um estrondonoacutes com medo recuamos ateacute o fundo do antroEle agrave ampla gruta tocou o gordo rebanhotantas quantas ordenhava e os machos deixou foracarneiros e bodes no exterior atraacutes da alta cercaEntatildeo ergueu e pocircs na entrada grande rochaponderosa a ela nem vinte e dois carrosoacutetimos de quatro rodas solevariam do solotal rochedo alcantilado colocou na entradaSentado ordenhava ovelhas e cabras balentestudo com adequaccedilatildeo e pocircs um filhote sob cada umaLogo metade do branco leite separou para coalhare pocircs os coalhos apoacutes juntaacute-los em cestos tranccediladosmetade laacute colocou em barris para que estivessedisponiacutevel para ele beber em seu jantarMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zeloentatildeo ao acender o fogo viu-nos e perguntoulsquoEstranhos quem sois Donde navegastes por fluentes viasAcaso devido a um assunto ou levianos vagaistal qual piratas ao mar Esses vagamarriscando suas vidas levando dano a gentes alheiasrsquoAssim falou e nosso coraccedilatildeo rachou-se

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atemorizados com a voz pesada e o portento em siMesmo assim com palavras respondendo disse-lhelsquoNoacutes aqueus vindos de Troia vagamos longe do cursodevido a todos os ventos pelo grande abismo de mare ansiando ir para casa por outra rota outros percursosviemos assim talvez Zeus quis armar um planoTropa de Agamecircmnon filho de Atreu proclamamos serdesse cuja fama eacute agora a maior sob o paacuteramodevastou grande cidade e tropas dilaceroumuitas Noacutes poreacutem chegando a esses teus joelhosnos dirigimos esperando nos hospedares bem ou mesmodares um regalo o que eacute costume entre hoacutespedesMas respeita os deuses poderoso somos teus suplicantesZeus eacute o vingador de suplicantes e hoacutespedeso dos-hoacutespedes que respeitaacuteveis hoacutespedes acompanharsquoAssim falei e logo respondeu com impiedoso acircnimolsquoEacutes tolo estrangeiro ou vieste de longetu que me pedes aos deuses temer ou evitarOs ciclopes natildeo se preocupam com Zeus porta-eacutegidenem com deuses ditosos pois somos bem mais poderososnem eu para evitar a braveza de Zeus a ti poupariaou a teus companheiros se o acircnimo natildeo me pedisseMas dize-me onde aportaste a nau engenhosaalgures no extremo ou perto preciso saberrsquoAssim falou testando-me e eu bem arguto percebirespondendo disse-lhe com palavras ardilosaslsquoMinha nau sucumbiu a Posecircidon treme-solocontra rochedo lanccedilou-a nos limites de vossa terralevando-a rumo ao cabo vento trouxe-a do marMas eu com esses aiacute escapei do abrupto fimrsquoAssim falei e natildeo me respondeu com impiedoso acircnimomas de suacutebito sobre os companheiros estendeu as matildeose tendo dois agarrado como cachorrinhos ao chatildeoarrojou-os miolos escorriam no chatildeo e molhavam o soloApoacutes cortaacute-los em pedaccedilos aprontou o jantarcomia-os como leatildeo da montanha e nada deixouviacutesceras carnes e ossos cheios de tutanoNoacutes aos prantos erguemos os braccedilos a Zeusvendo o feito terriacutevel e a impotecircncia deteve o acircnimoMas quando o ciclope encheu o grande estocircmagoapoacutes comer carne humana e depois beber leite purodeitou-se no antro esticando-se entre o rebanhoConsiderei no eneacutergico acircnimo dele chegarmais perto puxar a espada afiada da coxae golpear no peito onde o diafragma segura o fiacutegadoapoacutes alcanccedilar com a matildeo mas outro acircnimo impediuLaacute mesmo tambeacutem noacutes nos finariacuteamos em abrupto fimda alta entrada natildeo teriacuteamos conseguido no braccedilo

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afastar a ponderosa pedra que laacute depositaraAssim gemendo aguardamos a divina AuroraQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosele acendeu o fogo e ordenhou esplecircndido rebanhotudo com adequaccedilatildeo e sob cada fecircmea deixou o filhoteMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zelode novo ele agarrou dois de noacutes e o almoccedilo preparou8

O interessante eacute aleacutem de destacar esses elementos poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais da Greacutecia Antiga fazer o aluno pensar instigando-o a reconhecer os elementos de diferenciaccedilatildeo entre o grego e o Outro dentro das duas narrativas (a adaptaccedilatildeo e o canto IX) Aleacutem disso podemos incitaacute-lo a uma discussatildeo atual o que diferencia o brasileiro do estrangeiro hoje O que caracteriza a nossa cultura Qual tem sido a nossa postura em relaccedilatildeo aos estrangeiros dentro do nosso paiacutes Nossas fronteiras eacutetnicas satildeo as mesmas dos gregos Por quecirc

52 A Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor)

O livro de Gustavo Piqueira talvez seja uma das recontagens da Odisseia menos convencionais com ilustraccedilotildees dele mesmo traz a histoacuteria da Odisseia contada pelos olhos de Joatildeo Viacutetor aluno de recuperaccedilatildeo do 6ordm ano do Ensino Fundamental II (e pela construccedilatildeo do personagem ao longo da narrativa de famiacutelia conservadora e de classe meacutedia) que precisa ler esse eacutepico para entregar um trabalho final e conseguir finalmente passar de ano O problema eacute que em vez de retirar na biblioteca da escola uma adaptaccedilatildeo (como fez seu amigo Fumaccedila) ele vai com o claacutessico original para casa

Ao longo de todo o livro Joatildeo Viacutetor se depara com situaccedilotildees completamente estranhas para ele que rendem comentaacuterios jocosos de sua parte Em caixa normal temos a recontagem feita pelo aluno mas em negrito e itaacutelico temos os comentaacuterios dele aos episoacutedios que ele narra o que nos possibilita conhecer a personalidade dele e o mundo em que ele vive Logo na capa do trabalho (PIQUEIRA 2013 p 7) o aluno se vecirc obrigado a colocar ldquoResumo e interpretaccedilatildeo do livro Odisseia escrito por Homero da Silvardquo visto que ldquona ediccedilatildeo que peguei na biblioteca natildeo havia sobrenome do autor apenas o primeiro nome Homero Como todo mundo tem sobrenome coloquei um bem comumrdquo

Logo na narrativa do Canto I vemos uma situaccedilatildeo que inspira reflexotildees acerca do etnocentrismo e da alteridade Joatildeo Viacutetor natildeo reconhece o politeiacutesmo

8 Traduccedilatildeo de Christian Werner

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grego questionando Homero Afinal natildeo existe ldquoUm deus chamado Poseidonrdquo porque ldquoDeus soacute tem um e ele se chama Deus mesmo E seu filho natildeo eacute nenhum lsquociclope Polifemorsquo mas Jesus Que ateacute o Fumaccedila sabe foi crucificado natildeo cegadordquo (PIQUEIRA 2013 p 16) Adiante (PIQUEIRA 2013 p 17) ele reafirma que ldquopelo visto neste livro tem um punhado de deuses entatildeo natildeo vou mais discuti ok Se Homero da Silva natildeo sabe que soacute existe um Deus problema dele Eacute tarde da noite tenho o livro inteiro para ler e preciso passar de anordquo

Pode parecer a priori que eacute apenas uma crianccedila que desconhece o politeiacutesmo e se vecirc estranhando a religiatildeo do Outro no entanto a postura de Joatildeo Viacutetor eacute combativa reafirmando suas crenccedilas em detrimento da tentativa de contemplaccedilatildeo e compreensatildeo do Outro A ideia de que existe uma religiatildeo uacutenica e verdadeira denota como o etnocentrismo estaacute entranhado na visatildeo de Joatildeo Viacutetor (mesmo que ele natildeo tenha consciecircncia de que estaacute sendo etnocecircntrico) Eacute esse tipo de visatildeo preconceituosa (no sentido mesmo do termo de preacute-julgar) que deve ser questionada em sala de aula e levada agrave reflexatildeo

No entanto ao continuar a descriccedilatildeo do Canto I ele se depara com Athenaacute se transformando em Mentes um homem e fica confuso ldquoProfessora estou na duacutevida se chamo Atena de lsquoorsquo ou lsquoarsquo agora que ela mudou de sexo O que devo fazer Hoje em dia eacute um assunto tatildeo delicado natildeo quero soar preconceituosordquo (PIQUEIRA 2013 p 17) As questotildees de gecircnero satildeo mais palpaacuteveis para Joatildeo Viacutetor do que as questotildees de etnicidade uma vez que ele tem a sensibilidade de querer saber como ele deveria identificar Athenaacute que na sua visatildeo seria um transgecircnero O adaptador aqui mostra que os debates acerca desse tipo de intoleracircncia satildeo mais frequentes na sociedade

O Canto IX eacute um dos mais extensos (satildeo 6 paacuteginas escritas e mais 3 de ilustraccedilotildees) Eacute interessante perceber como a construccedilatildeo da cena do Ciacuteclope se daacute de modo diverso em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees precedentes e o proacuteprio texto homeacuterico No livro Joatildeo Viacutetor vecirc Odisseu como um malfeitor

Ulisses revela a Alciacutenoo sua identidade e comeccedila a contar tudo que lhe aconteceu desde que deixara Troia Primeiro deu uma passada em Iacutesmaro onde saqueou cidades e chacinou homens aleacutem de tomar mulheres e tesouros que dividiu com os outros para que ningueacutem reclamasse Ou seja bandido Natildeo haacute outra palavra para definir Ulisses a natildeo ser essa professora Denise Ladratildeo assassino e sequestrador Bandido E o pior conta seus crimes tranquilatildeo ldquoChacinei homens levei suas mulheresrdquo Como pode professora Eacute muita impunidade natildeo Muita Meus pais vivem comentando sobre isso aqui em casa Dizem que

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os ricos cometem as maiores barbaridades e sempre se safam Que moramos no paiacutes do colarinho branco Pelo visto Ulisses tambeacutem tinha costas quentes Do contraacuterio natildeo arriscaria tagarelar por aiacute suas falcatruas (PIQUEIRA 2013 p 62)

O interessante perceber eacute que aqui diferentemente da Odisseia original e da adaptaccedilatildeo que trabalhamos anteriormente natildeo haacute uma tentativa de reforccedilar as fronteiras eacutetnicas gregas Joatildeo Viacutetor critica o ldquoGreek way of liferdquo pondo em xeque tanto a ideia de civilizaccedilatildeo dentro do poema quanto a imagem do heroacutei na Greacutecia Antiga Como assim ser um heroacutei implica em praticar atitudes que hoje em dia seriam condenaacuteveis Daiacute a importacircncia de retornar a esse original a fim de que os alunos compreendam o porquecirc dessa mudanccedila

Os ciclopes satildeo descritos como ldquohorriacuteveis gigantes de um olho soacuterdquo (PIQUEIRA 2013 p 63) o Ciclope como um ldquomedonho giganterdquo (PIQUEIRA 2013 p 67) reforccedilando a ideia da monstruosidade deles Contudo Joatildeo Viacutetor ao comentar a atitude do Ciclope de devorar amigos de Odisseu escreve ldquoQuem mandou entrar de bico na casa dos outros Daacute nissordquo (PIQUEIRA 2013 p 67) As atitudes de Odisseu e de seus companheiros satildeo bastantes questionadas mostrando o estranhamento do menino em relaccedilatildeo agrave cultura helecircnica

Nessa adaptaccedilatildeo podemos chamar a atenccedilatildeo para a proacutepria construccedilatildeo de civilidade dentro de ambas sociedades a helecircnica arcaica (em Homero) e a brasileira do seacuteculo XXI (na adaptaccedilatildeo a realidade de Joatildeo Viacutetor) mostrando como mudaram as nossas noccedilotildees de civilidade barbaridade e fronteiras eacutetnicas ao longo do tempo histoacuterico Em vez de uma repulsa ao Ciclope aqui vemos uma empatia pautada pelo desconhecimento de Joatildeo Viacutetor das fronteiras eacutetnicas helecircnicas e do ideal de civilizaccedilatildeo construiacutedo por eles com a legitimaccedilatildeo dessas fronteiras Aleacutem disso ela eacute interessante para discutir a nossa proacutepria relaccedilatildeo de alteridade em relaccedilatildeo aos gregos a fim de desconstruir o etnocentrismo presente em nossas concepccedilotildees contemporacircneas

60 Consideraccedilotildees finais

Em virtude do apresentado pudemos concluir que eacute imprescindiacutevel abordar conceitos no Ensino da Histoacuteria a fim de que o aluno possa melhor compreender e modificar de maneira mais efetiva o seu cotidiano Por isso defendemos a abordagem do conceito de etnicidade na sala de aula mas sem antes reforccedilar que o professor deve ele mesmo compreender bem o conceito antes de trabalhar com ele

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Do mesmo modo o professor deve conhecer bem os textos claacutessicos com os quais ele quer trabalhar mesmo que ele vaacute utilizar adaptaccedilotildees Aleacutem disso vemos como eacute importante a leitura como Ana Maria Machado (2009 p 13) colocou ler eacute uma forma de resistecircncia sendo a utilizaccedilatildeo de textos imprescindiacutevel para a formaccedilatildeo natildeo somente de um leitor literaacuterio mas de uma pessoa criacutetica e consciente

[] a forccedila educativa da literatura reside precisamente no que facilita formas e materiais para essa ampliaccedilatildeo de possibilidades permite estabelecer uma visatildeo distinta sobre o mundo pocircr-se no lugar do outro e ser capaz de adotar uma visatildeo contraacuteria distanciar-se das palavras usuais ou da realidade em que algueacutem estaacute imerso e vecirc-lo como se o contemplasse pela primeira vez (COLOMER 2017 p 21)

A boa adaptaccedilatildeo nesse sentido ajuda a perpetuar na memoacuteria o claacutessico ldquoComo entatildeo se daacute a real permanecircncia da obra literaacuteria Ora pela conquista de novos leitores A adaptaccedilatildeo constitui uma estrateacutegia para apresentar a uma nova geraccedilatildeo de leitores um discurso literaacuterio legitimado pela instituiccedilatildeo escolarrdquo (FEIJOacute 2010 p 43) Assim como Odisseu o aluno ao ler viaja por mundos Outros que o faz refletir acerca de sua proacutepria realidade ao conhecer outras realidades

Utilizar a Histoacuteria Antiga para abordar um conceito tatildeo caro a noacutes cotidianamente que vemos nos noticiaacuterios as empreitadas dos refugiados para fugirem das guerras e serem recebidos de maneira deploraacutevel em diversos paiacuteses as tensotildees crescentes entre diversas etnias ao redor do mundo e a nossa proacutepria falta de sensibilidade agraves vezes em compreender o Outro em sua cultura e etnicidade mostra como cada vez mais eacute necessaacuterio retornar ao claacutessico para pensarmos o contemporacircneo A Histoacuteria Antiga ainda natildeo estaacute ultrapassada

Abstract We propose to think how to enter the ethnicity and ethnocentrism theme in classrooms by using adaptations of the Antiquity classics To accomplish this aim it is necessary to establish some criteria to use this kind of literature which still generates debates on its profitability as well as to define ethnicity We will start with the following concepts ethnicity (as Fredrik Barth pointed it) and identity-otherness (as Marc Augeacute does) in order to propose some activities with selected adaptationsKeywords History Teaching literary adaptations ethnicity

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Referecircncias

Documentaccedilatildeo textualHOMERO Odisseia Trad Christian Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014

Bibliografia

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tomo 82 fasc 389-390 p 1-13 janjun 1969NADAI E O ensino de Histoacuteria e a ldquopedagogia do cidadatildeordquo In PINSKY J (Org)

O Ensino de Histoacuteria e a criaccedilatildeo do fato Satildeo Paulo Contexto 2017 p 27-35PIQUEIRA G Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor) Satildeo Paulo Editora

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Grupos eacutetnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth Satildeo Paulo Ed UNESP 1998

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COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeO AS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacute-TICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA

Alexandre Santos de Moraes1

Resumo O objetivo desse artigo eacute observar as tensotildees entre Aquiles e Agamecircmnon atraveacutes do binocircmio conceitual competiccedilatildeocooperaccedilatildeo Busca-se entender natildeo apenas as variaacuteveis dessa oposiccedilatildeo mas tambeacutem como as ideias de competiccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo que se instauram ao longo da querela sugere um modo de ser eacutetico-poliacutetico que distingue os heroacuteisPalavras-chave Competiccedilatildeo Cooperaccedilatildeo Aquiles Agamecircmnon Iliacuteada

Do ponto de vista conceitual cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo satildeo duas ideias tatildeo abrangentes que escapam ao monopoacutelio das aacutereas do saber institucionalizadas Natildeo haacute nenhuma poliacutecia acadecircmica que resguarde para si e para seus escolhidos a possibilidade de uso desse binocircmio que parece anunciar natildeo apenas um modelo de entendimento de dinacircmicas sociais mas verdadeiramente um modo de ser eacutetico-poliacutetico no mundo

Veja por exemplo que do ponto de vista comercial estimula-se mecanismos de competiccedilatildeo entre os funcionaacuterios para impulsionar as vendas ao mesmo tempo em que se defende disposiccedilotildees cooperativas que estimulem a coesatildeo do grupo para que haja o que vender (MACEDO 1961 p 105) Tal vieacutes no marco da Nova Sociologia Econocircmica identifica a dificuldade de correlacionar cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo entre empresas e o papel do Estado como seu guardiatildeo e criador2 O tema eacute complexo e natildeo se dispotildee na visatildeo de muitos analistas agrave polarizaccedilatildeo que defende os males e benefiacutecios de uma e outra como dado essencial bem como o valor estrutural que cada uma das

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) E-mail asmoraesgmailcom

2 Veja por exemplo o debate presente em FLIGSTEIN Neil Markets as politics political-cultural approach to market institutions In American Sociological Review v 61 1996

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disposiccedilotildees parece ensejar em um ambiente especiacutefico Marx por exemplo identificava que a cooperaccedilatildeo era instrumento fundamental para organizar o trabalho no mundo capitalista (MARX 1980 p 347) diferentemente do que pensam muitos defensores do (neo)liberalismo para os quais a concorrecircncia (identificada com a competiccedilatildeo) eacute beneacutefica a todos em um ambiente de mercado autorregulado regido por entes privados que supostamente conspiram ao lado de seus lucros pessoais para uma situaccedilatildeo de bem-estar social3

Para aleacutem do pensamento econocircmico as anaacutelises acerca de competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo frequentemente debatidas no marco dos princiacutepios organizativos de grupos e agrupamentos estimulando pesquisas em diversas aacutereas das Ciecircncias Humanas e Sociais Some-se a elas as pesquisas sobre Evoluccedilatildeo que avaliam as habilidades de indiviacuteduos de diversas espeacutecies em especial dos hominiacutedeos e de primatas natildeo-humanos4 Em muitos casos haacute uma evidente ecircnfase no princiacutepio cooperativo (ou altruiacutesta ou de solidariedade muacutetua) que atuaria no fundamento de nossa proacutepria existecircncia

Obviamente diante da variedade vertiginosa de possibilidades de entendimento desse binocircmio eacute preciso fazer algumas escolhas Por princiacutepio ao longo desse artigo consideraremos que 1) Competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo disposiccedilotildees atitudinais que envolvem sujeitos ou grupos em funccedilatildeo de objetivos especiacuteficos 2) Atitudes cooperativas e competitivas natildeo representam aspectos gerais do modus vivendi especiacutefico de uma ou outra formaccedilatildeo social ou seja natildeo haacute comunidades que sejam exclusivamente competitivas eou cooperativas 3) disposiccedilotildees cooperativas eou competitivas satildeo por princiacutepio situacionais ainda que haja mecanismos sociais que ensejem uma ou outra postura em determinadas situaccedilotildees 4) Ainda que haja discordacircncias identificamos a tendecircncia de associar a uma disposiccedilatildeo cooperativa a prevalecircncia do bem comum sobre o individual e na competitiva a valorizaccedilatildeo do individual em detrimento do bem comum e por fim 5) em determinado evento ou acontecimento grupos e sujeitos natildeo apresentam necessariamente um padratildeo de disposiccedilotildees coeso podendo variar em funccedilatildeo das circunstacircncias e objetivos almejados

O caso de um conflito armado envolvendo diferentes grupos eacute bastante elucidativo Em uma guerra por princiacutepio haacute pelo menos duas partes

3 Eacute possiacutevel ateacute mesmo identificar a defesa da competiccedilatildeo como um discurso de competecircncia fundado em caracteriacutesticas psicoloacutegicas O debate eacute longo e repleto de variaacuteveis (BENDASSOLLI 2001 p 65-76 NEVES 2009)

4 Nos uacuteltimos anos tem se delineado um especial interesse pela loacutegica cooperativa explorada em diversos trabalhos A tiacutetulo de referecircncia sobre esse debate vale consultar AXELROD 1997 HAMMERSTEIN 2003 MARSHALL 2010 PATTON 2009 WILLER 2009

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que competem entre si para alcanccedilar um objetivo Na ausecircncia de acordos diplomaacuteticos o sucesso de uma parte depende necessariamente do fracasso da outra parte Tomando isoladamente cada uma das partes haacute tambeacutem o pressuposto de que eacute necessaacuterio existir uma razoaacutevel coesatildeo entre seus membros para que o objetivo final qual seja a superaccedilatildeo do adversaacuterio seja alcanccedilado de tal modo que em um ambiente de batalha os integrantes de um mesmo exeacutercito precisam cooperar entre si Essa loacutegica geral contudo natildeo resiste necessariamente a situaccedilotildees que provocam disputas internas produzindo ruiacutedos entre os agentes quando haacute disposiccedilotildees contraacuterias que fazem exceder nas relaccedilotildees imediatas o fim uacuteltimo por que conspiram em suas accedilotildees conjuntas

Com base nesse exemplo quando fazemos a remissatildeo agrave experiecircncia dos povos antigos a lembranccedila imediata confunde-se tambeacutem com a narrativa mais recuada de que temos notiacutecia e que se desvela diante de noacutes como um excelente campo de experimentaccedilatildeo Na Iliacuteada a dissenccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon natildeo eacute apenas o substrato discursivo que assegura a coerecircncia e a loacutegica interna do poema mas tambeacutem a proacutepria manifestaccedilatildeo do nuacutecleo narrativo do eacutepico que conduz com os auspiacutecios dos deuses os eventos ulteriores na Guerra de Troacuteia Mais do que indicar os efeitos da dissensatildeo suas consequecircncias e caracteriacutesticas eacute desejaacutevel analisar o binocircmio competiccedilatildeocooperaccedilatildeo no marco de uma separaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica que o antecede e que parece situar os heroacuteis em duas formas distintas de ser no mundo Tais formas representam um topos que enseja por forccedila da incompletude dos proacuteprios sujeitos uma espeacutecie de ldquogatilhordquo o possiacutevel estopim para o conflito interno sempre que a poliacutetica entra em estado de falecircncia

Somos levados a conhecer logo nos versos prologais o anuacutencio da coacutelera (μῆνις) de Aquiles A causa como bem se sabe tem a ver com um ruiacutedo envolvendo os privileacutegios em torno da divisatildeo do butim de guerra Apoacutes o saque a Tebas foram recolhidos os despojos e os aqueus dividiram-nos entre si A Agamecircmnon coube Criseida filha de Crises sacerdote de Apolo ao passo que a Aquiles coube Briseida Daacute-se que o pai de Criseida o velho Crises suplicou aos aqueus que devolvessem sua filha em troca do pagamento de um resgate mas teve seu pedido negado Mais do que isso Agamecircmnon o mandou embora com aacutesperas palavras O anciatildeo recorreu agrave Apolo e pediu que tal ofensa seja retaliada ldquoQue paguem com tuas setas os Dacircnaos as minhas laacutegrimasrdquo (HOMERO Iliacuteada I v 42)

O pedido foi acolhido pelo deus Por nove dias as setas faziam as piras arderem continuamente na cremaccedilatildeo dos mortos Tambeacutem uma peste atingiu o acampamento aqueu Tatildeo grave era a situaccedilatildeo que por influecircncia de Hera

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uma assembleia foi convocada para discutirem e buscarem remeacutedio para tais males Aquiles tomou a palavra e sugeriu para que natildeo voltassem frustrados a casa que o adivinho Calcas fosse consultado para que todos soubessem atraveacutes de sua videcircncia como solucionar a querela Calcas tergiversou e disse ter receio de encolerizar ldquoaquele que rege poderoso os Argivos e a quem obedecem os Aqueusrdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 78-79) Aquiles assegurou sua fala e disse que iria protegecirc-lo Calcas entatildeo diz que Agamecircmnon deveria abrir matildeo de Criseida Tem iniacutecio a querela

Eacute preciso aqui esclarecer brevemente os sentidos da reaccedilatildeo de Agamecircmnon Uma vez conquistada a vitoacuteria e tendo sido pilhada uma cidade derrotada os produtos do saque satildeo colocados em comum para serem divididos Eacute o momento oportuno de observar os privileacutegios (γέρεα) que cabem aos sujeitos mais destacados assegurando a ldquoparte de honrardquo (τιμή) que toca cada um e seu precircmio (γέρας) correspondente5 O precircmio de Agamecircmnon ndash no caso Criseida ndash representava natildeo somente um bem de valor material mas tambeacutem e principalmente um siacutembolo de prestiacutegio a marca de deferecircncia que permite que o grupo o identifique como um sujeito de destaque Sua outorga visa reforccedilar publicamente a distinccedilatildeo social do outorgado O geacuteras6 portanto ratifica a posiccedilatildeo de soberania e atua para demarcar do ponto de vista das estruturas altamente hierarquizadas de poder a coesatildeo interna desse proacuteprio grupo7 A preocupante condiccedilatildeo de ἀγέραστος ldquodesprovido de precircmiordquo eacute vista como uma afronta grave agrave economia de prestiacutegio e agrave honra do heroacutei

A honra como aposta Finley (1958 p 143) em seu bem conhecido trabalho eacute um valor sobretudo competitivo ldquoEn la naturaleza del honor estaacute

5 Como diz Neyde Theml (1995 p 150) ldquoo exerciacutecio do poder real eacute em Homero resultado de acumulaccedilotildees de geacuterea privileacutegios que distinguem o rei com seus direitos e deveres para com a comunidade global Os γέρεα reais na Iliacuteada satildeo de 4 tipos a parte de honra (timeacute) sobre o botim praacuteticas especiais no banquete um teacutemenos presentes (dons e contra-dons) e direitos especiaisrdquo

6 Os sentidos de γέρας eacute importante frisar vatildeo muito aleacutem da loacutegica associada a um bem material Tambeacutem pode significar num sentido imaterial ldquoprerrogativardquo ou ldquoprivileacutegio honoriacuteficordquo A tiacutetulo de exemplo Neacutestor diz que por ser idoso natildeo teria meios de participar ativamente do combate como participava outrora mas que incitaria os guerreiros e com suas decisotildees e palavras afinal ldquoeacute esse o privileacutegio dos anciatildeosrdquo - τὸ γὰρ γέρας ἐστὶ γερόντων (HOMERO Iliacuteada IV v 323)

7 E natildeo custa recordar as epopeias apresentam ldquouma sociedade notadamente dividida em dois estratos de um lado os basileis os nobres os ricos proprietaacuterios de um domiacutenio de terra do oicirckos os chefes de guerra que ocupam o topo da hierarquia social e deteacutem os privileacutegios e as honras e do outro lado a massa de homens comuns O proacuteprio gecircnero da epopeia por ser destinado por princiacutepio a um puacuteblico aristocraacutetico obviamente faz com que o interesse dos poetas se associem essencialmente aos fatos e gestos dos basileisrdquo (SCHEID-TISSINIER 2002 p 1)

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que tiene que ser exclusivo o por lo menos jeraacuterquico Si todos adquieren igual honor no hay honor para ninguno Asiacute el mundo de Odiseo era necessariamente de fiera competecircncia porque cada heacuteroe luchava para sobrepasar a los otrosrdquo Ainda que Finley esteja correto essa natureza competitiva se aplica a um tipo de disputa que presume um ambiente belicoso em que dois adversaacuterios se enfrentem sendo outrossim incapaz de explicar as tensotildees em torno da timeacute em que supostos aliados como Aquiles e Agamecircmnon se percebem envolvidos como bem observou Margalit Finkelberg (1998 p 16) A visatildeo de Finley presume a competiccedilatildeo exclusivamente envolvendo adversaacuterios e natildeo sujeitos do mesmo grupo Como adiantamos as disposiccedilotildees competitivas e cooperativas satildeo situacionais o que exige uma observaccedilatildeo atenta de sua manifestaccedilatildeo

Em uma situaccedilatildeo corriqueira uma vez distribuiacutedos os butins de guerra a posse dos gerea seria respeitada e ningueacutem por princiacutepio deveria devolver o lote de honra que recebeu A crise que a fuacuteria apoliacutenea inaugura exige que haja uma revisatildeo da distribuiccedilatildeo que tendencialmente seria irreversiacutevel de tal modo que aleacutem das setas que matam e da peste que adoece Apolo tambeacutem instaura a discoacuterdia que enfraquece Agamecircmnon que eacute absolutamente consciente de seus privileacutegios se vecirc obrigado a revecirc-los para cooperar com a mesma coletividade que os assegura O Atrida poreacutem tenta fazecirc-lo conciliando o inconciliaacutevel Em resposta a Calcas apoacutes acusaacute-lo de soacute profetizar desgraccedilas diz

ldquoMas apesar disso restituiacute-la-ei se for isso a coisa melhor Quero que o povo seja salvo de preferecircncia a que pereccedila Mas preparai pra mim outro precircmio para que natildeo seja soacute eu entre os Argivos que fico sem precircmio pois tal seria indecoroso Pois deves todos voacutes como o meu precircmio vai para outra parterdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 116-120)

Em certo sentido a devoluccedilatildeo de Criseida representou simultaneamente uma disposiccedilatildeo cooperativa e competitiva cooperativa em primeiro lugar porque Agamecircmnon concordou com a devoluccedilatildeo de seu geacuteras competitiva em segundo porque natildeo admitiu ser o uacutenico a ficar sem precircmio exigindo que o butim fosse novamente redistribuiacutedo para que inevitavelmente outro guerreiro fosse ageiacuteratos e natildeo ele preservando assim seus privileacutegios e soberania Aquiles fiando-se na tradiccedilatildeo discordou da proposta de Agamecircmnon e argumentou ldquoNada sabemos de riqueza que jaza num fundo comum mas os despojos das cidades saqueadas foram distribuiacutedos e seria

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indecoroso tentar reaver tais coisas de junto do povordquo (HOMERO Iliacuteada I vv 124-126) Mais do que isso em caraacuteter compensatoacuterio sugeriu que os aqueus o recompensariam em trecircs ou quatro vezes quando Troacuteia fosse saqueada

Impossiacutevel natildeo identificar na fala do filho de Peleu uma tentativa de negociaccedilatildeo face ao conflito Agamecircmnon contudo reconhece no discurso de Aquiles uma tentativa de engano e faz uma assertiva ainda mais dura se os aqueus natildeo substituiacuterem o precircmio perdido iria retiraacute-lo agrave forccedila de quem quer que seja (HOMERO Iliacuteada I vv 138-139) A tensatildeo aumenta e a loacutegica competitiva envolvendo o liacuteder das multidotildees e o melhor dos aqueus atinge seu cliacutemax Como eacute bem conhecido Agamecircmnon decide que seria Briseida o geacuteras de Aquiles a recompensa pela devoluccedilatildeo de Criseida Nesse momento decreta-se a falecircncia da poliacutetica e nenhuma negociaccedilatildeo se torna possiacutevel pois o filho de Peleu eacute envolvido pessoalmente na soluccedilatildeo de uma questatildeo coletiva e sua honra eacute visceralmente maculada Segue-se uma seacuterie de acusaccedilotildees ofensas e mesmo em uma tentativa de assassinato natildeo fosse contido por Atena Aquiles teria sacado o glaacutedio e decepado a cabeccedila do basileu (HOMERO Iliacuteada I vv 187-195) O resultado final eacute o afastamento voluntaacuterio de Aquiles que se isola no acampamento dos Mirmidotildees e desaparece natildeo apenas do combate mas da proacutepria narrativa jaacute que suas accedilotildees soacute voltam a ser descritas no Canto IX O reaparecimento aliaacutes se daacute de uma maneira bastante insoacutelita Aacutejax Odisseu e Fecircnix o encontram deleitando-se com sua lira tendo apenas Paacutetroclo como audiecircncia em uma atitude fugidia e descompromissada com o calor do conflito que entatildeo aumentava devido agrave sua ausecircncia (HOMERO Iliacuteada IX vv 185-191)

Esse reencontro soacute ocorre porque Agamecircmnon reconhece que sem Aquiles o asseacutedio dos troianos aumentaria e chegaria o momento em que as naus dos aqueus seriam incendiadas sacramentando a derrota Em outras palavras seria derrotado da competiccedilatildeo com os troianos em funccedilatildeo da competiccedilatildeo particular que estabeleceu com o Peacutelida Quem o convence a retroceder eacute Neacutestor uma voz sempre atuante e eficaz na negociaccedilatildeo de conflitos ldquotiraste a jovem Briseida da tenda do furibundo Aquiles coisa que natildeo aprovamos Na verdade eu proacuteprio tudo fiz para te dissuadir mas tu cedeste ao teu espiacuterito altivo e sobre um homem excelente honrado pelos deuses lanccedilaste desonrardquo (HOMERO Iliacuteada IX vv 106-111) Agamecircmnon concorda com avaliaccedilatildeo e atribui a dissensatildeo ao desvario (ἄτη) de que foi viacutetima Mais do que isso concorda em abandonar a disposiccedilatildeo competitiva

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e buscar a reconciliaccedilatildeo com a oferta de uma imensa quantidade de presentes (δῶρον) incluindo a proacutepria Briseida acompanhada da promessa de que natildeo foi sexualmente tocada (HOMERO Iliacuteada IX vv 133-134) O Atrida percebe que se natildeo fizesse do adversaacuterio seu aliado o inimigo comum venceria o preacutelio e todos perderiam Tenta desse modo resgatar a poliacutetica falida por seu proacuteprio desatino

Desta vez a inflexibilidade fica a cargo de Aquiles e o custo da recusa agrave poliacutetica seria plenamente sentido Aacutejax Odisseu e Fecircnix satildeo enviados para tentar convencecirc-lo mas seus esforccedilos foram em vatildeo Aquiles resistiu Posteriormente tambeacutem Paacutetroclo fez uma criacutetica severa tatildeo dura quanto inuacutetil Apoacutes prestar assistecircncia meacutedica aos feridos observou que Diomedes Odisseu Agamecircmnon e Euriacutepilo os melhores combatentes estavam impedidos de lutar e nesse sentido ponderou

ldquoQue sobre mim nunca recaia esta ira que tu alimentaspois terriacutevel eacute teu pensar Que homem vindouro a tirecorreraacute se (vergonhoso) natildeo evitas a ruiacutena dos AqueusImpiedoso Natildeo aceito que Peleu condutor de cavalos seja teu painem que Teacutetis seja tua matildee Foste parido pelo glauco mar epelas rochas escapardas Por isso tens a mente peacutetrea durardquo (HOMERO Iliacuteada XVI vv 30-35)

Aquiles novamente manteacutem-se irredutiacutevel Volta a mencionar as tristezas que se abateram com a tomada de Briseida e recorda que soacute lutaria caso o combate se aproximasse de suas proacuteprias naus (HOMERO Iliacuteada XVI vv 49-63) Eacute bem verdade que Aquiles se sensibilizou quando as primeiras naus argivas foram incendiadas Tambeacutem concordou que Paacutetroclo fosse combater (HOMERO Iliacuteada XVI vv 126-129) e chegou a organizar as falanges a incitar os guerreiros e a fazer uma libaccedilatildeo a Zeus suplicando pelo sucesso da empreitada Aquiles por fim resolve ver (εἶδον) as lutas entre aqueus e troianos (HOMERO Iliacuteada XVI vv 255-256) abdicando da indiferenccedila Apesar disso manteacutem seu afastamento voluntaacuterio para assegurar a vivacidade da competiccedilatildeo com o Atrida

Os resultados destes combates foram decisivos para que Aquiles reavaliasse os sentidos de sua coacutelera pois cumpriu-se a prediccedilatildeo de Zeus Paacutetroclo morto eacute uma puniccedilatildeo ao seu afastamento bem como o evento catalizador que obrigaacute-lo-aacute a rever seu ostracismo A reaccedilatildeo agrave morte do amigo foi absolutamente intempestiva e do sofrimento (πένθος) nasce a constataccedilatildeo de sua proacutepria responsabilidade Teacutetis que ouviu o pranto do filho foi ter com

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ele para consolaacute-lo Aquiles em resposta disse ldquoQue imediatamente eu morra pois natildeo socorri o companheiro quando morto ele foirdquo (HOMERO Iliacuteada XVIII vv 98-99) Mas ao longo da mesma resposta Aquiles natildeo limita sua responsabilidade agrave morte de Paacutetroclo e a despeito de todas as recompensas todos os pedidos e todas as suacuteplicas eacute apenas por meio da dor que lanccedila um olhar retrospectivo em direccedilatildeo agrave proacutepria conduta

Que a discoacuterdia se exile dos homens e dos deusese a raiva amarga que oprime ateacute o mais inventivo de todos raiva muito doce dulciacutessima mais que o mel a escorrere que se expande como fumaccedila no peito dos homensassim a ira me causou Agamecircmnon soberano entre os homensMas tudo isso torna-se passado apesar de todo o sofrimento no peito refreando o coraccedilatildeo pois as urgecircncias sobrepujam(HOMERO Iliacuteada XVIII vv 107-113)

Trata-se de uma nova etapa a ira que nutria em relaccedilatildeo a Agamecircmnon eacute convertida na fuacuteria doravante dirigida a Heacutector reestabelecendo a competiccedilatildeo com o inimigo externo e a cooperaccedilatildeo com os aliados no conflito Quando a proacutepria Teacutetis recomenda ao filho que renuncie agrave coacutelera8 contra Agamecircmnon e convoque a assembleia para se reapresentar ao exeacutercito aqueu (HOMERO Iliacuteada XIX vv 34-36) enseja o derradeiro movimento de reconciliaccedilatildeo com a coletividade E Aquiles o faz atendendo os auspiacutecios maternos Com todos os seus pares reunidos o Pelida assume o centro da assembleia e proclama

Atrida teraacute sido isto o melhor para ambospara ti e para mim quando com os coraccedilotildees lutuososdevorados no imo nos enfrentamos por conta da donzelaPudera que em minhas naus Aacutertemis a tivesse matado com sua seta no dia em que a tomei como espoacutelio do saque a LirnessoSoacute assim natildeo teriam incontaacuteveis aqueus crivado os dentes no solopelas matildeos inimigas enquanto eu perseverava em minha ira(HOMERO Iliacuteada XIX vv 56-62)

O ritmo da dissensatildeo envolve nesse sentido um jogo intenso de competiccedilatildeo em torno da loacutegica da honra e seus privileacutegios de negociaccedilotildees frustradas de conflitos insoluacuteveis e soluccedilotildees que ultrapassam a poliacutetica Por forccedila talvez de sua juventude e da intemperanccedila que eacute tiacutepica dos jovens em Homero Aquiles soacute foi interpelado pela forccedila compulsoacuteria da pedagogia do

8 Afinal ldquoa ordem social e a vida comunitaacuteria civilizada ndash consequentemente a Cultura Grega ndash foi imaginada pelo menos em parte sobre o deslocamento da erisrdquo (WILSON 1938 p 132)

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sofrimento do ldquoaprender pelo sofrerrdquo (πάθει μάθος)9 que parece colocar no marco das relaccedilotildees sociais natildeo a competiccedilatildeo mas a cooperaccedilatildeo como valor fundante que preside a relaccedilatildeo do sujeito com seus pares e que envolve a assunccedilatildeo de responsabilidades

Esse debate nos remete ao claacutessico Merity and Responsability (1960) tese de doutorado de Arthur W Adkins O autor se dedicou a investigar no acircmbito da eacutetica grega o desenvolvimento do conceito de responsabilidade moral Em linhas gerais Adkins considerou que o sistema de valores homeacuterico era caracterizado pela dimensatildeo competitiva em torno da areteacute prevalecendo desta forma sobre um padratildeo cooperativo (ADKINS 1960 p 46) Sua abordagem apesar da importacircncia foi alvo de inuacutemeras criacuteticas com destaque para aquelas expressas pelas publicaccedilotildees de Long (1970) Lloyd-Jones (1971) Rowe (1983) e Cairns (1993) Os argumentos dependiam da percepccedilatildeo de que existia de um lado o espiacuterito agoniacutestico competitivo centrado em uma tocircnica individualista e do outro lado o princiacutepio cooperativo necessaacuterio para a apoio muacutetuo centrado nos ideais coletivos Nancy Demand chega ao ponto de associar estes princiacutepios aos contatos estabelecidos entre os oikoi no Periacuteodo Claacutessico para ela tal relaccedilatildeo era ldquomais competitiva do que cooperativa pois as casas se desafiavam em uma competiccedilatildeo por honra e ciuacuteme e neste enfrentamento todas estavam continuamente vulneraacuteveis agrave perdardquo (DEMAND 2004 p 3) o que decerto soacute poderia fazer sentido em casos isolados mas nunca como regra geral Graham Zanker (1997 p 2) em sua criacutetica a Adkins entende essa questatildeo como uma falsa dicotomia ao passo que ldquoeacute faacutecil encontrar momentos na Iliacuteada em que guerreiros competem uns com os outros na batalha para atingir um objetivo comum de vitoacuteriardquo

A tendecircncia geral do debate radica-se em certo sentido em esforccedilos para definir se a competiccedilatildeo ou a cooperaccedilatildeo tomadas em um sentido holiacutestico representam cada qual um paradigma a partir da qual a outra parte do binocircmio seria vista sob regime de exceccedilatildeo Em outras palavras se o modo de ser eacutetico-poliacutetico eacute por excelecircncia competitivo a cooperaccedilatildeo se torna

9 Ainda que natildeo apareccedila expresso nesses termos na Iliacuteada o πάθει μάθος de Aquiles se tornou objeto de discussatildeo a partir de um bem conhecido artigo Pearl Cleveland Wilson Nele o autor argumenta ldquoEm sua primeira apariccedilatildeo ele [Aquiles] eacute altamente considerado com todas as qualidades que pertencem ao heroiacutesmo juvenil No entanto com o desenrolar da trama ele natildeo mostra preocupaccedilatildeo com qualquer outro sofrimento que natildeo seja seu proacuteprio O que lhe falta neste sentido eacute aquilo que Heacutector possui cuja compreensatildeo leva o leitor moderno a cultivar simpatia por ele Esse sentimento continua sendo desconhecido por Aquiles natildeo por que ele seja incapaz de conhececirc-lo mas porque ainda natildeo foi despertado para essa experiecircnciardquo (WILSON 1938 p 560) O tema tambeacutem eacute conhecido pelo debate de Bruno Snell (2005 p 19) para quem o πάθει μάθος atua como um ldquomal necessaacuteriordquo ldquopois este aprende com um mal a precaver-se contra outro malrdquo

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ocasional do mesmo modo que se eacute feita a opccedilatildeo pela loacutegica cooperativa a competiccedilatildeo eacute aquilo que foge agrave regra A tarefa eacute bastante difiacutecil porque variaacuteveis incidem o tempo inteiro para colocar em xeque uma pretensa ordem que sobrepairava sobre as relaccedilotildees sociais forccedilando-nos a duvidar se tal dicotomia eacute empiricamente observaacutevel em um todo que nem de longe se permite e se propotildee coerente

Fato significativo eacute que a mentalidade grega identifica o permanente estado de incompletude dos sujeitos razatildeo pela qual sobrepaira um estado latente que transita entre o conflito (no qual as diferenccedilas satildeo inconciliaacuteveis) e a complementaridade (quando as diferenccedilas satildeo justapostas em prol de um objetivo comum) Eacute precisamente esse o uacuteltimo ponto que julgamos importante pocircr em evidecircncia para compreender a relaccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon

A justificativa bem conhecida estaacute assente em um topos religioso os deuses natildeo datildeo aos homens tudo ao mesmo tempo Trata-se de um sintoma bem observado em diversas situaccedilotildees e das muitas que poderiacuteamos usar como exemplo vale recordar a dupla moira de Aquiles que sua matildee divina previu se ficasse em Troacuteia e combatesse os troianos morreria jovem e teria gloacuteria eterna se para casa retornasse teria vida longa mas seu nome seria esquecido (HOMERO Iliacuteada IX vv 410-416) Haacute para cada bem um mal correspondente Na Odisseia o aedo Demoacutedoco que celebrava os festins na feaacutecia tambeacutem prefigura essa loacutegica irremediaacutevel posto que a Musa muito o amava ldquoDera-lhe tanto o bem como o mal Privara-o da vista dos olhos mas um doce canto lhe concederardquo (HOMERO Odisseia VIII vv 63-64) Uma das melhores formulaccedilotildees dessa loacutegica pode ser lida na fala de Polidamante a Heacutector

ldquoHeitor muita dificuldade tens tu em dar ouvidos a bons conselhosPorque o deus te concedeu preeminecircncia nas faccedilanhas guerreirasTambeacutem por isso queres estar acima de todos no conselhoSoacute que tu proacuteprio natildeo seraacutes capaz de abarcar todas as coisas Eacute que a um homem daacute o deus as faccedilanhas guerrilhasA outro a danccedila e a outro ainda a lira e o cantoE no peito de outro coloca Zeus que vecirc ao ao longeUma mente excelente de que muitos homens tiram vantagemA muitos ele consegue salvar coisa que sabe mais que todosrdquo(HOMERO Iliacuteada XIII vv 724-734)

Na troca de acusaccedilotildees entre Agamecircmnon e Aquiles a potecircncia guerreira do melhor dos aqueus claramente confrontava a lideranccedila poliacutetica do Atrida De um lado um basileu que ainda que combatesse tinha seus meacuteritos pouco

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associados agrave superaccedilatildeo dos adversaacuterios em campo de batalha do outro um jovem guerreiro que a todos superava no combate mas que era inaacutebil com as palavras Agamecircmnon diz a Aquiles ldquoDe todos os reis criados por Zeus eacutes para mim o mais odioso Sempre te satildeo gratos os conflitos as guerras e as lutas Se eacutes excepcionalmente possante eacute porque um deus tal te concedeurdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 176-178) Aquiles por sua vez diz a Agamecircmnon ldquoRei voraz com o proacuteprio povo eacute sobre nulidades que tu reinas se assim natildeo fosse oacute Atrida esta agora seria a tua uacuteltima insolecircnciardquo (HOMERO Iliacuteada I vv 231-232) Quem percebe a gravidade da dissensatildeo e busca intervir eacute Neacutestor precisamente pela sabedoria que se acumulou ao longo dos anos Falando primeiramente a Agamecircmnon diz

ldquoQue natildeo procures tu nobre embora sejas tirar-lhe a donzelaMas deixa-a estar foi a ele primeiro que os aqueus deram o precircmioQuanto a ti oacute Pelida natildeo procures agrave forccedila conflitos com o reiPois natildeo eacute honra qualquer a de um rei detentor de ceptroA quem Zeus concedeu a gloacuteriaEmbora sejas tu o mais forte pois eacute uma deusa que tens por matildeeEle eacute mais poderoso uma vez que reina sobre muitos maisrdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 275-281)

A fala ponderada de Neacutestor eacute um sintoma da perspectiva natildeo apenas dos poetas mas das aristocracias a quem cantavam e que gostariam de se sentir representadas nos versos hexameacutetricos O anciatildeo consegue criticar a decisatildeo de Agamecircmnon sem colocar em suspenso sua soberania Ao mesmo tempo dirige-se a Aquiles louvando seu meacuterito guerreiro sem abdicar da necessidade de submissatildeo ao poder de quem reina sobre mais gente Neacutestor percebeu que no interior do exeacutercito aqueu cada uma das partes exacerbava a ausecircncia da outra e que isoladamente competindo entre si o enfraquecimento dos gregos abriria espaccedilo para o fortalecimento dos troianos

Eacute precisamente nesse ponto que competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo dialogam natildeo como pares antiteacuteticos mas como um modo de ser que depende fundamentalmente do objetivo comum compete-se contra o outro e coopera-se internamente para atingir o mesmo fim Qualquer ruiacutedo qualquer idiossincrasia uma palavra que excede ou uma negociaccedilatildeo que se frustra arrasta consigo consequecircncias funestas graccedilas agrave incapacidade de dar a cada parte do binocircmio o espaccedilo consagrado que lhe cabe

Por fim e sobretudo haacute um modo de ser que pode ser complementar ou excludente ensejando por correspondecircncia a cooperaccedilatildeo ou competiccedilatildeo Se a fala de Neacutestor sugere que a cooperaccedilatildeo entre aliados eacute absolutamente

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necessaacuteria e deve ser tomada como princiacutepio orientador das relaccedilotildees sociais as proacuteprias diferenccedilas divinamente justificadas (os deuses natildeo datildeo tudo a todos) ensejam o amaacutelgama da competiccedilatildeo e fazem com que esteja sempre agrave espreita rodeando os heroacuteis no marco de suas potecircncias e carecircncias O fiel da balanccedila o ponto de apoio o ldquonoacute goacuterdiordquo que assegura a coesatildeo ou conflito eacute insisto a poliacutetica Eacute pela poliacutetica que o ser eacutetico-poliacutetico se manifesta e consegue pocircr a si proacuteprio e o outro em perspectiva olhando as diferenccedilas como possiacuteveis complementos e natildeo como foco de dissociaccedilatildeo Apolo sabia disso quando lanccedilou a discoacuterdia Agamecircmnon se apercebeu quando reconheceu seu desvario Aquiles aprendeu quando perdeu Paacutetroclo Neacutestor jaacute sabia antecipadamente E se haacute um sentido embora esquecido que preside a busca pela poliacutetica eacute certamente bem comum ainda que muitos insistam que eacute possiacutevel atingi-lo fora de uma disposiccedilatildeo cooperativa

Abstract The aim of this article is to observe the tensions between Achilles and Agamemon through the conceptual bionmial competitioncooperation Itrsquos intend not only understand the variables of this opposition but also how the ideas of competition and cooperation sets a quarrel and suggest an ethical-political way of being that distinghishes those heroesKeywords Competition Cooperation Achilles Agamenon Iliad

Referecircncias

Documentaccedilatildeo Textual

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A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTO DOS PODERES PA-RENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS

Bruno DrsquoAmbros1

Resumo Mostramos neste artigo que a democracia grega nasceu efetivamente com a reorganizaccedilatildeo territorial aacutetica de Cliacutestenes em 508 aC atraveacutes do enfraquecimento dos genoi e phratriai em prol dos demoi A democracia assim desde seu surgimento parece ter sido uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema semelhante do conflito entre a distribuiccedilatildeo de poder local e regional Palavras-chave Cliacutestenes Democracia Greacutecia antiga Oligarquias

A escassa produccedilatildeo bibliograacutefica histoacuterica sobre o tema do nascimento da democracia na Greacutecia Antiga por vezes gera certa simplificaccedilatildeo da temaacutetica criando uma idealizaccedilatildeo da democracia participativa grega e esquecendo os variados elementos que a constituiacuteram Sem a adequada compreensatildeo dos detalhes histoacutericos que compuseram o nascimento da democracia arriscamos dizer eacute quase impossiacutevel compreender adequadamente Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e toda a produccedilatildeo filosoacutefica subsequente sobre o tema da poliacutetica As vaacuterias criacuteticas que os filoacutesofos antigos fizeram agrave democracia grega adveacutem de muitos elementos histoacutericos factuais que natildeo estatildeo naturalmente presentes nos textos destes pensadores e soacute podem ser compreendidos agrave luz da histoacuteria poliacutetica grega

Heroacutedoto em seu relato fictiacutecio na sua Histoacuterias relaciona trecircs reis persas ndash Otanes Megabises e Dario ndash com respectivamente os trecircs regimes poliacuteticos claacutessicos ndash democracia aristocracia e monarquia Este relato ajudou a consolidar no imaginaacuterio grego estas trecircs formas de governo e jaacute nele se percebe uma valoraccedilatildeo negativa da democracia Isoacutecrates em seu Evaacutegoras tambeacutem vecirc negativamente a democracia grega por seu caraacuteter igualitarista poreacutem elogia Soacutelon e Cliacutestenes que em sua opiniatildeo foram homens que foram

1 Doutorando em filosofia pela UFPR E-mail dambrosbrunogmailcom

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capazes de construir uma cidade-estado longe da monarquia Xenofonte nos Memoraacuteveis e Ciropeacutedia despreza a democracia que para ele era um regime calcado na indisciplina popular e portanto um regime titubeante A famosa criacutetica platocircnica agrave democracia na Repuacuteblica natildeo inova exceto na sua teoria da degenerescecircncia dos regimes poliacuteticos partindo do melhor para o pior ou seja a democracia esta seria ruim porque se baseia num homem sem virtude Aristoacuteteles em sua Poliacutetica rejeita a teoria platocircnica da degenerescecircncia das formas de governo e afirma que a democracia eacute uma forma de governo degenerada que exclui o interesse comum e beneficia o interesse de uma classe particular os mais pobres

Em suma percebe-se que a democracia ao menos para as classes cultas natildeo era um regime bem No entanto se atentarmos somente para os argumentos presentes nos textos destes autores citados excluindo o contexto histoacuterico anterior natildeo compreenderemos esta antipatia agrave democracia em sua totalidade Eacute preciso portanto voltar-se para os acontecimentos histoacutericos

O principal evento para a consolidaccedilatildeo da democracia aleacutem das reformas anteriores de Soacutelon e dos Pisistraacutetidas foi sem duacutevida a reforma territorial sob Cliacutestenes ocorrida por volta de 508 aC Foi esta reforma que ao reconfigurar a demografia aacutetica enfraqueceu os laccedilos parentais das famiacutelias aristocraacuteticas aacuteticas e possibilitou a participaccedilatildeo poliacutetica efetiva nas eleiccedilotildees e nas instituiccedilotildees democraacuteticas atenienses O que houve em outros termos foi que os novos demoi nascentes como nova divisatildeo territorial administrativa se contrapocircs com a divisatildeo familiar tradicional de parentesco denominada genos o que contribuiu para a exacerbaccedilatildeo da antiacutetese entre uma aristocracia familiar local estabelecida e uma democracia poliacutetica translocal introduzida2 Todo o debate filosoacutefico poliacutetico concernente sobre a democracia tinha como pano de fundo os nuacutecleos de gens na Greacutecia antiga e a nova configuraccedilatildeo demograacutefica de Cliacutestenes os demoi

Cliacutestenes nasceu por volta de 570 aC e era membro do clatilde dos Alcmeocircnidas neto do tirano Cliacutestenes de Siacutecion tio de Peacutericles e avocirc de Alcebiacuteades Quanto ao seu legado Cliacutestenes tomou uma seacuterie de medidas reformatoacuterias principalmente no que tange agrave reorganizaccedilatildeo poliacutetica do territoacuterio da Aacutetica mudando a organizaccedilatildeo poliacutetica ateniense que era baseada em quatro tradicionais tribos com fortes laccedilos de parentesco entre si que foram responsaacuteveis pelas tiranias anteriores A fim de impedir que a tirania se

2 Sobre a diferenccedila entre γένος e δῆμος na Aacutetica claacutessica faz-se mister conferir o capiacutetulo X da parte II da obra de Fustel de Coulanges (2009) jaacute bem conhecida entre os helenistas e latinistas onde o autor defende a tese de que a gens era a famiacutelia em sua primitiva organizaccedilatildeo de parentesco e unidade e natildeo como se pensava na eacutepoca um artifiacutecio administrativo de relaccedilotildees de parentesco

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instalasse novamente atraveacutes destas relaccedilotildees de parentesco Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em dez tribos de acordo com sua area de residecircncia o seu dēmos Estas reformas territoriais foram na verdade uma ldquodessacralizaccedilatildeo da paacutetriardquo (KERCKHOVE 1980 p 27) e consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo em curso na Greacutecia Arcaica (DrsquoAMBROS 2014)

Os principais feitos de Cliacutestenes durante seu arcontado foram basicamente seis a reorganizaccedilatildeo demograacutefica do territoacuterio aacutetico o consequumlente fortalecimento dos dēmos em detrimento das antigas phratriai a reorganizaccedilatildeo da boulḗ em 500 participantes a reorganizaccedilatildeo da dikasteria a corte popular a instituiccedilatildeo do ostracismo e a cunhagem do conceito de isonomia que durante o seacuteculo V iria desembocar no conceito de democracia

Quanto a estas outras reformas o estabelecimento de corpos legislativos feitos de indiviacuteduos escolhidos por eleiccedilatildeo foi tambeacutem mais um atentado contra o parentesco e a hereditariedade aristocraacutetica Ainda sua reorganizaccedilatildeo da Boulecirc que primariamente foi feita por 400 membros para 500 membros 50 de cada tribo e a introduccedilatildeo do juramento bouleacutetico que propunha antecipadamente a agenda a ser discutida na ekkleacutesia foram importantes para esta desestabilizaccedilatildeo aristocraacutetica A reorganizaccedilatildeo do tribunal da dikasteria e a criaccedilatildeo do ostracismo usado pela primeira vez em 487 aC com a finalidade de expulsar da cidade qualquer um que ameaccedilasse a democracia foram mecanismos uacuteteis para o enfraquecimento do poder parental-aristocraacutetico

A ascensatildeo de Cliacutestenes ao arcontado se deu apoacutes a expulsatildeo de Hiacuteppias de Atenas quando Isaacutegoras entra na disputa pelo arcontado com Cliacutestenes ambos aristocratas Isaacutegoras aliou-se com o rei Cleomenes I de Esparta e exilou Cliacutestenes junto com 700 famiacutelias e tornou-se arconte epocircnimo em 507 aC Seu grande erro poreacutem foi tentar dissolver a boulḗ3 que resistiu e angariou o apoio do povo e forccedilou Isaacutegoras a fugir para a Acroacutepolis que laacute permaneceu por dois dias sendo expulso no terceiro junto com os espartanos aliados (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 721ndash2) Cliacutestenes entatildeo junto com os outros exilados retornou a Atenas e tornou-se arconte com apoio do povo e dos aristocratas hetairoi (cavalaria)

Conflitos entre aristocratas como entre Isaacutegoras e Cliacutestenes estava se tornando ldquofora de modardquo (BUCKLEY 2010 p 118) O povo de modo geral e igualmente a parcela de nobres por meacuterito financeiro estava enfastiada de disputas entre facccedilotildees aristocraacuteticas que natildeo percebendo a mudanccedila dos tempos ainda sustentava valores e coacutedigos de honra anacrocircnicos Cliacutestenes

3 Na verdade Heroacutedoto natildeo explicita se foi a Bouleacute ou o Areoacutepago que Isaacutegoras quis remover

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arguto poliacutetico e membro da aristocracia percebeu isso jaacute durante o periacuteodo de tirania onde os tiranos para se manter no poder adotavam medidas populistas que natildeo os tornavam dependentes dos humores inconstantes das facccedilotildees aristocraacuteticas mas do proacuteprio povo E lidar com o povo ignorante cujos interesses satildeo miacutenimos eacute muito mais faacutecil que lidar com uma aristocracia com infinitos interesses econocircmicos e poliacuteticos e coacutedigos de honra fastidiosos

Inspirado no bem suscedido populismo4 precedente dos pisistraacutetidas Cliacutestenes toma medidas igualmente populistas para se manter no poder desagradando naturalmente a classe aristocraacutetica da qual ele mesmo fazia parte Dentre estas medidas as principais foram duas a reforma demograacutefica e a ampliaccedilatildeo dos poderes da ekklesia Heroacutedoto (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 662 692) sublinha este caraacuteter oportunista das medidas de Cliacutestenes e igualmente Aristoacuteteles quando diz que ldquoCliacutestenes trouxe o povo para o seu lado cedendo o controle do Estado para o plethos (plebe)rdquo (ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 202) Portanto apesar de Cliacutestenes ser considerado o real fundador da primeira democracia na histoacuteria seus interesses natildeo foram altruiacutestas mas permeados de interesses pessoais e aristocraacuteticos ou mais amenamente uma ldquocombinaccedilatildeo de auto-interesse e acuidade puacuteblicardquo (BUCKLEY 2010 p 120)

Assim a democracia ateniense nasce propriamente com Cliacutestenes em funccedilatildeo de sua reforma demograacutefica do territoacuterio Aacutetico Os principais motores destas reformas foram dois que se inter-relacionam o problema da cidadania ateniense e o problema das unidades parental-aristocraacuteticas Passemos a seguir a explicaacute-las

Durante o arcontado de Soacutelon muitos estrangeiros vieram para Atenas por sua prosperidade crescente com sua abertura econocircmica para trabalhar nos mais diversos ramos sendo o principal o artesanato Igualmente durante

4 O populismo termo moderno eacute um fenocircmeno que liga-se diretamente agrave tirania O tirano era essencialmente um populista estava ao lado do povo e contra os aristocratas Heroacutedoto (V 926) diz que a sanha do tirano eacute essencialmente a igualdade ldquocortar todas as espigas maiores que as outrasrdquo Glotz (1988 p 92) resume magistralmente qual era de fato o objetivo do tirano ldquoreduzir os poderes da aristocracia e exalccedilar os humildesrdquo Por isso na tipologia poliacutetica platocircnica agrave democracia natildeo eacute reservado a ela um bom lugar pois o intervalo entre a democracia e o populismo e portanto agrave tirania eacute curto O povo no baixo medievo grego cultuava deuses locais ctocircnicos sendo um deles Dioniso (lembremos que como Cristo ele desceu ao Hades e ressuscitou segundo o Hino Homeacuterico LIII) A aristocracia cultuava deuses com caraacuteter universal os deuses oliacutempicos Para agradar o povo Pisiacutestrato promove os cultos ctocircnicos populares sendo o principal o culto a Dioniso construindo um templo e instituindo o festival da Grande Dionisia onde em 535 aC foi encenado a primeira trageacutedia tendo como vencedor Thespis de Icaacuteria Assim nasce oficialmente o culto a Dioniso e a Trageacutedia grega sob os auspiacutecios do populismo tiracircnico (cf GLOTZ 1988 p 93)

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os pisistraacutetidas muitas novas pessoas vieram para Atenas para servir como mercenaacuterios do exeacutercito puacuteblico Assim durante todo o seacuteculo VI Atenas recebeu uma quantidade crescente de estrangeiros que no governo de Soacutelon vieram para trabalhar como artesatildeos de vasos e no governo dos pisistraacutetidas vieram para trabalhar como mercenaacuterios no exeacutercito puacuteblico estes foram os famosos meacutetoikos (estrangeiros)

Durante o governo de Cliacutestenes Atenas jaacute era habitada pelos netos e bisnetos destas pessoas no entanto sem cidadania aacutetica ainda Assim tiacutenhamos trecircs geraccedilotildees de estrangeiros que ainda natildeo tinham a cidadania ateniense plena Atenas durante o seacuteculo VI aC teve um crescimento demograacutefico significativo e a propaganda poliacutetica dos pisistraacutetidas em transformar Atenas no centro cultural Aacutetico foi bem-sucedida ao trazerem os festivais dionisiacuteacos teatro e os jogos oliacutempicos para a cidade Desde modo aleacutem dos descendentes daqueles estrangeiros que vieram para Atenas sob Soacutelon e os pisistraacutetidas sob Cliacutestenes afluiacuteram para Atenas muitos outros estrangeiros

A uacutenica prova formal de cidadania ateniense antes de Cliacutestenes eram as fratriai que reivindicavam para si uma origem miacutetica como seus nomes atestam Assim quando Cliacutestenes fez a reforma geopoliacutetica aacutetica criando os demoi ele automaticamente aboliu o antigo criteacuterio de cidadania criando um novo os demoi (BUCKLEY 2010 p 120) O termo deme tem um sentido muito especiacutefico na Aacutetica pois de fato se refere ldquounidade poliacutetica associada com as reformas de Cliacutestenesrdquo (TRAILL 1975 p73)

Para compreender a natureza e extensatildeo da reforma geopoliacutetica aacutetica de Cliacutestenes em deme eacute preciso compreender a natureza das quatro unidades parental-aristocraacuteticas aacuteticas anteriores phylai phratriai genē e oikoi ou anchisteia Eric Voegelin (2012 p 190) chama-as de ldquoestruturas gentiacutelicasrdquo de sinecismo da civilizaccedilatildeo helecircnica e as apresenta em niacuteveis da maior para a menor respectivamente5 Estas estruturas gentiacutelicas da civilizaccedilatildeo helecircnica tinham caracteriacutesticas tribais e foram determinantes do processo de sinecismo aacutetico ou seja na uniatildeo dos vaacuterios vilarejos aacuteticos em torno de um centro poliacutetico uacutenico Atenas durante o seacuteculo V ac

Ao longo do seacuteculo VII ac as phratriai satildeo a base da sociedade englobam tambeacutem os genē e se legitima como poder poliacutetico tendo regras proacuteprias podendo promulgar decretos proacuteprios possuir bens e dignitaacuterios

5 Contudo natildeo sabemos exatamente se os philai eram partes das phratriai ou contrariamente se as phratriai eram parte das philai (LAMBERT 1993 p 1516)

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tem seu proacuteprio sacerdote e culto As lideranccedilas das phratriai eram hereditaacuterias e portanto natildeo-democraacuteticas (BUCKLEY 2010 p 122) As phratriai eram o foco da aristocracia e uma vez que a aristocracia era um problema para o povo logo eram igualmente o foco do problema As phratriai podiam dividir-se ou fundir-se conforme sua fraqueza ou forccedila poliacutetica e segundo as circunstacircncias (LAMBERT 1993 p 11) e esta grande mobilidade espontacircnea foi provavelmente o motivo que as fizeram sobreviver durante os 200 anos de democracia como ldquoorganizaccedilotildees extra-urbanasrdquo ( JONES 1999 p 210)

A fundaccedilatildeo das phratriai foi atribuiacuteda agrave figura miacutetica de Ion personificaccedilatildeo da identidade jocircnica (LAMBERT 1993 p 3) Atenas estava organizada em quatro tribos jocircnicas agrupadas em phratriai e genē baseadas num parentesco miacutetico com algum heroacutei (FINE 1983 p 229) Este recurso genealoacutegico a um ancestral miacutetico comum foi recorrente em todas as phratriai e pode se atestar tanto pelo sufixo patroniacutemico -idai nos nomes das phratriai como Alkmeonidai e Demotionidai como pelo famoso festival de Apatouria cujo nome derivaria de homopatoria ou seja ldquomesmo pairdquo (LAMBERT 1993 p 8) Apesar de o recurso genealoacutegico-miacutetico natildeo ser verdadeiro como hoje compreendemos a noccedilatildeo de verdade como correspondecircncia de fato as phratriai consistiam de pessoas com uma ancestralidade comum chamados homogalaktes e a membresia nas phratriai natildeo era reservada somente aos ricos eupatridai (FINE 1983 p 186) mas estendida a todos os que vinham a pertencer a uma phratriai Deste modo as phratriai eram organizaccedilotildees de parentesco primordialmente constituiacutedas por phraacuteter vizinhos proacuteximos e amigos de famiacutelia Haacute trecircs evidecircncias segundo Lambert (1993 pp 4-5) da existecircncia das phratriai aacuteticas trinta inscriccedilotildees arqueoloacutegicas preservadas obras tardias dos seacuteculos V e IV aC em especial Isaeus e Demoacutestenes e scholia variados como os ensaios de Plutarco Pausanias e Ateneu Em Homero a fratria eacute uma ldquosubdivisatildeo da tribordquo e uma ldquobase de organizaccedilatildeo militarrdquo de modo que o homem sem fratria eacute considerado um ldquofora de leirdquo (VIAL 2013 p189) A palavra phrater significa literalmente irmatildeo mas em Homero natildeo se usa a palavra phrater para se referir a irmatildeo mas sim adelphos e kasignetos (FINE 1983 p 35) O termo phratria eacute mencionado pela primeira vez na Iliacuteada (II vv 362-363 IX vv 63-64) quando Nestor fala a Agamenon para dividir os homens por tribos e phratriai Uma hipoacutetese para a origem das phratriai bem aceita eacute a de que na ldquoEra das Trevasrdquo grega os nobres agrupados em genē organizaram seus dependentes em phratriai para melhor controle cada uma estando sob o domiacutenio de um ou mais gene (FINE 1983 p 186) Assim a organizaccedilatildeo em phratriai formam um modo de organizaccedilatildeo dos genē e de fato as phratriai organizaram a vida social e poliacutetica grega desde sua

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apariccedilatildeo por volta de 2000 aC ateacute seu fim no segundo seacuteculo II aC como atesta uma inscriccedilatildeo em uma colocircnia grega em Naacutepoles

As outras estruturas gentiacutelicas phylai genē e anchisteia satildeo partes constituintes do que seratildeo as poleis futuramente Agrave medida que a noccedilatildeo de sujeito vai tomando escopo ndash como se pode atestar pela epopeacuteia liacuterica e trageacutedia ateacute seu ponto culminante com a filosofia ndash o mundo tribal aristocraacutetico vai dando lugar ao mundo das poleis democraacuteticas O sujeito ldquo[] sempre permaneceu numa posiccedilatildeo de mediaccedilatildeo por meio dos parentescos sanguiacuteneos tribais fictiacutecios e estreitos no interior da poacutelisrdquo (VOEGELIN 2012 p 189)

Cliacutestenes mudou a situaccedilatildeo poliacutetica aacutetica mudando a situaccedilatildeo geopoliacutetica Agora o centro das decisotildees poliacuteticas natildeo eram mais as phratriai mas os demoi Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em trecircs regiotildees geopoliacuteticas Paralia Mesogeia e Astu E cada uma destas aacutereas foi subdividida em dez partes chamadas tritiacuteas6 que por sua vez englobavam um certo nuacutemero de demes (BRAADEN 1955 p 22) De acordo com Braaden (1955 p 28) ldquoas tritiacuteas eram aacutereas geograacuteficas compactas e em alguns lugares contiacuteguasrdquo A subdivisatildeo aacutetica foi uma forma de ldquomisturar o povordquo (BUCKLEY 2010 p 128 BRAADEN 1995 p 23) As reformas de Cliacutestenes ldquopodem ter intentado transcender barreiras locais juntando homens dos distritos rurais urbanos e costeiros e desenvolver um sentimento de uniatildeordquo (HIGNETT 1952 p 141) Esta divisatildeo aacutetica foi a maneira achada para solucionar os conflitos parental-aristocraacuteticos entre as diversas facccedilotildees e partidos7

A principal diferenccedila entre as phratriai e os demoi era a ldquoconstituiccedilatildeo democraacuteticardquo (BUCKLEY 2010 p123) destes uacuteltimos Todos os temas concernentes aos demoi eram decididos natildeo mais por uma pequena phratria seleta mas por todo o demos

Alguns especialistas sustentam que Cliacutestenes com sua reforma demograacutefica desejava aumentar o poder das cidades e outros que ao contraacuterio

6 As dez era a dos Erectidas Egeus Pandion Leocircnides Acamantes Oineis Cecroacutepides Hipotoontes Eacircntides e Antiacuteoques e estavam espalhadas por todo o territoacuterio aacutetico em diferentes locais tendo muitas vezes a mesma tribo em locais diferentes totalizando assim trinta tritiacuteas Na mesma tritiacutea havia vaacuterios demoi e se crecirc ter havido cerca de 140 dēmoi em toda a Aacutetica Cada tribo eacute composta por trecircs tritiacuteas a da costa cidade e planiacutecie Cada tritiacutea foi nomeada segundo o demo dominante

7Alguns partidos regionais do seacuteculo VI aC eram pedieis cujo nuacutecleo estava concentrado na aacuterea de planiacutecie e tinha Licurgo como liacuteder paralioi cujo nuacutecleo era a aacuterea costeira e era famoso por ser a regiatildeo dos Alcmeocircnidas e por fim os hyperacrioi os ldquoaleacutem dos montesrdquo Cliacutestenes desejava quebrar a velha rivalidade entre os pediakoi paralioi e diakrioi e a influecircncia dos eupatridai (BRAADEN 1955 pp 23- 25)

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ele desejava diminuir De fato Cliacutestenes estava mais interessado dentre as trecircs grandes aacutereas em que a Aacutetica foi divida na aacuterea urbana provavelmente porque a maior parte das famiacutelias nobres eram de centros urbanos (BRAADEN 1955 pp 28-29) Aleacutem disso ldquoas tritiacuteas da Cidade consistiam de somente um demos que como a evidecircncia arqueoloacutegica mostra era a sede poliacutetica dos Alcmeocircnidasrdquo (BUCKLEY 2010 p 127) ou seja a proacutepria facccedilatildeo de Cliacutestenes

Deste modo as reformas tribais de Cliacutestenes foram um grande senatildeo o mais importante fator no desenvolvimento da democracia ateniense mas foram tambeacutem um meio de fortalecer a permanecircncia poliacutetica dos Alcmeocircnidas agraves custas de seus oponentes (BUCKLEY 2010 p 128)

Estas famiacutelias mantiveram influecircncia poliacutetica sobre o territoacuterio de onde vieram apesar de suas residecircncias estarem em aacutereas urbanas Alguns alegam como Braaden (1955 p 29) que a reforma territorial de Cliacutestenes natildeo foi um meio de beneficiar a plebe mas os aristocratas porque ldquoera necessaacuterio inventar um sistema pelo qual elas pudessem ser espalhadas por todas as tribos enquanto ainda usando localidade como a base para a cidadaniardquo

As rivalidades e conflitos entre as facccedilotildees podem ter sido causadas pela ambiccedilatildeo de poucas famiacutelias ou clatildes aristocraacuteticos que eram capazes de usar seus domiacutenios de certas regiotildees da Aacutetica como arma poliacutetica Cliacutestenes percebeu que estes blocos regionais de poder com seus liacutederes aristocraacuteticos sustentados em poder pode seus amigos e dependentes pela rede de velhas lealdades e alianccedilas eram o maior obstaacuteculo para a estabilidade poliacutetica Consequentemente houve uma radical reorganizaccedilatildeo do corpo citadino e por isso das quatro tribos jocircnicas sob os fundamentos que a dependecircncia poliacutetica do povo comum poderia somente ser quebrada pela separaccedilatildeo poliacutetica de seus liacutederes aristocraacuteticos (BUCKLEY 2010 p 126)

A artificializaccedilatildeo do territoacuterio atraveacutes de uma reforma geopoliacutetica foi o modo encontrado para enfraquecer o poder das fratrias fortalecer o poder do povo e ldquoquebrar os fortalecidos poderes regionais destes clatildes aristocraacuteticos e suas facccedilotildees acabando com as funccedilotildees poliacuteticas das fratrias e das velhas tribos [hellip] (BUCKLEY 2010 p 122) No entanto ao mesmo tempo foi um modo de fortalecer o poder de uma fratria especiacutefica a proacutepria de Cliacutestenes e descentralizar as decisotildees poliacuteticas e unificar o estado Poderiacuteamos dizer assim que a democracia ateniense foi consequumlecircncia de uma demografia antes de tudo

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Como dito acima um dos problemas sociais mais urgentes resolvidos sob Cliacutestenes ao final do seacuteculo VI eram os novos cidadatildeos sem cidadania ateniense plena A nova base de cidadania instituiacuteda por Cliacutestenes foi a localidade de nascimento e isso facilitou a inclusatildeo de novos cidadatildeos (BRAADEN 1955 p 22) Com as phratriai enfraquecidas a base de confianccedila para a cidadania agora natildeo eram mais o parentesco fictiacutecio com algum heroacutei mas simplesmente o demos ao qual algueacutem fazia parte Os deme garantiriam cidadania ateniense natildeo soacute para antigos habitantes mas tambeacutem para os novos conforme relata o proacuteprio Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses 214) Voegelin tambeacutem nos confirma ao dizer que ldquoa cidadania agora dependia do pertencimento a um dos demoirdquo e diz que a consequecircncia geral deste feito foi uma ldquodemocratizaccedilatildeo bem-sucedida da constituiccedilatildeo dissolvendo o poder da antiga estrutura gentiacutelica (VOEGELIN 2012 p190)

Aleacutem deste alargamento da cidadania a reforma demograacutefica clisteneana repercutiu na organizaccedilatildeo militar pois agora os ldquogenerais de qualquer tribo poderia vir de qualquer uma das trecircs regiotildees da Aacuteticardquo (BRAADEN 1955 p 26) A reforma territorial de Cliacutestenes foi ldquoum sistema pelo qual os Eupatridai seus inimigos talvez mas ainda homens de habilidade pudessem ser usados para favorecer na posiccedilatildeo militar e na nova e poderosa posiccedilatildeo de Prytaneisrdquo (BRAADEN 1955 p 30)

Este eacute um sistema extremamente complexo e foi implantado por Cliacutestenes com a finalidade de abolir os privileacutegios patroniacutemicos em favor dos demoniacutemicos o que aumentou o senso de pertenccedila a um dēmos nos indiviacuteduos ficando as relaccedilotildees familiares de genos cada vez mais tecircnues O dēmos portanto foi uma divisatildeo territorial artificial para impedir a forccedila poliacutetica dos genos Poderiacuteamos dizer que esse conflito entre genos e demos eacute o conflito entre a lei do Estado e o direito familiar ou ainda o conflito entre poder central e poderes regionais que estaraacute presente durante toda a histoacuteria da poliacutetica e da filosofia poliacutetica culminando em soluccedilotildees futuras como federalismo e a teoria da divisatildeo dos poderes

Esta estrateacutegia geopoliacutetica se deu justamente pela excessiva forccedila das relaccedilotildees parentais que o genos proporcionava frequentemente levando ao poder um membro proeminente de um genos que natildeo legislaria em favor do puacuteblico O genos assim se tornava representante por excelecircncia da aristocracia Logicamente a decisatildeo de Cliacutestenes natildeo foi inicialmente bem vista pois diluiacutea as relaccedilotildees familiares tradicionais do genos em troca de relaccedilotildees artificiais novas do dēmos O que se tornava decisivo daqui em diante para a poliacutetica Aacutetica natildeo era mais o nascimento a estirpe a hereditariedade miacutetica reivindicada pela aristocracia A arete saia do campo de virtudes familiares para virtudes sociais

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sempre tendo em vista a comunidade Cliacutestenes desta forma literalmente instituiu a democracia

O que foi entatildeo a democracia Aacutetica antiga Foi uma divisatildeo territorial uma estrateacutegia geopoliacutetica em prol de todas as pessoas e natildeo somente de grupos familiares bem instituiacutedos Portanto para a democracia Aacutetica antiga foi de suma importacircncia a artificializaccedilatildeo do territoacuterio Soacute desta forma pode-se afrouxar os laccedilos parentais tradicionais que sempre tenderam a se agrupar e formar oligarquias em prol de laccedilos puacuteblicos que por estarem territorialmente distantes e natildeo terem proximidades familiares auxiliaram no sentimento de pertenccedila territorial

Abstract We show in this article that Greek democracy was actually born with the Attic territorial reorganization of Cliacutestenes in 508 bC through the weakening of the genoi and phratriai in favor of the demoi Democracy then since its inception seems to have been an attempt to solve the similar problem of the conflict between the distribution of local and regional powerKeywords Cleisthenes Democracy Ancient Greece Oligarchies

Referecircncias

ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 2ordf Ed Lisboa Calouste Goubenkian 2009

BRADEEN Donald The trittyes in Cleisthenesrsquo reforms In Transactions and proceedings of the American philological association Vol86 1955 pp22-30

BUCKLEY Terry Aspects of Greek history 750ndash323bc A source-based approach London Routledge 2010

COULANGES Fustel de A cidade antiga Satildeo Paulo Martin Claret 2009DrsquoAMBROS Bruno Rodrigo Um estudo histoacuterico sobre a emergecircncia da

democracia como consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo na Greacutecia arcaica (594ndash508 aC) Orientador Jean Gabriel Castro - Florianoacutepolis SC 2014 119 p Trabalho de Conclusatildeo de Curso (graduaccedilatildeo) Universidade Federal de Santa Catarina

FINE John Van Antwerp The ancient greeks a critical history Harvard University Press 1983

GLOTZ Gustave A cidade grega Satildeo Paulo Bertrand Brasil 1988HEROacuteDOTO Histoacuterias livro V Lisboa Ediccedilotildees 70 2007JONES Nicholas The associations of classical Athens the response to

democracy Oxford University Press 1999KERCKHOVE Derrick De A Theory of Greek Tragedy SubStance Vol 9 No

4 Issue 29 (1980) pp 23-36

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LAMBERT SD The phratries of Attica Michigan Monographs in Classical Antiquity Michigan University Press 1993

TRAILL John S The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council Hesperia Supplements v 14 - The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council 1975 pp 139-169

VIAL Claude Vocabulaacuterio da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2013VOEGELIN Eric Histoacuteria das ideias poliacuteticas 1 Helenismo Roma e

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2012

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TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES

Paulo Pires Duprat1

Miserius nihil est quam mulier ldquoNada eacute mais miseraacutevel do que uma mulherrdquo

(PLAUTO As Baacutequides 41)

Resumo Muito se escreveu sobre gecircnero no mundo romano Natildeo obstante algo parece estar faltando a parte que cabe agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica desta sociedade Passado presente ou futuro as mulheres constituem no miacutenimo metade da populaccedilatildeo ao redor do globo uma forccedila de trabalho imprescindiacutevel seja em sociedades antigas ou modernas Sabemos que desde o comeccedilo dos tempos a maioria das mulheres foi submetida ao trabalho duro sob a forma de tarefas cansativas e repetitivas impostas de forma arbitraacuteria Tais atividades comeccedilavam ainda na infacircncia e jamais receberam o devido reconhecimento O objetivo deste trabalho eacute portanto resgatar o papel do trabalho das mulheres nas economias da Hispacircnia romana com especial atenccedilatildeo ao caso de Tarraco entre finais da Repuacuteblica ateacute o Principado levantando subsiacutedios locais e alhures para demonstrar a parte que coube agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica da sociedade romana

Palavras-chave Estudos claacutessicos Economia romana Trabalho feminino Estudos de gecircnero Poacutes-modernismo

Estudos claacutessicos e a naturalizaccedilatildeo dos preconceitos

Lamentamos iniciar este artigo afirmando que os estudos claacutessicos satildeo com certeza um dos campos acadecircmicos mais conservadores hieraacuterquicos e patriarcais (SKINNER 1983 p 183) Eminentes classicistas criacuteticos reconheceram que ldquoos estudos claacutessicos tecircm sido com poucas exceccedilotildees antiteoacutericos em geral e antifeministas em particularrdquo nas palavras de Nancy Sorkin Rabinowitz em sua provocante introduccedilatildeo ao Feminist theory and

1 Doutorando em Histoacuteria pela Unicamp sob orientaccedilatildeo de Pedro Paulo Abreu Funari Servidor puacuteblico federal ativo desde 2005 atuando como bibliotecaacuterio lotado na FAUUFRJ E-mail ppdupratyahoocombr

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the Classics (1993 p 1) Os estudos claacutessicos tecircm reforccedilado pontos de vista conservadores de diversas maneiras na maioria dos casos ao apoiarem-se em uma leitura empirista a partir do senso comum dos documentos antigos O uso do senso comum para a manutenccedilatildeo de relaccedilotildees iniacutequas de poder segundo as agudas observaccedilotildees do linguista britacircnico Norman Fairclough (1990 pp 84-91) contribui para que relaccedilotildees de poder injustas sejam mantidas pela naturalizaccedilatildeo dos discursos Rejeitamos portanto esta abordagem derivada do senso comum na medida em que apenas uma anaacutelise criacutetica permite compreender o ldquomasculinordquo e o ldquofemininordquo como construccedilotildees sociais que variam em termos de classe social gecircnero e etnicidade em diferentes periacuteodos histoacutericos e em diferentes sociedades (FUNARI 1995b pp 179-80) O trecho abaixo deixa claro nossa percepccedilatildeo

Eacute uma histoacuteria circular que se torna mais intensa agrave medida em que a contamos Eacute um meio de controle social e tem sido usado para regular as atividades e aspiraccedilotildees de grupos laquonaturalmenteraquo subordinados Haacute muitos presentes e passados a serem narrados mas os perdedores do jogo satildeo frequentemente os mesmos grupos subordinados (SCOTT 1993 p 8)

Enfim haacute caminhos mais justos e viaacuteveis O vieacutes com o qual nos propomos a investigar o papel nas mulheres na sociedade romana eacute declaradamente inspirado no movimento feminista que convenceu alguns historiadores2 a substituir sua perspectiva de ldquosexordquo para ldquogecircnerordquo aqui entendida como construccedilatildeo social e natildeo como categoria natural como jaacute aludido

Desconstruindo preconceitos

Por ocasiatildeo da virada do seacuteculo XX para o XXI observamos abordagens de vanguarda que transformaram os estudos claacutessicos Os historiadores do mundo romano acostumados com narrativas de cunho poliacutetico econocircmico ou militar se depararam com o surgimento de uma geraccedilatildeo de estudiosos preocupados com a revisatildeo de conceitos consagrados de criacuteticas a modelos interpretativos de cunho normativo aleacutem de muacuteltiplas propostas sobre temas ineacuteditos sendo explorados Reflexotildees sobre a cultura romana as relaccedilotildees de

2 Dentre os quais me incluo No que concerne ao meu caso em particular francamente inspirado pela teoria desconstrutivista presente nas obras de Foucault e nas leituras feministas e poacutes-feministas indicadas pela linha de pesquisa das profordfs Luana Tvardovskas Margareth Rago e Pedro Paulo Funari a partir das aulas ministradas em no 1ordm e 2ordm semestres de 2017 seguindo as prerrogativas do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Unicamp

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gecircnero conflitos eacutetnicos ou a formaccedilatildeo das novas identidades a partir do embate entre romanos e natildeo romanos passaram a figurar com mais intensidade nas publicaccedilotildees acadecircmicas especializadas Este processo que estaacute inserido em um contexto muito mais amplo resulta de questionamentos epistemoloacutegicos que as Ciecircncias Humanas tecircm enfrentado desde a deacutecada de 1960 As criacuteticas de M Foucault3 por exemplo proporcionaram uma revisatildeo no papel dos acadecircmicos e aos poucos foi se concretizando a percepccedilatildeo na qual o historiador produz discursos sobre o passado constantemente ressignificados a partir de suas proacuteprias convicccedilotildees preconceitos e limitaccedilotildees Assim vaacuterios pressupostos tatildeo arraigados na historiografia tais como a neutralidade a objetividade a busca pelo real a essecircncia de sujeitos universais e o ordenamento dos acontecimentos a partir da noccedilatildeo de classes sociais e seus conflitos socioeconocircmicos entraram em xeque e foram revistos e criticados abrindo espaccedilo para repensar as categorias de anaacutelise do passado e as metodologias empregadas para sua interpretaccedilatildeo (FUNARI GARRAFFONI 2008 p 102)

Nossas reflexotildees acerca do mundo romano inserem-se neste contexto Afinal consideramos que o estudo da Antiguidade Claacutessica natildeo precisa reforccedilar preconceitos nem constituir-se em elemento de opressatildeo (FUNARI 1995a p 31) Por outro lado devemos ter em conta que a cultura material eacute o resultado direto do trabalho humano enquanto o documento escrito eacute uma representaccedilatildeo ideoloacutegica da realidade transposta para o texto Os documentos escritos informam-nos sobre as ideias de seus autores em geral uma elite masculina que sabia ler e escrever A escrita assim eacute um instrumento de poder de classe (FUNARI 2003 p 40)

Deste modo acreditamos que muitas pesquisas que se baseiam exclusivamente em obras literaacuterias podem incorrer em imprecisotildees naturalizando discursos e cristalizando opiniotildees que na realidade natildeo eram compartilhadas pela maioria da sociedade A observaccedilatildeo abaixo resume nossa posiccedilatildeo

Para um periacuteodo como o da Histoacuteria romana ou grega () apenas a Arqueologia podia trazer informaccedilotildees concretas e se tinha a consciecircncia clara que a literatura era ldquofonterdquo mas de um valor decerto relativo erudito elitista () Quem lia Quem escrevia Quem nos garantia a fidelidade das versotildees chegadas ateacute noacutes (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

3 Margareth Rago (1995 p 72) considera que as perspectivas de Foucault representaram uma verdadeira revoluccedilatildeo na historiografia uma ldquonova maneira de problematizar a Histoacuteria de pensar o evento e as categorias atraveacutes das quais se constroacutei o discurso do historiadorrdquo (grifo da autora)

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Por tais razotildees destacamos a centralidade da Arqueologia como ferramenta natildeo soacute para compor quadro mais amplo de evidecircncias como tambeacutem para refutar algumas ideias contidas nessas fontes escritas que muitas vezes informam mais sobre a opiniatildeo dos seus autores do que da ldquorealidaderdquo que eles julgavam contar4 Felizmente jaacute acumulamos alguma tradiccedilatildeo de pesquisa arqueoloacutegica no campo da economia romana Graccedilas ao grande nuacutemero de evidecircncias disponiacuteveis o conhecimento tem evoluiacutedo tanto no campo das economias provinciais quanto no da metroacutepole Inuacutemeros artefatos resultantes de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas e o rico material epigraacutefico recuperado tecircm fomentado pesquisas que oferecem um quadro mais representativo das atividades econocircmicas desenvolvidas5 Haacute casos em que a evidecircncia eacute relativamente abundante e homogecircnea tais como por exemplo as inscriccedilotildees e os artefatos arqueoloacutegicos de Pompeacuteia ou os arquivos dos papiros gregos do Egito (BERDOWSKI 2007 p 283) que apontam para um quadro econocircmico-social muito mais multifacetado do que alguns vieses querem nos fazer crer6

As mulheres e sua Histoacuteria

Nas uacuteltimas deacutecadas temos observado sistemaacuteticos estudos sobre a atividade das mulheres na economia romana nos quais satildeo evidenciados seus papeis como forccedila de trabalho ou mesmo como empreendedoras Esta nova historiografia ao abordar as relaccedilotildees entre os sexos como resultado de uma

4 A misoginia dos autores da Antiguidade eacute flagrante e salta aos olhos Um bom exemplo disto eacute Taacutecito As mulheres descritas nos Anais de Taacutecito foram dissecadas remontadas e analisadas a partir de perspectivas psicoloacutegicas literaacuterias e ateacute dramaacuteticas Embora suas caracterizaccedilotildees sejam repletas de elementos retoacutericos em algumas ocasiotildees o autor retratou as mulheres como pessoas obcecadas pelo poder Ao referir-se agrave Agripina matildee de Nero fica patente sua fixaccedilatildeo no estereoacutetipo da dux femina e seu temor da influecircncia feminina sobre os homens - que ele considerava maligna ndash e seu alerta quanto aos ldquoperigosrdquo do abuso de poder por parte das mulheres (LrsquoHOIR 1994 McHUGH 2012 MELLOR 2010 p 131) Natildeo vamos nos aprofundar neste tema pois a noacutes interessa para o momento a atuaccedilatildeo econocircmica da mulher romana de classe baixa e meacutedia

5 A epigrafia representa portanto um manancial insubstituiacutevel Conforme aponta Encarnaccedilatildeo ldquopouco saberiacuteamos da organizaccedilatildeo romana na Peniacutensula Ibeacuterica se natildeo tiveacutessemos os documentos epigraacuteficosrdquo (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

6 O tema da economia na Antiguidade continua sendo perpassado por conflitantes visotildees acerca das rupturas e continuidades com o mundo moderno evidenciado pela polecircmica entre ldquoprimitivistasrdquo e ldquomodernistasrdquo Inicialmente conhecido como ldquoBuumlcher-Meyer Controversyrdquo este debate se encontra estigmatizado por incorrer em variaccedilotildees de uma mesma temaacutetica Seus principais artiacutefices satildeo Weber Rostovtzeff Polanyi com especial destaque para as teorias minimalistas de Moses Finley A controveacutersia eacute antiga mas estaacute distante de seu esgotamento (DUPRAT 2015 p 16) O caminho mais seguro eacute o do meio (SALLER 2002 p 252 DUPRAT 2015 pp 23-51)

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construccedilatildeo social (RAGO 1995 p 80) modificou os meacutetodos e as perspectivas da histoacuteria tradicional7 tornando-a cada vez menos descritiva mais relacional e para muitos mais problematizada A rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade8

Eacute importante ressaltar que a noccedilatildeo de economia tratada nesta pesquisa pode estar mais proacutexima do conceito original de oikonomia do mundo antigo do que a do atual a etimologia grega traduziria este termo como ldquogestatildeo domeacutesticardquo noccedilatildeo complexa com diversas implicaccedilotildees9 Sua raiz estaacute no oikos unidade domeacutestica de produccedilatildeo na qual se baseava a polis grega e cujo modelo seraacute transmitido agrave Roma Assim sendo a economia greco-romana repousava sobre nuacutecleos domeacutesticos de produccedilatildeo10 onde a participaccedilatildeo das mulheres eacute evidente Neste sentido o oikos se configura como ceacutelula econocircmica baacutesica local onde se garante a subsistecircncia aleacutem de promover a reproduccedilatildeo humana Trata-se por conseguinte de uma unidade de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo em si mesma (MIROacuteN PEacuteREZ 2004 p 67 apud MEDINA QUINTANA 2014 pp 22-23)

No mais devemos elaborar uma abordagem holiacutestica de modo a contemplar o caraacuteter diverso das relaccedilotildees de gecircnero na Antiguidade Precisamos

7 Segundo Rago (1995 p 71) ldquoos historiadores do grupo dos Annales se preocuparam com as estruturas e os diferentes ritmos e temporalidades dos fenocircmenos histoacutericos privilegiando as longas permanecircncias mentais sociais geograacuteficas e etc que Braudel identificaria posteriormente como la longue dureacutee ou seja a longa duraccedilatildeo em detrimento das mudanccedilas sociaisrdquo Bengoochea Jove (1998 p 243) acrescenta que ldquoa historiografia acadecircmica tradicional centrava sua investigaccedilatildeo na experiecircncia histoacuterica do varatildeo (grifo meu) e quando abordava a participaccedilatildeo da mulher era sempre sob o vieacutes da santa regente reformadora ou estadista Nem a revista Annales (publicada desde 1929) nem a historiografia marxista embora tenha cunhado o enfoque metodoloacutegico da ldquoHistoacuteria totalrdquo se ocuparam da problemaacutetica da mulher a natildeo ser sob perspectivas tradicionaisrdquo

8 Bengoochea Jove (1998 p 243) potildee nestes termos concluindo que a invisibilidade da mulher adveio da proacutepria concepccedilatildeo androcecircntrica e eurocecircntrica da histoacuteria que selecionou os acontecimentos que julgava dignos de anaacutelise em detrimento de outros que relegou ao esquecimento

9 Resguardo-me assim da polecircmica acerca do emprego do termo ldquoeconomiardquo para descrever realidades do mundo antigo pois haacute o argumento ldquofiloloacutegicordquo de que nem a palavra nem o conceito remontam agrave Antiguidade mas a momentos posteriores e portanto estranhos agrave consciecircncia antiga Para maiores informaccedilotildees sobre o tema sugiro Juumlrgen Deininger (2012) Ciro Cardoso (2011) e Pedro Paulo Funari

10 A famiacutelia romana foi a principal unidade de produccedilatildeo reproduccedilatildeo consumo e transmissatildeo intergeracional de propriedade e conhecimentos que englobam a produccedilatildeo no mundo romano Esta declaraccedilatildeo aparentemente banal tem implicaccedilotildees de longo alcance Na antiguidade romana (bem como em outras sociedades preacute-industriais) a famiacutelia organizava o trabalho em fazendas familiares e em oficinas urbanas tomando decisotildees sobre como implementar os esforccedilos de homens mulheres e crianccedilas (SALLER 2011 p 116)

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ter em mente que os estudos claacutessicos por conta de seu caraacuteter transdisciplinar demandam o estudo da Histoacuteria Filologia Literatura Antropologia Sociologia Arqueologia Arquitetura Histoacuteria da Arte Geografia Metalurgia Biologia entre muitas outras Tais vieses estatildeo naturalmente abertos para uma abordagem dos temas sob uma oacutetica multicultural e pluralista Em uacuteltima anaacutelise a interdisciplinaridade seraacute a ferramenta decisiva as ciecircncias natildeo satildeo apenas auxiliares umas das outras elas se locupletam Afinal os dados materiais podem confirmar complementar ou mesmo contradizer as informaccedilotildees das fontes histoacutericas (FUNARI 2003 pp 85-86)

Mulheres romanas convenccedilotildees leis e exclusatildeo social

A exclusatildeo das mulheres da histoacuteria do trabalho na Antiguidade pode ser considerada uma omissatildeo intencional no registro de sua atuaccedilatildeo Portanto se o pesquisador natildeo estiver procurando os sinais do trabalho feminino nas fontes eacute evidente que ele natildeo vai encontraacute-los As fontes literaacuterias pouco ajudam a delinear a participaccedilatildeo das mulheres e eacute faacutecil compreender o porquecirc muitos dos ideais filosoacuteficos gregos foram incorporados ao modo de vida romano (ALFARO GINER 2009 p 15) Entre os gregos havia a percepccedilatildeo de que o trabalho diaacuterio alienava o indiviacuteduo e seria degradante Eles consideravam que os ofiacutecios manuais deformavam o corpo e o espiacuterito representava um castigo para os seres humanos um esforccedilo individual grave ou um dever penoso11

De tal forma que o trabalho diaacuterio sobretudo o manual era estigmatizado no mundo antigo e jamais obteve o status de atividade ldquodignificanterdquo que logrou alcanccedilar apoacutes o advento da moderna sociedade de consumo Segundo a loacutegica machista dos letrados escritores da Antiguidade o que conferia dignidade era a atividade fundiaacuteria participar da economia como um abastado proprietaacuterio de terras do sexo masculino e viver do trabalho de seus escravos dispondo de tempo livre para o oacutecio (otium) e assim poder refletir sobre causas mais elevadas envolvendo-se em atividades consideradas artisticamente valiosas ou iluminadoras (tais como a Retoacuterica a Literatura ou a Filosofia) Devido a este modo elitista de pensar o trabalho das pessoas comuns acabou sendo destituiacutedo de qualquer valor sobretudo o das mulheres uma vez que os escritores que contaram esta histoacuteria faziam parte desta elite e menosprezaram o peso econocircmico e social que suportaram as pessoas dos demais extratos da sociedade ou seja aqueles que precisavam trabalhar diariamente para viver ou seja a grande maioria da populaccedilatildeo

11 Cf XENOFONTE Oecon IV 2 VI 5 Cir V 3 47 ARISTOacuteTELES Poliacutetica III 5 3 IV 4 9 apoacutes ALFARO GINER 2009 p 16)

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Aqui entendido como um discurso de poder este ideal greco-romano sustentava tambeacutem que homens e mulheres deveriam viver em esferas separadas O domiacutenio puacuteblico seria prerrogativa masculina enquanto que a mulher permanecia na privacidade da esfera domeacutestica Por implicaccedilatildeo o direito de engajar-se abertamente nas artes artesanato e o comeacutercio seria teoricamente reservado aos homens12 A disseminaccedilatildeo deste ldquoidealrdquo eacute predominante nas fontes literaacuterias e haacute uma pecha elitista fortemente ligada a ele (GROEN-VALLINGA 2013 p 295) Para a elite a atuaccedilatildeo da mulher estava limitada agrave esfera da famiacutelia e da household13 a casa por excelecircncia da Antiguidade aqui entendida como unidade de produccedilatildeo o que pressupunha certa autossuficiecircncia alimentar bem como a confecccedilatildeo das vestimentas num mundo onde inexistiam as facilidades proporcionadas pelas modernas redes varejistas que dispomos atualmente Tal configuraccedilatildeo econocircmica e social determinou que

A mulher tinha um papel especiacutefico e determinado no seio da casa e portanto na cidade A famiacutelia patriarcal impocircs limites sociais que as circunscreveram ao interior do lugar Os objetivos ter certeza sobre a legitimidade da descendecircncia e usar a mulher como moeda de troca nos assuntos da famiacutelia Uma ampla seacuterie de teorias para obter a submissatildeo da mulher a esses ldquopapeis marcadosrdquo foram desenvolvendo um corpo doutrinaacuterio Partindo da base da maior forccedila masculina e da debilidade da mulher se argumenta sua diferente capacidade para a realizaccedilatildeo das vaacuterias atividades (ALFARO GINER 2009 p 16)

A fraqueza fiacutesica atribuiacuteda agraves mulheres14 intimamente relacionada com seu papel bioloacutegico como matildee foi e continua sendo uma grande

12 Na Antiguidade a noccedilatildeo que emergiu a partir dos escritos de Aristoacuteteles Xenofonte e Columela era de que a divisatildeo baacutesica do trabalho confinava ldquonaturalmenterdquo as mulheres aos ambientes fechados ocupadas em tarefas domeacutesticas enquanto o papel dos homens era adquirir fora da casa os recursos necessaacuterios segundo essas fontes literaacuterias o trabalho feminino fora da casa seria uma anomalia (FOXHALL 1989 apud BERG 2016 p 51) Este eacute um discurso de elite e nossa pesquisa busca contestar tal noccedilatildeo apoiada pela Arqueologia e por uma nova abordagem multidisciplinar

13 A concepccedilatildeo de famiacutelia na sociedade greco-romana era muito diferente da moderna O latim claacutessico natildeo nos fornece termo ou expressatildeo para o que hoje compreendemos como ldquofamiacuteliardquo na cultura ocidental contemporacircnea tampouco para o que entendemos como constitutivo do nuacutecleo parental ou familiar - matildee pai filhos A centralidade que esse nuacutecleo parental desempenhava no entanto na sociedade romana onde um vasto nuacutemero de escravos e clientes pertencia e compunha aquilo que eles chamavam de famiacutelia (um ramo da gens da linhagem patrilinear) tem sido assunto de debates e estudos normalmente envolvendo a fusatildeo ou a distinccedilatildeo entre os sentidos que damos hodiernamente agrave noccedilatildeo de famiacutelia (como family) e o que os angloacutefonos entendem como ldquohouseholdldquo (TAMANINI 2014 p 215)

14 Para uma anaacutelise pormenorizada sobre o tema vide Grubbs (2002)

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inibiccedilatildeo para sua participaccedilatildeo no mercado de trabalho As mulheres foram naturalmente predestinadas a cuidar das crianccedilas e muitas vezes ficaram em casa para fazecirc-lo como consequecircncia a gestatildeo da famiacutelia tambeacutem se tornou sua responsabilidade (GROEN-VALLINGA 2013 p 297) De tal modo que as mulheres normalmente eram exaltadas pelo seu papel familiar por sua performance em prol da sobrevivecircncia da prole e natildeo por sua produccedilatildeo econocircmica Consideremos o famoso epitaacutefio de Amymone

Hic sita est Amymone Marci optima et pulcherrima lanifica pia pudica frugi casta domiseda

Aqui jaz enterrada Amymone (esposa) de Marcus melhor e mais bonita fiandeira obediente modesta frugal casta e dona-de-casa (CIL 6 11602)15

Natildeo eacute difiacutecil perceber que a capacidade reprodutora da mulher delineou esta convenccedilatildeo social que conhecemos bem a mulher ideal deve ser fiel boa matildee e dona de casa exemplar a perfeita matrona Contudo a desigualdade de gecircnero na economia natildeo eacute imposta somente atraveacutes de uma divisatildeo de trabalho desfavoraacutevel16 Ela decorre por conta da elaboraccedilatildeo de leis que tambeacutem instituem direitos desfavoraacuteveis Na legislaccedilatildeo greco-romana os direitos das mulheres de possuir comprar e vender legar e receber legados foram severamente restritos Ademais uma ampla gama de convenccedilotildees culturais e ideoloacutegicas restringiu o progresso econocircmico das mulheres (BERG 2016 p 50)

Em iniacutecios do periacuteodo republicano as mulheres tiveram reduzidas oportunidades para administrar seus proacuteprios negoacutecios Todos os membros femininos da famiacutelia romana se encontravam sob a autoridade legal do paterfamilias17 o chefe masculino da famiacutelia (em geral o progenitor) que tinha

15 Traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Groen-Vallinga (2013 p 297) versatildeo para o portuguecircs minha

16 Tanto as leis quanto a divisatildeo do trabalho foram altamente desfavoraacuteveis agraves mulheres na Antiguidade A divisatildeo do trabalho continua bastante desigual na maioria das sociedades de modo que algumas ocupaccedilotildees ainda satildeo consideradas exclusivamente femininas ou masculinas A quantidade eou a qualidade de qualquer tipo de matildeo de obra atribuiacuteda a um determinado indiviacuteduo tambeacutem foi naturalmente fortemente ditado por fatores diversos aleacutem do gecircnero tais como status social classe riqueza idade cidadania educaccedilatildeo ambiente urbano ou rural (BERG 2016 p 50)

17 Alguns autores suspeitam que a autoridade do paterfamilias romano natildeo era tatildeo absolu-ta quanto se apregoa e pode obscurecer nossa perspectiva da realidade laquoeacute importante olhar cuidadosamente para a forccedila da convenccedilatildeo que provavelmente atenuou o exerciacutecio da autoridade paterna dando agrave matildee muitos direitos efetivos que tinham pouca ou nenhuma base na lei formalraquo (DIXON 1988 p 43)

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prerrogativa em todos os tipos de accedilotildees legais dentre as quais comprar vender contrair diacutevidas intermediar transaccedilotildees etc O poder (potestas) do paterfamilias alcanccedilava todos os membros desta grande famiacutelia romana esposa filhos escravos e outros membros do clatilde natildeo necessariamente ligados por laccedilos de sangue Se uma filha se casasse com o parceiro sob o regime sine manu18 isso significava que ela permanecia sob as ordens de seu pai Caso contraacuterio ela passava para a ldquomatildeordquo (in manu) de seu marido Em alguns casos quando o marido natildeo detinha direitos plenos a mulher podia ficar sob a potestas do seu sogro (BERDOWSKI 2007 p 285)

Em ambos os casos as mulheres natildeo administravam seus proacuteprios bens e sequer tinham direito agrave propriedade conjunta com seus cocircnjuges No entanto se uma mulher permanecia sob a potestas do paterfamilias ela poderia ganhar uma independecircncia relativa apoacutes a morte do pai tornando-se sui iuris19 Este regime juriacutedico eacute apontado por alguns estudiosos como aquele que concedia mais liberdade agraves mulheres embora esta ainda tivesse que estar sob alguma forma de ldquotutela para mulheresrdquo (tutela mulierum)20 Durante a Repuacuteblica o tutor era geralmente algueacutem da famiacutelia patrilinear por exemplo um tio paterno (GRUBBS 2002 p 24) Seu papel era realizar algumas atividades legais e negoacutecios em nome da mulher tais como um testamento transacionar algum tipo de propriedade (res mancipii) ou emancipar escravos etc Berdowski (2007 p 285) defende que este instrumento flexibilizava o poder masculino sobre a mulher jaacute que nem sempre o tutor convivia no mesmo espaccedilo domeacutestico que a mulher e muito provavelmente seu controle natildeo seria tatildeo efetivo assim De tal forma que a partir do final da Repuacuteblica cada vez menos mulheres optaram por regimes que colocavam suas propriedades e a si proacuteprias sob o jugo do marido - ao inveacutes disso elas se tornavam sui iuris apoacutes a morte de seus

18 Segundo Pomeroy (1987 p 177) e Laacutezaro Guillamoacuten (2003 p 157) a partir do seacutec II a C a maioria dos matrimocircnios eram celebrados sob o regime sine manu o que na praacutetica originou um regime de separaccedilatildeo de bens que favoreceu a independecircncia econocircmica da mulher

19 As fontes arqueoloacutegicas indicam que o trabalho tecircxtil das filhas e escravas excediam a esfera domeacutestica embora elas fossem dependentes do pai ou do dono do empreendimento Natildeo eacute difiacutecil imaginar que este contexto pudesse contribuir para que filhas ou escravas pudessem alcanccedilar respectivamente o status de sui iuris ou mesmo de libertas e como tais pudessem seguir dedicando-se profissionalmente ao ofiacutecio ao qual se especializaram (LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 p 175)

20 Parece que o propoacutesito original da instituiccedilatildeo tutela mulierum era salvaguardar a heranccedila paterna da mulher para usufruto dos familiares masculinos do pai que por sua vez seriam seus herdeiros assim que ela morresse (GRUBBS 2002 p 24) Pelo visto sempre foi muito importante que o dinheiro e as propriedades ficassem sob a guarda da famiacutelia originaacuteria o que acabou por influenciar fortemente na evoluccedilatildeo das leis de heranccedila

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pais e adquiriam um tutor ou tutores (DIXON 1988 p 43) Ou seja havia espaccedilo para resistecircncia ainda que fosse velada

Entre o final da Repuacuteblica e iniacutecios do Principado a instituiccedilatildeo da tutela mulierum foi diminuindo em relevacircncia Em 9 d C Otaacutevio Augusto introduziu a ius (trium) liberorum uma lei que liberava do jugo da tutela mulerium as mulheres livres que tivessem parido trecircs filhos e para as libertas quatro (GRUBBS 2002 p 20) O imperador Claudio (41-54 d C) por sua vez aboliu a tutela para as mulheres nascidas livres (BERDOWSKI 2007 p 286)

O direito romano tardio21 seguiu esta loacutegica progressista com o reconhecimento legal dos direitos de heranccedila da matildee e mesmo dos filhos ilegiacutetimos tendecircncia jaacute observada na legislaccedilatildeo do segundo seacuteculo Muitas leis imperiais tardias foram dedicadas agrave bona materna O direito do pai sobre a bona materna foi sendo modificado de forma a que o marido detivesse apenas o usufruto (uso e posse em vida mas natildeo a propriedade absoluta ou o direito de vender e dispor) dos bens que seus filhos viessem a receber pelo lado de sua matildee (GRUBBS 2002 p 220)

Enfim haacute diversas evidecircncias de que a instituiccedilatildeo da tutela mulerium natildeo teria sido determinante para cercear a iniciativa nem a independecircncia econocircmica das mulheres deixando espaccedilo para aquelas que demonstraram habilidades comerciais e foram empreendedoras na antiga Roma (BERG 2016 DIXON 1988 amp 1992 GRUBBS 2002 LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 BERDOWSKI 2007 amp 2008) Havia espaccedilo para promoccedilatildeo social no mundo romano e muitas mulheres estavam no jogo num contexto pautado por ampla diversidade E a Arqueologia pode nos ajudar a comprovar Observem a figura nordm 1 abaixo

21 A fonte mais importante para o conhecimento do direito romano ldquoclaacutessicordquo eacute o Digesto de Justiniano que compreende cinquenta livros selecionados a partir das volumosas contribuiccedilotildees dos mais influentes juristas romanos atraveacutes dos tempos O Digesto foi compilado sob as ordens do imperador Justiniano do seacuteculo VI (reinou entre 527-565 d C) ou seja em periacuteodo bastante posterior ao apreciado neste trabalho mas serve para indicar uma tendecircncia evolutiva Justiniano instruiu sua equipe de juristas a ler milhares de paacuteginas de textos legais claacutessicos e sintetizaacute-los em um trabalho mais exiacuteguo preservando apenas o que ainda era vaacutelido e uacutetil naquele momento histoacuterico Tal medida permitiu que os estudiosos modernos reconstruiacutessem - ainda que de forma indireta e limitada - o conteuacutedo das obras originais que atualmente estatildeo perdidas (GRUBBS 2010 p 1)

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Figura 1 Relevo funeraacuterio em maacutermore de um accedilougueiro 2 d C Fonte Foto Elke Estel Skulpturensammlung Staatliche Kunstsammlungen Dresden Germany Cor-tesia de Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz BerlinStaatliche Kunstsammlungen DresdenElke EstelArt Resource NY In KNAPP 2013 p 75

Acima relevo funeraacuterio do seacutec 2 d C com representaccedilatildeo de cena cotidiana em um accedilougue em Roma indicando de modo claro o trabalho cooperativo o homem fatia as carnes enquanto a mulher toma conta dos livros Observem agora a figura 2

Figura 2 Escultura em relevo ca2 d C Ostia Museo Ostiense Ostia Antica Itaacutelia Inv 134 Fonte Foto Schwanke (Neg 19803236) Cortesia The Deutsches Archaumlologisches Institut em

Roma In KNAPP 2013 p 75

Temos acima uma escultura em relevo (ca 2 d c) com representaccedilatildeo de cena cotidiana no mercado duas mulheres trabalhando em uma loja atendendo os clientes na compra de gecircneros alimentiacutecios Outra atividade profissional desempenhada por mulheres pode ser depreendida a partir da

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figura 3 abaixo onde apresento mais uma representaccedilatildeo de cena cotidiana no comeacutercio da cidade monumento funeraacuterio datado entre o 1 e o 2 seacutec d C dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia que exercia uma profissatildeo que eacute considerada masculina ateacute os dias atuais Seraacute que as melhores fabricantes de sapatos em tempos romanos foram as mulheres A saber

Figura 3 monumento funeraacuterio dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia data-do entre o seacutec 1 a 2 d C Fonte (CIL 144698 apud LOacuteVEN 2016 p 210)

Enfim as figuras 1 2 e 3 representam mulheres em diferentes atuaccedilotildees profissionais e reforccedilam as evidecircncias que elas faziam parte do mercado de trabalho no mundo romano Este tipo de trabalho escultoacuterio era encomendado por interessados de diversos niacuteveis sociais e natildeo haacute motivos para supor que os artistas representassem cenas fictiacutecias ou imaginaacuterias

A discriminaccedilatildeo de gecircnero sem duacutevida circunscreveu a realidade do mercado de trabalho urbano romano mas isso natildeo deve nos cegar para as variadas e vitais contribuiccedilotildees das mulheres romanas para a economia

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Dispomos de documentaccedilatildeo arqueoloacutegica comprovando que as mulheres tinham ocupaccedilotildees muito amplas que vatildeo desde sapateiras ateacute escravas que fizeram da fiaccedilatildeo (quasillaria) suas vidsa Eacute necessaacuterio explicar ao inveacutes de justificar a ocorrecircncia regular de mulheres romanas que natildeo coincidem perfeitamente com a imagem da matrona domeacutestica (GROEN-VALLINGA 2013 p 296)

O trabalho feminino e a epigrafia

A epigrafia se apresenta como uma fonte direta de informaccedilotildees pois foram pessoas de diferentes estatutos juriacutedicos que mandaram realizar as inscriccedilotildees que tomando-se as devidas precauccedilotildees podem oferecer dados capazes de apoiar algumas conclusotildees vaacutelidas (MEDINA QUINTANA 2014 p 22) Portanto essa ciecircncia tem sido utilizada para elucidar aspectos da economia romana e para evidenciar os papeacuteis econocircmicos das mulheres Cabe aqui ressaltar o trabalho inovador que foi desenvolvido por Susan Treggiari que publicou trecircs artigos sobre as ocupaccedilotildees femininas (1975 1976 e 1979) baseados nas evidecircncias epigraacuteficas da cidade de Roma no periacuteodo imperial revelando uma tendecircncia de grande interesse pela histoacuteria das mulheres no final do seacutec XX Seu estudo recuperou imensa quantidade de dados acerca das ocupaccedilotildees profissionais femininas existentes na casa imperial e equipes domeacutesticas de famiacutelias abastadas na cidade de Roma bem como entre os setores artesanais e comerciais da cidade A pesquisa alcanccedilou vaacuterias conclusotildees importantes sobre empregos masculinos e femininos e representa uma contribuiccedilatildeo valiosa para o tema Infelizmente natildeo inspirou pesquisas subsequentes capazes de oferecer uma continuaccedilatildeo adequada em relaccedilatildeo aos temas que ela desenvolveu Portanto o trabalho de Treggiari continua atual e representa um formidaacutevel ponto de partida para novos estudos sobre os papeacuteis ocupacionais das mulheres romanas (LOVEacuteN 2016 p 201)

O principal corpus disponiacutevel para a Peniacutensula Ibeacuterica eacute o CIL - Corpus Inscriptionum Latinarum a primeira grande coleccedilatildeo epigraacutefica iniciada por Theacuteodor Mommsen em meados do seacuteculo XIX haacute tambeacutem diversas revistas especializadas sobre epigrafiacutea tais como LrsquoAnneacutee Epigraphique Hispania Epigraphica ou Hispania Antiqua Epigraphica que tecircm sido atualizadas a partir da incorporaccedilatildeo de novas inscriccedilotildees ou de renovadas interpretaccedilotildees de epiacutegrafes jaacute conhecidas Haacute tambeacutem recompilaccedilotildees de epiacutegrafes romanas localizadas nas proviacutencias linha que Geacuteza Alfoumlldy iniciou em 1975 com as inscriccedilotildees de Tarraco (GOROSTIDI 2013 pp 135-143 MEDINA QUINTANA 2014 p 22)

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As mulheres fiandeiras

Dentre os trabalhos tipicamente relegados agraves mulheres um se destaca o ofiacutecio de fiar latilde ou lanificium siacutembolo da feminilidade da bondade e da castidade Uma das imagens ideais de feminilidade no mundo antigo eacute representado por uma mulher fiando Ao longo da histoacuteria o imaginaacuterio patriarcal se apropriou desta icocircnica atividade para apresentar como deveria ser o comportamento ideal de toda mulher respeitaacutevel quieta trabalhadora e pudica - o que nos remete agrave imagem da fiel Peneacutelope sempre ocupada com seu tear e aguardando o retorno de Odisseu seu marido A figura das fiandeiras se encontra bastante representada na iconografia greco-romana de tal modo que a boa esposa dos ideais greco-romanos conseguiu transcender esses mundos e permaneceu viva no imaginaacuterio burguecircs Talvez por essa razatildeo vaacuterios estudos exploraram a relaccedilatildeo entre as mulheres e o mundo tecircxtil seja sob o vieacutes simboacutelico ou instrumental O fuso e roca satildeo portanto dois elementos associados com o feminino sendo apresentadas sob as mais diversas representaccedilotildees peccedilas de teatro objetos da vida cotidiana (vasos acircnforas espelhos) enxovais mosaicos pinturas parietais estelas funeraacuterias (MEDINA QUINTANA 2009 p 52) Vejam abaixo uma das representaccedilotildees de Peneacutelope em um vaso de figuras negras do seacutec V a C

Figura 4 Peneacutelope em seu tear assistida por Telecircmaco representado em um skyphos do seacuteculo V a C Fonte lthttpwwwperseustuftseduhopperimageimg=Perseusimage1993010667gt Acesso em 26122017

Diante destas questotildees podemos sugerir que a produccedilatildeo de tecidos rompia as barreiras sociais e unia todas as romanas uma vez que esta atividade representa um ldquofiordquo condutor entre as matronas de famiacutelia de alta posiccedilatildeo

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econocircmica suas escravas e as mulheres livres de baixa condiccedilatildeo social que desempenhavam a atividade para obter seu sustento Cada grupo feminino mantinha relaccedilatildeo muito peculiar com esta atividade com certeza muito diferentes entre si No caso das aristocratas consistia mais numa representaccedilatildeo simboacutelica - especialmente durante os finais da Repuacuteblica (133-31 a C) e o Principado (31 a C - 284 d C) - enquanto que para as escravas e as mulheres livres de condiccedilatildeo humilde representou um ofiacutecio verdadeiro (idem 2009 53) Presume-se que uma das razotildees para que este trabalho fosse tatildeo difundido na Antiguidade se deve por ter alccedilado o status de uacuteltimo recurso de sobrevivecircncia das mulheres pobres livres detendo a mesma importacircncia que a costura teve para a histoacuteria do trabalho feminino no seacuteculo XIX (TREGGIARI 1979 p 69)

Fulvia Lintearia em Tarraco

Para o caso da Hispacircnia romana Cartago Nova e Tarraco foram centros portuaacuterios artesanais cosmopolitas intimamente ligados agrave Roma e ldquoconectadosrdquo com as uacuteltimas tendecircncias contando com elevado percentual populacional de cidadatildeos fluentes em latim tais como soldados membros da administraccedilatildeo provincial negociantes e comerciantes Satildeo oriundas destas duas cidades as mais conhecidas epiacutegrafes latinas em pedra na Hispacircnia para o periacuteodo Republicano muitas delas estatildeo ligadas agrave esfera civil e religiosa fazendo parte de grandes complexos sepulcrais alguns com esculturas de togados sinalizando a ligaccedilatildeo entre epigrafia e monumentalizaccedilatildeo enquanto outras refletem suas crenccedilas religiosas Com frequecircncia satildeo epitaacutefios e nestas duas cidades a epigrafia latina se apresenta como um trabalho sobretudo encomendado por particulares (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 42-43)

Tarraco22 foi uma das cidades mais prestigiadas da Antiguidade Laacute podemos identificar um grupo de mulheres e homens membros da elite social da eacutepoca graccedilas agrave epigrafia preservada (DOMINGUEZ ARRANZ GREGORIO NAVARRO 2014 p 253) Felizmente nos tempos antigos era comum utilizar a pedra como suporte para inscriccedilatildeo de textos o que permitiu que recuperaacutessemos parte da histoacuteria desses povos Vale lembrar que este conjunto de epiacutegrafes conservadas representa iacutenfima fraccedilatildeo da produccedilatildeo escrita destas sociedades jaacute que os suportes da escrita que eles costumavam utilizar eram materiais mais baratos de origem mineral vegetal e animal

22 ldquoDentre as cidades da Hispacircnia romana a Colonia Iulia Urbs Triumphalis Tarraco eacute aquela com o mais rico patrimocircnio epigraacutefico () Eacute inestimaacutevel para o estudo da histoacuteria da cidade e do mundo em geral bem como a histoacuteria social (ALFOumlLDY apud GOROSTIDI 2013 p 135)

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tais como o pergaminho o papiro tabuletas de madeira placas de argila ou cera peles e etc Mas a natureza pereciacutevel destes materiais os condenou ao desaparecimento salvo rariacutessimas exceccedilotildees como as tabuletas encontradas em Vindolanda ou na Campacircnia (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 21-22)

Como jaacute aludido muito frequentemente as inscriccedilotildees funeraacuterias aludem ao trabalho em latilde que a defunta realizava (lanifica) Mas este universo era mais complexo e diversificado as artesatildes se especializavam de acordo com a fibra empregada Por exemplo a especialista em fiar o linho23 eacute a lintearia Beltraacuten Lloris e Estaraacuten Tolosa (2011 18) vatildeo aleacutem e natildeo soacute confirmam que a palavra lintearia se refere agrave profissatildeo de tecedora de linho bem como que esta ocupaccedilatildeo sem duacutevida ocorria na cidade de Tarraco haja visto que esta era conhecida pelo cultivo da planta que produz esta fibra como jaacute foi aludido por Pliacutenio o Velho (PLIacuteNIO Hist Nat XIX 10) Pois bem algueacutem em Tarraco dedicou uma epiacutegrafe para Fulvia lintearia (datada por volta da mudanccedila de Era inscriccedilatildeo hoje desaparecida) Medina Quintana (2009 p 61) esclarece que lintearia significa ldquovendedora de lenccedilosrdquo Treggiari (1979 p 70) acrescenta que provavelmente ela seria uma vendedora de roupas e que ela proacutepria deveria fiar o tecido para produzir as peccedilas que vendia

Devo ressaltar mais uma vez o trabalho de Geacuteza Alfoumlldy (1935ndash2011) apontado como o mais proeminente cientista no campo da epigrafia latina claacutessica e um dos principais especialistas no campo da Histoacuteria Social do mundo romano - que dedicou parte de sua trajetoacuteria acadecircmica ao levantamento epigraacutefico da cidade de Tarraco Em seguida dispomos a inscriccedilatildeo perdida tal como foi registrada pelo ceacutelebre professor

Fulvia lintearia

(CIL 02 04318a apud ALFOumlLDY 1975 p 1)

Abaixo a figura 5 sugere como deveria ser a aparecircncia de uma loja de tecidos no mundo romano

23 O linho proveacutem de uma planta herbaacutecea que chega a atingir um metro de altura e pertence agrave famiacutelia das linaacuteceas Abrange um certo nuacutemero de subespeacutecies reunidas pelos botacircnicos sob o nome de Linum Usitatissimum Fonte Wikipeacutedia

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Figura 5 Estabelecimento de comeacutercio de tecidos Florenccedila Itaacutelia I d C Fonte (GLAD sd 2)

O casal enquanto unidade de produccedilatildeo

Nosso objetivo neste trabalho foi traccedilar um panorama geral de como podemos alcanccedilar a histoacuteria econocircmica das mulheres romanas atraveacutes da Arqueologia e de uma abordagem multidisciplinar adotando uma postura acadecircmica pautada pela equidade preocupada com a igualdade de gecircnero - obviamente sem a pretensatildeo de esgotar o tema Esta pesquisa pretende conscientizar que apesar das restriccedilotildees legais ideoloacutegicas e culturais pelas quais as mulheres passaram e continuam passando elas sempre desempenharam papel primordial na economia de todos os tempos Podemos resgatar suas trajetoacuterias natildeo somente como forccedila de trabalho como tambeacutem podemos destacar sua atuaccedilatildeo empreendedora lutando empenhadas em fazer sobreviver a famiacutelia e gerar sua descendecircncia aleacutem da de seu marido perpetuando um sistema As mulheres romanas se envolveram com certeza em atividades comerciais e negoacutecios em geral decerto natildeo de forma equivalente mas similar aos homens Mas natildeo soacute atuaram sempre como as inseparaacuteveis companheiras configurando-se como a outra variaacutevel da mesma equaccedilatildeo parte indissociaacutevel do casal enquanto unidade de produccedilatildeo Para os homens do povo as mulheres representavam uma oportunidade de viver mais e melhor de trabalhar e prosperar de aumentar sua qualidade de vida e garantir suas chances de transmitir seus genes adiante cumprindo o papel bioloacutegico original de ambos os sexos A uniatildeo faz a forccedila A ideia eacute antiga mas eficiente Para

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a iconografia romana do periacuteodo o gesto do dextrarum iunctio ndash o famoso aperto de matildeos direitas ndash quando realizada entre um homem e uma mulher geralmente retrata um casal legalmente casado representando um siacutembolo da uniatildeo pelo bem comum que visa instintivamente agrave perpetuaccedilatildeo da espeacutecie Tal como demonstra a figura 6 abaixo

Figura 6 Placa funeraacuteria do lanarius de C Cafurnius Antonchus e de sua esposa Veturia Deuteria em Roma ca1 d C Fonte (CIL 69489 apud LOacuteVEN 2016 p 213)

Em suma para prosperar de forma efetiva o homem precisa da mulher provavelmente mais do que a mulher precisa do homem Mas esta polecircmica fica para pesquisas posteriores

Trabalho feminino hoje

Desde o Periacuteodo Claacutessico ateacute bem recentemente o mundo do trabalho feminino seguiu sem grandes modificaccedilotildees durante milecircnios ateacute que as revoluccedilotildees do seacuteculo XIX promoveram as mudanccedilas necessaacuterias para que novos sistemas educativos permitissem o acesso da mulher agrave cultura promovendo sua atuaccedilatildeo fora de casa e sua incorporaccedilatildeo agrave toda uma seacuterie de trabalhos que num primeiro momento representaram um mero prolongamento das tarefas desempenhadas no acircmbito domeacutestico ateacute que com o tempo foram ampliando sua participaccedilatildeo nos setores reconhecidamente produtivos (BENGOOCHEA JOVE 1998 p 242)

A partir da consolidaccedilatildeo do sistema capitalista do advento do movimento sufragista e da luta pelo direito agrave representaccedilatildeo poliacutetica a evoluccedilatildeo

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da legislaccedilatildeo no que se refere aos direitos das mulheres evoluiu respondendo aos novos anseios da sociedade Apesar destas conquistas a desigualdade e exploraccedilotildees continuaram a ocorrer Natildeo obstante apoacutes as 1ordf e 2ordf Guerras Mundiais as mulheres tiveram a efetiva chance de ocupar seu espaccedilo no mercado de trabalho e desde entatildeo elas tecircm feito a diferenccedila No que se refere ao mundo ocidental estatiacutesticas apontam que as mulheres estatildeo avanccedilando em todas as aacutereas Elas respondem pela maior parte das vagas nas universidades Estatildeo conseguindo emprego com mais facilidade e seus rendimentos estatildeo crescendo em ritmo mais acelerado Contudo mesmo apoacutes tanta luta ainda natildeo alcanccedilaram posiccedilatildeo de igualdade perante os homens haja visto que continuam ocorrendo discriminaccedilotildees asseacutedios violecircncias e preconceitos que podem ser exemplificadas pela desigualdade salarial que persiste entre homens e mulheres na ordem de 30 em meacutedia Como se jaacute natildeo bastasse a representatividade das mulheres na poliacutetica e seu acesso aos cargos mais elevados do mundo corporativo e do serviccedilo puacuteblico continuam deixando muito a desejar

Isto posto fica claro de que as mulheres jaacute caminharam muito mas ainda haacute um longo caminho pela frente Contudo elas contam agora com o apoio de muitos homens que satildeo aderentes agrave sua causa e de vieses interpretativos que privilegiam a igualdade Eacute um processo que natildeo tem retorno Embora estejamos permanentemente agraves voltas com as reaccedilotildees do conservadorismo seraacute como jaacute o dissemos a rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade (BENGOOCHEA JOVE1998 p 243)

Contudo para continuarmos caminhando na direccedilatildeo da justiccedila sempre vamos precisar de mulheres que natildeo se conformam com as imposiccedilotildees da sociedade que sejam transgressoras ousadas valentes excecircntricas e fujam das normas recusem casamentos tranquilos e abram matildeo da paz do lar domesticado para descobrirem outros rumos ou para encontrarem-se consigo mesmas produzindo novos modos de estar no mundo A leitura feminista do passado permite um fortalecimento de si e das outras no presente (RAGO 2013 p 311)

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Abstract Much ink has been spilled about gender in the Roman world Nonetheless something seems to be lacking the part that is up to the women in economic production of this society Past present or future women constitute at least half the population around the globe an indispensable working force either in ancient or modern times We know that since the beginning of the ages most women were forced to work hard in tedious and repetitive tasks arbitrarily imposed The activities used to start as early as childhood and it had never been properly recognized The aim of this work is therefore to recover the role of the womenrsquos work in the economies of Roman Hispania with special attention to the case of Tarraco starting from the end of the Roman Republic until the Principate Period raising local and elsewhere evidence to show the position women deserve in the economic production of Roman societyKeywords Classical studies Roman economy Womenrsquos work Gender studies Postmodernism

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Normas de Publicaccedilatildeo

Normas de Publicaccedilatildeo

A Heacutelade eacute estruturada em trecircs seccedilotildees

a) Dossiecircs

b) Artigos de tema livre

c) Resenhas

Os dossiecircs satildeo propostos pelo Conselho Editorial que pode tanto convidar especialistas no tema quanto receber contribuiccedilotildees de autores interessados As chamadas satildeo puacuteblicas e feitas a cada ediccedilatildeo da revista Os artigos de tema livre podem abordar questotildees diversas desde que versem sobre a Antiguidade Seratildeo aceitas resenhas de livros ou coletacircneas com temaacuteticas associadas agrave Antiguidade que tenham sido publicados haacute pelo menos trecircs anos (considerando a data de envio da resenha)

Instruccedilotildees aos autores

- Exige-se que os autores tenham pelo menos o tiacutetulo de mestre Alunos de graduaccedilatildeo poderatildeo publicar artigos desde que em coautoria com doutores

- Todos os artigos satildeo avaliados por pelo menos dois pareceristas ad-hoc externos e anocircnimos no sistema de avaliaccedilatildeo por pares (duplo-cego) A publicaccedilatildeo depende tanto de sua aprovaccedilatildeo quanto da decisatildeo final do Conselho Editorial que pode recusar caso natildeo julgue adequado para compor a ediccedilatildeo

- Seratildeo aceitos artigos ineacuteditos escritos em portuguecircs francecircs inglecircs espanhol e italiano

- Os autores satildeo responsaacuteveis pela revisatildeo geral do texto

- Todas as propostas devem ser enviadas exclusivamente para o e-mail revistaheladegmailcom

Formato dos artigos

Todos os artigos deveratildeo ser enviados em formato Word (doc ou docx) margens 3 cm A4 fonte Times New Roman 12 pt Os tiacutetulos devem ser centralizados em caixa alta e negrito Abaixo do tiacutetulo agrave direita em itaacutelico e caixa normal deve constar o nome do autor com uma nota de rodapeacute indicando a maior titulaccedilatildeo a filiaccedilatildeo institucional e um e-mail para contato Em seguida

os resumos e palavras-chave em portuguecircs e liacutengua estrangeira alinhadas agrave esquerda No corpo do artigo todas as citaccedilotildees com mais de trecircs linhas devem ser destacadas As citaccedilotildees devem ser feitas da seguinte forma

- Se forem indicaccedilotildees bibliograacuteficas devem ser inseridas no corpo do texto entre parecircnteses Em caso de produccedilatildeo historiograacutefica deveraacute ser feita com sobrenome do autor ano e paacuteginas Exemplo (FINLEY 2013 p 71)

- Para citaccedilatildeo de textos antigos a indicaccedilatildeo seraacute feita com o nome do autor tiacutetulo da obra em negrito cantocapiacutetulo e passagem Exemplo (HOMERO Iliacuteada III 345)

- No caso de notas explicativas numerar e remeter ao final do artigo

Apoacutes o uacuteltimo paraacutegrafo dos artigos devem constar as Referecircncias lis-tadas em ordem alfabeacutetica pelo sobrenome do autor seguindo as normas da ABNT (NBR 10520) como nos exemplos

Para livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Ed-itora ano

Ex FINLEY Moses I Economia e Sociedade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

Para capiacutetulo de livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do Artigo In SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Editora ano p

Ex THOMAS Rosalind Ethnicity Genealogy and Hellenism in Herodo-tus In MALKIN Irad Ancient Perceptions of Greek Ethnicity Washing-ton DC Harvard University Press 2001 p 213-234

Para artigos de perioacutedicos

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do artigo Tiacutetulo do Perioacutedico Cidade v n ano p

Ex CARDOSO Ciro Flamarion O Egito e o Antigo Oriente Proacuteximo na segunda metade do segundo milecircnio aC Heacutelade Niteroacutei v 1 n 1 2000 p 16-29

Em caso de utilizaccedilatildeo de fontes especiais (grego aacuterabe hieroacuteglifo etc) o autor deveraacute enviar uma coacutepia das mesmas Caso utilize imagens aleacutem de constarem no corpo do texto as mesmas deveratildeo ser enviadas separadamente em uma resoluccedilatildeo de 300 dpi

wwwheladeuffbr

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SUMAacuteRIO

EDITORIALHEacuteLADE PRIMEIRO TRIEcircNIO DA NOVA SEacuteRIE p 4Alexandre Santos de Moraes

ARTIGOS DE TEMA LIVRE

O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEMACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA p 9Talita Nunes Silva Gonccedilalves

GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTICAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLICA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES p 19Decircnis Renan Correcirca

MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDAD Y ETERNA MEMORIA p 36Julio Loacutepez Saco

ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO p 48Camila Alves Jourdan

A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTIGUIDADE p 59Renata Cardoso de Sousa

COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeOAS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacuteTICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA p 83Alexandre Santos de Moraes

A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTODOS PODERES PARENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS p 96Bruno DrsquoAmbros

TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES p 106Paulo Pires Duprates

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO p 130

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Editorial

Editorial

HEacuteLADE PRIMEIRO TRIEcircNIO DA NOVA SEacuteRIE

Alexandre Santos de Moraes1

Thaiacutes Rodrigues dos Santos2

Passaram-se trecircs anos desde 2015 quando decidimos pelo retorno da Heacutelade e estivemos diante de trecircs desafios interdependentes Em primeiro lugar nosso objetivo era resgatar o conteuacutedo da seacuterie original que por forccedila do tempo e das circunstacircncias encontrava-se bastante disperso e em parte inacessiacutevel Esse esforccedilo devolveu agrave comunidade acadecircmica um total de 48 artigos completamente reeditados Em segundo lugar em constacircncia com essa disposiccedilatildeo buscamos recuperar a histoacuteria da revista as iniciativas que caracterizaram sua seacuterie inicial e os princiacutepios editoriais da primeira revista eletrocircnica brasileira exclusivamente dedicada aos estudos da Antiguidade Finalmente em terceiro lugar concentramos nossas energias para consolidar a Heacutelade como um espaccedilo isonocircmico de publicaccedilatildeo amplo receptivo e democraacutetico aberto a pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do exterior Com esse nuacutemero chegamos ao primeiro triecircnio da nova seacuterie periacuteodo razoavelmente seguro para lanccedilar um olhar retrospectivo e fazer um balanccedilo dessa nova fase da revista

Ao longo desses trecircs anos foram publicados oito nuacutemeros dois em 2015 trecircs em 2016 e outros trecircs em 2017 A mudanccedila na periodicidade tem a ver com a generosa acolhida da revista junto aos especialistas e o correspondente apoio de pareceristas ad hoc que asseguraram natildeo apenas a viabilidade do sistema de avaliaccedilatildeo agraves cegas mas tambeacutem a melhoria significativa dos

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e colaborador do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) Editor da Heacutelade

2 Mestranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense (PPGHUFF) Membra do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) Assistente editorial da Heacutelade

Editorial

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trabalhos apoacutes as criacuteticas e sugestotildees pertinentes A opccedilatildeo pela publicaccedilatildeo de dossiecircs3 estimulou diversas reflexotildees acerca de temaacuteticas prementes do nosso presente referendando natildeo apenas o fato de que toda Histoacuteria eacute por princiacutepio contemporacircnea mas tambeacutem que a Antiguidade eacute um locus privilegiado para refletirmos sobre nossos dilemas e conflitos Os nuacutemeros que sintetizam esse trabalho satildeo bastante elucidativos foram publicados ateacute o momento um total de 67 artigos o que assegura uma meacutedia de pouco mais de 8 artigos por nuacutemero

Desde o iniacutecio a revista buscou garantir a ampla participaccedilatildeo de especialistas que se dedicam ao estudo da Antiguidade Uma vez que os artigos satildeo avaliados pelo sistema ldquoduplo-cegordquo os editores partiram da premissa de que a qualidade estava antes associada ao meacuterito dos trabalhos do que pura e simplesmente agrave titulaccedilatildeo Nesse sentido ao longo desses trecircs anos acolhemos com entusiasmo artigos assinados por mestres doutorandos e doutores4 contrariando a loacutegica do doutoramento obrigatoacuterio comumente adotado como criteacuterio nas avaliaccedilotildees Outrossim como indicam os nuacutemeros 682 dos artigos foram enviados por especialistas com doutorado5 (45 no total) e 318 por mestres (22 no total) Trata-se em certa medida de uma proporccedilatildeo esperada tendo em vista que eacute usual acumular mais debates e reflexotildees agrave medida que possuiacutemos mais tempo dedicado agraves pesquisas Outrossim a participaccedilatildeo de pesquisadores em estaacutegios iniciais de formaccedilatildeo tambeacutem foi assegurada atraveacutes de artigos em coautoria Do total 56 artigos (833) foram assinados individualmente e 11 (166) em coautoria Ao longo do triecircnio a Heacutelade contou a participaccedilatildeo de 70 autores desses apenas 6 (87) assinaram mais de um artigo

3 O primeiro nuacutemero da nova seacuterie (v 1 n 1) foi uma ediccedilatildeo especial em que convidamos autores

da primeira seacuterie da revista a revisitarem os temas publicados haacute 15 anos Em seguida publicamos

dossiecircs com os seguintes tiacutetulos Literatura Antiga Tempo e Tradiccedilatildeo (v 1 n 2) Jogos Desporto e Praacuteticas Corporais na Antiguidade (v 2 n 1) Religiotildees no Mundo Antigo (v2 n 2) Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) e Etnicidade e

as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2)

4 Aleacutem de graduandos graduados e mestrados desde que em coautoria com doutores como

indicado em nossas normas de publicaccedilatildeo (httpwwwheladeuffbrnormashtml)

5 Incluindo os artigos em coautoria e nesse caso considerando a titulaccedilatildeo maacutexima de um dos

autores

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EditorialA diversidade teoacuterico-metodoloacutegica foi assegurada pela ampla participaccedilatildeo de pesquisadores e pesquisadoras de Histoacuteria Letras Psicologia Filosofia e Arqueologia A pluralidade de temas tambeacutem ficou marcada por artigos que versavam sobre questotildees associadas agrave Antiguidade Claacutessica ao Antigo Oriente Proacuteximo e ao Ensino de Histoacuteria Em relaccedilatildeo agrave origem institucional dos autores os nuacutemeros indicam uma crescente ampliaccedilatildeo do escopo da revista e a recusa intransigente a qualquer possibilidade de endogenia A maioria dos participantes estaacute vinculada a universidades brasileiras6 (803)

6 Lista de universidades brasileiras participantes Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Universidade do Estado do Amapaacute (UEAP) Universidade Estadual do Maranhatildeo (UEMA)

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Universidade Federal do Espiacuterito Santo

(UFES) Universidade Federal Fluminense (UFF) Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Universidade Federal do Paranaacute (UFPR)

Universidade Federal do Recocircncavo da Bahia (UFRB) Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC) Universidade de Brasiacutelia (UnB) Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP) Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Editorial

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mas a diversidade institucional dos autores estrangeiros7 (197 do total) sinaliza uma tendecircncia bastante significativa de internacionalizaccedilatildeo da Heacutelade No total foram vinte universidades brasileiras e dez universidades estrangeiras representadas por seus autores ao longo desse primeiro triecircnio

A preocupaccedilatildeo com a divulgaccedilatildeo dos trabalhos tambeacutem marcou e consolidou a participaccedilatildeo ativa da Heacutelade nas redes sociais em particular no Facebook (httpswwwfacebookcomrevistaheladeuff) Atualmente nessa rede social 4755 usuaacuterios acompanham nossas publicaccedilotildees Aleacutem de replicarmos notiacutecias relativas agrave Antiguidade divulgarmos a abertura de concursos puacuteblicos entrevistas lanccedilamentos editoriais e nuacutemeros de revistas tambeacutem dedicadas ao estudo do mundo antigo a divulgaccedilatildeo dos dossiecircs aproximou a Histoacuteria Antiga de um puacuteblico muitas vezes privado do acesso agrave produccedilatildeo acadecircmica pela forma com que nosso campo se estrutura O iacutendice de alcance das publicaccedilotildees eacute um poderoso indicativo desse movimento O uacuteltimo dossiecirc publicado Etnicidade e as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2) teve um alcance de 36272 pessoas Nuacutemero decerto bastante expressivo mas em nada equiparado ao de temaacuteticas que dialogam diretamente com questotildees poliacuteticas em que estamos diretamente envolvidos no presente da vida social O dossiecirc Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) por exemplo atingiu 51116 pessoas menos da metade das 127540 pessoas alcanccediladas pelo dossiecirc Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Esta atuaccedilatildeo atraveacutes das redes sociais seraacute ampliada no iniacutecio de 2018 com a construccedilatildeo de uma paacutegina no Academiaedu

A Heacutelade eacute resultado do envolvimento coletivo dos membros do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA) vinculado ao Departamento de Histoacuteria e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF) Trata-se de uma iniciativa somente possiacutevel no marco de um trabalho em equipe que envolve editores assistentes de ediccedilatildeo conselho editorial e conselho consultivo O crescimento e consolidaccedilatildeo da Heacutelade tambeacutem eacute a expressatildeo do suporte assegurado pela universidade puacuteblica e pelo trabalho que busca recrudescer seu caraacuteter democraacutetico assegurando o compromisso com uma instituiccedilatildeo que

7 Lista de universidades estrangeiras participantes Universidad Central de Venezuela Universidad

de Alicante Universidad de Moroacuten Universidad Nacional de Mar del Plata Universidade Aberta

de Lisboa Universitagrave degli studi di Roma ldquoTor Vergatardquo Universitagrave degli Studi di Verona

University of London Newcastle University e Universidade de Coimbra

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Editorial

deve ser sempre gratuita e cada vez mais apta a fomentar ensino pesquisa e extensatildeo de qualidade Ainda que os nuacutemeros ajudem a produzir uma siacutentese do trabalho realizado nesse triecircnio e forneccedilam dados estatiacutesticos para os planejamentos futuros eles satildeo incapazes de representar nosso contentamento pelo acolhimento da revista A equipe da Heacutelade agradece os leitores assim como aos autores dos artigos que tambeacutem possibilitam que este trabalho aconteccedila Seguiremos com a mesma disposiccedilatildeo

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O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEM ACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA

Talita Nunes Silva Gonccedilalves1

Resumo O presente artigo visa fazer uma breve discussatildeo sobre o conceito de alteridade e seu uso nas pesquisas referentes a antiguidade grega para posteriormente abordar a construccedilatildeo da identidade helecircnica e mais especificamente a do cidadatildeo ateniense por meio da contraposiccedilatildeo com o femininoPalavras-chaves Identidade alteridade cidadatildeo Atenas feminino

Este artigo tem por objetivo inicial apresentar como o conceito de lsquoalteridadersquo tem sido abordado nas pesquisas em Histoacuteria Antiga e particularmente na Antiguidade Grega Num segundo momento propomos uma reflexatildeo concernente agrave construccedilatildeo da identidade helecircnica em contraposiccedilatildeo a figura do lsquoOutrorsquo o que se deu principalmente apoacutes o fim das guerras contra os persas Por uacuteltimo abordamos a alteridade feminina e a sua particularidade de se constituir um lsquoOutrorsquo dentro da proacutepria cultura grega e especificamente na ateniense

A noccedilatildeo moderna de lsquoalteridadersquo surge na deacutecada de 1960 no bojo dos estudos feministas e das pesquisas relativas aos esquecidos isto eacute aos excluiacutedos da histoacuteria (dentre os quais podemos citar as mulheres os escravos e os pobres) Tais estudos refletem intensamente sobre o significado deste conceito na sociedade As concepccedilotildees relativas agrave lsquoalteridadersquo se disseminaram por outros campos de estudo como a antropologia e a ciecircncia poliacutetica por meio da adaptaccedilatildeo gradativa das ideias do filoacutesofo Emmanuel Leacutevinais Seu pensamento encontra-se articulado em Alteriteacute e transcendance (1995) obra que reuacutene uma coleccedilatildeo de artigos publicados entre a deacutecada de 60 e o final dos anos 80

1 Doutora em Histoacuteria Antiga e professora substituta da Universidade Federal Fluminense Endereccedilo eletrocircnico talitanunesuolcombr

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Raphaeumll Weyland pesquisador que trabalhou com o tema Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (2012) ao refletir sobre a lsquoalteridadersquo pondera que os trabalhos publicados nos uacuteltimos anos sobre o assunto ldquonos mostram que cada um rejeita por meio da figura do lsquooutrorsquo (uma figura externa) as caracteriacutesticas que sua cultura considera negativasrdquo (WEYLAND 2012 p 4) O autor observa que ldquoeste lsquooutrorsquo natildeo eacute necessariamente eacutetnico ele pode ser tambeacutem econocircmico sexual ou mesmo poliacutetico O estudo da maneira como o outro eacute representado permite portanto compreender melhor os valores importantes da sociedade do emissor destas opiniotildees

O trabalho de Weyland relativamente recente mostra que a noccedilatildeo de lsquoalteridadersquo e os questionamentos suscitados por ela alcanccedilaram igualmente as pesquisas em histoacuteria antiga Haacute um bom nuacutemero de publicaccedilotildees que se inserem nesta perspectiva dentre as quais podemos destacar o livro O espelho de Heroacutedoto (1999) do historiador francecircs Franccedilois Hartog Esta obra tem sido desde sua publicaccedilatildeo muito importante para a reflexatildeo relativa agrave alteridade e a maneira como ela foi descrita Neste livro Hartog se concentra especialmente sobre o modo como Heroacutedoto descreveu os costumes dos citas e apresenta as contradiccedilotildees entre os relatos do historiador antigo e os dados arqueoloacutegicos Por meio da anaacutelise das Histoacuterias de Heroacutedoto o historiador francecircs busca examinar a lsquopsiquecircrsquo grega Para Hartog a identidade de um povo na antiguidade eacute definida pela documentaccedilatildeo textual por meio da contraposiccedilatildeo a um lsquooutrorsquo A identidade grega seria portanto delineada em oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de outros povos Obras como as de Edith Hall Inventing the Barbarian (1989) e de Paul Cartledge The Greeks A Portrait of Self and Others (1993) se inserem igualmente nesta perspectiva

Quanto agraves publicaccedilotildees mais recentes destacamos aqui Rethinking the Other in Antiquity (2011) de Erich Gruen The Invention of Racism in Classical Antiquity (2004) de Benjamin Isaac e The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus (2012) de Joseph Edward Skinner A escolha por mencionar estas obras se deve a fornecerem um indicativo das discussotildees atuais referentes agrave questatildeo lsquoalteridadersquo e lsquoantiguidadersquo Gruen se concentra nos gregos romanos e judeus enquanto Isaac nos dois primeiros e Skinner especificamente na Greacutecia antiga Erich Gruen busca se contrapor aos trabalhos publicados sobre alteridade na documentaccedilatildeo antiga Ele critica a visatildeo prevalecente entre os classicistas de que os povos da antiguidade reforccedilavam sua auto-percepccedilatildeo se contrapondo com o lsquoOutrorsquo frequentemente atraveacutes de estereoacutetipos e caricaturas hostis Gruen pretende mostrar como as atitudes dos antigos com relaccedilatildeo ao lsquoOutrorsquo natildeo expressam simplesmente contraste e alienaccedilatildeo

Tema Livre

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mas tambeacutem constantemente reciprocidade e conexatildeo No entanto acaba exagerando a importacircncia das passagens que descrevem o lsquoOutrorsquo de forma positiva Jaacute Benjamin Isaac reitera a persistecircncia dos comentaacuterios negativos com relaccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo povos na documentaccedilatildeo antiga Isaac procura refutar a crenccedila comum de que os antigos gregos e romanos nutriam preconceitos eacutetnicos e culturais mas natildeo raciais Sua definiccedilatildeo de lsquoracismorsquo e o fato de se concentrar na documentaccedilatildeo textual tem sido criticados

Quanto ao livro de Skinner seu objetivo eacute suplantar a visatildeo tradicional de que a etnografia grega eacute um feito do seacuteculo V aC O autor analisa os escritos deixados pelos grandes autores da antiguidade com o intuito de perceber como os gregos antigos representavam outros povos e a si mesmos Neste sentido busca mostrar que os discursos de alteridade e identidade satildeo na realidade muito mais antigos do que os apresentados na literatura etnograacutefica relativa agraves guerras entre gregos e persas Skinner vecirc o percurso da etnografia grega como comeccedilando com Homero e segue este movimento ateacute Heroacutedoto Para ele a obra deste historiador antigo fundamental para a etnografia helecircnica delimita o que eacute ser grego Com relaccedilatildeo a este aspecto isto eacute ao que eacute ser grego Jonathan Hall reconhece a guerra contra os persas como um momento decisivo no modo como os helenos concebiam sua proacutepria identidade Ateacute entatildeo observa o autor a afiliaccedilatildeo eacutetnica (identidade eacutetnica) era preponderante na construccedilatildeo da auto-identidade helecircnica

Em Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture (2002) Jonathan Hall define a etnicidade Destacamos aqui alguns dos elementos de sua definiccedilatildeo 1) O grupo eacutetnico eacute uma auto-definiccedilatildeo de uma coletividade social que se constitui em oposiccedilatildeo a outros grupos de uma ordem semelhante 2) Liacutengua religiatildeo traccedilos culturais e elementos bioloacutegicos podem parecer ser marcadores de identificaccedilatildeo mas em uacuteltima instacircncia eles natildeo definem o grupo eacutetnico Eles satildeo marcadores superficiais 3) Os elementos centrais que determinam a participaccedilatildeo no grupo eacutetnico - e o distingue das demais coletividades sociais - satildeo uma suposta descendecircncia comum e parentesco uma associaccedilatildeo a um territoacuterio especiacutefico e um sentido histoacuterico compartilhado Nesta definiccedilatildeo a descendecircncia e parentesco comum (fictiacutecio ou natildeo) assumem uma posiccedilatildeo central Jonathan Hall no entanto argumenta que a base definidora da identidade helecircnica mudou de eacutetnica para um criteacuterio cultural durante o seacuteculo V aC Para Hall assim como para a maioria dos historiadores a guerra contra os persas fez entrar em cena a figura do baacuterbaro que passou a ser equivalente a lsquonatildeo-gregorsquo A emergecircncia da imagem estereotipada do baacuterbaro no seacuteculo V aC foi frequentemente considerada como um fator fundamental para a auto-

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definiccedilatildeo helecircnica Entretanto regularmente se supocircs que helenos e baacuterbaros eram categorias irremediavelmente opostas

Contrariamente a essa posiccedilatildeo Jonathan Hall considera que mais comumente os baacuterbaros natildeo eram vistos como uma categoria diametralmente oposta Pois se considerava que poderiam ser incluiacutedos entre os helenos Isto eacute um baacuterbaro poderia se tornar grego se adotasse a liacutengua os costumes e as praacuteticas gregas Para hall a possibilidade desse cruzamento soacute era possiacutevel porque a identidade grega passara a ser compreendida primeiramente em termos culturais O historiador observa tambeacutem que a definiccedilatildeo de helenicidade no Livro VIII das Histoacuterias de Heroacutedoto coloca os laccedilos de sangue no mesmo niacutevel dos criteacuterios culturais Contudo no plano de fundo das Histoacuterias as consideraccedilotildees culturais acabam por superar as noccedilotildees eacutetnicas nas definiccedilotildees dos grupos populacionais Jonathan Hall observa que mesmo em Tuciacutedides os baacuterbaros aparecem num estaacutegio de desenvolvimento cultural mais primitivo do que os gregos Mas haacute uma suposiccedilatildeo impliacutecita de que os baacuterbaros podem se tornar mais helecircnicos por meio da convergecircncia cultural Os escritores antigos do seacuteculo V aC mas tambeacutem do IV aC conceberiam assim as diferenccedilas humanas em termos mais culturais

Neste sentido Geneviegraveve Proulx em Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens (2008) pontua que Heroacutedoto ao desenvolver o tema central de suas Histoacuterias (as guerras entre os gregos e persas) e considerar a questatildeo das diferenccedilas culturais acaba por conceder um lugar agraves mulheres no estudo dos nomoi dos baacuterbaros Deste modo as atividades das mulheres nas exposiccedilotildees etnograacuteficas tornam-se importantes criteacuterios de descriccedilotildees Das 375 ocorrecircncias de mulheres nas Histoacuterias segundo Carolyn Dewald em Women and culture in Herodotusrsquo Histories (1981) 212 as apresentam como ativas (agindo de vaacuterias maneiras) e neste caso mais da metade das ocorrecircncias se encontram em descriccedilotildees etnograacuteficas Aleacutem disso Geneviegraveve Proulx mostra que as personagens femininas que aparecem individualizadas satildeo tambeacutem muito presentes em Heroacutedoto Estas mulheres que desempenham um papel no desenvolvimento dos eventos satildeo mais frequentemente pertencentes aos lsquobaacuterbarosrsquo O fato destas mulheres que aparecem como personagens individualizadas e das passagens que retratam as mulheres em posiccedilatildeo ativa se referirem mais comumente a natildeo-gregas apontam distinccedilotildees entre os costumes dos helenos e dos lsquobaacuterbarosrsquo

Desta forma notamos que o lsquoOutrorsquo assume um importante papel na definiccedilatildeo da identidade grega especialmente apoacutes as guerras contra os persas quando o termo lsquobaacuterbaroirsquo que se refere - como nos mostra Edith Hall - primeiramente aos persas acaba por incorporar o significado mais geneacuterico

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de natildeo-grego No entanto a definiccedilatildeo do que eacute ser grego natildeo se daacute apenas em oposiccedilatildeo ao baacuterbaro Ele natildeo eacute o lsquoOutrorsquo absoluto A cidade grega - e destacamos aqui que natildeo soacute as poacuteleis com regimes democraacuteticos -subsistia por meio de exclusotildees isto eacute por meio da segregaccedilatildeo das diferenccedilas existentes internamente Barbara Cassin e Nicole Loraux no prefaacutecio da obra Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros (1993) asseveram que a cidade grega se referindo as poacuteleis que foram democracias funcionava por meio de dois tipos de exclusotildees exteriores (estrangeiros e baacuterbaros) e interiores agrave poacutelis (mulheres metecos escravos) Isto posto iremos nos concentrar daqui em diante no papel da mulher como lsquoOutrorsquo ou seja como um dos lsquoOutrosrsquo em contraposiccedilatildeo aos quais o homem grego se definia Ademais centraremos nossa anaacutelise na Atenas Claacutessica e no papel do feminino na construccedilatildeo da cidadania ateniense isto eacute na definiccedilatildeo do cidadatildeo

Marta Mega de Andrade ao falar de seu livro A cidade das mulheres cidadania e alteridade feminina na Atenas Claacutessica (2001) afirma que ele tenta evidenciar a profunda alteridade que o gecircnero feminino representa na cultura claacutessica Nesta obra por meio do teatro ateniense de Euriacutepides e Aristoacutefanes Andrade busca observar o papel das mulheres (particularmente das lsquocidadatildesrsquo) na construccedilatildeo da cidadania ateniense A relaccedilatildeo do feminino com a cidadania surge devido ao fato de que a definiccedilatildeo da cidadania implica o reconhecimento de si e a delimitaccedilatildeo do lsquoOutrorsquo Sua definiccedilatildeo se daacute portanto em oposiccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo ou seja aos natildeo-cidadatildeos O feminino faz parte desta lsquoalteridadersquo e no espaccedilo do teatro a representa Em Euriacutepides e Aristoacutefanes vemos a mulher como o lsquoOutrorsquo na poacutelis No entanto a alteridade que ela simboliza eacute fundamental para a existecircncia da comunidade poliacuteade e da cidadania Natildeo soacute pelo papel que a poacutelis institucional lhe reserva na procriaccedilatildeo de filhos legiacutetimos e nas festas ciacutevicas mas tambeacutem pela sua atuaccedilatildeo no cotidiano (os espaccedilos que ocupa na poacutelis dos habitantes) O teatro mostra assim que o papel da mulher era muito mais amplo do que o que lhe era destinado pela lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo Assumindo a sua lsquoalteridadersquo seu caraacuteter duacutebio e potencialmente subversivo vemos em Euriacutepides as mulheres inseridas em espaccedilos que lhe satildeo negados como o da discussatildeo poliacutetica Jaacute em Aristoacutefanes a presenccedila delas na cidade eacute apresentada como uma possibilidade de governo do feminino

Em nosso entender Marta Mega de Andrade considera que ao assumir sua lsquoalteridadersquo as mulheres (e aqui se refere agraves lsquocidadatildesrsquo) ocupavam a poacutelis no cotidiano assumindo deste modo uma relaccedilatildeo ativa com a cidade Ao contraacuterio do que o modelo de recato silecircncio e reclusatildeo lhes prescrevia ao ocupar a lsquocidade do cotidianorsquo as lsquocidadatildesrsquo se apropriavam da sua caracteriacutestica como lsquoOutrorsquo A autora pontua que ao representar as mulheres ocupando espaccedilos

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o teatro as mostra por meio do desempenho de sua alteridade tomando uma posiccedilatildeo ativa na poacutelis Jaacute os discursos poliacuteticos como o Econocircmico de Xenofonte apagariam a caracteriacutestica do feminino como lsquoOutrorsquo ao mostrar as mulheres integradas ao papel (lsquorainha do larrsquo) que a cidade lhes confere como vemos abaixo

Entatildeo ordenei a minha esposa a se acostumar a ser tambeacutem disse ela mesma a guardiatilde das leis de nossa casa a inspecionar quando a ela mesma parecesse conveniente os utensiacutelios da casa como o comandante de uma guarniccedilatildeo inspeciona e examina se cada soldado estaacute em boa condiccedilatildeo como o conselho examina os cavalos e seus cavaleiros a elogiar e a honrar como uma rainha a quem for digno de ser e a reprovar e castigar a quem disso precisa (XENOFONTE Econocircmico IX 14-15)

Deste modo para a historiadora a poacutelis ateniense era tambeacutem uma lsquopoacutelis das mulheresrsquo

Marta Mega de Andrade pretende assim fazer ver que o tal lsquoclube de homensrsquo que teria sido a cidade grega (modelo que a historiografia ao longo do tempo reproduziu) era na verdade apenas uma parte do que constituiacutea a cidade A poacutelis que as mulheres ocupavam (a cidade das mulheres) natildeo era a lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo a poacutelis institucionalizada mas sim a lsquocidade cotidianarsquo As lsquocidadatildesrsquo transitavam entre as duas cidades A dos cidadatildeos e suas famiacutelias (a lsquocidade dos incluiacutedosrsquo) e a dos outros (ocupada pelos lsquoexcluiacutedosrsquo isto eacute por aqueles que natildeo eram cidadatildeos) Ademais segundo Violaine Sebillotte Cuchet as mulheres tambeacutem desempenhariam o poliacutetico Embora natildeo como os cidadatildeos masculinos que o desempenhavam por exemplo por meio de sua atuaccedilatildeo na assembleacuteia De acordo com a historiadora a

praacutetica ciacutevica funcionava factualmente graccedilas agrave inclusatildeo do lado escondido do ldquopoliacuteticordquo ou seja as cidadatildes () Nas praacuteticas ciacutevicas uacutenicos lugares efetivos do poliacutetico operavam cidadatildeos e cidadatildes Essas praacuteticas incluiacuteam para os primeiros assembleias deliberativas e judiciaacuterias e para todos os rituais comuns (incluindo o teatro) o intercacircmbio de bens (terras principalmente) e de pessoas (casamentos e adoccedilotildees) (CUCHET 2015 pp 17-18)

Isto posto retomemos a perspectiva de anaacutelise de Marta Mega de Andrade com relaccedilatildeo a caracterizaccedilatildeo de feminino em Xenofonte

Ao contraacuterio do que Andrade afirma natildeo consideramos que ldquoa alteridade feminina se perde em Xenofonterdquo Acreditamos que ela ainda estaacute presente em

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seu discurso Mesmo que o perigo do lsquoOutrorsquo feminino pareccedila apaziguado pela integraccedilatildeo da mulher como esposa e rainha do lar a alteridade representada pelo feminino ainda estaacute presente Pois no Econocircmico as atividades de Iscocircmaco e os espaccedilos em que deveria desenvolver preferencialmente suas funccedilotildees (o espaccedilo puacuteblico) se contrapotildeem as atividades de sua esposa e ao espaccedilo no qual as deveria desempenhar (o oicirckos) Embora as atividades de Iscocircmaco e de sua esposa se complementem natildeo deixam de ser diferentes Por conseguinte o papel do lsquocidadatildeorsquo e suas atribuiccedilotildees satildeo delimitados em contraposiccedilatildeo ao da lsquocidadatildersquo Desta forma mesmo neste discurso no qual o feminino eacute integrado (adequado) ele ainda representa o lsquoOutrorsquo E consideramos que mesmo quando a lsquocidadatildersquo procura observar os preceitos de comedimento silecircncio e reclusatildeo elas carregam o estigma da suspeita Violaine Sebillotte Cuchet pontua que

as cidadatildes nunca foram uma classe agrave parte nem tampouco foram percebidas pelos cidadatildeos como um grupo ameaccedilador ou reivindicativo Agraves vezes as mulheres enquanto matildees e esposas enquanto parceiras sexuais e parceiras de filiaccedilatildeo excitaram a imaginaccedilatildeo o desejo ou o oacutedio dos homens e natildeo as cidadatildes enquanto tais (CUCHET 2015 pp 17-18)

No entanto mesmo que as lsquocidadatildesrsquo enquanto grupo natildeo despertassem o temor dos homens consideramos que como mulheres elas levavam consigo o peso do estigma referido acima Pois as mulheres satildeo lsquofilhas de Pandorarsquo personagem miacutetica que personifica a alteridade do feminino no pensamento grego

Pandora eacute a primeira mulher Dela descende todo o genos gunaikon A narrativa miacutetica de sua criaccedilatildeo se encontra nos poemas Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo O mito de Pandora assim como os de outras sociedades se insere no conjunto de narrativas miacuteticas que ao abordar a criaccedilatildeo da mulher explicam o porquecirc existem dois sexos e natildeo apenas um Em tais narrativas a mulher eacute frequentemente um adendo na criaccedilatildeo Isto eacute ela eacute criada posteriormente a emergecircncia do homem O motivo dessa criaccedilatildeo secundaacuteria eacute explicado com frequumlecircncia nos mitos por uma atitude de uma divindade masculina visando atingir os homens Na tradiccedilatildeo judaico-cristatilde a criaccedilatildeo de Eva no livro do Gecircneses eacute mostrada como um ato de compaixatildeo divina a mulher eacute criada para amenizar a solidatildeo do homem Jaacute no mito grego o surgimento de Pandora decorre da fuacuteria de Zeus Independente do motivo de sua criaccedilatildeo o surgimento da mulher estabelece a condiccedilatildeo humana Isto eacute a mulher ldquointroduz a morte a anguacutestia e o mal no mundordquo assim como o trabalho penoso (ZEITLIN 2003 p 59)

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Eacute esta temaacutetica o estabelecimento da condiccedilatildeo humana - a diferenciaccedilatildeo entre homens e deuses juntamente com a origem do cosmos e a reparticcedilatildeo das prerrogativas e domiacutenios entre as divindades oliacutempicas que constitui o assunto da Teogonia Como puniccedilatildeo ao ardil do titatilde Prometeu por roubar o fogo Zeus cria a mulher um mal sobre a aparecircncia de um bem E mesmo se o homem resolve se apartar dele fugindo do casamento natildeo fica imune aos efeitos danosos que surgem com a criaccedilatildeo da mulher

Quem quer que fugindo do casamentoe atos perniciosos das mulheresescolhe natildeo se casar chega a velhice destrutivasem algueacutem para cuidar dele em sua avanccedilada idade(HESIacuteODO Teogonia vv 603-605)

Em Os Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo tambeacutem aborda a partir dessa perspectiva o surgimento da mulher

Entatildeo encolerizado disse o agrega-nuvens ZeuslsquoFilho de Jaacutepeto sobre todos haacutebil em suas tramas apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhasgrande praga para ti e para os homens vindourospara esses em lugar do fogo eu darei um mal e todos se alegraratildeo no acircnimo mimando muito este malrsquo(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 53-105)

Por conseguinte neste poema o poeta tambeacutem aborda o estabelecimento da condiccedilatildeo humana a partir da mulher Hesiacuteodo nomeia a primeira mulher como Pandora e se concentra na descriccedilatildeo detalhada dos dons (dolos) que lhe foram conferidos pelos deuses Pandora que eacute dada ao irmatildeo de Prometeu Epimeteu abre a jarra que continha todos os males os espalhando pelo mundo A partir de entatildeo os homens conviveratildeo com doenccedilas e muitas anguacutestias

Antes vivia sobre a terra a grei dos humanosa recato dos males dos difiacuteceis trabalhos das terriacuteveis doenccedilas que ao homem potildeem fimmas a mulher a grande tampa do jarro alccedilando dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 90-95)

No entanto de acordo com Pauline Schmitt Pantel o mito grego da criaccedilatildeo da mulher vai mais longe do que outras narrativas da criaccedilatildeo em sua avaliaccedilatildeo negativa das mulheres (2009) Pois como vimos Pandora eacute um ardil criado por ordem de Zeus e utilizado com o objetivo de se vingar da astuacutecia

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de Prometeu Criada com a intenccedilatildeo de causar um dano a natureza da mulher eacute ser um mal (SCHMITT PANTEL 2009 p 196) Aleacutem disto as mulheres (o geacutenos gunaikon) no mito grego aparece como um grupo a parte Embora a forma da mulher se assemelhe a humana ela natildeo pertence agrave humanidade Entretanto ela natildeo pertence igualmente ao acircmbito divino O feminino eacute um lsquooutrorsquo por natureza Sua alteridade estaacute ligada a ser um ardil um engano e a sua natureza ambiacutegua (natildeo faz parte da humanidade e nem da esfera divina) Marta Mega de Andrade pontua que eacute devido a alteridade do feminino estar ligada a sua ambiguumlidade que ele pode representar o lsquoOutrorsquo dentro de um nomos

Destarte em Hesiacuteodo jaacute podemos ver bem delineada a alteridade do feminino Seus poemas segundo Pauline Schmitt-Pantel se tornaram canocircnicos no pensamento grego como narrativas da criaccedilatildeo da ordem vigente do mundo e como base dos valores gregos O mito de criaccedilatildeo de Pandora representado em seus poemas teve portanto um impacto sobre a maneira como as mulheres foram vistas e o lugar que ocuparam na sociedade da Greacutecia Antiga A negatividade com que Hesiacuteodo representou agraves mulheres se tornou a base de uma atitude permanente com relaccedilatildeo a este lsquoOutrorsquo Desta forma seus poemas influenciaram os autores gregos das eacutepocas posteriores que as trataram como uma ameaccedila a unidade da sociedade masculina (SCHMITT-PANTEL 2009 p 198) Acreditamos que essa atitude negativa com relaccedilatildeo ao feminino baseada nas caracteriacutesticas que lhe foram atribuiacutedas pelo mito de criaccedilatildeo e que foram reproduzidas pelos demais autores gregos tiveram ressonacircncia na lsquoexclusatildeorsquo das mulheres da poacutelis institucionalizada

Abstract The present article aims to make a brief discussion about the concept of alterity and its use in researches concerning Greek antiquity to later address the construction of the hellenic identity and more specifically that of the athenian citizen through the opposition with the feminineKeywords Identity alterity citizen Athens feminine

Bibliografia

Documentaccedilatildeo TextualHESIacuteODO Teogonia Trad Jaa Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2006________ Os Trabalhos e os Dias TradLuiz Otaacutevio de Figueiredo Satildeo Paulo

Odysseus 2011XEacuteNOPHON Eacuteconomique Paris Les Belles Lettres 1949

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Referecircncias BibliograacuteficasANDRADE Marta Mega de A cidade das mulheres cidadania e alteridade

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Princeton University Press 2004LEacuteVINAIS Emmanuel Alteriteacute e transcendance Fata Morgana 1995PROULX Geneviegraveve Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens Tese

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SEBILLOTTE CUCHET Violaine Cidadatildeos e cidadatildes na cidade grega claacutessica Onde atua o gecircnero Revista Tempo Niteroacutei v21 n38 2015 p1-20 SKINNER Joseph Edward The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus New York Oxford University Press 2012

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ZEITLIN Froma I lsquoCap4 Signifying difference the myth of Pandorarsquo In HAWLEY Richard LEVICK Barbara (ed) Women in Antiquity new assessments 2003 p58-74

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GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTI-CAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLI-CA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES

Decircnis Renan Correcirca1

ldquoPor que fazer o elogio do anacronismo quando se eacute historiador Talvez para convidar os historiadores a se dispor agrave escuta do nosso tempo de incertezas prestando atenccedilatildeo a tudo que ultrapassa o tempo da narraccedilatildeo ordenada as disparadas assim como as ilhas de imobilidade negam o tempo na histoacuteria mas fazem o tempo da histoacuteriardquoNicole Loraux Eacuteloge de lrsquoanachronisme em histoire 2005

Resumo O artigo aborda o vocabulaacuterio e a estrutura de referecircncias sobre rupturas poliacuteticas e institucionais na aristoteacutelica Constituiccedilatildeo dos Atenienses com o intuito de problematizar a ideia de golpe juriacutedico-parlamentar contra a presidente brasileira Dilma Roussef em 2016 e os imbroacuteglios eacuteticos e conceituais desde tipo de mudanccedila poliacutetica O texto discute o vocabulaacuterio antigo especialmente no contexto ateniense com ecircnfase no pensamento poliacutetico de Aristoacuteteles Palavras-chave Constituiccedilatildeo dos Atenienses golpes de Estado rupturas poliacuteticas

1 A definiccedilatildeo de golpe de Estado eacute difiacutecil e polecircmica O termo significa a deposiccedilatildeo do poder de alguma pessoa ou instituiccedilatildeo legalmente investida de autoridade com diferentes graus de violecircncia eou cerceamento poliacutetico Sua formulaccedilatildeo claacutessica remonta ao seacuteculo XVII na obra Consideacuterations politiques sur les coups drsquoestat de Gabriel Naudeacute Concebida no contexto intelectual do debate sobre as ldquorazotildees de Estadordquo a obra oferece uma visatildeo mais ampla e positiva da ideia de golpe de Estado do a que utilizamos hoje podendo ser definida como uma medida extraordinaacuteria que excede as leis mas que um priacutencipe se vecirc obrigado a executar em vista do bem comum (GONCcedilALVES 2015 p 10 p

1 Prof Adjunto de Histoacuteria Antiga da UFRB Eacute Licenciado e Mestre em Histoacuteria pela UFRGS e atualmente realiza doutoramento em Estudos Claacutessicos pela Universidade de Coimbra E-mail para contato dniscorreagmailcom

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26-33) Trata-se claramente de uma defesa maquiaveacutelica da estrateacutegia poliacutetica na qual governantes desrespeitam as leis do Estado e fazem uso de violecircncia ilegal com uma racionalidade poliacutetica especiacutefica e supostamente nobre No entanto na contemporaneidade o termo eacute qualificado pela violecircncia poliacutetica expliacutecita e portanto possui um tom predominantemente negativo

No vocabulaacuterio histoacuterico contemporacircneo golpe de Estado faz fronteira semacircntica (e eacutetica) com a expressatildeo revoluccedilatildeo social pois possui sentido semelhante mas natildeo coincidente Ateacute o seacuteculo XVII o termo revoluccedilatildeo expressava a rotaccedilatildeo ciacuteclica e natural dos astros mas no XVIII ele toma forma como uma operaccedilatildeo histoacuterica proacutepria de uma ideologia do progresso (KOSELLECK 2006 p 37) A distinccedilatildeo reside na emergecircncia de algo inteiramente novo na Histoacuteria (ARENDT 1988 p 17-23) diferentemente das mudanccedilas ciacuteclicas concebidas por Naudeacute e Maquiavel Sendo um produto linguiacutestico da modernidade europeia a revoluccedilatildeo passa a expressar ambivalentemente golpes poliacuteticos sangrentos e inovaccedilotildees cientiacuteficas (KOSELLECK 2006 p 62) o que jaacute denota seu verniz mais positivo em contraste com a racionalidade de Estado maquiaveacutelica com que Naudeacute defendeu o golpe de Estado Nas concepccedilotildees iluministas e marxistas revoluccedilatildeo pressupotildee mudanccedilas natildeo apenas no aparelho estatal mas tambeacutem na proacutepria tessitura da sociedade tendo como exemplo as revoluccedilotildees liberais e socialistas na Europa contra o Antigo Regime

Em resumo revoluccedilatildeo social se distingue de golpe de Estado pela noccedilatildeo de progresso social e histoacuterico que de certa forma justifica a ruptura poliacutetica e social violenta Desta forma configura-se uma dicotomia entre golpe de Estado e revoluccedilatildeo social no que diz respeito agraves rupturas institucionais que remetem agraves ideias de retrocesso e progresso social e histoacuterico No entanto esta dicotomia faz sentido ainda hoje Qual outro arcabouccedilo conceitual se pode procurar para explicar perturbaccedilotildees poliacuteticas contemporacircneas

Os exemplos na histoacuteria recente do Brasil tecircm sido definidos a partir da dicotomia descrita acima em livros didaacuteticos brasileiros a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ainda eacute mencionada ambiguamente como Revoluccedilatildeo de 30 ou Golpe de 30 assim como de forma menos frequente o Golpe de Estado Civil-Militar de 64 tambeacutem eacute caracterizada como revoluccedilatildeo ainda que somente por seus defensores mais abertos entre eles figuras protofascistas como o parlamentar Jair Bolsonaro que goza de relativa popularidade na sociedade brasileira Desta forma o golpe de Estado natildeo se caracteriza soacute por ser violento mas por

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ser um retrocesso portanto algo negativo Recentemente este imbroacuteglio eacutetico-conceitual se abre novamente com a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 no qual os seus opositores acusam um golpe de Estado ainda que juriacutedico-parlamentar sem apoio militar

Ainda que amparado por forccedilas poliacuteticas legiacutetimas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal o processo que derrubou Rousseff eacute flagrantemente fruto de um regime de exceccedilatildeo que fez da Presidenta um bode expiatoacuterio de escacircndalos de corrupccedilatildeo que penetram em quase toda classe poliacutetica brasileira especialmente os protagonistas da sua deposiccedilatildeo o entatildeo presidente da Cacircmara dos Deputados Eduardo Cunha e o vice-presidente Michel Temer Cerca de um ano depois do Impeachment Eduardo Cunha encontra-se condenado a 15 anos de prisatildeo por corrupccedilatildeo e o Presidente em exerciacutecio Michel Temer vive intensa crise de legitimidade devido a gravaccedilotildees que comprovam seu envolvimento em crimes de corrupccedilatildeo Golpe Impeachment A discussatildeo precisa partir do consenso da irregularidade do sistema poliacutetico brasileiro que atuou na deposiccedilatildeo Aleacutem disso precisa desnudar as forccedilas sociais atuantes neste processo

O que o pensamento poliacutetico grego claacutessico tem a nos dizer sobre tal imbroacuteglio eacutetico-conceitual contemporacircneo Grosso modo os termos golpe de Estado e revoluccedilatildeo social natildeo tecircm correspondentes na antiguidade (ARENDT 1988 p 17) e comparar sociedades tatildeo diacutespares eacute obviamente arriscado Por outro lado a proacutepria estrutura de referecircncias a partir de qual o pensamento moderno atribui sentido ao jogo poliacutetico eacute oriundo do vocabulaacuterio claacutessico poliacutetica democracia oligarquia povo e aristocracia satildeo termos inequiacutevocos desta aproximaccedilatildeo entre antigos e modernos O objetivo aqui eacute discutir quais eram as referecircncias para a ideia de ruptura poliacutetica na Atenas antiga e especular como elas podem ajudar a compreender as disputas e reviravoltas contemporacircneas Para tanto opta-se por analisar a Constituiccedilatildeo dos Atenienses obra escrita em Atenas na segunda metade do seacutec IV a C pela escola peripateacutetica sob direccedilatildeo de Aristoacuteteles Ao fim do artigo voltarei a discutir o Impeachment de 2016 ao governo de Dilma Rousseff

Os noticiaacuterios da poliacutetica brasileira se assemelham a um enredo de traiccedilotildees delaccedilotildees e reviravoltas constantes mas eacute providencial extrair daiacute alguma racionalidade que nos ajude a sair do ciacuterculo vicioso de crise e paralisia poliacutetica imposta por instrumentos oligaacuterquicos de poder Como historiador e antiquista sigo o espiacuterito da epiacutegrafe que abre este artigo e disponho-me a

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escutar este tempo de incertezas de forma que o recurso das fontes antigas possa gerar o estranhamento necessaacuterio que dissolva o assombro intelectual diante das maliacutecias do poder contemporacircneo

2 No capiacutetulo 412 a Constituiccedilatildeo dos Atenienses enumera as mudanccedilas (μεταβολαί) no regime poliacutetico (πολιτεία2) ateniense ateacute a eacutepoca de sua escrita entre os anos 329 e 322 a C (RHODES 1992 p 51-58) A uacuteltima mudanccedila ocorre em 403 quando Trasiacutebulo liderou a facccedilatildeo popular que ocupava militarmente a regiatildeo portuaacuteria (ldquoFilerdquo e ldquoPireurdquo na citaccedilatildeo abaixo) numa guerra aberta contra os Trinta Tiranos que haviam sido postos no poder com apoio do estratego espartano Lisandro apoacutes a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso O cap 412 passa em resumo as mudanccedilas que ocorreram desde o periacuteodo heroico ateacute esta restauraccedilatildeo de 403

Das mudanccedilas [de regime] esta foi a deacutecima primeira em quantidade Desde o princiacutepio a primeira aconteceu com a migraccedilatildeo de Ion e seus companheiros pois entatildeo pela primeira vez foram formadas as quatro tribos e se estabeleceram os reis das tribos A segunda mas a primeira a ter uma forma de regime poliacutetico foi a ocorrida na eacutepoca de Teseu pouco divergindo da realeza Depois desta foi a da eacutepoca de Draacutecon na qual leis foram publicadas pela primeira vez A terceira depois da staacutesis na eacutepoca de Soacutelon e a partir da qual se tornou o comeccedilo da democracia A quarta foi a tirania na eacutepoca de Pisiacutestrato A quinta apoacutes a derrubada dos tiranos foi a de Cliacutestenes mais democraacutetica que a de Soacutelon A sexta foi depois das Guerras com os Medos estando a cargo do Conselho do Areoacutepago A seacutetima depois desta foi a que Aristides comeccedilou e Efialtes completou tendo derrubado o Conselho do Areoacutepago e nesta aconteceram muitos equiacutevocos por causa dos demagogos e do impeacuterio mariacutetimo A oitava foi o estabelecimento dos Quatrocentos e logo em seguida a nona foi a democracia de novo A deacutecima foi a tirania dos Trinta e a dos Dez A deacutecima primeira foi depois do retorno daqueles de File e do Pireu a partir da qual se desenvolveu ateacute a que existe hoje sempre aumentando o poder para a multidatildeo3

2 O termo denomina os direitos poliacuteticos individuais e o sentimento de pertencimento dos cidadatildeos das poacuteleis antigas mas tambeacutem o regime poliacutetico de uma poacutelis tradicional dividido num esquema tripartite do criteacuterio de extensatildeo da soberania poliacutetica para apenas um individuo (monarquia) para poucos (oligarquia) ou para muitos (democracia) Esta classificaccedilatildeo teraacute desdobramentos em outros tipos e tambeacutem existira na tradiccedilatildeo claacutessica todo um gecircnero literaacuterio das politeiacuteai do qual a proacutepria Constituicao dos Atenienses faz parte Ver BORDES 1982 16-46 231-260

3 Todas Traduccedilotildees de textos antigos satildeo de minha autoria Constituiccedilatildeo dos Atenienses 412 ἦν δὲ τῶν μεταβολῶν ἑνδεκάτη τὸν ἀριθμὸν αὕτη πρώτη μὲν γὰρ ἐγένετο μετάστασις τῶν ἐξ ἀρχῆς Ἴωνος καὶ τῶν μετrsquo αὐτοῦ συνοικησάντων τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς καὶ τοὺς φυλοβασιλέας κατέστησαν δευτέρα δὲ καὶ πρώτη μετὰ

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As rupturas institucionais satildeo chamadas μεταβολαί isto eacute mudanccedilas e estas somam onze no periacuteodo narrado pela obra Mas o que satildeo tais mudanccedilas Obviamente implicam num novo regime poliacutetico mas o que isto significa Certamente nada semelhante ao novo da revoluccedilatildeo Moderna (ARENDT 1988 p 17) A derrubada de pessoas em cargos de poder ou de uma instituiccedilatildeo Elas sempre ocorrem de forma violenta Um novo regime pode advir legalmente e pacificamente Quais os criteacuterios da Constituiccedilatildeo dos Atenienses para definir uma μεταβολή

O comeccedilo da obra estaacute mutilado e natildeo temos informaccedilatildeo sobre as duas primeiras mudanccedilas aleacutem do texto acima nada mais do que a racionalizaccedilatildeo dos mitos heroicos de Ion e Teseu A obra destaca a novidade de cada mudanccedila na de Ion foram formadas as quatro tribos pela primeira vez (τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς) na de Teseu o governo assumiu a forma de πολιτεία pela primeira vez (πρώτη μετὰ ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις) ainda que pouco divergindo da realeza (μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς) Da terceira mudanccedila temos apenas uma breve descriccedilatildeo no cap 4 que eacute considerado uma interpolaccedilatildeo por muitos autores (RHODES 1992 84-88 FRITZ 1954) e esta tambeacutem destaca uma novidade Draacutecon publicou leis pela primeira vez (ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον) Cabe notar a estranha redaccedilatildeo na qual a mudanccedila de Draacutecon natildeo eacute contabilizada a que vem a seguir eacute listada como ldquoterceirardquo (τρίτη) o que soacute reforccedila a ideia de tratar-se de fato de uma interpolaccedilatildeo inserida posteriormente

A terceira mudanccedila apresenta um ingrediente que acompanharaacute todas as seguintes a στάσις na cidade gera uma μεταβολή na πολιτεία ateniense O termo στάσις significa ldquotomar posiccedilatildeordquo mas tambeacutem ldquolevantar-serdquo (BAILLY 1901) assim como a ideia moderna de um ldquolevanterdquo mas nem sempre enquanto combate violento A στάσις eacute frequentemente traduzida por ldquoguerra civilrdquo mas eacute importante distinguir da bellum civile romana como a que opocircs Maacuterio e Sula sendo o exemplo romano uma guerra de fato cada lado constituiacutedo

ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις ἡ ἐπὶ Θησέως γενομένη μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς μετὰ δὲ ταύτην ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον τρίτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν στάσιν ἡ ἐπὶ Σόλωνος ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο τετάρτη δrsquo ἡ ἐπὶ Πεισιστράτου τυραννίς πέμπτη δrsquo ἡ μετὰ ltτὴνgt τῶν τυράννων κατάλυσιν ἡ Κλεισθένους δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος ἕκτη δrsquo ἡ μετὰ τὰ Μηδικά τῆς ἐξ Ἀρείου πάγου βουλῆς ἐπιστατούσης ἑβδόμη δὲ ἡ μετὰ ταύτην ἣν Ἀριστείδης μὲν ὑπέδειξεν Ἐφιάλτης δrsquo ἐπετέλεσεν καταλύσας τὴν Ἀρεοπαγῖτιν βουλήν ἐν ᾗ πλεῖστα συνέβη τὴν πόλιν διὰ τοὺς δημαγωγοὺς ἁμαρτάνειν διὰ τὴν τῆς θαλάττης ἀρχήν ὀγδόη δrsquo ἡ τῶν τετρακοσίων κατάστασις καὶ ltἡgt μετὰ ταύτην ἐνάτη δέ ἡ δημοκρατία πάλιν δεκάτη δrsquo ἡ τῶν τριάκοντα καὶ ἡ τῶν δέκα τυραννίς ἑνδεκάτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν ἀπὸ Φυλῆς καὶ ἐκ Πειραιέως κάθοδον ἀφrsquo ἧς διαγεγένηται μέχρι τῆς νῦν ἀεὶ προσεπιλαμβάνουσα τῷ πλήθει τὴν ἐξουσίαν

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por um exeacutercito organizado pois os latinos chamariam στάσις de seditio ou secessio sediccedilatildeo ou secessatildeo (BOTTERI 1989 pp 87-100) Estas ocorrem dentro do coletivo de cidadatildeos e natildeo entre dois grupos de cidades diferentes o que designa o termo πόλεμος guerra (LORAUX 2009 p 41 pp 51-52 p 61) logo στάσις estaacute fora do modelo tradicional de guerra e seu ideal ciacutevico de combate militar Em contraste com este caraacuteter positivo da πόλεμος a στάσις eacute vista como negativa como uma interrupccedilatildeo do equiliacutebrio e da ordem ou mesmo uma doenccedila da cidade (LORAUX 2009 p 58 p 61) Tal negatividade se expressa na religiosidade pois a recuperaccedilatildeo de uma στάσις muitas vezes pode exigir alguma forma de purificaccedilatildeo religiosa como a que o saacutebio Epimecircnides de Creta realizou em Atenas apoacutes a tentativa de tomar o poder na cidade realizada por Ciacutelon (Constituiccedilatildeo dos Atenienses cap 11)

Aleacutem disso a στάσις grega opotildee dois grupos de cidadatildeos de um lado o povo (δῆμος) ou multidatildeo (πλῆθος) do outro os notaacuteveis (γνώριμοι) ricos (πλούσιοι) ou poucos (ολίγοι) A oposiccedilatildeo se expressa na forma de antiacutetese e assimetria um polo eacute formado pelos que satildeo muitos anocircnimos e pobres enquanto o outro pelos que satildeo poucos ilustres e ricos4 Natildeo por acaso a Constituiccedilatildeo dos Atenienses destaca que o regime de Soacutelon apoacutes a στάσις que ele arbitrou sem tomar partido tornou-se o comeccedilo da democracia5 (ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο) Segundo John J Keaney (1963 pp 128-136) a obra narra a expansatildeo do poder do povo sobre as instituiccedilotildees da poacutelis especificamente os Tribunais a Assembleia e as magistraturas e cada uma das mudanccedilas de regime representa um avanccedilo ou recuo do povo sobre tais instituiccedilotildees De fato a partir de Soacutelon a obra natildeo menciona mais aquilo que aconteceu pela primeira vez em cada regime mas sempre destaca o conflito entre estas forccedilas antiteacuteticas e assimeacutetricas como a causa de um novo regime

Boa parte destas στάσεις da obra consiste na instauraccedilatildeo ou derrubada de tiranias de forma violenta (quarta quinta deacutecima e deacutecima primeira mudanccedilas) portanto estas analisarei estas pois satildeo conflitos militares com campos bem definidos Natildeo discutirei tambeacutem o complexo termo τυραννίς mas eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a ruptura institucional e os conflitos sociais nas cidades antigas (TRABULSI 1984 e IRWIN 2008 pp 205-261) No entanto haacute στάσεις que natildeo se confundem com πόλεμοι ou seja natildeo satildeo conflitos militares portanto satildeo operadas dentro de limites legais tornando-

4Observa-se o eco do pensamento aristoteacutelico da Poliacutetica 1296a segundo a qual o lado vencedor impotildee um regime de natureza oligaacuterquica ou democraacutetica

5Segundo a ideia tipicamente aristoteacutelica que Soacutelon foi o criador do regime mas natildeo previu suas caracteriacutesticas negativas posteriores Ver a Constituiccedilatildeo dos Atenienses 92 e a Poliacutetica II 1274a-b

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se um objeto interessante para comparaccedilatildeo com a situaccedilatildeo brasileira em 2016 Por qual motivo a obra natildeo distingue mudanccedilas institucionais paciacuteficas com rupturas violentas Qual eacute o criteacuterio principal para a definiccedilatildeo de uma μεταβολή

3 Vejamos o exemplo da sexta mudanccedila no cap 231

Depois das Guerras Meacutedicas o Conselho do Areoacutepago tornou-se forte de novo governava a cidade sem que nenhum decreto lhe garantisse a hegemonia mas porque assumira a responsabilidade na batalha naval de Salamina De fato com a hesitaccedilatildeo dos estrategos em relaccedilatildeo aos acontecimentos tendo proclamado que cada um se salvasse por si o Areoacutepago proveu oito dracmas para cada um e distribui e embarcou os barcos6

O conselho do Areoacutepago eacute uma instituiccedilatildeo oligaacuterquica pois dele soacute participam indiviacuteduos que jaacute ocuparam um dos cargos dentre os nove arcontes magistraturas para as quais estavam aptos somente membros das duas mais abastadas classes de cidadatildeos os cavaleiros e os pentacosiomedmnos7 Em contraste com este caraacuteter oligaacuterquico o regime anterior a quinta mudanccedila realizada por Cliacutestenes eacute descrita no cap 412 como ldquomais democraacutetica do que a de Soacutelonrdquo (δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος) A obra eacute clara ao afirmar que o poder do Areoacutepago natildeo adveacutem de nenhum decreto (οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν) e sim eacute fruto do vaacutecuo poliacutetico criado pela crise militar durante a guerra contra os Persas um vaacutecuo de poder que uma vez preenchido torna-se poder de fato pelos proacuteximos dezessete anos (cap 251)

Esta concepccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses estaacute certamente ligada ao movimento saudosista do seacutec IV do ldquoregime ancestralrdquo que idealizava a Atenas do periacuteodo anterior agrave Guerra do Peloponeso (FINLEY 1989 cap 2 LEAtildeO 2001 p 43-72 e ATACK 2010) Este regime idealizado eacute descrito como uma constituiccedilatildeo ldquomoderadardquo (Isoacutecrates Areopagiacutetico) ou ldquomistardquo (Aristoacuteteles Poliacutetica 1295b) com equiliacutebrio entre oligarquia e democracia A ideia eacute que em meados do seacutec V o regime era gerido de fato pelo Areoacutepago cuja natureza oligaacuterquica garantia o domiacutenio da elite enquanto que as instituiccedilotildees

6 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 231 μετὰ δὲ τὰ Μηδικὰ πάλιν ἴσχυσεν ἡ ἐν Ἀρείῳ πάγῳ βουλὴ καὶ διῴκει τὴν πόλιν οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν ἀλλὰ διὰ τὸ γενέσθαι τῆς περὶ Σαλαμῖνα ναυμαχίας αἰτία τῶν γὰρ στρατηγῶν ἐξαπορησάντων τοῖς πράγμασι καὶ κηρυξάν των σῴ[ζ]ειν ἕκαστον ἑαυτόν πορίσασα δραχμὰς ἑκάστῳ ὀκτὼ διέδωκε καὶ ἐνεβίβασεν εἰς τὰς ναῦς

7A criaccedilatildeo desta classificaccedilatildeo censitaacuteria eacute atribuiacuteda na obra agrave Soacutelon ver cap 73-4 no entanto ela seraacute mais ou menos vigente por todo o periacuteodo da democracia ateniense claacutessica

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democraacuteticas como a Assembleia e os Tribunais Populares equilibravam os excessos da elite e davam um quinhatildeo se poder ao povo O poder do Areoacutepago seraacute drasticamente restringido na seacutetima mudanccedila a seguir e voltaraacute a crescer durante o seacutec IV novamente ligado agrave ideia de ldquoregime ancestralrdquo (HANSEN 1999 p 288)

No seacutec V a hegemonia do Areoacutepago durou cerca de dezessete anos (cap 251) sendo este despojado do poder aos poucos atraveacutes de processos contra os areopagitas e suas prerrogativas impetrados pelos liacutederes do povo Aristides (412) e depois Efialtes (251-2) tanto nos Tribunais Populares como na Assembleia Nesta στάσις as armas satildeo processos legais de lideranccedilas democraacuteticas como Aristides e Temiacutestocles (233-5) este uacuteltimo segundo o autor a mente por traacutes de Efialtes assassinado em condiccedilotildees suspeitas (253-4) Portanto a hegemonia do Areoacutepago e sua posterior derrubada (sexta e seacutetima mudanccedilas de regime) satildeo descritas como resultados de uma espeacutecie de στάσις fria sem o calor da violecircncia e da ruptura institucional O enfrentamento das facccedilotildees antiteacuteticas e assimeacutetricas (o povo e a elite) ocorre nos Tribunais e Assembleias mas natildeo desemboca em conflito militar O uacutenico assassinato mencionado na obra de Efialtes ocorre no contexto de vitoacuteria de sua facccedilatildeo popular A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona apenas certo Aristoacutedico de Tacircnagra como assassino enquanto que Plutarco conta a versatildeo (Vida de Peacutericles 10) que o proacuteprio Plutarco natildeo daacute creacutedito de que o mandante do crime foi o sucessor de Efialtes como liacuteder do povo Peacutericles

Apoacutes a seacutetima mudanccedila Peacutericles seguiu tornando o regime mais popular retirando mais atribuiccedilotildees do Conselho do Areoacutepago (271) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses passa entatildeo a criticar os excessos demagoacutegicos deste periacuteodo especialmente o relaxamento do regime realizado por demagogos (261) o que se intensificou apoacutes morte de Peacutericles (281) Um dos aspectos deste relaxamento eacute que comeccedilaram a aceitar no arcontado os membros da classe dos zeugitas menos abastados do que os cavaleiros e os pentacosiomedmnos (262) uma medida certamente democraacutetica Peacutericles tambeacutem criou a remuneraccedilatildeo pela participaccedilatildeo nos Tribunais Populares (273) outra medida de caraacuteter anti-oligaacuterquico A obra destaca que depois de Peacutericles foi ldquoquando pela primeira vez o povo adotou um liacuteder que natildeo gozava de boa reputaccedilatildeo entre os capazesrdquo (πρῶτον γὰρ τότε προστάτην ἔλαβεν ὁ δῆμος οὐκ εὐδοκιμοῦντα παρὰ τοῖς ἐπιεικέσιν 281) O eufemismo da palavra ἐπιεικής ldquocapazesrdquo ldquoaptosrdquo obviamente descreve os mesmos oligarcas que se opuseram ao povo nas στάσεις de outrora pois o mesmo termo eacute utilizado tambeacutem no cap 261 para designar a facccedilatildeo oligaacuterquica Natildeo haacute sangue nestas mudanccedilas de regime mas haacute facccedilotildees e seus respectivos liacutederes logo haacute στάσις ainda que fria

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4 A oitava mudanccedila foi o estabelecimento do regime dos Quatrocentos no contexto da Guerra do Peloponeso e da desastrosa expediccedilatildeo contra Siracusa na Siciacutelia Nesta ocorrem claros sinais de esquentamento da στάσις ateniense Veja-se o cap 291

Entretanto depois do que aconteceu na Siciacutelia a posiccedilatildeo dos Lacedemocircnios ficou mais forte por causa da alianccedila com o Rei [da Peacutersia] e foram forccedilados ao regime dos Quatrocentos tendo posto em accedilatildeo a derrubada da democracia () mas muitos foram persuadidos sobretudo por achar que o Rei iria se aliar a eles se fizessem uma oligarquia8

Ainda que influenciada pela guerra externa o novo regime natildeo implica numa tomada violenta do poder Pelo contraacuterio a obra menciona que muitos foram persuadidos que tornar o regime mais oligaacuterquico era uma estrateacutegia para conquistar a alianccedila Persa e a salvaccedilatildeo da cidade Haacute relatos discrepantes sobre o clima poliacutetico desta mudanccedila de regime como descreve Tuciacutedides em VIII 66

Mas o povo e o Conselho ainda se reuniam na mesma forma de sorteio natildeo deliberavam nada que natildeo fosse da opiniatildeo dos conspiradores aleacutem disso os oradores eram todos deles e com eles examinavam o que estava prestes a ser dito Nenhum dos outros falava contra eles tendo medo e vendo a grande organizaccedilatildeo [dos conspiradores] se algueacutem falasse contra era diretamente executado de forma raacutepida Natildeo ocorria nem busca dos culpados nem justiccedila se fossem suspeitos mas o povo se mantinha quieto e tatildeo perplexo que se considerava lucro natildeo ter sofrido alguma violecircncia se ficasse calado9

O medo da violecircncia mantinha o povo calado ainda que as instituiccedilotildees democraacuteticas continuassem a funcionar As violecircncias contra opositores natildeo

8 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 291 ἐπεὶ δὲ μετὰ τὴν ἐν Σικελίᾳ γενομένην συμφορὰν ἰσχυρότερα τὰ τῶν Λακεδαιμονίων ἐγένετο διὰ τὴν πρὸς βασιλέα συμμαχίαν ἠναγκάσθησαν κι[νήσα]ντες τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι τὴνἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν ()μάλιστα δὲ συμπεισθέν των τῶν πολλῶν διὰ τὸ νομίζειν βασιλέα μᾶ[λ]λον ἑαυτοῖς συμπολεμήσειν ἐὰν διrsquo ὀλίγων ποιήσωνται τὴν πολιτείαν

9 Histoacuteria da Guerra dos Peloponeacutesios e Atenienses VIII 66 δῆμος μέντοι ὅμως ἔτι καὶ βουλὴ ἡ ἀπὸ τοῦ κυάμου ξυνελέγετο ἐβούλευον δὲ οὐδὲν ὅτι μὴ τοῖς ξυνεστῶσι δοκοίη ἀλλὰ καὶ οἱ λέγοντες ἐκ τούτων ἦσαν καὶ τὰ ῥηθησόμενα πρότερον αὐτοῖς προύσκεπτο ἀντέλεγέ τε οὐδεὶς ἔτι τῶν ἄλλων δεδιὼς καὶ ὁρῶν πολὺ τὸ ξυνεστηκός εἰ δέ τις καὶ ἀντείποι εὐθὺς ἐκ τρόπου τινὸς ἐπιτηδείου ἐτεθνήκει καὶ τῶν δρασάντων οὔτε ζήτησις οὔτrsquo εἰ ὑποπτεύοιντο δικαίωσις ἐγίγνετο ἀλλrsquoἡσυχίαν εἶχεν ὁ δῆμος καὶ κατάπληξιν τοιαύτην ὥστε κέρδος ὁ μὴ πάσχων τι βίαιον εἰ καὶ σιγῴη ἐνόμιζεν

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eram investigadas o que ajudava a manter as aparecircncias e alimentava o medo de opor-se aos conspiradores O relato de Tuciacutedides eacute brutal especialmente vindo de algueacutem que narra a conspiraccedilatildeo de perto como se dela tivesse participado (CANFORA 2015 pp 298-299) Em seguida Tuciacutedides conta (VIII 69-70) como os conspiradores mantiveram-se proacuteximos agraves armas ou com punhais escondidos mas permanecendo o povo quieto a violecircncia natildeo se fez necessaacuteria Trata-se da mesma στάσις entre povo e elite que pouco a pouco se torna mais quente e secretamente violenta ainda que haja esforccedilo para manter as aparecircncias institucionais

Vejamos o contraste com Tuciacutedides no cap 294 da Constituiccedilatildeo dos Atenienses

Os eleitos [para redigir proposiccedilotildees para a salvaccedilatildeo da cidade] primeiro escreveram ser compulsoacuterio aos priacutetanes submeter ao voto todos os pronunciamentos sobre a salvaccedilatildeo [da cidade] em seguida anularam as accedilotildees de ilegalidade as denuacutencias e as intimaccedilotildees para que assim qualquer um dos atenienses pudesse debater sobre as propostas como quisesse se algueacutem por conta disso multar ou intimar ou denunciar no Tribunal Popular que seja feito o depoimento e a prisatildeo dele diante dos estrategos e estes o entregariam aos Onze10 para a pena de morte11

A γραφή παρανόμων e a εἰσαγγελία aqui traduzidas como ldquoaccedilotildees de ilegalidaderdquo e ldquodenuacutenciasrdquo eram modalidade de processos juriacutedicos contra respectivamente proposiccedilotildees de leis e cidadatildeos que cometessem abusos contra as leis e o povo Possuiacuteam um caraacuteter eminentemente poliacutetico e atuavam como instrumentos contra abusos de poder de magistrados e tambeacutem como perseguiccedilatildeo contra adversaacuterios (HANSEN 1999 pp 205-218) Aos oligarcas pareceu necessaacuterio neutralizar tais instrumentos legais que poderiam se voltar contra eles e punir com a morte quem abrisse processos contra suas reformas ou seja neutralizar as armas legais da qual dispunha o povo para resistir agrave mudanccedila de regime A obra eacute clara ao descrever o regime dos Quatrocentos como uma ldquoderrubada da democraciardquo (291 τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι

10 Os Onze satildeo magistrados cuja funccedilatildeo era aplicar prisotildees e sentenccedilas de morte aos condenados nos tribunais

11 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 294 οἱ δrsquo αἱρεθέντες πρῶτον μὲν ἔγραψαν ἐπάναγκες εἶναι τοὺς πρυτάνεις ἅπαντα τὰ λεγόμενα περὶ τῆς σωτηρίας ἐπιψηφίζειν ἔπειτα τὰς τῶν παρανόμων γραφὰς καὶ τὰς εἰσαγγελίας καὶ τὰς προσκλήσεις ἀνεῖλον ὅπως ἂν οἱ ἐθέλοντες Ἀθηναίων συμβουλεύωσι περὶ τῶν προκειμένων ἐὰν δέ τις τούτων χάριν ἢ ζημιοῖ ἢ προςκαλῆται ἢ εἰσάγῃ εἰς δικαστήριον ἔνδειξιν αὐτοῦ εἶναι καὶ ἀπαγωγὴν πρὸς τοὺς στρατηγούς τοὺς δὲ στρατηγοὺς παραδοῦναι τοῖς ἕνδεκα θανάτῳ ζημιῶσαι

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τὴν ἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν) mas enquanto Tuciacutedides menciona duas vezes que os Quatrocentos assassinaram seus opositores (VIII 66 e 70) a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona tais mortes O contraste eacute claro na comparaccedilatildeo com a descriccedilatildeo que a mesma obra faz do regime dos Trinta Tiranos ao qual atribui a morte de milhares de cidadatildeos (354)

Os Quatrocentos prometeram entregar o regime aos Cinco Mil cidadatildeos mais capacitados por ldquosuas pessoasrdquo e por suas riquezas (295 τὴν δrsquo ἄλλην πολιτείαν ἐπιτρέψαι πᾶσαν Ἀθηναίων τοῖς δυνατωτάτοις καὶ τοῖς σώμασιν καὶ τοῖς χρήμασιν λῃτουργεῖν μὴ ἔλαττον ἢ πεντακισχιλίοις) Os capiacutetulos seguintes (cap 30 e 31) descrevem como seria este hipoteacutetico regime que nunca veio a existir uma vez que os Quatrocentos foram depostos quatro meses depois (331) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona em paraacutefrase a Tuciacutedides (VIII 68) que era a primeira vez que se estabelecera uma oligarquia em Atenas nos uacuteltimos 100 anos desde a expulsatildeo dos tiranos (322 ἡ μὲν οὖν ὀλιγαρχία τοῦτον κατέστη τὸν τρόπον () ἔτεσιν δrsquo ὕστερον τῆς τῶν τυράννων ἐκβολῆς μάλιστα ἑκατὸν)

Segundo a obra o regime dos Quatrocentos ruiu devido agrave defecccedilatildeo de alguns dos conspiradores entre eles Teracircmenes12 insatisfeitos com o fato que os Cinco Mil foram eleitos apenas nominalmente e os Quatrocentos governaram a cidade de fato (323) A administraccedilatildeo eacute brevemente remetida diretamente aos Cinco Mil (331-2) e em seguida ldquoo povo depotildee estes do regime com rapidezrdquo (341 Τούτους μὲν οὖν ἀφείλετο τὴν πολιτείαν ὁ δῆμος διὰ τάχους) restabelecendo a democracia novamente (412) Esta eacute a nona mudanccedila mais uma vez uma στάσις fria jaacute que a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona nenhuma violecircncia nesta deposiccedilatildeo enquanto Tuciacutedides descreve como ela foi antecedida pelo assassinato de um dos liacutederes dos Quatrocentos Friacutenico e a prisatildeo de outros por tropas sublevadas sob lideranccedila de Teracircmenes quando perceberam uma tentativa de facilitar a invasatildeo espartana (VIII 92) Todos foram julgados pelos Tribunais como conveacutem na democracia antiga e muitos foram condenados Apesar disso pode-se dizer que a derrubada dos Quatrocentos tambeacutem foi uma στάσις fria pois as condenaccedilotildees natildeo foram por derrubar a democracia Os processos contra os liacutederes dos Quatrocentos os acusavam de enviar embaixadas para Esparta em navio inimigo e atraveacutes de territoacuterios ocupados com propostas de paz desvantajosas para Atenas (CANFORA 2015 p 343-347) Entre estes processos incluem-se o insoacutelito caso contra o cadaacutever de Friacutenico (condenado depois de ter sido assassinado) e

12 Sobre a polecircmica historiograacutefica que se abre em torno da figura controversa de Teracircmenes na qual a Constituiccedilatildeo dos Atenienes se engaja avidamente nos cap 285 ver CANFORA 2015 p 411-427

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tambeacutem contra o ceacutelebre orador Antifonte A defecccedilatildeo de Teracircmenes e outros permitiu a reintegraccedilatildeo de boa parte dos apoiadores dos Quatrocentos ao corpo poliacutetico da cidade enquanto os restantes foram responsabilizados por tentarem negociar uma paz desvantajosa por Esparta mas natildeo por algo que os historiadores modernos chamam de golpe oligaacuterquico dos Quatrocentos

5 A guerra aberta a στάσις quente sanguinaacuteria e traumaacutetica aconteceraacute em 404 com a instalaccedilatildeo dos Trinta Tiranos apoacutes a derrota por Esparta (deacutecima mudanccedila) Apoacutes uma acachapante derrota na batalha naval de Egospoacutetamo Atenas eacute ocupada pelo general espartano Lisandro que no tratado de paz exige que a cidade adote o ldquoregime ancestralrdquo (342-3) Mais uma vez a στάσις se faz presente (343)

De um lado os populares tentavam preservar a democracia do outro aqueles associados em confrarias de notaacuteveis e aqueles dentre os exilados que retornaram depois da paz desejavam a oligarquia () Sendo Lisandro favoraacutevel aos oligarcas o povo apavorado foi forccedilado a votar a oligarquia13

Aqui natildeo haacute duacutevida do caraacuteter impositivo do regime por um exeacutercito ocupante natildeo por acaso eacute usado o termo ldquotiraniardquo para descrever um regime cujo ideaacuterio era oligarca Os Trinta revogaram as leis que restringiam o poder do Areoacutepago (352) comeccedilam a perseguir opositores causando enorme mortandade na cidade segundo a obra natildeo menos que mil e quinhentas pessoas (354) Entre os mortos estaacute Teracircmenes que eacute expulso do regime e condenado agrave morte por ter traiacutedo os Quatrocentos (371)

A expulsatildeo dos Trinta Tiranos (deacutecima primeira mudanccedila) ocorre graccedilas ao exeacutercito ateniense que permanecera democraacutetico e retornara da cidade aliada de Samos para reconquistar Atenas pela regiatildeo portuaacuteria em 403 (cap 37 e 38) Apoacutes este restabelecimento de democracia e a execuccedilatildeo dos liacutederes dos Trinta a negociaccedilatildeo de paz a Anistia ndash natildeo por acaso o mesmo termo usado no fim da Ditadura Civil-Militar brasileira ndash eacute longa traumaacutetica e complexa Os partidaacuterios do Trinta foram isolados no distrito de Elecircusis e proibidos de transitar em Atenas (cap 39 e 40) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses silencia sobre isso mas Xenofonte (Helecircnicas II 43) relata que os conflitos natildeo cessaram e alguns liacutederes de Elecircusis foram massacrados numa emboscada

13 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 343 οἱμὲνδημοτικοὶδιασῴζεινἐπειρῶντοτὸνδῆμον τῶν δὲ γνωρίμων οἱ μὲν ἐν ταῖς ἑταιρείαις ὄντες καὶ τῶν φυγάδων οἱ μετὰ τὴν εἰρήνην κατελθόντες ὀλιγαρχίας ἐπεθύμουν ()Λυσάνδρου δὲ προσθεμένου τοῖς ὀλιγαρχικοῖς καταπλαγεὶς ὁ δῆμος ἠναγκάσθη χειροτονεῖν τὴν ὀλιγαρχίαν

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em 40014 Quatro anos passaram-se entre a instalaccedilatildeo dos Trinta em 404 e o uacuteltimo acerto de contas em 400 Quatro anos para a στάσις ateniense esfriar novamente e os assassinatos e combates entre cidadatildeos cessarem iniciando um longo periacuteodo de oitenta anos nos quais a obra natildeo identifica nenhuma mudanccedila de regime A στάσις natildeo deixa de existir apenas torna-se novamente fria

6 Pode-se concluir que as mudanccedilas de regime na Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo residem na ideia de rompimento do Estado de Direito ou seja do sistema institucional vigente uma vez que as instituiccedilotildees podem ser legalmente reformadas ou mesmo extintas sem que haja distinccedilatildeo entre reformas e golpes de Estado para a Constituiccedilatildeo dos Atenienses todas satildeo μεταβολαί Tais mudanccedilas no entanto soacute ocorrem dentro de uma oscilaccedilatildeo dos trecircs tipos de regime (monarquia oligarquia democracia) e suas variantes positivas e negativas Ou seja elas refletem sempre os conflitos entre grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos os ricos contra os pobres os notaacuteveis contra a multidatildeo15 A raiz histoacuterica desta concepccedilatildeo estaacute na idealizaccedilatildeo do regime de Soacutelon cuja poesia eacute um testemunho de um pensamento que tenta equilibrar as tensotildees entre pobres e ricos multidatildeo e notaacuteveis16 Minha contribuiccedilatildeo central eacute perceber tais στάσεις podem assumir a forma de combates armados (στάσις quente) ou de processos juriacutedicos e emendas legislativas (στάσις fria)

Inexiste no pensamento poliacutetico claacutessico e aristoteacutelico a ideia de progresso histoacuterico que marca as concepccedilotildees modernas de revoluccedilatildeo social e golpe de Estado O ideal que se busca eacute de equiliacutebrio e moderaccedilatildeo diminuir os excessos e desigualdades dos extremos e natildeo necessariamente tomar o partido do povo algo provavelmente estranho ao pensamento peripateacutetico e tambeacutem agrave esmagadora maioria dos autores claacutessicos membros das elites Os proacuteprios democratas natildeo se enxergavam como ldquomais progressistasrdquo que os oligarcas Ao contraacuterio ambas facccedilotildees viam a si mesmos como legiacutetimas representantes de um idealizado regime ancestral de Atenas

O diaacutelogo constante entre o contemporacircneo e o antigo eacute perigoso e o anacronismo inevitaacutevel A democracia ateniense era muito diferente da moderna pressupunha participaccedilatildeo direta bem como a exclusatildeo de mulheres metecos e escravos O diaacutelogo pode ser uacutetil quando conceitos poliacuteticos do

14 Ver CANFORA 2015 pp 437-450

15 Esta concepccedilatildeo no qual a desigualdade eacute a causa motriz de toda στάσις natildeo estaacute distante daquilo que eacute discutido no livro 5 da Poliacutetica

16 Sobre a representaccedilatildeo de Soacutelon na obra ver o comentaacuterio dos cap 2 5-12 em CORREA 2012 pp 83-91

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contemporacircneo satildeo redefinidos com o contraste do antigo Investigar este diaacutelogo nos ajuda a elucidar os sentidos contemporacircneos atribuiacutedos aos termos antigos bem como a levantar questotildees que natildeo enunciamos mais por nossa incapacidade de olhar com estranhamento para nossos proacuteprios referenciais eacuteticos e conceituais

Neste sentido cabe notar que um dos aspectos centrais da crise poliacutetica instaurada no Brasil desde 2016 eacute a insuficiecircncia da diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais na sociedade brasileira isto eacute da distacircncia entre ricos e pobres A bonanccedila econocircmica dos Governos Lula garantiram estabilidade poliacutetica e a renda miacutenima dos setores mais vulneraacuteveis sem no entanto combater privileacutegios de setores oligaacuterquicos Pelo contraacuterio adotou-se um presidencialismo de coalizaccedilatildeo no qual a cooptaccedilatildeo de partidos ocorre atraveacutes de uma poliacutetica patrimonialista transpartidaacuteria e parasitaacuteria ao Estado que se pode chamar ldquoPemedebismordquo (NOBRE 2013) Esta eacute uma modalidade oligaacuterquica da poliacutetica que tomou forma desde a redemocratizaccedilatildeo de 1985 e se caracteriza pela ampla utilizaccedilatildeo de corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural no proacuteprio aparelho administrativo do Estado nas empresas estatais e tambeacutem em oligopoacutelios privados que negociam apoio financeiro a Partidos em troca de vantagens em contratos e licitaccedilotildees puacuteblicas Se tal praacutetica jaacute era presente nos governos de caraacuteter neo-liberal e privatista do Partido da Social Democracia Brasileira (1995-2002) parece ter se intensificado nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)

Dilma Rousseff foi derrubada do poder pelo o Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal instituiccedilotildees legiacutetimas mas o contexto histoacuterico que marca o processo natildeo eacute uma suacutebita vontade de aplicaccedilatildeo rigorosa da lei mas uma crise poliacutetica intensa que criou a oportunidade para reformas poliacuteticas de teor oligaacuterquico que visam o estancamento de poliacuteticas de diminuiccedilatildeo de desigualdade no contexto de recesso econocircmico Dilma Roussef eacute um bode expiatoacuterio de todos os crimes de morosidade e corrupccedilatildeo da classe poliacutetica brasileira e o sucessor Michel Temer rapidamente se apresentou como um ldquoreformadorrdquo isto eacute algueacutem que reverte todo o processo instaurado anteriormente Eacute uma στάσις fria entre os grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos de ricos e pobres do povo e dos donos do poder O Brasil conheceu processo semelhante no Golpe Militar de 64 contra o Governo Joatildeo Goulart sendo entatildeo uma στάσις quente com violecircncia institucional expliacutecita Em ambos os casos a Miacutedia tem papel predominante em pautar o debate puacuteblico e criar identidades junto agraves camadas populares que simpatizam com as reformas oligaacuterquicas a partir do seu teor conservador moralista de manutenccedilatildeo do

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status quo ameaccedilado pelas poliacuteticas de distribuiccedilatildeo de renda e discussotildees eacuteticas em torno da politicas identitaacuterias

O presidencialismo de coalizaccedilatildeo entrou em curto-circuito apoacutes a reeleiccedilatildeo de Dilma Roussehf em 2014 e o iniacutecio de uma poliacutetica de ajuste econocircmico que contrariava a propaganda eleitoral da candidata Este embuste eleitoral somado agraves poliacuteticas de combate agrave corrupccedilatildeo iniciadas pelo proacuteprio governo que acabaram se voltando contra ele proacuteprio e sua base partidaacuteria fez uma crise econocircmica torna-se tambeacutem poliacutetica A miacutedia e o sistema juriacutedico criaram uma situaccedilatildeo de fragilidade na qual os setores oligaacuterquicos se rebelam contra um Governo de centro-esquerda enfraquecido radicalizando a στάσις brasileira Apoacutes 13 anos o Partido dos Trabalhadores foi sacado do Poder natildeo por invasores externos mas por seus fiadores oligaacuterquicos que se identificam pelo patrimonialismo pela corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural do Pemedebismo somado agrave forccedila conservadora da Miacutedia e demais setores privados

A στάσις brasileira pendeu para o lado oligaacuterquico revelando o esgotamento do presidencialismo de coalizaccedilatildeo e pondo a nu os limites da poliacutetica de cooptaccedilatildeo da base atraveacutes de corrupccedilatildeo sistecircmica Natildeo por acaso os escacircndalos que atingem a esquerda ainda que reais e condenaacuteveis satildeo bodes expiatoacuterios nos quais a Miacutedia o Sistema Judiciaacuterio e a oligarquia poliacutetica descarregam seu rancor contra as poliacuteticas de diminuiccedilatildeo da desigualdade Mesmo quando estes setores oligaacuterquicos tentam fazer valer a mesma letra dura da lei para o lado conservador satildeo barrados por outras forccedilas que natildeo correspondem agrave luta contra corrupccedilatildeo mas sim agrave στάσις o conflito de interesses entre pobres e ricos entre multidatildeo e elite

A Esquerda partidaacuteria se ainda reivindica defender interesses populares e democraacuteticos precisa declarar uma guerra irrestrita agrave cultura poliacutetica patrimonialista do Pemedebismo Esta guerra natildeo pode ser combatida somente atraveacutes do sistema partidaacuterio-eleitoral uma vez que o Pemedebismo jaacute estaacute instalado em quase todos os Partidos e tem forte influecircncia no Judiciaacuterio alianccedila esta que permitiu a derrubada de Dilma Rousseff Eacute preciso atacar a fonte de poder do Pemedebismo o aparelhamento do Estado e o patrimonialismo parasitaacuterio e satildeo outras formas de radicalizaccedilatildeo da democracia que podem cumprir este papel Nesta luta a liccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses pode ser uacutetil a στάσις eacute uma luta de grupos antiteacuteticos assimeacutetricos de um lado uma multidatildeo pobre e anocircnima do outro poliacuteticos profissionais oligaacuterquicos grupos midiaacuteticos e corporativos conservadores Se a esquerda quer ter um papel nesta luta precisa juntar forccedilas com um destes grupos mas jamais com o outro

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Abstract The paper approaches the vocabulary and the structure of references about political and institutional ruptures in the Aristotelian Athenian Constitution in order to problematize the idea of legal and parliamentary coup against the Brazilian president Dilma Roussef in 2016 and the ethical and conceptual imbroglio of such kind of political change The text discusses the ancient vocabulary especially in the Athenian context and emphasize Aristotlersquos political thoughtKeywords Athenian Constitution Coup drsquoeacutetat political overthrow

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MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDADY ETERNA MEMORIA

Julio Loacutepez Saco1

Resumen Los mitos de origen griego vinculados con la muerte asiacute como los deseos de alcanzar la inmortalidad y una nueva vida en el Maacutes Allaacute a traveacutes de la eterna perduracioacuten del alma impregnaron la imaginacioacuten religiosa romana Con posterioridad a la muerte el ser humano se transformaba en una serie de entidades (lemures manes larvae penates lares) de no siempre faacutecil identificacioacuten Desde la oacuteptica romana la muerte requeriacutea una serie de honores funerarios bien establecidos para evitar la conversioacuten del fallecido en un fantasma sin descanso y para de ese modo apaciguar los componentes malignos o negativos En la antigua Roma la muerte era un acto social que en cuanto a los lugares de inhumacioacuten modos de celebracioacuten y cultos no igualaba a los fallecidos existiendo notables diferencias seguacuten la condicioacuten social o el estatus del muertoPalabras clave muerte inframundo rito culto

Introduccioacuten

El significado social del mundo de la muerte en la antiguumledad romana solamente puede conocerse gracias a determinada documentacioacuten literaria y epigraacutefica (inscripciones funerarias) la presencia de monumentos histoacutericos y necroacutepolis (con sus tipos de tumbas y ajuares funerarios) a la ritualidad que envolviacutea el duelo asiacute como a la interpretacioacuten de los mitos (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 5)

En la antiguumledad dos de los temas baacutesicos maacutes relevantes en los que se centraron los relatos eacutepicos y mitoloacutegicos fueron sin duda la adquisicioacuten de la

1 Doctor en Ciencias Sociales y Doctor en Historia Investigador y Profesor Titular Escuela de Historia Universidad Central de Venezuela Caracas Doctorado en Historia FHE-UCV E-mail julosaucvgmailcom

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inmortalidad y la buacutesqueda de la eterna juventud (PLATOacuteN Fedro 245e)2 En el trasfondo de tal buacutesqueda se encuentra la preocupacioacuten por la muerte tal y como innumerables mitos han reflejado de modos bastante variados (Gilgamesh Orfeo Heracles)

En teacuterminos generales los mitos de la muerte en la mitologiacutea (particularmente griega) afirmaban que las almas de los difuntos viajaban al mundo subterraacuteneo de Plutoacuten y Perseacutefone guiadas por Mercurio la deidad psicopompa por excelencia Se veiacutean obligadas a atravesar la laguna Estigia en la balsa conducida por Caronte El mundo subterraacuteneo teniacutea en su entrada un temible custodio el Can Cerbero (veacutease ilustracioacuten 3) Una vez en el inframundo se llevaba a cabo un juicio a las almas Despueacutes del veredicto las mismas eran trasladadas a siete regiones seguacuten fuese el caso La primera estaba destinada a los infantes no natos que no eran juzgados en la segunda moraban los inocentes condenados injustamente la tercera correspondiacutea a los suicidas mientras que la cuarta denominada Campo de Lagrimas era la zona en la que permaneciacutean los amantes infieles la quinta estaba habitada por heacuteroes crueles en tanto que la sexta era el famoso Taacutertaro lugar en el que se procediacutea a castigar a los perversos y finalmente la seacuteptima correspondiacutea a los Campos Eliacuteseos sitio de morada de las almas bondadosas en la felicidad eterna

Muerte e inmortalidad en las fuentes claacutesicas

Si bien ya los pitagoacutericos mencionan el alma seraacute PLATOacuteN (Repuacuteblica 580e Fedoacuten 69e-84b) quien ofrezca la posibilidad de una esperanza ante la muerte Lo mortal y lo inanimado es el cuerpo fiacutesico mientras que lo animado el aacutenima es lo que pervive el alma Las almas transmigran idea que tambieacuten defiende en el aacutembito romano OVIDIO (Metamorfosis XV 165-166) SALUSTIO (Sobre los dioses y el mundo 20-21) y VIRGILIO (Eneida VI 730-750) Este uacuteltimo autor sentildeala que el alma al morir ascendiacutea por mediacioacuten del aire para luego atravesar las aguas que habiacutea sobre el aire y al fin recorrer la atmoacutesfera que estaacute expuesta a los rayos solares Tal viaje suponiacutea una purificacioacuten del alma mediante los elementos el aire el agua y el sol (fuego) de modo que pudiese lograr estar limpia (purificada) para acceder al Eliacuteseo (PEREA YEBENES S 2012 pp 34-36 RHODE E 1948 pp

2 La fama la gloria imperecedera asiacute como la permanencia en el recuerdo de los vivos (ademaacutes de la descendencia) siempre constituyoacute una forma peculiar de inmortalidad Una preocupacioacuten evidente en heacuteroes guerreros como Aquiles o en grandes generales conquistadores como Alejandro Magno pero tambieacuten en personalidades como Julio Ceacutesar La inmortalidad seguacuten Platoacuten seraacute asiacute una prerrogativa del alma humana

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145-149 y ss) En el Eliacuteseo podiacutea permanecer o tambieacuten ser conducida al Leteo (olvido) para afrontar una nueva existencia terrenal

Tambieacuten CICEROacuteN en Suentildeo de Escipioacuten (Sobre la Repuacuteblica VI 13-26) defendiacutea la permanencia y por consiguiente la inmortalidad del alma Para los estoicos como SEacuteNECA (Cartas a Lucilio XLIV 2 De la Consolacioacuten a Helvia XI 7) el alma es aquello que el ser humano tiene de racional ademaacutes de divino Es la que ayudada por la filosofiacutea nos haraacute resistir a la fortuna y saber por tanto afrontar la muerte

Por el contrario los epicuacutereos negaban la inmortalidad El espiacuteritu que conferiacutea vida se disolviacutea en el aire y se perdiacutea para siempre tras la muerte Ello implicaba que las personas no teniacutean entonces por queacute temer el mundo del maacutes allaacute de modo que podiacutean dedicarse a disfrutar de este (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 87 PEREA YEBENES S 2012 p 40-45)

No hubo conceptos concretos en el mundo romano en relacioacuten a en queacute se convertiacutean los difuntos despueacutes de fallecer En cualquier caso la tradicioacuten romana vislumbra la existencia de los espiacuteritus de los muertos Se trataba de los Dii parentes et Manes iacutentimamente asociados a los Genii Tales genios permaneciacutean activos durante la vida diferenciaacutendose por sus valores morales que se prolongaban tras su muerte Dichos genios continuaban habitando en las sepulturas un factor que motivoacute su identificacioacuten con la osamenta las cenizas e incluso con los propios sepulcros

Los autores antiguos presentan disparidades en relacioacuten a la entidad en la que se trasformaba el ser humano con posterioridad a la muerte del cuerpo En tal sentido existieron distintas denominaciones (COULIANO I P 1993 pp 122-125 FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 346-348 y ss) El Genius del difunto se relacionaba con el vocablo Manes (los ilustres) emparentado a su vez con Lares Penates Larvae y Lemures La profusioacuten de denominaciones demuestra en cualquier caso la existencia de la creencia en la inmortalidad del alma tras la desaparicioacuten del cuerpo

Entidades del maacutes allaacute los Manes

Aquellos difuntos bondadosos que velaban por sus descendientes se denominaban Lares familiares mientras que los inquietos perturbadores o sencillamente nocivos y que ademaacutes asustaban con apariciones nocturnas se llamaban Larvae (PICCALUNGA 1961 pp 87-89 y ss) Si no se sabiacutea

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con seguridad en queacute se habiacutea convertido el alma del fallecido se nombraba Manes3 Manes eran en general los espiacuteritus de los muertos Los Manes familiares eran aquellos difuntos que pasaban a formar parte del conjunto de espiacuteritus metamorfoseados en divinidades Se puede decir que era la sombra del difunto su espiacuteritu santificado por el deceso y en consecuencia proclive a ser objeto de veneracioacuten y respeto aunque al tiempo de temor y ofuscacioacuten a lo desconocido

De una manera o de la otra lo cierto era que habiacutea que distinguir entre genios buenos y malos En tal sentido las almas de los difuntos eran ldquodiosesrdquo de los muertos o en todo caso entidades que se hallaban en el mundo de los muertos al lado de las divinidades infernales (Orcus por ejemplo) De esta forma los Manes podiacutean ser identificados con esas deidades (MONTERO HERRERO S 1990 p 42)

Desde la eacutepoca de Augusto algunos autores sobre todo Virgilio y LIVIO (Ab Urbe condita III 5811) emplearon el teacutermino Manes para detallar a ciertas divinidades infernales y sombras de los muertos SERVIO por su parte (Commentarius ad Aeneidam III 63) menciona que en tanto los dioses celestes eran los de los vivos las otras deidades en concreto los Manes eran los dioses de los muertos Seriacutean entonces unos dioses secundarios que dominaban las tinieblas nocturnas Se podriacutea decir al modo de TAacuteCITO (Vida de Agriacutecola) que eran sombras espiacuteritus fantasmales (PROPERCIO Elegiacutea IV 6-7)4

En teacuterminos generales el hombre comuacuten no sabiacutea con exactitud el significado de los Manes esto es si representaban el alma del difunto o se trataba de deidades de ultratumba En las inscripciones funerarias (veacutease ilustracioacuten 1) se mencionan estas divinidades sin precisar ni caraacutecter ni funciones ni atributos particulares (MONTERO HERRERO S 1990 p 43 COULIANO I P 1993 p 126 y ss) En ocasiones aparecen al lado de DM o Dis Manibus epiacutetetos como inferi (con lo cual se implicariacutea su calidad

3 Aunque designe el alma de un muerto el vocablo se usaba en plural Es probable que ello se deba a las arcaicas costumbres funerarias de la cultura Terramara por la cual se inhumaban los fallecidos en recintos comunes De tal modo el alma de los muertos permaneciacutea ldquovivardquo entre sus descendientes convirtieacutendose en espiacuteritus familiares VARROacuteN (De Lingua Latina VI 324 IX 3861) confunde los Manes con los Lares Los considera a ambos figuras eteacutereas Habitualmente se confundiacutea Lares con Larvae y con los Manes

4 Este autor sentildeala que los Manes existen y que en correspondencia la muerte no es el final definitivo Horacio expone que los Manes eran como ceniza sombras un recuerdo

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de dioses de ultratumba protectores de los fallecidos CIL II 2464 2722 VI 12311 X 2322 2565) y unas pocas veces otros como sacer o castus5

Para algunos autores como APULEYO (De Deo Socratis 25) el espiacuteritu humano despueacutes de haber salido del cuerpo se transformaba en una suerte de demonio que los antiguos llamaban Lemures

La ritualidad de la muerte

En los funerales era imprescindible que se tributara los honores debidos al fallecido (Iusta) Si se produciacutea alguacuten olvido o una irregularidad el difunto se convertiriacutea en un fantasma que no descansariacutea hasta que sus allegados o parientes le hicieran la debida justicia Esa necesidad de unos ritos funerarios que atendieran al difunto se continuaba tiempo despueacutes de la inhumacioacuten para asegurar su descanso eterno Existiacutea entonces la necesidad de que se recordara al difunto se dejara constancia de su existencia y se le rindiera culto a su numen (y a su nomen) para que perviviese en la memoria eterna

Un relevante nuacutemero de rituales se orientaban maacutes hacia el objetivo de apaciguar los componentes malignos de los difuntos que hacia una imprescindible suacuteplica como deidades activas En todos los casos se inmolaban viacutectimas se realizaban juegos combates de gladiadores como homenaje se ofrendaban alimentos en la tumba en determinados diacuteas concretos6 (cumpleantildeos diacutea de difuntos) y se conformaba un ajuar de diversos objetos

La muerte se concebiacutea en la antigua Roma como un acto social y en cierta medida puacuteblico El tiempo de luto para los familiares directos era de diez meses El funeral (funus) comenzaba en casa del difunto (BELAYCHE N 1993 pp 158-159 FREDOUILLE J C 1987 p 174) La familia acompantildeaba al moribundo a su cama y le daba un uacuteltimo beso para retener asiacute el alma que se escapaba por su boca Despueacutes de producirse el deceso se le

5 Con Dis Inferis Manibus se infiere el caraacutecter sacro de la tumba Los teacuterminos que delimitaban el sepulcro podiacutean considerarse sagrados En este caso la inscripcioacuten habitual era Dis Manibus Sacrum (DMS) que los primeros cristianos primitivos conservaron reinterpretaacutendola como Deo Magno Sancto

6 Los diacuteas de difuntos (Parentalia) se celebraban en febrero Otras fiestas dedicadas a los muertos fueron las Lemurias (celebradas en mayo) En esos especiales diacuteas las almas cuyos cuerpos no habiacutean recibido sepultura merodeaban en los hogares Por tal motivo el padre de familia debiacutea representar un ritual para alejar a esos espiacuteritus errantes Despueacutes de lavarse las manos como sentildea de purificacioacuten se metiacutea nueve habas negras en la boca Luego descalzo se desplazaba por la casa escupiendo las habas una a una para que nutriesen a los espiacuteritus malignos conocidos como Lemures

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cerraban los ojos y se le llamaba tres veces por su nombre para asiacute corroborar que realmente habiacutea fallecido A continuacioacuten el cuerpo era lavado perfumado con unguumlentos y finalmente vestido Seguacuten la costumbre griega se depositaba al lado del cadaacutever una moneda para que Caronte se cobrase por el transporte de su alma (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 34) El cuerpo se ubicaba sobre una litera con los pies mirando hacia la puerta de entrada y rodeado de flores un siacutembolo de la fragilidad de la vida pero a la par de la renovacioacuten Durante tres a siete diacuteas permaneciacutea expuesto el difunto Encima de la puerta de entrada de la casa se poniacutean ramas de abeto o de cipreacutes para asiacute avisar a los viandantes de la presencia de un muerto en el interior

El difunto en particular en los casos de romanos de alta condicioacuten social era trasladado por las calles de la ciudad (GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 43-56 y ss FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 355-356) Delante y detraacutes de la comitiva fuacutenebre (pompa funebris) se desplazaba un cortejo compuesto de esclavos tocando instrumentos musicales como flautas trompetas o trompas los portadores de antorchas el propio difunto en un atauacuted de madera abierta sobre una suerte de camilla (tambieacuten podiacutea ser llevado a hombros por miembros de la familia) (Veacutease ilustracioacuten 2) Detraacutes del difunto iba el resto del cortejo fuacutenebre formado por la familia y los amigos ademaacutes de una comitiva de personal pagado (plantildeideras mimos bailarines) y finalmente las fasces las representaciones de los momentos significativos de la vida del fallecido o aacuterboles genealoacutegicos del difunto (HINARD F 1995 p 98 PRIEUR J 1986 pp 112-115 y ss TIEMBLO MAGRO A 2011 p 167)

Hasta finales de la primera centuria de nuestra era el funeral se celebraba por la noche con la ayuda de la luz de antorchas Esto era asiacute porque la muerte era un suceso que se consideraba contaminante Sin embargo en siglos posteriores se comenzaron a realizar los ritos durante el diacutea excepto aquellos de nintildeos indigentes o suicidas

La tumba definitiva se consagraba con el sacrificio de una cerda (ilustracioacuten 5) Una vez que el sepulcro estaba ya finalizado y todo dispuesto se llamaba tres veces al alma del difunto para que pudiera entrar en la morada que se le habiacutea preparado para su nueva vida Despueacutes del entierro se levantaba una estatua del difunto en un lugar visible de la casa dentro de en una hornacina de madera

En el caso de la incineracioacuten la ceremonia se celebraba encima de una pira en forma de altar sobre la que se depositaba el atauacuted con el cadaacutever Se le abriacutean los ojos para que pudiera observar coacutemo su alma de dirigiacutea hacia el cielo

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(GNOLI G amp VERNANT JP 1982 p 60 FREDOUILLE J C 1987 pp 177-179) Se sacrificaban e incineraban animales y se arrojaban sobre la pira ofrendas de alimentos y perfumes Se le nombraba una uacuteltima vez y se encendiacutea la pira con antorchas El rito concluiacutea vertiendo agua y vino sobre la pira Finalmente los asistentes se despediacutean del difunto deseaacutendole que la tierra le fuera ligera Sit Tibi Terra Levis (STTL) una foacutermula muy habitual en las inscripciones funerarias

Es conveniente recordar que los monumentos funerarios de los romanos se ubicaban al margen de los liacutemites de la ciudad a ambos lados de la calzada principal Soliacutean ornarse con jardines

Al fallecer alguno de los componentes de la familia romana de inmediato pasaba a formar parte de los antepasados familiares verdaderos Manes protectores a los que se les homenajeaba manteniendo siempre ardiendo el fuego del hogar La tumba elegida no podiacutea ser cambiada de lugar pues los manes requeriacutean una morada fija (que se suponiacutea eterna) a la que se asociaban todos los difuntos de la familia

En teacuterminos generales se piensa que los muertos no llevaban una existencia que podriacutea considerarse feliz Es por ello que habiacutea que abastecer las tumbas con todo aquello que el fallecido necesitara (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 172 HINARD F 1995 p 102) Para apaciguar a los espiacuteritus de los muertos y hacerles maacutes llevadera su infelicidad se ofrendaban alimentos (leche vino miel pan huevos) en los sepulcros en nombre de las familias de las asociaciones profesionales o de las propias ciudades Habiacutea una suerte de obligacioacuten en ello no soacutelo de cara a los fallecidos pues se entendiacutea que la carencia de homenajes a los Manes provocaba pesadillas y enfermedades a los vivos

Los lugares para la eternidad

Los sepulcros no eran espacios sombriacuteos luacutegubres pues se entendiacutea que la muerte conviviacutea con la vida7 Los difuntos no debiacutean ser olvidados y por ello sus lugares de reposo final se vinculaban con el entorno circundante (CUMONT F 1942 p 63) En los epitafios no se vislumbran deseos

7El espacio dedicado al enterramiento sepulchrum adquiriacutea el caraacutecter de sitio sacro lucus religiosus inamovible inviolable e inalienable Al recinto uacutenicamente podiacutean acceder los familiares del fallecido

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inframundanos sino que abundan expresiones que se asocian con los vivos y con la vida mundana En general se escribiacutean para que el transeuacutente los leyera y asiacute hubiera una constancia de su paso por la vida que ya dejoacute (LAVAGNE H 1987 pp 163-164 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1144-1146 y ss CUMONT F 1942 pp 65-68) Por eso en ellos se encuentran relatos de la vida del muerto saludos o explicaciones de coacutemo murioacute En algunos incluso se hallan consejos y hasta pensamientos de tipo poliacutetico (BAYET J 1957 pp 42-45 y ss)

Ilustracioacuten 1 Inscripcioacuten funeraria del altar de Quinto Fulvio Fausto y Fulvio Prisco Siglo I Museo Nazionale Romano

Ilustracioacuten 2 Relieve en maacutermol de Amiternum en la que se representa la pompa funebris de un entierro Museo Aquilano siglo I aec

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Ilustraciones 3 y 4 (Izquierda) Hades y Cerbero Museo Arqueoloacutegico de Creta (derecha) urna cineraria del Museo Arqueoloacutegico de Palermo La inscripcioacuten reza asiacute D(is) M(anibus) S(acrum)

L(ucio) CORNELIO LAETO FILIO DVLCISSIMO QVI VIX(it) AN(nos) XVI M(enses) II D(ies) XXIIII SER(vius) CORNEL(ius) LAETVS PAT FEC

Ilustracioacuten 5 Ara de los Vicomagistri del vicus Aesculetus (fines del siglo I aec) Los magistrados (cuatro por cada vicus o barrio) eran elegidos anualmente para organizar las ceremonias sacrificiales

asociadas a los Lares Compitales a los que se ofreciacutea un cerdo y al Genius del princeps al que iba destinado un toro La inscripcioacuten habla del antildeo noveno desde la reorganizacioacuten de este culto por Augusto A la derecha los magistrados con la cabeza cubierta indicando una funcioacuten sacerdotal

Tambieacuten se observa un muacutesico con auloacutes Abajo los animales para el sacrificio

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Existieron en el mundo romano diferentes tipos de enterramientos Aquellas tumbas maacutes lujosas eran los sepulcros monumentales los mausoleos que podiacutean adquirir la forma de una casa o un templo Por su parte los columbaria era una gran tumba en cuyos muros se ubicaban nichos para depositar las urnas con las cenizas de los difuntos Aparecen desde el siglo I aec siendo empleadas hasta el siglo III y son inhumaciones colectivas propias de corporaciones funerarias Habiacutea tambieacuten fosas simples excavadas en el suelo algunas de ellas revestidas con cajas de ladrillo y con cubiertas de maacutermol (VAN ANDRINGA W 2006 p 1149)

Desde el siglo II la incineracioacuten fue paulatinamente reemplazada por la inhumacioacuten No obstante hubo una coexistencia de ambos modos funerarios La distincioacuten se relacionaba con la condicioacuten social o el estatus del fallecido En este sentido la inhumacioacuten se reservaba para la gente humilde y para los esclavos mientras que la incineracioacuten se usaba con los miembros de familias nobles patricias (GALINIER M 1999 pp 114-115 BELAYCHE N 1993 p 182) Asiacute poco a poco en lugar de utilizar urnas funerarias propias de la incineracioacuten (veacutease ilustracioacuten 4) se fue extendiendo la costumbre de enterrar a los muertos en cajas bien de madera o de piedra de las cuales derivariacutean los sarcoacutefagos (por otro lado conocidos ya en Etruria y en ciertas regiones del aacutembito heleniacutestico) usados en las inhumaciones Los sarcoacutefagos formaban parte de un monumento funerario (LAVAGNE H 1987 p 168) Soliacutean ser decorados con elementos simboacutelicos y con disentildeos geomeacutetricos (como los surcos ondulados o strigiles)

Los enterramientos individuales presentaban numerosos tipos de monumento funerario Las laacutepidas eran un elemento clave (PRIEUR J 1986 pp 127-128 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1150-1152 GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 91-92) Podiacutean ser estelas exentas coronadas por frontones piedras esculpidas con forma semiciliacutendrica (cupae) propias de esclavos y libertos pedestales y altares ornados con decoracioacuten vegetal o relieves con los bustos de los muertos empotrados en los muros de la tumba Enterramientos muy modestos eran por su parte las cajas de losas de pizarra de aacutenforas (muy empleadas para la inhumacioacuten de infantes) o tegulas reusadas

Conclusioacuten

El concepto de la pervivencia del alma humana en otra esfera es el punto de inicio a partir del cual la antiguumledad romana dedicoacute esfuerzos al recuerdo de sus fallecidos de sus antepasados Al margen de una relativamente confusa profusioacuten de entidades fantasmales como habitantes habituales del maacutes allaacute

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hubo siempre una necesidad de homenajear al difunto con rituales apropiados y en habitaacuteculos adecuados La diferenciacioacuten existente en las ceremonias fuacutenebres y en los propios lugares de descanso de unos y otros se asocioacute con la condicioacuten social o el estatus del fallecido A pesar de la falta de igualdad tras el deceso persistioacute siempre no obstante la creencia en la inmortalidad y la imperiosa necesidad de la pervivencia a traveacutes de la memoria eterna

Abstract The myths of origin Greek linked with the death as well as wishes of achieve the immortality and a new life in the more beyond through the eternal endurance of the soul permeated the imagination religious Roman After death the human turned into a series of entities (lemurs lares manes larvae penates) not always easy to identify From the Roman standpoint death required a series of well-established funeral honors to prevent the conversion of the deceased in a ghost without a break and to thereby appease the evil or negative components In ancient Rome the death was a social event which in terms of the places of burial ways of celebration and worship not equal to the deceased there are notable differences according to social condition or the status of the deadKeywords death underworld ritual cult

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Fouille de la neacutecropole de Porta Pariacutes Les Belles-Lettres 2006 pp 1131-1161

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ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO

Camila Alves Jourdan1

Resumo O poder do mar pode ser compreendido em sua capacidade de submersatildeo em sua imensidatildeo e vastidatildeo em sua profundidade e seu constante movimento Estas cinco caracteriacutesticas atribuiacutedas por Astrid Lindenlauf (2003) em seu estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno nos possibilita perceber as potencialidades do mar na atuaccedilatildeo do desaparecimento eou no encobrimento de rastros indesejados Deste modo pretendemos neste artigo analisar passagens que nos permitam elucidar a relaccedilatildeo de accedilotildees consideradas vergonhosascriminosas pela sociedade helecircnica com o mar em obras textuais dos periacuteodos arcaico e claacutessico e representaccedilatildeo imageacuteticaPalavras-chave Mar desaparecimento crimes

1 Alguns apontamentos sobre a morte

Um dos principais estudiosos acerca da questatildeo da morte foi Edgar Morin (1970) Para ele a ideia de morte soacute se torna compreensiacutevel quando podemos representaacute-la e conceitualizaacute-la ndash o que natildeo fazem os animais Para Morin a consciecircncia de morte estaacute relacionada agrave vida em sociedade humanamente organizada Deste modo somente os seres humanos dispotildeem de um arcabouccedilo cognitivo capaz de decodificar e assim compreender o ato de morrer bem como suas implicaccedilotildees aos vivos O reconhecimento da morte implica em uma consciecircncia do indiviacuteduo e de sua individualidade mesmo estando em sociedade A percepccedilatildeo de perda da proacutepria individualidade mostra um indiviacuteduo consciente de si Consciente de sua morte O enterramento dos cadaacuteveres marca a percepccedilatildeo de finitude da mortalidade humana Quando se inicia esse processamento e reflexatildeo sobre os seus mortos a morte ldquonatildeo se trata mais de uma questatildeo de instinto mas jaacute da aurora do pensamento humano que se traduz por uma espeacutecie de revolta contra a morterdquo (MORIN 1970 p 31)

1 Mestra e doutoranda em Histoacuteria Social pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA-UFF) E-mail camilaajourdangmailcom

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A morte eacute sobretudo um ato social E como social a morte natildeo se refere apenas ao indiviacuteduo mas a coletividade que estaacuteestava a sua volta ndash famiacutelia comunidade ciacuterculos de amizade e de outras formas de relacionamento Um rompimento de viacutenculos que ocorre quando o morto deixa de existir Entretanto eacute a ambiguidade que marca este momento crucial na interpretaccedilatildeo de Joseacute Carlos Rodrigues (2006 p 34) o morto apenas se libertou de seu aspecto terrestre para que assim pudesse dar continuidade agrave sua existecircncia em outro lugar ou seja de fato o morto natildeo deixa de existir pois a crenccedila na sobrevivecircncia de uma parte deste morto de um duplo permeia diversas sociedades De acordo com Maacutercia Maria de Medeiros

Uma antropologia histoacuterica da morte mostra com efeito que os homens das sociedades arcaicas repugnavam a ideacuteia de uma destruiccedilatildeo definitiva e total e consideravam que os mortos continuavam a levar a nosso lado uma vida invisiacutevel e natildeo cessam de intervir no curso da existecircncia daqueles que chamam a si mesmos de vivos (DASTUR Apud MEDEIROS 2008 p 154)

Esta interpretaccedilatildeo nos permite compreender o conjunto do imaginaacuterio helecircnico acerca do processo pelo qual passava o morto ndash a morte imputada por Thanatos ndash dos processos de manutenccedilatildeo de sua continuidade ndash ritos fuacutenebres ndash dos lugares-imaginados como locais de permanecircncia desse defunto ndash como os domiacutenios de Hades o reino dos mortos A ambiguidade neste cenaacuterio reside no fato de que a morte eacute a princiacutepio um ato de exclusatildeo de desligamento Entrementes esta exclusatildeo necessita ser compensada com a re-inserccedilatildeo do indiviacuteduo em uma espeacutecie de renascimento em uma nova vida em um novo grupo social em um novo mundo (RODRIGUES 2006 p 34) Esta nova inserccedilatildeo necessita de um trabalho de desagregaccedilatildeo em um domiacutenio e a inserccedilatildeo em um novo Esta accedilatildeo exige um esforccedilo nos campos simboacutelico e cognitivo para reorganizar tais desestruturaccedilotildees e reestruturaccedilotildees de relacionamentos sociais Deste modo eacute atraveacutes dos ritos fuacutenebres do enterro do defunto o meio que a sociedade encontrou para assegurar todo este processo (RODRIGUES 2006 p 42)

Os ritos fuacutenebres funcionam entatildeo como marca dessa nova inserccedilatildeo desse processo de continuidade Buscando o entendimento de todo o processamento das relaccedilotildees sociais do receacutem-morto e dos novos viacutenculos sociais criados pelos vivos Rodrigues parte da proposiccedilatildeo conceitual de Van Gennep para compreender os ritos fuacutenebres O ldquorito de passagemrdquo permite ao autor articular o processo de separaccedilatildeo do morto da sociedade dos vivos no qual afere a ideia de que a morte natildeo eacute um fim inexoraacutevel para o morto mas

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uma passagem de uma ldquoforma de vida social a uma outra ela natildeo eacute o fim da vida mas iniciaccedilatildeo a uma novardquo (RODRIGUES 2006 p 43)

Destarte a partir deste luto os ritos vinculados a morte representam um conjunto de condutas culturais que possuem grande importacircncia e que tem como funccedilatildeo a constituiccedilatildeo de uma memoacuteria coletiva sobre o morto (MEDEIROS 2008 p 154) E com isto eacute perceptiacutevel como a morte e os ritos que lhe seguem satildeo de caraacuteter social e fundamentais para a manutenccedilatildeo da ordem no mundo dos vivos e dos mortos

Sendo assim Jean-Pierre Vernant afirma que para os gregos a ldquoideacuteia que a morte eacute um limiar intransponiacutevel atraacutes do qual se encontra um mundo que eacute um mundo de horror de anonimato um magma onde todos se perdemrdquo (VERNANT 2009 p 83) A morte para os gregos estaacute presente na ldquovida da poacutelisrdquo isto eacute a praacutetica de cuidar dos tuacutemulos renderem-lhes honras fuacutenebres a existecircncia de dias de festivais dedicados aos mortos a ponto de ser uma preocupaccedilatildeo de ordem econocircmica para os legisladores da cidade (BURKERT1993 pp 376-379)

Morrer adquire um status paradoxal implica na morte do indiviacuteduo a sua ldquoviagem para o esquecimentordquo mas a rememoraccedilatildeo constante feita pelos vivos seja pelo canto dos poetas seja pelo memorial funeraacuterio Era fundamental assim que a singularidade da existecircncia do indiviacuteduo de seus feitos do que havia sido permanecessem inscritos para sempre na memoacuteria dos homens (VERNANT 2009 p 86)

2 As passagens relacionadas ao morrer no mar

Homero eacute o primeiro a nos apontar a construccedilatildeo de um discurso sobre a morte no mar Na passagem do canto IV nos versos 708-711 ressalta que o arauto Meacutedon conta agrave Peneacutelope sobre a empreitada de Telecircmaco e a armadilha preparada pelos pretendentes visando findar com a vida de seu filho Nesta fala afirma que a morte no mar permite o esquecimento do defunto

Em nau veloz cavalo salso marinho em plena imensidatildeo aquosa natildeo carecia que zarpasse O proacuteprio nome quer que naufrague entre os humanos (HOMERO Odisseia IV 708-711)2

2 οὐδέ τί μιν χρεὼ νηῶν ὠκυπόρων ἐπιβαινέμεν αἵ θ᾽ ἁλὸς ἵπποι ἀνδράσι γίγνονται περόωσι δὲ πουλὺν ἐφ᾽ ὑγρήν ἦ ἵνα μηδ᾽ ὄνομ᾽ αὐτοῦ ἐν ἀνθρώποισι λίπηται

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A armadilha feita pelos inimigos conduziria agrave morte o jovem Telecircmaco fazendo seu corpo perdesse entre as ondas do mar Com o corpo perdido o crime seria encoberto e o a memoacuteria do jovem perdida por natildeo ser realizado o enterramento corretamente

Neste mesmo sentido o poeta do VII seacuteculo aC Arquiacuteloco enfatiza num mesmo sentido discursivo que natildeo eacute possiacutevel conceder as honras fuacutenebres aos mortos no mar Posidon oculta a dor aos parentes jaacute que natildeo poderiam ver os corpos sendo queimados na ldquochama de Hefestosrdquo com a seguinte passagem

Se Hefesto tivesse envolvido em seu vestido a cabeccedila e os membros dele Oculta os dolorosos presentes do Senhor Poseidon (ARQUIacuteLOCO vv 5-6)

No entanto eacute com Hipocircnax poeta do seacuteculo VI aC que vemos a primeira relaccedilatildeo entre a morte no mar e um ato de puniccedilatildeo

diga-me o modo para que lsquoesse infamersquo morra de uma maneira infame apedrejado por decisatildeo conjunta das pessoas agraves margens do mar esteacuteril (HIPOcircNAX 135 vv 3-4)

Nesta passagem o autor faz referecircncia a morte por apedrejamento junto a beira do mar O mar completa a cena de uma morte com caraacuteter negativo infame com esterilidade

Percebemos ateacute aqui que durante o periacuteodo arcaico a morte no mar eacute algo natildeo desejado pelos helenos algo que gera uma problemaacutetica no sistema dos ritos fuacutenebres Tambeacutem eacute na construccedilatildeo de um discurso socialmente construiacutedo que relaciona a negatividade atribuiacuteda agrave morte no meio inoacutespito ao cenaacuterio de uma morte sem gloacuteria calcada na proposiccedilatildeo de ampliar a puniccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da morte de ldquoum infamerdquo Esse discurso perpassa os valores helecircnicos ateacute se cristalizar no discurso herodotiano

Na primeira das trecircs passagens Heroacutedoto nos relata um caso em que os nautai tentam usurpar os bens de um renomado aedo durante a travessia do mar Vejamos

Confiando em nenhum mais do que os Coriacutentios ele contratou um navio Coriacutentio para levaacute-lo a partir de Tarento Mas quando eles estavam em alto mar a tripulaccedilatildeo conspirarou para tomar o dinheiro de Arion e lanccedilaacute-lo ao mar Descobrindo isso ele suplicou fervorosamente pedindo por sua vida e oferecendo-lhes o seu dinheiro Mas a tripulaccedilatildeo natildeo iria ouvi-lo e disse-lhe quer se matar

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e assim receber o sepultamento em terra ou saltar para o mar de uma vez Abandonado a estes extremos Arion pediu que uma vez que eles tinham decido em suas mentes o deixassem ficar no conveacutes do navio com toda a sua regalia e cantar e ele prometeu que depois de cantar ele iria se entregar Os homens satisfeitos com a ideia de ouvir o melhor cantor do mundo afastaram-se em direccedilatildeo ao meio da nau a partir da popa Arion colocando todos os seus bens e tendo sua lira levantou-se no conveacutes e cantou a lsquoNomo orthiorsquo e quando a muacutesica terminou ele lanccedilou-se ao mar com todos os seus bens Assim a equipe partiu para Corinto mas um golfinho (assim diz a histoacuteria) tomou Arion em suas costas e o levou a Teacutenaro Desembarcando laacute ele foi para Corinto com seus bens e quando ele chegou ele relatou tudo o que havia acontecido Periandro ceacutetico manteve-o em regime de confinamento deixando-o ir a lugar nenhum e esperou pelos marinheiros Quando eles chegaram eles foram convocados e perguntou se trouxeram notiacutecias de Arion Enquanto eles estavam dizendo que ele estava seguro na Itaacutelia e que o tinha deixado satildeo e bem em Tarento Arion apareceu diante deles assim como foi quando ele pulou do navio espantado que natildeo podia mais negar o que foi provado contra eles (HEROacuteDOTO Histoacuterias I 24 2-7)3

Nesta passagem denotamos que para encobrir o crime a ser cometido contra Arion os navegantes optam por lanccedila-lo ao mar desaparecendo com seu corpo e escondendo o crime cometido Satildeo as atribuiccedilotildees que caracterizam o mar que apresentaremos em breve que aqui fica evidenciado o mar faz com que o corpo desapareccedila Aleacutem disso a oposiccedilatildeo ldquolanccedilar-se ao marrdquo e ldquoreceber o sepultamentordquo fica notadamente evidenciada nesta passagem Morrer no mar caso ele saltasse significaria a ausecircncia dos devidos ritos fuacutenebres

A passagem seguinte de Heroacutedoto mostra uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre o ato criminoso e a capacidade do mar de encobrir o corpo

3 οὔκων δὴ πείθειν αὐτὸν τούτοισι ἀλλὰ κελεύειν τοὺς πορθμέας ἢ αὐτὸν διαχρᾶσθαί μιν ὡς ἂν ταφῆς ἐν γῇ τύχῃ ἢ ἐκπηδᾶν ἐς τὴν θάλασσαν τὴν ταχίστην ἀπειληθέντα δὴ τὸν Ἀρίονα ἐς ἀπορίην παραιτήσασθαι ἐπειδή σφι οὕτω δοκέοι περιιδεῖν αὐτὸν ἐν τῇ σκευῇ πάσῃ στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι ἀεῖσαι ἀείσας δὲ ὑπεδέκετο ἑωυτὸν κατεργάσασθαι καὶ τοῖσι ἐσελθεῖν γὰρ ἡδονὴν εἰ μέλλοιεν ἀκούσεσθαι τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀοιδοῦ ἀναχωρῆσαι ἐκ τῆς πρύμνης ἐς μέσην νέα τὸν δὲ ἐνδύντα τε πᾶσαν τὴν σκευὴν καὶ λαβόντα τὴν κιθάρην στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι διεξελθεῖν νόμον τὸν ὄρθιον τελευτῶντος δὲ τοῦ νόμου ῥῖψαί μιν ἐς τὴν θάλασσαν ἑωυτὸν ὡς εἶχε σὺν τῇ σκευῇ πάσῃ καὶ τοὺς μὲν ἀποπλέειν ἐς Κόρινθον τὸν δὲ δελφῖνα λέγουσι ὑπολαβόντα ἐξενεῖκαι ἐπὶ Ταίναρον ἀποβάντα δέ αὐτὸν χωρέειν ἐς Κόρινθον σὺν τῇ σκευῇ καὶ ἀπικόμενον ἀπηγέεσθαι πᾶν τὸ γεγονός Περίανδρον δὲ ὑπὸ ἀπιστίης Ἀρίονα μὲν ἐν φυλακῇ ἔχειν οὐδαμῇ μετιέντα ἀνακῶς δὲ ἔχειν τῶν πορθμέων ὡς δὲ ἄρα παρεῖναι αὐτούς κληθέντας ἱστορέεσθαι εἴ τι λέγοιεν περὶ Ἀρίονος φαμένων δὲ ἐκείνων ὡς εἴη τε σῶς περὶ Ἰταλίην καί μιν εὖ πρήσσοντα λίποιεν ἐν Τάραντι ἐπιφανῆναί σφι τὸν Ἀρίονα ὥσπερ ἔχων ἐξεπήδησε καὶ τοὺς ἐκπλαγέντας οὐκ ἔχειν ἔτι ἐλεγχομένους ἀρνέεσθαι

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Temendo pois para si mesmo para que seu irmatildeo poderia mataacute-lo e assim por ser rei ele enviou Prexaspes o mais confiaacutevel de seus persas para a Peacutersia para mataacute-lo Prexaspes foi para Susa e matou Esmeacuterdis levando-o para caccedilar de acordo alguns ou de acordo com os outros levando ao mar Eritreu e laacute jogou-o nas aacuteguas profundas (HEROacuteDOTO Histoacuterias III 30 3)4

Na segunda passagem Cambises receoso por um sonho ordenou a morte de seu irmatildeo Esmeacuterdis com medo deste tirar seu trono Aqui o mar aparece como um lugar vinculado agrave ideia de morte escondida no qual natildeo haacute evidecircncias O fratriciacutedio real ainda que cometido por terceiros na visatildeo helecircnica era puniacutevel pois seria cometido um crime de sangue

Por fim a terceira passagem nos apresenta a histoacuteria de Estearco que induzido por sua nova esposa de que sua filha era uma prostituta pede a seu hoacutespede Temison que jogue sua filha ao mar Natildeo somente o pai se nega a cometer diretamente um crime familiar matando sua filha mas tambeacutem solicita-o ao hoacutespede ndash que acaba sentindo-se na necessidade de retribuir a hospitalidade de Estearco Na passagem vecirc-se ldquoe o manda que a jogue no marrsquo (HEROacuteDOTO Histoacuterias IV 154 3)5

O mar aparece novamente como aquele com o poder de encobrir os crimes cometidos atraveacutes da destruiccedilatildeo do corpo Nem o corpo nem o crime seriam levados de volta agrave sociedade O mar eacute entatildeo o espaccedilo do desaparecimento aquilo capaz de ldquoEsconder os corpos e os crimesrdquo

3 O mar que esconde os corpos e os crimes

Em um estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno realizado por Astrid Lindenlauf (2003 pp 416-433) no qual o Mediterracircneo servia como um toacutepos para o descarte de objetos indesejados6 percebemos que o mar era

4 πρὸς ὦν ταῦτα δείσας περὶ ἑωυτοῦ μή μιν ἀποκτείνας ὁ ἀδελφεὸς ἄρχῃ πέμπει Πρηξάσπεα ἐς Πέρσας ὃς ἦν οἱ ἀνὴρ Περσέων πιστότατος ἀποκτενέοντά μιν ὁ δὲ ἀναβὰς ἐς Σοῦσα ἀπέκτεινε Σμέρδιν οἳ μὲν λέγουσι ἐπ᾽ ἄγρην ἐξαγαγόντα οἳ δὲ ἐς τὴν Ἐρυθρὴν θάλασσαν προαγαγόντα καταποντῶσαι

5 καὶ ταύτην ἐκέλευε καταποντῶσαι ἀπαγαγόντα

6 Exemplos que a autora expotildee lanccedilamento de estaacutetua de liacutederes poliacuteticos indesejado que representaria uma declaraccedilatildeo poliacutetica simboacutelica visando o apagamento da memoacuteria O lanccedilamento do corpo de um inimigo assassinado representava a negaccedilatildeo do enterro (LINDENLAUF 2003 pp 420-421)

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compreendido entre os helenos antigos como um lugar de onde nada ndash exceto em alguns casos ndash retornava de volta agraves vistas da sociedade A profundidade sua capacidade de submersatildeo a imensidatildeo a vastidatildeo e o constante movimento do mar geravam a percepccedilatildeo do mar como uma possibilidade do desaparecimento por completo (LINDENLAUF 2003 pp 423-424) Assim tambeacutem ocorreria para aqueles que morriam em meio mariacutetimo Todo este imaginaacuterio de poder de desaparecimento de objetos e pessoas indesejadas nos reforccedila a ideia do mar como um local de morte sem retorno

A partir destas capacidades que geram os desaparecimentos em algumas das passagens destacadas percebemos sua utilizaccedilatildeo para o encobrimento de atos considerados criminosos Fosse pela trama dos pretendentes contra Telecircmaco fosse pelo assassinato de Esmeacuterdis por ordem do irmatildeo a temaacutetica e as discussotildees sobre os atos infracionais na ordem social tambeacutem eram pontuados pelos tragedioacutegrafos Sem nos adentrarmos especificamente nestas dramatizaccedilotildees cabe-nos ressaltar que a ideia de crime de sangue ndash caso de alguns de nossos apontamentos anteriores ndash poderia ser considerado um dos piores tipos de crime Deste modo as trageacutedias estatildeo repletas de personagens que cometem crimes e satildeo julgados e punidos por estas accedilotildees Do parriciacutedio de Eacutedipo do matriciacutedio de Orestes dos filiciacutedios de Medeacuteia e Agamecircmnon do fratriciacutedio de Eteacuteocles e Polinices os helenos conviviam com estes embates em cenas e em seu imaginaacuterio onde havia o conflito entre forccedilas opostas no qual se deturpava a ordem anteriormente estabelecida Aos personagens traacutegicos temos a oposiccedilatildeo do ethhos (caraacuteter) e do daacuteimon (destino) no qual seus destinos satildeo previamente traccedilados pelos deuses e que ainda assim satildeo responsaacuteveis por seus atos criminosos (SANTOS 2005 pp 63-64)

Entre a capacidade do mar para o encobrimento de objetos e a necessidade de se esconder os corpos de crimes abjetos o mar proporciona em diversos niacuteveis esta possibilidade Natildeo satildeo somente as cinco caracteriacutesticas destacadas por Lindenlauf mas tambeacutem se deve considerar os seres que habitam o mar e que compotildeem este cenaacuterio de destruiccedilatildeo Como aponta Papadoupolos e Ruscillo o poder do mar centrava-se na capacidade de engolir e esconder um ser humano completamente aleacutem de contar com as inuacutemeras criaturas comedoras de carne em suas profundezas deste modo a morte no mar era parte da tradiccedilatildeo poeacutetica grega (2012 p 215) ldquoDesde Homero que o mar eacute o lugar dos heroacuteis o percurso a ser desbravado com coragem astuacutecia e ajuda dos deuses Entretanto isso natildeo quer dizer que o medo natildeo estivesse presente

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Os gregos sabiam o que um naufraacutegio representavardquo (VIEIRA 2010 p 60) Tanto que encontramos imagens em ceracircmica que representam o naufraacutegio e o poder destrutivo dos seres que o habitam

Esta cena estaacute em uma cratera datada de final do seacuteculo VIII aC encontrada em Pitecussa em estilo geomeacutetrico tardio (BUCHNER 1966 p 8) Nela podemos ver o naufraacutegio de um navio e seus tripulantes Em cena uacutenica vemos uma grande nau virada para baixo e dois navegantes entre os peixes logo abaixo dela Mais a esquerda da cena um enorme peixe devora um homem sua cabeccedila jaacute estando dentro da boca do peixe inclusive No restante da cena temos outros corpos e uma grande variedade de peixes

Neste contexto do periacuteodo arcaico a navegaccedilatildeo no Mediterracircneo ocidental estava pautada no processo de expansatildeo helecircnica tanto territorial quanto comercial O imaginaacuterio dos perigos do mar e dos animais que o habitavam ndash verdadeiros devoradores de homens ndash permeavam tambeacutem a construccedilatildeo imageacutetica

Da cena que apresentamos quanto destes homens poderiam ter sobrevivido Em qual situaccedilatildeo os corpos dos cadaacuteveres estariam se fossem encontrados Este imaginaacuterio de horror de uma morte longe das vistas da poacutelis de ausecircncia do corpo em ritos fuacutenebres marca a capacidade do mar e dos seres que o habitam de encobrir as mortes que ali ocorriam fossem por tempestades ou perigos inerentes agrave navegaccedilatildeo fossem por crimes cometidos e que se desejavam esconder da sociedade

4 Consideraccedilotildees finais

Podemos ver a partir da documentaccedilatildeo em que realizamos anaacutelise que essa morte marinha se coloca como o oposto da morte com seus rituais e a aproxima de atos criminosos ndash no sentido de encobrir tais atos O corpo se perdeu entre as ondas do mar foi danificado natildeo pode receber as honras fuacutenebres Natildeo eacute a ldquobela morterdquo de um guerreiro em batalha ndash morte tatildeo

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valorizada nos discursos ndash mas a ausecircncia do indiviacuteduo no qual o corpo se decompotildee no mar

A morte no mar representa o ldquolsquoultraje ao cadaacuteverrsquo ou seja o tratamento que se quer infligir aos inimigos mortos para que natildeo se tornem memoraacuteveis para os deixar apodrecerrdquo (VERNANT 2009 p 91) Natildeo eacute somente o corpo mas o esquecimento que o indiviacuteduo teraacute na memoacuteria dos vivos Os rituais fuacutenebres marcam a mnemosyne ndash Memoacuteria ndash guardam a lembranccedila e a manteacutem viva

Como aponta Joseacute Carlos Rodrigues ldquoa morte do corpo pode ser a morte do siacutembolo que o corpo eacute a morte do siacutembolo da estrutura socialrdquo (RODRIGUES 2006 p40) A simbolizaccedilatildeo da vida do defunto lhe eacute impressa em seu enterramento seu corpo faz parte da demarcaccedilatildeo social Quando haacute a ausecircncia do corpo como se realiza a marca de sua vida no enterramento

Eacute neste sentido que os rituais fuacutenebres emergem como complexos ritos que projetam a vida coletiva da sociedade no enterramento Estes ritos dependeratildeo estreitamente do tipo de morte da condiccedilatildeo do morto do status social dos sobreviventesvivos e sua relaccedilatildeo com o desaparecidomorto (Idem) Assim a ausecircncia do corpo nos ritos fuacutenebres traz problemaacuteticas a serem sanadas pelos vivos Morrer no mar eacute em muitos casos perder o corpo natildeo voltar Realizar uma demarcaccedilatildeo espacial e conceder ao morto um novo lugar para habitar atraveacutes da estela funeraacuteria O ldquocorpo se perde entre as ondasrdquo como jaacute cantavam os antigos aedos e rapsodos E uma vez perdidos entre as ondas como descobrir a forma de sua morte Como se diz que foi uma morte por naufraacutegio ou assassinato em alto-mar O mar desde os antigos mostra assim todas as suas potencialidades Potencialidades diversas que os helenos buscaram compreender dominar e representar

Abstract The power of the sea can be understood in its submersion capacity in its immensity and vastness in its depth and its constant movement These five characteristics ascribed by Astrid Lindenlauf (2003) in their study of the sea as a place of ldquono-returnrdquo enable us to perceive the potentialities of the sea in the disappearance and or cover-up of unwanted traces Thus we intend in this article to analyze passages that allow us to elucidate the relation of actions considered shameful criminal by Hellenic society with the sea in textual works of the archaic and classic periods and imagery representationKeywords Sea disappearance crimes

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Greacutecia Antiga Satildeo Luis Cafeacute amp Laacutepis e Editora UEMA 2011

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A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTI-GUIDADE

Renata Cardoso de Sousa1

Existe por exemplo o gosto pela viagem ndash um prazer muito especial que natildeo deve ser confundido com fuga evasatildeo ou escapismo Eacute o gosto pela imersatildeo no desconhecido pelo conhecimento do outro pela exploraccedilatildeo da diversidade A satisfaccedilatildeo de se deixar transportar para outro tempo e outro espaccedilo viver outra vida com experiecircncias diferentes do cotidiano (MACHADO 2009 p 19 e 20)

Resumo Propomos pensar como eacute possiacutevel trabalhar o tema da etnicidade e do etnocentrismo na sala de aula a partir do uso de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade Para tal primeiramente eacute necessaacuterio estabelecer alguns criteacuterios para a utilizaccedilatildeo dessa literatura que ainda gera debates acerca da sua proficuidade bem como conceituar a etnicidade Partiremos dos conceitos de etnicidade (proposto por Fredrik Barth) e identidade-alteridade (de Marc Augeacute) para depois nos debruccedilarmos sobre propostas de trabalho com algumas adaptaccedilotildees selecionadasPalavras-chave Ensino de Histoacuteria adaptaccedilotildees literaacuterias etnicidade

Objetivamos nesse artigo pensar algumas questotildees concernentes tanto ao Ensino de Histoacuteria quanto agrave validade da utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade em sala de aula como forma de estiacutemulo agrave leitura Dentre essas questotildees estatildeo a) Por que tratar o tema da etnicidade e do etnocentrismo em sala de aula b) Por que recorrer agrave Antiguidade para (re)pensar a etnicidade c) Por que utilizar adaptaccedilotildees em sala de aula se podemos mediar a leitura do claacutessico com os alunos

Para tal proposta primeiro propomos pensar acerca do proacuteprio conceito e de sua importacircncia dentro do contexto escolar para depois pensarmos o

1 Professora Doutoranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada (PPGHC-UFRJ) Orientada pelo Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa Bolsista CAPES E-mail renatacardoso1990gmailcom

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conceito na Antiguidade grega Em seguida discutiremos a proficuidade das adaptaccedilotildees e definiremos mesmo o que seriam elas No final propomos algumas soluccedilotildees para o trabalho com o conceito de etnicidade utilizando adaptaccedilotildees da Odisseia em sala de aula com exemplos praacuteticos

10 ldquoA Histoacuteria eacute decorebardquo ou ldquoA Histoacuteria ensina fatos do passado natildeo do presenterdquo o senso comum e o Ensino de

Histoacuteria

Quem eacute professor de Histoacuteria em algum momento jaacute deve ter ouvido essas duas frases de alunos pais de alunos ou ateacute mesmo de diretores ou coordenadores Entretanto quando nos deparamos com as pesquisas no acircmbito do Ensino de Histoacuteria (e na aacuterea de ensino em geral) percebemos o quanto essas duas visotildees estatildeo ultrapassadas Os proacuteprios Paracircmetros Curriculares Nacionais do Ensino de Histoacuteria (PCN) desconstroem essa ideia

A construccedilatildeo de noccedilotildees interfere nas estruturas cognitivas do aluno modificando a maneira como ele compreende os elementos do mundo e as relaccedilotildees que esses elementos estabelecem entre si Isso significa dizer que quando o estudante apreende uma noccedilatildeo grande parte do que ele sabe e pensa eacute reorganizado a partir dela Na medida em que o ensino de Histoacuteria lhe possibilita construir noccedilotildees ocorrem mudanccedilas no seu modo de entender a si mesmo os outros as relaccedilotildees sociais e a Histoacuteria Os novos domiacutenios cognitivos do aluno podem interferir de certo modo nas suas relaccedilotildees pessoais e sociais e nos seus compromissos e afetividades com as classes os grupos sociais as culturas os valores e as geraccedilotildees do passado e do futuro (BRASIL 1998 p 35)

Sendo assim o Ensino de Histoacuteria deixa de se basear na mera reproduccedilatildeo dos fatos histoacutericos e a cobranccedila deles nas provas ele comeccedila a elaborar uma seacuterie de objetivos (como os proacuteprios objetivos gerais do PCN ndash BRASIL 1998 p 43) que buscam a utilizaccedilatildeo da Histoacuteria para construir pessoas criacuteticas capazes de utilizar o arcabouccedilo conceitual que possuem para discutir acerca da sua proacutepria realidade e tambeacutem modificaacute-la

Fato eacute que frequentemente nos deparamos com esses dois estereoacutetipos do Ensino de Histoacuteria os quais dificultam (mas natildeo impossibilitam) o avanccedilo da aplicaccedilatildeo da pesquisa agrave praacutetica escolar (algo tambeacutem tatildeo caro ao PCN2) Ainda nos deparamos com muitos estereoacutetipos nos livros didaacuteticos

2 ldquoNas uacuteltimas deacutecadas por diferentes razotildees nota-se uma crescente preocupaccedilatildeo dos professores do ensino fundamental em acompanhar e participar do debate historiograacutefico criando

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de Histoacuteria (como a ldquoIdade Meacutedia trevosardquo ou a ldquoinvasatildeo dos baacuterbarosrdquo) bem como agraves vezes somos pressionados como professores a fazer provas que satildeo meras verificaccedilotildees e natildeo avaliaccedilotildees (LUCKESI 2008 p 93) A Histoacuteria eacute para ser compreendida natildeo decorada por meio de um questionaacuterio E ela eacute para ser compreendida natildeo para servir de exemplo mas para fazer refletir acerca do nosso proacuteprio presente e nos fazer entender como chegamos ao ponto em que estamos

A avaliaccedilatildeo nesse sentido deixaria de se ater apenas agrave verificaccedilatildeo de um conteuacutedo fatual inculcado mas traria situaccedilotildees-problema e questotildees culturais do proacuteprio cotidiano e da realidade nacional e internacional para que o aluno pudesse aplicar os conhecimentos acerca do estudo da Histoacuteria Ele demonstraria que de fato aprendeu a pensar historicamente e a aplicar esse pensamento agrave sua realidade e natildeo apenas decorou o conteuacutedo para passar de ano

Isso natildeo significa abandonar o fato histoacuterico mas sobretudo utilizaacute-los para pensar acerca do presente e instigar o contato com a alteridade por parte do educando a fim de que ele possa assim reconhecer sua proacutepria identidade e natildeo desrespeitar ou repudiar as maneiras pelas quais o Outro constroacutei sua proacutepria identidade Esse eacute outro ponto (o respeito agraves alteridades) que toca o PCN (BRASIL 1998 p 35 e 36) de modo natildeo a simplesmente ldquoformar cidadatildeos brasileirosrdquo como era a proposta majoritaacuteria no Ensino de Histoacuteria (NADAI 2017 p 30) mas formar pessoas que tecircm o respeito como valor maacuteximo

Em tempos sombrios nos quais cada vez mais vemos um retrocesso em relaccedilatildeo ao respeito aos direitos humanos e agraves pessoas que pensamagem diferente de noacutes nos quais a liberdade de expressatildeo eacute confundida com liberdade de opressatildeo e liberdade de ofensa eacute mister que o exerciacutecio da alteridade seja um dos nortes da Educaccedilatildeo Para isso eacute preciso compreender alguns conceitos como os de identidade alteridade etnicidade e etnocentrismo Eacute por esse motivo que eacute importante na sala de aula natildeo soacute ldquopassarmos todo o conteuacutedordquo mas tambeacutem fazer os educandos refletirem acerca dos conceitos que perpassam a Histoacuteria

As conceituaccedilotildees e as noccedilotildees em vez de serem trabalhadas por meio de suas caracteriacutesticas geneacutericas assumem especificaccedilotildees histoacutericas possibilitando

aproximaccedilotildees entre o conhecimento histoacuterico e o saber histoacuterico escolar Reconhece-se que o conhecimento cientiacutefico tem seus objetivos sociais e eacute reelaborado de diversas maneiras para o conjunto da sociedade Na escola ele adquire ainda uma relevacircncia especiacutefica quando eacute recriado para fins didaacuteticosrdquo (BRASIL 1998 p 30)

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o diaacutelogo entre os sujeitos que falam pelos documentos legados ao presente e aqueles que os interpretam Nesse sentido eacute importante recuperar na Histoacuteria a historicidade dos conceitos sua relaccedilatildeo com a interpretaccedilatildeo e categorizaccedilatildeo de fenocircmenos em contextos temporais especiacuteficos (BRASIL 1998 p 82)

ldquoRevoluccedilatildeordquo ldquodescobrimentordquo ldquonacionalismordquo ldquoidentidaderdquo ldquoalteridaderdquo e ldquoetnicidaderdquo satildeo exemplos de conceitos que estatildeo presentes em vaacuterias eacutepocas em vaacuterias sociedades e inclusive na nossa proacutepria sociedade Aleacutem disso esses conceitos satildeo passiacuteveis de interpretaccedilotildees diversas revelando a reflexatildeo acerca deles bastante profiacutecua para o aluno entender melhor o que eacute a Histoacuteria e o que eacute o processo histoacuterico No entanto eacute preciso que o professor saiba lidar com esses conceitos

Se o professor natildeo tiver clareza sobre o sentido e aplicaccedilatildeo de conceitos como cidadania diferenccedila semelhanccedila permanecircncia transformaccedilatildeo questionamento convivecircncia e outros que compotildeem o vocabulaacuterio dos programas e materiais de ensino como seraacute possiacutevel conduzir ou mesmo participar de um projeto de aprendizagem (MICELI 2017 p 40 ndash grifos do autor)

Por isso eacute necessaacuterio que antes de entrarmos no meacuterito do trabalho com o conceito de etnicidade compreendecirc-lo melhor sobretudo no que tange a Greacutecia Antiga nosso foco de anaacutelise

20 O que eacute a etnicidade

Essa eacute uma pergunta sem resposta definitiva desde os anos 1960 se tenta fechar o conceito de etnicidade mas sem sucesso uma vez que essas tentativas como a de Burgess em 1978 de se cristalizar de modo estanque o conceito acaba mais por generalizaacute-lo do que defini-lo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Contudo precisamos considerar que a etnicidade diferentemente da alteridade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a origem em comum de um povo conectada com um territoacuterio especiacutefico

Eacute Fredrik Barth quem estabelece um conceito de etnicidade bastante proacuteximo do que entendemos por etnicidade o autor afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidaderdquo

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afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (2011 p 141) eacute aquele que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees raciaisrdquo

Aleacutem disso Barth enfoca justamente nos limites do grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo (LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)

Por colocar em jogo essa relaccedilatildeo entre o ldquoNoacutesrdquo e o ldquoElesrdquo eacute imprescindiacutevel aliar agraves anaacutelises eacutetnicas o par conceitual identidadealteridade Seguimos o norte teoacuterico do antropoacutelogo Marc Augeacute que natildeo enxerga esses dois conceitos de maneira diametralmente oposta mas como um par complementaacuterio a identidade natildeo existe sem definiccedilotildees de alteridade e vice-versa (AUGEacute 1998 p 28) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no contato entre os colonizadores e os nativos e procuramos reapropriar proficuamente seu arcabouccedilo conceitual para a anaacutelise do nosso objeto histoacuterico-discursivo

O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica assim como o de etnicidade o contato com outras culturas eacute imbuiacutedo de choques No entanto Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de Outro retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) O proacuteprio conectivo adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 pp 63-64) o ldquooutrordquo assemelha-se ao ldquomasrdquo ao adverso

Os estudos de etnicidade em relaccedilatildeo agrave Antiguidade grega satildeo recentes e encontraram em Edith Hall Jonathan Hall e Irad Malkin grande expressatildeo Este uacuteltimo sobretudo adentra mais ainda o tema retirando das Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) o suposto meacuterito de ter contribuiacutedo para o desenvolvimento de relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e seus Outros se debruccedilando sobre a Odisseia de Homero

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No nosso trabalho de doutorado objetivamos incluir a Iliacuteada no centro das discussotildees acerca da etnicidade tambeacutem bem como pensar a construccedilatildeo de um processo discursivo em torno da etnicidade e da identidade-alteridade em Homero Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides sendo o primeiro o arquitexto desses trecircs uacuteltimos Objetivamos analisar como as fronteiras eacutetnicas entre os gregos e seus Outros (e posteriormente entre a poacutelis ateniense e as demais sobretudo as peloponeacutesicas) satildeo construiacutedas desde as epopeias homeacutericas inclusive a Iliacuteada no bojo da relaccedilatildeo de inimizade na guerra entre troianos e aqueus

Na Odisseia de fato as relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e os seus Outros ficam mais evidentes por conta dos enfrentamentos de Odisseu com a alteridade em sua viagem de retorno a Iacutetaca Embora ele se depare com diversos povos (como os ciacutecones os lestrigotildees os lotoacutefagos e ateacute mesmo os feaacutecios que embora muito parecidos com os gregos em sua cultura resistem agrave amizade ritual elemento distintivo entre eles e os baacuterbaros no processo discursivo helecircnico) e pessoas (como Circe e Calipso que satildeo feiticeiras) que destoam do ideal de conduta e civilizaccedilatildeo gregas eacute no episoacutedio dos ciclopes que as marcas eacutetnicas entre os gregos e seus Outros ficaratildeo mais evidentes

Esse episoacutedio eacute tatildeo marcante que ele natildeo se restringe apenas ao Canto IX no qual ele eacute narrado em vaacuterios Cantos da Odisseia o Ciacuteclope reaparece mesmo que seja apenas mencionado (HOMERO Odisseia I vv 69-73 II vv 19-20 X vv 200 e 435 XII vv 209-212 XX vv 18-21 XXIII vv 312-314) Haacute uma construccedilatildeo de fronteiras eacutetnicas flagrante nesse encontro que seraacute explorada no seacuteculo V aC por Euriacutepides no seu drama satiacuterico O Ciacuteclope Eles satildeo descritos do seguinte modo por Odisseu ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεμίστων ἱκόμεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)

Polifemo eacute descrito como um monstro aos olhos do heroacutei eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) como os outros Ciclopes O Ciclope nega uma suacuteplica ao natildeo hospedar Odisseu Isso gera um estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) A consequecircncia da perdiccedilatildeo dele eacute o vazamento de seu uacutenico olho pelo heroacutei da epopeia Contudo a proacutepria hyacutebris (desmedida) de Odisseu ao se vangloriar de tal feito o faz vagar mais pelo mar ateacute conseguir chegar em sua terra natal Iacutetaca

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Para definir o que ele entende por civilizaccedilatildeo ele utiliza a definiccedilatildeo do Outro os gregos respeitam a lei porque os Outros natildeo o fazem a agricultura eacute a atividade que concede identidade aos gregos porque os Outros natildeo a praticam o patildeo eacute o alimento por excelecircncia dos gregos porque os outros natildeo cozinham o alimento nem o fabricam E assim por diante Do mesmo modo noacutes fazemos nos orgulhamos de certos traccedilos eacutetnicos porque satildeo exclusivos a noacutes no plano discursivo natildeo satildeo compartilhados com os Outros

Para levar essa discussatildeo para a sala de aula propomos a utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees Para tal devemos primeiramente definir o que entendemos por adaptaccedilatildeo e debater acerca das particularidades do uso e estudo delas

30 Consideraccedilotildees iniciais acerca da recepccedilatildeo das adaptaccedilotildees

Quando vamos ao cinema assistir a um filme baseado em um livro eacute comum sairmos frustrados acabamos chegando agrave conclusatildeo de que era melhor ter lido o livro somente Cenas satildeo cortadas ou amalgamadas os personagens e os cenaacuterios nem sempre correspondem agrave descriccedilatildeo do livro os diaacutelogos satildeo suprimidos e ou simplificados Isso ocorre porque um livro na verdade satildeo muitos livros cada vez que algueacutem o lecirc interpreta e imagina de um jeito os personagens cenaacuterios cenas diaacutelogos Eacute como se fosse um filme interior passando dentro de nossas cabeccedilas E nenhum cineasta pode estar dentro de nossas cabeccedilas para imaginar como gostariacuteamos de ver um livro representado nas telas Afinal ele mesmo imaginou e criou o mundo do livro em seus pensamentos tambeacutem

Aleacutem disso haacute a questatildeo da narrativa a dinacircmica de um livro eacute diferente da de um roteiro de cinema dos planos cinematograacuteficos que existem no discurso fiacutelmico Seguindo o mesmo raciociacutenio podemos pensar acerca das adaptaccedilotildees literaacuterias O adaptador leu o livro imaginou-o viveu todas aquelas cenas e personagens em sua mente Entretanto ele decide natildeo ficar com isso somente para si ele quer contar para crianccedilas e jovens o que leu o que imaginou o que interpretou E faz a adaptaccedilatildeo daquele livro para um puacuteblico infanto-juvenil cuja literatura demanda um outro tipo de linguagem um outro tipo de discurso diferente daquele do livro para um puacuteblico adulto ou para um puacuteblico infanto-juvenil de eacutepocas precedentes

Por conta disso as adaptaccedilotildees satildeo vistas agraves vezes como elementos empobrecedores dos claacutessicos

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A adaptaccedilatildeo das obras claacutessicas das literaturas nacional e mundial eacute um tema que desperta polecircmica e divide opiniotildees Natildeo poderia ser diferente jaacute que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo natildeo se reduz a um sentido consensual pode ser associada tanto agrave noccedilatildeo de ldquoenriquecimentordquo quanto agrave de ldquoempobrecimentordquo Geralmente argumenta-se que empobreceria as literaturas claacutessicas em virtude de um processo de atualizaccedilatildeo e de simplificaccedilatildeo que visaria a atender a puacuteblicos especiacuteficos como o infantil e o infanto-juvenil Por razotildees semelhantes tornaria possiacutevel o enriquecimento da formaccedilatildeo educativa desses puacuteblicos introduzindo obras de difiacutecil acesso cuja linguagem seria ldquocomplexardquo ou temporalmente distante da linguagem com a qual tais leitores estariam habituados Em ambos os casos a adaptaccedilatildeo seria um conceito amplo que abarcaria as mais diversas formas de linguagem como histoacuteria em quadrinhos adaptaccedilotildees cinematograacuteficas e televisivas desenhos animados audio-books e os trabalhos em forma de narrativa (AMORIM 2005 p 119)

De fato a adaptaccedilatildeo ou releitura daquele livro natildeo seraacute igual ao original assim como o filme do livro natildeo eacute igual ao livro afinal a proposta eacute diferente e os autores satildeo diferentes ldquoA reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a lsquomesma coisarsquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidaderdquo (AMORIM 2005 p 95) Se nos deparamos com uma adaptaccedilatildeo de Miguel de Cervantes William Shakespeare ou Homero natildeo satildeo mais Cervantes Shakespeare e Homero que estatildeo contando aquela histoacuteria eacute o autor da proacutepria adaptaccedilatildeo

Parece oacutebvio afirmar isso mas ainda existe uma preocupaccedilatildeo em denunciar as dissonacircncias entre a adaptaccedilatildeo e o original em detrimento de analisar os porquecircs daquelas dissonacircncias Os textos claacutessicos satildeo arquitextos tanto para as adaptaccedilotildees ou releituras quanto para outros textos que natildeo faccedilam referecircncia direta a esses claacutessicos Os temas da morte que gera vinganccedila por parte daquele que ainda vive dos erros do heroacutei que o leva ao amadurecimento do reconhecimento da bestializaccedilatildeo do ser humano do ponto fraco do heroacutei satildeo vistos inuacutemeras vezes na literatura mundial e estatildeo presentes em textos que remontam agrave Antiguidade Claacutessica Deveria ser Robinson Crusoeacute menos claacutessico que Odisseu Ou Robin Hood menos claacutessico que Paacuteris Afinal o tema da permanecircncia em lugares hostis e da descoberta do filho perdido natildeo foram criados por Defoe e Dumas respectivamente O proacuteprio Alexandre Dumas ao escrever seu As aventuras de Robin Hood estava recriando o personagem das gestas medievais que foram cristalizadas na escrita tempos depois de terem sido cantadas por seacuteculos Afinal

A reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a ldquomesma coisardquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em

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novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidade (AMORIM 2005 p 95)

40 Afinal o que eacute uma adaptaccedilatildeo

Yves Gambier logo no iniacutecio do seu artigo escreve que a adaptaccedilatildeo natildeo teve ainda algum estudo rigoroso ou sistemaacutetico sendo caracterizada sobretudo pela ldquofetichizaccedilatildeordquo do original ldquoA partir de quando podemos dizer que ela [a adaptaccedilatildeo] desfigura lsquotrairsquo o original Segundo quais normas ela se realizardquo (GAMBIER 1992 p 421 e 424)

Objetivamos pensar aqui a adaptaccedilatildeo como ldquolsquohistoacuterias recontadasrsquo reescrituras de obras claacutessicas das literaturas estrangeira e nacional direcionadas a um puacuteblico especiacutefico como o infanto-juvenilrdquo (AMORIM 2005 p 16) Satildeo ldquotextos novos construiacutedos sobre enredos antigosrdquo (FEIJOacute 2010 p 42) Essas adaptaccedilotildees natildeo deixam de ser traduccedilotildees e tambeacutem releituras uma vez que estatildeo recontando as histoacuterias originais a fim de tornaacute-las inteligiacuteveis para o sujeito destinataacuterio delas as crianccedilas e os jovens

Yves Gambier (1992 p 422) inclusive critica uma tentativa de diferenciar adaptaccedilatildeo de traduccedilatildeo mostrando que adaptaccedilatildeo pode ser concebida como a) praacutetica de ldquoadicionar eou omitir para que o texto de chegada (TC) tenha o lsquomesmo efeitorsquo que o texto de partida (TP) dando-se enfoque aos receptores (cultura e liacutengua de chegada)rdquo b) ldquofazer obra original a partir de uma outra composta no mesmo sistema de signos ou natildeordquo c) ldquotransformar um texto visando um certo leitorado por razotildees e segundo criteacuterios socioeconocircmicos declarados ou natildeordquo Desse modo inclusive ele ratifica o conceito de ldquotradaptaccedilatildeordquo de Michel Garneau que viria a eliminar as dicotomias entre a adaptaccedilatildeo e a traduccedilatildeo

O fato de o sujeito destinataacuterio delas serem crianccedilas e jovens natildeo implica que as adaptaccedilotildees sejam exclusivas a esse puacuteblico uma vez que adultos podem se tornar sujeitos receptores desses textos O contraacuterio tambeacutem acontece ldquoPode ateacute acontecer que a crianccedila entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o natildeo foi venha a preferir o segundo Tudo eacute misterioso nesse reino que o homem comeccedila a desconhecer desde que o comeccedila a abandonarrdquo (MEIRELES 2016 p 19)

As adaptaccedilotildees satildeo ldquoum tipo especial de traduccedilatildeo que envolve[m] seleccedilatildeo de conteuacutedo ndash pois resume[m] o enredo ndash e adequaccedilatildeo da linguagem para apresentar a obra escolhida aos jovens de um novo tempo e assim a tradiccedilatildeo

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se perpetua e se legitima por meio da renovaccedilatildeordquo (FEIJOacute 2010 p 44) Ela eacute a ldquoatualizaccedilatildeo de um discurso literaacuteriordquo (FEIJOacute 2010 p 63) pois ldquo[] as obras tradicionais satildeo reelaboradas ou reinterpretadas agrave luz das preocupaccedilotildees sociais morais e literaacuterias de cada momento histoacutericordquo (COLOMER 2017 p 25)

Em defesa das adaptaccedilotildees existe uma tendecircncia a se utilizar o conceito de interdiscurso3 arquitexto4 ou intertexto5 oriundos da Anaacutelise do Discurso no intuito de se dizer que assim como os diversos textos contemporacircneos utilizam os claacutessicos e natildeo satildeo criticados as adaptaccedilotildees assim tambeacutem natildeo o devem ser6 Contudo natildeo compartilhamos dessa ideia os processos interdiscursivos que perpassam os textos natildeo devem ser confundidos ou assemelhados a uma tentativa de tornar inteligiacutevel e acessiacutevel textos por parte de um puacuteblico leitor iniciante como eacute o caso da adaptaccedilatildeo

As adaptaccedilotildees geralmente (mas natildeo necessariamente) estatildeo atreladas agrave literatura infanto-juvenil Foi a partir do seacuteculo XVIII (quando uma noccedilatildeo de infacircncia comeccedila a surgir) que a literatura infanto-juvenil comeccedila a aparecer7 mas com esses fins exclusivamente exemplares Teresa Colomer (2017 p 19)

3 Interdiscurso eacute o conjunto de discursos que antecedem um texto e que o perpassam

4 O arquitexto eacute um texto claacutessico

5 Intertexto satildeo os textos que estatildeo presentes em outros textos seja por meio de citaccedilatildeo direta ou referecircncia sem necessariamente apontar a autoria original

6 ldquoEm favor da posiccedilatildeo de [Monteiro] Lobato e Nelly [Novaes Coelho] seria interessante ainda argumentar que se aceitamos o conceito de intertexto ou seja essa ideia de que a literatura se constroacutei como infinito mosaico de citaccedilotildees e influecircncias mais ou menos remotas a desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees deveria ser amenizada Afinal se eacute vaacutelida a premissa de que alguns lsquoclaacutessicosrsquo satildeo obras fundadoras ou canocircnicas que ao longo do tempo se tornam balizas significativas para um dado patrimocircnio cultural ateacute que ponto as demais obras produzidas natildeo podem ser compreendidas como contiacutenuas lsquoadaptaccedilotildeesrsquo literaacuterias dessas matrizesrdquo (CECCANTINI 2004 p 86)ouldquoSe aceitarmos a ideia de que os claacutessicos podem ser classificados como lsquotextos primeirosrsquo [esse seria o arquitexto] e dar origem indefinidamente a novos textos ndash sempre atualizados com o contexto histoacuterico em que satildeo produzidos e com puacuteblico a que se destinam ndash entatildeo poderemos pensar a adaptaccedilatildeo como um procedimento habitual e inerente agrave renovaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria como perpetuaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos cacircnonesrdquo (FEIJOacute 2010 p 43)

7 Teresa Colomer se refere aqui agrave literatura cujo sujeito destinataacuterio eram as crianccedilas e jovens Podemos entender melhor essa ideia se analisarmos as trecircs categorias de livros infantis natildeo-intencionais que Ceciacutelia Meireles (2016 p 52) distingue em 1951 1) a redaccedilatildeo escrita das tradiccedilotildees orais (como Perrault e Grimm) 2) os livros escritos para uma determinada crianccedila que depois passaram para uso geral (como La Fontaine) 3) livros natildeo escritos para crianccedilas que vieram a cair em suas matildeos e dos quais se fizeram adaptaccedilotildees visando tornaacute-los mais compreensiacuteveis ou adequados ao puacuteblico infantil

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afirma que por muito tempo a literatura voltada para crianccedilas e adolescentes focou na exemplaridade e no didatismo Natildeo que os textos antigos como Homero natildeo trouxessem coacutedigos de conduta a serem seguidos (ateacute porque esses textos eram utilizados na formaccedilatildeo dos gregos poliacuteades) mas eles natildeo foram escritos com tal propoacutesito (MEIRELES 2016 p 43)

Colomer (2017 p 20) defende que a literatura infanto-juvenil estaacute aleacutem disso ela vai ldquo1) Iniciar o acesso ao imaginaacuterio compartilhado por uma determinada sociedade 2) Desenvolver o domiacutenio da linguagem atraveacutes das formas narrativas poeacuteticas e dramaacuteticas do discurso literaacuterio 3) Oferecer uma representaccedilatildeo articulada do mundo que sirva como instrumento de socializaccedilatildeo das novas geraccedilotildeesrdquo A literatura infantil natildeo serve soacute para ensinar exemplos mas para tornar a crianccedila um leitor literaacuterio (COLOMER 2017 p 31)

Para o Ensino da Histoacuteria a primeira e a terceira funccedilatildeo satildeo essenciais para que consideremos o uso dessa literatura na sala de aula As primeiras adaptaccedilotildees inclusive foram feitas por professores (FEIJOacute 2010 p 61) Daiacute a importacircncia da atividade pedagoacutegica para o bom aproveitamento de uma adaptaccedilatildeo Para trabalhar com esse tipo de literatura eacute necessaacuterio ler o original a fim de tanto poder selecionar melhor as adaptaccedilotildees aos propoacutesitos da atividade pedagoacutegica proposta quanto trabalhar melhor com a adaptaccedilatildeo na sala de aula (FEIJOacute 2010 p 150)

No Brasil as adaptaccedilotildees se popularizaram nos anos 1970 junto com a literatura infanto-juvenil em geral (FEIJOacute 2010) Entretanto jaacute no iniacutecio do seacuteculo temos as primeiras adaptaccedilotildees literaacuterias aqui feitas por Monteiro Lobato A partir dele muitos outros autores renomados da literatura brasileira se dedicaram agrave adaptaccedilatildeo Clarice Lispector Rubem Braga Paulo Mendes Campos Ana Maria Machado Essa uacuteltima inclusive aleacutem de escrever adaptaccedilotildees refletiu acerca delas em seu Como e por que ler os claacutessicos universais desde cedo

Defendemos que a adaptaccedilatildeo natildeo pode ser tratada como literatura inferior uma vez que isso seria tratar a literatura infanto-juvenil do mesmo modo Aleacutem disso quantas pessoas natildeo comeccedilaram a ler os claacutessicos porque leram boas adaptaccedilotildees deles na infacircncia Joatildeo Luiacutes Ceccantini em 1997 escreveu para o jornal Proleitura um artigo sobre as adaptaccedilotildees de claacutessicos e afirmou que ldquoa cada adaptaccedilatildeo bem realizada de um claacutessico (nas vaacuterias linguagens) eacute grande o nuacutemero de leitores que se dirige aos textos originaisrdquo (CECCANTINI 2004 p 87) Fato este que atestei inuacutemeras vezes ao longo da minha experiecircncia como professora do Instituto de Histoacuteria da Universidade

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Federal do Rio de Janeiro quando alunos vinham me abordar para conversar sobre as epopeias homeacutericas e as trageacutedias e mostrando que o interesse deles era derivado de eles terem lido quando crianccedilas adaptaccedilotildees desses claacutessicos

A adaptaccedilatildeo manteacutem na memoacuteria o original o claacutessico mas tambeacutem gesta mudanccedilas que dialogam com a escrita contemporacircnea agrave adaptaccedilatildeo (AMORIM 2005 p 30)

As inuacutemeras adaptaccedilotildees realizadas em momentos histoacutericos distintos concretizam o postulado de que a literatura natildeo se apresenta como uma uacutenica resposta para as diferentes perguntas surgidas em cada eacutepoca porque tanto o leitor como suas inquietaccedilotildees se modificam O olhar direcionado para obra busca compreender o presente ou mesmo o passado mas a sua histoacuteria natildeo eacute a igual a dos leitores preteacuteritos logo as questotildees formuladas ao texto seratildeo outras Cabe ao adaptador sujeito histoacuterico do seu tempo compreender as indagaccedilotildees dos leitores infanto-juvenis e as possibilidades da obra ao ser adaptada de respondecirc-las (CARVALHO 2006 p 18)

Desse modo eacute mais profiacutecuo analisar as adaptaccedilotildees como textos que dialogam com seus proacuteprios contextos de produccedilatildeo natildeo com os contextos de seus originais Afinal o autor das adaptaccedilotildees eacute um sujeito receptor a posteriori que natildeo estaacute inserido no contexto dos sujeitos destinataacuterios e receptores da eacutepoca em que o claacutessico foi composto (o que natildeo impede de procurar saber acerca desse contexto devendo inclusive fazecirc-lo para que sua adaptaccedilatildeo seja de boa qualidade)

50 Colocando em praacutetica ndash algumas breves sugestotildees

Por que trabalhar com a Antiguidade Claacutessica para se falar de etnicidade Ana Maria Machado ao falar sobre a literatura claacutessica afirma que

Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade a cultura grega antiga sempre despertou o entusiasmo de leitores apaixonados em diferentes eacutepocas histoacutericas Satildeo uma fonte inesgotaacutevel onde sempre podemos beber Para muita gente eles satildeo os mais fascinantes de todos os claacutessicos Provavelmente satildeo os que mais marcaram toda a cultura ocidental (MACHADO 2009 p 26)

Contudo um outro aspecto preocupa o professor o da obrigatoriedade da leitura como algo prejudicial ao interesse do aluno Maacuterio Feijoacute (2010 p 14) e Ana Maria Machado (2009 p 13) ao escreverem sobre a questatildeo da obrigatoriedade da leitura na sala de aula defendem cada um a seu modo

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que ningueacutem deve ser obrigado a ler algo de que natildeo goste uma vez que isso pode ndash em vez de gerar o efeito pretendido que eacute fazer a crianccedila ou o jovem tomar gosto pela leitura ndash gerar o efeito inverso e fazer com que eles tenham ojeriza agrave leitura Teresa Colomer defende essa obrigatoriedade (COLOMER p 92 e 93)

[] na atualidade aumentam as vozes que defendem a responsabilidade social de oferecer aos meninos e agraves meninas o acesso a uma tradiccedilatildeo cultural compartilhada pela coletividade Isso requer a criaccedilatildeo de um horizonte de leituras ldquoclaacutessicasrdquo entendidas como um conjunto formado pelo folclore os tiacutetulos mais valorizados da literatura infantil e o iniacutecio da leitura das grandes obras universais (COLOMER 2017 p 127)

Contudo ela tambeacutem defende que essa literatura natildeo pode ser maccedilante levando em consideraccedilatildeo sempre os interesses dos alunos uma vez que eles natildeo satildeo meros receptores dos conhecimentos Para ela ldquoos melhores livros satildeo aqueles que estabelecem um compromisso entre o que as crianccedilas podem entender sozinhas e o que podem compreender por meio de um esforccedilo da imaginaccedilatildeo que seja suficientemente compensadordquo (COLOMER 2017 p 37)

Eacute fato que os poemas de Homero possuem uma linguagem a qual a crianccedila e o jovem do seacuteculo XXI podem natildeo conseguir acessar sem mediaccedilatildeo Ana Maria Machado (2009 p 11 e 12) coloca que

Eacute claro que hoje em dia o ensino eacute diferente e o mundo eacute outro Natildeo se concebe que as crianccedilas sejam postas a estudar latim e grego ou a ler pesadas versotildees completas e originais de livros antigos ndash como jaacute foi de praxe em vaacuterias famiacutelias de algumas sociedades haacute um seacuteculo Apenas natildeo precisamos cair no extremo oposto Ou seja o de achar que qualquer leitura de claacutessico pelos jovens perdeu o sentido e portanto deve ser abandonada nestes tempos de primazia da imagem e domiacutenio das diferentes telas sobre a palavra impressa em papel

Assim a mediaccedilatildeo entre os educandos e esses claacutessicos pode ser feita tanto pelos professores quanto pelas proacuteprias adaptaccedilotildees Sugerimos aqui um trabalho que conjugue ambos a adaptaccedilatildeo caminhando junto com o claacutessico A adaptaccedilatildeo sozinha natildeo daacute a dimensatildeo do claacutessico eacute preciso que noacutes mediadores conheccedilamos bem esse claacutessico para que consigamos ter um bom aproveitamento das adaptaccedilotildees

As boas adaptaccedilotildees satildeo aquelas que conseguem manter o mesmo fio condutor da obra original e traga as mesmas imagens marcantes da mesma Uma adaptaccedilatildeo da Odisseia sem o Ciclope por exemplo natildeo seria uma boa

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adaptaccedilatildeo uma vez que essa imagem eacute muito marcante ateacute mesmo dentro da proacutepria obra como jaacute vimos Sendo assim propomos aqui dois modos de trabalho com adaptaccedilotildees Contudo em ambos os casos cremos ser necessaacuterio trazer um pouco do original para que o aluno tenha dimensatildeo do claacutessico e como ele foi composto

Esse trabalho natildeo deve estar inserido no planejamento como se fosse uma mera curiosidade acerca do mundo grego antigo ele deve dialogar com o conteuacutedo programaacutetico Isso auxilia o professor nas estrateacutegias de ensino desse conteuacutedo bem como faz com que ele aproveite o tempo em sala de aula Muito se fala da questatildeo da ldquofata de tempordquo para se fazer atividades luacutedicas e diferentes com os alunos mas pouco se fala da inaptidatildeo do professor em conseguir associar essas atividades luacutedicas ao proacuteprio ensino do ldquoconteuacutedordquo em si

De fato satildeo muitos conteuacutedos para administrar em pouco tempo por isso essas atividades que a priori seriam tidas como ldquoextraclasserdquo devem ser incluiacutedas como metodologia mesmo de ensino deles Um documento (seja ele texto escrito imagem filme) natildeo deve ser utilizado para ilustrar um conteuacutedo mas para auxiliar na sua compreensatildeo Eacute possiacutevel tambeacutem utilizar esses documentos para avaliaccedilotildees fazendo com que o aluno relacione o conteuacutedo com o proacuteprio documento e estimulando-o a pensar acerca da sua proacutepria realidade a partir daquele documento A avaliaccedilatildeo resultante do trabalho com adaptaccedilatildeo natildeo deve ser o preenchimento de uma ficha de leitura ou um questionaacuterio pois isso acaba se tornando uma verificaccedilatildeo nos moldes que jaacute discutimos

Sendo assim escolhemos duas adaptaccedilotildees para trabalhar de dois modos distintos a Odisseia adaptada por Marcos Maffei e ilustrada por Eloar Guazzelli Filho para a Coleccedilatildeo Recontar (Escala Educacional 2004) e Odisseia de Homero (Segundo Joatildeo Viacutetor) de Gustavo Piqueira Em ambos os casos pensamos atividades para dois tempos de aula Existem duas opccedilotildees pedir para os alunos lerem a adaptaccedilatildeo previamente ou lecirc-la junto com eles em sala de aula apontando durante a leitura o conteuacutedo programaacutetico de Greacutecia a ser trabalhado

51 Odisseia de Marcos Maffei e Eloar Guazzelli Filho

Essa coleccedilatildeo segundo os editores foi feita para levar aos pequenos histoacuterias atemporais que continuam a divertir e ensinar O caraacuteter pedagoacutegico da literatura infantil ainda aparece aqui como norte A Odisseia especificamente eacute dividida em vinte e quatro capiacutetulos bem como a obra original eacute dividida em vinte e quatro cantos

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O intuito do adaptador eacute resumir os principais acontecimentos da Odisseia sem contudo desrespeitar a divisatildeo em cantos feita pelos saacutebios alexandrinos Sendo assim a histoacuteria segue a narrativa homeacuterica poreacutem de maneira adaptada agrave linguagem e agrave dinacircmica da narraccedilatildeo em prosa

O ideal eacute que o professor leia junto com os alunos a obra e selecione um dos capiacutetulos para trazer o canto original e lecirc-lo tambeacutem com os alunos incentivando-os a compreender as diferenccedilas entre uma narrativa e outra tanto em relaccedilatildeo ao gecircnero quanto em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees escolhidas para a contagem da histoacuteria Nesse momento eacute possiacutevel introduzir aos alunos os conteuacutedos relativos agrave literatura grega bem como o proacuteprio contexto no qual as epopeias homeacutericas estatildeo ancoradas (como o proacuteprio processo de formaccedilatildeo de apoikiacuteai ndash ldquocolocircniasrdquo ndash gregas ao longo do Mediterracircneo) O professor pode mostrar como cada povo que Odisseu encontra eacute marcado pela sua presenccedila

Propomos aqui eleger o capiacutetulo 9 referente ao canto IX o qual relata o encontro de Odisseu com o Ciclope Eacute um dos capiacutetulos mais extensos do livro e que traz a seguinte caracterizaccedilatildeo do Ciclope

Fomos entatildeo parar noutra ilha onde havia aacutegua e muitas cabras Dali se via uma terra que parecia habitada e no dia seguinte decidi ir ateacute laacute soacute com meu navio Ancoramos onde havia uma grande caverna Escolhi doze de meus homens e fomos ateacute ela levando odres de vinho para ter algo a oferecer Na enorme caverna havia cestos cheios de queijos e cercados com filhotes de ovelhas e cabras mas seu dono levara seus rebanhos para pastar Ele natildeo demorou a chegar com um feixe de lenha tatildeo grande que fez um estrondo ao ser largado no chatildeo e corremos a nos esconder pois era um Ciclope um gigante enorme de um olho soacute Ele fechou a caverna com uma pedra imensa e muito pesada e ao acender o fogo nos viu e perguntou com sua voz tremenda quem eacuteramos (MAFFEI 2004 p 20)

Aqui o exagero (no corpo na voz nos atos do Ciclope) eacute reiterado vaacuterias vezes a fim de mostrar a monstruosidade do personagem A imagem do pelṓrios eacute aqui evidente bem como nas ilustraccedilotildees que os mostram extremamente gigantes frente aos navios gregos O texto continua de modo a narrar como o Ciclope devora os homens de Odisseu reiterando a imagem de que ele natildeo eacute um ldquohomem comedor de patildeordquo Esses satildeo os signos de etnicidade e alteridade que se repetem na adaptaccedilatildeo

No texto de Homero (IX vv 176-301) outros elementos se destacam como a dicotomia entre o cru e o cozido (com a presenccedila da fumaccedila dos fornos) o desconhecimento das leis a convivecircncia em comunidade e a ausecircncia

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de amizade ritual Todos esses elementos tecircm a ver com a construccedilatildeo da dicotomia entre o grego e seus Outros e mais tarde entre o grego e o baacuterbaro

A terra dos ciclopes que perto viviam observaacutevamossua fumaccedila e o som de ovelhas e cabrasQuando o sol mergulhou e vieram as trevasentatildeo repousamos na rebentaccedilatildeo do marQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosentatildeo eu realizando assembleia disse entre eleslsquoOs outros voacutes aqui ficai meus leais companheirosmas eu com minha nau e meus companheirosvou verificar esses homens de que tipo eles satildeose desmedidos selvagens e natildeo civilizadosou hospitaleiros com mente que teme o deusrsquoDito isso embarquei e pedi aos companheirosque tambeacutem embarcassem e os cabos soltassemLogo embarcaram e sentaram-se junto aos calccedilose alinhados golpeavam o mar cinzento com remosMas ao chegarmos a esse lugar que perto ficavalaacute vimos no extremo uma caverna junto ao maralta agrave sombra de loureiros Laacute grande rebanhoovelhas e cabras pernoitava em torno cercaalta se construiacutera com blocos de uma pedreiracom grandes pinheiros e carvalhos alta-copaLaacute pernoitava um varatildeo portentoso ele que o rebanhosozinho apascentava afastado aos outros natildeovisitava mas longe vivendo normas ignoravaDe fato era um assombro portentoso natildeo pareciaum varatildeo come-patildeo mas um pico matosodos altos montes que surge soacute longe dos outrosEntatildeo aos demais leais companheiros pedique laacute junto agrave nau ficassem e guardassem a naumas eu apoacutes escolher doze nobres companheirosfui Levava um odre de cabra com vinho escurodoce que me dera Maacuteron filho de Euantessacerdote de Apolo que zela por Ismarosporque junto com filho e esposa noacutes o protegemosvenerando-o pois habitava bosque arvorejadode Febo Apolo Deu-me presentes radiantesde ouro bem trabalhado sete pesos me deume deu acircnfora toda de prata e depoisvinho em doze acircnforas dupla-alccedila ao todo verteudoce puro bebida divina A esse ningueacutemconhecia nem escravo nem criado em sua casasoacute ele proacuteprio a cara esposa e uma soacute governantaQuando algueacutem bebesse esse vinho tinto doce como melenchia um caacutelice e doze medidas de aacutegua

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vertia um doce aroma da acircnfora emanavaprodigioso entatildeo impossiacutevel seria abster-seEu trazia um grande odre cheio dele e tambeacutem acepipesno alforje logo meu acircnimo orgulhoso pensouque encontraria varatildeo vestido com grande bravuraselvagem natildeo conhecendo bem tradiccedilotildees nem normasCeacuteleres nos dirigimos ao antro e dentro natildeoo achamos mas apascentava no pasto gordos rebanhosApoacutes chegar ao antro a tudo contemplamoscestos abarrotados de queijo cercados repletosde ovelhas e cabritos separados por categoriasencerrados agrave parte os mais velhos agrave parte medianosagrave parte filhotes Todas as vasilhas transbordavam de soroe baldes e tigelas fabricadas com as quais ordenhavaLaacute os companheiros suplicaram-me para primeiropegar algum queijo e voltar e depoisligeiro ateacute a nau veloz cabritos e ovelhasdos cercados arrastar e navegar pela aacutegua salgadamas natildeo obedeci (e teria sido muito mais vantajoso)para poder vecirc-lo esperando que me desse regalosPois apoacutes surgir natildeo seria amaacutevel com os companheirosTendo laacute aceso o fogo sacrificamos e tambeacutem noacutescomemos parte do queijo e dentro o esperamossentados ateacute voltar com ovelhas trazia ponderoso pesode madeira seca que seria usado para seu jantarLanccedilando-o fora do antro produziu um estrondonoacutes com medo recuamos ateacute o fundo do antroEle agrave ampla gruta tocou o gordo rebanhotantas quantas ordenhava e os machos deixou foracarneiros e bodes no exterior atraacutes da alta cercaEntatildeo ergueu e pocircs na entrada grande rochaponderosa a ela nem vinte e dois carrosoacutetimos de quatro rodas solevariam do solotal rochedo alcantilado colocou na entradaSentado ordenhava ovelhas e cabras balentestudo com adequaccedilatildeo e pocircs um filhote sob cada umaLogo metade do branco leite separou para coalhare pocircs os coalhos apoacutes juntaacute-los em cestos tranccediladosmetade laacute colocou em barris para que estivessedisponiacutevel para ele beber em seu jantarMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zeloentatildeo ao acender o fogo viu-nos e perguntoulsquoEstranhos quem sois Donde navegastes por fluentes viasAcaso devido a um assunto ou levianos vagaistal qual piratas ao mar Esses vagamarriscando suas vidas levando dano a gentes alheiasrsquoAssim falou e nosso coraccedilatildeo rachou-se

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atemorizados com a voz pesada e o portento em siMesmo assim com palavras respondendo disse-lhelsquoNoacutes aqueus vindos de Troia vagamos longe do cursodevido a todos os ventos pelo grande abismo de mare ansiando ir para casa por outra rota outros percursosviemos assim talvez Zeus quis armar um planoTropa de Agamecircmnon filho de Atreu proclamamos serdesse cuja fama eacute agora a maior sob o paacuteramodevastou grande cidade e tropas dilaceroumuitas Noacutes poreacutem chegando a esses teus joelhosnos dirigimos esperando nos hospedares bem ou mesmodares um regalo o que eacute costume entre hoacutespedesMas respeita os deuses poderoso somos teus suplicantesZeus eacute o vingador de suplicantes e hoacutespedeso dos-hoacutespedes que respeitaacuteveis hoacutespedes acompanharsquoAssim falei e logo respondeu com impiedoso acircnimolsquoEacutes tolo estrangeiro ou vieste de longetu que me pedes aos deuses temer ou evitarOs ciclopes natildeo se preocupam com Zeus porta-eacutegidenem com deuses ditosos pois somos bem mais poderososnem eu para evitar a braveza de Zeus a ti poupariaou a teus companheiros se o acircnimo natildeo me pedisseMas dize-me onde aportaste a nau engenhosaalgures no extremo ou perto preciso saberrsquoAssim falou testando-me e eu bem arguto percebirespondendo disse-lhe com palavras ardilosaslsquoMinha nau sucumbiu a Posecircidon treme-solocontra rochedo lanccedilou-a nos limites de vossa terralevando-a rumo ao cabo vento trouxe-a do marMas eu com esses aiacute escapei do abrupto fimrsquoAssim falei e natildeo me respondeu com impiedoso acircnimomas de suacutebito sobre os companheiros estendeu as matildeose tendo dois agarrado como cachorrinhos ao chatildeoarrojou-os miolos escorriam no chatildeo e molhavam o soloApoacutes cortaacute-los em pedaccedilos aprontou o jantarcomia-os como leatildeo da montanha e nada deixouviacutesceras carnes e ossos cheios de tutanoNoacutes aos prantos erguemos os braccedilos a Zeusvendo o feito terriacutevel e a impotecircncia deteve o acircnimoMas quando o ciclope encheu o grande estocircmagoapoacutes comer carne humana e depois beber leite purodeitou-se no antro esticando-se entre o rebanhoConsiderei no eneacutergico acircnimo dele chegarmais perto puxar a espada afiada da coxae golpear no peito onde o diafragma segura o fiacutegadoapoacutes alcanccedilar com a matildeo mas outro acircnimo impediuLaacute mesmo tambeacutem noacutes nos finariacuteamos em abrupto fimda alta entrada natildeo teriacuteamos conseguido no braccedilo

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afastar a ponderosa pedra que laacute depositaraAssim gemendo aguardamos a divina AuroraQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosele acendeu o fogo e ordenhou esplecircndido rebanhotudo com adequaccedilatildeo e sob cada fecircmea deixou o filhoteMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zelode novo ele agarrou dois de noacutes e o almoccedilo preparou8

O interessante eacute aleacutem de destacar esses elementos poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais da Greacutecia Antiga fazer o aluno pensar instigando-o a reconhecer os elementos de diferenciaccedilatildeo entre o grego e o Outro dentro das duas narrativas (a adaptaccedilatildeo e o canto IX) Aleacutem disso podemos incitaacute-lo a uma discussatildeo atual o que diferencia o brasileiro do estrangeiro hoje O que caracteriza a nossa cultura Qual tem sido a nossa postura em relaccedilatildeo aos estrangeiros dentro do nosso paiacutes Nossas fronteiras eacutetnicas satildeo as mesmas dos gregos Por quecirc

52 A Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor)

O livro de Gustavo Piqueira talvez seja uma das recontagens da Odisseia menos convencionais com ilustraccedilotildees dele mesmo traz a histoacuteria da Odisseia contada pelos olhos de Joatildeo Viacutetor aluno de recuperaccedilatildeo do 6ordm ano do Ensino Fundamental II (e pela construccedilatildeo do personagem ao longo da narrativa de famiacutelia conservadora e de classe meacutedia) que precisa ler esse eacutepico para entregar um trabalho final e conseguir finalmente passar de ano O problema eacute que em vez de retirar na biblioteca da escola uma adaptaccedilatildeo (como fez seu amigo Fumaccedila) ele vai com o claacutessico original para casa

Ao longo de todo o livro Joatildeo Viacutetor se depara com situaccedilotildees completamente estranhas para ele que rendem comentaacuterios jocosos de sua parte Em caixa normal temos a recontagem feita pelo aluno mas em negrito e itaacutelico temos os comentaacuterios dele aos episoacutedios que ele narra o que nos possibilita conhecer a personalidade dele e o mundo em que ele vive Logo na capa do trabalho (PIQUEIRA 2013 p 7) o aluno se vecirc obrigado a colocar ldquoResumo e interpretaccedilatildeo do livro Odisseia escrito por Homero da Silvardquo visto que ldquona ediccedilatildeo que peguei na biblioteca natildeo havia sobrenome do autor apenas o primeiro nome Homero Como todo mundo tem sobrenome coloquei um bem comumrdquo

Logo na narrativa do Canto I vemos uma situaccedilatildeo que inspira reflexotildees acerca do etnocentrismo e da alteridade Joatildeo Viacutetor natildeo reconhece o politeiacutesmo

8 Traduccedilatildeo de Christian Werner

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grego questionando Homero Afinal natildeo existe ldquoUm deus chamado Poseidonrdquo porque ldquoDeus soacute tem um e ele se chama Deus mesmo E seu filho natildeo eacute nenhum lsquociclope Polifemorsquo mas Jesus Que ateacute o Fumaccedila sabe foi crucificado natildeo cegadordquo (PIQUEIRA 2013 p 16) Adiante (PIQUEIRA 2013 p 17) ele reafirma que ldquopelo visto neste livro tem um punhado de deuses entatildeo natildeo vou mais discuti ok Se Homero da Silva natildeo sabe que soacute existe um Deus problema dele Eacute tarde da noite tenho o livro inteiro para ler e preciso passar de anordquo

Pode parecer a priori que eacute apenas uma crianccedila que desconhece o politeiacutesmo e se vecirc estranhando a religiatildeo do Outro no entanto a postura de Joatildeo Viacutetor eacute combativa reafirmando suas crenccedilas em detrimento da tentativa de contemplaccedilatildeo e compreensatildeo do Outro A ideia de que existe uma religiatildeo uacutenica e verdadeira denota como o etnocentrismo estaacute entranhado na visatildeo de Joatildeo Viacutetor (mesmo que ele natildeo tenha consciecircncia de que estaacute sendo etnocecircntrico) Eacute esse tipo de visatildeo preconceituosa (no sentido mesmo do termo de preacute-julgar) que deve ser questionada em sala de aula e levada agrave reflexatildeo

No entanto ao continuar a descriccedilatildeo do Canto I ele se depara com Athenaacute se transformando em Mentes um homem e fica confuso ldquoProfessora estou na duacutevida se chamo Atena de lsquoorsquo ou lsquoarsquo agora que ela mudou de sexo O que devo fazer Hoje em dia eacute um assunto tatildeo delicado natildeo quero soar preconceituosordquo (PIQUEIRA 2013 p 17) As questotildees de gecircnero satildeo mais palpaacuteveis para Joatildeo Viacutetor do que as questotildees de etnicidade uma vez que ele tem a sensibilidade de querer saber como ele deveria identificar Athenaacute que na sua visatildeo seria um transgecircnero O adaptador aqui mostra que os debates acerca desse tipo de intoleracircncia satildeo mais frequentes na sociedade

O Canto IX eacute um dos mais extensos (satildeo 6 paacuteginas escritas e mais 3 de ilustraccedilotildees) Eacute interessante perceber como a construccedilatildeo da cena do Ciacuteclope se daacute de modo diverso em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees precedentes e o proacuteprio texto homeacuterico No livro Joatildeo Viacutetor vecirc Odisseu como um malfeitor

Ulisses revela a Alciacutenoo sua identidade e comeccedila a contar tudo que lhe aconteceu desde que deixara Troia Primeiro deu uma passada em Iacutesmaro onde saqueou cidades e chacinou homens aleacutem de tomar mulheres e tesouros que dividiu com os outros para que ningueacutem reclamasse Ou seja bandido Natildeo haacute outra palavra para definir Ulisses a natildeo ser essa professora Denise Ladratildeo assassino e sequestrador Bandido E o pior conta seus crimes tranquilatildeo ldquoChacinei homens levei suas mulheresrdquo Como pode professora Eacute muita impunidade natildeo Muita Meus pais vivem comentando sobre isso aqui em casa Dizem que

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os ricos cometem as maiores barbaridades e sempre se safam Que moramos no paiacutes do colarinho branco Pelo visto Ulisses tambeacutem tinha costas quentes Do contraacuterio natildeo arriscaria tagarelar por aiacute suas falcatruas (PIQUEIRA 2013 p 62)

O interessante perceber eacute que aqui diferentemente da Odisseia original e da adaptaccedilatildeo que trabalhamos anteriormente natildeo haacute uma tentativa de reforccedilar as fronteiras eacutetnicas gregas Joatildeo Viacutetor critica o ldquoGreek way of liferdquo pondo em xeque tanto a ideia de civilizaccedilatildeo dentro do poema quanto a imagem do heroacutei na Greacutecia Antiga Como assim ser um heroacutei implica em praticar atitudes que hoje em dia seriam condenaacuteveis Daiacute a importacircncia de retornar a esse original a fim de que os alunos compreendam o porquecirc dessa mudanccedila

Os ciclopes satildeo descritos como ldquohorriacuteveis gigantes de um olho soacuterdquo (PIQUEIRA 2013 p 63) o Ciclope como um ldquomedonho giganterdquo (PIQUEIRA 2013 p 67) reforccedilando a ideia da monstruosidade deles Contudo Joatildeo Viacutetor ao comentar a atitude do Ciclope de devorar amigos de Odisseu escreve ldquoQuem mandou entrar de bico na casa dos outros Daacute nissordquo (PIQUEIRA 2013 p 67) As atitudes de Odisseu e de seus companheiros satildeo bastantes questionadas mostrando o estranhamento do menino em relaccedilatildeo agrave cultura helecircnica

Nessa adaptaccedilatildeo podemos chamar a atenccedilatildeo para a proacutepria construccedilatildeo de civilidade dentro de ambas sociedades a helecircnica arcaica (em Homero) e a brasileira do seacuteculo XXI (na adaptaccedilatildeo a realidade de Joatildeo Viacutetor) mostrando como mudaram as nossas noccedilotildees de civilidade barbaridade e fronteiras eacutetnicas ao longo do tempo histoacuterico Em vez de uma repulsa ao Ciclope aqui vemos uma empatia pautada pelo desconhecimento de Joatildeo Viacutetor das fronteiras eacutetnicas helecircnicas e do ideal de civilizaccedilatildeo construiacutedo por eles com a legitimaccedilatildeo dessas fronteiras Aleacutem disso ela eacute interessante para discutir a nossa proacutepria relaccedilatildeo de alteridade em relaccedilatildeo aos gregos a fim de desconstruir o etnocentrismo presente em nossas concepccedilotildees contemporacircneas

60 Consideraccedilotildees finais

Em virtude do apresentado pudemos concluir que eacute imprescindiacutevel abordar conceitos no Ensino da Histoacuteria a fim de que o aluno possa melhor compreender e modificar de maneira mais efetiva o seu cotidiano Por isso defendemos a abordagem do conceito de etnicidade na sala de aula mas sem antes reforccedilar que o professor deve ele mesmo compreender bem o conceito antes de trabalhar com ele

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Do mesmo modo o professor deve conhecer bem os textos claacutessicos com os quais ele quer trabalhar mesmo que ele vaacute utilizar adaptaccedilotildees Aleacutem disso vemos como eacute importante a leitura como Ana Maria Machado (2009 p 13) colocou ler eacute uma forma de resistecircncia sendo a utilizaccedilatildeo de textos imprescindiacutevel para a formaccedilatildeo natildeo somente de um leitor literaacuterio mas de uma pessoa criacutetica e consciente

[] a forccedila educativa da literatura reside precisamente no que facilita formas e materiais para essa ampliaccedilatildeo de possibilidades permite estabelecer uma visatildeo distinta sobre o mundo pocircr-se no lugar do outro e ser capaz de adotar uma visatildeo contraacuteria distanciar-se das palavras usuais ou da realidade em que algueacutem estaacute imerso e vecirc-lo como se o contemplasse pela primeira vez (COLOMER 2017 p 21)

A boa adaptaccedilatildeo nesse sentido ajuda a perpetuar na memoacuteria o claacutessico ldquoComo entatildeo se daacute a real permanecircncia da obra literaacuteria Ora pela conquista de novos leitores A adaptaccedilatildeo constitui uma estrateacutegia para apresentar a uma nova geraccedilatildeo de leitores um discurso literaacuterio legitimado pela instituiccedilatildeo escolarrdquo (FEIJOacute 2010 p 43) Assim como Odisseu o aluno ao ler viaja por mundos Outros que o faz refletir acerca de sua proacutepria realidade ao conhecer outras realidades

Utilizar a Histoacuteria Antiga para abordar um conceito tatildeo caro a noacutes cotidianamente que vemos nos noticiaacuterios as empreitadas dos refugiados para fugirem das guerras e serem recebidos de maneira deploraacutevel em diversos paiacuteses as tensotildees crescentes entre diversas etnias ao redor do mundo e a nossa proacutepria falta de sensibilidade agraves vezes em compreender o Outro em sua cultura e etnicidade mostra como cada vez mais eacute necessaacuterio retornar ao claacutessico para pensarmos o contemporacircneo A Histoacuteria Antiga ainda natildeo estaacute ultrapassada

Abstract We propose to think how to enter the ethnicity and ethnocentrism theme in classrooms by using adaptations of the Antiquity classics To accomplish this aim it is necessary to establish some criteria to use this kind of literature which still generates debates on its profitability as well as to define ethnicity We will start with the following concepts ethnicity (as Fredrik Barth pointed it) and identity-otherness (as Marc Augeacute does) in order to propose some activities with selected adaptationsKeywords History Teaching literary adaptations ethnicity

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COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeO AS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacute-TICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA

Alexandre Santos de Moraes1

Resumo O objetivo desse artigo eacute observar as tensotildees entre Aquiles e Agamecircmnon atraveacutes do binocircmio conceitual competiccedilatildeocooperaccedilatildeo Busca-se entender natildeo apenas as variaacuteveis dessa oposiccedilatildeo mas tambeacutem como as ideias de competiccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo que se instauram ao longo da querela sugere um modo de ser eacutetico-poliacutetico que distingue os heroacuteisPalavras-chave Competiccedilatildeo Cooperaccedilatildeo Aquiles Agamecircmnon Iliacuteada

Do ponto de vista conceitual cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo satildeo duas ideias tatildeo abrangentes que escapam ao monopoacutelio das aacutereas do saber institucionalizadas Natildeo haacute nenhuma poliacutecia acadecircmica que resguarde para si e para seus escolhidos a possibilidade de uso desse binocircmio que parece anunciar natildeo apenas um modelo de entendimento de dinacircmicas sociais mas verdadeiramente um modo de ser eacutetico-poliacutetico no mundo

Veja por exemplo que do ponto de vista comercial estimula-se mecanismos de competiccedilatildeo entre os funcionaacuterios para impulsionar as vendas ao mesmo tempo em que se defende disposiccedilotildees cooperativas que estimulem a coesatildeo do grupo para que haja o que vender (MACEDO 1961 p 105) Tal vieacutes no marco da Nova Sociologia Econocircmica identifica a dificuldade de correlacionar cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo entre empresas e o papel do Estado como seu guardiatildeo e criador2 O tema eacute complexo e natildeo se dispotildee na visatildeo de muitos analistas agrave polarizaccedilatildeo que defende os males e benefiacutecios de uma e outra como dado essencial bem como o valor estrutural que cada uma das

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) E-mail asmoraesgmailcom

2 Veja por exemplo o debate presente em FLIGSTEIN Neil Markets as politics political-cultural approach to market institutions In American Sociological Review v 61 1996

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disposiccedilotildees parece ensejar em um ambiente especiacutefico Marx por exemplo identificava que a cooperaccedilatildeo era instrumento fundamental para organizar o trabalho no mundo capitalista (MARX 1980 p 347) diferentemente do que pensam muitos defensores do (neo)liberalismo para os quais a concorrecircncia (identificada com a competiccedilatildeo) eacute beneacutefica a todos em um ambiente de mercado autorregulado regido por entes privados que supostamente conspiram ao lado de seus lucros pessoais para uma situaccedilatildeo de bem-estar social3

Para aleacutem do pensamento econocircmico as anaacutelises acerca de competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo frequentemente debatidas no marco dos princiacutepios organizativos de grupos e agrupamentos estimulando pesquisas em diversas aacutereas das Ciecircncias Humanas e Sociais Some-se a elas as pesquisas sobre Evoluccedilatildeo que avaliam as habilidades de indiviacuteduos de diversas espeacutecies em especial dos hominiacutedeos e de primatas natildeo-humanos4 Em muitos casos haacute uma evidente ecircnfase no princiacutepio cooperativo (ou altruiacutesta ou de solidariedade muacutetua) que atuaria no fundamento de nossa proacutepria existecircncia

Obviamente diante da variedade vertiginosa de possibilidades de entendimento desse binocircmio eacute preciso fazer algumas escolhas Por princiacutepio ao longo desse artigo consideraremos que 1) Competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo disposiccedilotildees atitudinais que envolvem sujeitos ou grupos em funccedilatildeo de objetivos especiacuteficos 2) Atitudes cooperativas e competitivas natildeo representam aspectos gerais do modus vivendi especiacutefico de uma ou outra formaccedilatildeo social ou seja natildeo haacute comunidades que sejam exclusivamente competitivas eou cooperativas 3) disposiccedilotildees cooperativas eou competitivas satildeo por princiacutepio situacionais ainda que haja mecanismos sociais que ensejem uma ou outra postura em determinadas situaccedilotildees 4) Ainda que haja discordacircncias identificamos a tendecircncia de associar a uma disposiccedilatildeo cooperativa a prevalecircncia do bem comum sobre o individual e na competitiva a valorizaccedilatildeo do individual em detrimento do bem comum e por fim 5) em determinado evento ou acontecimento grupos e sujeitos natildeo apresentam necessariamente um padratildeo de disposiccedilotildees coeso podendo variar em funccedilatildeo das circunstacircncias e objetivos almejados

O caso de um conflito armado envolvendo diferentes grupos eacute bastante elucidativo Em uma guerra por princiacutepio haacute pelo menos duas partes

3 Eacute possiacutevel ateacute mesmo identificar a defesa da competiccedilatildeo como um discurso de competecircncia fundado em caracteriacutesticas psicoloacutegicas O debate eacute longo e repleto de variaacuteveis (BENDASSOLLI 2001 p 65-76 NEVES 2009)

4 Nos uacuteltimos anos tem se delineado um especial interesse pela loacutegica cooperativa explorada em diversos trabalhos A tiacutetulo de referecircncia sobre esse debate vale consultar AXELROD 1997 HAMMERSTEIN 2003 MARSHALL 2010 PATTON 2009 WILLER 2009

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que competem entre si para alcanccedilar um objetivo Na ausecircncia de acordos diplomaacuteticos o sucesso de uma parte depende necessariamente do fracasso da outra parte Tomando isoladamente cada uma das partes haacute tambeacutem o pressuposto de que eacute necessaacuterio existir uma razoaacutevel coesatildeo entre seus membros para que o objetivo final qual seja a superaccedilatildeo do adversaacuterio seja alcanccedilado de tal modo que em um ambiente de batalha os integrantes de um mesmo exeacutercito precisam cooperar entre si Essa loacutegica geral contudo natildeo resiste necessariamente a situaccedilotildees que provocam disputas internas produzindo ruiacutedos entre os agentes quando haacute disposiccedilotildees contraacuterias que fazem exceder nas relaccedilotildees imediatas o fim uacuteltimo por que conspiram em suas accedilotildees conjuntas

Com base nesse exemplo quando fazemos a remissatildeo agrave experiecircncia dos povos antigos a lembranccedila imediata confunde-se tambeacutem com a narrativa mais recuada de que temos notiacutecia e que se desvela diante de noacutes como um excelente campo de experimentaccedilatildeo Na Iliacuteada a dissenccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon natildeo eacute apenas o substrato discursivo que assegura a coerecircncia e a loacutegica interna do poema mas tambeacutem a proacutepria manifestaccedilatildeo do nuacutecleo narrativo do eacutepico que conduz com os auspiacutecios dos deuses os eventos ulteriores na Guerra de Troacuteia Mais do que indicar os efeitos da dissensatildeo suas consequecircncias e caracteriacutesticas eacute desejaacutevel analisar o binocircmio competiccedilatildeocooperaccedilatildeo no marco de uma separaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica que o antecede e que parece situar os heroacuteis em duas formas distintas de ser no mundo Tais formas representam um topos que enseja por forccedila da incompletude dos proacuteprios sujeitos uma espeacutecie de ldquogatilhordquo o possiacutevel estopim para o conflito interno sempre que a poliacutetica entra em estado de falecircncia

Somos levados a conhecer logo nos versos prologais o anuacutencio da coacutelera (μῆνις) de Aquiles A causa como bem se sabe tem a ver com um ruiacutedo envolvendo os privileacutegios em torno da divisatildeo do butim de guerra Apoacutes o saque a Tebas foram recolhidos os despojos e os aqueus dividiram-nos entre si A Agamecircmnon coube Criseida filha de Crises sacerdote de Apolo ao passo que a Aquiles coube Briseida Daacute-se que o pai de Criseida o velho Crises suplicou aos aqueus que devolvessem sua filha em troca do pagamento de um resgate mas teve seu pedido negado Mais do que isso Agamecircmnon o mandou embora com aacutesperas palavras O anciatildeo recorreu agrave Apolo e pediu que tal ofensa seja retaliada ldquoQue paguem com tuas setas os Dacircnaos as minhas laacutegrimasrdquo (HOMERO Iliacuteada I v 42)

O pedido foi acolhido pelo deus Por nove dias as setas faziam as piras arderem continuamente na cremaccedilatildeo dos mortos Tambeacutem uma peste atingiu o acampamento aqueu Tatildeo grave era a situaccedilatildeo que por influecircncia de Hera

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uma assembleia foi convocada para discutirem e buscarem remeacutedio para tais males Aquiles tomou a palavra e sugeriu para que natildeo voltassem frustrados a casa que o adivinho Calcas fosse consultado para que todos soubessem atraveacutes de sua videcircncia como solucionar a querela Calcas tergiversou e disse ter receio de encolerizar ldquoaquele que rege poderoso os Argivos e a quem obedecem os Aqueusrdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 78-79) Aquiles assegurou sua fala e disse que iria protegecirc-lo Calcas entatildeo diz que Agamecircmnon deveria abrir matildeo de Criseida Tem iniacutecio a querela

Eacute preciso aqui esclarecer brevemente os sentidos da reaccedilatildeo de Agamecircmnon Uma vez conquistada a vitoacuteria e tendo sido pilhada uma cidade derrotada os produtos do saque satildeo colocados em comum para serem divididos Eacute o momento oportuno de observar os privileacutegios (γέρεα) que cabem aos sujeitos mais destacados assegurando a ldquoparte de honrardquo (τιμή) que toca cada um e seu precircmio (γέρας) correspondente5 O precircmio de Agamecircmnon ndash no caso Criseida ndash representava natildeo somente um bem de valor material mas tambeacutem e principalmente um siacutembolo de prestiacutegio a marca de deferecircncia que permite que o grupo o identifique como um sujeito de destaque Sua outorga visa reforccedilar publicamente a distinccedilatildeo social do outorgado O geacuteras6 portanto ratifica a posiccedilatildeo de soberania e atua para demarcar do ponto de vista das estruturas altamente hierarquizadas de poder a coesatildeo interna desse proacuteprio grupo7 A preocupante condiccedilatildeo de ἀγέραστος ldquodesprovido de precircmiordquo eacute vista como uma afronta grave agrave economia de prestiacutegio e agrave honra do heroacutei

A honra como aposta Finley (1958 p 143) em seu bem conhecido trabalho eacute um valor sobretudo competitivo ldquoEn la naturaleza del honor estaacute

5 Como diz Neyde Theml (1995 p 150) ldquoo exerciacutecio do poder real eacute em Homero resultado de acumulaccedilotildees de geacuterea privileacutegios que distinguem o rei com seus direitos e deveres para com a comunidade global Os γέρεα reais na Iliacuteada satildeo de 4 tipos a parte de honra (timeacute) sobre o botim praacuteticas especiais no banquete um teacutemenos presentes (dons e contra-dons) e direitos especiaisrdquo

6 Os sentidos de γέρας eacute importante frisar vatildeo muito aleacutem da loacutegica associada a um bem material Tambeacutem pode significar num sentido imaterial ldquoprerrogativardquo ou ldquoprivileacutegio honoriacuteficordquo A tiacutetulo de exemplo Neacutestor diz que por ser idoso natildeo teria meios de participar ativamente do combate como participava outrora mas que incitaria os guerreiros e com suas decisotildees e palavras afinal ldquoeacute esse o privileacutegio dos anciatildeosrdquo - τὸ γὰρ γέρας ἐστὶ γερόντων (HOMERO Iliacuteada IV v 323)

7 E natildeo custa recordar as epopeias apresentam ldquouma sociedade notadamente dividida em dois estratos de um lado os basileis os nobres os ricos proprietaacuterios de um domiacutenio de terra do oicirckos os chefes de guerra que ocupam o topo da hierarquia social e deteacutem os privileacutegios e as honras e do outro lado a massa de homens comuns O proacuteprio gecircnero da epopeia por ser destinado por princiacutepio a um puacuteblico aristocraacutetico obviamente faz com que o interesse dos poetas se associem essencialmente aos fatos e gestos dos basileisrdquo (SCHEID-TISSINIER 2002 p 1)

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que tiene que ser exclusivo o por lo menos jeraacuterquico Si todos adquieren igual honor no hay honor para ninguno Asiacute el mundo de Odiseo era necessariamente de fiera competecircncia porque cada heacuteroe luchava para sobrepasar a los otrosrdquo Ainda que Finley esteja correto essa natureza competitiva se aplica a um tipo de disputa que presume um ambiente belicoso em que dois adversaacuterios se enfrentem sendo outrossim incapaz de explicar as tensotildees em torno da timeacute em que supostos aliados como Aquiles e Agamecircmnon se percebem envolvidos como bem observou Margalit Finkelberg (1998 p 16) A visatildeo de Finley presume a competiccedilatildeo exclusivamente envolvendo adversaacuterios e natildeo sujeitos do mesmo grupo Como adiantamos as disposiccedilotildees competitivas e cooperativas satildeo situacionais o que exige uma observaccedilatildeo atenta de sua manifestaccedilatildeo

Em uma situaccedilatildeo corriqueira uma vez distribuiacutedos os butins de guerra a posse dos gerea seria respeitada e ningueacutem por princiacutepio deveria devolver o lote de honra que recebeu A crise que a fuacuteria apoliacutenea inaugura exige que haja uma revisatildeo da distribuiccedilatildeo que tendencialmente seria irreversiacutevel de tal modo que aleacutem das setas que matam e da peste que adoece Apolo tambeacutem instaura a discoacuterdia que enfraquece Agamecircmnon que eacute absolutamente consciente de seus privileacutegios se vecirc obrigado a revecirc-los para cooperar com a mesma coletividade que os assegura O Atrida poreacutem tenta fazecirc-lo conciliando o inconciliaacutevel Em resposta a Calcas apoacutes acusaacute-lo de soacute profetizar desgraccedilas diz

ldquoMas apesar disso restituiacute-la-ei se for isso a coisa melhor Quero que o povo seja salvo de preferecircncia a que pereccedila Mas preparai pra mim outro precircmio para que natildeo seja soacute eu entre os Argivos que fico sem precircmio pois tal seria indecoroso Pois deves todos voacutes como o meu precircmio vai para outra parterdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 116-120)

Em certo sentido a devoluccedilatildeo de Criseida representou simultaneamente uma disposiccedilatildeo cooperativa e competitiva cooperativa em primeiro lugar porque Agamecircmnon concordou com a devoluccedilatildeo de seu geacuteras competitiva em segundo porque natildeo admitiu ser o uacutenico a ficar sem precircmio exigindo que o butim fosse novamente redistribuiacutedo para que inevitavelmente outro guerreiro fosse ageiacuteratos e natildeo ele preservando assim seus privileacutegios e soberania Aquiles fiando-se na tradiccedilatildeo discordou da proposta de Agamecircmnon e argumentou ldquoNada sabemos de riqueza que jaza num fundo comum mas os despojos das cidades saqueadas foram distribuiacutedos e seria

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indecoroso tentar reaver tais coisas de junto do povordquo (HOMERO Iliacuteada I vv 124-126) Mais do que isso em caraacuteter compensatoacuterio sugeriu que os aqueus o recompensariam em trecircs ou quatro vezes quando Troacuteia fosse saqueada

Impossiacutevel natildeo identificar na fala do filho de Peleu uma tentativa de negociaccedilatildeo face ao conflito Agamecircmnon contudo reconhece no discurso de Aquiles uma tentativa de engano e faz uma assertiva ainda mais dura se os aqueus natildeo substituiacuterem o precircmio perdido iria retiraacute-lo agrave forccedila de quem quer que seja (HOMERO Iliacuteada I vv 138-139) A tensatildeo aumenta e a loacutegica competitiva envolvendo o liacuteder das multidotildees e o melhor dos aqueus atinge seu cliacutemax Como eacute bem conhecido Agamecircmnon decide que seria Briseida o geacuteras de Aquiles a recompensa pela devoluccedilatildeo de Criseida Nesse momento decreta-se a falecircncia da poliacutetica e nenhuma negociaccedilatildeo se torna possiacutevel pois o filho de Peleu eacute envolvido pessoalmente na soluccedilatildeo de uma questatildeo coletiva e sua honra eacute visceralmente maculada Segue-se uma seacuterie de acusaccedilotildees ofensas e mesmo em uma tentativa de assassinato natildeo fosse contido por Atena Aquiles teria sacado o glaacutedio e decepado a cabeccedila do basileu (HOMERO Iliacuteada I vv 187-195) O resultado final eacute o afastamento voluntaacuterio de Aquiles que se isola no acampamento dos Mirmidotildees e desaparece natildeo apenas do combate mas da proacutepria narrativa jaacute que suas accedilotildees soacute voltam a ser descritas no Canto IX O reaparecimento aliaacutes se daacute de uma maneira bastante insoacutelita Aacutejax Odisseu e Fecircnix o encontram deleitando-se com sua lira tendo apenas Paacutetroclo como audiecircncia em uma atitude fugidia e descompromissada com o calor do conflito que entatildeo aumentava devido agrave sua ausecircncia (HOMERO Iliacuteada IX vv 185-191)

Esse reencontro soacute ocorre porque Agamecircmnon reconhece que sem Aquiles o asseacutedio dos troianos aumentaria e chegaria o momento em que as naus dos aqueus seriam incendiadas sacramentando a derrota Em outras palavras seria derrotado da competiccedilatildeo com os troianos em funccedilatildeo da competiccedilatildeo particular que estabeleceu com o Peacutelida Quem o convence a retroceder eacute Neacutestor uma voz sempre atuante e eficaz na negociaccedilatildeo de conflitos ldquotiraste a jovem Briseida da tenda do furibundo Aquiles coisa que natildeo aprovamos Na verdade eu proacuteprio tudo fiz para te dissuadir mas tu cedeste ao teu espiacuterito altivo e sobre um homem excelente honrado pelos deuses lanccedilaste desonrardquo (HOMERO Iliacuteada IX vv 106-111) Agamecircmnon concorda com avaliaccedilatildeo e atribui a dissensatildeo ao desvario (ἄτη) de que foi viacutetima Mais do que isso concorda em abandonar a disposiccedilatildeo competitiva

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e buscar a reconciliaccedilatildeo com a oferta de uma imensa quantidade de presentes (δῶρον) incluindo a proacutepria Briseida acompanhada da promessa de que natildeo foi sexualmente tocada (HOMERO Iliacuteada IX vv 133-134) O Atrida percebe que se natildeo fizesse do adversaacuterio seu aliado o inimigo comum venceria o preacutelio e todos perderiam Tenta desse modo resgatar a poliacutetica falida por seu proacuteprio desatino

Desta vez a inflexibilidade fica a cargo de Aquiles e o custo da recusa agrave poliacutetica seria plenamente sentido Aacutejax Odisseu e Fecircnix satildeo enviados para tentar convencecirc-lo mas seus esforccedilos foram em vatildeo Aquiles resistiu Posteriormente tambeacutem Paacutetroclo fez uma criacutetica severa tatildeo dura quanto inuacutetil Apoacutes prestar assistecircncia meacutedica aos feridos observou que Diomedes Odisseu Agamecircmnon e Euriacutepilo os melhores combatentes estavam impedidos de lutar e nesse sentido ponderou

ldquoQue sobre mim nunca recaia esta ira que tu alimentaspois terriacutevel eacute teu pensar Que homem vindouro a tirecorreraacute se (vergonhoso) natildeo evitas a ruiacutena dos AqueusImpiedoso Natildeo aceito que Peleu condutor de cavalos seja teu painem que Teacutetis seja tua matildee Foste parido pelo glauco mar epelas rochas escapardas Por isso tens a mente peacutetrea durardquo (HOMERO Iliacuteada XVI vv 30-35)

Aquiles novamente manteacutem-se irredutiacutevel Volta a mencionar as tristezas que se abateram com a tomada de Briseida e recorda que soacute lutaria caso o combate se aproximasse de suas proacuteprias naus (HOMERO Iliacuteada XVI vv 49-63) Eacute bem verdade que Aquiles se sensibilizou quando as primeiras naus argivas foram incendiadas Tambeacutem concordou que Paacutetroclo fosse combater (HOMERO Iliacuteada XVI vv 126-129) e chegou a organizar as falanges a incitar os guerreiros e a fazer uma libaccedilatildeo a Zeus suplicando pelo sucesso da empreitada Aquiles por fim resolve ver (εἶδον) as lutas entre aqueus e troianos (HOMERO Iliacuteada XVI vv 255-256) abdicando da indiferenccedila Apesar disso manteacutem seu afastamento voluntaacuterio para assegurar a vivacidade da competiccedilatildeo com o Atrida

Os resultados destes combates foram decisivos para que Aquiles reavaliasse os sentidos de sua coacutelera pois cumpriu-se a prediccedilatildeo de Zeus Paacutetroclo morto eacute uma puniccedilatildeo ao seu afastamento bem como o evento catalizador que obrigaacute-lo-aacute a rever seu ostracismo A reaccedilatildeo agrave morte do amigo foi absolutamente intempestiva e do sofrimento (πένθος) nasce a constataccedilatildeo de sua proacutepria responsabilidade Teacutetis que ouviu o pranto do filho foi ter com

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ele para consolaacute-lo Aquiles em resposta disse ldquoQue imediatamente eu morra pois natildeo socorri o companheiro quando morto ele foirdquo (HOMERO Iliacuteada XVIII vv 98-99) Mas ao longo da mesma resposta Aquiles natildeo limita sua responsabilidade agrave morte de Paacutetroclo e a despeito de todas as recompensas todos os pedidos e todas as suacuteplicas eacute apenas por meio da dor que lanccedila um olhar retrospectivo em direccedilatildeo agrave proacutepria conduta

Que a discoacuterdia se exile dos homens e dos deusese a raiva amarga que oprime ateacute o mais inventivo de todos raiva muito doce dulciacutessima mais que o mel a escorrere que se expande como fumaccedila no peito dos homensassim a ira me causou Agamecircmnon soberano entre os homensMas tudo isso torna-se passado apesar de todo o sofrimento no peito refreando o coraccedilatildeo pois as urgecircncias sobrepujam(HOMERO Iliacuteada XVIII vv 107-113)

Trata-se de uma nova etapa a ira que nutria em relaccedilatildeo a Agamecircmnon eacute convertida na fuacuteria doravante dirigida a Heacutector reestabelecendo a competiccedilatildeo com o inimigo externo e a cooperaccedilatildeo com os aliados no conflito Quando a proacutepria Teacutetis recomenda ao filho que renuncie agrave coacutelera8 contra Agamecircmnon e convoque a assembleia para se reapresentar ao exeacutercito aqueu (HOMERO Iliacuteada XIX vv 34-36) enseja o derradeiro movimento de reconciliaccedilatildeo com a coletividade E Aquiles o faz atendendo os auspiacutecios maternos Com todos os seus pares reunidos o Pelida assume o centro da assembleia e proclama

Atrida teraacute sido isto o melhor para ambospara ti e para mim quando com os coraccedilotildees lutuososdevorados no imo nos enfrentamos por conta da donzelaPudera que em minhas naus Aacutertemis a tivesse matado com sua seta no dia em que a tomei como espoacutelio do saque a LirnessoSoacute assim natildeo teriam incontaacuteveis aqueus crivado os dentes no solopelas matildeos inimigas enquanto eu perseverava em minha ira(HOMERO Iliacuteada XIX vv 56-62)

O ritmo da dissensatildeo envolve nesse sentido um jogo intenso de competiccedilatildeo em torno da loacutegica da honra e seus privileacutegios de negociaccedilotildees frustradas de conflitos insoluacuteveis e soluccedilotildees que ultrapassam a poliacutetica Por forccedila talvez de sua juventude e da intemperanccedila que eacute tiacutepica dos jovens em Homero Aquiles soacute foi interpelado pela forccedila compulsoacuteria da pedagogia do

8 Afinal ldquoa ordem social e a vida comunitaacuteria civilizada ndash consequentemente a Cultura Grega ndash foi imaginada pelo menos em parte sobre o deslocamento da erisrdquo (WILSON 1938 p 132)

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sofrimento do ldquoaprender pelo sofrerrdquo (πάθει μάθος)9 que parece colocar no marco das relaccedilotildees sociais natildeo a competiccedilatildeo mas a cooperaccedilatildeo como valor fundante que preside a relaccedilatildeo do sujeito com seus pares e que envolve a assunccedilatildeo de responsabilidades

Esse debate nos remete ao claacutessico Merity and Responsability (1960) tese de doutorado de Arthur W Adkins O autor se dedicou a investigar no acircmbito da eacutetica grega o desenvolvimento do conceito de responsabilidade moral Em linhas gerais Adkins considerou que o sistema de valores homeacuterico era caracterizado pela dimensatildeo competitiva em torno da areteacute prevalecendo desta forma sobre um padratildeo cooperativo (ADKINS 1960 p 46) Sua abordagem apesar da importacircncia foi alvo de inuacutemeras criacuteticas com destaque para aquelas expressas pelas publicaccedilotildees de Long (1970) Lloyd-Jones (1971) Rowe (1983) e Cairns (1993) Os argumentos dependiam da percepccedilatildeo de que existia de um lado o espiacuterito agoniacutestico competitivo centrado em uma tocircnica individualista e do outro lado o princiacutepio cooperativo necessaacuterio para a apoio muacutetuo centrado nos ideais coletivos Nancy Demand chega ao ponto de associar estes princiacutepios aos contatos estabelecidos entre os oikoi no Periacuteodo Claacutessico para ela tal relaccedilatildeo era ldquomais competitiva do que cooperativa pois as casas se desafiavam em uma competiccedilatildeo por honra e ciuacuteme e neste enfrentamento todas estavam continuamente vulneraacuteveis agrave perdardquo (DEMAND 2004 p 3) o que decerto soacute poderia fazer sentido em casos isolados mas nunca como regra geral Graham Zanker (1997 p 2) em sua criacutetica a Adkins entende essa questatildeo como uma falsa dicotomia ao passo que ldquoeacute faacutecil encontrar momentos na Iliacuteada em que guerreiros competem uns com os outros na batalha para atingir um objetivo comum de vitoacuteriardquo

A tendecircncia geral do debate radica-se em certo sentido em esforccedilos para definir se a competiccedilatildeo ou a cooperaccedilatildeo tomadas em um sentido holiacutestico representam cada qual um paradigma a partir da qual a outra parte do binocircmio seria vista sob regime de exceccedilatildeo Em outras palavras se o modo de ser eacutetico-poliacutetico eacute por excelecircncia competitivo a cooperaccedilatildeo se torna

9 Ainda que natildeo apareccedila expresso nesses termos na Iliacuteada o πάθει μάθος de Aquiles se tornou objeto de discussatildeo a partir de um bem conhecido artigo Pearl Cleveland Wilson Nele o autor argumenta ldquoEm sua primeira apariccedilatildeo ele [Aquiles] eacute altamente considerado com todas as qualidades que pertencem ao heroiacutesmo juvenil No entanto com o desenrolar da trama ele natildeo mostra preocupaccedilatildeo com qualquer outro sofrimento que natildeo seja seu proacuteprio O que lhe falta neste sentido eacute aquilo que Heacutector possui cuja compreensatildeo leva o leitor moderno a cultivar simpatia por ele Esse sentimento continua sendo desconhecido por Aquiles natildeo por que ele seja incapaz de conhececirc-lo mas porque ainda natildeo foi despertado para essa experiecircnciardquo (WILSON 1938 p 560) O tema tambeacutem eacute conhecido pelo debate de Bruno Snell (2005 p 19) para quem o πάθει μάθος atua como um ldquomal necessaacuteriordquo ldquopois este aprende com um mal a precaver-se contra outro malrdquo

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ocasional do mesmo modo que se eacute feita a opccedilatildeo pela loacutegica cooperativa a competiccedilatildeo eacute aquilo que foge agrave regra A tarefa eacute bastante difiacutecil porque variaacuteveis incidem o tempo inteiro para colocar em xeque uma pretensa ordem que sobrepairava sobre as relaccedilotildees sociais forccedilando-nos a duvidar se tal dicotomia eacute empiricamente observaacutevel em um todo que nem de longe se permite e se propotildee coerente

Fato significativo eacute que a mentalidade grega identifica o permanente estado de incompletude dos sujeitos razatildeo pela qual sobrepaira um estado latente que transita entre o conflito (no qual as diferenccedilas satildeo inconciliaacuteveis) e a complementaridade (quando as diferenccedilas satildeo justapostas em prol de um objetivo comum) Eacute precisamente esse o uacuteltimo ponto que julgamos importante pocircr em evidecircncia para compreender a relaccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon

A justificativa bem conhecida estaacute assente em um topos religioso os deuses natildeo datildeo aos homens tudo ao mesmo tempo Trata-se de um sintoma bem observado em diversas situaccedilotildees e das muitas que poderiacuteamos usar como exemplo vale recordar a dupla moira de Aquiles que sua matildee divina previu se ficasse em Troacuteia e combatesse os troianos morreria jovem e teria gloacuteria eterna se para casa retornasse teria vida longa mas seu nome seria esquecido (HOMERO Iliacuteada IX vv 410-416) Haacute para cada bem um mal correspondente Na Odisseia o aedo Demoacutedoco que celebrava os festins na feaacutecia tambeacutem prefigura essa loacutegica irremediaacutevel posto que a Musa muito o amava ldquoDera-lhe tanto o bem como o mal Privara-o da vista dos olhos mas um doce canto lhe concederardquo (HOMERO Odisseia VIII vv 63-64) Uma das melhores formulaccedilotildees dessa loacutegica pode ser lida na fala de Polidamante a Heacutector

ldquoHeitor muita dificuldade tens tu em dar ouvidos a bons conselhosPorque o deus te concedeu preeminecircncia nas faccedilanhas guerreirasTambeacutem por isso queres estar acima de todos no conselhoSoacute que tu proacuteprio natildeo seraacutes capaz de abarcar todas as coisas Eacute que a um homem daacute o deus as faccedilanhas guerrilhasA outro a danccedila e a outro ainda a lira e o cantoE no peito de outro coloca Zeus que vecirc ao ao longeUma mente excelente de que muitos homens tiram vantagemA muitos ele consegue salvar coisa que sabe mais que todosrdquo(HOMERO Iliacuteada XIII vv 724-734)

Na troca de acusaccedilotildees entre Agamecircmnon e Aquiles a potecircncia guerreira do melhor dos aqueus claramente confrontava a lideranccedila poliacutetica do Atrida De um lado um basileu que ainda que combatesse tinha seus meacuteritos pouco

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associados agrave superaccedilatildeo dos adversaacuterios em campo de batalha do outro um jovem guerreiro que a todos superava no combate mas que era inaacutebil com as palavras Agamecircmnon diz a Aquiles ldquoDe todos os reis criados por Zeus eacutes para mim o mais odioso Sempre te satildeo gratos os conflitos as guerras e as lutas Se eacutes excepcionalmente possante eacute porque um deus tal te concedeurdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 176-178) Aquiles por sua vez diz a Agamecircmnon ldquoRei voraz com o proacuteprio povo eacute sobre nulidades que tu reinas se assim natildeo fosse oacute Atrida esta agora seria a tua uacuteltima insolecircnciardquo (HOMERO Iliacuteada I vv 231-232) Quem percebe a gravidade da dissensatildeo e busca intervir eacute Neacutestor precisamente pela sabedoria que se acumulou ao longo dos anos Falando primeiramente a Agamecircmnon diz

ldquoQue natildeo procures tu nobre embora sejas tirar-lhe a donzelaMas deixa-a estar foi a ele primeiro que os aqueus deram o precircmioQuanto a ti oacute Pelida natildeo procures agrave forccedila conflitos com o reiPois natildeo eacute honra qualquer a de um rei detentor de ceptroA quem Zeus concedeu a gloacuteriaEmbora sejas tu o mais forte pois eacute uma deusa que tens por matildeeEle eacute mais poderoso uma vez que reina sobre muitos maisrdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 275-281)

A fala ponderada de Neacutestor eacute um sintoma da perspectiva natildeo apenas dos poetas mas das aristocracias a quem cantavam e que gostariam de se sentir representadas nos versos hexameacutetricos O anciatildeo consegue criticar a decisatildeo de Agamecircmnon sem colocar em suspenso sua soberania Ao mesmo tempo dirige-se a Aquiles louvando seu meacuterito guerreiro sem abdicar da necessidade de submissatildeo ao poder de quem reina sobre mais gente Neacutestor percebeu que no interior do exeacutercito aqueu cada uma das partes exacerbava a ausecircncia da outra e que isoladamente competindo entre si o enfraquecimento dos gregos abriria espaccedilo para o fortalecimento dos troianos

Eacute precisamente nesse ponto que competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo dialogam natildeo como pares antiteacuteticos mas como um modo de ser que depende fundamentalmente do objetivo comum compete-se contra o outro e coopera-se internamente para atingir o mesmo fim Qualquer ruiacutedo qualquer idiossincrasia uma palavra que excede ou uma negociaccedilatildeo que se frustra arrasta consigo consequecircncias funestas graccedilas agrave incapacidade de dar a cada parte do binocircmio o espaccedilo consagrado que lhe cabe

Por fim e sobretudo haacute um modo de ser que pode ser complementar ou excludente ensejando por correspondecircncia a cooperaccedilatildeo ou competiccedilatildeo Se a fala de Neacutestor sugere que a cooperaccedilatildeo entre aliados eacute absolutamente

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necessaacuteria e deve ser tomada como princiacutepio orientador das relaccedilotildees sociais as proacuteprias diferenccedilas divinamente justificadas (os deuses natildeo datildeo tudo a todos) ensejam o amaacutelgama da competiccedilatildeo e fazem com que esteja sempre agrave espreita rodeando os heroacuteis no marco de suas potecircncias e carecircncias O fiel da balanccedila o ponto de apoio o ldquonoacute goacuterdiordquo que assegura a coesatildeo ou conflito eacute insisto a poliacutetica Eacute pela poliacutetica que o ser eacutetico-poliacutetico se manifesta e consegue pocircr a si proacuteprio e o outro em perspectiva olhando as diferenccedilas como possiacuteveis complementos e natildeo como foco de dissociaccedilatildeo Apolo sabia disso quando lanccedilou a discoacuterdia Agamecircmnon se apercebeu quando reconheceu seu desvario Aquiles aprendeu quando perdeu Paacutetroclo Neacutestor jaacute sabia antecipadamente E se haacute um sentido embora esquecido que preside a busca pela poliacutetica eacute certamente bem comum ainda que muitos insistam que eacute possiacutevel atingi-lo fora de uma disposiccedilatildeo cooperativa

Abstract The aim of this article is to observe the tensions between Achilles and Agamemon through the conceptual bionmial competitioncooperation Itrsquos intend not only understand the variables of this opposition but also how the ideas of competition and cooperation sets a quarrel and suggest an ethical-political way of being that distinghishes those heroesKeywords Competition Cooperation Achilles Agamenon Iliad

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Documentaccedilatildeo Textual

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A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTO DOS PODERES PA-RENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS

Bruno DrsquoAmbros1

Resumo Mostramos neste artigo que a democracia grega nasceu efetivamente com a reorganizaccedilatildeo territorial aacutetica de Cliacutestenes em 508 aC atraveacutes do enfraquecimento dos genoi e phratriai em prol dos demoi A democracia assim desde seu surgimento parece ter sido uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema semelhante do conflito entre a distribuiccedilatildeo de poder local e regional Palavras-chave Cliacutestenes Democracia Greacutecia antiga Oligarquias

A escassa produccedilatildeo bibliograacutefica histoacuterica sobre o tema do nascimento da democracia na Greacutecia Antiga por vezes gera certa simplificaccedilatildeo da temaacutetica criando uma idealizaccedilatildeo da democracia participativa grega e esquecendo os variados elementos que a constituiacuteram Sem a adequada compreensatildeo dos detalhes histoacutericos que compuseram o nascimento da democracia arriscamos dizer eacute quase impossiacutevel compreender adequadamente Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e toda a produccedilatildeo filosoacutefica subsequente sobre o tema da poliacutetica As vaacuterias criacuteticas que os filoacutesofos antigos fizeram agrave democracia grega adveacutem de muitos elementos histoacutericos factuais que natildeo estatildeo naturalmente presentes nos textos destes pensadores e soacute podem ser compreendidos agrave luz da histoacuteria poliacutetica grega

Heroacutedoto em seu relato fictiacutecio na sua Histoacuterias relaciona trecircs reis persas ndash Otanes Megabises e Dario ndash com respectivamente os trecircs regimes poliacuteticos claacutessicos ndash democracia aristocracia e monarquia Este relato ajudou a consolidar no imaginaacuterio grego estas trecircs formas de governo e jaacute nele se percebe uma valoraccedilatildeo negativa da democracia Isoacutecrates em seu Evaacutegoras tambeacutem vecirc negativamente a democracia grega por seu caraacuteter igualitarista poreacutem elogia Soacutelon e Cliacutestenes que em sua opiniatildeo foram homens que foram

1 Doutorando em filosofia pela UFPR E-mail dambrosbrunogmailcom

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capazes de construir uma cidade-estado longe da monarquia Xenofonte nos Memoraacuteveis e Ciropeacutedia despreza a democracia que para ele era um regime calcado na indisciplina popular e portanto um regime titubeante A famosa criacutetica platocircnica agrave democracia na Repuacuteblica natildeo inova exceto na sua teoria da degenerescecircncia dos regimes poliacuteticos partindo do melhor para o pior ou seja a democracia esta seria ruim porque se baseia num homem sem virtude Aristoacuteteles em sua Poliacutetica rejeita a teoria platocircnica da degenerescecircncia das formas de governo e afirma que a democracia eacute uma forma de governo degenerada que exclui o interesse comum e beneficia o interesse de uma classe particular os mais pobres

Em suma percebe-se que a democracia ao menos para as classes cultas natildeo era um regime bem No entanto se atentarmos somente para os argumentos presentes nos textos destes autores citados excluindo o contexto histoacuterico anterior natildeo compreenderemos esta antipatia agrave democracia em sua totalidade Eacute preciso portanto voltar-se para os acontecimentos histoacutericos

O principal evento para a consolidaccedilatildeo da democracia aleacutem das reformas anteriores de Soacutelon e dos Pisistraacutetidas foi sem duacutevida a reforma territorial sob Cliacutestenes ocorrida por volta de 508 aC Foi esta reforma que ao reconfigurar a demografia aacutetica enfraqueceu os laccedilos parentais das famiacutelias aristocraacuteticas aacuteticas e possibilitou a participaccedilatildeo poliacutetica efetiva nas eleiccedilotildees e nas instituiccedilotildees democraacuteticas atenienses O que houve em outros termos foi que os novos demoi nascentes como nova divisatildeo territorial administrativa se contrapocircs com a divisatildeo familiar tradicional de parentesco denominada genos o que contribuiu para a exacerbaccedilatildeo da antiacutetese entre uma aristocracia familiar local estabelecida e uma democracia poliacutetica translocal introduzida2 Todo o debate filosoacutefico poliacutetico concernente sobre a democracia tinha como pano de fundo os nuacutecleos de gens na Greacutecia antiga e a nova configuraccedilatildeo demograacutefica de Cliacutestenes os demoi

Cliacutestenes nasceu por volta de 570 aC e era membro do clatilde dos Alcmeocircnidas neto do tirano Cliacutestenes de Siacutecion tio de Peacutericles e avocirc de Alcebiacuteades Quanto ao seu legado Cliacutestenes tomou uma seacuterie de medidas reformatoacuterias principalmente no que tange agrave reorganizaccedilatildeo poliacutetica do territoacuterio da Aacutetica mudando a organizaccedilatildeo poliacutetica ateniense que era baseada em quatro tradicionais tribos com fortes laccedilos de parentesco entre si que foram responsaacuteveis pelas tiranias anteriores A fim de impedir que a tirania se

2 Sobre a diferenccedila entre γένος e δῆμος na Aacutetica claacutessica faz-se mister conferir o capiacutetulo X da parte II da obra de Fustel de Coulanges (2009) jaacute bem conhecida entre os helenistas e latinistas onde o autor defende a tese de que a gens era a famiacutelia em sua primitiva organizaccedilatildeo de parentesco e unidade e natildeo como se pensava na eacutepoca um artifiacutecio administrativo de relaccedilotildees de parentesco

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instalasse novamente atraveacutes destas relaccedilotildees de parentesco Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em dez tribos de acordo com sua area de residecircncia o seu dēmos Estas reformas territoriais foram na verdade uma ldquodessacralizaccedilatildeo da paacutetriardquo (KERCKHOVE 1980 p 27) e consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo em curso na Greacutecia Arcaica (DrsquoAMBROS 2014)

Os principais feitos de Cliacutestenes durante seu arcontado foram basicamente seis a reorganizaccedilatildeo demograacutefica do territoacuterio aacutetico o consequumlente fortalecimento dos dēmos em detrimento das antigas phratriai a reorganizaccedilatildeo da boulḗ em 500 participantes a reorganizaccedilatildeo da dikasteria a corte popular a instituiccedilatildeo do ostracismo e a cunhagem do conceito de isonomia que durante o seacuteculo V iria desembocar no conceito de democracia

Quanto a estas outras reformas o estabelecimento de corpos legislativos feitos de indiviacuteduos escolhidos por eleiccedilatildeo foi tambeacutem mais um atentado contra o parentesco e a hereditariedade aristocraacutetica Ainda sua reorganizaccedilatildeo da Boulecirc que primariamente foi feita por 400 membros para 500 membros 50 de cada tribo e a introduccedilatildeo do juramento bouleacutetico que propunha antecipadamente a agenda a ser discutida na ekkleacutesia foram importantes para esta desestabilizaccedilatildeo aristocraacutetica A reorganizaccedilatildeo do tribunal da dikasteria e a criaccedilatildeo do ostracismo usado pela primeira vez em 487 aC com a finalidade de expulsar da cidade qualquer um que ameaccedilasse a democracia foram mecanismos uacuteteis para o enfraquecimento do poder parental-aristocraacutetico

A ascensatildeo de Cliacutestenes ao arcontado se deu apoacutes a expulsatildeo de Hiacuteppias de Atenas quando Isaacutegoras entra na disputa pelo arcontado com Cliacutestenes ambos aristocratas Isaacutegoras aliou-se com o rei Cleomenes I de Esparta e exilou Cliacutestenes junto com 700 famiacutelias e tornou-se arconte epocircnimo em 507 aC Seu grande erro poreacutem foi tentar dissolver a boulḗ3 que resistiu e angariou o apoio do povo e forccedilou Isaacutegoras a fugir para a Acroacutepolis que laacute permaneceu por dois dias sendo expulso no terceiro junto com os espartanos aliados (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 721ndash2) Cliacutestenes entatildeo junto com os outros exilados retornou a Atenas e tornou-se arconte com apoio do povo e dos aristocratas hetairoi (cavalaria)

Conflitos entre aristocratas como entre Isaacutegoras e Cliacutestenes estava se tornando ldquofora de modardquo (BUCKLEY 2010 p 118) O povo de modo geral e igualmente a parcela de nobres por meacuterito financeiro estava enfastiada de disputas entre facccedilotildees aristocraacuteticas que natildeo percebendo a mudanccedila dos tempos ainda sustentava valores e coacutedigos de honra anacrocircnicos Cliacutestenes

3 Na verdade Heroacutedoto natildeo explicita se foi a Bouleacute ou o Areoacutepago que Isaacutegoras quis remover

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arguto poliacutetico e membro da aristocracia percebeu isso jaacute durante o periacuteodo de tirania onde os tiranos para se manter no poder adotavam medidas populistas que natildeo os tornavam dependentes dos humores inconstantes das facccedilotildees aristocraacuteticas mas do proacuteprio povo E lidar com o povo ignorante cujos interesses satildeo miacutenimos eacute muito mais faacutecil que lidar com uma aristocracia com infinitos interesses econocircmicos e poliacuteticos e coacutedigos de honra fastidiosos

Inspirado no bem suscedido populismo4 precedente dos pisistraacutetidas Cliacutestenes toma medidas igualmente populistas para se manter no poder desagradando naturalmente a classe aristocraacutetica da qual ele mesmo fazia parte Dentre estas medidas as principais foram duas a reforma demograacutefica e a ampliaccedilatildeo dos poderes da ekklesia Heroacutedoto (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 662 692) sublinha este caraacuteter oportunista das medidas de Cliacutestenes e igualmente Aristoacuteteles quando diz que ldquoCliacutestenes trouxe o povo para o seu lado cedendo o controle do Estado para o plethos (plebe)rdquo (ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 202) Portanto apesar de Cliacutestenes ser considerado o real fundador da primeira democracia na histoacuteria seus interesses natildeo foram altruiacutestas mas permeados de interesses pessoais e aristocraacuteticos ou mais amenamente uma ldquocombinaccedilatildeo de auto-interesse e acuidade puacuteblicardquo (BUCKLEY 2010 p 120)

Assim a democracia ateniense nasce propriamente com Cliacutestenes em funccedilatildeo de sua reforma demograacutefica do territoacuterio Aacutetico Os principais motores destas reformas foram dois que se inter-relacionam o problema da cidadania ateniense e o problema das unidades parental-aristocraacuteticas Passemos a seguir a explicaacute-las

Durante o arcontado de Soacutelon muitos estrangeiros vieram para Atenas por sua prosperidade crescente com sua abertura econocircmica para trabalhar nos mais diversos ramos sendo o principal o artesanato Igualmente durante

4 O populismo termo moderno eacute um fenocircmeno que liga-se diretamente agrave tirania O tirano era essencialmente um populista estava ao lado do povo e contra os aristocratas Heroacutedoto (V 926) diz que a sanha do tirano eacute essencialmente a igualdade ldquocortar todas as espigas maiores que as outrasrdquo Glotz (1988 p 92) resume magistralmente qual era de fato o objetivo do tirano ldquoreduzir os poderes da aristocracia e exalccedilar os humildesrdquo Por isso na tipologia poliacutetica platocircnica agrave democracia natildeo eacute reservado a ela um bom lugar pois o intervalo entre a democracia e o populismo e portanto agrave tirania eacute curto O povo no baixo medievo grego cultuava deuses locais ctocircnicos sendo um deles Dioniso (lembremos que como Cristo ele desceu ao Hades e ressuscitou segundo o Hino Homeacuterico LIII) A aristocracia cultuava deuses com caraacuteter universal os deuses oliacutempicos Para agradar o povo Pisiacutestrato promove os cultos ctocircnicos populares sendo o principal o culto a Dioniso construindo um templo e instituindo o festival da Grande Dionisia onde em 535 aC foi encenado a primeira trageacutedia tendo como vencedor Thespis de Icaacuteria Assim nasce oficialmente o culto a Dioniso e a Trageacutedia grega sob os auspiacutecios do populismo tiracircnico (cf GLOTZ 1988 p 93)

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os pisistraacutetidas muitas novas pessoas vieram para Atenas para servir como mercenaacuterios do exeacutercito puacuteblico Assim durante todo o seacuteculo VI Atenas recebeu uma quantidade crescente de estrangeiros que no governo de Soacutelon vieram para trabalhar como artesatildeos de vasos e no governo dos pisistraacutetidas vieram para trabalhar como mercenaacuterios no exeacutercito puacuteblico estes foram os famosos meacutetoikos (estrangeiros)

Durante o governo de Cliacutestenes Atenas jaacute era habitada pelos netos e bisnetos destas pessoas no entanto sem cidadania aacutetica ainda Assim tiacutenhamos trecircs geraccedilotildees de estrangeiros que ainda natildeo tinham a cidadania ateniense plena Atenas durante o seacuteculo VI aC teve um crescimento demograacutefico significativo e a propaganda poliacutetica dos pisistraacutetidas em transformar Atenas no centro cultural Aacutetico foi bem-sucedida ao trazerem os festivais dionisiacuteacos teatro e os jogos oliacutempicos para a cidade Desde modo aleacutem dos descendentes daqueles estrangeiros que vieram para Atenas sob Soacutelon e os pisistraacutetidas sob Cliacutestenes afluiacuteram para Atenas muitos outros estrangeiros

A uacutenica prova formal de cidadania ateniense antes de Cliacutestenes eram as fratriai que reivindicavam para si uma origem miacutetica como seus nomes atestam Assim quando Cliacutestenes fez a reforma geopoliacutetica aacutetica criando os demoi ele automaticamente aboliu o antigo criteacuterio de cidadania criando um novo os demoi (BUCKLEY 2010 p 120) O termo deme tem um sentido muito especiacutefico na Aacutetica pois de fato se refere ldquounidade poliacutetica associada com as reformas de Cliacutestenesrdquo (TRAILL 1975 p73)

Para compreender a natureza e extensatildeo da reforma geopoliacutetica aacutetica de Cliacutestenes em deme eacute preciso compreender a natureza das quatro unidades parental-aristocraacuteticas aacuteticas anteriores phylai phratriai genē e oikoi ou anchisteia Eric Voegelin (2012 p 190) chama-as de ldquoestruturas gentiacutelicasrdquo de sinecismo da civilizaccedilatildeo helecircnica e as apresenta em niacuteveis da maior para a menor respectivamente5 Estas estruturas gentiacutelicas da civilizaccedilatildeo helecircnica tinham caracteriacutesticas tribais e foram determinantes do processo de sinecismo aacutetico ou seja na uniatildeo dos vaacuterios vilarejos aacuteticos em torno de um centro poliacutetico uacutenico Atenas durante o seacuteculo V ac

Ao longo do seacuteculo VII ac as phratriai satildeo a base da sociedade englobam tambeacutem os genē e se legitima como poder poliacutetico tendo regras proacuteprias podendo promulgar decretos proacuteprios possuir bens e dignitaacuterios

5 Contudo natildeo sabemos exatamente se os philai eram partes das phratriai ou contrariamente se as phratriai eram parte das philai (LAMBERT 1993 p 1516)

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tem seu proacuteprio sacerdote e culto As lideranccedilas das phratriai eram hereditaacuterias e portanto natildeo-democraacuteticas (BUCKLEY 2010 p 122) As phratriai eram o foco da aristocracia e uma vez que a aristocracia era um problema para o povo logo eram igualmente o foco do problema As phratriai podiam dividir-se ou fundir-se conforme sua fraqueza ou forccedila poliacutetica e segundo as circunstacircncias (LAMBERT 1993 p 11) e esta grande mobilidade espontacircnea foi provavelmente o motivo que as fizeram sobreviver durante os 200 anos de democracia como ldquoorganizaccedilotildees extra-urbanasrdquo ( JONES 1999 p 210)

A fundaccedilatildeo das phratriai foi atribuiacuteda agrave figura miacutetica de Ion personificaccedilatildeo da identidade jocircnica (LAMBERT 1993 p 3) Atenas estava organizada em quatro tribos jocircnicas agrupadas em phratriai e genē baseadas num parentesco miacutetico com algum heroacutei (FINE 1983 p 229) Este recurso genealoacutegico a um ancestral miacutetico comum foi recorrente em todas as phratriai e pode se atestar tanto pelo sufixo patroniacutemico -idai nos nomes das phratriai como Alkmeonidai e Demotionidai como pelo famoso festival de Apatouria cujo nome derivaria de homopatoria ou seja ldquomesmo pairdquo (LAMBERT 1993 p 8) Apesar de o recurso genealoacutegico-miacutetico natildeo ser verdadeiro como hoje compreendemos a noccedilatildeo de verdade como correspondecircncia de fato as phratriai consistiam de pessoas com uma ancestralidade comum chamados homogalaktes e a membresia nas phratriai natildeo era reservada somente aos ricos eupatridai (FINE 1983 p 186) mas estendida a todos os que vinham a pertencer a uma phratriai Deste modo as phratriai eram organizaccedilotildees de parentesco primordialmente constituiacutedas por phraacuteter vizinhos proacuteximos e amigos de famiacutelia Haacute trecircs evidecircncias segundo Lambert (1993 pp 4-5) da existecircncia das phratriai aacuteticas trinta inscriccedilotildees arqueoloacutegicas preservadas obras tardias dos seacuteculos V e IV aC em especial Isaeus e Demoacutestenes e scholia variados como os ensaios de Plutarco Pausanias e Ateneu Em Homero a fratria eacute uma ldquosubdivisatildeo da tribordquo e uma ldquobase de organizaccedilatildeo militarrdquo de modo que o homem sem fratria eacute considerado um ldquofora de leirdquo (VIAL 2013 p189) A palavra phrater significa literalmente irmatildeo mas em Homero natildeo se usa a palavra phrater para se referir a irmatildeo mas sim adelphos e kasignetos (FINE 1983 p 35) O termo phratria eacute mencionado pela primeira vez na Iliacuteada (II vv 362-363 IX vv 63-64) quando Nestor fala a Agamenon para dividir os homens por tribos e phratriai Uma hipoacutetese para a origem das phratriai bem aceita eacute a de que na ldquoEra das Trevasrdquo grega os nobres agrupados em genē organizaram seus dependentes em phratriai para melhor controle cada uma estando sob o domiacutenio de um ou mais gene (FINE 1983 p 186) Assim a organizaccedilatildeo em phratriai formam um modo de organizaccedilatildeo dos genē e de fato as phratriai organizaram a vida social e poliacutetica grega desde sua

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apariccedilatildeo por volta de 2000 aC ateacute seu fim no segundo seacuteculo II aC como atesta uma inscriccedilatildeo em uma colocircnia grega em Naacutepoles

As outras estruturas gentiacutelicas phylai genē e anchisteia satildeo partes constituintes do que seratildeo as poleis futuramente Agrave medida que a noccedilatildeo de sujeito vai tomando escopo ndash como se pode atestar pela epopeacuteia liacuterica e trageacutedia ateacute seu ponto culminante com a filosofia ndash o mundo tribal aristocraacutetico vai dando lugar ao mundo das poleis democraacuteticas O sujeito ldquo[] sempre permaneceu numa posiccedilatildeo de mediaccedilatildeo por meio dos parentescos sanguiacuteneos tribais fictiacutecios e estreitos no interior da poacutelisrdquo (VOEGELIN 2012 p 189)

Cliacutestenes mudou a situaccedilatildeo poliacutetica aacutetica mudando a situaccedilatildeo geopoliacutetica Agora o centro das decisotildees poliacuteticas natildeo eram mais as phratriai mas os demoi Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em trecircs regiotildees geopoliacuteticas Paralia Mesogeia e Astu E cada uma destas aacutereas foi subdividida em dez partes chamadas tritiacuteas6 que por sua vez englobavam um certo nuacutemero de demes (BRAADEN 1955 p 22) De acordo com Braaden (1955 p 28) ldquoas tritiacuteas eram aacutereas geograacuteficas compactas e em alguns lugares contiacuteguasrdquo A subdivisatildeo aacutetica foi uma forma de ldquomisturar o povordquo (BUCKLEY 2010 p 128 BRAADEN 1995 p 23) As reformas de Cliacutestenes ldquopodem ter intentado transcender barreiras locais juntando homens dos distritos rurais urbanos e costeiros e desenvolver um sentimento de uniatildeordquo (HIGNETT 1952 p 141) Esta divisatildeo aacutetica foi a maneira achada para solucionar os conflitos parental-aristocraacuteticos entre as diversas facccedilotildees e partidos7

A principal diferenccedila entre as phratriai e os demoi era a ldquoconstituiccedilatildeo democraacuteticardquo (BUCKLEY 2010 p123) destes uacuteltimos Todos os temas concernentes aos demoi eram decididos natildeo mais por uma pequena phratria seleta mas por todo o demos

Alguns especialistas sustentam que Cliacutestenes com sua reforma demograacutefica desejava aumentar o poder das cidades e outros que ao contraacuterio

6 As dez era a dos Erectidas Egeus Pandion Leocircnides Acamantes Oineis Cecroacutepides Hipotoontes Eacircntides e Antiacuteoques e estavam espalhadas por todo o territoacuterio aacutetico em diferentes locais tendo muitas vezes a mesma tribo em locais diferentes totalizando assim trinta tritiacuteas Na mesma tritiacutea havia vaacuterios demoi e se crecirc ter havido cerca de 140 dēmoi em toda a Aacutetica Cada tribo eacute composta por trecircs tritiacuteas a da costa cidade e planiacutecie Cada tritiacutea foi nomeada segundo o demo dominante

7Alguns partidos regionais do seacuteculo VI aC eram pedieis cujo nuacutecleo estava concentrado na aacuterea de planiacutecie e tinha Licurgo como liacuteder paralioi cujo nuacutecleo era a aacuterea costeira e era famoso por ser a regiatildeo dos Alcmeocircnidas e por fim os hyperacrioi os ldquoaleacutem dos montesrdquo Cliacutestenes desejava quebrar a velha rivalidade entre os pediakoi paralioi e diakrioi e a influecircncia dos eupatridai (BRAADEN 1955 pp 23- 25)

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ele desejava diminuir De fato Cliacutestenes estava mais interessado dentre as trecircs grandes aacutereas em que a Aacutetica foi divida na aacuterea urbana provavelmente porque a maior parte das famiacutelias nobres eram de centros urbanos (BRAADEN 1955 pp 28-29) Aleacutem disso ldquoas tritiacuteas da Cidade consistiam de somente um demos que como a evidecircncia arqueoloacutegica mostra era a sede poliacutetica dos Alcmeocircnidasrdquo (BUCKLEY 2010 p 127) ou seja a proacutepria facccedilatildeo de Cliacutestenes

Deste modo as reformas tribais de Cliacutestenes foram um grande senatildeo o mais importante fator no desenvolvimento da democracia ateniense mas foram tambeacutem um meio de fortalecer a permanecircncia poliacutetica dos Alcmeocircnidas agraves custas de seus oponentes (BUCKLEY 2010 p 128)

Estas famiacutelias mantiveram influecircncia poliacutetica sobre o territoacuterio de onde vieram apesar de suas residecircncias estarem em aacutereas urbanas Alguns alegam como Braaden (1955 p 29) que a reforma territorial de Cliacutestenes natildeo foi um meio de beneficiar a plebe mas os aristocratas porque ldquoera necessaacuterio inventar um sistema pelo qual elas pudessem ser espalhadas por todas as tribos enquanto ainda usando localidade como a base para a cidadaniardquo

As rivalidades e conflitos entre as facccedilotildees podem ter sido causadas pela ambiccedilatildeo de poucas famiacutelias ou clatildes aristocraacuteticos que eram capazes de usar seus domiacutenios de certas regiotildees da Aacutetica como arma poliacutetica Cliacutestenes percebeu que estes blocos regionais de poder com seus liacutederes aristocraacuteticos sustentados em poder pode seus amigos e dependentes pela rede de velhas lealdades e alianccedilas eram o maior obstaacuteculo para a estabilidade poliacutetica Consequentemente houve uma radical reorganizaccedilatildeo do corpo citadino e por isso das quatro tribos jocircnicas sob os fundamentos que a dependecircncia poliacutetica do povo comum poderia somente ser quebrada pela separaccedilatildeo poliacutetica de seus liacutederes aristocraacuteticos (BUCKLEY 2010 p 126)

A artificializaccedilatildeo do territoacuterio atraveacutes de uma reforma geopoliacutetica foi o modo encontrado para enfraquecer o poder das fratrias fortalecer o poder do povo e ldquoquebrar os fortalecidos poderes regionais destes clatildes aristocraacuteticos e suas facccedilotildees acabando com as funccedilotildees poliacuteticas das fratrias e das velhas tribos [hellip] (BUCKLEY 2010 p 122) No entanto ao mesmo tempo foi um modo de fortalecer o poder de uma fratria especiacutefica a proacutepria de Cliacutestenes e descentralizar as decisotildees poliacuteticas e unificar o estado Poderiacuteamos dizer assim que a democracia ateniense foi consequumlecircncia de uma demografia antes de tudo

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Como dito acima um dos problemas sociais mais urgentes resolvidos sob Cliacutestenes ao final do seacuteculo VI eram os novos cidadatildeos sem cidadania ateniense plena A nova base de cidadania instituiacuteda por Cliacutestenes foi a localidade de nascimento e isso facilitou a inclusatildeo de novos cidadatildeos (BRAADEN 1955 p 22) Com as phratriai enfraquecidas a base de confianccedila para a cidadania agora natildeo eram mais o parentesco fictiacutecio com algum heroacutei mas simplesmente o demos ao qual algueacutem fazia parte Os deme garantiriam cidadania ateniense natildeo soacute para antigos habitantes mas tambeacutem para os novos conforme relata o proacuteprio Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses 214) Voegelin tambeacutem nos confirma ao dizer que ldquoa cidadania agora dependia do pertencimento a um dos demoirdquo e diz que a consequecircncia geral deste feito foi uma ldquodemocratizaccedilatildeo bem-sucedida da constituiccedilatildeo dissolvendo o poder da antiga estrutura gentiacutelica (VOEGELIN 2012 p190)

Aleacutem deste alargamento da cidadania a reforma demograacutefica clisteneana repercutiu na organizaccedilatildeo militar pois agora os ldquogenerais de qualquer tribo poderia vir de qualquer uma das trecircs regiotildees da Aacuteticardquo (BRAADEN 1955 p 26) A reforma territorial de Cliacutestenes foi ldquoum sistema pelo qual os Eupatridai seus inimigos talvez mas ainda homens de habilidade pudessem ser usados para favorecer na posiccedilatildeo militar e na nova e poderosa posiccedilatildeo de Prytaneisrdquo (BRAADEN 1955 p 30)

Este eacute um sistema extremamente complexo e foi implantado por Cliacutestenes com a finalidade de abolir os privileacutegios patroniacutemicos em favor dos demoniacutemicos o que aumentou o senso de pertenccedila a um dēmos nos indiviacuteduos ficando as relaccedilotildees familiares de genos cada vez mais tecircnues O dēmos portanto foi uma divisatildeo territorial artificial para impedir a forccedila poliacutetica dos genos Poderiacuteamos dizer que esse conflito entre genos e demos eacute o conflito entre a lei do Estado e o direito familiar ou ainda o conflito entre poder central e poderes regionais que estaraacute presente durante toda a histoacuteria da poliacutetica e da filosofia poliacutetica culminando em soluccedilotildees futuras como federalismo e a teoria da divisatildeo dos poderes

Esta estrateacutegia geopoliacutetica se deu justamente pela excessiva forccedila das relaccedilotildees parentais que o genos proporcionava frequentemente levando ao poder um membro proeminente de um genos que natildeo legislaria em favor do puacuteblico O genos assim se tornava representante por excelecircncia da aristocracia Logicamente a decisatildeo de Cliacutestenes natildeo foi inicialmente bem vista pois diluiacutea as relaccedilotildees familiares tradicionais do genos em troca de relaccedilotildees artificiais novas do dēmos O que se tornava decisivo daqui em diante para a poliacutetica Aacutetica natildeo era mais o nascimento a estirpe a hereditariedade miacutetica reivindicada pela aristocracia A arete saia do campo de virtudes familiares para virtudes sociais

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sempre tendo em vista a comunidade Cliacutestenes desta forma literalmente instituiu a democracia

O que foi entatildeo a democracia Aacutetica antiga Foi uma divisatildeo territorial uma estrateacutegia geopoliacutetica em prol de todas as pessoas e natildeo somente de grupos familiares bem instituiacutedos Portanto para a democracia Aacutetica antiga foi de suma importacircncia a artificializaccedilatildeo do territoacuterio Soacute desta forma pode-se afrouxar os laccedilos parentais tradicionais que sempre tenderam a se agrupar e formar oligarquias em prol de laccedilos puacuteblicos que por estarem territorialmente distantes e natildeo terem proximidades familiares auxiliaram no sentimento de pertenccedila territorial

Abstract We show in this article that Greek democracy was actually born with the Attic territorial reorganization of Cliacutestenes in 508 bC through the weakening of the genoi and phratriai in favor of the demoi Democracy then since its inception seems to have been an attempt to solve the similar problem of the conflict between the distribution of local and regional powerKeywords Cleisthenes Democracy Ancient Greece Oligarchies

Referecircncias

ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 2ordf Ed Lisboa Calouste Goubenkian 2009

BRADEEN Donald The trittyes in Cleisthenesrsquo reforms In Transactions and proceedings of the American philological association Vol86 1955 pp22-30

BUCKLEY Terry Aspects of Greek history 750ndash323bc A source-based approach London Routledge 2010

COULANGES Fustel de A cidade antiga Satildeo Paulo Martin Claret 2009DrsquoAMBROS Bruno Rodrigo Um estudo histoacuterico sobre a emergecircncia da

democracia como consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo na Greacutecia arcaica (594ndash508 aC) Orientador Jean Gabriel Castro - Florianoacutepolis SC 2014 119 p Trabalho de Conclusatildeo de Curso (graduaccedilatildeo) Universidade Federal de Santa Catarina

FINE John Van Antwerp The ancient greeks a critical history Harvard University Press 1983

GLOTZ Gustave A cidade grega Satildeo Paulo Bertrand Brasil 1988HEROacuteDOTO Histoacuterias livro V Lisboa Ediccedilotildees 70 2007JONES Nicholas The associations of classical Athens the response to

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4 Issue 29 (1980) pp 23-36

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LAMBERT SD The phratries of Attica Michigan Monographs in Classical Antiquity Michigan University Press 1993

TRAILL John S The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council Hesperia Supplements v 14 - The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council 1975 pp 139-169

VIAL Claude Vocabulaacuterio da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2013VOEGELIN Eric Histoacuteria das ideias poliacuteticas 1 Helenismo Roma e

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2012

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TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES

Paulo Pires Duprat1

Miserius nihil est quam mulier ldquoNada eacute mais miseraacutevel do que uma mulherrdquo

(PLAUTO As Baacutequides 41)

Resumo Muito se escreveu sobre gecircnero no mundo romano Natildeo obstante algo parece estar faltando a parte que cabe agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica desta sociedade Passado presente ou futuro as mulheres constituem no miacutenimo metade da populaccedilatildeo ao redor do globo uma forccedila de trabalho imprescindiacutevel seja em sociedades antigas ou modernas Sabemos que desde o comeccedilo dos tempos a maioria das mulheres foi submetida ao trabalho duro sob a forma de tarefas cansativas e repetitivas impostas de forma arbitraacuteria Tais atividades comeccedilavam ainda na infacircncia e jamais receberam o devido reconhecimento O objetivo deste trabalho eacute portanto resgatar o papel do trabalho das mulheres nas economias da Hispacircnia romana com especial atenccedilatildeo ao caso de Tarraco entre finais da Repuacuteblica ateacute o Principado levantando subsiacutedios locais e alhures para demonstrar a parte que coube agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica da sociedade romana

Palavras-chave Estudos claacutessicos Economia romana Trabalho feminino Estudos de gecircnero Poacutes-modernismo

Estudos claacutessicos e a naturalizaccedilatildeo dos preconceitos

Lamentamos iniciar este artigo afirmando que os estudos claacutessicos satildeo com certeza um dos campos acadecircmicos mais conservadores hieraacuterquicos e patriarcais (SKINNER 1983 p 183) Eminentes classicistas criacuteticos reconheceram que ldquoos estudos claacutessicos tecircm sido com poucas exceccedilotildees antiteoacutericos em geral e antifeministas em particularrdquo nas palavras de Nancy Sorkin Rabinowitz em sua provocante introduccedilatildeo ao Feminist theory and

1 Doutorando em Histoacuteria pela Unicamp sob orientaccedilatildeo de Pedro Paulo Abreu Funari Servidor puacuteblico federal ativo desde 2005 atuando como bibliotecaacuterio lotado na FAUUFRJ E-mail ppdupratyahoocombr

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the Classics (1993 p 1) Os estudos claacutessicos tecircm reforccedilado pontos de vista conservadores de diversas maneiras na maioria dos casos ao apoiarem-se em uma leitura empirista a partir do senso comum dos documentos antigos O uso do senso comum para a manutenccedilatildeo de relaccedilotildees iniacutequas de poder segundo as agudas observaccedilotildees do linguista britacircnico Norman Fairclough (1990 pp 84-91) contribui para que relaccedilotildees de poder injustas sejam mantidas pela naturalizaccedilatildeo dos discursos Rejeitamos portanto esta abordagem derivada do senso comum na medida em que apenas uma anaacutelise criacutetica permite compreender o ldquomasculinordquo e o ldquofemininordquo como construccedilotildees sociais que variam em termos de classe social gecircnero e etnicidade em diferentes periacuteodos histoacutericos e em diferentes sociedades (FUNARI 1995b pp 179-80) O trecho abaixo deixa claro nossa percepccedilatildeo

Eacute uma histoacuteria circular que se torna mais intensa agrave medida em que a contamos Eacute um meio de controle social e tem sido usado para regular as atividades e aspiraccedilotildees de grupos laquonaturalmenteraquo subordinados Haacute muitos presentes e passados a serem narrados mas os perdedores do jogo satildeo frequentemente os mesmos grupos subordinados (SCOTT 1993 p 8)

Enfim haacute caminhos mais justos e viaacuteveis O vieacutes com o qual nos propomos a investigar o papel nas mulheres na sociedade romana eacute declaradamente inspirado no movimento feminista que convenceu alguns historiadores2 a substituir sua perspectiva de ldquosexordquo para ldquogecircnerordquo aqui entendida como construccedilatildeo social e natildeo como categoria natural como jaacute aludido

Desconstruindo preconceitos

Por ocasiatildeo da virada do seacuteculo XX para o XXI observamos abordagens de vanguarda que transformaram os estudos claacutessicos Os historiadores do mundo romano acostumados com narrativas de cunho poliacutetico econocircmico ou militar se depararam com o surgimento de uma geraccedilatildeo de estudiosos preocupados com a revisatildeo de conceitos consagrados de criacuteticas a modelos interpretativos de cunho normativo aleacutem de muacuteltiplas propostas sobre temas ineacuteditos sendo explorados Reflexotildees sobre a cultura romana as relaccedilotildees de

2 Dentre os quais me incluo No que concerne ao meu caso em particular francamente inspirado pela teoria desconstrutivista presente nas obras de Foucault e nas leituras feministas e poacutes-feministas indicadas pela linha de pesquisa das profordfs Luana Tvardovskas Margareth Rago e Pedro Paulo Funari a partir das aulas ministradas em no 1ordm e 2ordm semestres de 2017 seguindo as prerrogativas do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Unicamp

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gecircnero conflitos eacutetnicos ou a formaccedilatildeo das novas identidades a partir do embate entre romanos e natildeo romanos passaram a figurar com mais intensidade nas publicaccedilotildees acadecircmicas especializadas Este processo que estaacute inserido em um contexto muito mais amplo resulta de questionamentos epistemoloacutegicos que as Ciecircncias Humanas tecircm enfrentado desde a deacutecada de 1960 As criacuteticas de M Foucault3 por exemplo proporcionaram uma revisatildeo no papel dos acadecircmicos e aos poucos foi se concretizando a percepccedilatildeo na qual o historiador produz discursos sobre o passado constantemente ressignificados a partir de suas proacuteprias convicccedilotildees preconceitos e limitaccedilotildees Assim vaacuterios pressupostos tatildeo arraigados na historiografia tais como a neutralidade a objetividade a busca pelo real a essecircncia de sujeitos universais e o ordenamento dos acontecimentos a partir da noccedilatildeo de classes sociais e seus conflitos socioeconocircmicos entraram em xeque e foram revistos e criticados abrindo espaccedilo para repensar as categorias de anaacutelise do passado e as metodologias empregadas para sua interpretaccedilatildeo (FUNARI GARRAFFONI 2008 p 102)

Nossas reflexotildees acerca do mundo romano inserem-se neste contexto Afinal consideramos que o estudo da Antiguidade Claacutessica natildeo precisa reforccedilar preconceitos nem constituir-se em elemento de opressatildeo (FUNARI 1995a p 31) Por outro lado devemos ter em conta que a cultura material eacute o resultado direto do trabalho humano enquanto o documento escrito eacute uma representaccedilatildeo ideoloacutegica da realidade transposta para o texto Os documentos escritos informam-nos sobre as ideias de seus autores em geral uma elite masculina que sabia ler e escrever A escrita assim eacute um instrumento de poder de classe (FUNARI 2003 p 40)

Deste modo acreditamos que muitas pesquisas que se baseiam exclusivamente em obras literaacuterias podem incorrer em imprecisotildees naturalizando discursos e cristalizando opiniotildees que na realidade natildeo eram compartilhadas pela maioria da sociedade A observaccedilatildeo abaixo resume nossa posiccedilatildeo

Para um periacuteodo como o da Histoacuteria romana ou grega () apenas a Arqueologia podia trazer informaccedilotildees concretas e se tinha a consciecircncia clara que a literatura era ldquofonterdquo mas de um valor decerto relativo erudito elitista () Quem lia Quem escrevia Quem nos garantia a fidelidade das versotildees chegadas ateacute noacutes (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

3 Margareth Rago (1995 p 72) considera que as perspectivas de Foucault representaram uma verdadeira revoluccedilatildeo na historiografia uma ldquonova maneira de problematizar a Histoacuteria de pensar o evento e as categorias atraveacutes das quais se constroacutei o discurso do historiadorrdquo (grifo da autora)

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Por tais razotildees destacamos a centralidade da Arqueologia como ferramenta natildeo soacute para compor quadro mais amplo de evidecircncias como tambeacutem para refutar algumas ideias contidas nessas fontes escritas que muitas vezes informam mais sobre a opiniatildeo dos seus autores do que da ldquorealidaderdquo que eles julgavam contar4 Felizmente jaacute acumulamos alguma tradiccedilatildeo de pesquisa arqueoloacutegica no campo da economia romana Graccedilas ao grande nuacutemero de evidecircncias disponiacuteveis o conhecimento tem evoluiacutedo tanto no campo das economias provinciais quanto no da metroacutepole Inuacutemeros artefatos resultantes de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas e o rico material epigraacutefico recuperado tecircm fomentado pesquisas que oferecem um quadro mais representativo das atividades econocircmicas desenvolvidas5 Haacute casos em que a evidecircncia eacute relativamente abundante e homogecircnea tais como por exemplo as inscriccedilotildees e os artefatos arqueoloacutegicos de Pompeacuteia ou os arquivos dos papiros gregos do Egito (BERDOWSKI 2007 p 283) que apontam para um quadro econocircmico-social muito mais multifacetado do que alguns vieses querem nos fazer crer6

As mulheres e sua Histoacuteria

Nas uacuteltimas deacutecadas temos observado sistemaacuteticos estudos sobre a atividade das mulheres na economia romana nos quais satildeo evidenciados seus papeis como forccedila de trabalho ou mesmo como empreendedoras Esta nova historiografia ao abordar as relaccedilotildees entre os sexos como resultado de uma

4 A misoginia dos autores da Antiguidade eacute flagrante e salta aos olhos Um bom exemplo disto eacute Taacutecito As mulheres descritas nos Anais de Taacutecito foram dissecadas remontadas e analisadas a partir de perspectivas psicoloacutegicas literaacuterias e ateacute dramaacuteticas Embora suas caracterizaccedilotildees sejam repletas de elementos retoacutericos em algumas ocasiotildees o autor retratou as mulheres como pessoas obcecadas pelo poder Ao referir-se agrave Agripina matildee de Nero fica patente sua fixaccedilatildeo no estereoacutetipo da dux femina e seu temor da influecircncia feminina sobre os homens - que ele considerava maligna ndash e seu alerta quanto aos ldquoperigosrdquo do abuso de poder por parte das mulheres (LrsquoHOIR 1994 McHUGH 2012 MELLOR 2010 p 131) Natildeo vamos nos aprofundar neste tema pois a noacutes interessa para o momento a atuaccedilatildeo econocircmica da mulher romana de classe baixa e meacutedia

5 A epigrafia representa portanto um manancial insubstituiacutevel Conforme aponta Encarnaccedilatildeo ldquopouco saberiacuteamos da organizaccedilatildeo romana na Peniacutensula Ibeacuterica se natildeo tiveacutessemos os documentos epigraacuteficosrdquo (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

6 O tema da economia na Antiguidade continua sendo perpassado por conflitantes visotildees acerca das rupturas e continuidades com o mundo moderno evidenciado pela polecircmica entre ldquoprimitivistasrdquo e ldquomodernistasrdquo Inicialmente conhecido como ldquoBuumlcher-Meyer Controversyrdquo este debate se encontra estigmatizado por incorrer em variaccedilotildees de uma mesma temaacutetica Seus principais artiacutefices satildeo Weber Rostovtzeff Polanyi com especial destaque para as teorias minimalistas de Moses Finley A controveacutersia eacute antiga mas estaacute distante de seu esgotamento (DUPRAT 2015 p 16) O caminho mais seguro eacute o do meio (SALLER 2002 p 252 DUPRAT 2015 pp 23-51)

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construccedilatildeo social (RAGO 1995 p 80) modificou os meacutetodos e as perspectivas da histoacuteria tradicional7 tornando-a cada vez menos descritiva mais relacional e para muitos mais problematizada A rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade8

Eacute importante ressaltar que a noccedilatildeo de economia tratada nesta pesquisa pode estar mais proacutexima do conceito original de oikonomia do mundo antigo do que a do atual a etimologia grega traduziria este termo como ldquogestatildeo domeacutesticardquo noccedilatildeo complexa com diversas implicaccedilotildees9 Sua raiz estaacute no oikos unidade domeacutestica de produccedilatildeo na qual se baseava a polis grega e cujo modelo seraacute transmitido agrave Roma Assim sendo a economia greco-romana repousava sobre nuacutecleos domeacutesticos de produccedilatildeo10 onde a participaccedilatildeo das mulheres eacute evidente Neste sentido o oikos se configura como ceacutelula econocircmica baacutesica local onde se garante a subsistecircncia aleacutem de promover a reproduccedilatildeo humana Trata-se por conseguinte de uma unidade de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo em si mesma (MIROacuteN PEacuteREZ 2004 p 67 apud MEDINA QUINTANA 2014 pp 22-23)

No mais devemos elaborar uma abordagem holiacutestica de modo a contemplar o caraacuteter diverso das relaccedilotildees de gecircnero na Antiguidade Precisamos

7 Segundo Rago (1995 p 71) ldquoos historiadores do grupo dos Annales se preocuparam com as estruturas e os diferentes ritmos e temporalidades dos fenocircmenos histoacutericos privilegiando as longas permanecircncias mentais sociais geograacuteficas e etc que Braudel identificaria posteriormente como la longue dureacutee ou seja a longa duraccedilatildeo em detrimento das mudanccedilas sociaisrdquo Bengoochea Jove (1998 p 243) acrescenta que ldquoa historiografia acadecircmica tradicional centrava sua investigaccedilatildeo na experiecircncia histoacuterica do varatildeo (grifo meu) e quando abordava a participaccedilatildeo da mulher era sempre sob o vieacutes da santa regente reformadora ou estadista Nem a revista Annales (publicada desde 1929) nem a historiografia marxista embora tenha cunhado o enfoque metodoloacutegico da ldquoHistoacuteria totalrdquo se ocuparam da problemaacutetica da mulher a natildeo ser sob perspectivas tradicionaisrdquo

8 Bengoochea Jove (1998 p 243) potildee nestes termos concluindo que a invisibilidade da mulher adveio da proacutepria concepccedilatildeo androcecircntrica e eurocecircntrica da histoacuteria que selecionou os acontecimentos que julgava dignos de anaacutelise em detrimento de outros que relegou ao esquecimento

9 Resguardo-me assim da polecircmica acerca do emprego do termo ldquoeconomiardquo para descrever realidades do mundo antigo pois haacute o argumento ldquofiloloacutegicordquo de que nem a palavra nem o conceito remontam agrave Antiguidade mas a momentos posteriores e portanto estranhos agrave consciecircncia antiga Para maiores informaccedilotildees sobre o tema sugiro Juumlrgen Deininger (2012) Ciro Cardoso (2011) e Pedro Paulo Funari

10 A famiacutelia romana foi a principal unidade de produccedilatildeo reproduccedilatildeo consumo e transmissatildeo intergeracional de propriedade e conhecimentos que englobam a produccedilatildeo no mundo romano Esta declaraccedilatildeo aparentemente banal tem implicaccedilotildees de longo alcance Na antiguidade romana (bem como em outras sociedades preacute-industriais) a famiacutelia organizava o trabalho em fazendas familiares e em oficinas urbanas tomando decisotildees sobre como implementar os esforccedilos de homens mulheres e crianccedilas (SALLER 2011 p 116)

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ter em mente que os estudos claacutessicos por conta de seu caraacuteter transdisciplinar demandam o estudo da Histoacuteria Filologia Literatura Antropologia Sociologia Arqueologia Arquitetura Histoacuteria da Arte Geografia Metalurgia Biologia entre muitas outras Tais vieses estatildeo naturalmente abertos para uma abordagem dos temas sob uma oacutetica multicultural e pluralista Em uacuteltima anaacutelise a interdisciplinaridade seraacute a ferramenta decisiva as ciecircncias natildeo satildeo apenas auxiliares umas das outras elas se locupletam Afinal os dados materiais podem confirmar complementar ou mesmo contradizer as informaccedilotildees das fontes histoacutericas (FUNARI 2003 pp 85-86)

Mulheres romanas convenccedilotildees leis e exclusatildeo social

A exclusatildeo das mulheres da histoacuteria do trabalho na Antiguidade pode ser considerada uma omissatildeo intencional no registro de sua atuaccedilatildeo Portanto se o pesquisador natildeo estiver procurando os sinais do trabalho feminino nas fontes eacute evidente que ele natildeo vai encontraacute-los As fontes literaacuterias pouco ajudam a delinear a participaccedilatildeo das mulheres e eacute faacutecil compreender o porquecirc muitos dos ideais filosoacuteficos gregos foram incorporados ao modo de vida romano (ALFARO GINER 2009 p 15) Entre os gregos havia a percepccedilatildeo de que o trabalho diaacuterio alienava o indiviacuteduo e seria degradante Eles consideravam que os ofiacutecios manuais deformavam o corpo e o espiacuterito representava um castigo para os seres humanos um esforccedilo individual grave ou um dever penoso11

De tal forma que o trabalho diaacuterio sobretudo o manual era estigmatizado no mundo antigo e jamais obteve o status de atividade ldquodignificanterdquo que logrou alcanccedilar apoacutes o advento da moderna sociedade de consumo Segundo a loacutegica machista dos letrados escritores da Antiguidade o que conferia dignidade era a atividade fundiaacuteria participar da economia como um abastado proprietaacuterio de terras do sexo masculino e viver do trabalho de seus escravos dispondo de tempo livre para o oacutecio (otium) e assim poder refletir sobre causas mais elevadas envolvendo-se em atividades consideradas artisticamente valiosas ou iluminadoras (tais como a Retoacuterica a Literatura ou a Filosofia) Devido a este modo elitista de pensar o trabalho das pessoas comuns acabou sendo destituiacutedo de qualquer valor sobretudo o das mulheres uma vez que os escritores que contaram esta histoacuteria faziam parte desta elite e menosprezaram o peso econocircmico e social que suportaram as pessoas dos demais extratos da sociedade ou seja aqueles que precisavam trabalhar diariamente para viver ou seja a grande maioria da populaccedilatildeo

11 Cf XENOFONTE Oecon IV 2 VI 5 Cir V 3 47 ARISTOacuteTELES Poliacutetica III 5 3 IV 4 9 apoacutes ALFARO GINER 2009 p 16)

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Aqui entendido como um discurso de poder este ideal greco-romano sustentava tambeacutem que homens e mulheres deveriam viver em esferas separadas O domiacutenio puacuteblico seria prerrogativa masculina enquanto que a mulher permanecia na privacidade da esfera domeacutestica Por implicaccedilatildeo o direito de engajar-se abertamente nas artes artesanato e o comeacutercio seria teoricamente reservado aos homens12 A disseminaccedilatildeo deste ldquoidealrdquo eacute predominante nas fontes literaacuterias e haacute uma pecha elitista fortemente ligada a ele (GROEN-VALLINGA 2013 p 295) Para a elite a atuaccedilatildeo da mulher estava limitada agrave esfera da famiacutelia e da household13 a casa por excelecircncia da Antiguidade aqui entendida como unidade de produccedilatildeo o que pressupunha certa autossuficiecircncia alimentar bem como a confecccedilatildeo das vestimentas num mundo onde inexistiam as facilidades proporcionadas pelas modernas redes varejistas que dispomos atualmente Tal configuraccedilatildeo econocircmica e social determinou que

A mulher tinha um papel especiacutefico e determinado no seio da casa e portanto na cidade A famiacutelia patriarcal impocircs limites sociais que as circunscreveram ao interior do lugar Os objetivos ter certeza sobre a legitimidade da descendecircncia e usar a mulher como moeda de troca nos assuntos da famiacutelia Uma ampla seacuterie de teorias para obter a submissatildeo da mulher a esses ldquopapeis marcadosrdquo foram desenvolvendo um corpo doutrinaacuterio Partindo da base da maior forccedila masculina e da debilidade da mulher se argumenta sua diferente capacidade para a realizaccedilatildeo das vaacuterias atividades (ALFARO GINER 2009 p 16)

A fraqueza fiacutesica atribuiacuteda agraves mulheres14 intimamente relacionada com seu papel bioloacutegico como matildee foi e continua sendo uma grande

12 Na Antiguidade a noccedilatildeo que emergiu a partir dos escritos de Aristoacuteteles Xenofonte e Columela era de que a divisatildeo baacutesica do trabalho confinava ldquonaturalmenterdquo as mulheres aos ambientes fechados ocupadas em tarefas domeacutesticas enquanto o papel dos homens era adquirir fora da casa os recursos necessaacuterios segundo essas fontes literaacuterias o trabalho feminino fora da casa seria uma anomalia (FOXHALL 1989 apud BERG 2016 p 51) Este eacute um discurso de elite e nossa pesquisa busca contestar tal noccedilatildeo apoiada pela Arqueologia e por uma nova abordagem multidisciplinar

13 A concepccedilatildeo de famiacutelia na sociedade greco-romana era muito diferente da moderna O latim claacutessico natildeo nos fornece termo ou expressatildeo para o que hoje compreendemos como ldquofamiacuteliardquo na cultura ocidental contemporacircnea tampouco para o que entendemos como constitutivo do nuacutecleo parental ou familiar - matildee pai filhos A centralidade que esse nuacutecleo parental desempenhava no entanto na sociedade romana onde um vasto nuacutemero de escravos e clientes pertencia e compunha aquilo que eles chamavam de famiacutelia (um ramo da gens da linhagem patrilinear) tem sido assunto de debates e estudos normalmente envolvendo a fusatildeo ou a distinccedilatildeo entre os sentidos que damos hodiernamente agrave noccedilatildeo de famiacutelia (como family) e o que os angloacutefonos entendem como ldquohouseholdldquo (TAMANINI 2014 p 215)

14 Para uma anaacutelise pormenorizada sobre o tema vide Grubbs (2002)

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inibiccedilatildeo para sua participaccedilatildeo no mercado de trabalho As mulheres foram naturalmente predestinadas a cuidar das crianccedilas e muitas vezes ficaram em casa para fazecirc-lo como consequecircncia a gestatildeo da famiacutelia tambeacutem se tornou sua responsabilidade (GROEN-VALLINGA 2013 p 297) De tal modo que as mulheres normalmente eram exaltadas pelo seu papel familiar por sua performance em prol da sobrevivecircncia da prole e natildeo por sua produccedilatildeo econocircmica Consideremos o famoso epitaacutefio de Amymone

Hic sita est Amymone Marci optima et pulcherrima lanifica pia pudica frugi casta domiseda

Aqui jaz enterrada Amymone (esposa) de Marcus melhor e mais bonita fiandeira obediente modesta frugal casta e dona-de-casa (CIL 6 11602)15

Natildeo eacute difiacutecil perceber que a capacidade reprodutora da mulher delineou esta convenccedilatildeo social que conhecemos bem a mulher ideal deve ser fiel boa matildee e dona de casa exemplar a perfeita matrona Contudo a desigualdade de gecircnero na economia natildeo eacute imposta somente atraveacutes de uma divisatildeo de trabalho desfavoraacutevel16 Ela decorre por conta da elaboraccedilatildeo de leis que tambeacutem instituem direitos desfavoraacuteveis Na legislaccedilatildeo greco-romana os direitos das mulheres de possuir comprar e vender legar e receber legados foram severamente restritos Ademais uma ampla gama de convenccedilotildees culturais e ideoloacutegicas restringiu o progresso econocircmico das mulheres (BERG 2016 p 50)

Em iniacutecios do periacuteodo republicano as mulheres tiveram reduzidas oportunidades para administrar seus proacuteprios negoacutecios Todos os membros femininos da famiacutelia romana se encontravam sob a autoridade legal do paterfamilias17 o chefe masculino da famiacutelia (em geral o progenitor) que tinha

15 Traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Groen-Vallinga (2013 p 297) versatildeo para o portuguecircs minha

16 Tanto as leis quanto a divisatildeo do trabalho foram altamente desfavoraacuteveis agraves mulheres na Antiguidade A divisatildeo do trabalho continua bastante desigual na maioria das sociedades de modo que algumas ocupaccedilotildees ainda satildeo consideradas exclusivamente femininas ou masculinas A quantidade eou a qualidade de qualquer tipo de matildeo de obra atribuiacuteda a um determinado indiviacuteduo tambeacutem foi naturalmente fortemente ditado por fatores diversos aleacutem do gecircnero tais como status social classe riqueza idade cidadania educaccedilatildeo ambiente urbano ou rural (BERG 2016 p 50)

17 Alguns autores suspeitam que a autoridade do paterfamilias romano natildeo era tatildeo absolu-ta quanto se apregoa e pode obscurecer nossa perspectiva da realidade laquoeacute importante olhar cuidadosamente para a forccedila da convenccedilatildeo que provavelmente atenuou o exerciacutecio da autoridade paterna dando agrave matildee muitos direitos efetivos que tinham pouca ou nenhuma base na lei formalraquo (DIXON 1988 p 43)

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prerrogativa em todos os tipos de accedilotildees legais dentre as quais comprar vender contrair diacutevidas intermediar transaccedilotildees etc O poder (potestas) do paterfamilias alcanccedilava todos os membros desta grande famiacutelia romana esposa filhos escravos e outros membros do clatilde natildeo necessariamente ligados por laccedilos de sangue Se uma filha se casasse com o parceiro sob o regime sine manu18 isso significava que ela permanecia sob as ordens de seu pai Caso contraacuterio ela passava para a ldquomatildeordquo (in manu) de seu marido Em alguns casos quando o marido natildeo detinha direitos plenos a mulher podia ficar sob a potestas do seu sogro (BERDOWSKI 2007 p 285)

Em ambos os casos as mulheres natildeo administravam seus proacuteprios bens e sequer tinham direito agrave propriedade conjunta com seus cocircnjuges No entanto se uma mulher permanecia sob a potestas do paterfamilias ela poderia ganhar uma independecircncia relativa apoacutes a morte do pai tornando-se sui iuris19 Este regime juriacutedico eacute apontado por alguns estudiosos como aquele que concedia mais liberdade agraves mulheres embora esta ainda tivesse que estar sob alguma forma de ldquotutela para mulheresrdquo (tutela mulierum)20 Durante a Repuacuteblica o tutor era geralmente algueacutem da famiacutelia patrilinear por exemplo um tio paterno (GRUBBS 2002 p 24) Seu papel era realizar algumas atividades legais e negoacutecios em nome da mulher tais como um testamento transacionar algum tipo de propriedade (res mancipii) ou emancipar escravos etc Berdowski (2007 p 285) defende que este instrumento flexibilizava o poder masculino sobre a mulher jaacute que nem sempre o tutor convivia no mesmo espaccedilo domeacutestico que a mulher e muito provavelmente seu controle natildeo seria tatildeo efetivo assim De tal forma que a partir do final da Repuacuteblica cada vez menos mulheres optaram por regimes que colocavam suas propriedades e a si proacuteprias sob o jugo do marido - ao inveacutes disso elas se tornavam sui iuris apoacutes a morte de seus

18 Segundo Pomeroy (1987 p 177) e Laacutezaro Guillamoacuten (2003 p 157) a partir do seacutec II a C a maioria dos matrimocircnios eram celebrados sob o regime sine manu o que na praacutetica originou um regime de separaccedilatildeo de bens que favoreceu a independecircncia econocircmica da mulher

19 As fontes arqueoloacutegicas indicam que o trabalho tecircxtil das filhas e escravas excediam a esfera domeacutestica embora elas fossem dependentes do pai ou do dono do empreendimento Natildeo eacute difiacutecil imaginar que este contexto pudesse contribuir para que filhas ou escravas pudessem alcanccedilar respectivamente o status de sui iuris ou mesmo de libertas e como tais pudessem seguir dedicando-se profissionalmente ao ofiacutecio ao qual se especializaram (LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 p 175)

20 Parece que o propoacutesito original da instituiccedilatildeo tutela mulierum era salvaguardar a heranccedila paterna da mulher para usufruto dos familiares masculinos do pai que por sua vez seriam seus herdeiros assim que ela morresse (GRUBBS 2002 p 24) Pelo visto sempre foi muito importante que o dinheiro e as propriedades ficassem sob a guarda da famiacutelia originaacuteria o que acabou por influenciar fortemente na evoluccedilatildeo das leis de heranccedila

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pais e adquiriam um tutor ou tutores (DIXON 1988 p 43) Ou seja havia espaccedilo para resistecircncia ainda que fosse velada

Entre o final da Repuacuteblica e iniacutecios do Principado a instituiccedilatildeo da tutela mulierum foi diminuindo em relevacircncia Em 9 d C Otaacutevio Augusto introduziu a ius (trium) liberorum uma lei que liberava do jugo da tutela mulerium as mulheres livres que tivessem parido trecircs filhos e para as libertas quatro (GRUBBS 2002 p 20) O imperador Claudio (41-54 d C) por sua vez aboliu a tutela para as mulheres nascidas livres (BERDOWSKI 2007 p 286)

O direito romano tardio21 seguiu esta loacutegica progressista com o reconhecimento legal dos direitos de heranccedila da matildee e mesmo dos filhos ilegiacutetimos tendecircncia jaacute observada na legislaccedilatildeo do segundo seacuteculo Muitas leis imperiais tardias foram dedicadas agrave bona materna O direito do pai sobre a bona materna foi sendo modificado de forma a que o marido detivesse apenas o usufruto (uso e posse em vida mas natildeo a propriedade absoluta ou o direito de vender e dispor) dos bens que seus filhos viessem a receber pelo lado de sua matildee (GRUBBS 2002 p 220)

Enfim haacute diversas evidecircncias de que a instituiccedilatildeo da tutela mulerium natildeo teria sido determinante para cercear a iniciativa nem a independecircncia econocircmica das mulheres deixando espaccedilo para aquelas que demonstraram habilidades comerciais e foram empreendedoras na antiga Roma (BERG 2016 DIXON 1988 amp 1992 GRUBBS 2002 LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 BERDOWSKI 2007 amp 2008) Havia espaccedilo para promoccedilatildeo social no mundo romano e muitas mulheres estavam no jogo num contexto pautado por ampla diversidade E a Arqueologia pode nos ajudar a comprovar Observem a figura nordm 1 abaixo

21 A fonte mais importante para o conhecimento do direito romano ldquoclaacutessicordquo eacute o Digesto de Justiniano que compreende cinquenta livros selecionados a partir das volumosas contribuiccedilotildees dos mais influentes juristas romanos atraveacutes dos tempos O Digesto foi compilado sob as ordens do imperador Justiniano do seacuteculo VI (reinou entre 527-565 d C) ou seja em periacuteodo bastante posterior ao apreciado neste trabalho mas serve para indicar uma tendecircncia evolutiva Justiniano instruiu sua equipe de juristas a ler milhares de paacuteginas de textos legais claacutessicos e sintetizaacute-los em um trabalho mais exiacuteguo preservando apenas o que ainda era vaacutelido e uacutetil naquele momento histoacuterico Tal medida permitiu que os estudiosos modernos reconstruiacutessem - ainda que de forma indireta e limitada - o conteuacutedo das obras originais que atualmente estatildeo perdidas (GRUBBS 2010 p 1)

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Figura 1 Relevo funeraacuterio em maacutermore de um accedilougueiro 2 d C Fonte Foto Elke Estel Skulpturensammlung Staatliche Kunstsammlungen Dresden Germany Cor-tesia de Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz BerlinStaatliche Kunstsammlungen DresdenElke EstelArt Resource NY In KNAPP 2013 p 75

Acima relevo funeraacuterio do seacutec 2 d C com representaccedilatildeo de cena cotidiana em um accedilougue em Roma indicando de modo claro o trabalho cooperativo o homem fatia as carnes enquanto a mulher toma conta dos livros Observem agora a figura 2

Figura 2 Escultura em relevo ca2 d C Ostia Museo Ostiense Ostia Antica Itaacutelia Inv 134 Fonte Foto Schwanke (Neg 19803236) Cortesia The Deutsches Archaumlologisches Institut em

Roma In KNAPP 2013 p 75

Temos acima uma escultura em relevo (ca 2 d c) com representaccedilatildeo de cena cotidiana no mercado duas mulheres trabalhando em uma loja atendendo os clientes na compra de gecircneros alimentiacutecios Outra atividade profissional desempenhada por mulheres pode ser depreendida a partir da

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figura 3 abaixo onde apresento mais uma representaccedilatildeo de cena cotidiana no comeacutercio da cidade monumento funeraacuterio datado entre o 1 e o 2 seacutec d C dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia que exercia uma profissatildeo que eacute considerada masculina ateacute os dias atuais Seraacute que as melhores fabricantes de sapatos em tempos romanos foram as mulheres A saber

Figura 3 monumento funeraacuterio dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia data-do entre o seacutec 1 a 2 d C Fonte (CIL 144698 apud LOacuteVEN 2016 p 210)

Enfim as figuras 1 2 e 3 representam mulheres em diferentes atuaccedilotildees profissionais e reforccedilam as evidecircncias que elas faziam parte do mercado de trabalho no mundo romano Este tipo de trabalho escultoacuterio era encomendado por interessados de diversos niacuteveis sociais e natildeo haacute motivos para supor que os artistas representassem cenas fictiacutecias ou imaginaacuterias

A discriminaccedilatildeo de gecircnero sem duacutevida circunscreveu a realidade do mercado de trabalho urbano romano mas isso natildeo deve nos cegar para as variadas e vitais contribuiccedilotildees das mulheres romanas para a economia

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Dispomos de documentaccedilatildeo arqueoloacutegica comprovando que as mulheres tinham ocupaccedilotildees muito amplas que vatildeo desde sapateiras ateacute escravas que fizeram da fiaccedilatildeo (quasillaria) suas vidsa Eacute necessaacuterio explicar ao inveacutes de justificar a ocorrecircncia regular de mulheres romanas que natildeo coincidem perfeitamente com a imagem da matrona domeacutestica (GROEN-VALLINGA 2013 p 296)

O trabalho feminino e a epigrafia

A epigrafia se apresenta como uma fonte direta de informaccedilotildees pois foram pessoas de diferentes estatutos juriacutedicos que mandaram realizar as inscriccedilotildees que tomando-se as devidas precauccedilotildees podem oferecer dados capazes de apoiar algumas conclusotildees vaacutelidas (MEDINA QUINTANA 2014 p 22) Portanto essa ciecircncia tem sido utilizada para elucidar aspectos da economia romana e para evidenciar os papeacuteis econocircmicos das mulheres Cabe aqui ressaltar o trabalho inovador que foi desenvolvido por Susan Treggiari que publicou trecircs artigos sobre as ocupaccedilotildees femininas (1975 1976 e 1979) baseados nas evidecircncias epigraacuteficas da cidade de Roma no periacuteodo imperial revelando uma tendecircncia de grande interesse pela histoacuteria das mulheres no final do seacutec XX Seu estudo recuperou imensa quantidade de dados acerca das ocupaccedilotildees profissionais femininas existentes na casa imperial e equipes domeacutesticas de famiacutelias abastadas na cidade de Roma bem como entre os setores artesanais e comerciais da cidade A pesquisa alcanccedilou vaacuterias conclusotildees importantes sobre empregos masculinos e femininos e representa uma contribuiccedilatildeo valiosa para o tema Infelizmente natildeo inspirou pesquisas subsequentes capazes de oferecer uma continuaccedilatildeo adequada em relaccedilatildeo aos temas que ela desenvolveu Portanto o trabalho de Treggiari continua atual e representa um formidaacutevel ponto de partida para novos estudos sobre os papeacuteis ocupacionais das mulheres romanas (LOVEacuteN 2016 p 201)

O principal corpus disponiacutevel para a Peniacutensula Ibeacuterica eacute o CIL - Corpus Inscriptionum Latinarum a primeira grande coleccedilatildeo epigraacutefica iniciada por Theacuteodor Mommsen em meados do seacuteculo XIX haacute tambeacutem diversas revistas especializadas sobre epigrafiacutea tais como LrsquoAnneacutee Epigraphique Hispania Epigraphica ou Hispania Antiqua Epigraphica que tecircm sido atualizadas a partir da incorporaccedilatildeo de novas inscriccedilotildees ou de renovadas interpretaccedilotildees de epiacutegrafes jaacute conhecidas Haacute tambeacutem recompilaccedilotildees de epiacutegrafes romanas localizadas nas proviacutencias linha que Geacuteza Alfoumlldy iniciou em 1975 com as inscriccedilotildees de Tarraco (GOROSTIDI 2013 pp 135-143 MEDINA QUINTANA 2014 p 22)

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As mulheres fiandeiras

Dentre os trabalhos tipicamente relegados agraves mulheres um se destaca o ofiacutecio de fiar latilde ou lanificium siacutembolo da feminilidade da bondade e da castidade Uma das imagens ideais de feminilidade no mundo antigo eacute representado por uma mulher fiando Ao longo da histoacuteria o imaginaacuterio patriarcal se apropriou desta icocircnica atividade para apresentar como deveria ser o comportamento ideal de toda mulher respeitaacutevel quieta trabalhadora e pudica - o que nos remete agrave imagem da fiel Peneacutelope sempre ocupada com seu tear e aguardando o retorno de Odisseu seu marido A figura das fiandeiras se encontra bastante representada na iconografia greco-romana de tal modo que a boa esposa dos ideais greco-romanos conseguiu transcender esses mundos e permaneceu viva no imaginaacuterio burguecircs Talvez por essa razatildeo vaacuterios estudos exploraram a relaccedilatildeo entre as mulheres e o mundo tecircxtil seja sob o vieacutes simboacutelico ou instrumental O fuso e roca satildeo portanto dois elementos associados com o feminino sendo apresentadas sob as mais diversas representaccedilotildees peccedilas de teatro objetos da vida cotidiana (vasos acircnforas espelhos) enxovais mosaicos pinturas parietais estelas funeraacuterias (MEDINA QUINTANA 2009 p 52) Vejam abaixo uma das representaccedilotildees de Peneacutelope em um vaso de figuras negras do seacutec V a C

Figura 4 Peneacutelope em seu tear assistida por Telecircmaco representado em um skyphos do seacuteculo V a C Fonte lthttpwwwperseustuftseduhopperimageimg=Perseusimage1993010667gt Acesso em 26122017

Diante destas questotildees podemos sugerir que a produccedilatildeo de tecidos rompia as barreiras sociais e unia todas as romanas uma vez que esta atividade representa um ldquofiordquo condutor entre as matronas de famiacutelia de alta posiccedilatildeo

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econocircmica suas escravas e as mulheres livres de baixa condiccedilatildeo social que desempenhavam a atividade para obter seu sustento Cada grupo feminino mantinha relaccedilatildeo muito peculiar com esta atividade com certeza muito diferentes entre si No caso das aristocratas consistia mais numa representaccedilatildeo simboacutelica - especialmente durante os finais da Repuacuteblica (133-31 a C) e o Principado (31 a C - 284 d C) - enquanto que para as escravas e as mulheres livres de condiccedilatildeo humilde representou um ofiacutecio verdadeiro (idem 2009 53) Presume-se que uma das razotildees para que este trabalho fosse tatildeo difundido na Antiguidade se deve por ter alccedilado o status de uacuteltimo recurso de sobrevivecircncia das mulheres pobres livres detendo a mesma importacircncia que a costura teve para a histoacuteria do trabalho feminino no seacuteculo XIX (TREGGIARI 1979 p 69)

Fulvia Lintearia em Tarraco

Para o caso da Hispacircnia romana Cartago Nova e Tarraco foram centros portuaacuterios artesanais cosmopolitas intimamente ligados agrave Roma e ldquoconectadosrdquo com as uacuteltimas tendecircncias contando com elevado percentual populacional de cidadatildeos fluentes em latim tais como soldados membros da administraccedilatildeo provincial negociantes e comerciantes Satildeo oriundas destas duas cidades as mais conhecidas epiacutegrafes latinas em pedra na Hispacircnia para o periacuteodo Republicano muitas delas estatildeo ligadas agrave esfera civil e religiosa fazendo parte de grandes complexos sepulcrais alguns com esculturas de togados sinalizando a ligaccedilatildeo entre epigrafia e monumentalizaccedilatildeo enquanto outras refletem suas crenccedilas religiosas Com frequecircncia satildeo epitaacutefios e nestas duas cidades a epigrafia latina se apresenta como um trabalho sobretudo encomendado por particulares (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 42-43)

Tarraco22 foi uma das cidades mais prestigiadas da Antiguidade Laacute podemos identificar um grupo de mulheres e homens membros da elite social da eacutepoca graccedilas agrave epigrafia preservada (DOMINGUEZ ARRANZ GREGORIO NAVARRO 2014 p 253) Felizmente nos tempos antigos era comum utilizar a pedra como suporte para inscriccedilatildeo de textos o que permitiu que recuperaacutessemos parte da histoacuteria desses povos Vale lembrar que este conjunto de epiacutegrafes conservadas representa iacutenfima fraccedilatildeo da produccedilatildeo escrita destas sociedades jaacute que os suportes da escrita que eles costumavam utilizar eram materiais mais baratos de origem mineral vegetal e animal

22 ldquoDentre as cidades da Hispacircnia romana a Colonia Iulia Urbs Triumphalis Tarraco eacute aquela com o mais rico patrimocircnio epigraacutefico () Eacute inestimaacutevel para o estudo da histoacuteria da cidade e do mundo em geral bem como a histoacuteria social (ALFOumlLDY apud GOROSTIDI 2013 p 135)

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tais como o pergaminho o papiro tabuletas de madeira placas de argila ou cera peles e etc Mas a natureza pereciacutevel destes materiais os condenou ao desaparecimento salvo rariacutessimas exceccedilotildees como as tabuletas encontradas em Vindolanda ou na Campacircnia (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 21-22)

Como jaacute aludido muito frequentemente as inscriccedilotildees funeraacuterias aludem ao trabalho em latilde que a defunta realizava (lanifica) Mas este universo era mais complexo e diversificado as artesatildes se especializavam de acordo com a fibra empregada Por exemplo a especialista em fiar o linho23 eacute a lintearia Beltraacuten Lloris e Estaraacuten Tolosa (2011 18) vatildeo aleacutem e natildeo soacute confirmam que a palavra lintearia se refere agrave profissatildeo de tecedora de linho bem como que esta ocupaccedilatildeo sem duacutevida ocorria na cidade de Tarraco haja visto que esta era conhecida pelo cultivo da planta que produz esta fibra como jaacute foi aludido por Pliacutenio o Velho (PLIacuteNIO Hist Nat XIX 10) Pois bem algueacutem em Tarraco dedicou uma epiacutegrafe para Fulvia lintearia (datada por volta da mudanccedila de Era inscriccedilatildeo hoje desaparecida) Medina Quintana (2009 p 61) esclarece que lintearia significa ldquovendedora de lenccedilosrdquo Treggiari (1979 p 70) acrescenta que provavelmente ela seria uma vendedora de roupas e que ela proacutepria deveria fiar o tecido para produzir as peccedilas que vendia

Devo ressaltar mais uma vez o trabalho de Geacuteza Alfoumlldy (1935ndash2011) apontado como o mais proeminente cientista no campo da epigrafia latina claacutessica e um dos principais especialistas no campo da Histoacuteria Social do mundo romano - que dedicou parte de sua trajetoacuteria acadecircmica ao levantamento epigraacutefico da cidade de Tarraco Em seguida dispomos a inscriccedilatildeo perdida tal como foi registrada pelo ceacutelebre professor

Fulvia lintearia

(CIL 02 04318a apud ALFOumlLDY 1975 p 1)

Abaixo a figura 5 sugere como deveria ser a aparecircncia de uma loja de tecidos no mundo romano

23 O linho proveacutem de uma planta herbaacutecea que chega a atingir um metro de altura e pertence agrave famiacutelia das linaacuteceas Abrange um certo nuacutemero de subespeacutecies reunidas pelos botacircnicos sob o nome de Linum Usitatissimum Fonte Wikipeacutedia

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Figura 5 Estabelecimento de comeacutercio de tecidos Florenccedila Itaacutelia I d C Fonte (GLAD sd 2)

O casal enquanto unidade de produccedilatildeo

Nosso objetivo neste trabalho foi traccedilar um panorama geral de como podemos alcanccedilar a histoacuteria econocircmica das mulheres romanas atraveacutes da Arqueologia e de uma abordagem multidisciplinar adotando uma postura acadecircmica pautada pela equidade preocupada com a igualdade de gecircnero - obviamente sem a pretensatildeo de esgotar o tema Esta pesquisa pretende conscientizar que apesar das restriccedilotildees legais ideoloacutegicas e culturais pelas quais as mulheres passaram e continuam passando elas sempre desempenharam papel primordial na economia de todos os tempos Podemos resgatar suas trajetoacuterias natildeo somente como forccedila de trabalho como tambeacutem podemos destacar sua atuaccedilatildeo empreendedora lutando empenhadas em fazer sobreviver a famiacutelia e gerar sua descendecircncia aleacutem da de seu marido perpetuando um sistema As mulheres romanas se envolveram com certeza em atividades comerciais e negoacutecios em geral decerto natildeo de forma equivalente mas similar aos homens Mas natildeo soacute atuaram sempre como as inseparaacuteveis companheiras configurando-se como a outra variaacutevel da mesma equaccedilatildeo parte indissociaacutevel do casal enquanto unidade de produccedilatildeo Para os homens do povo as mulheres representavam uma oportunidade de viver mais e melhor de trabalhar e prosperar de aumentar sua qualidade de vida e garantir suas chances de transmitir seus genes adiante cumprindo o papel bioloacutegico original de ambos os sexos A uniatildeo faz a forccedila A ideia eacute antiga mas eficiente Para

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a iconografia romana do periacuteodo o gesto do dextrarum iunctio ndash o famoso aperto de matildeos direitas ndash quando realizada entre um homem e uma mulher geralmente retrata um casal legalmente casado representando um siacutembolo da uniatildeo pelo bem comum que visa instintivamente agrave perpetuaccedilatildeo da espeacutecie Tal como demonstra a figura 6 abaixo

Figura 6 Placa funeraacuteria do lanarius de C Cafurnius Antonchus e de sua esposa Veturia Deuteria em Roma ca1 d C Fonte (CIL 69489 apud LOacuteVEN 2016 p 213)

Em suma para prosperar de forma efetiva o homem precisa da mulher provavelmente mais do que a mulher precisa do homem Mas esta polecircmica fica para pesquisas posteriores

Trabalho feminino hoje

Desde o Periacuteodo Claacutessico ateacute bem recentemente o mundo do trabalho feminino seguiu sem grandes modificaccedilotildees durante milecircnios ateacute que as revoluccedilotildees do seacuteculo XIX promoveram as mudanccedilas necessaacuterias para que novos sistemas educativos permitissem o acesso da mulher agrave cultura promovendo sua atuaccedilatildeo fora de casa e sua incorporaccedilatildeo agrave toda uma seacuterie de trabalhos que num primeiro momento representaram um mero prolongamento das tarefas desempenhadas no acircmbito domeacutestico ateacute que com o tempo foram ampliando sua participaccedilatildeo nos setores reconhecidamente produtivos (BENGOOCHEA JOVE 1998 p 242)

A partir da consolidaccedilatildeo do sistema capitalista do advento do movimento sufragista e da luta pelo direito agrave representaccedilatildeo poliacutetica a evoluccedilatildeo

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da legislaccedilatildeo no que se refere aos direitos das mulheres evoluiu respondendo aos novos anseios da sociedade Apesar destas conquistas a desigualdade e exploraccedilotildees continuaram a ocorrer Natildeo obstante apoacutes as 1ordf e 2ordf Guerras Mundiais as mulheres tiveram a efetiva chance de ocupar seu espaccedilo no mercado de trabalho e desde entatildeo elas tecircm feito a diferenccedila No que se refere ao mundo ocidental estatiacutesticas apontam que as mulheres estatildeo avanccedilando em todas as aacutereas Elas respondem pela maior parte das vagas nas universidades Estatildeo conseguindo emprego com mais facilidade e seus rendimentos estatildeo crescendo em ritmo mais acelerado Contudo mesmo apoacutes tanta luta ainda natildeo alcanccedilaram posiccedilatildeo de igualdade perante os homens haja visto que continuam ocorrendo discriminaccedilotildees asseacutedios violecircncias e preconceitos que podem ser exemplificadas pela desigualdade salarial que persiste entre homens e mulheres na ordem de 30 em meacutedia Como se jaacute natildeo bastasse a representatividade das mulheres na poliacutetica e seu acesso aos cargos mais elevados do mundo corporativo e do serviccedilo puacuteblico continuam deixando muito a desejar

Isto posto fica claro de que as mulheres jaacute caminharam muito mas ainda haacute um longo caminho pela frente Contudo elas contam agora com o apoio de muitos homens que satildeo aderentes agrave sua causa e de vieses interpretativos que privilegiam a igualdade Eacute um processo que natildeo tem retorno Embora estejamos permanentemente agraves voltas com as reaccedilotildees do conservadorismo seraacute como jaacute o dissemos a rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade (BENGOOCHEA JOVE1998 p 243)

Contudo para continuarmos caminhando na direccedilatildeo da justiccedila sempre vamos precisar de mulheres que natildeo se conformam com as imposiccedilotildees da sociedade que sejam transgressoras ousadas valentes excecircntricas e fujam das normas recusem casamentos tranquilos e abram matildeo da paz do lar domesticado para descobrirem outros rumos ou para encontrarem-se consigo mesmas produzindo novos modos de estar no mundo A leitura feminista do passado permite um fortalecimento de si e das outras no presente (RAGO 2013 p 311)

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Abstract Much ink has been spilled about gender in the Roman world Nonetheless something seems to be lacking the part that is up to the women in economic production of this society Past present or future women constitute at least half the population around the globe an indispensable working force either in ancient or modern times We know that since the beginning of the ages most women were forced to work hard in tedious and repetitive tasks arbitrarily imposed The activities used to start as early as childhood and it had never been properly recognized The aim of this work is therefore to recover the role of the womenrsquos work in the economies of Roman Hispania with special attention to the case of Tarraco starting from the end of the Roman Republic until the Principate Period raising local and elsewhere evidence to show the position women deserve in the economic production of Roman societyKeywords Classical studies Roman economy Womenrsquos work Gender studies Postmodernism

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Normas de Publicaccedilatildeo

Normas de Publicaccedilatildeo

A Heacutelade eacute estruturada em trecircs seccedilotildees

a) Dossiecircs

b) Artigos de tema livre

c) Resenhas

Os dossiecircs satildeo propostos pelo Conselho Editorial que pode tanto convidar especialistas no tema quanto receber contribuiccedilotildees de autores interessados As chamadas satildeo puacuteblicas e feitas a cada ediccedilatildeo da revista Os artigos de tema livre podem abordar questotildees diversas desde que versem sobre a Antiguidade Seratildeo aceitas resenhas de livros ou coletacircneas com temaacuteticas associadas agrave Antiguidade que tenham sido publicados haacute pelo menos trecircs anos (considerando a data de envio da resenha)

Instruccedilotildees aos autores

- Exige-se que os autores tenham pelo menos o tiacutetulo de mestre Alunos de graduaccedilatildeo poderatildeo publicar artigos desde que em coautoria com doutores

- Todos os artigos satildeo avaliados por pelo menos dois pareceristas ad-hoc externos e anocircnimos no sistema de avaliaccedilatildeo por pares (duplo-cego) A publicaccedilatildeo depende tanto de sua aprovaccedilatildeo quanto da decisatildeo final do Conselho Editorial que pode recusar caso natildeo julgue adequado para compor a ediccedilatildeo

- Seratildeo aceitos artigos ineacuteditos escritos em portuguecircs francecircs inglecircs espanhol e italiano

- Os autores satildeo responsaacuteveis pela revisatildeo geral do texto

- Todas as propostas devem ser enviadas exclusivamente para o e-mail revistaheladegmailcom

Formato dos artigos

Todos os artigos deveratildeo ser enviados em formato Word (doc ou docx) margens 3 cm A4 fonte Times New Roman 12 pt Os tiacutetulos devem ser centralizados em caixa alta e negrito Abaixo do tiacutetulo agrave direita em itaacutelico e caixa normal deve constar o nome do autor com uma nota de rodapeacute indicando a maior titulaccedilatildeo a filiaccedilatildeo institucional e um e-mail para contato Em seguida

os resumos e palavras-chave em portuguecircs e liacutengua estrangeira alinhadas agrave esquerda No corpo do artigo todas as citaccedilotildees com mais de trecircs linhas devem ser destacadas As citaccedilotildees devem ser feitas da seguinte forma

- Se forem indicaccedilotildees bibliograacuteficas devem ser inseridas no corpo do texto entre parecircnteses Em caso de produccedilatildeo historiograacutefica deveraacute ser feita com sobrenome do autor ano e paacuteginas Exemplo (FINLEY 2013 p 71)

- Para citaccedilatildeo de textos antigos a indicaccedilatildeo seraacute feita com o nome do autor tiacutetulo da obra em negrito cantocapiacutetulo e passagem Exemplo (HOMERO Iliacuteada III 345)

- No caso de notas explicativas numerar e remeter ao final do artigo

Apoacutes o uacuteltimo paraacutegrafo dos artigos devem constar as Referecircncias lis-tadas em ordem alfabeacutetica pelo sobrenome do autor seguindo as normas da ABNT (NBR 10520) como nos exemplos

Para livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Ed-itora ano

Ex FINLEY Moses I Economia e Sociedade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

Para capiacutetulo de livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do Artigo In SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Editora ano p

Ex THOMAS Rosalind Ethnicity Genealogy and Hellenism in Herodo-tus In MALKIN Irad Ancient Perceptions of Greek Ethnicity Washing-ton DC Harvard University Press 2001 p 213-234

Para artigos de perioacutedicos

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do artigo Tiacutetulo do Perioacutedico Cidade v n ano p

Ex CARDOSO Ciro Flamarion O Egito e o Antigo Oriente Proacuteximo na segunda metade do segundo milecircnio aC Heacutelade Niteroacutei v 1 n 1 2000 p 16-29

Em caso de utilizaccedilatildeo de fontes especiais (grego aacuterabe hieroacuteglifo etc) o autor deveraacute enviar uma coacutepia das mesmas Caso utilize imagens aleacutem de constarem no corpo do texto as mesmas deveratildeo ser enviadas separadamente em uma resoluccedilatildeo de 300 dpi

wwwheladeuffbr

Page 4: HÉLADE - Volume 3, Número 3helade.uff.br/helade_v3_n3_edicaocompleta.pdf · 2018. 9. 20. · 3 O primeiro número da nova série (v. 1, n. 1) foi uma edição especial em que convidamos

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Editorial

Editorial

HEacuteLADE PRIMEIRO TRIEcircNIO DA NOVA SEacuteRIE

Alexandre Santos de Moraes1

Thaiacutes Rodrigues dos Santos2

Passaram-se trecircs anos desde 2015 quando decidimos pelo retorno da Heacutelade e estivemos diante de trecircs desafios interdependentes Em primeiro lugar nosso objetivo era resgatar o conteuacutedo da seacuterie original que por forccedila do tempo e das circunstacircncias encontrava-se bastante disperso e em parte inacessiacutevel Esse esforccedilo devolveu agrave comunidade acadecircmica um total de 48 artigos completamente reeditados Em segundo lugar em constacircncia com essa disposiccedilatildeo buscamos recuperar a histoacuteria da revista as iniciativas que caracterizaram sua seacuterie inicial e os princiacutepios editoriais da primeira revista eletrocircnica brasileira exclusivamente dedicada aos estudos da Antiguidade Finalmente em terceiro lugar concentramos nossas energias para consolidar a Heacutelade como um espaccedilo isonocircmico de publicaccedilatildeo amplo receptivo e democraacutetico aberto a pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do exterior Com esse nuacutemero chegamos ao primeiro triecircnio da nova seacuterie periacuteodo razoavelmente seguro para lanccedilar um olhar retrospectivo e fazer um balanccedilo dessa nova fase da revista

Ao longo desses trecircs anos foram publicados oito nuacutemeros dois em 2015 trecircs em 2016 e outros trecircs em 2017 A mudanccedila na periodicidade tem a ver com a generosa acolhida da revista junto aos especialistas e o correspondente apoio de pareceristas ad hoc que asseguraram natildeo apenas a viabilidade do sistema de avaliaccedilatildeo agraves cegas mas tambeacutem a melhoria significativa dos

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e colaborador do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) Editor da Heacutelade

2 Mestranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense (PPGHUFF) Membra do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) Assistente editorial da Heacutelade

Editorial

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trabalhos apoacutes as criacuteticas e sugestotildees pertinentes A opccedilatildeo pela publicaccedilatildeo de dossiecircs3 estimulou diversas reflexotildees acerca de temaacuteticas prementes do nosso presente referendando natildeo apenas o fato de que toda Histoacuteria eacute por princiacutepio contemporacircnea mas tambeacutem que a Antiguidade eacute um locus privilegiado para refletirmos sobre nossos dilemas e conflitos Os nuacutemeros que sintetizam esse trabalho satildeo bastante elucidativos foram publicados ateacute o momento um total de 67 artigos o que assegura uma meacutedia de pouco mais de 8 artigos por nuacutemero

Desde o iniacutecio a revista buscou garantir a ampla participaccedilatildeo de especialistas que se dedicam ao estudo da Antiguidade Uma vez que os artigos satildeo avaliados pelo sistema ldquoduplo-cegordquo os editores partiram da premissa de que a qualidade estava antes associada ao meacuterito dos trabalhos do que pura e simplesmente agrave titulaccedilatildeo Nesse sentido ao longo desses trecircs anos acolhemos com entusiasmo artigos assinados por mestres doutorandos e doutores4 contrariando a loacutegica do doutoramento obrigatoacuterio comumente adotado como criteacuterio nas avaliaccedilotildees Outrossim como indicam os nuacutemeros 682 dos artigos foram enviados por especialistas com doutorado5 (45 no total) e 318 por mestres (22 no total) Trata-se em certa medida de uma proporccedilatildeo esperada tendo em vista que eacute usual acumular mais debates e reflexotildees agrave medida que possuiacutemos mais tempo dedicado agraves pesquisas Outrossim a participaccedilatildeo de pesquisadores em estaacutegios iniciais de formaccedilatildeo tambeacutem foi assegurada atraveacutes de artigos em coautoria Do total 56 artigos (833) foram assinados individualmente e 11 (166) em coautoria Ao longo do triecircnio a Heacutelade contou a participaccedilatildeo de 70 autores desses apenas 6 (87) assinaram mais de um artigo

3 O primeiro nuacutemero da nova seacuterie (v 1 n 1) foi uma ediccedilatildeo especial em que convidamos autores

da primeira seacuterie da revista a revisitarem os temas publicados haacute 15 anos Em seguida publicamos

dossiecircs com os seguintes tiacutetulos Literatura Antiga Tempo e Tradiccedilatildeo (v 1 n 2) Jogos Desporto e Praacuteticas Corporais na Antiguidade (v 2 n 1) Religiotildees no Mundo Antigo (v2 n 2) Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) e Etnicidade e

as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2)

4 Aleacutem de graduandos graduados e mestrados desde que em coautoria com doutores como

indicado em nossas normas de publicaccedilatildeo (httpwwwheladeuffbrnormashtml)

5 Incluindo os artigos em coautoria e nesse caso considerando a titulaccedilatildeo maacutexima de um dos

autores

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EditorialA diversidade teoacuterico-metodoloacutegica foi assegurada pela ampla participaccedilatildeo de pesquisadores e pesquisadoras de Histoacuteria Letras Psicologia Filosofia e Arqueologia A pluralidade de temas tambeacutem ficou marcada por artigos que versavam sobre questotildees associadas agrave Antiguidade Claacutessica ao Antigo Oriente Proacuteximo e ao Ensino de Histoacuteria Em relaccedilatildeo agrave origem institucional dos autores os nuacutemeros indicam uma crescente ampliaccedilatildeo do escopo da revista e a recusa intransigente a qualquer possibilidade de endogenia A maioria dos participantes estaacute vinculada a universidades brasileiras6 (803)

6 Lista de universidades brasileiras participantes Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Universidade do Estado do Amapaacute (UEAP) Universidade Estadual do Maranhatildeo (UEMA)

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Universidade Federal do Espiacuterito Santo

(UFES) Universidade Federal Fluminense (UFF) Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Universidade Federal do Paranaacute (UFPR)

Universidade Federal do Recocircncavo da Bahia (UFRB) Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC) Universidade de Brasiacutelia (UnB) Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP) Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Editorial

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mas a diversidade institucional dos autores estrangeiros7 (197 do total) sinaliza uma tendecircncia bastante significativa de internacionalizaccedilatildeo da Heacutelade No total foram vinte universidades brasileiras e dez universidades estrangeiras representadas por seus autores ao longo desse primeiro triecircnio

A preocupaccedilatildeo com a divulgaccedilatildeo dos trabalhos tambeacutem marcou e consolidou a participaccedilatildeo ativa da Heacutelade nas redes sociais em particular no Facebook (httpswwwfacebookcomrevistaheladeuff) Atualmente nessa rede social 4755 usuaacuterios acompanham nossas publicaccedilotildees Aleacutem de replicarmos notiacutecias relativas agrave Antiguidade divulgarmos a abertura de concursos puacuteblicos entrevistas lanccedilamentos editoriais e nuacutemeros de revistas tambeacutem dedicadas ao estudo do mundo antigo a divulgaccedilatildeo dos dossiecircs aproximou a Histoacuteria Antiga de um puacuteblico muitas vezes privado do acesso agrave produccedilatildeo acadecircmica pela forma com que nosso campo se estrutura O iacutendice de alcance das publicaccedilotildees eacute um poderoso indicativo desse movimento O uacuteltimo dossiecirc publicado Etnicidade e as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2) teve um alcance de 36272 pessoas Nuacutemero decerto bastante expressivo mas em nada equiparado ao de temaacuteticas que dialogam diretamente com questotildees poliacuteticas em que estamos diretamente envolvidos no presente da vida social O dossiecirc Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) por exemplo atingiu 51116 pessoas menos da metade das 127540 pessoas alcanccediladas pelo dossiecirc Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Esta atuaccedilatildeo atraveacutes das redes sociais seraacute ampliada no iniacutecio de 2018 com a construccedilatildeo de uma paacutegina no Academiaedu

A Heacutelade eacute resultado do envolvimento coletivo dos membros do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA) vinculado ao Departamento de Histoacuteria e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF) Trata-se de uma iniciativa somente possiacutevel no marco de um trabalho em equipe que envolve editores assistentes de ediccedilatildeo conselho editorial e conselho consultivo O crescimento e consolidaccedilatildeo da Heacutelade tambeacutem eacute a expressatildeo do suporte assegurado pela universidade puacuteblica e pelo trabalho que busca recrudescer seu caraacuteter democraacutetico assegurando o compromisso com uma instituiccedilatildeo que

7 Lista de universidades estrangeiras participantes Universidad Central de Venezuela Universidad

de Alicante Universidad de Moroacuten Universidad Nacional de Mar del Plata Universidade Aberta

de Lisboa Universitagrave degli studi di Roma ldquoTor Vergatardquo Universitagrave degli Studi di Verona

University of London Newcastle University e Universidade de Coimbra

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Editorial

deve ser sempre gratuita e cada vez mais apta a fomentar ensino pesquisa e extensatildeo de qualidade Ainda que os nuacutemeros ajudem a produzir uma siacutentese do trabalho realizado nesse triecircnio e forneccedilam dados estatiacutesticos para os planejamentos futuros eles satildeo incapazes de representar nosso contentamento pelo acolhimento da revista A equipe da Heacutelade agradece os leitores assim como aos autores dos artigos que tambeacutem possibilitam que este trabalho aconteccedila Seguiremos com a mesma disposiccedilatildeo

Tema Livre

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O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEM ACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA

Talita Nunes Silva Gonccedilalves1

Resumo O presente artigo visa fazer uma breve discussatildeo sobre o conceito de alteridade e seu uso nas pesquisas referentes a antiguidade grega para posteriormente abordar a construccedilatildeo da identidade helecircnica e mais especificamente a do cidadatildeo ateniense por meio da contraposiccedilatildeo com o femininoPalavras-chaves Identidade alteridade cidadatildeo Atenas feminino

Este artigo tem por objetivo inicial apresentar como o conceito de lsquoalteridadersquo tem sido abordado nas pesquisas em Histoacuteria Antiga e particularmente na Antiguidade Grega Num segundo momento propomos uma reflexatildeo concernente agrave construccedilatildeo da identidade helecircnica em contraposiccedilatildeo a figura do lsquoOutrorsquo o que se deu principalmente apoacutes o fim das guerras contra os persas Por uacuteltimo abordamos a alteridade feminina e a sua particularidade de se constituir um lsquoOutrorsquo dentro da proacutepria cultura grega e especificamente na ateniense

A noccedilatildeo moderna de lsquoalteridadersquo surge na deacutecada de 1960 no bojo dos estudos feministas e das pesquisas relativas aos esquecidos isto eacute aos excluiacutedos da histoacuteria (dentre os quais podemos citar as mulheres os escravos e os pobres) Tais estudos refletem intensamente sobre o significado deste conceito na sociedade As concepccedilotildees relativas agrave lsquoalteridadersquo se disseminaram por outros campos de estudo como a antropologia e a ciecircncia poliacutetica por meio da adaptaccedilatildeo gradativa das ideias do filoacutesofo Emmanuel Leacutevinais Seu pensamento encontra-se articulado em Alteriteacute e transcendance (1995) obra que reuacutene uma coleccedilatildeo de artigos publicados entre a deacutecada de 60 e o final dos anos 80

1 Doutora em Histoacuteria Antiga e professora substituta da Universidade Federal Fluminense Endereccedilo eletrocircnico talitanunesuolcombr

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Tema Livre

Raphaeumll Weyland pesquisador que trabalhou com o tema Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (2012) ao refletir sobre a lsquoalteridadersquo pondera que os trabalhos publicados nos uacuteltimos anos sobre o assunto ldquonos mostram que cada um rejeita por meio da figura do lsquooutrorsquo (uma figura externa) as caracteriacutesticas que sua cultura considera negativasrdquo (WEYLAND 2012 p 4) O autor observa que ldquoeste lsquooutrorsquo natildeo eacute necessariamente eacutetnico ele pode ser tambeacutem econocircmico sexual ou mesmo poliacutetico O estudo da maneira como o outro eacute representado permite portanto compreender melhor os valores importantes da sociedade do emissor destas opiniotildees

O trabalho de Weyland relativamente recente mostra que a noccedilatildeo de lsquoalteridadersquo e os questionamentos suscitados por ela alcanccedilaram igualmente as pesquisas em histoacuteria antiga Haacute um bom nuacutemero de publicaccedilotildees que se inserem nesta perspectiva dentre as quais podemos destacar o livro O espelho de Heroacutedoto (1999) do historiador francecircs Franccedilois Hartog Esta obra tem sido desde sua publicaccedilatildeo muito importante para a reflexatildeo relativa agrave alteridade e a maneira como ela foi descrita Neste livro Hartog se concentra especialmente sobre o modo como Heroacutedoto descreveu os costumes dos citas e apresenta as contradiccedilotildees entre os relatos do historiador antigo e os dados arqueoloacutegicos Por meio da anaacutelise das Histoacuterias de Heroacutedoto o historiador francecircs busca examinar a lsquopsiquecircrsquo grega Para Hartog a identidade de um povo na antiguidade eacute definida pela documentaccedilatildeo textual por meio da contraposiccedilatildeo a um lsquooutrorsquo A identidade grega seria portanto delineada em oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de outros povos Obras como as de Edith Hall Inventing the Barbarian (1989) e de Paul Cartledge The Greeks A Portrait of Self and Others (1993) se inserem igualmente nesta perspectiva

Quanto agraves publicaccedilotildees mais recentes destacamos aqui Rethinking the Other in Antiquity (2011) de Erich Gruen The Invention of Racism in Classical Antiquity (2004) de Benjamin Isaac e The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus (2012) de Joseph Edward Skinner A escolha por mencionar estas obras se deve a fornecerem um indicativo das discussotildees atuais referentes agrave questatildeo lsquoalteridadersquo e lsquoantiguidadersquo Gruen se concentra nos gregos romanos e judeus enquanto Isaac nos dois primeiros e Skinner especificamente na Greacutecia antiga Erich Gruen busca se contrapor aos trabalhos publicados sobre alteridade na documentaccedilatildeo antiga Ele critica a visatildeo prevalecente entre os classicistas de que os povos da antiguidade reforccedilavam sua auto-percepccedilatildeo se contrapondo com o lsquoOutrorsquo frequentemente atraveacutes de estereoacutetipos e caricaturas hostis Gruen pretende mostrar como as atitudes dos antigos com relaccedilatildeo ao lsquoOutrorsquo natildeo expressam simplesmente contraste e alienaccedilatildeo

Tema Livre

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mas tambeacutem constantemente reciprocidade e conexatildeo No entanto acaba exagerando a importacircncia das passagens que descrevem o lsquoOutrorsquo de forma positiva Jaacute Benjamin Isaac reitera a persistecircncia dos comentaacuterios negativos com relaccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo povos na documentaccedilatildeo antiga Isaac procura refutar a crenccedila comum de que os antigos gregos e romanos nutriam preconceitos eacutetnicos e culturais mas natildeo raciais Sua definiccedilatildeo de lsquoracismorsquo e o fato de se concentrar na documentaccedilatildeo textual tem sido criticados

Quanto ao livro de Skinner seu objetivo eacute suplantar a visatildeo tradicional de que a etnografia grega eacute um feito do seacuteculo V aC O autor analisa os escritos deixados pelos grandes autores da antiguidade com o intuito de perceber como os gregos antigos representavam outros povos e a si mesmos Neste sentido busca mostrar que os discursos de alteridade e identidade satildeo na realidade muito mais antigos do que os apresentados na literatura etnograacutefica relativa agraves guerras entre gregos e persas Skinner vecirc o percurso da etnografia grega como comeccedilando com Homero e segue este movimento ateacute Heroacutedoto Para ele a obra deste historiador antigo fundamental para a etnografia helecircnica delimita o que eacute ser grego Com relaccedilatildeo a este aspecto isto eacute ao que eacute ser grego Jonathan Hall reconhece a guerra contra os persas como um momento decisivo no modo como os helenos concebiam sua proacutepria identidade Ateacute entatildeo observa o autor a afiliaccedilatildeo eacutetnica (identidade eacutetnica) era preponderante na construccedilatildeo da auto-identidade helecircnica

Em Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture (2002) Jonathan Hall define a etnicidade Destacamos aqui alguns dos elementos de sua definiccedilatildeo 1) O grupo eacutetnico eacute uma auto-definiccedilatildeo de uma coletividade social que se constitui em oposiccedilatildeo a outros grupos de uma ordem semelhante 2) Liacutengua religiatildeo traccedilos culturais e elementos bioloacutegicos podem parecer ser marcadores de identificaccedilatildeo mas em uacuteltima instacircncia eles natildeo definem o grupo eacutetnico Eles satildeo marcadores superficiais 3) Os elementos centrais que determinam a participaccedilatildeo no grupo eacutetnico - e o distingue das demais coletividades sociais - satildeo uma suposta descendecircncia comum e parentesco uma associaccedilatildeo a um territoacuterio especiacutefico e um sentido histoacuterico compartilhado Nesta definiccedilatildeo a descendecircncia e parentesco comum (fictiacutecio ou natildeo) assumem uma posiccedilatildeo central Jonathan Hall no entanto argumenta que a base definidora da identidade helecircnica mudou de eacutetnica para um criteacuterio cultural durante o seacuteculo V aC Para Hall assim como para a maioria dos historiadores a guerra contra os persas fez entrar em cena a figura do baacuterbaro que passou a ser equivalente a lsquonatildeo-gregorsquo A emergecircncia da imagem estereotipada do baacuterbaro no seacuteculo V aC foi frequentemente considerada como um fator fundamental para a auto-

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Tema Livre

definiccedilatildeo helecircnica Entretanto regularmente se supocircs que helenos e baacuterbaros eram categorias irremediavelmente opostas

Contrariamente a essa posiccedilatildeo Jonathan Hall considera que mais comumente os baacuterbaros natildeo eram vistos como uma categoria diametralmente oposta Pois se considerava que poderiam ser incluiacutedos entre os helenos Isto eacute um baacuterbaro poderia se tornar grego se adotasse a liacutengua os costumes e as praacuteticas gregas Para hall a possibilidade desse cruzamento soacute era possiacutevel porque a identidade grega passara a ser compreendida primeiramente em termos culturais O historiador observa tambeacutem que a definiccedilatildeo de helenicidade no Livro VIII das Histoacuterias de Heroacutedoto coloca os laccedilos de sangue no mesmo niacutevel dos criteacuterios culturais Contudo no plano de fundo das Histoacuterias as consideraccedilotildees culturais acabam por superar as noccedilotildees eacutetnicas nas definiccedilotildees dos grupos populacionais Jonathan Hall observa que mesmo em Tuciacutedides os baacuterbaros aparecem num estaacutegio de desenvolvimento cultural mais primitivo do que os gregos Mas haacute uma suposiccedilatildeo impliacutecita de que os baacuterbaros podem se tornar mais helecircnicos por meio da convergecircncia cultural Os escritores antigos do seacuteculo V aC mas tambeacutem do IV aC conceberiam assim as diferenccedilas humanas em termos mais culturais

Neste sentido Geneviegraveve Proulx em Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens (2008) pontua que Heroacutedoto ao desenvolver o tema central de suas Histoacuterias (as guerras entre os gregos e persas) e considerar a questatildeo das diferenccedilas culturais acaba por conceder um lugar agraves mulheres no estudo dos nomoi dos baacuterbaros Deste modo as atividades das mulheres nas exposiccedilotildees etnograacuteficas tornam-se importantes criteacuterios de descriccedilotildees Das 375 ocorrecircncias de mulheres nas Histoacuterias segundo Carolyn Dewald em Women and culture in Herodotusrsquo Histories (1981) 212 as apresentam como ativas (agindo de vaacuterias maneiras) e neste caso mais da metade das ocorrecircncias se encontram em descriccedilotildees etnograacuteficas Aleacutem disso Geneviegraveve Proulx mostra que as personagens femininas que aparecem individualizadas satildeo tambeacutem muito presentes em Heroacutedoto Estas mulheres que desempenham um papel no desenvolvimento dos eventos satildeo mais frequentemente pertencentes aos lsquobaacuterbarosrsquo O fato destas mulheres que aparecem como personagens individualizadas e das passagens que retratam as mulheres em posiccedilatildeo ativa se referirem mais comumente a natildeo-gregas apontam distinccedilotildees entre os costumes dos helenos e dos lsquobaacuterbarosrsquo

Desta forma notamos que o lsquoOutrorsquo assume um importante papel na definiccedilatildeo da identidade grega especialmente apoacutes as guerras contra os persas quando o termo lsquobaacuterbaroirsquo que se refere - como nos mostra Edith Hall - primeiramente aos persas acaba por incorporar o significado mais geneacuterico

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de natildeo-grego No entanto a definiccedilatildeo do que eacute ser grego natildeo se daacute apenas em oposiccedilatildeo ao baacuterbaro Ele natildeo eacute o lsquoOutrorsquo absoluto A cidade grega - e destacamos aqui que natildeo soacute as poacuteleis com regimes democraacuteticos -subsistia por meio de exclusotildees isto eacute por meio da segregaccedilatildeo das diferenccedilas existentes internamente Barbara Cassin e Nicole Loraux no prefaacutecio da obra Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros (1993) asseveram que a cidade grega se referindo as poacuteleis que foram democracias funcionava por meio de dois tipos de exclusotildees exteriores (estrangeiros e baacuterbaros) e interiores agrave poacutelis (mulheres metecos escravos) Isto posto iremos nos concentrar daqui em diante no papel da mulher como lsquoOutrorsquo ou seja como um dos lsquoOutrosrsquo em contraposiccedilatildeo aos quais o homem grego se definia Ademais centraremos nossa anaacutelise na Atenas Claacutessica e no papel do feminino na construccedilatildeo da cidadania ateniense isto eacute na definiccedilatildeo do cidadatildeo

Marta Mega de Andrade ao falar de seu livro A cidade das mulheres cidadania e alteridade feminina na Atenas Claacutessica (2001) afirma que ele tenta evidenciar a profunda alteridade que o gecircnero feminino representa na cultura claacutessica Nesta obra por meio do teatro ateniense de Euriacutepides e Aristoacutefanes Andrade busca observar o papel das mulheres (particularmente das lsquocidadatildesrsquo) na construccedilatildeo da cidadania ateniense A relaccedilatildeo do feminino com a cidadania surge devido ao fato de que a definiccedilatildeo da cidadania implica o reconhecimento de si e a delimitaccedilatildeo do lsquoOutrorsquo Sua definiccedilatildeo se daacute portanto em oposiccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo ou seja aos natildeo-cidadatildeos O feminino faz parte desta lsquoalteridadersquo e no espaccedilo do teatro a representa Em Euriacutepides e Aristoacutefanes vemos a mulher como o lsquoOutrorsquo na poacutelis No entanto a alteridade que ela simboliza eacute fundamental para a existecircncia da comunidade poliacuteade e da cidadania Natildeo soacute pelo papel que a poacutelis institucional lhe reserva na procriaccedilatildeo de filhos legiacutetimos e nas festas ciacutevicas mas tambeacutem pela sua atuaccedilatildeo no cotidiano (os espaccedilos que ocupa na poacutelis dos habitantes) O teatro mostra assim que o papel da mulher era muito mais amplo do que o que lhe era destinado pela lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo Assumindo a sua lsquoalteridadersquo seu caraacuteter duacutebio e potencialmente subversivo vemos em Euriacutepides as mulheres inseridas em espaccedilos que lhe satildeo negados como o da discussatildeo poliacutetica Jaacute em Aristoacutefanes a presenccedila delas na cidade eacute apresentada como uma possibilidade de governo do feminino

Em nosso entender Marta Mega de Andrade considera que ao assumir sua lsquoalteridadersquo as mulheres (e aqui se refere agraves lsquocidadatildesrsquo) ocupavam a poacutelis no cotidiano assumindo deste modo uma relaccedilatildeo ativa com a cidade Ao contraacuterio do que o modelo de recato silecircncio e reclusatildeo lhes prescrevia ao ocupar a lsquocidade do cotidianorsquo as lsquocidadatildesrsquo se apropriavam da sua caracteriacutestica como lsquoOutrorsquo A autora pontua que ao representar as mulheres ocupando espaccedilos

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o teatro as mostra por meio do desempenho de sua alteridade tomando uma posiccedilatildeo ativa na poacutelis Jaacute os discursos poliacuteticos como o Econocircmico de Xenofonte apagariam a caracteriacutestica do feminino como lsquoOutrorsquo ao mostrar as mulheres integradas ao papel (lsquorainha do larrsquo) que a cidade lhes confere como vemos abaixo

Entatildeo ordenei a minha esposa a se acostumar a ser tambeacutem disse ela mesma a guardiatilde das leis de nossa casa a inspecionar quando a ela mesma parecesse conveniente os utensiacutelios da casa como o comandante de uma guarniccedilatildeo inspeciona e examina se cada soldado estaacute em boa condiccedilatildeo como o conselho examina os cavalos e seus cavaleiros a elogiar e a honrar como uma rainha a quem for digno de ser e a reprovar e castigar a quem disso precisa (XENOFONTE Econocircmico IX 14-15)

Deste modo para a historiadora a poacutelis ateniense era tambeacutem uma lsquopoacutelis das mulheresrsquo

Marta Mega de Andrade pretende assim fazer ver que o tal lsquoclube de homensrsquo que teria sido a cidade grega (modelo que a historiografia ao longo do tempo reproduziu) era na verdade apenas uma parte do que constituiacutea a cidade A poacutelis que as mulheres ocupavam (a cidade das mulheres) natildeo era a lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo a poacutelis institucionalizada mas sim a lsquocidade cotidianarsquo As lsquocidadatildesrsquo transitavam entre as duas cidades A dos cidadatildeos e suas famiacutelias (a lsquocidade dos incluiacutedosrsquo) e a dos outros (ocupada pelos lsquoexcluiacutedosrsquo isto eacute por aqueles que natildeo eram cidadatildeos) Ademais segundo Violaine Sebillotte Cuchet as mulheres tambeacutem desempenhariam o poliacutetico Embora natildeo como os cidadatildeos masculinos que o desempenhavam por exemplo por meio de sua atuaccedilatildeo na assembleacuteia De acordo com a historiadora a

praacutetica ciacutevica funcionava factualmente graccedilas agrave inclusatildeo do lado escondido do ldquopoliacuteticordquo ou seja as cidadatildes () Nas praacuteticas ciacutevicas uacutenicos lugares efetivos do poliacutetico operavam cidadatildeos e cidadatildes Essas praacuteticas incluiacuteam para os primeiros assembleias deliberativas e judiciaacuterias e para todos os rituais comuns (incluindo o teatro) o intercacircmbio de bens (terras principalmente) e de pessoas (casamentos e adoccedilotildees) (CUCHET 2015 pp 17-18)

Isto posto retomemos a perspectiva de anaacutelise de Marta Mega de Andrade com relaccedilatildeo a caracterizaccedilatildeo de feminino em Xenofonte

Ao contraacuterio do que Andrade afirma natildeo consideramos que ldquoa alteridade feminina se perde em Xenofonterdquo Acreditamos que ela ainda estaacute presente em

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seu discurso Mesmo que o perigo do lsquoOutrorsquo feminino pareccedila apaziguado pela integraccedilatildeo da mulher como esposa e rainha do lar a alteridade representada pelo feminino ainda estaacute presente Pois no Econocircmico as atividades de Iscocircmaco e os espaccedilos em que deveria desenvolver preferencialmente suas funccedilotildees (o espaccedilo puacuteblico) se contrapotildeem as atividades de sua esposa e ao espaccedilo no qual as deveria desempenhar (o oicirckos) Embora as atividades de Iscocircmaco e de sua esposa se complementem natildeo deixam de ser diferentes Por conseguinte o papel do lsquocidadatildeorsquo e suas atribuiccedilotildees satildeo delimitados em contraposiccedilatildeo ao da lsquocidadatildersquo Desta forma mesmo neste discurso no qual o feminino eacute integrado (adequado) ele ainda representa o lsquoOutrorsquo E consideramos que mesmo quando a lsquocidadatildersquo procura observar os preceitos de comedimento silecircncio e reclusatildeo elas carregam o estigma da suspeita Violaine Sebillotte Cuchet pontua que

as cidadatildes nunca foram uma classe agrave parte nem tampouco foram percebidas pelos cidadatildeos como um grupo ameaccedilador ou reivindicativo Agraves vezes as mulheres enquanto matildees e esposas enquanto parceiras sexuais e parceiras de filiaccedilatildeo excitaram a imaginaccedilatildeo o desejo ou o oacutedio dos homens e natildeo as cidadatildes enquanto tais (CUCHET 2015 pp 17-18)

No entanto mesmo que as lsquocidadatildesrsquo enquanto grupo natildeo despertassem o temor dos homens consideramos que como mulheres elas levavam consigo o peso do estigma referido acima Pois as mulheres satildeo lsquofilhas de Pandorarsquo personagem miacutetica que personifica a alteridade do feminino no pensamento grego

Pandora eacute a primeira mulher Dela descende todo o genos gunaikon A narrativa miacutetica de sua criaccedilatildeo se encontra nos poemas Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo O mito de Pandora assim como os de outras sociedades se insere no conjunto de narrativas miacuteticas que ao abordar a criaccedilatildeo da mulher explicam o porquecirc existem dois sexos e natildeo apenas um Em tais narrativas a mulher eacute frequentemente um adendo na criaccedilatildeo Isto eacute ela eacute criada posteriormente a emergecircncia do homem O motivo dessa criaccedilatildeo secundaacuteria eacute explicado com frequumlecircncia nos mitos por uma atitude de uma divindade masculina visando atingir os homens Na tradiccedilatildeo judaico-cristatilde a criaccedilatildeo de Eva no livro do Gecircneses eacute mostrada como um ato de compaixatildeo divina a mulher eacute criada para amenizar a solidatildeo do homem Jaacute no mito grego o surgimento de Pandora decorre da fuacuteria de Zeus Independente do motivo de sua criaccedilatildeo o surgimento da mulher estabelece a condiccedilatildeo humana Isto eacute a mulher ldquointroduz a morte a anguacutestia e o mal no mundordquo assim como o trabalho penoso (ZEITLIN 2003 p 59)

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Eacute esta temaacutetica o estabelecimento da condiccedilatildeo humana - a diferenciaccedilatildeo entre homens e deuses juntamente com a origem do cosmos e a reparticcedilatildeo das prerrogativas e domiacutenios entre as divindades oliacutempicas que constitui o assunto da Teogonia Como puniccedilatildeo ao ardil do titatilde Prometeu por roubar o fogo Zeus cria a mulher um mal sobre a aparecircncia de um bem E mesmo se o homem resolve se apartar dele fugindo do casamento natildeo fica imune aos efeitos danosos que surgem com a criaccedilatildeo da mulher

Quem quer que fugindo do casamentoe atos perniciosos das mulheresescolhe natildeo se casar chega a velhice destrutivasem algueacutem para cuidar dele em sua avanccedilada idade(HESIacuteODO Teogonia vv 603-605)

Em Os Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo tambeacutem aborda a partir dessa perspectiva o surgimento da mulher

Entatildeo encolerizado disse o agrega-nuvens ZeuslsquoFilho de Jaacutepeto sobre todos haacutebil em suas tramas apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhasgrande praga para ti e para os homens vindourospara esses em lugar do fogo eu darei um mal e todos se alegraratildeo no acircnimo mimando muito este malrsquo(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 53-105)

Por conseguinte neste poema o poeta tambeacutem aborda o estabelecimento da condiccedilatildeo humana a partir da mulher Hesiacuteodo nomeia a primeira mulher como Pandora e se concentra na descriccedilatildeo detalhada dos dons (dolos) que lhe foram conferidos pelos deuses Pandora que eacute dada ao irmatildeo de Prometeu Epimeteu abre a jarra que continha todos os males os espalhando pelo mundo A partir de entatildeo os homens conviveratildeo com doenccedilas e muitas anguacutestias

Antes vivia sobre a terra a grei dos humanosa recato dos males dos difiacuteceis trabalhos das terriacuteveis doenccedilas que ao homem potildeem fimmas a mulher a grande tampa do jarro alccedilando dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 90-95)

No entanto de acordo com Pauline Schmitt Pantel o mito grego da criaccedilatildeo da mulher vai mais longe do que outras narrativas da criaccedilatildeo em sua avaliaccedilatildeo negativa das mulheres (2009) Pois como vimos Pandora eacute um ardil criado por ordem de Zeus e utilizado com o objetivo de se vingar da astuacutecia

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de Prometeu Criada com a intenccedilatildeo de causar um dano a natureza da mulher eacute ser um mal (SCHMITT PANTEL 2009 p 196) Aleacutem disto as mulheres (o geacutenos gunaikon) no mito grego aparece como um grupo a parte Embora a forma da mulher se assemelhe a humana ela natildeo pertence agrave humanidade Entretanto ela natildeo pertence igualmente ao acircmbito divino O feminino eacute um lsquooutrorsquo por natureza Sua alteridade estaacute ligada a ser um ardil um engano e a sua natureza ambiacutegua (natildeo faz parte da humanidade e nem da esfera divina) Marta Mega de Andrade pontua que eacute devido a alteridade do feminino estar ligada a sua ambiguumlidade que ele pode representar o lsquoOutrorsquo dentro de um nomos

Destarte em Hesiacuteodo jaacute podemos ver bem delineada a alteridade do feminino Seus poemas segundo Pauline Schmitt-Pantel se tornaram canocircnicos no pensamento grego como narrativas da criaccedilatildeo da ordem vigente do mundo e como base dos valores gregos O mito de criaccedilatildeo de Pandora representado em seus poemas teve portanto um impacto sobre a maneira como as mulheres foram vistas e o lugar que ocuparam na sociedade da Greacutecia Antiga A negatividade com que Hesiacuteodo representou agraves mulheres se tornou a base de uma atitude permanente com relaccedilatildeo a este lsquoOutrorsquo Desta forma seus poemas influenciaram os autores gregos das eacutepocas posteriores que as trataram como uma ameaccedila a unidade da sociedade masculina (SCHMITT-PANTEL 2009 p 198) Acreditamos que essa atitude negativa com relaccedilatildeo ao feminino baseada nas caracteriacutesticas que lhe foram atribuiacutedas pelo mito de criaccedilatildeo e que foram reproduzidas pelos demais autores gregos tiveram ressonacircncia na lsquoexclusatildeorsquo das mulheres da poacutelis institucionalizada

Abstract The present article aims to make a brief discussion about the concept of alterity and its use in researches concerning Greek antiquity to later address the construction of the hellenic identity and more specifically that of the athenian citizen through the opposition with the feminineKeywords Identity alterity citizen Athens feminine

Bibliografia

Documentaccedilatildeo TextualHESIacuteODO Teogonia Trad Jaa Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2006________ Os Trabalhos e os Dias TradLuiz Otaacutevio de Figueiredo Satildeo Paulo

Odysseus 2011XEacuteNOPHON Eacuteconomique Paris Les Belles Lettres 1949

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Referecircncias BibliograacuteficasANDRADE Marta Mega de A cidade das mulheres cidadania e alteridade

feminina na Atenas Claacutessica Rio de Janeiro LHIA 2001 CARTLEDGE Paul The Greeks A Portrait of Self and Others Oxford Oxford

University Press 1993CASSIN Barbara LORAUX Nicole PESCHANSKI Catherine Gregos

Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros Editora 34 1993 DEWALD C Women and culture in Herodotusrsquo Histories In Reflections of

Women in Antiquity New York Routledge 1981GRUEN Erich S Rethinking the Other in Antiquity Princeton Princeton

University Press 2011HALL Edith Inventing the Barbarian Inventing the Barbarian Greek Self-

Definition through Tragedy Oxford Clarendon Press 1989HARTOG Franccedilois O Espelho de Heroacutedoto ensaio sobre a representaccedilatildeo do

outro Belo Horizonte UFMG 1999HALL Jonathan Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture University of

Chicago Press 2002 ISAAC Benjamin The Invention of Racism in Classical Antiquity Princeton

Princeton University Press 2004LEacuteVINAIS Emmanuel Alteriteacute e transcendance Fata Morgana 1995PROULX Geneviegraveve Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens Tese

(Doutorado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Doctorat en histoire Queacutebec Canada 2008

SCHMITT-PANTEL Pauline Aithra et Pandora Femmes Genre et Citeacute dans la Gregravece antique Paris LrsquoHarmattan 2009

SEBILLOTTE CUCHET Violaine Cidadatildeos e cidadatildes na cidade grega claacutessica Onde atua o gecircnero Revista Tempo Niteroacutei v21 n38 2015 p1-20 SKINNER Joseph Edward The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus New York Oxford University Press 2012

WEYLAND Raphaeumll Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (Ammien Marcellin Theacuteodoret de Cyr Procope de Ceacutesareacutee) Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Queacutebec Canada 2012

ZEITLIN Froma I lsquoCap4 Signifying difference the myth of Pandorarsquo In HAWLEY Richard LEVICK Barbara (ed) Women in Antiquity new assessments 2003 p58-74

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GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTI-CAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLI-CA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES

Decircnis Renan Correcirca1

ldquoPor que fazer o elogio do anacronismo quando se eacute historiador Talvez para convidar os historiadores a se dispor agrave escuta do nosso tempo de incertezas prestando atenccedilatildeo a tudo que ultrapassa o tempo da narraccedilatildeo ordenada as disparadas assim como as ilhas de imobilidade negam o tempo na histoacuteria mas fazem o tempo da histoacuteriardquoNicole Loraux Eacuteloge de lrsquoanachronisme em histoire 2005

Resumo O artigo aborda o vocabulaacuterio e a estrutura de referecircncias sobre rupturas poliacuteticas e institucionais na aristoteacutelica Constituiccedilatildeo dos Atenienses com o intuito de problematizar a ideia de golpe juriacutedico-parlamentar contra a presidente brasileira Dilma Roussef em 2016 e os imbroacuteglios eacuteticos e conceituais desde tipo de mudanccedila poliacutetica O texto discute o vocabulaacuterio antigo especialmente no contexto ateniense com ecircnfase no pensamento poliacutetico de Aristoacuteteles Palavras-chave Constituiccedilatildeo dos Atenienses golpes de Estado rupturas poliacuteticas

1 A definiccedilatildeo de golpe de Estado eacute difiacutecil e polecircmica O termo significa a deposiccedilatildeo do poder de alguma pessoa ou instituiccedilatildeo legalmente investida de autoridade com diferentes graus de violecircncia eou cerceamento poliacutetico Sua formulaccedilatildeo claacutessica remonta ao seacuteculo XVII na obra Consideacuterations politiques sur les coups drsquoestat de Gabriel Naudeacute Concebida no contexto intelectual do debate sobre as ldquorazotildees de Estadordquo a obra oferece uma visatildeo mais ampla e positiva da ideia de golpe de Estado do a que utilizamos hoje podendo ser definida como uma medida extraordinaacuteria que excede as leis mas que um priacutencipe se vecirc obrigado a executar em vista do bem comum (GONCcedilALVES 2015 p 10 p

1 Prof Adjunto de Histoacuteria Antiga da UFRB Eacute Licenciado e Mestre em Histoacuteria pela UFRGS e atualmente realiza doutoramento em Estudos Claacutessicos pela Universidade de Coimbra E-mail para contato dniscorreagmailcom

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26-33) Trata-se claramente de uma defesa maquiaveacutelica da estrateacutegia poliacutetica na qual governantes desrespeitam as leis do Estado e fazem uso de violecircncia ilegal com uma racionalidade poliacutetica especiacutefica e supostamente nobre No entanto na contemporaneidade o termo eacute qualificado pela violecircncia poliacutetica expliacutecita e portanto possui um tom predominantemente negativo

No vocabulaacuterio histoacuterico contemporacircneo golpe de Estado faz fronteira semacircntica (e eacutetica) com a expressatildeo revoluccedilatildeo social pois possui sentido semelhante mas natildeo coincidente Ateacute o seacuteculo XVII o termo revoluccedilatildeo expressava a rotaccedilatildeo ciacuteclica e natural dos astros mas no XVIII ele toma forma como uma operaccedilatildeo histoacuterica proacutepria de uma ideologia do progresso (KOSELLECK 2006 p 37) A distinccedilatildeo reside na emergecircncia de algo inteiramente novo na Histoacuteria (ARENDT 1988 p 17-23) diferentemente das mudanccedilas ciacuteclicas concebidas por Naudeacute e Maquiavel Sendo um produto linguiacutestico da modernidade europeia a revoluccedilatildeo passa a expressar ambivalentemente golpes poliacuteticos sangrentos e inovaccedilotildees cientiacuteficas (KOSELLECK 2006 p 62) o que jaacute denota seu verniz mais positivo em contraste com a racionalidade de Estado maquiaveacutelica com que Naudeacute defendeu o golpe de Estado Nas concepccedilotildees iluministas e marxistas revoluccedilatildeo pressupotildee mudanccedilas natildeo apenas no aparelho estatal mas tambeacutem na proacutepria tessitura da sociedade tendo como exemplo as revoluccedilotildees liberais e socialistas na Europa contra o Antigo Regime

Em resumo revoluccedilatildeo social se distingue de golpe de Estado pela noccedilatildeo de progresso social e histoacuterico que de certa forma justifica a ruptura poliacutetica e social violenta Desta forma configura-se uma dicotomia entre golpe de Estado e revoluccedilatildeo social no que diz respeito agraves rupturas institucionais que remetem agraves ideias de retrocesso e progresso social e histoacuterico No entanto esta dicotomia faz sentido ainda hoje Qual outro arcabouccedilo conceitual se pode procurar para explicar perturbaccedilotildees poliacuteticas contemporacircneas

Os exemplos na histoacuteria recente do Brasil tecircm sido definidos a partir da dicotomia descrita acima em livros didaacuteticos brasileiros a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ainda eacute mencionada ambiguamente como Revoluccedilatildeo de 30 ou Golpe de 30 assim como de forma menos frequente o Golpe de Estado Civil-Militar de 64 tambeacutem eacute caracterizada como revoluccedilatildeo ainda que somente por seus defensores mais abertos entre eles figuras protofascistas como o parlamentar Jair Bolsonaro que goza de relativa popularidade na sociedade brasileira Desta forma o golpe de Estado natildeo se caracteriza soacute por ser violento mas por

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ser um retrocesso portanto algo negativo Recentemente este imbroacuteglio eacutetico-conceitual se abre novamente com a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 no qual os seus opositores acusam um golpe de Estado ainda que juriacutedico-parlamentar sem apoio militar

Ainda que amparado por forccedilas poliacuteticas legiacutetimas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal o processo que derrubou Rousseff eacute flagrantemente fruto de um regime de exceccedilatildeo que fez da Presidenta um bode expiatoacuterio de escacircndalos de corrupccedilatildeo que penetram em quase toda classe poliacutetica brasileira especialmente os protagonistas da sua deposiccedilatildeo o entatildeo presidente da Cacircmara dos Deputados Eduardo Cunha e o vice-presidente Michel Temer Cerca de um ano depois do Impeachment Eduardo Cunha encontra-se condenado a 15 anos de prisatildeo por corrupccedilatildeo e o Presidente em exerciacutecio Michel Temer vive intensa crise de legitimidade devido a gravaccedilotildees que comprovam seu envolvimento em crimes de corrupccedilatildeo Golpe Impeachment A discussatildeo precisa partir do consenso da irregularidade do sistema poliacutetico brasileiro que atuou na deposiccedilatildeo Aleacutem disso precisa desnudar as forccedilas sociais atuantes neste processo

O que o pensamento poliacutetico grego claacutessico tem a nos dizer sobre tal imbroacuteglio eacutetico-conceitual contemporacircneo Grosso modo os termos golpe de Estado e revoluccedilatildeo social natildeo tecircm correspondentes na antiguidade (ARENDT 1988 p 17) e comparar sociedades tatildeo diacutespares eacute obviamente arriscado Por outro lado a proacutepria estrutura de referecircncias a partir de qual o pensamento moderno atribui sentido ao jogo poliacutetico eacute oriundo do vocabulaacuterio claacutessico poliacutetica democracia oligarquia povo e aristocracia satildeo termos inequiacutevocos desta aproximaccedilatildeo entre antigos e modernos O objetivo aqui eacute discutir quais eram as referecircncias para a ideia de ruptura poliacutetica na Atenas antiga e especular como elas podem ajudar a compreender as disputas e reviravoltas contemporacircneas Para tanto opta-se por analisar a Constituiccedilatildeo dos Atenienses obra escrita em Atenas na segunda metade do seacutec IV a C pela escola peripateacutetica sob direccedilatildeo de Aristoacuteteles Ao fim do artigo voltarei a discutir o Impeachment de 2016 ao governo de Dilma Rousseff

Os noticiaacuterios da poliacutetica brasileira se assemelham a um enredo de traiccedilotildees delaccedilotildees e reviravoltas constantes mas eacute providencial extrair daiacute alguma racionalidade que nos ajude a sair do ciacuterculo vicioso de crise e paralisia poliacutetica imposta por instrumentos oligaacuterquicos de poder Como historiador e antiquista sigo o espiacuterito da epiacutegrafe que abre este artigo e disponho-me a

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escutar este tempo de incertezas de forma que o recurso das fontes antigas possa gerar o estranhamento necessaacuterio que dissolva o assombro intelectual diante das maliacutecias do poder contemporacircneo

2 No capiacutetulo 412 a Constituiccedilatildeo dos Atenienses enumera as mudanccedilas (μεταβολαί) no regime poliacutetico (πολιτεία2) ateniense ateacute a eacutepoca de sua escrita entre os anos 329 e 322 a C (RHODES 1992 p 51-58) A uacuteltima mudanccedila ocorre em 403 quando Trasiacutebulo liderou a facccedilatildeo popular que ocupava militarmente a regiatildeo portuaacuteria (ldquoFilerdquo e ldquoPireurdquo na citaccedilatildeo abaixo) numa guerra aberta contra os Trinta Tiranos que haviam sido postos no poder com apoio do estratego espartano Lisandro apoacutes a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso O cap 412 passa em resumo as mudanccedilas que ocorreram desde o periacuteodo heroico ateacute esta restauraccedilatildeo de 403

Das mudanccedilas [de regime] esta foi a deacutecima primeira em quantidade Desde o princiacutepio a primeira aconteceu com a migraccedilatildeo de Ion e seus companheiros pois entatildeo pela primeira vez foram formadas as quatro tribos e se estabeleceram os reis das tribos A segunda mas a primeira a ter uma forma de regime poliacutetico foi a ocorrida na eacutepoca de Teseu pouco divergindo da realeza Depois desta foi a da eacutepoca de Draacutecon na qual leis foram publicadas pela primeira vez A terceira depois da staacutesis na eacutepoca de Soacutelon e a partir da qual se tornou o comeccedilo da democracia A quarta foi a tirania na eacutepoca de Pisiacutestrato A quinta apoacutes a derrubada dos tiranos foi a de Cliacutestenes mais democraacutetica que a de Soacutelon A sexta foi depois das Guerras com os Medos estando a cargo do Conselho do Areoacutepago A seacutetima depois desta foi a que Aristides comeccedilou e Efialtes completou tendo derrubado o Conselho do Areoacutepago e nesta aconteceram muitos equiacutevocos por causa dos demagogos e do impeacuterio mariacutetimo A oitava foi o estabelecimento dos Quatrocentos e logo em seguida a nona foi a democracia de novo A deacutecima foi a tirania dos Trinta e a dos Dez A deacutecima primeira foi depois do retorno daqueles de File e do Pireu a partir da qual se desenvolveu ateacute a que existe hoje sempre aumentando o poder para a multidatildeo3

2 O termo denomina os direitos poliacuteticos individuais e o sentimento de pertencimento dos cidadatildeos das poacuteleis antigas mas tambeacutem o regime poliacutetico de uma poacutelis tradicional dividido num esquema tripartite do criteacuterio de extensatildeo da soberania poliacutetica para apenas um individuo (monarquia) para poucos (oligarquia) ou para muitos (democracia) Esta classificaccedilatildeo teraacute desdobramentos em outros tipos e tambeacutem existira na tradiccedilatildeo claacutessica todo um gecircnero literaacuterio das politeiacuteai do qual a proacutepria Constituicao dos Atenienses faz parte Ver BORDES 1982 16-46 231-260

3 Todas Traduccedilotildees de textos antigos satildeo de minha autoria Constituiccedilatildeo dos Atenienses 412 ἦν δὲ τῶν μεταβολῶν ἑνδεκάτη τὸν ἀριθμὸν αὕτη πρώτη μὲν γὰρ ἐγένετο μετάστασις τῶν ἐξ ἀρχῆς Ἴωνος καὶ τῶν μετrsquo αὐτοῦ συνοικησάντων τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς καὶ τοὺς φυλοβασιλέας κατέστησαν δευτέρα δὲ καὶ πρώτη μετὰ

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As rupturas institucionais satildeo chamadas μεταβολαί isto eacute mudanccedilas e estas somam onze no periacuteodo narrado pela obra Mas o que satildeo tais mudanccedilas Obviamente implicam num novo regime poliacutetico mas o que isto significa Certamente nada semelhante ao novo da revoluccedilatildeo Moderna (ARENDT 1988 p 17) A derrubada de pessoas em cargos de poder ou de uma instituiccedilatildeo Elas sempre ocorrem de forma violenta Um novo regime pode advir legalmente e pacificamente Quais os criteacuterios da Constituiccedilatildeo dos Atenienses para definir uma μεταβολή

O comeccedilo da obra estaacute mutilado e natildeo temos informaccedilatildeo sobre as duas primeiras mudanccedilas aleacutem do texto acima nada mais do que a racionalizaccedilatildeo dos mitos heroicos de Ion e Teseu A obra destaca a novidade de cada mudanccedila na de Ion foram formadas as quatro tribos pela primeira vez (τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς) na de Teseu o governo assumiu a forma de πολιτεία pela primeira vez (πρώτη μετὰ ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις) ainda que pouco divergindo da realeza (μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς) Da terceira mudanccedila temos apenas uma breve descriccedilatildeo no cap 4 que eacute considerado uma interpolaccedilatildeo por muitos autores (RHODES 1992 84-88 FRITZ 1954) e esta tambeacutem destaca uma novidade Draacutecon publicou leis pela primeira vez (ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον) Cabe notar a estranha redaccedilatildeo na qual a mudanccedila de Draacutecon natildeo eacute contabilizada a que vem a seguir eacute listada como ldquoterceirardquo (τρίτη) o que soacute reforccedila a ideia de tratar-se de fato de uma interpolaccedilatildeo inserida posteriormente

A terceira mudanccedila apresenta um ingrediente que acompanharaacute todas as seguintes a στάσις na cidade gera uma μεταβολή na πολιτεία ateniense O termo στάσις significa ldquotomar posiccedilatildeordquo mas tambeacutem ldquolevantar-serdquo (BAILLY 1901) assim como a ideia moderna de um ldquolevanterdquo mas nem sempre enquanto combate violento A στάσις eacute frequentemente traduzida por ldquoguerra civilrdquo mas eacute importante distinguir da bellum civile romana como a que opocircs Maacuterio e Sula sendo o exemplo romano uma guerra de fato cada lado constituiacutedo

ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις ἡ ἐπὶ Θησέως γενομένη μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς μετὰ δὲ ταύτην ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον τρίτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν στάσιν ἡ ἐπὶ Σόλωνος ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο τετάρτη δrsquo ἡ ἐπὶ Πεισιστράτου τυραννίς πέμπτη δrsquo ἡ μετὰ ltτὴνgt τῶν τυράννων κατάλυσιν ἡ Κλεισθένους δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος ἕκτη δrsquo ἡ μετὰ τὰ Μηδικά τῆς ἐξ Ἀρείου πάγου βουλῆς ἐπιστατούσης ἑβδόμη δὲ ἡ μετὰ ταύτην ἣν Ἀριστείδης μὲν ὑπέδειξεν Ἐφιάλτης δrsquo ἐπετέλεσεν καταλύσας τὴν Ἀρεοπαγῖτιν βουλήν ἐν ᾗ πλεῖστα συνέβη τὴν πόλιν διὰ τοὺς δημαγωγοὺς ἁμαρτάνειν διὰ τὴν τῆς θαλάττης ἀρχήν ὀγδόη δrsquo ἡ τῶν τετρακοσίων κατάστασις καὶ ltἡgt μετὰ ταύτην ἐνάτη δέ ἡ δημοκρατία πάλιν δεκάτη δrsquo ἡ τῶν τριάκοντα καὶ ἡ τῶν δέκα τυραννίς ἑνδεκάτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν ἀπὸ Φυλῆς καὶ ἐκ Πειραιέως κάθοδον ἀφrsquo ἧς διαγεγένηται μέχρι τῆς νῦν ἀεὶ προσεπιλαμβάνουσα τῷ πλήθει τὴν ἐξουσίαν

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por um exeacutercito organizado pois os latinos chamariam στάσις de seditio ou secessio sediccedilatildeo ou secessatildeo (BOTTERI 1989 pp 87-100) Estas ocorrem dentro do coletivo de cidadatildeos e natildeo entre dois grupos de cidades diferentes o que designa o termo πόλεμος guerra (LORAUX 2009 p 41 pp 51-52 p 61) logo στάσις estaacute fora do modelo tradicional de guerra e seu ideal ciacutevico de combate militar Em contraste com este caraacuteter positivo da πόλεμος a στάσις eacute vista como negativa como uma interrupccedilatildeo do equiliacutebrio e da ordem ou mesmo uma doenccedila da cidade (LORAUX 2009 p 58 p 61) Tal negatividade se expressa na religiosidade pois a recuperaccedilatildeo de uma στάσις muitas vezes pode exigir alguma forma de purificaccedilatildeo religiosa como a que o saacutebio Epimecircnides de Creta realizou em Atenas apoacutes a tentativa de tomar o poder na cidade realizada por Ciacutelon (Constituiccedilatildeo dos Atenienses cap 11)

Aleacutem disso a στάσις grega opotildee dois grupos de cidadatildeos de um lado o povo (δῆμος) ou multidatildeo (πλῆθος) do outro os notaacuteveis (γνώριμοι) ricos (πλούσιοι) ou poucos (ολίγοι) A oposiccedilatildeo se expressa na forma de antiacutetese e assimetria um polo eacute formado pelos que satildeo muitos anocircnimos e pobres enquanto o outro pelos que satildeo poucos ilustres e ricos4 Natildeo por acaso a Constituiccedilatildeo dos Atenienses destaca que o regime de Soacutelon apoacutes a στάσις que ele arbitrou sem tomar partido tornou-se o comeccedilo da democracia5 (ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο) Segundo John J Keaney (1963 pp 128-136) a obra narra a expansatildeo do poder do povo sobre as instituiccedilotildees da poacutelis especificamente os Tribunais a Assembleia e as magistraturas e cada uma das mudanccedilas de regime representa um avanccedilo ou recuo do povo sobre tais instituiccedilotildees De fato a partir de Soacutelon a obra natildeo menciona mais aquilo que aconteceu pela primeira vez em cada regime mas sempre destaca o conflito entre estas forccedilas antiteacuteticas e assimeacutetricas como a causa de um novo regime

Boa parte destas στάσεις da obra consiste na instauraccedilatildeo ou derrubada de tiranias de forma violenta (quarta quinta deacutecima e deacutecima primeira mudanccedilas) portanto estas analisarei estas pois satildeo conflitos militares com campos bem definidos Natildeo discutirei tambeacutem o complexo termo τυραννίς mas eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a ruptura institucional e os conflitos sociais nas cidades antigas (TRABULSI 1984 e IRWIN 2008 pp 205-261) No entanto haacute στάσεις que natildeo se confundem com πόλεμοι ou seja natildeo satildeo conflitos militares portanto satildeo operadas dentro de limites legais tornando-

4Observa-se o eco do pensamento aristoteacutelico da Poliacutetica 1296a segundo a qual o lado vencedor impotildee um regime de natureza oligaacuterquica ou democraacutetica

5Segundo a ideia tipicamente aristoteacutelica que Soacutelon foi o criador do regime mas natildeo previu suas caracteriacutesticas negativas posteriores Ver a Constituiccedilatildeo dos Atenienses 92 e a Poliacutetica II 1274a-b

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se um objeto interessante para comparaccedilatildeo com a situaccedilatildeo brasileira em 2016 Por qual motivo a obra natildeo distingue mudanccedilas institucionais paciacuteficas com rupturas violentas Qual eacute o criteacuterio principal para a definiccedilatildeo de uma μεταβολή

3 Vejamos o exemplo da sexta mudanccedila no cap 231

Depois das Guerras Meacutedicas o Conselho do Areoacutepago tornou-se forte de novo governava a cidade sem que nenhum decreto lhe garantisse a hegemonia mas porque assumira a responsabilidade na batalha naval de Salamina De fato com a hesitaccedilatildeo dos estrategos em relaccedilatildeo aos acontecimentos tendo proclamado que cada um se salvasse por si o Areoacutepago proveu oito dracmas para cada um e distribui e embarcou os barcos6

O conselho do Areoacutepago eacute uma instituiccedilatildeo oligaacuterquica pois dele soacute participam indiviacuteduos que jaacute ocuparam um dos cargos dentre os nove arcontes magistraturas para as quais estavam aptos somente membros das duas mais abastadas classes de cidadatildeos os cavaleiros e os pentacosiomedmnos7 Em contraste com este caraacuteter oligaacuterquico o regime anterior a quinta mudanccedila realizada por Cliacutestenes eacute descrita no cap 412 como ldquomais democraacutetica do que a de Soacutelonrdquo (δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος) A obra eacute clara ao afirmar que o poder do Areoacutepago natildeo adveacutem de nenhum decreto (οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν) e sim eacute fruto do vaacutecuo poliacutetico criado pela crise militar durante a guerra contra os Persas um vaacutecuo de poder que uma vez preenchido torna-se poder de fato pelos proacuteximos dezessete anos (cap 251)

Esta concepccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses estaacute certamente ligada ao movimento saudosista do seacutec IV do ldquoregime ancestralrdquo que idealizava a Atenas do periacuteodo anterior agrave Guerra do Peloponeso (FINLEY 1989 cap 2 LEAtildeO 2001 p 43-72 e ATACK 2010) Este regime idealizado eacute descrito como uma constituiccedilatildeo ldquomoderadardquo (Isoacutecrates Areopagiacutetico) ou ldquomistardquo (Aristoacuteteles Poliacutetica 1295b) com equiliacutebrio entre oligarquia e democracia A ideia eacute que em meados do seacutec V o regime era gerido de fato pelo Areoacutepago cuja natureza oligaacuterquica garantia o domiacutenio da elite enquanto que as instituiccedilotildees

6 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 231 μετὰ δὲ τὰ Μηδικὰ πάλιν ἴσχυσεν ἡ ἐν Ἀρείῳ πάγῳ βουλὴ καὶ διῴκει τὴν πόλιν οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν ἀλλὰ διὰ τὸ γενέσθαι τῆς περὶ Σαλαμῖνα ναυμαχίας αἰτία τῶν γὰρ στρατηγῶν ἐξαπορησάντων τοῖς πράγμασι καὶ κηρυξάν των σῴ[ζ]ειν ἕκαστον ἑαυτόν πορίσασα δραχμὰς ἑκάστῳ ὀκτὼ διέδωκε καὶ ἐνεβίβασεν εἰς τὰς ναῦς

7A criaccedilatildeo desta classificaccedilatildeo censitaacuteria eacute atribuiacuteda na obra agrave Soacutelon ver cap 73-4 no entanto ela seraacute mais ou menos vigente por todo o periacuteodo da democracia ateniense claacutessica

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democraacuteticas como a Assembleia e os Tribunais Populares equilibravam os excessos da elite e davam um quinhatildeo se poder ao povo O poder do Areoacutepago seraacute drasticamente restringido na seacutetima mudanccedila a seguir e voltaraacute a crescer durante o seacutec IV novamente ligado agrave ideia de ldquoregime ancestralrdquo (HANSEN 1999 p 288)

No seacutec V a hegemonia do Areoacutepago durou cerca de dezessete anos (cap 251) sendo este despojado do poder aos poucos atraveacutes de processos contra os areopagitas e suas prerrogativas impetrados pelos liacutederes do povo Aristides (412) e depois Efialtes (251-2) tanto nos Tribunais Populares como na Assembleia Nesta στάσις as armas satildeo processos legais de lideranccedilas democraacuteticas como Aristides e Temiacutestocles (233-5) este uacuteltimo segundo o autor a mente por traacutes de Efialtes assassinado em condiccedilotildees suspeitas (253-4) Portanto a hegemonia do Areoacutepago e sua posterior derrubada (sexta e seacutetima mudanccedilas de regime) satildeo descritas como resultados de uma espeacutecie de στάσις fria sem o calor da violecircncia e da ruptura institucional O enfrentamento das facccedilotildees antiteacuteticas e assimeacutetricas (o povo e a elite) ocorre nos Tribunais e Assembleias mas natildeo desemboca em conflito militar O uacutenico assassinato mencionado na obra de Efialtes ocorre no contexto de vitoacuteria de sua facccedilatildeo popular A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona apenas certo Aristoacutedico de Tacircnagra como assassino enquanto que Plutarco conta a versatildeo (Vida de Peacutericles 10) que o proacuteprio Plutarco natildeo daacute creacutedito de que o mandante do crime foi o sucessor de Efialtes como liacuteder do povo Peacutericles

Apoacutes a seacutetima mudanccedila Peacutericles seguiu tornando o regime mais popular retirando mais atribuiccedilotildees do Conselho do Areoacutepago (271) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses passa entatildeo a criticar os excessos demagoacutegicos deste periacuteodo especialmente o relaxamento do regime realizado por demagogos (261) o que se intensificou apoacutes morte de Peacutericles (281) Um dos aspectos deste relaxamento eacute que comeccedilaram a aceitar no arcontado os membros da classe dos zeugitas menos abastados do que os cavaleiros e os pentacosiomedmnos (262) uma medida certamente democraacutetica Peacutericles tambeacutem criou a remuneraccedilatildeo pela participaccedilatildeo nos Tribunais Populares (273) outra medida de caraacuteter anti-oligaacuterquico A obra destaca que depois de Peacutericles foi ldquoquando pela primeira vez o povo adotou um liacuteder que natildeo gozava de boa reputaccedilatildeo entre os capazesrdquo (πρῶτον γὰρ τότε προστάτην ἔλαβεν ὁ δῆμος οὐκ εὐδοκιμοῦντα παρὰ τοῖς ἐπιεικέσιν 281) O eufemismo da palavra ἐπιεικής ldquocapazesrdquo ldquoaptosrdquo obviamente descreve os mesmos oligarcas que se opuseram ao povo nas στάσεις de outrora pois o mesmo termo eacute utilizado tambeacutem no cap 261 para designar a facccedilatildeo oligaacuterquica Natildeo haacute sangue nestas mudanccedilas de regime mas haacute facccedilotildees e seus respectivos liacutederes logo haacute στάσις ainda que fria

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4 A oitava mudanccedila foi o estabelecimento do regime dos Quatrocentos no contexto da Guerra do Peloponeso e da desastrosa expediccedilatildeo contra Siracusa na Siciacutelia Nesta ocorrem claros sinais de esquentamento da στάσις ateniense Veja-se o cap 291

Entretanto depois do que aconteceu na Siciacutelia a posiccedilatildeo dos Lacedemocircnios ficou mais forte por causa da alianccedila com o Rei [da Peacutersia] e foram forccedilados ao regime dos Quatrocentos tendo posto em accedilatildeo a derrubada da democracia () mas muitos foram persuadidos sobretudo por achar que o Rei iria se aliar a eles se fizessem uma oligarquia8

Ainda que influenciada pela guerra externa o novo regime natildeo implica numa tomada violenta do poder Pelo contraacuterio a obra menciona que muitos foram persuadidos que tornar o regime mais oligaacuterquico era uma estrateacutegia para conquistar a alianccedila Persa e a salvaccedilatildeo da cidade Haacute relatos discrepantes sobre o clima poliacutetico desta mudanccedila de regime como descreve Tuciacutedides em VIII 66

Mas o povo e o Conselho ainda se reuniam na mesma forma de sorteio natildeo deliberavam nada que natildeo fosse da opiniatildeo dos conspiradores aleacutem disso os oradores eram todos deles e com eles examinavam o que estava prestes a ser dito Nenhum dos outros falava contra eles tendo medo e vendo a grande organizaccedilatildeo [dos conspiradores] se algueacutem falasse contra era diretamente executado de forma raacutepida Natildeo ocorria nem busca dos culpados nem justiccedila se fossem suspeitos mas o povo se mantinha quieto e tatildeo perplexo que se considerava lucro natildeo ter sofrido alguma violecircncia se ficasse calado9

O medo da violecircncia mantinha o povo calado ainda que as instituiccedilotildees democraacuteticas continuassem a funcionar As violecircncias contra opositores natildeo

8 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 291 ἐπεὶ δὲ μετὰ τὴν ἐν Σικελίᾳ γενομένην συμφορὰν ἰσχυρότερα τὰ τῶν Λακεδαιμονίων ἐγένετο διὰ τὴν πρὸς βασιλέα συμμαχίαν ἠναγκάσθησαν κι[νήσα]ντες τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι τὴνἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν ()μάλιστα δὲ συμπεισθέν των τῶν πολλῶν διὰ τὸ νομίζειν βασιλέα μᾶ[λ]λον ἑαυτοῖς συμπολεμήσειν ἐὰν διrsquo ὀλίγων ποιήσωνται τὴν πολιτείαν

9 Histoacuteria da Guerra dos Peloponeacutesios e Atenienses VIII 66 δῆμος μέντοι ὅμως ἔτι καὶ βουλὴ ἡ ἀπὸ τοῦ κυάμου ξυνελέγετο ἐβούλευον δὲ οὐδὲν ὅτι μὴ τοῖς ξυνεστῶσι δοκοίη ἀλλὰ καὶ οἱ λέγοντες ἐκ τούτων ἦσαν καὶ τὰ ῥηθησόμενα πρότερον αὐτοῖς προύσκεπτο ἀντέλεγέ τε οὐδεὶς ἔτι τῶν ἄλλων δεδιὼς καὶ ὁρῶν πολὺ τὸ ξυνεστηκός εἰ δέ τις καὶ ἀντείποι εὐθὺς ἐκ τρόπου τινὸς ἐπιτηδείου ἐτεθνήκει καὶ τῶν δρασάντων οὔτε ζήτησις οὔτrsquo εἰ ὑποπτεύοιντο δικαίωσις ἐγίγνετο ἀλλrsquoἡσυχίαν εἶχεν ὁ δῆμος καὶ κατάπληξιν τοιαύτην ὥστε κέρδος ὁ μὴ πάσχων τι βίαιον εἰ καὶ σιγῴη ἐνόμιζεν

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eram investigadas o que ajudava a manter as aparecircncias e alimentava o medo de opor-se aos conspiradores O relato de Tuciacutedides eacute brutal especialmente vindo de algueacutem que narra a conspiraccedilatildeo de perto como se dela tivesse participado (CANFORA 2015 pp 298-299) Em seguida Tuciacutedides conta (VIII 69-70) como os conspiradores mantiveram-se proacuteximos agraves armas ou com punhais escondidos mas permanecendo o povo quieto a violecircncia natildeo se fez necessaacuteria Trata-se da mesma στάσις entre povo e elite que pouco a pouco se torna mais quente e secretamente violenta ainda que haja esforccedilo para manter as aparecircncias institucionais

Vejamos o contraste com Tuciacutedides no cap 294 da Constituiccedilatildeo dos Atenienses

Os eleitos [para redigir proposiccedilotildees para a salvaccedilatildeo da cidade] primeiro escreveram ser compulsoacuterio aos priacutetanes submeter ao voto todos os pronunciamentos sobre a salvaccedilatildeo [da cidade] em seguida anularam as accedilotildees de ilegalidade as denuacutencias e as intimaccedilotildees para que assim qualquer um dos atenienses pudesse debater sobre as propostas como quisesse se algueacutem por conta disso multar ou intimar ou denunciar no Tribunal Popular que seja feito o depoimento e a prisatildeo dele diante dos estrategos e estes o entregariam aos Onze10 para a pena de morte11

A γραφή παρανόμων e a εἰσαγγελία aqui traduzidas como ldquoaccedilotildees de ilegalidaderdquo e ldquodenuacutenciasrdquo eram modalidade de processos juriacutedicos contra respectivamente proposiccedilotildees de leis e cidadatildeos que cometessem abusos contra as leis e o povo Possuiacuteam um caraacuteter eminentemente poliacutetico e atuavam como instrumentos contra abusos de poder de magistrados e tambeacutem como perseguiccedilatildeo contra adversaacuterios (HANSEN 1999 pp 205-218) Aos oligarcas pareceu necessaacuterio neutralizar tais instrumentos legais que poderiam se voltar contra eles e punir com a morte quem abrisse processos contra suas reformas ou seja neutralizar as armas legais da qual dispunha o povo para resistir agrave mudanccedila de regime A obra eacute clara ao descrever o regime dos Quatrocentos como uma ldquoderrubada da democraciardquo (291 τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι

10 Os Onze satildeo magistrados cuja funccedilatildeo era aplicar prisotildees e sentenccedilas de morte aos condenados nos tribunais

11 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 294 οἱ δrsquo αἱρεθέντες πρῶτον μὲν ἔγραψαν ἐπάναγκες εἶναι τοὺς πρυτάνεις ἅπαντα τὰ λεγόμενα περὶ τῆς σωτηρίας ἐπιψηφίζειν ἔπειτα τὰς τῶν παρανόμων γραφὰς καὶ τὰς εἰσαγγελίας καὶ τὰς προσκλήσεις ἀνεῖλον ὅπως ἂν οἱ ἐθέλοντες Ἀθηναίων συμβουλεύωσι περὶ τῶν προκειμένων ἐὰν δέ τις τούτων χάριν ἢ ζημιοῖ ἢ προςκαλῆται ἢ εἰσάγῃ εἰς δικαστήριον ἔνδειξιν αὐτοῦ εἶναι καὶ ἀπαγωγὴν πρὸς τοὺς στρατηγούς τοὺς δὲ στρατηγοὺς παραδοῦναι τοῖς ἕνδεκα θανάτῳ ζημιῶσαι

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τὴν ἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν) mas enquanto Tuciacutedides menciona duas vezes que os Quatrocentos assassinaram seus opositores (VIII 66 e 70) a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona tais mortes O contraste eacute claro na comparaccedilatildeo com a descriccedilatildeo que a mesma obra faz do regime dos Trinta Tiranos ao qual atribui a morte de milhares de cidadatildeos (354)

Os Quatrocentos prometeram entregar o regime aos Cinco Mil cidadatildeos mais capacitados por ldquosuas pessoasrdquo e por suas riquezas (295 τὴν δrsquo ἄλλην πολιτείαν ἐπιτρέψαι πᾶσαν Ἀθηναίων τοῖς δυνατωτάτοις καὶ τοῖς σώμασιν καὶ τοῖς χρήμασιν λῃτουργεῖν μὴ ἔλαττον ἢ πεντακισχιλίοις) Os capiacutetulos seguintes (cap 30 e 31) descrevem como seria este hipoteacutetico regime que nunca veio a existir uma vez que os Quatrocentos foram depostos quatro meses depois (331) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona em paraacutefrase a Tuciacutedides (VIII 68) que era a primeira vez que se estabelecera uma oligarquia em Atenas nos uacuteltimos 100 anos desde a expulsatildeo dos tiranos (322 ἡ μὲν οὖν ὀλιγαρχία τοῦτον κατέστη τὸν τρόπον () ἔτεσιν δrsquo ὕστερον τῆς τῶν τυράννων ἐκβολῆς μάλιστα ἑκατὸν)

Segundo a obra o regime dos Quatrocentos ruiu devido agrave defecccedilatildeo de alguns dos conspiradores entre eles Teracircmenes12 insatisfeitos com o fato que os Cinco Mil foram eleitos apenas nominalmente e os Quatrocentos governaram a cidade de fato (323) A administraccedilatildeo eacute brevemente remetida diretamente aos Cinco Mil (331-2) e em seguida ldquoo povo depotildee estes do regime com rapidezrdquo (341 Τούτους μὲν οὖν ἀφείλετο τὴν πολιτείαν ὁ δῆμος διὰ τάχους) restabelecendo a democracia novamente (412) Esta eacute a nona mudanccedila mais uma vez uma στάσις fria jaacute que a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona nenhuma violecircncia nesta deposiccedilatildeo enquanto Tuciacutedides descreve como ela foi antecedida pelo assassinato de um dos liacutederes dos Quatrocentos Friacutenico e a prisatildeo de outros por tropas sublevadas sob lideranccedila de Teracircmenes quando perceberam uma tentativa de facilitar a invasatildeo espartana (VIII 92) Todos foram julgados pelos Tribunais como conveacutem na democracia antiga e muitos foram condenados Apesar disso pode-se dizer que a derrubada dos Quatrocentos tambeacutem foi uma στάσις fria pois as condenaccedilotildees natildeo foram por derrubar a democracia Os processos contra os liacutederes dos Quatrocentos os acusavam de enviar embaixadas para Esparta em navio inimigo e atraveacutes de territoacuterios ocupados com propostas de paz desvantajosas para Atenas (CANFORA 2015 p 343-347) Entre estes processos incluem-se o insoacutelito caso contra o cadaacutever de Friacutenico (condenado depois de ter sido assassinado) e

12 Sobre a polecircmica historiograacutefica que se abre em torno da figura controversa de Teracircmenes na qual a Constituiccedilatildeo dos Atenienes se engaja avidamente nos cap 285 ver CANFORA 2015 p 411-427

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tambeacutem contra o ceacutelebre orador Antifonte A defecccedilatildeo de Teracircmenes e outros permitiu a reintegraccedilatildeo de boa parte dos apoiadores dos Quatrocentos ao corpo poliacutetico da cidade enquanto os restantes foram responsabilizados por tentarem negociar uma paz desvantajosa por Esparta mas natildeo por algo que os historiadores modernos chamam de golpe oligaacuterquico dos Quatrocentos

5 A guerra aberta a στάσις quente sanguinaacuteria e traumaacutetica aconteceraacute em 404 com a instalaccedilatildeo dos Trinta Tiranos apoacutes a derrota por Esparta (deacutecima mudanccedila) Apoacutes uma acachapante derrota na batalha naval de Egospoacutetamo Atenas eacute ocupada pelo general espartano Lisandro que no tratado de paz exige que a cidade adote o ldquoregime ancestralrdquo (342-3) Mais uma vez a στάσις se faz presente (343)

De um lado os populares tentavam preservar a democracia do outro aqueles associados em confrarias de notaacuteveis e aqueles dentre os exilados que retornaram depois da paz desejavam a oligarquia () Sendo Lisandro favoraacutevel aos oligarcas o povo apavorado foi forccedilado a votar a oligarquia13

Aqui natildeo haacute duacutevida do caraacuteter impositivo do regime por um exeacutercito ocupante natildeo por acaso eacute usado o termo ldquotiraniardquo para descrever um regime cujo ideaacuterio era oligarca Os Trinta revogaram as leis que restringiam o poder do Areoacutepago (352) comeccedilam a perseguir opositores causando enorme mortandade na cidade segundo a obra natildeo menos que mil e quinhentas pessoas (354) Entre os mortos estaacute Teracircmenes que eacute expulso do regime e condenado agrave morte por ter traiacutedo os Quatrocentos (371)

A expulsatildeo dos Trinta Tiranos (deacutecima primeira mudanccedila) ocorre graccedilas ao exeacutercito ateniense que permanecera democraacutetico e retornara da cidade aliada de Samos para reconquistar Atenas pela regiatildeo portuaacuteria em 403 (cap 37 e 38) Apoacutes este restabelecimento de democracia e a execuccedilatildeo dos liacutederes dos Trinta a negociaccedilatildeo de paz a Anistia ndash natildeo por acaso o mesmo termo usado no fim da Ditadura Civil-Militar brasileira ndash eacute longa traumaacutetica e complexa Os partidaacuterios do Trinta foram isolados no distrito de Elecircusis e proibidos de transitar em Atenas (cap 39 e 40) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses silencia sobre isso mas Xenofonte (Helecircnicas II 43) relata que os conflitos natildeo cessaram e alguns liacutederes de Elecircusis foram massacrados numa emboscada

13 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 343 οἱμὲνδημοτικοὶδιασῴζεινἐπειρῶντοτὸνδῆμον τῶν δὲ γνωρίμων οἱ μὲν ἐν ταῖς ἑταιρείαις ὄντες καὶ τῶν φυγάδων οἱ μετὰ τὴν εἰρήνην κατελθόντες ὀλιγαρχίας ἐπεθύμουν ()Λυσάνδρου δὲ προσθεμένου τοῖς ὀλιγαρχικοῖς καταπλαγεὶς ὁ δῆμος ἠναγκάσθη χειροτονεῖν τὴν ὀλιγαρχίαν

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em 40014 Quatro anos passaram-se entre a instalaccedilatildeo dos Trinta em 404 e o uacuteltimo acerto de contas em 400 Quatro anos para a στάσις ateniense esfriar novamente e os assassinatos e combates entre cidadatildeos cessarem iniciando um longo periacuteodo de oitenta anos nos quais a obra natildeo identifica nenhuma mudanccedila de regime A στάσις natildeo deixa de existir apenas torna-se novamente fria

6 Pode-se concluir que as mudanccedilas de regime na Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo residem na ideia de rompimento do Estado de Direito ou seja do sistema institucional vigente uma vez que as instituiccedilotildees podem ser legalmente reformadas ou mesmo extintas sem que haja distinccedilatildeo entre reformas e golpes de Estado para a Constituiccedilatildeo dos Atenienses todas satildeo μεταβολαί Tais mudanccedilas no entanto soacute ocorrem dentro de uma oscilaccedilatildeo dos trecircs tipos de regime (monarquia oligarquia democracia) e suas variantes positivas e negativas Ou seja elas refletem sempre os conflitos entre grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos os ricos contra os pobres os notaacuteveis contra a multidatildeo15 A raiz histoacuterica desta concepccedilatildeo estaacute na idealizaccedilatildeo do regime de Soacutelon cuja poesia eacute um testemunho de um pensamento que tenta equilibrar as tensotildees entre pobres e ricos multidatildeo e notaacuteveis16 Minha contribuiccedilatildeo central eacute perceber tais στάσεις podem assumir a forma de combates armados (στάσις quente) ou de processos juriacutedicos e emendas legislativas (στάσις fria)

Inexiste no pensamento poliacutetico claacutessico e aristoteacutelico a ideia de progresso histoacuterico que marca as concepccedilotildees modernas de revoluccedilatildeo social e golpe de Estado O ideal que se busca eacute de equiliacutebrio e moderaccedilatildeo diminuir os excessos e desigualdades dos extremos e natildeo necessariamente tomar o partido do povo algo provavelmente estranho ao pensamento peripateacutetico e tambeacutem agrave esmagadora maioria dos autores claacutessicos membros das elites Os proacuteprios democratas natildeo se enxergavam como ldquomais progressistasrdquo que os oligarcas Ao contraacuterio ambas facccedilotildees viam a si mesmos como legiacutetimas representantes de um idealizado regime ancestral de Atenas

O diaacutelogo constante entre o contemporacircneo e o antigo eacute perigoso e o anacronismo inevitaacutevel A democracia ateniense era muito diferente da moderna pressupunha participaccedilatildeo direta bem como a exclusatildeo de mulheres metecos e escravos O diaacutelogo pode ser uacutetil quando conceitos poliacuteticos do

14 Ver CANFORA 2015 pp 437-450

15 Esta concepccedilatildeo no qual a desigualdade eacute a causa motriz de toda στάσις natildeo estaacute distante daquilo que eacute discutido no livro 5 da Poliacutetica

16 Sobre a representaccedilatildeo de Soacutelon na obra ver o comentaacuterio dos cap 2 5-12 em CORREA 2012 pp 83-91

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contemporacircneo satildeo redefinidos com o contraste do antigo Investigar este diaacutelogo nos ajuda a elucidar os sentidos contemporacircneos atribuiacutedos aos termos antigos bem como a levantar questotildees que natildeo enunciamos mais por nossa incapacidade de olhar com estranhamento para nossos proacuteprios referenciais eacuteticos e conceituais

Neste sentido cabe notar que um dos aspectos centrais da crise poliacutetica instaurada no Brasil desde 2016 eacute a insuficiecircncia da diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais na sociedade brasileira isto eacute da distacircncia entre ricos e pobres A bonanccedila econocircmica dos Governos Lula garantiram estabilidade poliacutetica e a renda miacutenima dos setores mais vulneraacuteveis sem no entanto combater privileacutegios de setores oligaacuterquicos Pelo contraacuterio adotou-se um presidencialismo de coalizaccedilatildeo no qual a cooptaccedilatildeo de partidos ocorre atraveacutes de uma poliacutetica patrimonialista transpartidaacuteria e parasitaacuteria ao Estado que se pode chamar ldquoPemedebismordquo (NOBRE 2013) Esta eacute uma modalidade oligaacuterquica da poliacutetica que tomou forma desde a redemocratizaccedilatildeo de 1985 e se caracteriza pela ampla utilizaccedilatildeo de corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural no proacuteprio aparelho administrativo do Estado nas empresas estatais e tambeacutem em oligopoacutelios privados que negociam apoio financeiro a Partidos em troca de vantagens em contratos e licitaccedilotildees puacuteblicas Se tal praacutetica jaacute era presente nos governos de caraacuteter neo-liberal e privatista do Partido da Social Democracia Brasileira (1995-2002) parece ter se intensificado nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)

Dilma Rousseff foi derrubada do poder pelo o Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal instituiccedilotildees legiacutetimas mas o contexto histoacuterico que marca o processo natildeo eacute uma suacutebita vontade de aplicaccedilatildeo rigorosa da lei mas uma crise poliacutetica intensa que criou a oportunidade para reformas poliacuteticas de teor oligaacuterquico que visam o estancamento de poliacuteticas de diminuiccedilatildeo de desigualdade no contexto de recesso econocircmico Dilma Roussef eacute um bode expiatoacuterio de todos os crimes de morosidade e corrupccedilatildeo da classe poliacutetica brasileira e o sucessor Michel Temer rapidamente se apresentou como um ldquoreformadorrdquo isto eacute algueacutem que reverte todo o processo instaurado anteriormente Eacute uma στάσις fria entre os grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos de ricos e pobres do povo e dos donos do poder O Brasil conheceu processo semelhante no Golpe Militar de 64 contra o Governo Joatildeo Goulart sendo entatildeo uma στάσις quente com violecircncia institucional expliacutecita Em ambos os casos a Miacutedia tem papel predominante em pautar o debate puacuteblico e criar identidades junto agraves camadas populares que simpatizam com as reformas oligaacuterquicas a partir do seu teor conservador moralista de manutenccedilatildeo do

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status quo ameaccedilado pelas poliacuteticas de distribuiccedilatildeo de renda e discussotildees eacuteticas em torno da politicas identitaacuterias

O presidencialismo de coalizaccedilatildeo entrou em curto-circuito apoacutes a reeleiccedilatildeo de Dilma Roussehf em 2014 e o iniacutecio de uma poliacutetica de ajuste econocircmico que contrariava a propaganda eleitoral da candidata Este embuste eleitoral somado agraves poliacuteticas de combate agrave corrupccedilatildeo iniciadas pelo proacuteprio governo que acabaram se voltando contra ele proacuteprio e sua base partidaacuteria fez uma crise econocircmica torna-se tambeacutem poliacutetica A miacutedia e o sistema juriacutedico criaram uma situaccedilatildeo de fragilidade na qual os setores oligaacuterquicos se rebelam contra um Governo de centro-esquerda enfraquecido radicalizando a στάσις brasileira Apoacutes 13 anos o Partido dos Trabalhadores foi sacado do Poder natildeo por invasores externos mas por seus fiadores oligaacuterquicos que se identificam pelo patrimonialismo pela corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural do Pemedebismo somado agrave forccedila conservadora da Miacutedia e demais setores privados

A στάσις brasileira pendeu para o lado oligaacuterquico revelando o esgotamento do presidencialismo de coalizaccedilatildeo e pondo a nu os limites da poliacutetica de cooptaccedilatildeo da base atraveacutes de corrupccedilatildeo sistecircmica Natildeo por acaso os escacircndalos que atingem a esquerda ainda que reais e condenaacuteveis satildeo bodes expiatoacuterios nos quais a Miacutedia o Sistema Judiciaacuterio e a oligarquia poliacutetica descarregam seu rancor contra as poliacuteticas de diminuiccedilatildeo da desigualdade Mesmo quando estes setores oligaacuterquicos tentam fazer valer a mesma letra dura da lei para o lado conservador satildeo barrados por outras forccedilas que natildeo correspondem agrave luta contra corrupccedilatildeo mas sim agrave στάσις o conflito de interesses entre pobres e ricos entre multidatildeo e elite

A Esquerda partidaacuteria se ainda reivindica defender interesses populares e democraacuteticos precisa declarar uma guerra irrestrita agrave cultura poliacutetica patrimonialista do Pemedebismo Esta guerra natildeo pode ser combatida somente atraveacutes do sistema partidaacuterio-eleitoral uma vez que o Pemedebismo jaacute estaacute instalado em quase todos os Partidos e tem forte influecircncia no Judiciaacuterio alianccedila esta que permitiu a derrubada de Dilma Rousseff Eacute preciso atacar a fonte de poder do Pemedebismo o aparelhamento do Estado e o patrimonialismo parasitaacuterio e satildeo outras formas de radicalizaccedilatildeo da democracia que podem cumprir este papel Nesta luta a liccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses pode ser uacutetil a στάσις eacute uma luta de grupos antiteacuteticos assimeacutetricos de um lado uma multidatildeo pobre e anocircnima do outro poliacuteticos profissionais oligaacuterquicos grupos midiaacuteticos e corporativos conservadores Se a esquerda quer ter um papel nesta luta precisa juntar forccedilas com um destes grupos mas jamais com o outro

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Abstract The paper approaches the vocabulary and the structure of references about political and institutional ruptures in the Aristotelian Athenian Constitution in order to problematize the idea of legal and parliamentary coup against the Brazilian president Dilma Roussef in 2016 and the ethical and conceptual imbroglio of such kind of political change The text discusses the ancient vocabulary especially in the Athenian context and emphasize Aristotlersquos political thoughtKeywords Athenian Constitution Coup drsquoeacutetat political overthrow

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MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDADY ETERNA MEMORIA

Julio Loacutepez Saco1

Resumen Los mitos de origen griego vinculados con la muerte asiacute como los deseos de alcanzar la inmortalidad y una nueva vida en el Maacutes Allaacute a traveacutes de la eterna perduracioacuten del alma impregnaron la imaginacioacuten religiosa romana Con posterioridad a la muerte el ser humano se transformaba en una serie de entidades (lemures manes larvae penates lares) de no siempre faacutecil identificacioacuten Desde la oacuteptica romana la muerte requeriacutea una serie de honores funerarios bien establecidos para evitar la conversioacuten del fallecido en un fantasma sin descanso y para de ese modo apaciguar los componentes malignos o negativos En la antigua Roma la muerte era un acto social que en cuanto a los lugares de inhumacioacuten modos de celebracioacuten y cultos no igualaba a los fallecidos existiendo notables diferencias seguacuten la condicioacuten social o el estatus del muertoPalabras clave muerte inframundo rito culto

Introduccioacuten

El significado social del mundo de la muerte en la antiguumledad romana solamente puede conocerse gracias a determinada documentacioacuten literaria y epigraacutefica (inscripciones funerarias) la presencia de monumentos histoacutericos y necroacutepolis (con sus tipos de tumbas y ajuares funerarios) a la ritualidad que envolviacutea el duelo asiacute como a la interpretacioacuten de los mitos (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 5)

En la antiguumledad dos de los temas baacutesicos maacutes relevantes en los que se centraron los relatos eacutepicos y mitoloacutegicos fueron sin duda la adquisicioacuten de la

1 Doctor en Ciencias Sociales y Doctor en Historia Investigador y Profesor Titular Escuela de Historia Universidad Central de Venezuela Caracas Doctorado en Historia FHE-UCV E-mail julosaucvgmailcom

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inmortalidad y la buacutesqueda de la eterna juventud (PLATOacuteN Fedro 245e)2 En el trasfondo de tal buacutesqueda se encuentra la preocupacioacuten por la muerte tal y como innumerables mitos han reflejado de modos bastante variados (Gilgamesh Orfeo Heracles)

En teacuterminos generales los mitos de la muerte en la mitologiacutea (particularmente griega) afirmaban que las almas de los difuntos viajaban al mundo subterraacuteneo de Plutoacuten y Perseacutefone guiadas por Mercurio la deidad psicopompa por excelencia Se veiacutean obligadas a atravesar la laguna Estigia en la balsa conducida por Caronte El mundo subterraacuteneo teniacutea en su entrada un temible custodio el Can Cerbero (veacutease ilustracioacuten 3) Una vez en el inframundo se llevaba a cabo un juicio a las almas Despueacutes del veredicto las mismas eran trasladadas a siete regiones seguacuten fuese el caso La primera estaba destinada a los infantes no natos que no eran juzgados en la segunda moraban los inocentes condenados injustamente la tercera correspondiacutea a los suicidas mientras que la cuarta denominada Campo de Lagrimas era la zona en la que permaneciacutean los amantes infieles la quinta estaba habitada por heacuteroes crueles en tanto que la sexta era el famoso Taacutertaro lugar en el que se procediacutea a castigar a los perversos y finalmente la seacuteptima correspondiacutea a los Campos Eliacuteseos sitio de morada de las almas bondadosas en la felicidad eterna

Muerte e inmortalidad en las fuentes claacutesicas

Si bien ya los pitagoacutericos mencionan el alma seraacute PLATOacuteN (Repuacuteblica 580e Fedoacuten 69e-84b) quien ofrezca la posibilidad de una esperanza ante la muerte Lo mortal y lo inanimado es el cuerpo fiacutesico mientras que lo animado el aacutenima es lo que pervive el alma Las almas transmigran idea que tambieacuten defiende en el aacutembito romano OVIDIO (Metamorfosis XV 165-166) SALUSTIO (Sobre los dioses y el mundo 20-21) y VIRGILIO (Eneida VI 730-750) Este uacuteltimo autor sentildeala que el alma al morir ascendiacutea por mediacioacuten del aire para luego atravesar las aguas que habiacutea sobre el aire y al fin recorrer la atmoacutesfera que estaacute expuesta a los rayos solares Tal viaje suponiacutea una purificacioacuten del alma mediante los elementos el aire el agua y el sol (fuego) de modo que pudiese lograr estar limpia (purificada) para acceder al Eliacuteseo (PEREA YEBENES S 2012 pp 34-36 RHODE E 1948 pp

2 La fama la gloria imperecedera asiacute como la permanencia en el recuerdo de los vivos (ademaacutes de la descendencia) siempre constituyoacute una forma peculiar de inmortalidad Una preocupacioacuten evidente en heacuteroes guerreros como Aquiles o en grandes generales conquistadores como Alejandro Magno pero tambieacuten en personalidades como Julio Ceacutesar La inmortalidad seguacuten Platoacuten seraacute asiacute una prerrogativa del alma humana

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145-149 y ss) En el Eliacuteseo podiacutea permanecer o tambieacuten ser conducida al Leteo (olvido) para afrontar una nueva existencia terrenal

Tambieacuten CICEROacuteN en Suentildeo de Escipioacuten (Sobre la Repuacuteblica VI 13-26) defendiacutea la permanencia y por consiguiente la inmortalidad del alma Para los estoicos como SEacuteNECA (Cartas a Lucilio XLIV 2 De la Consolacioacuten a Helvia XI 7) el alma es aquello que el ser humano tiene de racional ademaacutes de divino Es la que ayudada por la filosofiacutea nos haraacute resistir a la fortuna y saber por tanto afrontar la muerte

Por el contrario los epicuacutereos negaban la inmortalidad El espiacuteritu que conferiacutea vida se disolviacutea en el aire y se perdiacutea para siempre tras la muerte Ello implicaba que las personas no teniacutean entonces por queacute temer el mundo del maacutes allaacute de modo que podiacutean dedicarse a disfrutar de este (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 87 PEREA YEBENES S 2012 p 40-45)

No hubo conceptos concretos en el mundo romano en relacioacuten a en queacute se convertiacutean los difuntos despueacutes de fallecer En cualquier caso la tradicioacuten romana vislumbra la existencia de los espiacuteritus de los muertos Se trataba de los Dii parentes et Manes iacutentimamente asociados a los Genii Tales genios permaneciacutean activos durante la vida diferenciaacutendose por sus valores morales que se prolongaban tras su muerte Dichos genios continuaban habitando en las sepulturas un factor que motivoacute su identificacioacuten con la osamenta las cenizas e incluso con los propios sepulcros

Los autores antiguos presentan disparidades en relacioacuten a la entidad en la que se trasformaba el ser humano con posterioridad a la muerte del cuerpo En tal sentido existieron distintas denominaciones (COULIANO I P 1993 pp 122-125 FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 346-348 y ss) El Genius del difunto se relacionaba con el vocablo Manes (los ilustres) emparentado a su vez con Lares Penates Larvae y Lemures La profusioacuten de denominaciones demuestra en cualquier caso la existencia de la creencia en la inmortalidad del alma tras la desaparicioacuten del cuerpo

Entidades del maacutes allaacute los Manes

Aquellos difuntos bondadosos que velaban por sus descendientes se denominaban Lares familiares mientras que los inquietos perturbadores o sencillamente nocivos y que ademaacutes asustaban con apariciones nocturnas se llamaban Larvae (PICCALUNGA 1961 pp 87-89 y ss) Si no se sabiacutea

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con seguridad en queacute se habiacutea convertido el alma del fallecido se nombraba Manes3 Manes eran en general los espiacuteritus de los muertos Los Manes familiares eran aquellos difuntos que pasaban a formar parte del conjunto de espiacuteritus metamorfoseados en divinidades Se puede decir que era la sombra del difunto su espiacuteritu santificado por el deceso y en consecuencia proclive a ser objeto de veneracioacuten y respeto aunque al tiempo de temor y ofuscacioacuten a lo desconocido

De una manera o de la otra lo cierto era que habiacutea que distinguir entre genios buenos y malos En tal sentido las almas de los difuntos eran ldquodiosesrdquo de los muertos o en todo caso entidades que se hallaban en el mundo de los muertos al lado de las divinidades infernales (Orcus por ejemplo) De esta forma los Manes podiacutean ser identificados con esas deidades (MONTERO HERRERO S 1990 p 42)

Desde la eacutepoca de Augusto algunos autores sobre todo Virgilio y LIVIO (Ab Urbe condita III 5811) emplearon el teacutermino Manes para detallar a ciertas divinidades infernales y sombras de los muertos SERVIO por su parte (Commentarius ad Aeneidam III 63) menciona que en tanto los dioses celestes eran los de los vivos las otras deidades en concreto los Manes eran los dioses de los muertos Seriacutean entonces unos dioses secundarios que dominaban las tinieblas nocturnas Se podriacutea decir al modo de TAacuteCITO (Vida de Agriacutecola) que eran sombras espiacuteritus fantasmales (PROPERCIO Elegiacutea IV 6-7)4

En teacuterminos generales el hombre comuacuten no sabiacutea con exactitud el significado de los Manes esto es si representaban el alma del difunto o se trataba de deidades de ultratumba En las inscripciones funerarias (veacutease ilustracioacuten 1) se mencionan estas divinidades sin precisar ni caraacutecter ni funciones ni atributos particulares (MONTERO HERRERO S 1990 p 43 COULIANO I P 1993 p 126 y ss) En ocasiones aparecen al lado de DM o Dis Manibus epiacutetetos como inferi (con lo cual se implicariacutea su calidad

3 Aunque designe el alma de un muerto el vocablo se usaba en plural Es probable que ello se deba a las arcaicas costumbres funerarias de la cultura Terramara por la cual se inhumaban los fallecidos en recintos comunes De tal modo el alma de los muertos permaneciacutea ldquovivardquo entre sus descendientes convirtieacutendose en espiacuteritus familiares VARROacuteN (De Lingua Latina VI 324 IX 3861) confunde los Manes con los Lares Los considera a ambos figuras eteacutereas Habitualmente se confundiacutea Lares con Larvae y con los Manes

4 Este autor sentildeala que los Manes existen y que en correspondencia la muerte no es el final definitivo Horacio expone que los Manes eran como ceniza sombras un recuerdo

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de dioses de ultratumba protectores de los fallecidos CIL II 2464 2722 VI 12311 X 2322 2565) y unas pocas veces otros como sacer o castus5

Para algunos autores como APULEYO (De Deo Socratis 25) el espiacuteritu humano despueacutes de haber salido del cuerpo se transformaba en una suerte de demonio que los antiguos llamaban Lemures

La ritualidad de la muerte

En los funerales era imprescindible que se tributara los honores debidos al fallecido (Iusta) Si se produciacutea alguacuten olvido o una irregularidad el difunto se convertiriacutea en un fantasma que no descansariacutea hasta que sus allegados o parientes le hicieran la debida justicia Esa necesidad de unos ritos funerarios que atendieran al difunto se continuaba tiempo despueacutes de la inhumacioacuten para asegurar su descanso eterno Existiacutea entonces la necesidad de que se recordara al difunto se dejara constancia de su existencia y se le rindiera culto a su numen (y a su nomen) para que perviviese en la memoria eterna

Un relevante nuacutemero de rituales se orientaban maacutes hacia el objetivo de apaciguar los componentes malignos de los difuntos que hacia una imprescindible suacuteplica como deidades activas En todos los casos se inmolaban viacutectimas se realizaban juegos combates de gladiadores como homenaje se ofrendaban alimentos en la tumba en determinados diacuteas concretos6 (cumpleantildeos diacutea de difuntos) y se conformaba un ajuar de diversos objetos

La muerte se concebiacutea en la antigua Roma como un acto social y en cierta medida puacuteblico El tiempo de luto para los familiares directos era de diez meses El funeral (funus) comenzaba en casa del difunto (BELAYCHE N 1993 pp 158-159 FREDOUILLE J C 1987 p 174) La familia acompantildeaba al moribundo a su cama y le daba un uacuteltimo beso para retener asiacute el alma que se escapaba por su boca Despueacutes de producirse el deceso se le

5 Con Dis Inferis Manibus se infiere el caraacutecter sacro de la tumba Los teacuterminos que delimitaban el sepulcro podiacutean considerarse sagrados En este caso la inscripcioacuten habitual era Dis Manibus Sacrum (DMS) que los primeros cristianos primitivos conservaron reinterpretaacutendola como Deo Magno Sancto

6 Los diacuteas de difuntos (Parentalia) se celebraban en febrero Otras fiestas dedicadas a los muertos fueron las Lemurias (celebradas en mayo) En esos especiales diacuteas las almas cuyos cuerpos no habiacutean recibido sepultura merodeaban en los hogares Por tal motivo el padre de familia debiacutea representar un ritual para alejar a esos espiacuteritus errantes Despueacutes de lavarse las manos como sentildea de purificacioacuten se metiacutea nueve habas negras en la boca Luego descalzo se desplazaba por la casa escupiendo las habas una a una para que nutriesen a los espiacuteritus malignos conocidos como Lemures

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cerraban los ojos y se le llamaba tres veces por su nombre para asiacute corroborar que realmente habiacutea fallecido A continuacioacuten el cuerpo era lavado perfumado con unguumlentos y finalmente vestido Seguacuten la costumbre griega se depositaba al lado del cadaacutever una moneda para que Caronte se cobrase por el transporte de su alma (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 34) El cuerpo se ubicaba sobre una litera con los pies mirando hacia la puerta de entrada y rodeado de flores un siacutembolo de la fragilidad de la vida pero a la par de la renovacioacuten Durante tres a siete diacuteas permaneciacutea expuesto el difunto Encima de la puerta de entrada de la casa se poniacutean ramas de abeto o de cipreacutes para asiacute avisar a los viandantes de la presencia de un muerto en el interior

El difunto en particular en los casos de romanos de alta condicioacuten social era trasladado por las calles de la ciudad (GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 43-56 y ss FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 355-356) Delante y detraacutes de la comitiva fuacutenebre (pompa funebris) se desplazaba un cortejo compuesto de esclavos tocando instrumentos musicales como flautas trompetas o trompas los portadores de antorchas el propio difunto en un atauacuted de madera abierta sobre una suerte de camilla (tambieacuten podiacutea ser llevado a hombros por miembros de la familia) (Veacutease ilustracioacuten 2) Detraacutes del difunto iba el resto del cortejo fuacutenebre formado por la familia y los amigos ademaacutes de una comitiva de personal pagado (plantildeideras mimos bailarines) y finalmente las fasces las representaciones de los momentos significativos de la vida del fallecido o aacuterboles genealoacutegicos del difunto (HINARD F 1995 p 98 PRIEUR J 1986 pp 112-115 y ss TIEMBLO MAGRO A 2011 p 167)

Hasta finales de la primera centuria de nuestra era el funeral se celebraba por la noche con la ayuda de la luz de antorchas Esto era asiacute porque la muerte era un suceso que se consideraba contaminante Sin embargo en siglos posteriores se comenzaron a realizar los ritos durante el diacutea excepto aquellos de nintildeos indigentes o suicidas

La tumba definitiva se consagraba con el sacrificio de una cerda (ilustracioacuten 5) Una vez que el sepulcro estaba ya finalizado y todo dispuesto se llamaba tres veces al alma del difunto para que pudiera entrar en la morada que se le habiacutea preparado para su nueva vida Despueacutes del entierro se levantaba una estatua del difunto en un lugar visible de la casa dentro de en una hornacina de madera

En el caso de la incineracioacuten la ceremonia se celebraba encima de una pira en forma de altar sobre la que se depositaba el atauacuted con el cadaacutever Se le abriacutean los ojos para que pudiera observar coacutemo su alma de dirigiacutea hacia el cielo

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(GNOLI G amp VERNANT JP 1982 p 60 FREDOUILLE J C 1987 pp 177-179) Se sacrificaban e incineraban animales y se arrojaban sobre la pira ofrendas de alimentos y perfumes Se le nombraba una uacuteltima vez y se encendiacutea la pira con antorchas El rito concluiacutea vertiendo agua y vino sobre la pira Finalmente los asistentes se despediacutean del difunto deseaacutendole que la tierra le fuera ligera Sit Tibi Terra Levis (STTL) una foacutermula muy habitual en las inscripciones funerarias

Es conveniente recordar que los monumentos funerarios de los romanos se ubicaban al margen de los liacutemites de la ciudad a ambos lados de la calzada principal Soliacutean ornarse con jardines

Al fallecer alguno de los componentes de la familia romana de inmediato pasaba a formar parte de los antepasados familiares verdaderos Manes protectores a los que se les homenajeaba manteniendo siempre ardiendo el fuego del hogar La tumba elegida no podiacutea ser cambiada de lugar pues los manes requeriacutean una morada fija (que se suponiacutea eterna) a la que se asociaban todos los difuntos de la familia

En teacuterminos generales se piensa que los muertos no llevaban una existencia que podriacutea considerarse feliz Es por ello que habiacutea que abastecer las tumbas con todo aquello que el fallecido necesitara (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 172 HINARD F 1995 p 102) Para apaciguar a los espiacuteritus de los muertos y hacerles maacutes llevadera su infelicidad se ofrendaban alimentos (leche vino miel pan huevos) en los sepulcros en nombre de las familias de las asociaciones profesionales o de las propias ciudades Habiacutea una suerte de obligacioacuten en ello no soacutelo de cara a los fallecidos pues se entendiacutea que la carencia de homenajes a los Manes provocaba pesadillas y enfermedades a los vivos

Los lugares para la eternidad

Los sepulcros no eran espacios sombriacuteos luacutegubres pues se entendiacutea que la muerte conviviacutea con la vida7 Los difuntos no debiacutean ser olvidados y por ello sus lugares de reposo final se vinculaban con el entorno circundante (CUMONT F 1942 p 63) En los epitafios no se vislumbran deseos

7El espacio dedicado al enterramiento sepulchrum adquiriacutea el caraacutecter de sitio sacro lucus religiosus inamovible inviolable e inalienable Al recinto uacutenicamente podiacutean acceder los familiares del fallecido

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inframundanos sino que abundan expresiones que se asocian con los vivos y con la vida mundana En general se escribiacutean para que el transeuacutente los leyera y asiacute hubiera una constancia de su paso por la vida que ya dejoacute (LAVAGNE H 1987 pp 163-164 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1144-1146 y ss CUMONT F 1942 pp 65-68) Por eso en ellos se encuentran relatos de la vida del muerto saludos o explicaciones de coacutemo murioacute En algunos incluso se hallan consejos y hasta pensamientos de tipo poliacutetico (BAYET J 1957 pp 42-45 y ss)

Ilustracioacuten 1 Inscripcioacuten funeraria del altar de Quinto Fulvio Fausto y Fulvio Prisco Siglo I Museo Nazionale Romano

Ilustracioacuten 2 Relieve en maacutermol de Amiternum en la que se representa la pompa funebris de un entierro Museo Aquilano siglo I aec

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Ilustraciones 3 y 4 (Izquierda) Hades y Cerbero Museo Arqueoloacutegico de Creta (derecha) urna cineraria del Museo Arqueoloacutegico de Palermo La inscripcioacuten reza asiacute D(is) M(anibus) S(acrum)

L(ucio) CORNELIO LAETO FILIO DVLCISSIMO QVI VIX(it) AN(nos) XVI M(enses) II D(ies) XXIIII SER(vius) CORNEL(ius) LAETVS PAT FEC

Ilustracioacuten 5 Ara de los Vicomagistri del vicus Aesculetus (fines del siglo I aec) Los magistrados (cuatro por cada vicus o barrio) eran elegidos anualmente para organizar las ceremonias sacrificiales

asociadas a los Lares Compitales a los que se ofreciacutea un cerdo y al Genius del princeps al que iba destinado un toro La inscripcioacuten habla del antildeo noveno desde la reorganizacioacuten de este culto por Augusto A la derecha los magistrados con la cabeza cubierta indicando una funcioacuten sacerdotal

Tambieacuten se observa un muacutesico con auloacutes Abajo los animales para el sacrificio

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Existieron en el mundo romano diferentes tipos de enterramientos Aquellas tumbas maacutes lujosas eran los sepulcros monumentales los mausoleos que podiacutean adquirir la forma de una casa o un templo Por su parte los columbaria era una gran tumba en cuyos muros se ubicaban nichos para depositar las urnas con las cenizas de los difuntos Aparecen desde el siglo I aec siendo empleadas hasta el siglo III y son inhumaciones colectivas propias de corporaciones funerarias Habiacutea tambieacuten fosas simples excavadas en el suelo algunas de ellas revestidas con cajas de ladrillo y con cubiertas de maacutermol (VAN ANDRINGA W 2006 p 1149)

Desde el siglo II la incineracioacuten fue paulatinamente reemplazada por la inhumacioacuten No obstante hubo una coexistencia de ambos modos funerarios La distincioacuten se relacionaba con la condicioacuten social o el estatus del fallecido En este sentido la inhumacioacuten se reservaba para la gente humilde y para los esclavos mientras que la incineracioacuten se usaba con los miembros de familias nobles patricias (GALINIER M 1999 pp 114-115 BELAYCHE N 1993 p 182) Asiacute poco a poco en lugar de utilizar urnas funerarias propias de la incineracioacuten (veacutease ilustracioacuten 4) se fue extendiendo la costumbre de enterrar a los muertos en cajas bien de madera o de piedra de las cuales derivariacutean los sarcoacutefagos (por otro lado conocidos ya en Etruria y en ciertas regiones del aacutembito heleniacutestico) usados en las inhumaciones Los sarcoacutefagos formaban parte de un monumento funerario (LAVAGNE H 1987 p 168) Soliacutean ser decorados con elementos simboacutelicos y con disentildeos geomeacutetricos (como los surcos ondulados o strigiles)

Los enterramientos individuales presentaban numerosos tipos de monumento funerario Las laacutepidas eran un elemento clave (PRIEUR J 1986 pp 127-128 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1150-1152 GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 91-92) Podiacutean ser estelas exentas coronadas por frontones piedras esculpidas con forma semiciliacutendrica (cupae) propias de esclavos y libertos pedestales y altares ornados con decoracioacuten vegetal o relieves con los bustos de los muertos empotrados en los muros de la tumba Enterramientos muy modestos eran por su parte las cajas de losas de pizarra de aacutenforas (muy empleadas para la inhumacioacuten de infantes) o tegulas reusadas

Conclusioacuten

El concepto de la pervivencia del alma humana en otra esfera es el punto de inicio a partir del cual la antiguumledad romana dedicoacute esfuerzos al recuerdo de sus fallecidos de sus antepasados Al margen de una relativamente confusa profusioacuten de entidades fantasmales como habitantes habituales del maacutes allaacute

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hubo siempre una necesidad de homenajear al difunto con rituales apropiados y en habitaacuteculos adecuados La diferenciacioacuten existente en las ceremonias fuacutenebres y en los propios lugares de descanso de unos y otros se asocioacute con la condicioacuten social o el estatus del fallecido A pesar de la falta de igualdad tras el deceso persistioacute siempre no obstante la creencia en la inmortalidad y la imperiosa necesidad de la pervivencia a traveacutes de la memoria eterna

Abstract The myths of origin Greek linked with the death as well as wishes of achieve the immortality and a new life in the more beyond through the eternal endurance of the soul permeated the imagination religious Roman After death the human turned into a series of entities (lemurs lares manes larvae penates) not always easy to identify From the Roman standpoint death required a series of well-established funeral honors to prevent the conversion of the deceased in a ghost without a break and to thereby appease the evil or negative components In ancient Rome the death was a social event which in terms of the places of burial ways of celebration and worship not equal to the deceased there are notable differences according to social condition or the status of the deadKeywords death underworld ritual cult

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ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO

Camila Alves Jourdan1

Resumo O poder do mar pode ser compreendido em sua capacidade de submersatildeo em sua imensidatildeo e vastidatildeo em sua profundidade e seu constante movimento Estas cinco caracteriacutesticas atribuiacutedas por Astrid Lindenlauf (2003) em seu estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno nos possibilita perceber as potencialidades do mar na atuaccedilatildeo do desaparecimento eou no encobrimento de rastros indesejados Deste modo pretendemos neste artigo analisar passagens que nos permitam elucidar a relaccedilatildeo de accedilotildees consideradas vergonhosascriminosas pela sociedade helecircnica com o mar em obras textuais dos periacuteodos arcaico e claacutessico e representaccedilatildeo imageacuteticaPalavras-chave Mar desaparecimento crimes

1 Alguns apontamentos sobre a morte

Um dos principais estudiosos acerca da questatildeo da morte foi Edgar Morin (1970) Para ele a ideia de morte soacute se torna compreensiacutevel quando podemos representaacute-la e conceitualizaacute-la ndash o que natildeo fazem os animais Para Morin a consciecircncia de morte estaacute relacionada agrave vida em sociedade humanamente organizada Deste modo somente os seres humanos dispotildeem de um arcabouccedilo cognitivo capaz de decodificar e assim compreender o ato de morrer bem como suas implicaccedilotildees aos vivos O reconhecimento da morte implica em uma consciecircncia do indiviacuteduo e de sua individualidade mesmo estando em sociedade A percepccedilatildeo de perda da proacutepria individualidade mostra um indiviacuteduo consciente de si Consciente de sua morte O enterramento dos cadaacuteveres marca a percepccedilatildeo de finitude da mortalidade humana Quando se inicia esse processamento e reflexatildeo sobre os seus mortos a morte ldquonatildeo se trata mais de uma questatildeo de instinto mas jaacute da aurora do pensamento humano que se traduz por uma espeacutecie de revolta contra a morterdquo (MORIN 1970 p 31)

1 Mestra e doutoranda em Histoacuteria Social pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA-UFF) E-mail camilaajourdangmailcom

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A morte eacute sobretudo um ato social E como social a morte natildeo se refere apenas ao indiviacuteduo mas a coletividade que estaacuteestava a sua volta ndash famiacutelia comunidade ciacuterculos de amizade e de outras formas de relacionamento Um rompimento de viacutenculos que ocorre quando o morto deixa de existir Entretanto eacute a ambiguidade que marca este momento crucial na interpretaccedilatildeo de Joseacute Carlos Rodrigues (2006 p 34) o morto apenas se libertou de seu aspecto terrestre para que assim pudesse dar continuidade agrave sua existecircncia em outro lugar ou seja de fato o morto natildeo deixa de existir pois a crenccedila na sobrevivecircncia de uma parte deste morto de um duplo permeia diversas sociedades De acordo com Maacutercia Maria de Medeiros

Uma antropologia histoacuterica da morte mostra com efeito que os homens das sociedades arcaicas repugnavam a ideacuteia de uma destruiccedilatildeo definitiva e total e consideravam que os mortos continuavam a levar a nosso lado uma vida invisiacutevel e natildeo cessam de intervir no curso da existecircncia daqueles que chamam a si mesmos de vivos (DASTUR Apud MEDEIROS 2008 p 154)

Esta interpretaccedilatildeo nos permite compreender o conjunto do imaginaacuterio helecircnico acerca do processo pelo qual passava o morto ndash a morte imputada por Thanatos ndash dos processos de manutenccedilatildeo de sua continuidade ndash ritos fuacutenebres ndash dos lugares-imaginados como locais de permanecircncia desse defunto ndash como os domiacutenios de Hades o reino dos mortos A ambiguidade neste cenaacuterio reside no fato de que a morte eacute a princiacutepio um ato de exclusatildeo de desligamento Entrementes esta exclusatildeo necessita ser compensada com a re-inserccedilatildeo do indiviacuteduo em uma espeacutecie de renascimento em uma nova vida em um novo grupo social em um novo mundo (RODRIGUES 2006 p 34) Esta nova inserccedilatildeo necessita de um trabalho de desagregaccedilatildeo em um domiacutenio e a inserccedilatildeo em um novo Esta accedilatildeo exige um esforccedilo nos campos simboacutelico e cognitivo para reorganizar tais desestruturaccedilotildees e reestruturaccedilotildees de relacionamentos sociais Deste modo eacute atraveacutes dos ritos fuacutenebres do enterro do defunto o meio que a sociedade encontrou para assegurar todo este processo (RODRIGUES 2006 p 42)

Os ritos fuacutenebres funcionam entatildeo como marca dessa nova inserccedilatildeo desse processo de continuidade Buscando o entendimento de todo o processamento das relaccedilotildees sociais do receacutem-morto e dos novos viacutenculos sociais criados pelos vivos Rodrigues parte da proposiccedilatildeo conceitual de Van Gennep para compreender os ritos fuacutenebres O ldquorito de passagemrdquo permite ao autor articular o processo de separaccedilatildeo do morto da sociedade dos vivos no qual afere a ideia de que a morte natildeo eacute um fim inexoraacutevel para o morto mas

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uma passagem de uma ldquoforma de vida social a uma outra ela natildeo eacute o fim da vida mas iniciaccedilatildeo a uma novardquo (RODRIGUES 2006 p 43)

Destarte a partir deste luto os ritos vinculados a morte representam um conjunto de condutas culturais que possuem grande importacircncia e que tem como funccedilatildeo a constituiccedilatildeo de uma memoacuteria coletiva sobre o morto (MEDEIROS 2008 p 154) E com isto eacute perceptiacutevel como a morte e os ritos que lhe seguem satildeo de caraacuteter social e fundamentais para a manutenccedilatildeo da ordem no mundo dos vivos e dos mortos

Sendo assim Jean-Pierre Vernant afirma que para os gregos a ldquoideacuteia que a morte eacute um limiar intransponiacutevel atraacutes do qual se encontra um mundo que eacute um mundo de horror de anonimato um magma onde todos se perdemrdquo (VERNANT 2009 p 83) A morte para os gregos estaacute presente na ldquovida da poacutelisrdquo isto eacute a praacutetica de cuidar dos tuacutemulos renderem-lhes honras fuacutenebres a existecircncia de dias de festivais dedicados aos mortos a ponto de ser uma preocupaccedilatildeo de ordem econocircmica para os legisladores da cidade (BURKERT1993 pp 376-379)

Morrer adquire um status paradoxal implica na morte do indiviacuteduo a sua ldquoviagem para o esquecimentordquo mas a rememoraccedilatildeo constante feita pelos vivos seja pelo canto dos poetas seja pelo memorial funeraacuterio Era fundamental assim que a singularidade da existecircncia do indiviacuteduo de seus feitos do que havia sido permanecessem inscritos para sempre na memoacuteria dos homens (VERNANT 2009 p 86)

2 As passagens relacionadas ao morrer no mar

Homero eacute o primeiro a nos apontar a construccedilatildeo de um discurso sobre a morte no mar Na passagem do canto IV nos versos 708-711 ressalta que o arauto Meacutedon conta agrave Peneacutelope sobre a empreitada de Telecircmaco e a armadilha preparada pelos pretendentes visando findar com a vida de seu filho Nesta fala afirma que a morte no mar permite o esquecimento do defunto

Em nau veloz cavalo salso marinho em plena imensidatildeo aquosa natildeo carecia que zarpasse O proacuteprio nome quer que naufrague entre os humanos (HOMERO Odisseia IV 708-711)2

2 οὐδέ τί μιν χρεὼ νηῶν ὠκυπόρων ἐπιβαινέμεν αἵ θ᾽ ἁλὸς ἵπποι ἀνδράσι γίγνονται περόωσι δὲ πουλὺν ἐφ᾽ ὑγρήν ἦ ἵνα μηδ᾽ ὄνομ᾽ αὐτοῦ ἐν ἀνθρώποισι λίπηται

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A armadilha feita pelos inimigos conduziria agrave morte o jovem Telecircmaco fazendo seu corpo perdesse entre as ondas do mar Com o corpo perdido o crime seria encoberto e o a memoacuteria do jovem perdida por natildeo ser realizado o enterramento corretamente

Neste mesmo sentido o poeta do VII seacuteculo aC Arquiacuteloco enfatiza num mesmo sentido discursivo que natildeo eacute possiacutevel conceder as honras fuacutenebres aos mortos no mar Posidon oculta a dor aos parentes jaacute que natildeo poderiam ver os corpos sendo queimados na ldquochama de Hefestosrdquo com a seguinte passagem

Se Hefesto tivesse envolvido em seu vestido a cabeccedila e os membros dele Oculta os dolorosos presentes do Senhor Poseidon (ARQUIacuteLOCO vv 5-6)

No entanto eacute com Hipocircnax poeta do seacuteculo VI aC que vemos a primeira relaccedilatildeo entre a morte no mar e um ato de puniccedilatildeo

diga-me o modo para que lsquoesse infamersquo morra de uma maneira infame apedrejado por decisatildeo conjunta das pessoas agraves margens do mar esteacuteril (HIPOcircNAX 135 vv 3-4)

Nesta passagem o autor faz referecircncia a morte por apedrejamento junto a beira do mar O mar completa a cena de uma morte com caraacuteter negativo infame com esterilidade

Percebemos ateacute aqui que durante o periacuteodo arcaico a morte no mar eacute algo natildeo desejado pelos helenos algo que gera uma problemaacutetica no sistema dos ritos fuacutenebres Tambeacutem eacute na construccedilatildeo de um discurso socialmente construiacutedo que relaciona a negatividade atribuiacuteda agrave morte no meio inoacutespito ao cenaacuterio de uma morte sem gloacuteria calcada na proposiccedilatildeo de ampliar a puniccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da morte de ldquoum infamerdquo Esse discurso perpassa os valores helecircnicos ateacute se cristalizar no discurso herodotiano

Na primeira das trecircs passagens Heroacutedoto nos relata um caso em que os nautai tentam usurpar os bens de um renomado aedo durante a travessia do mar Vejamos

Confiando em nenhum mais do que os Coriacutentios ele contratou um navio Coriacutentio para levaacute-lo a partir de Tarento Mas quando eles estavam em alto mar a tripulaccedilatildeo conspirarou para tomar o dinheiro de Arion e lanccedilaacute-lo ao mar Descobrindo isso ele suplicou fervorosamente pedindo por sua vida e oferecendo-lhes o seu dinheiro Mas a tripulaccedilatildeo natildeo iria ouvi-lo e disse-lhe quer se matar

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e assim receber o sepultamento em terra ou saltar para o mar de uma vez Abandonado a estes extremos Arion pediu que uma vez que eles tinham decido em suas mentes o deixassem ficar no conveacutes do navio com toda a sua regalia e cantar e ele prometeu que depois de cantar ele iria se entregar Os homens satisfeitos com a ideia de ouvir o melhor cantor do mundo afastaram-se em direccedilatildeo ao meio da nau a partir da popa Arion colocando todos os seus bens e tendo sua lira levantou-se no conveacutes e cantou a lsquoNomo orthiorsquo e quando a muacutesica terminou ele lanccedilou-se ao mar com todos os seus bens Assim a equipe partiu para Corinto mas um golfinho (assim diz a histoacuteria) tomou Arion em suas costas e o levou a Teacutenaro Desembarcando laacute ele foi para Corinto com seus bens e quando ele chegou ele relatou tudo o que havia acontecido Periandro ceacutetico manteve-o em regime de confinamento deixando-o ir a lugar nenhum e esperou pelos marinheiros Quando eles chegaram eles foram convocados e perguntou se trouxeram notiacutecias de Arion Enquanto eles estavam dizendo que ele estava seguro na Itaacutelia e que o tinha deixado satildeo e bem em Tarento Arion apareceu diante deles assim como foi quando ele pulou do navio espantado que natildeo podia mais negar o que foi provado contra eles (HEROacuteDOTO Histoacuterias I 24 2-7)3

Nesta passagem denotamos que para encobrir o crime a ser cometido contra Arion os navegantes optam por lanccedila-lo ao mar desaparecendo com seu corpo e escondendo o crime cometido Satildeo as atribuiccedilotildees que caracterizam o mar que apresentaremos em breve que aqui fica evidenciado o mar faz com que o corpo desapareccedila Aleacutem disso a oposiccedilatildeo ldquolanccedilar-se ao marrdquo e ldquoreceber o sepultamentordquo fica notadamente evidenciada nesta passagem Morrer no mar caso ele saltasse significaria a ausecircncia dos devidos ritos fuacutenebres

A passagem seguinte de Heroacutedoto mostra uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre o ato criminoso e a capacidade do mar de encobrir o corpo

3 οὔκων δὴ πείθειν αὐτὸν τούτοισι ἀλλὰ κελεύειν τοὺς πορθμέας ἢ αὐτὸν διαχρᾶσθαί μιν ὡς ἂν ταφῆς ἐν γῇ τύχῃ ἢ ἐκπηδᾶν ἐς τὴν θάλασσαν τὴν ταχίστην ἀπειληθέντα δὴ τὸν Ἀρίονα ἐς ἀπορίην παραιτήσασθαι ἐπειδή σφι οὕτω δοκέοι περιιδεῖν αὐτὸν ἐν τῇ σκευῇ πάσῃ στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι ἀεῖσαι ἀείσας δὲ ὑπεδέκετο ἑωυτὸν κατεργάσασθαι καὶ τοῖσι ἐσελθεῖν γὰρ ἡδονὴν εἰ μέλλοιεν ἀκούσεσθαι τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀοιδοῦ ἀναχωρῆσαι ἐκ τῆς πρύμνης ἐς μέσην νέα τὸν δὲ ἐνδύντα τε πᾶσαν τὴν σκευὴν καὶ λαβόντα τὴν κιθάρην στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι διεξελθεῖν νόμον τὸν ὄρθιον τελευτῶντος δὲ τοῦ νόμου ῥῖψαί μιν ἐς τὴν θάλασσαν ἑωυτὸν ὡς εἶχε σὺν τῇ σκευῇ πάσῃ καὶ τοὺς μὲν ἀποπλέειν ἐς Κόρινθον τὸν δὲ δελφῖνα λέγουσι ὑπολαβόντα ἐξενεῖκαι ἐπὶ Ταίναρον ἀποβάντα δέ αὐτὸν χωρέειν ἐς Κόρινθον σὺν τῇ σκευῇ καὶ ἀπικόμενον ἀπηγέεσθαι πᾶν τὸ γεγονός Περίανδρον δὲ ὑπὸ ἀπιστίης Ἀρίονα μὲν ἐν φυλακῇ ἔχειν οὐδαμῇ μετιέντα ἀνακῶς δὲ ἔχειν τῶν πορθμέων ὡς δὲ ἄρα παρεῖναι αὐτούς κληθέντας ἱστορέεσθαι εἴ τι λέγοιεν περὶ Ἀρίονος φαμένων δὲ ἐκείνων ὡς εἴη τε σῶς περὶ Ἰταλίην καί μιν εὖ πρήσσοντα λίποιεν ἐν Τάραντι ἐπιφανῆναί σφι τὸν Ἀρίονα ὥσπερ ἔχων ἐξεπήδησε καὶ τοὺς ἐκπλαγέντας οὐκ ἔχειν ἔτι ἐλεγχομένους ἀρνέεσθαι

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Temendo pois para si mesmo para que seu irmatildeo poderia mataacute-lo e assim por ser rei ele enviou Prexaspes o mais confiaacutevel de seus persas para a Peacutersia para mataacute-lo Prexaspes foi para Susa e matou Esmeacuterdis levando-o para caccedilar de acordo alguns ou de acordo com os outros levando ao mar Eritreu e laacute jogou-o nas aacuteguas profundas (HEROacuteDOTO Histoacuterias III 30 3)4

Na segunda passagem Cambises receoso por um sonho ordenou a morte de seu irmatildeo Esmeacuterdis com medo deste tirar seu trono Aqui o mar aparece como um lugar vinculado agrave ideia de morte escondida no qual natildeo haacute evidecircncias O fratriciacutedio real ainda que cometido por terceiros na visatildeo helecircnica era puniacutevel pois seria cometido um crime de sangue

Por fim a terceira passagem nos apresenta a histoacuteria de Estearco que induzido por sua nova esposa de que sua filha era uma prostituta pede a seu hoacutespede Temison que jogue sua filha ao mar Natildeo somente o pai se nega a cometer diretamente um crime familiar matando sua filha mas tambeacutem solicita-o ao hoacutespede ndash que acaba sentindo-se na necessidade de retribuir a hospitalidade de Estearco Na passagem vecirc-se ldquoe o manda que a jogue no marrsquo (HEROacuteDOTO Histoacuterias IV 154 3)5

O mar aparece novamente como aquele com o poder de encobrir os crimes cometidos atraveacutes da destruiccedilatildeo do corpo Nem o corpo nem o crime seriam levados de volta agrave sociedade O mar eacute entatildeo o espaccedilo do desaparecimento aquilo capaz de ldquoEsconder os corpos e os crimesrdquo

3 O mar que esconde os corpos e os crimes

Em um estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno realizado por Astrid Lindenlauf (2003 pp 416-433) no qual o Mediterracircneo servia como um toacutepos para o descarte de objetos indesejados6 percebemos que o mar era

4 πρὸς ὦν ταῦτα δείσας περὶ ἑωυτοῦ μή μιν ἀποκτείνας ὁ ἀδελφεὸς ἄρχῃ πέμπει Πρηξάσπεα ἐς Πέρσας ὃς ἦν οἱ ἀνὴρ Περσέων πιστότατος ἀποκτενέοντά μιν ὁ δὲ ἀναβὰς ἐς Σοῦσα ἀπέκτεινε Σμέρδιν οἳ μὲν λέγουσι ἐπ᾽ ἄγρην ἐξαγαγόντα οἳ δὲ ἐς τὴν Ἐρυθρὴν θάλασσαν προαγαγόντα καταποντῶσαι

5 καὶ ταύτην ἐκέλευε καταποντῶσαι ἀπαγαγόντα

6 Exemplos que a autora expotildee lanccedilamento de estaacutetua de liacutederes poliacuteticos indesejado que representaria uma declaraccedilatildeo poliacutetica simboacutelica visando o apagamento da memoacuteria O lanccedilamento do corpo de um inimigo assassinado representava a negaccedilatildeo do enterro (LINDENLAUF 2003 pp 420-421)

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compreendido entre os helenos antigos como um lugar de onde nada ndash exceto em alguns casos ndash retornava de volta agraves vistas da sociedade A profundidade sua capacidade de submersatildeo a imensidatildeo a vastidatildeo e o constante movimento do mar geravam a percepccedilatildeo do mar como uma possibilidade do desaparecimento por completo (LINDENLAUF 2003 pp 423-424) Assim tambeacutem ocorreria para aqueles que morriam em meio mariacutetimo Todo este imaginaacuterio de poder de desaparecimento de objetos e pessoas indesejadas nos reforccedila a ideia do mar como um local de morte sem retorno

A partir destas capacidades que geram os desaparecimentos em algumas das passagens destacadas percebemos sua utilizaccedilatildeo para o encobrimento de atos considerados criminosos Fosse pela trama dos pretendentes contra Telecircmaco fosse pelo assassinato de Esmeacuterdis por ordem do irmatildeo a temaacutetica e as discussotildees sobre os atos infracionais na ordem social tambeacutem eram pontuados pelos tragedioacutegrafos Sem nos adentrarmos especificamente nestas dramatizaccedilotildees cabe-nos ressaltar que a ideia de crime de sangue ndash caso de alguns de nossos apontamentos anteriores ndash poderia ser considerado um dos piores tipos de crime Deste modo as trageacutedias estatildeo repletas de personagens que cometem crimes e satildeo julgados e punidos por estas accedilotildees Do parriciacutedio de Eacutedipo do matriciacutedio de Orestes dos filiciacutedios de Medeacuteia e Agamecircmnon do fratriciacutedio de Eteacuteocles e Polinices os helenos conviviam com estes embates em cenas e em seu imaginaacuterio onde havia o conflito entre forccedilas opostas no qual se deturpava a ordem anteriormente estabelecida Aos personagens traacutegicos temos a oposiccedilatildeo do ethhos (caraacuteter) e do daacuteimon (destino) no qual seus destinos satildeo previamente traccedilados pelos deuses e que ainda assim satildeo responsaacuteveis por seus atos criminosos (SANTOS 2005 pp 63-64)

Entre a capacidade do mar para o encobrimento de objetos e a necessidade de se esconder os corpos de crimes abjetos o mar proporciona em diversos niacuteveis esta possibilidade Natildeo satildeo somente as cinco caracteriacutesticas destacadas por Lindenlauf mas tambeacutem se deve considerar os seres que habitam o mar e que compotildeem este cenaacuterio de destruiccedilatildeo Como aponta Papadoupolos e Ruscillo o poder do mar centrava-se na capacidade de engolir e esconder um ser humano completamente aleacutem de contar com as inuacutemeras criaturas comedoras de carne em suas profundezas deste modo a morte no mar era parte da tradiccedilatildeo poeacutetica grega (2012 p 215) ldquoDesde Homero que o mar eacute o lugar dos heroacuteis o percurso a ser desbravado com coragem astuacutecia e ajuda dos deuses Entretanto isso natildeo quer dizer que o medo natildeo estivesse presente

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Os gregos sabiam o que um naufraacutegio representavardquo (VIEIRA 2010 p 60) Tanto que encontramos imagens em ceracircmica que representam o naufraacutegio e o poder destrutivo dos seres que o habitam

Esta cena estaacute em uma cratera datada de final do seacuteculo VIII aC encontrada em Pitecussa em estilo geomeacutetrico tardio (BUCHNER 1966 p 8) Nela podemos ver o naufraacutegio de um navio e seus tripulantes Em cena uacutenica vemos uma grande nau virada para baixo e dois navegantes entre os peixes logo abaixo dela Mais a esquerda da cena um enorme peixe devora um homem sua cabeccedila jaacute estando dentro da boca do peixe inclusive No restante da cena temos outros corpos e uma grande variedade de peixes

Neste contexto do periacuteodo arcaico a navegaccedilatildeo no Mediterracircneo ocidental estava pautada no processo de expansatildeo helecircnica tanto territorial quanto comercial O imaginaacuterio dos perigos do mar e dos animais que o habitavam ndash verdadeiros devoradores de homens ndash permeavam tambeacutem a construccedilatildeo imageacutetica

Da cena que apresentamos quanto destes homens poderiam ter sobrevivido Em qual situaccedilatildeo os corpos dos cadaacuteveres estariam se fossem encontrados Este imaginaacuterio de horror de uma morte longe das vistas da poacutelis de ausecircncia do corpo em ritos fuacutenebres marca a capacidade do mar e dos seres que o habitam de encobrir as mortes que ali ocorriam fossem por tempestades ou perigos inerentes agrave navegaccedilatildeo fossem por crimes cometidos e que se desejavam esconder da sociedade

4 Consideraccedilotildees finais

Podemos ver a partir da documentaccedilatildeo em que realizamos anaacutelise que essa morte marinha se coloca como o oposto da morte com seus rituais e a aproxima de atos criminosos ndash no sentido de encobrir tais atos O corpo se perdeu entre as ondas do mar foi danificado natildeo pode receber as honras fuacutenebres Natildeo eacute a ldquobela morterdquo de um guerreiro em batalha ndash morte tatildeo

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valorizada nos discursos ndash mas a ausecircncia do indiviacuteduo no qual o corpo se decompotildee no mar

A morte no mar representa o ldquolsquoultraje ao cadaacuteverrsquo ou seja o tratamento que se quer infligir aos inimigos mortos para que natildeo se tornem memoraacuteveis para os deixar apodrecerrdquo (VERNANT 2009 p 91) Natildeo eacute somente o corpo mas o esquecimento que o indiviacuteduo teraacute na memoacuteria dos vivos Os rituais fuacutenebres marcam a mnemosyne ndash Memoacuteria ndash guardam a lembranccedila e a manteacutem viva

Como aponta Joseacute Carlos Rodrigues ldquoa morte do corpo pode ser a morte do siacutembolo que o corpo eacute a morte do siacutembolo da estrutura socialrdquo (RODRIGUES 2006 p40) A simbolizaccedilatildeo da vida do defunto lhe eacute impressa em seu enterramento seu corpo faz parte da demarcaccedilatildeo social Quando haacute a ausecircncia do corpo como se realiza a marca de sua vida no enterramento

Eacute neste sentido que os rituais fuacutenebres emergem como complexos ritos que projetam a vida coletiva da sociedade no enterramento Estes ritos dependeratildeo estreitamente do tipo de morte da condiccedilatildeo do morto do status social dos sobreviventesvivos e sua relaccedilatildeo com o desaparecidomorto (Idem) Assim a ausecircncia do corpo nos ritos fuacutenebres traz problemaacuteticas a serem sanadas pelos vivos Morrer no mar eacute em muitos casos perder o corpo natildeo voltar Realizar uma demarcaccedilatildeo espacial e conceder ao morto um novo lugar para habitar atraveacutes da estela funeraacuteria O ldquocorpo se perde entre as ondasrdquo como jaacute cantavam os antigos aedos e rapsodos E uma vez perdidos entre as ondas como descobrir a forma de sua morte Como se diz que foi uma morte por naufraacutegio ou assassinato em alto-mar O mar desde os antigos mostra assim todas as suas potencialidades Potencialidades diversas que os helenos buscaram compreender dominar e representar

Abstract The power of the sea can be understood in its submersion capacity in its immensity and vastness in its depth and its constant movement These five characteristics ascribed by Astrid Lindenlauf (2003) in their study of the sea as a place of ldquono-returnrdquo enable us to perceive the potentialities of the sea in the disappearance and or cover-up of unwanted traces Thus we intend in this article to analyze passages that allow us to elucidate the relation of actions considered shameful criminal by Hellenic society with the sea in textual works of the archaic and classic periods and imagery representationKeywords Sea disappearance crimes

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A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTI-GUIDADE

Renata Cardoso de Sousa1

Existe por exemplo o gosto pela viagem ndash um prazer muito especial que natildeo deve ser confundido com fuga evasatildeo ou escapismo Eacute o gosto pela imersatildeo no desconhecido pelo conhecimento do outro pela exploraccedilatildeo da diversidade A satisfaccedilatildeo de se deixar transportar para outro tempo e outro espaccedilo viver outra vida com experiecircncias diferentes do cotidiano (MACHADO 2009 p 19 e 20)

Resumo Propomos pensar como eacute possiacutevel trabalhar o tema da etnicidade e do etnocentrismo na sala de aula a partir do uso de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade Para tal primeiramente eacute necessaacuterio estabelecer alguns criteacuterios para a utilizaccedilatildeo dessa literatura que ainda gera debates acerca da sua proficuidade bem como conceituar a etnicidade Partiremos dos conceitos de etnicidade (proposto por Fredrik Barth) e identidade-alteridade (de Marc Augeacute) para depois nos debruccedilarmos sobre propostas de trabalho com algumas adaptaccedilotildees selecionadasPalavras-chave Ensino de Histoacuteria adaptaccedilotildees literaacuterias etnicidade

Objetivamos nesse artigo pensar algumas questotildees concernentes tanto ao Ensino de Histoacuteria quanto agrave validade da utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade em sala de aula como forma de estiacutemulo agrave leitura Dentre essas questotildees estatildeo a) Por que tratar o tema da etnicidade e do etnocentrismo em sala de aula b) Por que recorrer agrave Antiguidade para (re)pensar a etnicidade c) Por que utilizar adaptaccedilotildees em sala de aula se podemos mediar a leitura do claacutessico com os alunos

Para tal proposta primeiro propomos pensar acerca do proacuteprio conceito e de sua importacircncia dentro do contexto escolar para depois pensarmos o

1 Professora Doutoranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada (PPGHC-UFRJ) Orientada pelo Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa Bolsista CAPES E-mail renatacardoso1990gmailcom

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conceito na Antiguidade grega Em seguida discutiremos a proficuidade das adaptaccedilotildees e definiremos mesmo o que seriam elas No final propomos algumas soluccedilotildees para o trabalho com o conceito de etnicidade utilizando adaptaccedilotildees da Odisseia em sala de aula com exemplos praacuteticos

10 ldquoA Histoacuteria eacute decorebardquo ou ldquoA Histoacuteria ensina fatos do passado natildeo do presenterdquo o senso comum e o Ensino de

Histoacuteria

Quem eacute professor de Histoacuteria em algum momento jaacute deve ter ouvido essas duas frases de alunos pais de alunos ou ateacute mesmo de diretores ou coordenadores Entretanto quando nos deparamos com as pesquisas no acircmbito do Ensino de Histoacuteria (e na aacuterea de ensino em geral) percebemos o quanto essas duas visotildees estatildeo ultrapassadas Os proacuteprios Paracircmetros Curriculares Nacionais do Ensino de Histoacuteria (PCN) desconstroem essa ideia

A construccedilatildeo de noccedilotildees interfere nas estruturas cognitivas do aluno modificando a maneira como ele compreende os elementos do mundo e as relaccedilotildees que esses elementos estabelecem entre si Isso significa dizer que quando o estudante apreende uma noccedilatildeo grande parte do que ele sabe e pensa eacute reorganizado a partir dela Na medida em que o ensino de Histoacuteria lhe possibilita construir noccedilotildees ocorrem mudanccedilas no seu modo de entender a si mesmo os outros as relaccedilotildees sociais e a Histoacuteria Os novos domiacutenios cognitivos do aluno podem interferir de certo modo nas suas relaccedilotildees pessoais e sociais e nos seus compromissos e afetividades com as classes os grupos sociais as culturas os valores e as geraccedilotildees do passado e do futuro (BRASIL 1998 p 35)

Sendo assim o Ensino de Histoacuteria deixa de se basear na mera reproduccedilatildeo dos fatos histoacutericos e a cobranccedila deles nas provas ele comeccedila a elaborar uma seacuterie de objetivos (como os proacuteprios objetivos gerais do PCN ndash BRASIL 1998 p 43) que buscam a utilizaccedilatildeo da Histoacuteria para construir pessoas criacuteticas capazes de utilizar o arcabouccedilo conceitual que possuem para discutir acerca da sua proacutepria realidade e tambeacutem modificaacute-la

Fato eacute que frequentemente nos deparamos com esses dois estereoacutetipos do Ensino de Histoacuteria os quais dificultam (mas natildeo impossibilitam) o avanccedilo da aplicaccedilatildeo da pesquisa agrave praacutetica escolar (algo tambeacutem tatildeo caro ao PCN2) Ainda nos deparamos com muitos estereoacutetipos nos livros didaacuteticos

2 ldquoNas uacuteltimas deacutecadas por diferentes razotildees nota-se uma crescente preocupaccedilatildeo dos professores do ensino fundamental em acompanhar e participar do debate historiograacutefico criando

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de Histoacuteria (como a ldquoIdade Meacutedia trevosardquo ou a ldquoinvasatildeo dos baacuterbarosrdquo) bem como agraves vezes somos pressionados como professores a fazer provas que satildeo meras verificaccedilotildees e natildeo avaliaccedilotildees (LUCKESI 2008 p 93) A Histoacuteria eacute para ser compreendida natildeo decorada por meio de um questionaacuterio E ela eacute para ser compreendida natildeo para servir de exemplo mas para fazer refletir acerca do nosso proacuteprio presente e nos fazer entender como chegamos ao ponto em que estamos

A avaliaccedilatildeo nesse sentido deixaria de se ater apenas agrave verificaccedilatildeo de um conteuacutedo fatual inculcado mas traria situaccedilotildees-problema e questotildees culturais do proacuteprio cotidiano e da realidade nacional e internacional para que o aluno pudesse aplicar os conhecimentos acerca do estudo da Histoacuteria Ele demonstraria que de fato aprendeu a pensar historicamente e a aplicar esse pensamento agrave sua realidade e natildeo apenas decorou o conteuacutedo para passar de ano

Isso natildeo significa abandonar o fato histoacuterico mas sobretudo utilizaacute-los para pensar acerca do presente e instigar o contato com a alteridade por parte do educando a fim de que ele possa assim reconhecer sua proacutepria identidade e natildeo desrespeitar ou repudiar as maneiras pelas quais o Outro constroacutei sua proacutepria identidade Esse eacute outro ponto (o respeito agraves alteridades) que toca o PCN (BRASIL 1998 p 35 e 36) de modo natildeo a simplesmente ldquoformar cidadatildeos brasileirosrdquo como era a proposta majoritaacuteria no Ensino de Histoacuteria (NADAI 2017 p 30) mas formar pessoas que tecircm o respeito como valor maacuteximo

Em tempos sombrios nos quais cada vez mais vemos um retrocesso em relaccedilatildeo ao respeito aos direitos humanos e agraves pessoas que pensamagem diferente de noacutes nos quais a liberdade de expressatildeo eacute confundida com liberdade de opressatildeo e liberdade de ofensa eacute mister que o exerciacutecio da alteridade seja um dos nortes da Educaccedilatildeo Para isso eacute preciso compreender alguns conceitos como os de identidade alteridade etnicidade e etnocentrismo Eacute por esse motivo que eacute importante na sala de aula natildeo soacute ldquopassarmos todo o conteuacutedordquo mas tambeacutem fazer os educandos refletirem acerca dos conceitos que perpassam a Histoacuteria

As conceituaccedilotildees e as noccedilotildees em vez de serem trabalhadas por meio de suas caracteriacutesticas geneacutericas assumem especificaccedilotildees histoacutericas possibilitando

aproximaccedilotildees entre o conhecimento histoacuterico e o saber histoacuterico escolar Reconhece-se que o conhecimento cientiacutefico tem seus objetivos sociais e eacute reelaborado de diversas maneiras para o conjunto da sociedade Na escola ele adquire ainda uma relevacircncia especiacutefica quando eacute recriado para fins didaacuteticosrdquo (BRASIL 1998 p 30)

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o diaacutelogo entre os sujeitos que falam pelos documentos legados ao presente e aqueles que os interpretam Nesse sentido eacute importante recuperar na Histoacuteria a historicidade dos conceitos sua relaccedilatildeo com a interpretaccedilatildeo e categorizaccedilatildeo de fenocircmenos em contextos temporais especiacuteficos (BRASIL 1998 p 82)

ldquoRevoluccedilatildeordquo ldquodescobrimentordquo ldquonacionalismordquo ldquoidentidaderdquo ldquoalteridaderdquo e ldquoetnicidaderdquo satildeo exemplos de conceitos que estatildeo presentes em vaacuterias eacutepocas em vaacuterias sociedades e inclusive na nossa proacutepria sociedade Aleacutem disso esses conceitos satildeo passiacuteveis de interpretaccedilotildees diversas revelando a reflexatildeo acerca deles bastante profiacutecua para o aluno entender melhor o que eacute a Histoacuteria e o que eacute o processo histoacuterico No entanto eacute preciso que o professor saiba lidar com esses conceitos

Se o professor natildeo tiver clareza sobre o sentido e aplicaccedilatildeo de conceitos como cidadania diferenccedila semelhanccedila permanecircncia transformaccedilatildeo questionamento convivecircncia e outros que compotildeem o vocabulaacuterio dos programas e materiais de ensino como seraacute possiacutevel conduzir ou mesmo participar de um projeto de aprendizagem (MICELI 2017 p 40 ndash grifos do autor)

Por isso eacute necessaacuterio que antes de entrarmos no meacuterito do trabalho com o conceito de etnicidade compreendecirc-lo melhor sobretudo no que tange a Greacutecia Antiga nosso foco de anaacutelise

20 O que eacute a etnicidade

Essa eacute uma pergunta sem resposta definitiva desde os anos 1960 se tenta fechar o conceito de etnicidade mas sem sucesso uma vez que essas tentativas como a de Burgess em 1978 de se cristalizar de modo estanque o conceito acaba mais por generalizaacute-lo do que defini-lo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Contudo precisamos considerar que a etnicidade diferentemente da alteridade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a origem em comum de um povo conectada com um territoacuterio especiacutefico

Eacute Fredrik Barth quem estabelece um conceito de etnicidade bastante proacuteximo do que entendemos por etnicidade o autor afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidaderdquo

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afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (2011 p 141) eacute aquele que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees raciaisrdquo

Aleacutem disso Barth enfoca justamente nos limites do grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo (LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)

Por colocar em jogo essa relaccedilatildeo entre o ldquoNoacutesrdquo e o ldquoElesrdquo eacute imprescindiacutevel aliar agraves anaacutelises eacutetnicas o par conceitual identidadealteridade Seguimos o norte teoacuterico do antropoacutelogo Marc Augeacute que natildeo enxerga esses dois conceitos de maneira diametralmente oposta mas como um par complementaacuterio a identidade natildeo existe sem definiccedilotildees de alteridade e vice-versa (AUGEacute 1998 p 28) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no contato entre os colonizadores e os nativos e procuramos reapropriar proficuamente seu arcabouccedilo conceitual para a anaacutelise do nosso objeto histoacuterico-discursivo

O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica assim como o de etnicidade o contato com outras culturas eacute imbuiacutedo de choques No entanto Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de Outro retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) O proacuteprio conectivo adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 pp 63-64) o ldquooutrordquo assemelha-se ao ldquomasrdquo ao adverso

Os estudos de etnicidade em relaccedilatildeo agrave Antiguidade grega satildeo recentes e encontraram em Edith Hall Jonathan Hall e Irad Malkin grande expressatildeo Este uacuteltimo sobretudo adentra mais ainda o tema retirando das Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) o suposto meacuterito de ter contribuiacutedo para o desenvolvimento de relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e seus Outros se debruccedilando sobre a Odisseia de Homero

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No nosso trabalho de doutorado objetivamos incluir a Iliacuteada no centro das discussotildees acerca da etnicidade tambeacutem bem como pensar a construccedilatildeo de um processo discursivo em torno da etnicidade e da identidade-alteridade em Homero Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides sendo o primeiro o arquitexto desses trecircs uacuteltimos Objetivamos analisar como as fronteiras eacutetnicas entre os gregos e seus Outros (e posteriormente entre a poacutelis ateniense e as demais sobretudo as peloponeacutesicas) satildeo construiacutedas desde as epopeias homeacutericas inclusive a Iliacuteada no bojo da relaccedilatildeo de inimizade na guerra entre troianos e aqueus

Na Odisseia de fato as relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e os seus Outros ficam mais evidentes por conta dos enfrentamentos de Odisseu com a alteridade em sua viagem de retorno a Iacutetaca Embora ele se depare com diversos povos (como os ciacutecones os lestrigotildees os lotoacutefagos e ateacute mesmo os feaacutecios que embora muito parecidos com os gregos em sua cultura resistem agrave amizade ritual elemento distintivo entre eles e os baacuterbaros no processo discursivo helecircnico) e pessoas (como Circe e Calipso que satildeo feiticeiras) que destoam do ideal de conduta e civilizaccedilatildeo gregas eacute no episoacutedio dos ciclopes que as marcas eacutetnicas entre os gregos e seus Outros ficaratildeo mais evidentes

Esse episoacutedio eacute tatildeo marcante que ele natildeo se restringe apenas ao Canto IX no qual ele eacute narrado em vaacuterios Cantos da Odisseia o Ciacuteclope reaparece mesmo que seja apenas mencionado (HOMERO Odisseia I vv 69-73 II vv 19-20 X vv 200 e 435 XII vv 209-212 XX vv 18-21 XXIII vv 312-314) Haacute uma construccedilatildeo de fronteiras eacutetnicas flagrante nesse encontro que seraacute explorada no seacuteculo V aC por Euriacutepides no seu drama satiacuterico O Ciacuteclope Eles satildeo descritos do seguinte modo por Odisseu ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεμίστων ἱκόμεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)

Polifemo eacute descrito como um monstro aos olhos do heroacutei eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) como os outros Ciclopes O Ciclope nega uma suacuteplica ao natildeo hospedar Odisseu Isso gera um estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) A consequecircncia da perdiccedilatildeo dele eacute o vazamento de seu uacutenico olho pelo heroacutei da epopeia Contudo a proacutepria hyacutebris (desmedida) de Odisseu ao se vangloriar de tal feito o faz vagar mais pelo mar ateacute conseguir chegar em sua terra natal Iacutetaca

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Para definir o que ele entende por civilizaccedilatildeo ele utiliza a definiccedilatildeo do Outro os gregos respeitam a lei porque os Outros natildeo o fazem a agricultura eacute a atividade que concede identidade aos gregos porque os Outros natildeo a praticam o patildeo eacute o alimento por excelecircncia dos gregos porque os outros natildeo cozinham o alimento nem o fabricam E assim por diante Do mesmo modo noacutes fazemos nos orgulhamos de certos traccedilos eacutetnicos porque satildeo exclusivos a noacutes no plano discursivo natildeo satildeo compartilhados com os Outros

Para levar essa discussatildeo para a sala de aula propomos a utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees Para tal devemos primeiramente definir o que entendemos por adaptaccedilatildeo e debater acerca das particularidades do uso e estudo delas

30 Consideraccedilotildees iniciais acerca da recepccedilatildeo das adaptaccedilotildees

Quando vamos ao cinema assistir a um filme baseado em um livro eacute comum sairmos frustrados acabamos chegando agrave conclusatildeo de que era melhor ter lido o livro somente Cenas satildeo cortadas ou amalgamadas os personagens e os cenaacuterios nem sempre correspondem agrave descriccedilatildeo do livro os diaacutelogos satildeo suprimidos e ou simplificados Isso ocorre porque um livro na verdade satildeo muitos livros cada vez que algueacutem o lecirc interpreta e imagina de um jeito os personagens cenaacuterios cenas diaacutelogos Eacute como se fosse um filme interior passando dentro de nossas cabeccedilas E nenhum cineasta pode estar dentro de nossas cabeccedilas para imaginar como gostariacuteamos de ver um livro representado nas telas Afinal ele mesmo imaginou e criou o mundo do livro em seus pensamentos tambeacutem

Aleacutem disso haacute a questatildeo da narrativa a dinacircmica de um livro eacute diferente da de um roteiro de cinema dos planos cinematograacuteficos que existem no discurso fiacutelmico Seguindo o mesmo raciociacutenio podemos pensar acerca das adaptaccedilotildees literaacuterias O adaptador leu o livro imaginou-o viveu todas aquelas cenas e personagens em sua mente Entretanto ele decide natildeo ficar com isso somente para si ele quer contar para crianccedilas e jovens o que leu o que imaginou o que interpretou E faz a adaptaccedilatildeo daquele livro para um puacuteblico infanto-juvenil cuja literatura demanda um outro tipo de linguagem um outro tipo de discurso diferente daquele do livro para um puacuteblico adulto ou para um puacuteblico infanto-juvenil de eacutepocas precedentes

Por conta disso as adaptaccedilotildees satildeo vistas agraves vezes como elementos empobrecedores dos claacutessicos

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A adaptaccedilatildeo das obras claacutessicas das literaturas nacional e mundial eacute um tema que desperta polecircmica e divide opiniotildees Natildeo poderia ser diferente jaacute que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo natildeo se reduz a um sentido consensual pode ser associada tanto agrave noccedilatildeo de ldquoenriquecimentordquo quanto agrave de ldquoempobrecimentordquo Geralmente argumenta-se que empobreceria as literaturas claacutessicas em virtude de um processo de atualizaccedilatildeo e de simplificaccedilatildeo que visaria a atender a puacuteblicos especiacuteficos como o infantil e o infanto-juvenil Por razotildees semelhantes tornaria possiacutevel o enriquecimento da formaccedilatildeo educativa desses puacuteblicos introduzindo obras de difiacutecil acesso cuja linguagem seria ldquocomplexardquo ou temporalmente distante da linguagem com a qual tais leitores estariam habituados Em ambos os casos a adaptaccedilatildeo seria um conceito amplo que abarcaria as mais diversas formas de linguagem como histoacuteria em quadrinhos adaptaccedilotildees cinematograacuteficas e televisivas desenhos animados audio-books e os trabalhos em forma de narrativa (AMORIM 2005 p 119)

De fato a adaptaccedilatildeo ou releitura daquele livro natildeo seraacute igual ao original assim como o filme do livro natildeo eacute igual ao livro afinal a proposta eacute diferente e os autores satildeo diferentes ldquoA reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a lsquomesma coisarsquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidaderdquo (AMORIM 2005 p 95) Se nos deparamos com uma adaptaccedilatildeo de Miguel de Cervantes William Shakespeare ou Homero natildeo satildeo mais Cervantes Shakespeare e Homero que estatildeo contando aquela histoacuteria eacute o autor da proacutepria adaptaccedilatildeo

Parece oacutebvio afirmar isso mas ainda existe uma preocupaccedilatildeo em denunciar as dissonacircncias entre a adaptaccedilatildeo e o original em detrimento de analisar os porquecircs daquelas dissonacircncias Os textos claacutessicos satildeo arquitextos tanto para as adaptaccedilotildees ou releituras quanto para outros textos que natildeo faccedilam referecircncia direta a esses claacutessicos Os temas da morte que gera vinganccedila por parte daquele que ainda vive dos erros do heroacutei que o leva ao amadurecimento do reconhecimento da bestializaccedilatildeo do ser humano do ponto fraco do heroacutei satildeo vistos inuacutemeras vezes na literatura mundial e estatildeo presentes em textos que remontam agrave Antiguidade Claacutessica Deveria ser Robinson Crusoeacute menos claacutessico que Odisseu Ou Robin Hood menos claacutessico que Paacuteris Afinal o tema da permanecircncia em lugares hostis e da descoberta do filho perdido natildeo foram criados por Defoe e Dumas respectivamente O proacuteprio Alexandre Dumas ao escrever seu As aventuras de Robin Hood estava recriando o personagem das gestas medievais que foram cristalizadas na escrita tempos depois de terem sido cantadas por seacuteculos Afinal

A reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a ldquomesma coisardquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em

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novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidade (AMORIM 2005 p 95)

40 Afinal o que eacute uma adaptaccedilatildeo

Yves Gambier logo no iniacutecio do seu artigo escreve que a adaptaccedilatildeo natildeo teve ainda algum estudo rigoroso ou sistemaacutetico sendo caracterizada sobretudo pela ldquofetichizaccedilatildeordquo do original ldquoA partir de quando podemos dizer que ela [a adaptaccedilatildeo] desfigura lsquotrairsquo o original Segundo quais normas ela se realizardquo (GAMBIER 1992 p 421 e 424)

Objetivamos pensar aqui a adaptaccedilatildeo como ldquolsquohistoacuterias recontadasrsquo reescrituras de obras claacutessicas das literaturas estrangeira e nacional direcionadas a um puacuteblico especiacutefico como o infanto-juvenilrdquo (AMORIM 2005 p 16) Satildeo ldquotextos novos construiacutedos sobre enredos antigosrdquo (FEIJOacute 2010 p 42) Essas adaptaccedilotildees natildeo deixam de ser traduccedilotildees e tambeacutem releituras uma vez que estatildeo recontando as histoacuterias originais a fim de tornaacute-las inteligiacuteveis para o sujeito destinataacuterio delas as crianccedilas e os jovens

Yves Gambier (1992 p 422) inclusive critica uma tentativa de diferenciar adaptaccedilatildeo de traduccedilatildeo mostrando que adaptaccedilatildeo pode ser concebida como a) praacutetica de ldquoadicionar eou omitir para que o texto de chegada (TC) tenha o lsquomesmo efeitorsquo que o texto de partida (TP) dando-se enfoque aos receptores (cultura e liacutengua de chegada)rdquo b) ldquofazer obra original a partir de uma outra composta no mesmo sistema de signos ou natildeordquo c) ldquotransformar um texto visando um certo leitorado por razotildees e segundo criteacuterios socioeconocircmicos declarados ou natildeordquo Desse modo inclusive ele ratifica o conceito de ldquotradaptaccedilatildeordquo de Michel Garneau que viria a eliminar as dicotomias entre a adaptaccedilatildeo e a traduccedilatildeo

O fato de o sujeito destinataacuterio delas serem crianccedilas e jovens natildeo implica que as adaptaccedilotildees sejam exclusivas a esse puacuteblico uma vez que adultos podem se tornar sujeitos receptores desses textos O contraacuterio tambeacutem acontece ldquoPode ateacute acontecer que a crianccedila entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o natildeo foi venha a preferir o segundo Tudo eacute misterioso nesse reino que o homem comeccedila a desconhecer desde que o comeccedila a abandonarrdquo (MEIRELES 2016 p 19)

As adaptaccedilotildees satildeo ldquoum tipo especial de traduccedilatildeo que envolve[m] seleccedilatildeo de conteuacutedo ndash pois resume[m] o enredo ndash e adequaccedilatildeo da linguagem para apresentar a obra escolhida aos jovens de um novo tempo e assim a tradiccedilatildeo

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se perpetua e se legitima por meio da renovaccedilatildeordquo (FEIJOacute 2010 p 44) Ela eacute a ldquoatualizaccedilatildeo de um discurso literaacuteriordquo (FEIJOacute 2010 p 63) pois ldquo[] as obras tradicionais satildeo reelaboradas ou reinterpretadas agrave luz das preocupaccedilotildees sociais morais e literaacuterias de cada momento histoacutericordquo (COLOMER 2017 p 25)

Em defesa das adaptaccedilotildees existe uma tendecircncia a se utilizar o conceito de interdiscurso3 arquitexto4 ou intertexto5 oriundos da Anaacutelise do Discurso no intuito de se dizer que assim como os diversos textos contemporacircneos utilizam os claacutessicos e natildeo satildeo criticados as adaptaccedilotildees assim tambeacutem natildeo o devem ser6 Contudo natildeo compartilhamos dessa ideia os processos interdiscursivos que perpassam os textos natildeo devem ser confundidos ou assemelhados a uma tentativa de tornar inteligiacutevel e acessiacutevel textos por parte de um puacuteblico leitor iniciante como eacute o caso da adaptaccedilatildeo

As adaptaccedilotildees geralmente (mas natildeo necessariamente) estatildeo atreladas agrave literatura infanto-juvenil Foi a partir do seacuteculo XVIII (quando uma noccedilatildeo de infacircncia comeccedila a surgir) que a literatura infanto-juvenil comeccedila a aparecer7 mas com esses fins exclusivamente exemplares Teresa Colomer (2017 p 19)

3 Interdiscurso eacute o conjunto de discursos que antecedem um texto e que o perpassam

4 O arquitexto eacute um texto claacutessico

5 Intertexto satildeo os textos que estatildeo presentes em outros textos seja por meio de citaccedilatildeo direta ou referecircncia sem necessariamente apontar a autoria original

6 ldquoEm favor da posiccedilatildeo de [Monteiro] Lobato e Nelly [Novaes Coelho] seria interessante ainda argumentar que se aceitamos o conceito de intertexto ou seja essa ideia de que a literatura se constroacutei como infinito mosaico de citaccedilotildees e influecircncias mais ou menos remotas a desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees deveria ser amenizada Afinal se eacute vaacutelida a premissa de que alguns lsquoclaacutessicosrsquo satildeo obras fundadoras ou canocircnicas que ao longo do tempo se tornam balizas significativas para um dado patrimocircnio cultural ateacute que ponto as demais obras produzidas natildeo podem ser compreendidas como contiacutenuas lsquoadaptaccedilotildeesrsquo literaacuterias dessas matrizesrdquo (CECCANTINI 2004 p 86)ouldquoSe aceitarmos a ideia de que os claacutessicos podem ser classificados como lsquotextos primeirosrsquo [esse seria o arquitexto] e dar origem indefinidamente a novos textos ndash sempre atualizados com o contexto histoacuterico em que satildeo produzidos e com puacuteblico a que se destinam ndash entatildeo poderemos pensar a adaptaccedilatildeo como um procedimento habitual e inerente agrave renovaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria como perpetuaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos cacircnonesrdquo (FEIJOacute 2010 p 43)

7 Teresa Colomer se refere aqui agrave literatura cujo sujeito destinataacuterio eram as crianccedilas e jovens Podemos entender melhor essa ideia se analisarmos as trecircs categorias de livros infantis natildeo-intencionais que Ceciacutelia Meireles (2016 p 52) distingue em 1951 1) a redaccedilatildeo escrita das tradiccedilotildees orais (como Perrault e Grimm) 2) os livros escritos para uma determinada crianccedila que depois passaram para uso geral (como La Fontaine) 3) livros natildeo escritos para crianccedilas que vieram a cair em suas matildeos e dos quais se fizeram adaptaccedilotildees visando tornaacute-los mais compreensiacuteveis ou adequados ao puacuteblico infantil

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afirma que por muito tempo a literatura voltada para crianccedilas e adolescentes focou na exemplaridade e no didatismo Natildeo que os textos antigos como Homero natildeo trouxessem coacutedigos de conduta a serem seguidos (ateacute porque esses textos eram utilizados na formaccedilatildeo dos gregos poliacuteades) mas eles natildeo foram escritos com tal propoacutesito (MEIRELES 2016 p 43)

Colomer (2017 p 20) defende que a literatura infanto-juvenil estaacute aleacutem disso ela vai ldquo1) Iniciar o acesso ao imaginaacuterio compartilhado por uma determinada sociedade 2) Desenvolver o domiacutenio da linguagem atraveacutes das formas narrativas poeacuteticas e dramaacuteticas do discurso literaacuterio 3) Oferecer uma representaccedilatildeo articulada do mundo que sirva como instrumento de socializaccedilatildeo das novas geraccedilotildeesrdquo A literatura infantil natildeo serve soacute para ensinar exemplos mas para tornar a crianccedila um leitor literaacuterio (COLOMER 2017 p 31)

Para o Ensino da Histoacuteria a primeira e a terceira funccedilatildeo satildeo essenciais para que consideremos o uso dessa literatura na sala de aula As primeiras adaptaccedilotildees inclusive foram feitas por professores (FEIJOacute 2010 p 61) Daiacute a importacircncia da atividade pedagoacutegica para o bom aproveitamento de uma adaptaccedilatildeo Para trabalhar com esse tipo de literatura eacute necessaacuterio ler o original a fim de tanto poder selecionar melhor as adaptaccedilotildees aos propoacutesitos da atividade pedagoacutegica proposta quanto trabalhar melhor com a adaptaccedilatildeo na sala de aula (FEIJOacute 2010 p 150)

No Brasil as adaptaccedilotildees se popularizaram nos anos 1970 junto com a literatura infanto-juvenil em geral (FEIJOacute 2010) Entretanto jaacute no iniacutecio do seacuteculo temos as primeiras adaptaccedilotildees literaacuterias aqui feitas por Monteiro Lobato A partir dele muitos outros autores renomados da literatura brasileira se dedicaram agrave adaptaccedilatildeo Clarice Lispector Rubem Braga Paulo Mendes Campos Ana Maria Machado Essa uacuteltima inclusive aleacutem de escrever adaptaccedilotildees refletiu acerca delas em seu Como e por que ler os claacutessicos universais desde cedo

Defendemos que a adaptaccedilatildeo natildeo pode ser tratada como literatura inferior uma vez que isso seria tratar a literatura infanto-juvenil do mesmo modo Aleacutem disso quantas pessoas natildeo comeccedilaram a ler os claacutessicos porque leram boas adaptaccedilotildees deles na infacircncia Joatildeo Luiacutes Ceccantini em 1997 escreveu para o jornal Proleitura um artigo sobre as adaptaccedilotildees de claacutessicos e afirmou que ldquoa cada adaptaccedilatildeo bem realizada de um claacutessico (nas vaacuterias linguagens) eacute grande o nuacutemero de leitores que se dirige aos textos originaisrdquo (CECCANTINI 2004 p 87) Fato este que atestei inuacutemeras vezes ao longo da minha experiecircncia como professora do Instituto de Histoacuteria da Universidade

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Federal do Rio de Janeiro quando alunos vinham me abordar para conversar sobre as epopeias homeacutericas e as trageacutedias e mostrando que o interesse deles era derivado de eles terem lido quando crianccedilas adaptaccedilotildees desses claacutessicos

A adaptaccedilatildeo manteacutem na memoacuteria o original o claacutessico mas tambeacutem gesta mudanccedilas que dialogam com a escrita contemporacircnea agrave adaptaccedilatildeo (AMORIM 2005 p 30)

As inuacutemeras adaptaccedilotildees realizadas em momentos histoacutericos distintos concretizam o postulado de que a literatura natildeo se apresenta como uma uacutenica resposta para as diferentes perguntas surgidas em cada eacutepoca porque tanto o leitor como suas inquietaccedilotildees se modificam O olhar direcionado para obra busca compreender o presente ou mesmo o passado mas a sua histoacuteria natildeo eacute a igual a dos leitores preteacuteritos logo as questotildees formuladas ao texto seratildeo outras Cabe ao adaptador sujeito histoacuterico do seu tempo compreender as indagaccedilotildees dos leitores infanto-juvenis e as possibilidades da obra ao ser adaptada de respondecirc-las (CARVALHO 2006 p 18)

Desse modo eacute mais profiacutecuo analisar as adaptaccedilotildees como textos que dialogam com seus proacuteprios contextos de produccedilatildeo natildeo com os contextos de seus originais Afinal o autor das adaptaccedilotildees eacute um sujeito receptor a posteriori que natildeo estaacute inserido no contexto dos sujeitos destinataacuterios e receptores da eacutepoca em que o claacutessico foi composto (o que natildeo impede de procurar saber acerca desse contexto devendo inclusive fazecirc-lo para que sua adaptaccedilatildeo seja de boa qualidade)

50 Colocando em praacutetica ndash algumas breves sugestotildees

Por que trabalhar com a Antiguidade Claacutessica para se falar de etnicidade Ana Maria Machado ao falar sobre a literatura claacutessica afirma que

Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade a cultura grega antiga sempre despertou o entusiasmo de leitores apaixonados em diferentes eacutepocas histoacutericas Satildeo uma fonte inesgotaacutevel onde sempre podemos beber Para muita gente eles satildeo os mais fascinantes de todos os claacutessicos Provavelmente satildeo os que mais marcaram toda a cultura ocidental (MACHADO 2009 p 26)

Contudo um outro aspecto preocupa o professor o da obrigatoriedade da leitura como algo prejudicial ao interesse do aluno Maacuterio Feijoacute (2010 p 14) e Ana Maria Machado (2009 p 13) ao escreverem sobre a questatildeo da obrigatoriedade da leitura na sala de aula defendem cada um a seu modo

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que ningueacutem deve ser obrigado a ler algo de que natildeo goste uma vez que isso pode ndash em vez de gerar o efeito pretendido que eacute fazer a crianccedila ou o jovem tomar gosto pela leitura ndash gerar o efeito inverso e fazer com que eles tenham ojeriza agrave leitura Teresa Colomer defende essa obrigatoriedade (COLOMER p 92 e 93)

[] na atualidade aumentam as vozes que defendem a responsabilidade social de oferecer aos meninos e agraves meninas o acesso a uma tradiccedilatildeo cultural compartilhada pela coletividade Isso requer a criaccedilatildeo de um horizonte de leituras ldquoclaacutessicasrdquo entendidas como um conjunto formado pelo folclore os tiacutetulos mais valorizados da literatura infantil e o iniacutecio da leitura das grandes obras universais (COLOMER 2017 p 127)

Contudo ela tambeacutem defende que essa literatura natildeo pode ser maccedilante levando em consideraccedilatildeo sempre os interesses dos alunos uma vez que eles natildeo satildeo meros receptores dos conhecimentos Para ela ldquoos melhores livros satildeo aqueles que estabelecem um compromisso entre o que as crianccedilas podem entender sozinhas e o que podem compreender por meio de um esforccedilo da imaginaccedilatildeo que seja suficientemente compensadordquo (COLOMER 2017 p 37)

Eacute fato que os poemas de Homero possuem uma linguagem a qual a crianccedila e o jovem do seacuteculo XXI podem natildeo conseguir acessar sem mediaccedilatildeo Ana Maria Machado (2009 p 11 e 12) coloca que

Eacute claro que hoje em dia o ensino eacute diferente e o mundo eacute outro Natildeo se concebe que as crianccedilas sejam postas a estudar latim e grego ou a ler pesadas versotildees completas e originais de livros antigos ndash como jaacute foi de praxe em vaacuterias famiacutelias de algumas sociedades haacute um seacuteculo Apenas natildeo precisamos cair no extremo oposto Ou seja o de achar que qualquer leitura de claacutessico pelos jovens perdeu o sentido e portanto deve ser abandonada nestes tempos de primazia da imagem e domiacutenio das diferentes telas sobre a palavra impressa em papel

Assim a mediaccedilatildeo entre os educandos e esses claacutessicos pode ser feita tanto pelos professores quanto pelas proacuteprias adaptaccedilotildees Sugerimos aqui um trabalho que conjugue ambos a adaptaccedilatildeo caminhando junto com o claacutessico A adaptaccedilatildeo sozinha natildeo daacute a dimensatildeo do claacutessico eacute preciso que noacutes mediadores conheccedilamos bem esse claacutessico para que consigamos ter um bom aproveitamento das adaptaccedilotildees

As boas adaptaccedilotildees satildeo aquelas que conseguem manter o mesmo fio condutor da obra original e traga as mesmas imagens marcantes da mesma Uma adaptaccedilatildeo da Odisseia sem o Ciclope por exemplo natildeo seria uma boa

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adaptaccedilatildeo uma vez que essa imagem eacute muito marcante ateacute mesmo dentro da proacutepria obra como jaacute vimos Sendo assim propomos aqui dois modos de trabalho com adaptaccedilotildees Contudo em ambos os casos cremos ser necessaacuterio trazer um pouco do original para que o aluno tenha dimensatildeo do claacutessico e como ele foi composto

Esse trabalho natildeo deve estar inserido no planejamento como se fosse uma mera curiosidade acerca do mundo grego antigo ele deve dialogar com o conteuacutedo programaacutetico Isso auxilia o professor nas estrateacutegias de ensino desse conteuacutedo bem como faz com que ele aproveite o tempo em sala de aula Muito se fala da questatildeo da ldquofata de tempordquo para se fazer atividades luacutedicas e diferentes com os alunos mas pouco se fala da inaptidatildeo do professor em conseguir associar essas atividades luacutedicas ao proacuteprio ensino do ldquoconteuacutedordquo em si

De fato satildeo muitos conteuacutedos para administrar em pouco tempo por isso essas atividades que a priori seriam tidas como ldquoextraclasserdquo devem ser incluiacutedas como metodologia mesmo de ensino deles Um documento (seja ele texto escrito imagem filme) natildeo deve ser utilizado para ilustrar um conteuacutedo mas para auxiliar na sua compreensatildeo Eacute possiacutevel tambeacutem utilizar esses documentos para avaliaccedilotildees fazendo com que o aluno relacione o conteuacutedo com o proacuteprio documento e estimulando-o a pensar acerca da sua proacutepria realidade a partir daquele documento A avaliaccedilatildeo resultante do trabalho com adaptaccedilatildeo natildeo deve ser o preenchimento de uma ficha de leitura ou um questionaacuterio pois isso acaba se tornando uma verificaccedilatildeo nos moldes que jaacute discutimos

Sendo assim escolhemos duas adaptaccedilotildees para trabalhar de dois modos distintos a Odisseia adaptada por Marcos Maffei e ilustrada por Eloar Guazzelli Filho para a Coleccedilatildeo Recontar (Escala Educacional 2004) e Odisseia de Homero (Segundo Joatildeo Viacutetor) de Gustavo Piqueira Em ambos os casos pensamos atividades para dois tempos de aula Existem duas opccedilotildees pedir para os alunos lerem a adaptaccedilatildeo previamente ou lecirc-la junto com eles em sala de aula apontando durante a leitura o conteuacutedo programaacutetico de Greacutecia a ser trabalhado

51 Odisseia de Marcos Maffei e Eloar Guazzelli Filho

Essa coleccedilatildeo segundo os editores foi feita para levar aos pequenos histoacuterias atemporais que continuam a divertir e ensinar O caraacuteter pedagoacutegico da literatura infantil ainda aparece aqui como norte A Odisseia especificamente eacute dividida em vinte e quatro capiacutetulos bem como a obra original eacute dividida em vinte e quatro cantos

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O intuito do adaptador eacute resumir os principais acontecimentos da Odisseia sem contudo desrespeitar a divisatildeo em cantos feita pelos saacutebios alexandrinos Sendo assim a histoacuteria segue a narrativa homeacuterica poreacutem de maneira adaptada agrave linguagem e agrave dinacircmica da narraccedilatildeo em prosa

O ideal eacute que o professor leia junto com os alunos a obra e selecione um dos capiacutetulos para trazer o canto original e lecirc-lo tambeacutem com os alunos incentivando-os a compreender as diferenccedilas entre uma narrativa e outra tanto em relaccedilatildeo ao gecircnero quanto em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees escolhidas para a contagem da histoacuteria Nesse momento eacute possiacutevel introduzir aos alunos os conteuacutedos relativos agrave literatura grega bem como o proacuteprio contexto no qual as epopeias homeacutericas estatildeo ancoradas (como o proacuteprio processo de formaccedilatildeo de apoikiacuteai ndash ldquocolocircniasrdquo ndash gregas ao longo do Mediterracircneo) O professor pode mostrar como cada povo que Odisseu encontra eacute marcado pela sua presenccedila

Propomos aqui eleger o capiacutetulo 9 referente ao canto IX o qual relata o encontro de Odisseu com o Ciclope Eacute um dos capiacutetulos mais extensos do livro e que traz a seguinte caracterizaccedilatildeo do Ciclope

Fomos entatildeo parar noutra ilha onde havia aacutegua e muitas cabras Dali se via uma terra que parecia habitada e no dia seguinte decidi ir ateacute laacute soacute com meu navio Ancoramos onde havia uma grande caverna Escolhi doze de meus homens e fomos ateacute ela levando odres de vinho para ter algo a oferecer Na enorme caverna havia cestos cheios de queijos e cercados com filhotes de ovelhas e cabras mas seu dono levara seus rebanhos para pastar Ele natildeo demorou a chegar com um feixe de lenha tatildeo grande que fez um estrondo ao ser largado no chatildeo e corremos a nos esconder pois era um Ciclope um gigante enorme de um olho soacute Ele fechou a caverna com uma pedra imensa e muito pesada e ao acender o fogo nos viu e perguntou com sua voz tremenda quem eacuteramos (MAFFEI 2004 p 20)

Aqui o exagero (no corpo na voz nos atos do Ciclope) eacute reiterado vaacuterias vezes a fim de mostrar a monstruosidade do personagem A imagem do pelṓrios eacute aqui evidente bem como nas ilustraccedilotildees que os mostram extremamente gigantes frente aos navios gregos O texto continua de modo a narrar como o Ciclope devora os homens de Odisseu reiterando a imagem de que ele natildeo eacute um ldquohomem comedor de patildeordquo Esses satildeo os signos de etnicidade e alteridade que se repetem na adaptaccedilatildeo

No texto de Homero (IX vv 176-301) outros elementos se destacam como a dicotomia entre o cru e o cozido (com a presenccedila da fumaccedila dos fornos) o desconhecimento das leis a convivecircncia em comunidade e a ausecircncia

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de amizade ritual Todos esses elementos tecircm a ver com a construccedilatildeo da dicotomia entre o grego e seus Outros e mais tarde entre o grego e o baacuterbaro

A terra dos ciclopes que perto viviam observaacutevamossua fumaccedila e o som de ovelhas e cabrasQuando o sol mergulhou e vieram as trevasentatildeo repousamos na rebentaccedilatildeo do marQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosentatildeo eu realizando assembleia disse entre eleslsquoOs outros voacutes aqui ficai meus leais companheirosmas eu com minha nau e meus companheirosvou verificar esses homens de que tipo eles satildeose desmedidos selvagens e natildeo civilizadosou hospitaleiros com mente que teme o deusrsquoDito isso embarquei e pedi aos companheirosque tambeacutem embarcassem e os cabos soltassemLogo embarcaram e sentaram-se junto aos calccedilose alinhados golpeavam o mar cinzento com remosMas ao chegarmos a esse lugar que perto ficavalaacute vimos no extremo uma caverna junto ao maralta agrave sombra de loureiros Laacute grande rebanhoovelhas e cabras pernoitava em torno cercaalta se construiacutera com blocos de uma pedreiracom grandes pinheiros e carvalhos alta-copaLaacute pernoitava um varatildeo portentoso ele que o rebanhosozinho apascentava afastado aos outros natildeovisitava mas longe vivendo normas ignoravaDe fato era um assombro portentoso natildeo pareciaum varatildeo come-patildeo mas um pico matosodos altos montes que surge soacute longe dos outrosEntatildeo aos demais leais companheiros pedique laacute junto agrave nau ficassem e guardassem a naumas eu apoacutes escolher doze nobres companheirosfui Levava um odre de cabra com vinho escurodoce que me dera Maacuteron filho de Euantessacerdote de Apolo que zela por Ismarosporque junto com filho e esposa noacutes o protegemosvenerando-o pois habitava bosque arvorejadode Febo Apolo Deu-me presentes radiantesde ouro bem trabalhado sete pesos me deume deu acircnfora toda de prata e depoisvinho em doze acircnforas dupla-alccedila ao todo verteudoce puro bebida divina A esse ningueacutemconhecia nem escravo nem criado em sua casasoacute ele proacuteprio a cara esposa e uma soacute governantaQuando algueacutem bebesse esse vinho tinto doce como melenchia um caacutelice e doze medidas de aacutegua

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vertia um doce aroma da acircnfora emanavaprodigioso entatildeo impossiacutevel seria abster-seEu trazia um grande odre cheio dele e tambeacutem acepipesno alforje logo meu acircnimo orgulhoso pensouque encontraria varatildeo vestido com grande bravuraselvagem natildeo conhecendo bem tradiccedilotildees nem normasCeacuteleres nos dirigimos ao antro e dentro natildeoo achamos mas apascentava no pasto gordos rebanhosApoacutes chegar ao antro a tudo contemplamoscestos abarrotados de queijo cercados repletosde ovelhas e cabritos separados por categoriasencerrados agrave parte os mais velhos agrave parte medianosagrave parte filhotes Todas as vasilhas transbordavam de soroe baldes e tigelas fabricadas com as quais ordenhavaLaacute os companheiros suplicaram-me para primeiropegar algum queijo e voltar e depoisligeiro ateacute a nau veloz cabritos e ovelhasdos cercados arrastar e navegar pela aacutegua salgadamas natildeo obedeci (e teria sido muito mais vantajoso)para poder vecirc-lo esperando que me desse regalosPois apoacutes surgir natildeo seria amaacutevel com os companheirosTendo laacute aceso o fogo sacrificamos e tambeacutem noacutescomemos parte do queijo e dentro o esperamossentados ateacute voltar com ovelhas trazia ponderoso pesode madeira seca que seria usado para seu jantarLanccedilando-o fora do antro produziu um estrondonoacutes com medo recuamos ateacute o fundo do antroEle agrave ampla gruta tocou o gordo rebanhotantas quantas ordenhava e os machos deixou foracarneiros e bodes no exterior atraacutes da alta cercaEntatildeo ergueu e pocircs na entrada grande rochaponderosa a ela nem vinte e dois carrosoacutetimos de quatro rodas solevariam do solotal rochedo alcantilado colocou na entradaSentado ordenhava ovelhas e cabras balentestudo com adequaccedilatildeo e pocircs um filhote sob cada umaLogo metade do branco leite separou para coalhare pocircs os coalhos apoacutes juntaacute-los em cestos tranccediladosmetade laacute colocou em barris para que estivessedisponiacutevel para ele beber em seu jantarMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zeloentatildeo ao acender o fogo viu-nos e perguntoulsquoEstranhos quem sois Donde navegastes por fluentes viasAcaso devido a um assunto ou levianos vagaistal qual piratas ao mar Esses vagamarriscando suas vidas levando dano a gentes alheiasrsquoAssim falou e nosso coraccedilatildeo rachou-se

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atemorizados com a voz pesada e o portento em siMesmo assim com palavras respondendo disse-lhelsquoNoacutes aqueus vindos de Troia vagamos longe do cursodevido a todos os ventos pelo grande abismo de mare ansiando ir para casa por outra rota outros percursosviemos assim talvez Zeus quis armar um planoTropa de Agamecircmnon filho de Atreu proclamamos serdesse cuja fama eacute agora a maior sob o paacuteramodevastou grande cidade e tropas dilaceroumuitas Noacutes poreacutem chegando a esses teus joelhosnos dirigimos esperando nos hospedares bem ou mesmodares um regalo o que eacute costume entre hoacutespedesMas respeita os deuses poderoso somos teus suplicantesZeus eacute o vingador de suplicantes e hoacutespedeso dos-hoacutespedes que respeitaacuteveis hoacutespedes acompanharsquoAssim falei e logo respondeu com impiedoso acircnimolsquoEacutes tolo estrangeiro ou vieste de longetu que me pedes aos deuses temer ou evitarOs ciclopes natildeo se preocupam com Zeus porta-eacutegidenem com deuses ditosos pois somos bem mais poderososnem eu para evitar a braveza de Zeus a ti poupariaou a teus companheiros se o acircnimo natildeo me pedisseMas dize-me onde aportaste a nau engenhosaalgures no extremo ou perto preciso saberrsquoAssim falou testando-me e eu bem arguto percebirespondendo disse-lhe com palavras ardilosaslsquoMinha nau sucumbiu a Posecircidon treme-solocontra rochedo lanccedilou-a nos limites de vossa terralevando-a rumo ao cabo vento trouxe-a do marMas eu com esses aiacute escapei do abrupto fimrsquoAssim falei e natildeo me respondeu com impiedoso acircnimomas de suacutebito sobre os companheiros estendeu as matildeose tendo dois agarrado como cachorrinhos ao chatildeoarrojou-os miolos escorriam no chatildeo e molhavam o soloApoacutes cortaacute-los em pedaccedilos aprontou o jantarcomia-os como leatildeo da montanha e nada deixouviacutesceras carnes e ossos cheios de tutanoNoacutes aos prantos erguemos os braccedilos a Zeusvendo o feito terriacutevel e a impotecircncia deteve o acircnimoMas quando o ciclope encheu o grande estocircmagoapoacutes comer carne humana e depois beber leite purodeitou-se no antro esticando-se entre o rebanhoConsiderei no eneacutergico acircnimo dele chegarmais perto puxar a espada afiada da coxae golpear no peito onde o diafragma segura o fiacutegadoapoacutes alcanccedilar com a matildeo mas outro acircnimo impediuLaacute mesmo tambeacutem noacutes nos finariacuteamos em abrupto fimda alta entrada natildeo teriacuteamos conseguido no braccedilo

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afastar a ponderosa pedra que laacute depositaraAssim gemendo aguardamos a divina AuroraQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosele acendeu o fogo e ordenhou esplecircndido rebanhotudo com adequaccedilatildeo e sob cada fecircmea deixou o filhoteMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zelode novo ele agarrou dois de noacutes e o almoccedilo preparou8

O interessante eacute aleacutem de destacar esses elementos poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais da Greacutecia Antiga fazer o aluno pensar instigando-o a reconhecer os elementos de diferenciaccedilatildeo entre o grego e o Outro dentro das duas narrativas (a adaptaccedilatildeo e o canto IX) Aleacutem disso podemos incitaacute-lo a uma discussatildeo atual o que diferencia o brasileiro do estrangeiro hoje O que caracteriza a nossa cultura Qual tem sido a nossa postura em relaccedilatildeo aos estrangeiros dentro do nosso paiacutes Nossas fronteiras eacutetnicas satildeo as mesmas dos gregos Por quecirc

52 A Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor)

O livro de Gustavo Piqueira talvez seja uma das recontagens da Odisseia menos convencionais com ilustraccedilotildees dele mesmo traz a histoacuteria da Odisseia contada pelos olhos de Joatildeo Viacutetor aluno de recuperaccedilatildeo do 6ordm ano do Ensino Fundamental II (e pela construccedilatildeo do personagem ao longo da narrativa de famiacutelia conservadora e de classe meacutedia) que precisa ler esse eacutepico para entregar um trabalho final e conseguir finalmente passar de ano O problema eacute que em vez de retirar na biblioteca da escola uma adaptaccedilatildeo (como fez seu amigo Fumaccedila) ele vai com o claacutessico original para casa

Ao longo de todo o livro Joatildeo Viacutetor se depara com situaccedilotildees completamente estranhas para ele que rendem comentaacuterios jocosos de sua parte Em caixa normal temos a recontagem feita pelo aluno mas em negrito e itaacutelico temos os comentaacuterios dele aos episoacutedios que ele narra o que nos possibilita conhecer a personalidade dele e o mundo em que ele vive Logo na capa do trabalho (PIQUEIRA 2013 p 7) o aluno se vecirc obrigado a colocar ldquoResumo e interpretaccedilatildeo do livro Odisseia escrito por Homero da Silvardquo visto que ldquona ediccedilatildeo que peguei na biblioteca natildeo havia sobrenome do autor apenas o primeiro nome Homero Como todo mundo tem sobrenome coloquei um bem comumrdquo

Logo na narrativa do Canto I vemos uma situaccedilatildeo que inspira reflexotildees acerca do etnocentrismo e da alteridade Joatildeo Viacutetor natildeo reconhece o politeiacutesmo

8 Traduccedilatildeo de Christian Werner

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grego questionando Homero Afinal natildeo existe ldquoUm deus chamado Poseidonrdquo porque ldquoDeus soacute tem um e ele se chama Deus mesmo E seu filho natildeo eacute nenhum lsquociclope Polifemorsquo mas Jesus Que ateacute o Fumaccedila sabe foi crucificado natildeo cegadordquo (PIQUEIRA 2013 p 16) Adiante (PIQUEIRA 2013 p 17) ele reafirma que ldquopelo visto neste livro tem um punhado de deuses entatildeo natildeo vou mais discuti ok Se Homero da Silva natildeo sabe que soacute existe um Deus problema dele Eacute tarde da noite tenho o livro inteiro para ler e preciso passar de anordquo

Pode parecer a priori que eacute apenas uma crianccedila que desconhece o politeiacutesmo e se vecirc estranhando a religiatildeo do Outro no entanto a postura de Joatildeo Viacutetor eacute combativa reafirmando suas crenccedilas em detrimento da tentativa de contemplaccedilatildeo e compreensatildeo do Outro A ideia de que existe uma religiatildeo uacutenica e verdadeira denota como o etnocentrismo estaacute entranhado na visatildeo de Joatildeo Viacutetor (mesmo que ele natildeo tenha consciecircncia de que estaacute sendo etnocecircntrico) Eacute esse tipo de visatildeo preconceituosa (no sentido mesmo do termo de preacute-julgar) que deve ser questionada em sala de aula e levada agrave reflexatildeo

No entanto ao continuar a descriccedilatildeo do Canto I ele se depara com Athenaacute se transformando em Mentes um homem e fica confuso ldquoProfessora estou na duacutevida se chamo Atena de lsquoorsquo ou lsquoarsquo agora que ela mudou de sexo O que devo fazer Hoje em dia eacute um assunto tatildeo delicado natildeo quero soar preconceituosordquo (PIQUEIRA 2013 p 17) As questotildees de gecircnero satildeo mais palpaacuteveis para Joatildeo Viacutetor do que as questotildees de etnicidade uma vez que ele tem a sensibilidade de querer saber como ele deveria identificar Athenaacute que na sua visatildeo seria um transgecircnero O adaptador aqui mostra que os debates acerca desse tipo de intoleracircncia satildeo mais frequentes na sociedade

O Canto IX eacute um dos mais extensos (satildeo 6 paacuteginas escritas e mais 3 de ilustraccedilotildees) Eacute interessante perceber como a construccedilatildeo da cena do Ciacuteclope se daacute de modo diverso em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees precedentes e o proacuteprio texto homeacuterico No livro Joatildeo Viacutetor vecirc Odisseu como um malfeitor

Ulisses revela a Alciacutenoo sua identidade e comeccedila a contar tudo que lhe aconteceu desde que deixara Troia Primeiro deu uma passada em Iacutesmaro onde saqueou cidades e chacinou homens aleacutem de tomar mulheres e tesouros que dividiu com os outros para que ningueacutem reclamasse Ou seja bandido Natildeo haacute outra palavra para definir Ulisses a natildeo ser essa professora Denise Ladratildeo assassino e sequestrador Bandido E o pior conta seus crimes tranquilatildeo ldquoChacinei homens levei suas mulheresrdquo Como pode professora Eacute muita impunidade natildeo Muita Meus pais vivem comentando sobre isso aqui em casa Dizem que

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os ricos cometem as maiores barbaridades e sempre se safam Que moramos no paiacutes do colarinho branco Pelo visto Ulisses tambeacutem tinha costas quentes Do contraacuterio natildeo arriscaria tagarelar por aiacute suas falcatruas (PIQUEIRA 2013 p 62)

O interessante perceber eacute que aqui diferentemente da Odisseia original e da adaptaccedilatildeo que trabalhamos anteriormente natildeo haacute uma tentativa de reforccedilar as fronteiras eacutetnicas gregas Joatildeo Viacutetor critica o ldquoGreek way of liferdquo pondo em xeque tanto a ideia de civilizaccedilatildeo dentro do poema quanto a imagem do heroacutei na Greacutecia Antiga Como assim ser um heroacutei implica em praticar atitudes que hoje em dia seriam condenaacuteveis Daiacute a importacircncia de retornar a esse original a fim de que os alunos compreendam o porquecirc dessa mudanccedila

Os ciclopes satildeo descritos como ldquohorriacuteveis gigantes de um olho soacuterdquo (PIQUEIRA 2013 p 63) o Ciclope como um ldquomedonho giganterdquo (PIQUEIRA 2013 p 67) reforccedilando a ideia da monstruosidade deles Contudo Joatildeo Viacutetor ao comentar a atitude do Ciclope de devorar amigos de Odisseu escreve ldquoQuem mandou entrar de bico na casa dos outros Daacute nissordquo (PIQUEIRA 2013 p 67) As atitudes de Odisseu e de seus companheiros satildeo bastantes questionadas mostrando o estranhamento do menino em relaccedilatildeo agrave cultura helecircnica

Nessa adaptaccedilatildeo podemos chamar a atenccedilatildeo para a proacutepria construccedilatildeo de civilidade dentro de ambas sociedades a helecircnica arcaica (em Homero) e a brasileira do seacuteculo XXI (na adaptaccedilatildeo a realidade de Joatildeo Viacutetor) mostrando como mudaram as nossas noccedilotildees de civilidade barbaridade e fronteiras eacutetnicas ao longo do tempo histoacuterico Em vez de uma repulsa ao Ciclope aqui vemos uma empatia pautada pelo desconhecimento de Joatildeo Viacutetor das fronteiras eacutetnicas helecircnicas e do ideal de civilizaccedilatildeo construiacutedo por eles com a legitimaccedilatildeo dessas fronteiras Aleacutem disso ela eacute interessante para discutir a nossa proacutepria relaccedilatildeo de alteridade em relaccedilatildeo aos gregos a fim de desconstruir o etnocentrismo presente em nossas concepccedilotildees contemporacircneas

60 Consideraccedilotildees finais

Em virtude do apresentado pudemos concluir que eacute imprescindiacutevel abordar conceitos no Ensino da Histoacuteria a fim de que o aluno possa melhor compreender e modificar de maneira mais efetiva o seu cotidiano Por isso defendemos a abordagem do conceito de etnicidade na sala de aula mas sem antes reforccedilar que o professor deve ele mesmo compreender bem o conceito antes de trabalhar com ele

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Do mesmo modo o professor deve conhecer bem os textos claacutessicos com os quais ele quer trabalhar mesmo que ele vaacute utilizar adaptaccedilotildees Aleacutem disso vemos como eacute importante a leitura como Ana Maria Machado (2009 p 13) colocou ler eacute uma forma de resistecircncia sendo a utilizaccedilatildeo de textos imprescindiacutevel para a formaccedilatildeo natildeo somente de um leitor literaacuterio mas de uma pessoa criacutetica e consciente

[] a forccedila educativa da literatura reside precisamente no que facilita formas e materiais para essa ampliaccedilatildeo de possibilidades permite estabelecer uma visatildeo distinta sobre o mundo pocircr-se no lugar do outro e ser capaz de adotar uma visatildeo contraacuteria distanciar-se das palavras usuais ou da realidade em que algueacutem estaacute imerso e vecirc-lo como se o contemplasse pela primeira vez (COLOMER 2017 p 21)

A boa adaptaccedilatildeo nesse sentido ajuda a perpetuar na memoacuteria o claacutessico ldquoComo entatildeo se daacute a real permanecircncia da obra literaacuteria Ora pela conquista de novos leitores A adaptaccedilatildeo constitui uma estrateacutegia para apresentar a uma nova geraccedilatildeo de leitores um discurso literaacuterio legitimado pela instituiccedilatildeo escolarrdquo (FEIJOacute 2010 p 43) Assim como Odisseu o aluno ao ler viaja por mundos Outros que o faz refletir acerca de sua proacutepria realidade ao conhecer outras realidades

Utilizar a Histoacuteria Antiga para abordar um conceito tatildeo caro a noacutes cotidianamente que vemos nos noticiaacuterios as empreitadas dos refugiados para fugirem das guerras e serem recebidos de maneira deploraacutevel em diversos paiacuteses as tensotildees crescentes entre diversas etnias ao redor do mundo e a nossa proacutepria falta de sensibilidade agraves vezes em compreender o Outro em sua cultura e etnicidade mostra como cada vez mais eacute necessaacuterio retornar ao claacutessico para pensarmos o contemporacircneo A Histoacuteria Antiga ainda natildeo estaacute ultrapassada

Abstract We propose to think how to enter the ethnicity and ethnocentrism theme in classrooms by using adaptations of the Antiquity classics To accomplish this aim it is necessary to establish some criteria to use this kind of literature which still generates debates on its profitability as well as to define ethnicity We will start with the following concepts ethnicity (as Fredrik Barth pointed it) and identity-otherness (as Marc Augeacute does) in order to propose some activities with selected adaptationsKeywords History Teaching literary adaptations ethnicity

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Referecircncias

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Grupos eacutetnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth Satildeo Paulo Ed UNESP 1998

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COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeO AS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacute-TICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA

Alexandre Santos de Moraes1

Resumo O objetivo desse artigo eacute observar as tensotildees entre Aquiles e Agamecircmnon atraveacutes do binocircmio conceitual competiccedilatildeocooperaccedilatildeo Busca-se entender natildeo apenas as variaacuteveis dessa oposiccedilatildeo mas tambeacutem como as ideias de competiccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo que se instauram ao longo da querela sugere um modo de ser eacutetico-poliacutetico que distingue os heroacuteisPalavras-chave Competiccedilatildeo Cooperaccedilatildeo Aquiles Agamecircmnon Iliacuteada

Do ponto de vista conceitual cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo satildeo duas ideias tatildeo abrangentes que escapam ao monopoacutelio das aacutereas do saber institucionalizadas Natildeo haacute nenhuma poliacutecia acadecircmica que resguarde para si e para seus escolhidos a possibilidade de uso desse binocircmio que parece anunciar natildeo apenas um modelo de entendimento de dinacircmicas sociais mas verdadeiramente um modo de ser eacutetico-poliacutetico no mundo

Veja por exemplo que do ponto de vista comercial estimula-se mecanismos de competiccedilatildeo entre os funcionaacuterios para impulsionar as vendas ao mesmo tempo em que se defende disposiccedilotildees cooperativas que estimulem a coesatildeo do grupo para que haja o que vender (MACEDO 1961 p 105) Tal vieacutes no marco da Nova Sociologia Econocircmica identifica a dificuldade de correlacionar cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo entre empresas e o papel do Estado como seu guardiatildeo e criador2 O tema eacute complexo e natildeo se dispotildee na visatildeo de muitos analistas agrave polarizaccedilatildeo que defende os males e benefiacutecios de uma e outra como dado essencial bem como o valor estrutural que cada uma das

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) E-mail asmoraesgmailcom

2 Veja por exemplo o debate presente em FLIGSTEIN Neil Markets as politics political-cultural approach to market institutions In American Sociological Review v 61 1996

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disposiccedilotildees parece ensejar em um ambiente especiacutefico Marx por exemplo identificava que a cooperaccedilatildeo era instrumento fundamental para organizar o trabalho no mundo capitalista (MARX 1980 p 347) diferentemente do que pensam muitos defensores do (neo)liberalismo para os quais a concorrecircncia (identificada com a competiccedilatildeo) eacute beneacutefica a todos em um ambiente de mercado autorregulado regido por entes privados que supostamente conspiram ao lado de seus lucros pessoais para uma situaccedilatildeo de bem-estar social3

Para aleacutem do pensamento econocircmico as anaacutelises acerca de competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo frequentemente debatidas no marco dos princiacutepios organizativos de grupos e agrupamentos estimulando pesquisas em diversas aacutereas das Ciecircncias Humanas e Sociais Some-se a elas as pesquisas sobre Evoluccedilatildeo que avaliam as habilidades de indiviacuteduos de diversas espeacutecies em especial dos hominiacutedeos e de primatas natildeo-humanos4 Em muitos casos haacute uma evidente ecircnfase no princiacutepio cooperativo (ou altruiacutesta ou de solidariedade muacutetua) que atuaria no fundamento de nossa proacutepria existecircncia

Obviamente diante da variedade vertiginosa de possibilidades de entendimento desse binocircmio eacute preciso fazer algumas escolhas Por princiacutepio ao longo desse artigo consideraremos que 1) Competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo disposiccedilotildees atitudinais que envolvem sujeitos ou grupos em funccedilatildeo de objetivos especiacuteficos 2) Atitudes cooperativas e competitivas natildeo representam aspectos gerais do modus vivendi especiacutefico de uma ou outra formaccedilatildeo social ou seja natildeo haacute comunidades que sejam exclusivamente competitivas eou cooperativas 3) disposiccedilotildees cooperativas eou competitivas satildeo por princiacutepio situacionais ainda que haja mecanismos sociais que ensejem uma ou outra postura em determinadas situaccedilotildees 4) Ainda que haja discordacircncias identificamos a tendecircncia de associar a uma disposiccedilatildeo cooperativa a prevalecircncia do bem comum sobre o individual e na competitiva a valorizaccedilatildeo do individual em detrimento do bem comum e por fim 5) em determinado evento ou acontecimento grupos e sujeitos natildeo apresentam necessariamente um padratildeo de disposiccedilotildees coeso podendo variar em funccedilatildeo das circunstacircncias e objetivos almejados

O caso de um conflito armado envolvendo diferentes grupos eacute bastante elucidativo Em uma guerra por princiacutepio haacute pelo menos duas partes

3 Eacute possiacutevel ateacute mesmo identificar a defesa da competiccedilatildeo como um discurso de competecircncia fundado em caracteriacutesticas psicoloacutegicas O debate eacute longo e repleto de variaacuteveis (BENDASSOLLI 2001 p 65-76 NEVES 2009)

4 Nos uacuteltimos anos tem se delineado um especial interesse pela loacutegica cooperativa explorada em diversos trabalhos A tiacutetulo de referecircncia sobre esse debate vale consultar AXELROD 1997 HAMMERSTEIN 2003 MARSHALL 2010 PATTON 2009 WILLER 2009

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que competem entre si para alcanccedilar um objetivo Na ausecircncia de acordos diplomaacuteticos o sucesso de uma parte depende necessariamente do fracasso da outra parte Tomando isoladamente cada uma das partes haacute tambeacutem o pressuposto de que eacute necessaacuterio existir uma razoaacutevel coesatildeo entre seus membros para que o objetivo final qual seja a superaccedilatildeo do adversaacuterio seja alcanccedilado de tal modo que em um ambiente de batalha os integrantes de um mesmo exeacutercito precisam cooperar entre si Essa loacutegica geral contudo natildeo resiste necessariamente a situaccedilotildees que provocam disputas internas produzindo ruiacutedos entre os agentes quando haacute disposiccedilotildees contraacuterias que fazem exceder nas relaccedilotildees imediatas o fim uacuteltimo por que conspiram em suas accedilotildees conjuntas

Com base nesse exemplo quando fazemos a remissatildeo agrave experiecircncia dos povos antigos a lembranccedila imediata confunde-se tambeacutem com a narrativa mais recuada de que temos notiacutecia e que se desvela diante de noacutes como um excelente campo de experimentaccedilatildeo Na Iliacuteada a dissenccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon natildeo eacute apenas o substrato discursivo que assegura a coerecircncia e a loacutegica interna do poema mas tambeacutem a proacutepria manifestaccedilatildeo do nuacutecleo narrativo do eacutepico que conduz com os auspiacutecios dos deuses os eventos ulteriores na Guerra de Troacuteia Mais do que indicar os efeitos da dissensatildeo suas consequecircncias e caracteriacutesticas eacute desejaacutevel analisar o binocircmio competiccedilatildeocooperaccedilatildeo no marco de uma separaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica que o antecede e que parece situar os heroacuteis em duas formas distintas de ser no mundo Tais formas representam um topos que enseja por forccedila da incompletude dos proacuteprios sujeitos uma espeacutecie de ldquogatilhordquo o possiacutevel estopim para o conflito interno sempre que a poliacutetica entra em estado de falecircncia

Somos levados a conhecer logo nos versos prologais o anuacutencio da coacutelera (μῆνις) de Aquiles A causa como bem se sabe tem a ver com um ruiacutedo envolvendo os privileacutegios em torno da divisatildeo do butim de guerra Apoacutes o saque a Tebas foram recolhidos os despojos e os aqueus dividiram-nos entre si A Agamecircmnon coube Criseida filha de Crises sacerdote de Apolo ao passo que a Aquiles coube Briseida Daacute-se que o pai de Criseida o velho Crises suplicou aos aqueus que devolvessem sua filha em troca do pagamento de um resgate mas teve seu pedido negado Mais do que isso Agamecircmnon o mandou embora com aacutesperas palavras O anciatildeo recorreu agrave Apolo e pediu que tal ofensa seja retaliada ldquoQue paguem com tuas setas os Dacircnaos as minhas laacutegrimasrdquo (HOMERO Iliacuteada I v 42)

O pedido foi acolhido pelo deus Por nove dias as setas faziam as piras arderem continuamente na cremaccedilatildeo dos mortos Tambeacutem uma peste atingiu o acampamento aqueu Tatildeo grave era a situaccedilatildeo que por influecircncia de Hera

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uma assembleia foi convocada para discutirem e buscarem remeacutedio para tais males Aquiles tomou a palavra e sugeriu para que natildeo voltassem frustrados a casa que o adivinho Calcas fosse consultado para que todos soubessem atraveacutes de sua videcircncia como solucionar a querela Calcas tergiversou e disse ter receio de encolerizar ldquoaquele que rege poderoso os Argivos e a quem obedecem os Aqueusrdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 78-79) Aquiles assegurou sua fala e disse que iria protegecirc-lo Calcas entatildeo diz que Agamecircmnon deveria abrir matildeo de Criseida Tem iniacutecio a querela

Eacute preciso aqui esclarecer brevemente os sentidos da reaccedilatildeo de Agamecircmnon Uma vez conquistada a vitoacuteria e tendo sido pilhada uma cidade derrotada os produtos do saque satildeo colocados em comum para serem divididos Eacute o momento oportuno de observar os privileacutegios (γέρεα) que cabem aos sujeitos mais destacados assegurando a ldquoparte de honrardquo (τιμή) que toca cada um e seu precircmio (γέρας) correspondente5 O precircmio de Agamecircmnon ndash no caso Criseida ndash representava natildeo somente um bem de valor material mas tambeacutem e principalmente um siacutembolo de prestiacutegio a marca de deferecircncia que permite que o grupo o identifique como um sujeito de destaque Sua outorga visa reforccedilar publicamente a distinccedilatildeo social do outorgado O geacuteras6 portanto ratifica a posiccedilatildeo de soberania e atua para demarcar do ponto de vista das estruturas altamente hierarquizadas de poder a coesatildeo interna desse proacuteprio grupo7 A preocupante condiccedilatildeo de ἀγέραστος ldquodesprovido de precircmiordquo eacute vista como uma afronta grave agrave economia de prestiacutegio e agrave honra do heroacutei

A honra como aposta Finley (1958 p 143) em seu bem conhecido trabalho eacute um valor sobretudo competitivo ldquoEn la naturaleza del honor estaacute

5 Como diz Neyde Theml (1995 p 150) ldquoo exerciacutecio do poder real eacute em Homero resultado de acumulaccedilotildees de geacuterea privileacutegios que distinguem o rei com seus direitos e deveres para com a comunidade global Os γέρεα reais na Iliacuteada satildeo de 4 tipos a parte de honra (timeacute) sobre o botim praacuteticas especiais no banquete um teacutemenos presentes (dons e contra-dons) e direitos especiaisrdquo

6 Os sentidos de γέρας eacute importante frisar vatildeo muito aleacutem da loacutegica associada a um bem material Tambeacutem pode significar num sentido imaterial ldquoprerrogativardquo ou ldquoprivileacutegio honoriacuteficordquo A tiacutetulo de exemplo Neacutestor diz que por ser idoso natildeo teria meios de participar ativamente do combate como participava outrora mas que incitaria os guerreiros e com suas decisotildees e palavras afinal ldquoeacute esse o privileacutegio dos anciatildeosrdquo - τὸ γὰρ γέρας ἐστὶ γερόντων (HOMERO Iliacuteada IV v 323)

7 E natildeo custa recordar as epopeias apresentam ldquouma sociedade notadamente dividida em dois estratos de um lado os basileis os nobres os ricos proprietaacuterios de um domiacutenio de terra do oicirckos os chefes de guerra que ocupam o topo da hierarquia social e deteacutem os privileacutegios e as honras e do outro lado a massa de homens comuns O proacuteprio gecircnero da epopeia por ser destinado por princiacutepio a um puacuteblico aristocraacutetico obviamente faz com que o interesse dos poetas se associem essencialmente aos fatos e gestos dos basileisrdquo (SCHEID-TISSINIER 2002 p 1)

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que tiene que ser exclusivo o por lo menos jeraacuterquico Si todos adquieren igual honor no hay honor para ninguno Asiacute el mundo de Odiseo era necessariamente de fiera competecircncia porque cada heacuteroe luchava para sobrepasar a los otrosrdquo Ainda que Finley esteja correto essa natureza competitiva se aplica a um tipo de disputa que presume um ambiente belicoso em que dois adversaacuterios se enfrentem sendo outrossim incapaz de explicar as tensotildees em torno da timeacute em que supostos aliados como Aquiles e Agamecircmnon se percebem envolvidos como bem observou Margalit Finkelberg (1998 p 16) A visatildeo de Finley presume a competiccedilatildeo exclusivamente envolvendo adversaacuterios e natildeo sujeitos do mesmo grupo Como adiantamos as disposiccedilotildees competitivas e cooperativas satildeo situacionais o que exige uma observaccedilatildeo atenta de sua manifestaccedilatildeo

Em uma situaccedilatildeo corriqueira uma vez distribuiacutedos os butins de guerra a posse dos gerea seria respeitada e ningueacutem por princiacutepio deveria devolver o lote de honra que recebeu A crise que a fuacuteria apoliacutenea inaugura exige que haja uma revisatildeo da distribuiccedilatildeo que tendencialmente seria irreversiacutevel de tal modo que aleacutem das setas que matam e da peste que adoece Apolo tambeacutem instaura a discoacuterdia que enfraquece Agamecircmnon que eacute absolutamente consciente de seus privileacutegios se vecirc obrigado a revecirc-los para cooperar com a mesma coletividade que os assegura O Atrida poreacutem tenta fazecirc-lo conciliando o inconciliaacutevel Em resposta a Calcas apoacutes acusaacute-lo de soacute profetizar desgraccedilas diz

ldquoMas apesar disso restituiacute-la-ei se for isso a coisa melhor Quero que o povo seja salvo de preferecircncia a que pereccedila Mas preparai pra mim outro precircmio para que natildeo seja soacute eu entre os Argivos que fico sem precircmio pois tal seria indecoroso Pois deves todos voacutes como o meu precircmio vai para outra parterdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 116-120)

Em certo sentido a devoluccedilatildeo de Criseida representou simultaneamente uma disposiccedilatildeo cooperativa e competitiva cooperativa em primeiro lugar porque Agamecircmnon concordou com a devoluccedilatildeo de seu geacuteras competitiva em segundo porque natildeo admitiu ser o uacutenico a ficar sem precircmio exigindo que o butim fosse novamente redistribuiacutedo para que inevitavelmente outro guerreiro fosse ageiacuteratos e natildeo ele preservando assim seus privileacutegios e soberania Aquiles fiando-se na tradiccedilatildeo discordou da proposta de Agamecircmnon e argumentou ldquoNada sabemos de riqueza que jaza num fundo comum mas os despojos das cidades saqueadas foram distribuiacutedos e seria

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indecoroso tentar reaver tais coisas de junto do povordquo (HOMERO Iliacuteada I vv 124-126) Mais do que isso em caraacuteter compensatoacuterio sugeriu que os aqueus o recompensariam em trecircs ou quatro vezes quando Troacuteia fosse saqueada

Impossiacutevel natildeo identificar na fala do filho de Peleu uma tentativa de negociaccedilatildeo face ao conflito Agamecircmnon contudo reconhece no discurso de Aquiles uma tentativa de engano e faz uma assertiva ainda mais dura se os aqueus natildeo substituiacuterem o precircmio perdido iria retiraacute-lo agrave forccedila de quem quer que seja (HOMERO Iliacuteada I vv 138-139) A tensatildeo aumenta e a loacutegica competitiva envolvendo o liacuteder das multidotildees e o melhor dos aqueus atinge seu cliacutemax Como eacute bem conhecido Agamecircmnon decide que seria Briseida o geacuteras de Aquiles a recompensa pela devoluccedilatildeo de Criseida Nesse momento decreta-se a falecircncia da poliacutetica e nenhuma negociaccedilatildeo se torna possiacutevel pois o filho de Peleu eacute envolvido pessoalmente na soluccedilatildeo de uma questatildeo coletiva e sua honra eacute visceralmente maculada Segue-se uma seacuterie de acusaccedilotildees ofensas e mesmo em uma tentativa de assassinato natildeo fosse contido por Atena Aquiles teria sacado o glaacutedio e decepado a cabeccedila do basileu (HOMERO Iliacuteada I vv 187-195) O resultado final eacute o afastamento voluntaacuterio de Aquiles que se isola no acampamento dos Mirmidotildees e desaparece natildeo apenas do combate mas da proacutepria narrativa jaacute que suas accedilotildees soacute voltam a ser descritas no Canto IX O reaparecimento aliaacutes se daacute de uma maneira bastante insoacutelita Aacutejax Odisseu e Fecircnix o encontram deleitando-se com sua lira tendo apenas Paacutetroclo como audiecircncia em uma atitude fugidia e descompromissada com o calor do conflito que entatildeo aumentava devido agrave sua ausecircncia (HOMERO Iliacuteada IX vv 185-191)

Esse reencontro soacute ocorre porque Agamecircmnon reconhece que sem Aquiles o asseacutedio dos troianos aumentaria e chegaria o momento em que as naus dos aqueus seriam incendiadas sacramentando a derrota Em outras palavras seria derrotado da competiccedilatildeo com os troianos em funccedilatildeo da competiccedilatildeo particular que estabeleceu com o Peacutelida Quem o convence a retroceder eacute Neacutestor uma voz sempre atuante e eficaz na negociaccedilatildeo de conflitos ldquotiraste a jovem Briseida da tenda do furibundo Aquiles coisa que natildeo aprovamos Na verdade eu proacuteprio tudo fiz para te dissuadir mas tu cedeste ao teu espiacuterito altivo e sobre um homem excelente honrado pelos deuses lanccedilaste desonrardquo (HOMERO Iliacuteada IX vv 106-111) Agamecircmnon concorda com avaliaccedilatildeo e atribui a dissensatildeo ao desvario (ἄτη) de que foi viacutetima Mais do que isso concorda em abandonar a disposiccedilatildeo competitiva

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e buscar a reconciliaccedilatildeo com a oferta de uma imensa quantidade de presentes (δῶρον) incluindo a proacutepria Briseida acompanhada da promessa de que natildeo foi sexualmente tocada (HOMERO Iliacuteada IX vv 133-134) O Atrida percebe que se natildeo fizesse do adversaacuterio seu aliado o inimigo comum venceria o preacutelio e todos perderiam Tenta desse modo resgatar a poliacutetica falida por seu proacuteprio desatino

Desta vez a inflexibilidade fica a cargo de Aquiles e o custo da recusa agrave poliacutetica seria plenamente sentido Aacutejax Odisseu e Fecircnix satildeo enviados para tentar convencecirc-lo mas seus esforccedilos foram em vatildeo Aquiles resistiu Posteriormente tambeacutem Paacutetroclo fez uma criacutetica severa tatildeo dura quanto inuacutetil Apoacutes prestar assistecircncia meacutedica aos feridos observou que Diomedes Odisseu Agamecircmnon e Euriacutepilo os melhores combatentes estavam impedidos de lutar e nesse sentido ponderou

ldquoQue sobre mim nunca recaia esta ira que tu alimentaspois terriacutevel eacute teu pensar Que homem vindouro a tirecorreraacute se (vergonhoso) natildeo evitas a ruiacutena dos AqueusImpiedoso Natildeo aceito que Peleu condutor de cavalos seja teu painem que Teacutetis seja tua matildee Foste parido pelo glauco mar epelas rochas escapardas Por isso tens a mente peacutetrea durardquo (HOMERO Iliacuteada XVI vv 30-35)

Aquiles novamente manteacutem-se irredutiacutevel Volta a mencionar as tristezas que se abateram com a tomada de Briseida e recorda que soacute lutaria caso o combate se aproximasse de suas proacuteprias naus (HOMERO Iliacuteada XVI vv 49-63) Eacute bem verdade que Aquiles se sensibilizou quando as primeiras naus argivas foram incendiadas Tambeacutem concordou que Paacutetroclo fosse combater (HOMERO Iliacuteada XVI vv 126-129) e chegou a organizar as falanges a incitar os guerreiros e a fazer uma libaccedilatildeo a Zeus suplicando pelo sucesso da empreitada Aquiles por fim resolve ver (εἶδον) as lutas entre aqueus e troianos (HOMERO Iliacuteada XVI vv 255-256) abdicando da indiferenccedila Apesar disso manteacutem seu afastamento voluntaacuterio para assegurar a vivacidade da competiccedilatildeo com o Atrida

Os resultados destes combates foram decisivos para que Aquiles reavaliasse os sentidos de sua coacutelera pois cumpriu-se a prediccedilatildeo de Zeus Paacutetroclo morto eacute uma puniccedilatildeo ao seu afastamento bem como o evento catalizador que obrigaacute-lo-aacute a rever seu ostracismo A reaccedilatildeo agrave morte do amigo foi absolutamente intempestiva e do sofrimento (πένθος) nasce a constataccedilatildeo de sua proacutepria responsabilidade Teacutetis que ouviu o pranto do filho foi ter com

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ele para consolaacute-lo Aquiles em resposta disse ldquoQue imediatamente eu morra pois natildeo socorri o companheiro quando morto ele foirdquo (HOMERO Iliacuteada XVIII vv 98-99) Mas ao longo da mesma resposta Aquiles natildeo limita sua responsabilidade agrave morte de Paacutetroclo e a despeito de todas as recompensas todos os pedidos e todas as suacuteplicas eacute apenas por meio da dor que lanccedila um olhar retrospectivo em direccedilatildeo agrave proacutepria conduta

Que a discoacuterdia se exile dos homens e dos deusese a raiva amarga que oprime ateacute o mais inventivo de todos raiva muito doce dulciacutessima mais que o mel a escorrere que se expande como fumaccedila no peito dos homensassim a ira me causou Agamecircmnon soberano entre os homensMas tudo isso torna-se passado apesar de todo o sofrimento no peito refreando o coraccedilatildeo pois as urgecircncias sobrepujam(HOMERO Iliacuteada XVIII vv 107-113)

Trata-se de uma nova etapa a ira que nutria em relaccedilatildeo a Agamecircmnon eacute convertida na fuacuteria doravante dirigida a Heacutector reestabelecendo a competiccedilatildeo com o inimigo externo e a cooperaccedilatildeo com os aliados no conflito Quando a proacutepria Teacutetis recomenda ao filho que renuncie agrave coacutelera8 contra Agamecircmnon e convoque a assembleia para se reapresentar ao exeacutercito aqueu (HOMERO Iliacuteada XIX vv 34-36) enseja o derradeiro movimento de reconciliaccedilatildeo com a coletividade E Aquiles o faz atendendo os auspiacutecios maternos Com todos os seus pares reunidos o Pelida assume o centro da assembleia e proclama

Atrida teraacute sido isto o melhor para ambospara ti e para mim quando com os coraccedilotildees lutuososdevorados no imo nos enfrentamos por conta da donzelaPudera que em minhas naus Aacutertemis a tivesse matado com sua seta no dia em que a tomei como espoacutelio do saque a LirnessoSoacute assim natildeo teriam incontaacuteveis aqueus crivado os dentes no solopelas matildeos inimigas enquanto eu perseverava em minha ira(HOMERO Iliacuteada XIX vv 56-62)

O ritmo da dissensatildeo envolve nesse sentido um jogo intenso de competiccedilatildeo em torno da loacutegica da honra e seus privileacutegios de negociaccedilotildees frustradas de conflitos insoluacuteveis e soluccedilotildees que ultrapassam a poliacutetica Por forccedila talvez de sua juventude e da intemperanccedila que eacute tiacutepica dos jovens em Homero Aquiles soacute foi interpelado pela forccedila compulsoacuteria da pedagogia do

8 Afinal ldquoa ordem social e a vida comunitaacuteria civilizada ndash consequentemente a Cultura Grega ndash foi imaginada pelo menos em parte sobre o deslocamento da erisrdquo (WILSON 1938 p 132)

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sofrimento do ldquoaprender pelo sofrerrdquo (πάθει μάθος)9 que parece colocar no marco das relaccedilotildees sociais natildeo a competiccedilatildeo mas a cooperaccedilatildeo como valor fundante que preside a relaccedilatildeo do sujeito com seus pares e que envolve a assunccedilatildeo de responsabilidades

Esse debate nos remete ao claacutessico Merity and Responsability (1960) tese de doutorado de Arthur W Adkins O autor se dedicou a investigar no acircmbito da eacutetica grega o desenvolvimento do conceito de responsabilidade moral Em linhas gerais Adkins considerou que o sistema de valores homeacuterico era caracterizado pela dimensatildeo competitiva em torno da areteacute prevalecendo desta forma sobre um padratildeo cooperativo (ADKINS 1960 p 46) Sua abordagem apesar da importacircncia foi alvo de inuacutemeras criacuteticas com destaque para aquelas expressas pelas publicaccedilotildees de Long (1970) Lloyd-Jones (1971) Rowe (1983) e Cairns (1993) Os argumentos dependiam da percepccedilatildeo de que existia de um lado o espiacuterito agoniacutestico competitivo centrado em uma tocircnica individualista e do outro lado o princiacutepio cooperativo necessaacuterio para a apoio muacutetuo centrado nos ideais coletivos Nancy Demand chega ao ponto de associar estes princiacutepios aos contatos estabelecidos entre os oikoi no Periacuteodo Claacutessico para ela tal relaccedilatildeo era ldquomais competitiva do que cooperativa pois as casas se desafiavam em uma competiccedilatildeo por honra e ciuacuteme e neste enfrentamento todas estavam continuamente vulneraacuteveis agrave perdardquo (DEMAND 2004 p 3) o que decerto soacute poderia fazer sentido em casos isolados mas nunca como regra geral Graham Zanker (1997 p 2) em sua criacutetica a Adkins entende essa questatildeo como uma falsa dicotomia ao passo que ldquoeacute faacutecil encontrar momentos na Iliacuteada em que guerreiros competem uns com os outros na batalha para atingir um objetivo comum de vitoacuteriardquo

A tendecircncia geral do debate radica-se em certo sentido em esforccedilos para definir se a competiccedilatildeo ou a cooperaccedilatildeo tomadas em um sentido holiacutestico representam cada qual um paradigma a partir da qual a outra parte do binocircmio seria vista sob regime de exceccedilatildeo Em outras palavras se o modo de ser eacutetico-poliacutetico eacute por excelecircncia competitivo a cooperaccedilatildeo se torna

9 Ainda que natildeo apareccedila expresso nesses termos na Iliacuteada o πάθει μάθος de Aquiles se tornou objeto de discussatildeo a partir de um bem conhecido artigo Pearl Cleveland Wilson Nele o autor argumenta ldquoEm sua primeira apariccedilatildeo ele [Aquiles] eacute altamente considerado com todas as qualidades que pertencem ao heroiacutesmo juvenil No entanto com o desenrolar da trama ele natildeo mostra preocupaccedilatildeo com qualquer outro sofrimento que natildeo seja seu proacuteprio O que lhe falta neste sentido eacute aquilo que Heacutector possui cuja compreensatildeo leva o leitor moderno a cultivar simpatia por ele Esse sentimento continua sendo desconhecido por Aquiles natildeo por que ele seja incapaz de conhececirc-lo mas porque ainda natildeo foi despertado para essa experiecircnciardquo (WILSON 1938 p 560) O tema tambeacutem eacute conhecido pelo debate de Bruno Snell (2005 p 19) para quem o πάθει μάθος atua como um ldquomal necessaacuteriordquo ldquopois este aprende com um mal a precaver-se contra outro malrdquo

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ocasional do mesmo modo que se eacute feita a opccedilatildeo pela loacutegica cooperativa a competiccedilatildeo eacute aquilo que foge agrave regra A tarefa eacute bastante difiacutecil porque variaacuteveis incidem o tempo inteiro para colocar em xeque uma pretensa ordem que sobrepairava sobre as relaccedilotildees sociais forccedilando-nos a duvidar se tal dicotomia eacute empiricamente observaacutevel em um todo que nem de longe se permite e se propotildee coerente

Fato significativo eacute que a mentalidade grega identifica o permanente estado de incompletude dos sujeitos razatildeo pela qual sobrepaira um estado latente que transita entre o conflito (no qual as diferenccedilas satildeo inconciliaacuteveis) e a complementaridade (quando as diferenccedilas satildeo justapostas em prol de um objetivo comum) Eacute precisamente esse o uacuteltimo ponto que julgamos importante pocircr em evidecircncia para compreender a relaccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon

A justificativa bem conhecida estaacute assente em um topos religioso os deuses natildeo datildeo aos homens tudo ao mesmo tempo Trata-se de um sintoma bem observado em diversas situaccedilotildees e das muitas que poderiacuteamos usar como exemplo vale recordar a dupla moira de Aquiles que sua matildee divina previu se ficasse em Troacuteia e combatesse os troianos morreria jovem e teria gloacuteria eterna se para casa retornasse teria vida longa mas seu nome seria esquecido (HOMERO Iliacuteada IX vv 410-416) Haacute para cada bem um mal correspondente Na Odisseia o aedo Demoacutedoco que celebrava os festins na feaacutecia tambeacutem prefigura essa loacutegica irremediaacutevel posto que a Musa muito o amava ldquoDera-lhe tanto o bem como o mal Privara-o da vista dos olhos mas um doce canto lhe concederardquo (HOMERO Odisseia VIII vv 63-64) Uma das melhores formulaccedilotildees dessa loacutegica pode ser lida na fala de Polidamante a Heacutector

ldquoHeitor muita dificuldade tens tu em dar ouvidos a bons conselhosPorque o deus te concedeu preeminecircncia nas faccedilanhas guerreirasTambeacutem por isso queres estar acima de todos no conselhoSoacute que tu proacuteprio natildeo seraacutes capaz de abarcar todas as coisas Eacute que a um homem daacute o deus as faccedilanhas guerrilhasA outro a danccedila e a outro ainda a lira e o cantoE no peito de outro coloca Zeus que vecirc ao ao longeUma mente excelente de que muitos homens tiram vantagemA muitos ele consegue salvar coisa que sabe mais que todosrdquo(HOMERO Iliacuteada XIII vv 724-734)

Na troca de acusaccedilotildees entre Agamecircmnon e Aquiles a potecircncia guerreira do melhor dos aqueus claramente confrontava a lideranccedila poliacutetica do Atrida De um lado um basileu que ainda que combatesse tinha seus meacuteritos pouco

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associados agrave superaccedilatildeo dos adversaacuterios em campo de batalha do outro um jovem guerreiro que a todos superava no combate mas que era inaacutebil com as palavras Agamecircmnon diz a Aquiles ldquoDe todos os reis criados por Zeus eacutes para mim o mais odioso Sempre te satildeo gratos os conflitos as guerras e as lutas Se eacutes excepcionalmente possante eacute porque um deus tal te concedeurdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 176-178) Aquiles por sua vez diz a Agamecircmnon ldquoRei voraz com o proacuteprio povo eacute sobre nulidades que tu reinas se assim natildeo fosse oacute Atrida esta agora seria a tua uacuteltima insolecircnciardquo (HOMERO Iliacuteada I vv 231-232) Quem percebe a gravidade da dissensatildeo e busca intervir eacute Neacutestor precisamente pela sabedoria que se acumulou ao longo dos anos Falando primeiramente a Agamecircmnon diz

ldquoQue natildeo procures tu nobre embora sejas tirar-lhe a donzelaMas deixa-a estar foi a ele primeiro que os aqueus deram o precircmioQuanto a ti oacute Pelida natildeo procures agrave forccedila conflitos com o reiPois natildeo eacute honra qualquer a de um rei detentor de ceptroA quem Zeus concedeu a gloacuteriaEmbora sejas tu o mais forte pois eacute uma deusa que tens por matildeeEle eacute mais poderoso uma vez que reina sobre muitos maisrdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 275-281)

A fala ponderada de Neacutestor eacute um sintoma da perspectiva natildeo apenas dos poetas mas das aristocracias a quem cantavam e que gostariam de se sentir representadas nos versos hexameacutetricos O anciatildeo consegue criticar a decisatildeo de Agamecircmnon sem colocar em suspenso sua soberania Ao mesmo tempo dirige-se a Aquiles louvando seu meacuterito guerreiro sem abdicar da necessidade de submissatildeo ao poder de quem reina sobre mais gente Neacutestor percebeu que no interior do exeacutercito aqueu cada uma das partes exacerbava a ausecircncia da outra e que isoladamente competindo entre si o enfraquecimento dos gregos abriria espaccedilo para o fortalecimento dos troianos

Eacute precisamente nesse ponto que competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo dialogam natildeo como pares antiteacuteticos mas como um modo de ser que depende fundamentalmente do objetivo comum compete-se contra o outro e coopera-se internamente para atingir o mesmo fim Qualquer ruiacutedo qualquer idiossincrasia uma palavra que excede ou uma negociaccedilatildeo que se frustra arrasta consigo consequecircncias funestas graccedilas agrave incapacidade de dar a cada parte do binocircmio o espaccedilo consagrado que lhe cabe

Por fim e sobretudo haacute um modo de ser que pode ser complementar ou excludente ensejando por correspondecircncia a cooperaccedilatildeo ou competiccedilatildeo Se a fala de Neacutestor sugere que a cooperaccedilatildeo entre aliados eacute absolutamente

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necessaacuteria e deve ser tomada como princiacutepio orientador das relaccedilotildees sociais as proacuteprias diferenccedilas divinamente justificadas (os deuses natildeo datildeo tudo a todos) ensejam o amaacutelgama da competiccedilatildeo e fazem com que esteja sempre agrave espreita rodeando os heroacuteis no marco de suas potecircncias e carecircncias O fiel da balanccedila o ponto de apoio o ldquonoacute goacuterdiordquo que assegura a coesatildeo ou conflito eacute insisto a poliacutetica Eacute pela poliacutetica que o ser eacutetico-poliacutetico se manifesta e consegue pocircr a si proacuteprio e o outro em perspectiva olhando as diferenccedilas como possiacuteveis complementos e natildeo como foco de dissociaccedilatildeo Apolo sabia disso quando lanccedilou a discoacuterdia Agamecircmnon se apercebeu quando reconheceu seu desvario Aquiles aprendeu quando perdeu Paacutetroclo Neacutestor jaacute sabia antecipadamente E se haacute um sentido embora esquecido que preside a busca pela poliacutetica eacute certamente bem comum ainda que muitos insistam que eacute possiacutevel atingi-lo fora de uma disposiccedilatildeo cooperativa

Abstract The aim of this article is to observe the tensions between Achilles and Agamemon through the conceptual bionmial competitioncooperation Itrsquos intend not only understand the variables of this opposition but also how the ideas of competition and cooperation sets a quarrel and suggest an ethical-political way of being that distinghishes those heroesKeywords Competition Cooperation Achilles Agamenon Iliad

Referecircncias

Documentaccedilatildeo Textual

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A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTO DOS PODERES PA-RENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS

Bruno DrsquoAmbros1

Resumo Mostramos neste artigo que a democracia grega nasceu efetivamente com a reorganizaccedilatildeo territorial aacutetica de Cliacutestenes em 508 aC atraveacutes do enfraquecimento dos genoi e phratriai em prol dos demoi A democracia assim desde seu surgimento parece ter sido uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema semelhante do conflito entre a distribuiccedilatildeo de poder local e regional Palavras-chave Cliacutestenes Democracia Greacutecia antiga Oligarquias

A escassa produccedilatildeo bibliograacutefica histoacuterica sobre o tema do nascimento da democracia na Greacutecia Antiga por vezes gera certa simplificaccedilatildeo da temaacutetica criando uma idealizaccedilatildeo da democracia participativa grega e esquecendo os variados elementos que a constituiacuteram Sem a adequada compreensatildeo dos detalhes histoacutericos que compuseram o nascimento da democracia arriscamos dizer eacute quase impossiacutevel compreender adequadamente Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e toda a produccedilatildeo filosoacutefica subsequente sobre o tema da poliacutetica As vaacuterias criacuteticas que os filoacutesofos antigos fizeram agrave democracia grega adveacutem de muitos elementos histoacutericos factuais que natildeo estatildeo naturalmente presentes nos textos destes pensadores e soacute podem ser compreendidos agrave luz da histoacuteria poliacutetica grega

Heroacutedoto em seu relato fictiacutecio na sua Histoacuterias relaciona trecircs reis persas ndash Otanes Megabises e Dario ndash com respectivamente os trecircs regimes poliacuteticos claacutessicos ndash democracia aristocracia e monarquia Este relato ajudou a consolidar no imaginaacuterio grego estas trecircs formas de governo e jaacute nele se percebe uma valoraccedilatildeo negativa da democracia Isoacutecrates em seu Evaacutegoras tambeacutem vecirc negativamente a democracia grega por seu caraacuteter igualitarista poreacutem elogia Soacutelon e Cliacutestenes que em sua opiniatildeo foram homens que foram

1 Doutorando em filosofia pela UFPR E-mail dambrosbrunogmailcom

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capazes de construir uma cidade-estado longe da monarquia Xenofonte nos Memoraacuteveis e Ciropeacutedia despreza a democracia que para ele era um regime calcado na indisciplina popular e portanto um regime titubeante A famosa criacutetica platocircnica agrave democracia na Repuacuteblica natildeo inova exceto na sua teoria da degenerescecircncia dos regimes poliacuteticos partindo do melhor para o pior ou seja a democracia esta seria ruim porque se baseia num homem sem virtude Aristoacuteteles em sua Poliacutetica rejeita a teoria platocircnica da degenerescecircncia das formas de governo e afirma que a democracia eacute uma forma de governo degenerada que exclui o interesse comum e beneficia o interesse de uma classe particular os mais pobres

Em suma percebe-se que a democracia ao menos para as classes cultas natildeo era um regime bem No entanto se atentarmos somente para os argumentos presentes nos textos destes autores citados excluindo o contexto histoacuterico anterior natildeo compreenderemos esta antipatia agrave democracia em sua totalidade Eacute preciso portanto voltar-se para os acontecimentos histoacutericos

O principal evento para a consolidaccedilatildeo da democracia aleacutem das reformas anteriores de Soacutelon e dos Pisistraacutetidas foi sem duacutevida a reforma territorial sob Cliacutestenes ocorrida por volta de 508 aC Foi esta reforma que ao reconfigurar a demografia aacutetica enfraqueceu os laccedilos parentais das famiacutelias aristocraacuteticas aacuteticas e possibilitou a participaccedilatildeo poliacutetica efetiva nas eleiccedilotildees e nas instituiccedilotildees democraacuteticas atenienses O que houve em outros termos foi que os novos demoi nascentes como nova divisatildeo territorial administrativa se contrapocircs com a divisatildeo familiar tradicional de parentesco denominada genos o que contribuiu para a exacerbaccedilatildeo da antiacutetese entre uma aristocracia familiar local estabelecida e uma democracia poliacutetica translocal introduzida2 Todo o debate filosoacutefico poliacutetico concernente sobre a democracia tinha como pano de fundo os nuacutecleos de gens na Greacutecia antiga e a nova configuraccedilatildeo demograacutefica de Cliacutestenes os demoi

Cliacutestenes nasceu por volta de 570 aC e era membro do clatilde dos Alcmeocircnidas neto do tirano Cliacutestenes de Siacutecion tio de Peacutericles e avocirc de Alcebiacuteades Quanto ao seu legado Cliacutestenes tomou uma seacuterie de medidas reformatoacuterias principalmente no que tange agrave reorganizaccedilatildeo poliacutetica do territoacuterio da Aacutetica mudando a organizaccedilatildeo poliacutetica ateniense que era baseada em quatro tradicionais tribos com fortes laccedilos de parentesco entre si que foram responsaacuteveis pelas tiranias anteriores A fim de impedir que a tirania se

2 Sobre a diferenccedila entre γένος e δῆμος na Aacutetica claacutessica faz-se mister conferir o capiacutetulo X da parte II da obra de Fustel de Coulanges (2009) jaacute bem conhecida entre os helenistas e latinistas onde o autor defende a tese de que a gens era a famiacutelia em sua primitiva organizaccedilatildeo de parentesco e unidade e natildeo como se pensava na eacutepoca um artifiacutecio administrativo de relaccedilotildees de parentesco

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instalasse novamente atraveacutes destas relaccedilotildees de parentesco Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em dez tribos de acordo com sua area de residecircncia o seu dēmos Estas reformas territoriais foram na verdade uma ldquodessacralizaccedilatildeo da paacutetriardquo (KERCKHOVE 1980 p 27) e consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo em curso na Greacutecia Arcaica (DrsquoAMBROS 2014)

Os principais feitos de Cliacutestenes durante seu arcontado foram basicamente seis a reorganizaccedilatildeo demograacutefica do territoacuterio aacutetico o consequumlente fortalecimento dos dēmos em detrimento das antigas phratriai a reorganizaccedilatildeo da boulḗ em 500 participantes a reorganizaccedilatildeo da dikasteria a corte popular a instituiccedilatildeo do ostracismo e a cunhagem do conceito de isonomia que durante o seacuteculo V iria desembocar no conceito de democracia

Quanto a estas outras reformas o estabelecimento de corpos legislativos feitos de indiviacuteduos escolhidos por eleiccedilatildeo foi tambeacutem mais um atentado contra o parentesco e a hereditariedade aristocraacutetica Ainda sua reorganizaccedilatildeo da Boulecirc que primariamente foi feita por 400 membros para 500 membros 50 de cada tribo e a introduccedilatildeo do juramento bouleacutetico que propunha antecipadamente a agenda a ser discutida na ekkleacutesia foram importantes para esta desestabilizaccedilatildeo aristocraacutetica A reorganizaccedilatildeo do tribunal da dikasteria e a criaccedilatildeo do ostracismo usado pela primeira vez em 487 aC com a finalidade de expulsar da cidade qualquer um que ameaccedilasse a democracia foram mecanismos uacuteteis para o enfraquecimento do poder parental-aristocraacutetico

A ascensatildeo de Cliacutestenes ao arcontado se deu apoacutes a expulsatildeo de Hiacuteppias de Atenas quando Isaacutegoras entra na disputa pelo arcontado com Cliacutestenes ambos aristocratas Isaacutegoras aliou-se com o rei Cleomenes I de Esparta e exilou Cliacutestenes junto com 700 famiacutelias e tornou-se arconte epocircnimo em 507 aC Seu grande erro poreacutem foi tentar dissolver a boulḗ3 que resistiu e angariou o apoio do povo e forccedilou Isaacutegoras a fugir para a Acroacutepolis que laacute permaneceu por dois dias sendo expulso no terceiro junto com os espartanos aliados (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 721ndash2) Cliacutestenes entatildeo junto com os outros exilados retornou a Atenas e tornou-se arconte com apoio do povo e dos aristocratas hetairoi (cavalaria)

Conflitos entre aristocratas como entre Isaacutegoras e Cliacutestenes estava se tornando ldquofora de modardquo (BUCKLEY 2010 p 118) O povo de modo geral e igualmente a parcela de nobres por meacuterito financeiro estava enfastiada de disputas entre facccedilotildees aristocraacuteticas que natildeo percebendo a mudanccedila dos tempos ainda sustentava valores e coacutedigos de honra anacrocircnicos Cliacutestenes

3 Na verdade Heroacutedoto natildeo explicita se foi a Bouleacute ou o Areoacutepago que Isaacutegoras quis remover

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arguto poliacutetico e membro da aristocracia percebeu isso jaacute durante o periacuteodo de tirania onde os tiranos para se manter no poder adotavam medidas populistas que natildeo os tornavam dependentes dos humores inconstantes das facccedilotildees aristocraacuteticas mas do proacuteprio povo E lidar com o povo ignorante cujos interesses satildeo miacutenimos eacute muito mais faacutecil que lidar com uma aristocracia com infinitos interesses econocircmicos e poliacuteticos e coacutedigos de honra fastidiosos

Inspirado no bem suscedido populismo4 precedente dos pisistraacutetidas Cliacutestenes toma medidas igualmente populistas para se manter no poder desagradando naturalmente a classe aristocraacutetica da qual ele mesmo fazia parte Dentre estas medidas as principais foram duas a reforma demograacutefica e a ampliaccedilatildeo dos poderes da ekklesia Heroacutedoto (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 662 692) sublinha este caraacuteter oportunista das medidas de Cliacutestenes e igualmente Aristoacuteteles quando diz que ldquoCliacutestenes trouxe o povo para o seu lado cedendo o controle do Estado para o plethos (plebe)rdquo (ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 202) Portanto apesar de Cliacutestenes ser considerado o real fundador da primeira democracia na histoacuteria seus interesses natildeo foram altruiacutestas mas permeados de interesses pessoais e aristocraacuteticos ou mais amenamente uma ldquocombinaccedilatildeo de auto-interesse e acuidade puacuteblicardquo (BUCKLEY 2010 p 120)

Assim a democracia ateniense nasce propriamente com Cliacutestenes em funccedilatildeo de sua reforma demograacutefica do territoacuterio Aacutetico Os principais motores destas reformas foram dois que se inter-relacionam o problema da cidadania ateniense e o problema das unidades parental-aristocraacuteticas Passemos a seguir a explicaacute-las

Durante o arcontado de Soacutelon muitos estrangeiros vieram para Atenas por sua prosperidade crescente com sua abertura econocircmica para trabalhar nos mais diversos ramos sendo o principal o artesanato Igualmente durante

4 O populismo termo moderno eacute um fenocircmeno que liga-se diretamente agrave tirania O tirano era essencialmente um populista estava ao lado do povo e contra os aristocratas Heroacutedoto (V 926) diz que a sanha do tirano eacute essencialmente a igualdade ldquocortar todas as espigas maiores que as outrasrdquo Glotz (1988 p 92) resume magistralmente qual era de fato o objetivo do tirano ldquoreduzir os poderes da aristocracia e exalccedilar os humildesrdquo Por isso na tipologia poliacutetica platocircnica agrave democracia natildeo eacute reservado a ela um bom lugar pois o intervalo entre a democracia e o populismo e portanto agrave tirania eacute curto O povo no baixo medievo grego cultuava deuses locais ctocircnicos sendo um deles Dioniso (lembremos que como Cristo ele desceu ao Hades e ressuscitou segundo o Hino Homeacuterico LIII) A aristocracia cultuava deuses com caraacuteter universal os deuses oliacutempicos Para agradar o povo Pisiacutestrato promove os cultos ctocircnicos populares sendo o principal o culto a Dioniso construindo um templo e instituindo o festival da Grande Dionisia onde em 535 aC foi encenado a primeira trageacutedia tendo como vencedor Thespis de Icaacuteria Assim nasce oficialmente o culto a Dioniso e a Trageacutedia grega sob os auspiacutecios do populismo tiracircnico (cf GLOTZ 1988 p 93)

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os pisistraacutetidas muitas novas pessoas vieram para Atenas para servir como mercenaacuterios do exeacutercito puacuteblico Assim durante todo o seacuteculo VI Atenas recebeu uma quantidade crescente de estrangeiros que no governo de Soacutelon vieram para trabalhar como artesatildeos de vasos e no governo dos pisistraacutetidas vieram para trabalhar como mercenaacuterios no exeacutercito puacuteblico estes foram os famosos meacutetoikos (estrangeiros)

Durante o governo de Cliacutestenes Atenas jaacute era habitada pelos netos e bisnetos destas pessoas no entanto sem cidadania aacutetica ainda Assim tiacutenhamos trecircs geraccedilotildees de estrangeiros que ainda natildeo tinham a cidadania ateniense plena Atenas durante o seacuteculo VI aC teve um crescimento demograacutefico significativo e a propaganda poliacutetica dos pisistraacutetidas em transformar Atenas no centro cultural Aacutetico foi bem-sucedida ao trazerem os festivais dionisiacuteacos teatro e os jogos oliacutempicos para a cidade Desde modo aleacutem dos descendentes daqueles estrangeiros que vieram para Atenas sob Soacutelon e os pisistraacutetidas sob Cliacutestenes afluiacuteram para Atenas muitos outros estrangeiros

A uacutenica prova formal de cidadania ateniense antes de Cliacutestenes eram as fratriai que reivindicavam para si uma origem miacutetica como seus nomes atestam Assim quando Cliacutestenes fez a reforma geopoliacutetica aacutetica criando os demoi ele automaticamente aboliu o antigo criteacuterio de cidadania criando um novo os demoi (BUCKLEY 2010 p 120) O termo deme tem um sentido muito especiacutefico na Aacutetica pois de fato se refere ldquounidade poliacutetica associada com as reformas de Cliacutestenesrdquo (TRAILL 1975 p73)

Para compreender a natureza e extensatildeo da reforma geopoliacutetica aacutetica de Cliacutestenes em deme eacute preciso compreender a natureza das quatro unidades parental-aristocraacuteticas aacuteticas anteriores phylai phratriai genē e oikoi ou anchisteia Eric Voegelin (2012 p 190) chama-as de ldquoestruturas gentiacutelicasrdquo de sinecismo da civilizaccedilatildeo helecircnica e as apresenta em niacuteveis da maior para a menor respectivamente5 Estas estruturas gentiacutelicas da civilizaccedilatildeo helecircnica tinham caracteriacutesticas tribais e foram determinantes do processo de sinecismo aacutetico ou seja na uniatildeo dos vaacuterios vilarejos aacuteticos em torno de um centro poliacutetico uacutenico Atenas durante o seacuteculo V ac

Ao longo do seacuteculo VII ac as phratriai satildeo a base da sociedade englobam tambeacutem os genē e se legitima como poder poliacutetico tendo regras proacuteprias podendo promulgar decretos proacuteprios possuir bens e dignitaacuterios

5 Contudo natildeo sabemos exatamente se os philai eram partes das phratriai ou contrariamente se as phratriai eram parte das philai (LAMBERT 1993 p 1516)

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tem seu proacuteprio sacerdote e culto As lideranccedilas das phratriai eram hereditaacuterias e portanto natildeo-democraacuteticas (BUCKLEY 2010 p 122) As phratriai eram o foco da aristocracia e uma vez que a aristocracia era um problema para o povo logo eram igualmente o foco do problema As phratriai podiam dividir-se ou fundir-se conforme sua fraqueza ou forccedila poliacutetica e segundo as circunstacircncias (LAMBERT 1993 p 11) e esta grande mobilidade espontacircnea foi provavelmente o motivo que as fizeram sobreviver durante os 200 anos de democracia como ldquoorganizaccedilotildees extra-urbanasrdquo ( JONES 1999 p 210)

A fundaccedilatildeo das phratriai foi atribuiacuteda agrave figura miacutetica de Ion personificaccedilatildeo da identidade jocircnica (LAMBERT 1993 p 3) Atenas estava organizada em quatro tribos jocircnicas agrupadas em phratriai e genē baseadas num parentesco miacutetico com algum heroacutei (FINE 1983 p 229) Este recurso genealoacutegico a um ancestral miacutetico comum foi recorrente em todas as phratriai e pode se atestar tanto pelo sufixo patroniacutemico -idai nos nomes das phratriai como Alkmeonidai e Demotionidai como pelo famoso festival de Apatouria cujo nome derivaria de homopatoria ou seja ldquomesmo pairdquo (LAMBERT 1993 p 8) Apesar de o recurso genealoacutegico-miacutetico natildeo ser verdadeiro como hoje compreendemos a noccedilatildeo de verdade como correspondecircncia de fato as phratriai consistiam de pessoas com uma ancestralidade comum chamados homogalaktes e a membresia nas phratriai natildeo era reservada somente aos ricos eupatridai (FINE 1983 p 186) mas estendida a todos os que vinham a pertencer a uma phratriai Deste modo as phratriai eram organizaccedilotildees de parentesco primordialmente constituiacutedas por phraacuteter vizinhos proacuteximos e amigos de famiacutelia Haacute trecircs evidecircncias segundo Lambert (1993 pp 4-5) da existecircncia das phratriai aacuteticas trinta inscriccedilotildees arqueoloacutegicas preservadas obras tardias dos seacuteculos V e IV aC em especial Isaeus e Demoacutestenes e scholia variados como os ensaios de Plutarco Pausanias e Ateneu Em Homero a fratria eacute uma ldquosubdivisatildeo da tribordquo e uma ldquobase de organizaccedilatildeo militarrdquo de modo que o homem sem fratria eacute considerado um ldquofora de leirdquo (VIAL 2013 p189) A palavra phrater significa literalmente irmatildeo mas em Homero natildeo se usa a palavra phrater para se referir a irmatildeo mas sim adelphos e kasignetos (FINE 1983 p 35) O termo phratria eacute mencionado pela primeira vez na Iliacuteada (II vv 362-363 IX vv 63-64) quando Nestor fala a Agamenon para dividir os homens por tribos e phratriai Uma hipoacutetese para a origem das phratriai bem aceita eacute a de que na ldquoEra das Trevasrdquo grega os nobres agrupados em genē organizaram seus dependentes em phratriai para melhor controle cada uma estando sob o domiacutenio de um ou mais gene (FINE 1983 p 186) Assim a organizaccedilatildeo em phratriai formam um modo de organizaccedilatildeo dos genē e de fato as phratriai organizaram a vida social e poliacutetica grega desde sua

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apariccedilatildeo por volta de 2000 aC ateacute seu fim no segundo seacuteculo II aC como atesta uma inscriccedilatildeo em uma colocircnia grega em Naacutepoles

As outras estruturas gentiacutelicas phylai genē e anchisteia satildeo partes constituintes do que seratildeo as poleis futuramente Agrave medida que a noccedilatildeo de sujeito vai tomando escopo ndash como se pode atestar pela epopeacuteia liacuterica e trageacutedia ateacute seu ponto culminante com a filosofia ndash o mundo tribal aristocraacutetico vai dando lugar ao mundo das poleis democraacuteticas O sujeito ldquo[] sempre permaneceu numa posiccedilatildeo de mediaccedilatildeo por meio dos parentescos sanguiacuteneos tribais fictiacutecios e estreitos no interior da poacutelisrdquo (VOEGELIN 2012 p 189)

Cliacutestenes mudou a situaccedilatildeo poliacutetica aacutetica mudando a situaccedilatildeo geopoliacutetica Agora o centro das decisotildees poliacuteticas natildeo eram mais as phratriai mas os demoi Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em trecircs regiotildees geopoliacuteticas Paralia Mesogeia e Astu E cada uma destas aacutereas foi subdividida em dez partes chamadas tritiacuteas6 que por sua vez englobavam um certo nuacutemero de demes (BRAADEN 1955 p 22) De acordo com Braaden (1955 p 28) ldquoas tritiacuteas eram aacutereas geograacuteficas compactas e em alguns lugares contiacuteguasrdquo A subdivisatildeo aacutetica foi uma forma de ldquomisturar o povordquo (BUCKLEY 2010 p 128 BRAADEN 1995 p 23) As reformas de Cliacutestenes ldquopodem ter intentado transcender barreiras locais juntando homens dos distritos rurais urbanos e costeiros e desenvolver um sentimento de uniatildeordquo (HIGNETT 1952 p 141) Esta divisatildeo aacutetica foi a maneira achada para solucionar os conflitos parental-aristocraacuteticos entre as diversas facccedilotildees e partidos7

A principal diferenccedila entre as phratriai e os demoi era a ldquoconstituiccedilatildeo democraacuteticardquo (BUCKLEY 2010 p123) destes uacuteltimos Todos os temas concernentes aos demoi eram decididos natildeo mais por uma pequena phratria seleta mas por todo o demos

Alguns especialistas sustentam que Cliacutestenes com sua reforma demograacutefica desejava aumentar o poder das cidades e outros que ao contraacuterio

6 As dez era a dos Erectidas Egeus Pandion Leocircnides Acamantes Oineis Cecroacutepides Hipotoontes Eacircntides e Antiacuteoques e estavam espalhadas por todo o territoacuterio aacutetico em diferentes locais tendo muitas vezes a mesma tribo em locais diferentes totalizando assim trinta tritiacuteas Na mesma tritiacutea havia vaacuterios demoi e se crecirc ter havido cerca de 140 dēmoi em toda a Aacutetica Cada tribo eacute composta por trecircs tritiacuteas a da costa cidade e planiacutecie Cada tritiacutea foi nomeada segundo o demo dominante

7Alguns partidos regionais do seacuteculo VI aC eram pedieis cujo nuacutecleo estava concentrado na aacuterea de planiacutecie e tinha Licurgo como liacuteder paralioi cujo nuacutecleo era a aacuterea costeira e era famoso por ser a regiatildeo dos Alcmeocircnidas e por fim os hyperacrioi os ldquoaleacutem dos montesrdquo Cliacutestenes desejava quebrar a velha rivalidade entre os pediakoi paralioi e diakrioi e a influecircncia dos eupatridai (BRAADEN 1955 pp 23- 25)

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ele desejava diminuir De fato Cliacutestenes estava mais interessado dentre as trecircs grandes aacutereas em que a Aacutetica foi divida na aacuterea urbana provavelmente porque a maior parte das famiacutelias nobres eram de centros urbanos (BRAADEN 1955 pp 28-29) Aleacutem disso ldquoas tritiacuteas da Cidade consistiam de somente um demos que como a evidecircncia arqueoloacutegica mostra era a sede poliacutetica dos Alcmeocircnidasrdquo (BUCKLEY 2010 p 127) ou seja a proacutepria facccedilatildeo de Cliacutestenes

Deste modo as reformas tribais de Cliacutestenes foram um grande senatildeo o mais importante fator no desenvolvimento da democracia ateniense mas foram tambeacutem um meio de fortalecer a permanecircncia poliacutetica dos Alcmeocircnidas agraves custas de seus oponentes (BUCKLEY 2010 p 128)

Estas famiacutelias mantiveram influecircncia poliacutetica sobre o territoacuterio de onde vieram apesar de suas residecircncias estarem em aacutereas urbanas Alguns alegam como Braaden (1955 p 29) que a reforma territorial de Cliacutestenes natildeo foi um meio de beneficiar a plebe mas os aristocratas porque ldquoera necessaacuterio inventar um sistema pelo qual elas pudessem ser espalhadas por todas as tribos enquanto ainda usando localidade como a base para a cidadaniardquo

As rivalidades e conflitos entre as facccedilotildees podem ter sido causadas pela ambiccedilatildeo de poucas famiacutelias ou clatildes aristocraacuteticos que eram capazes de usar seus domiacutenios de certas regiotildees da Aacutetica como arma poliacutetica Cliacutestenes percebeu que estes blocos regionais de poder com seus liacutederes aristocraacuteticos sustentados em poder pode seus amigos e dependentes pela rede de velhas lealdades e alianccedilas eram o maior obstaacuteculo para a estabilidade poliacutetica Consequentemente houve uma radical reorganizaccedilatildeo do corpo citadino e por isso das quatro tribos jocircnicas sob os fundamentos que a dependecircncia poliacutetica do povo comum poderia somente ser quebrada pela separaccedilatildeo poliacutetica de seus liacutederes aristocraacuteticos (BUCKLEY 2010 p 126)

A artificializaccedilatildeo do territoacuterio atraveacutes de uma reforma geopoliacutetica foi o modo encontrado para enfraquecer o poder das fratrias fortalecer o poder do povo e ldquoquebrar os fortalecidos poderes regionais destes clatildes aristocraacuteticos e suas facccedilotildees acabando com as funccedilotildees poliacuteticas das fratrias e das velhas tribos [hellip] (BUCKLEY 2010 p 122) No entanto ao mesmo tempo foi um modo de fortalecer o poder de uma fratria especiacutefica a proacutepria de Cliacutestenes e descentralizar as decisotildees poliacuteticas e unificar o estado Poderiacuteamos dizer assim que a democracia ateniense foi consequumlecircncia de uma demografia antes de tudo

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Como dito acima um dos problemas sociais mais urgentes resolvidos sob Cliacutestenes ao final do seacuteculo VI eram os novos cidadatildeos sem cidadania ateniense plena A nova base de cidadania instituiacuteda por Cliacutestenes foi a localidade de nascimento e isso facilitou a inclusatildeo de novos cidadatildeos (BRAADEN 1955 p 22) Com as phratriai enfraquecidas a base de confianccedila para a cidadania agora natildeo eram mais o parentesco fictiacutecio com algum heroacutei mas simplesmente o demos ao qual algueacutem fazia parte Os deme garantiriam cidadania ateniense natildeo soacute para antigos habitantes mas tambeacutem para os novos conforme relata o proacuteprio Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses 214) Voegelin tambeacutem nos confirma ao dizer que ldquoa cidadania agora dependia do pertencimento a um dos demoirdquo e diz que a consequecircncia geral deste feito foi uma ldquodemocratizaccedilatildeo bem-sucedida da constituiccedilatildeo dissolvendo o poder da antiga estrutura gentiacutelica (VOEGELIN 2012 p190)

Aleacutem deste alargamento da cidadania a reforma demograacutefica clisteneana repercutiu na organizaccedilatildeo militar pois agora os ldquogenerais de qualquer tribo poderia vir de qualquer uma das trecircs regiotildees da Aacuteticardquo (BRAADEN 1955 p 26) A reforma territorial de Cliacutestenes foi ldquoum sistema pelo qual os Eupatridai seus inimigos talvez mas ainda homens de habilidade pudessem ser usados para favorecer na posiccedilatildeo militar e na nova e poderosa posiccedilatildeo de Prytaneisrdquo (BRAADEN 1955 p 30)

Este eacute um sistema extremamente complexo e foi implantado por Cliacutestenes com a finalidade de abolir os privileacutegios patroniacutemicos em favor dos demoniacutemicos o que aumentou o senso de pertenccedila a um dēmos nos indiviacuteduos ficando as relaccedilotildees familiares de genos cada vez mais tecircnues O dēmos portanto foi uma divisatildeo territorial artificial para impedir a forccedila poliacutetica dos genos Poderiacuteamos dizer que esse conflito entre genos e demos eacute o conflito entre a lei do Estado e o direito familiar ou ainda o conflito entre poder central e poderes regionais que estaraacute presente durante toda a histoacuteria da poliacutetica e da filosofia poliacutetica culminando em soluccedilotildees futuras como federalismo e a teoria da divisatildeo dos poderes

Esta estrateacutegia geopoliacutetica se deu justamente pela excessiva forccedila das relaccedilotildees parentais que o genos proporcionava frequentemente levando ao poder um membro proeminente de um genos que natildeo legislaria em favor do puacuteblico O genos assim se tornava representante por excelecircncia da aristocracia Logicamente a decisatildeo de Cliacutestenes natildeo foi inicialmente bem vista pois diluiacutea as relaccedilotildees familiares tradicionais do genos em troca de relaccedilotildees artificiais novas do dēmos O que se tornava decisivo daqui em diante para a poliacutetica Aacutetica natildeo era mais o nascimento a estirpe a hereditariedade miacutetica reivindicada pela aristocracia A arete saia do campo de virtudes familiares para virtudes sociais

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sempre tendo em vista a comunidade Cliacutestenes desta forma literalmente instituiu a democracia

O que foi entatildeo a democracia Aacutetica antiga Foi uma divisatildeo territorial uma estrateacutegia geopoliacutetica em prol de todas as pessoas e natildeo somente de grupos familiares bem instituiacutedos Portanto para a democracia Aacutetica antiga foi de suma importacircncia a artificializaccedilatildeo do territoacuterio Soacute desta forma pode-se afrouxar os laccedilos parentais tradicionais que sempre tenderam a se agrupar e formar oligarquias em prol de laccedilos puacuteblicos que por estarem territorialmente distantes e natildeo terem proximidades familiares auxiliaram no sentimento de pertenccedila territorial

Abstract We show in this article that Greek democracy was actually born with the Attic territorial reorganization of Cliacutestenes in 508 bC through the weakening of the genoi and phratriai in favor of the demoi Democracy then since its inception seems to have been an attempt to solve the similar problem of the conflict between the distribution of local and regional powerKeywords Cleisthenes Democracy Ancient Greece Oligarchies

Referecircncias

ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 2ordf Ed Lisboa Calouste Goubenkian 2009

BRADEEN Donald The trittyes in Cleisthenesrsquo reforms In Transactions and proceedings of the American philological association Vol86 1955 pp22-30

BUCKLEY Terry Aspects of Greek history 750ndash323bc A source-based approach London Routledge 2010

COULANGES Fustel de A cidade antiga Satildeo Paulo Martin Claret 2009DrsquoAMBROS Bruno Rodrigo Um estudo histoacuterico sobre a emergecircncia da

democracia como consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo na Greacutecia arcaica (594ndash508 aC) Orientador Jean Gabriel Castro - Florianoacutepolis SC 2014 119 p Trabalho de Conclusatildeo de Curso (graduaccedilatildeo) Universidade Federal de Santa Catarina

FINE John Van Antwerp The ancient greeks a critical history Harvard University Press 1983

GLOTZ Gustave A cidade grega Satildeo Paulo Bertrand Brasil 1988HEROacuteDOTO Histoacuterias livro V Lisboa Ediccedilotildees 70 2007JONES Nicholas The associations of classical Athens the response to

democracy Oxford University Press 1999KERCKHOVE Derrick De A Theory of Greek Tragedy SubStance Vol 9 No

4 Issue 29 (1980) pp 23-36

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LAMBERT SD The phratries of Attica Michigan Monographs in Classical Antiquity Michigan University Press 1993

TRAILL John S The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council Hesperia Supplements v 14 - The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council 1975 pp 139-169

VIAL Claude Vocabulaacuterio da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2013VOEGELIN Eric Histoacuteria das ideias poliacuteticas 1 Helenismo Roma e

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2012

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TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES

Paulo Pires Duprat1

Miserius nihil est quam mulier ldquoNada eacute mais miseraacutevel do que uma mulherrdquo

(PLAUTO As Baacutequides 41)

Resumo Muito se escreveu sobre gecircnero no mundo romano Natildeo obstante algo parece estar faltando a parte que cabe agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica desta sociedade Passado presente ou futuro as mulheres constituem no miacutenimo metade da populaccedilatildeo ao redor do globo uma forccedila de trabalho imprescindiacutevel seja em sociedades antigas ou modernas Sabemos que desde o comeccedilo dos tempos a maioria das mulheres foi submetida ao trabalho duro sob a forma de tarefas cansativas e repetitivas impostas de forma arbitraacuteria Tais atividades comeccedilavam ainda na infacircncia e jamais receberam o devido reconhecimento O objetivo deste trabalho eacute portanto resgatar o papel do trabalho das mulheres nas economias da Hispacircnia romana com especial atenccedilatildeo ao caso de Tarraco entre finais da Repuacuteblica ateacute o Principado levantando subsiacutedios locais e alhures para demonstrar a parte que coube agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica da sociedade romana

Palavras-chave Estudos claacutessicos Economia romana Trabalho feminino Estudos de gecircnero Poacutes-modernismo

Estudos claacutessicos e a naturalizaccedilatildeo dos preconceitos

Lamentamos iniciar este artigo afirmando que os estudos claacutessicos satildeo com certeza um dos campos acadecircmicos mais conservadores hieraacuterquicos e patriarcais (SKINNER 1983 p 183) Eminentes classicistas criacuteticos reconheceram que ldquoos estudos claacutessicos tecircm sido com poucas exceccedilotildees antiteoacutericos em geral e antifeministas em particularrdquo nas palavras de Nancy Sorkin Rabinowitz em sua provocante introduccedilatildeo ao Feminist theory and

1 Doutorando em Histoacuteria pela Unicamp sob orientaccedilatildeo de Pedro Paulo Abreu Funari Servidor puacuteblico federal ativo desde 2005 atuando como bibliotecaacuterio lotado na FAUUFRJ E-mail ppdupratyahoocombr

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the Classics (1993 p 1) Os estudos claacutessicos tecircm reforccedilado pontos de vista conservadores de diversas maneiras na maioria dos casos ao apoiarem-se em uma leitura empirista a partir do senso comum dos documentos antigos O uso do senso comum para a manutenccedilatildeo de relaccedilotildees iniacutequas de poder segundo as agudas observaccedilotildees do linguista britacircnico Norman Fairclough (1990 pp 84-91) contribui para que relaccedilotildees de poder injustas sejam mantidas pela naturalizaccedilatildeo dos discursos Rejeitamos portanto esta abordagem derivada do senso comum na medida em que apenas uma anaacutelise criacutetica permite compreender o ldquomasculinordquo e o ldquofemininordquo como construccedilotildees sociais que variam em termos de classe social gecircnero e etnicidade em diferentes periacuteodos histoacutericos e em diferentes sociedades (FUNARI 1995b pp 179-80) O trecho abaixo deixa claro nossa percepccedilatildeo

Eacute uma histoacuteria circular que se torna mais intensa agrave medida em que a contamos Eacute um meio de controle social e tem sido usado para regular as atividades e aspiraccedilotildees de grupos laquonaturalmenteraquo subordinados Haacute muitos presentes e passados a serem narrados mas os perdedores do jogo satildeo frequentemente os mesmos grupos subordinados (SCOTT 1993 p 8)

Enfim haacute caminhos mais justos e viaacuteveis O vieacutes com o qual nos propomos a investigar o papel nas mulheres na sociedade romana eacute declaradamente inspirado no movimento feminista que convenceu alguns historiadores2 a substituir sua perspectiva de ldquosexordquo para ldquogecircnerordquo aqui entendida como construccedilatildeo social e natildeo como categoria natural como jaacute aludido

Desconstruindo preconceitos

Por ocasiatildeo da virada do seacuteculo XX para o XXI observamos abordagens de vanguarda que transformaram os estudos claacutessicos Os historiadores do mundo romano acostumados com narrativas de cunho poliacutetico econocircmico ou militar se depararam com o surgimento de uma geraccedilatildeo de estudiosos preocupados com a revisatildeo de conceitos consagrados de criacuteticas a modelos interpretativos de cunho normativo aleacutem de muacuteltiplas propostas sobre temas ineacuteditos sendo explorados Reflexotildees sobre a cultura romana as relaccedilotildees de

2 Dentre os quais me incluo No que concerne ao meu caso em particular francamente inspirado pela teoria desconstrutivista presente nas obras de Foucault e nas leituras feministas e poacutes-feministas indicadas pela linha de pesquisa das profordfs Luana Tvardovskas Margareth Rago e Pedro Paulo Funari a partir das aulas ministradas em no 1ordm e 2ordm semestres de 2017 seguindo as prerrogativas do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Unicamp

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gecircnero conflitos eacutetnicos ou a formaccedilatildeo das novas identidades a partir do embate entre romanos e natildeo romanos passaram a figurar com mais intensidade nas publicaccedilotildees acadecircmicas especializadas Este processo que estaacute inserido em um contexto muito mais amplo resulta de questionamentos epistemoloacutegicos que as Ciecircncias Humanas tecircm enfrentado desde a deacutecada de 1960 As criacuteticas de M Foucault3 por exemplo proporcionaram uma revisatildeo no papel dos acadecircmicos e aos poucos foi se concretizando a percepccedilatildeo na qual o historiador produz discursos sobre o passado constantemente ressignificados a partir de suas proacuteprias convicccedilotildees preconceitos e limitaccedilotildees Assim vaacuterios pressupostos tatildeo arraigados na historiografia tais como a neutralidade a objetividade a busca pelo real a essecircncia de sujeitos universais e o ordenamento dos acontecimentos a partir da noccedilatildeo de classes sociais e seus conflitos socioeconocircmicos entraram em xeque e foram revistos e criticados abrindo espaccedilo para repensar as categorias de anaacutelise do passado e as metodologias empregadas para sua interpretaccedilatildeo (FUNARI GARRAFFONI 2008 p 102)

Nossas reflexotildees acerca do mundo romano inserem-se neste contexto Afinal consideramos que o estudo da Antiguidade Claacutessica natildeo precisa reforccedilar preconceitos nem constituir-se em elemento de opressatildeo (FUNARI 1995a p 31) Por outro lado devemos ter em conta que a cultura material eacute o resultado direto do trabalho humano enquanto o documento escrito eacute uma representaccedilatildeo ideoloacutegica da realidade transposta para o texto Os documentos escritos informam-nos sobre as ideias de seus autores em geral uma elite masculina que sabia ler e escrever A escrita assim eacute um instrumento de poder de classe (FUNARI 2003 p 40)

Deste modo acreditamos que muitas pesquisas que se baseiam exclusivamente em obras literaacuterias podem incorrer em imprecisotildees naturalizando discursos e cristalizando opiniotildees que na realidade natildeo eram compartilhadas pela maioria da sociedade A observaccedilatildeo abaixo resume nossa posiccedilatildeo

Para um periacuteodo como o da Histoacuteria romana ou grega () apenas a Arqueologia podia trazer informaccedilotildees concretas e se tinha a consciecircncia clara que a literatura era ldquofonterdquo mas de um valor decerto relativo erudito elitista () Quem lia Quem escrevia Quem nos garantia a fidelidade das versotildees chegadas ateacute noacutes (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

3 Margareth Rago (1995 p 72) considera que as perspectivas de Foucault representaram uma verdadeira revoluccedilatildeo na historiografia uma ldquonova maneira de problematizar a Histoacuteria de pensar o evento e as categorias atraveacutes das quais se constroacutei o discurso do historiadorrdquo (grifo da autora)

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Por tais razotildees destacamos a centralidade da Arqueologia como ferramenta natildeo soacute para compor quadro mais amplo de evidecircncias como tambeacutem para refutar algumas ideias contidas nessas fontes escritas que muitas vezes informam mais sobre a opiniatildeo dos seus autores do que da ldquorealidaderdquo que eles julgavam contar4 Felizmente jaacute acumulamos alguma tradiccedilatildeo de pesquisa arqueoloacutegica no campo da economia romana Graccedilas ao grande nuacutemero de evidecircncias disponiacuteveis o conhecimento tem evoluiacutedo tanto no campo das economias provinciais quanto no da metroacutepole Inuacutemeros artefatos resultantes de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas e o rico material epigraacutefico recuperado tecircm fomentado pesquisas que oferecem um quadro mais representativo das atividades econocircmicas desenvolvidas5 Haacute casos em que a evidecircncia eacute relativamente abundante e homogecircnea tais como por exemplo as inscriccedilotildees e os artefatos arqueoloacutegicos de Pompeacuteia ou os arquivos dos papiros gregos do Egito (BERDOWSKI 2007 p 283) que apontam para um quadro econocircmico-social muito mais multifacetado do que alguns vieses querem nos fazer crer6

As mulheres e sua Histoacuteria

Nas uacuteltimas deacutecadas temos observado sistemaacuteticos estudos sobre a atividade das mulheres na economia romana nos quais satildeo evidenciados seus papeis como forccedila de trabalho ou mesmo como empreendedoras Esta nova historiografia ao abordar as relaccedilotildees entre os sexos como resultado de uma

4 A misoginia dos autores da Antiguidade eacute flagrante e salta aos olhos Um bom exemplo disto eacute Taacutecito As mulheres descritas nos Anais de Taacutecito foram dissecadas remontadas e analisadas a partir de perspectivas psicoloacutegicas literaacuterias e ateacute dramaacuteticas Embora suas caracterizaccedilotildees sejam repletas de elementos retoacutericos em algumas ocasiotildees o autor retratou as mulheres como pessoas obcecadas pelo poder Ao referir-se agrave Agripina matildee de Nero fica patente sua fixaccedilatildeo no estereoacutetipo da dux femina e seu temor da influecircncia feminina sobre os homens - que ele considerava maligna ndash e seu alerta quanto aos ldquoperigosrdquo do abuso de poder por parte das mulheres (LrsquoHOIR 1994 McHUGH 2012 MELLOR 2010 p 131) Natildeo vamos nos aprofundar neste tema pois a noacutes interessa para o momento a atuaccedilatildeo econocircmica da mulher romana de classe baixa e meacutedia

5 A epigrafia representa portanto um manancial insubstituiacutevel Conforme aponta Encarnaccedilatildeo ldquopouco saberiacuteamos da organizaccedilatildeo romana na Peniacutensula Ibeacuterica se natildeo tiveacutessemos os documentos epigraacuteficosrdquo (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

6 O tema da economia na Antiguidade continua sendo perpassado por conflitantes visotildees acerca das rupturas e continuidades com o mundo moderno evidenciado pela polecircmica entre ldquoprimitivistasrdquo e ldquomodernistasrdquo Inicialmente conhecido como ldquoBuumlcher-Meyer Controversyrdquo este debate se encontra estigmatizado por incorrer em variaccedilotildees de uma mesma temaacutetica Seus principais artiacutefices satildeo Weber Rostovtzeff Polanyi com especial destaque para as teorias minimalistas de Moses Finley A controveacutersia eacute antiga mas estaacute distante de seu esgotamento (DUPRAT 2015 p 16) O caminho mais seguro eacute o do meio (SALLER 2002 p 252 DUPRAT 2015 pp 23-51)

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construccedilatildeo social (RAGO 1995 p 80) modificou os meacutetodos e as perspectivas da histoacuteria tradicional7 tornando-a cada vez menos descritiva mais relacional e para muitos mais problematizada A rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade8

Eacute importante ressaltar que a noccedilatildeo de economia tratada nesta pesquisa pode estar mais proacutexima do conceito original de oikonomia do mundo antigo do que a do atual a etimologia grega traduziria este termo como ldquogestatildeo domeacutesticardquo noccedilatildeo complexa com diversas implicaccedilotildees9 Sua raiz estaacute no oikos unidade domeacutestica de produccedilatildeo na qual se baseava a polis grega e cujo modelo seraacute transmitido agrave Roma Assim sendo a economia greco-romana repousava sobre nuacutecleos domeacutesticos de produccedilatildeo10 onde a participaccedilatildeo das mulheres eacute evidente Neste sentido o oikos se configura como ceacutelula econocircmica baacutesica local onde se garante a subsistecircncia aleacutem de promover a reproduccedilatildeo humana Trata-se por conseguinte de uma unidade de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo em si mesma (MIROacuteN PEacuteREZ 2004 p 67 apud MEDINA QUINTANA 2014 pp 22-23)

No mais devemos elaborar uma abordagem holiacutestica de modo a contemplar o caraacuteter diverso das relaccedilotildees de gecircnero na Antiguidade Precisamos

7 Segundo Rago (1995 p 71) ldquoos historiadores do grupo dos Annales se preocuparam com as estruturas e os diferentes ritmos e temporalidades dos fenocircmenos histoacutericos privilegiando as longas permanecircncias mentais sociais geograacuteficas e etc que Braudel identificaria posteriormente como la longue dureacutee ou seja a longa duraccedilatildeo em detrimento das mudanccedilas sociaisrdquo Bengoochea Jove (1998 p 243) acrescenta que ldquoa historiografia acadecircmica tradicional centrava sua investigaccedilatildeo na experiecircncia histoacuterica do varatildeo (grifo meu) e quando abordava a participaccedilatildeo da mulher era sempre sob o vieacutes da santa regente reformadora ou estadista Nem a revista Annales (publicada desde 1929) nem a historiografia marxista embora tenha cunhado o enfoque metodoloacutegico da ldquoHistoacuteria totalrdquo se ocuparam da problemaacutetica da mulher a natildeo ser sob perspectivas tradicionaisrdquo

8 Bengoochea Jove (1998 p 243) potildee nestes termos concluindo que a invisibilidade da mulher adveio da proacutepria concepccedilatildeo androcecircntrica e eurocecircntrica da histoacuteria que selecionou os acontecimentos que julgava dignos de anaacutelise em detrimento de outros que relegou ao esquecimento

9 Resguardo-me assim da polecircmica acerca do emprego do termo ldquoeconomiardquo para descrever realidades do mundo antigo pois haacute o argumento ldquofiloloacutegicordquo de que nem a palavra nem o conceito remontam agrave Antiguidade mas a momentos posteriores e portanto estranhos agrave consciecircncia antiga Para maiores informaccedilotildees sobre o tema sugiro Juumlrgen Deininger (2012) Ciro Cardoso (2011) e Pedro Paulo Funari

10 A famiacutelia romana foi a principal unidade de produccedilatildeo reproduccedilatildeo consumo e transmissatildeo intergeracional de propriedade e conhecimentos que englobam a produccedilatildeo no mundo romano Esta declaraccedilatildeo aparentemente banal tem implicaccedilotildees de longo alcance Na antiguidade romana (bem como em outras sociedades preacute-industriais) a famiacutelia organizava o trabalho em fazendas familiares e em oficinas urbanas tomando decisotildees sobre como implementar os esforccedilos de homens mulheres e crianccedilas (SALLER 2011 p 116)

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ter em mente que os estudos claacutessicos por conta de seu caraacuteter transdisciplinar demandam o estudo da Histoacuteria Filologia Literatura Antropologia Sociologia Arqueologia Arquitetura Histoacuteria da Arte Geografia Metalurgia Biologia entre muitas outras Tais vieses estatildeo naturalmente abertos para uma abordagem dos temas sob uma oacutetica multicultural e pluralista Em uacuteltima anaacutelise a interdisciplinaridade seraacute a ferramenta decisiva as ciecircncias natildeo satildeo apenas auxiliares umas das outras elas se locupletam Afinal os dados materiais podem confirmar complementar ou mesmo contradizer as informaccedilotildees das fontes histoacutericas (FUNARI 2003 pp 85-86)

Mulheres romanas convenccedilotildees leis e exclusatildeo social

A exclusatildeo das mulheres da histoacuteria do trabalho na Antiguidade pode ser considerada uma omissatildeo intencional no registro de sua atuaccedilatildeo Portanto se o pesquisador natildeo estiver procurando os sinais do trabalho feminino nas fontes eacute evidente que ele natildeo vai encontraacute-los As fontes literaacuterias pouco ajudam a delinear a participaccedilatildeo das mulheres e eacute faacutecil compreender o porquecirc muitos dos ideais filosoacuteficos gregos foram incorporados ao modo de vida romano (ALFARO GINER 2009 p 15) Entre os gregos havia a percepccedilatildeo de que o trabalho diaacuterio alienava o indiviacuteduo e seria degradante Eles consideravam que os ofiacutecios manuais deformavam o corpo e o espiacuterito representava um castigo para os seres humanos um esforccedilo individual grave ou um dever penoso11

De tal forma que o trabalho diaacuterio sobretudo o manual era estigmatizado no mundo antigo e jamais obteve o status de atividade ldquodignificanterdquo que logrou alcanccedilar apoacutes o advento da moderna sociedade de consumo Segundo a loacutegica machista dos letrados escritores da Antiguidade o que conferia dignidade era a atividade fundiaacuteria participar da economia como um abastado proprietaacuterio de terras do sexo masculino e viver do trabalho de seus escravos dispondo de tempo livre para o oacutecio (otium) e assim poder refletir sobre causas mais elevadas envolvendo-se em atividades consideradas artisticamente valiosas ou iluminadoras (tais como a Retoacuterica a Literatura ou a Filosofia) Devido a este modo elitista de pensar o trabalho das pessoas comuns acabou sendo destituiacutedo de qualquer valor sobretudo o das mulheres uma vez que os escritores que contaram esta histoacuteria faziam parte desta elite e menosprezaram o peso econocircmico e social que suportaram as pessoas dos demais extratos da sociedade ou seja aqueles que precisavam trabalhar diariamente para viver ou seja a grande maioria da populaccedilatildeo

11 Cf XENOFONTE Oecon IV 2 VI 5 Cir V 3 47 ARISTOacuteTELES Poliacutetica III 5 3 IV 4 9 apoacutes ALFARO GINER 2009 p 16)

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Aqui entendido como um discurso de poder este ideal greco-romano sustentava tambeacutem que homens e mulheres deveriam viver em esferas separadas O domiacutenio puacuteblico seria prerrogativa masculina enquanto que a mulher permanecia na privacidade da esfera domeacutestica Por implicaccedilatildeo o direito de engajar-se abertamente nas artes artesanato e o comeacutercio seria teoricamente reservado aos homens12 A disseminaccedilatildeo deste ldquoidealrdquo eacute predominante nas fontes literaacuterias e haacute uma pecha elitista fortemente ligada a ele (GROEN-VALLINGA 2013 p 295) Para a elite a atuaccedilatildeo da mulher estava limitada agrave esfera da famiacutelia e da household13 a casa por excelecircncia da Antiguidade aqui entendida como unidade de produccedilatildeo o que pressupunha certa autossuficiecircncia alimentar bem como a confecccedilatildeo das vestimentas num mundo onde inexistiam as facilidades proporcionadas pelas modernas redes varejistas que dispomos atualmente Tal configuraccedilatildeo econocircmica e social determinou que

A mulher tinha um papel especiacutefico e determinado no seio da casa e portanto na cidade A famiacutelia patriarcal impocircs limites sociais que as circunscreveram ao interior do lugar Os objetivos ter certeza sobre a legitimidade da descendecircncia e usar a mulher como moeda de troca nos assuntos da famiacutelia Uma ampla seacuterie de teorias para obter a submissatildeo da mulher a esses ldquopapeis marcadosrdquo foram desenvolvendo um corpo doutrinaacuterio Partindo da base da maior forccedila masculina e da debilidade da mulher se argumenta sua diferente capacidade para a realizaccedilatildeo das vaacuterias atividades (ALFARO GINER 2009 p 16)

A fraqueza fiacutesica atribuiacuteda agraves mulheres14 intimamente relacionada com seu papel bioloacutegico como matildee foi e continua sendo uma grande

12 Na Antiguidade a noccedilatildeo que emergiu a partir dos escritos de Aristoacuteteles Xenofonte e Columela era de que a divisatildeo baacutesica do trabalho confinava ldquonaturalmenterdquo as mulheres aos ambientes fechados ocupadas em tarefas domeacutesticas enquanto o papel dos homens era adquirir fora da casa os recursos necessaacuterios segundo essas fontes literaacuterias o trabalho feminino fora da casa seria uma anomalia (FOXHALL 1989 apud BERG 2016 p 51) Este eacute um discurso de elite e nossa pesquisa busca contestar tal noccedilatildeo apoiada pela Arqueologia e por uma nova abordagem multidisciplinar

13 A concepccedilatildeo de famiacutelia na sociedade greco-romana era muito diferente da moderna O latim claacutessico natildeo nos fornece termo ou expressatildeo para o que hoje compreendemos como ldquofamiacuteliardquo na cultura ocidental contemporacircnea tampouco para o que entendemos como constitutivo do nuacutecleo parental ou familiar - matildee pai filhos A centralidade que esse nuacutecleo parental desempenhava no entanto na sociedade romana onde um vasto nuacutemero de escravos e clientes pertencia e compunha aquilo que eles chamavam de famiacutelia (um ramo da gens da linhagem patrilinear) tem sido assunto de debates e estudos normalmente envolvendo a fusatildeo ou a distinccedilatildeo entre os sentidos que damos hodiernamente agrave noccedilatildeo de famiacutelia (como family) e o que os angloacutefonos entendem como ldquohouseholdldquo (TAMANINI 2014 p 215)

14 Para uma anaacutelise pormenorizada sobre o tema vide Grubbs (2002)

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inibiccedilatildeo para sua participaccedilatildeo no mercado de trabalho As mulheres foram naturalmente predestinadas a cuidar das crianccedilas e muitas vezes ficaram em casa para fazecirc-lo como consequecircncia a gestatildeo da famiacutelia tambeacutem se tornou sua responsabilidade (GROEN-VALLINGA 2013 p 297) De tal modo que as mulheres normalmente eram exaltadas pelo seu papel familiar por sua performance em prol da sobrevivecircncia da prole e natildeo por sua produccedilatildeo econocircmica Consideremos o famoso epitaacutefio de Amymone

Hic sita est Amymone Marci optima et pulcherrima lanifica pia pudica frugi casta domiseda

Aqui jaz enterrada Amymone (esposa) de Marcus melhor e mais bonita fiandeira obediente modesta frugal casta e dona-de-casa (CIL 6 11602)15

Natildeo eacute difiacutecil perceber que a capacidade reprodutora da mulher delineou esta convenccedilatildeo social que conhecemos bem a mulher ideal deve ser fiel boa matildee e dona de casa exemplar a perfeita matrona Contudo a desigualdade de gecircnero na economia natildeo eacute imposta somente atraveacutes de uma divisatildeo de trabalho desfavoraacutevel16 Ela decorre por conta da elaboraccedilatildeo de leis que tambeacutem instituem direitos desfavoraacuteveis Na legislaccedilatildeo greco-romana os direitos das mulheres de possuir comprar e vender legar e receber legados foram severamente restritos Ademais uma ampla gama de convenccedilotildees culturais e ideoloacutegicas restringiu o progresso econocircmico das mulheres (BERG 2016 p 50)

Em iniacutecios do periacuteodo republicano as mulheres tiveram reduzidas oportunidades para administrar seus proacuteprios negoacutecios Todos os membros femininos da famiacutelia romana se encontravam sob a autoridade legal do paterfamilias17 o chefe masculino da famiacutelia (em geral o progenitor) que tinha

15 Traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Groen-Vallinga (2013 p 297) versatildeo para o portuguecircs minha

16 Tanto as leis quanto a divisatildeo do trabalho foram altamente desfavoraacuteveis agraves mulheres na Antiguidade A divisatildeo do trabalho continua bastante desigual na maioria das sociedades de modo que algumas ocupaccedilotildees ainda satildeo consideradas exclusivamente femininas ou masculinas A quantidade eou a qualidade de qualquer tipo de matildeo de obra atribuiacuteda a um determinado indiviacuteduo tambeacutem foi naturalmente fortemente ditado por fatores diversos aleacutem do gecircnero tais como status social classe riqueza idade cidadania educaccedilatildeo ambiente urbano ou rural (BERG 2016 p 50)

17 Alguns autores suspeitam que a autoridade do paterfamilias romano natildeo era tatildeo absolu-ta quanto se apregoa e pode obscurecer nossa perspectiva da realidade laquoeacute importante olhar cuidadosamente para a forccedila da convenccedilatildeo que provavelmente atenuou o exerciacutecio da autoridade paterna dando agrave matildee muitos direitos efetivos que tinham pouca ou nenhuma base na lei formalraquo (DIXON 1988 p 43)

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prerrogativa em todos os tipos de accedilotildees legais dentre as quais comprar vender contrair diacutevidas intermediar transaccedilotildees etc O poder (potestas) do paterfamilias alcanccedilava todos os membros desta grande famiacutelia romana esposa filhos escravos e outros membros do clatilde natildeo necessariamente ligados por laccedilos de sangue Se uma filha se casasse com o parceiro sob o regime sine manu18 isso significava que ela permanecia sob as ordens de seu pai Caso contraacuterio ela passava para a ldquomatildeordquo (in manu) de seu marido Em alguns casos quando o marido natildeo detinha direitos plenos a mulher podia ficar sob a potestas do seu sogro (BERDOWSKI 2007 p 285)

Em ambos os casos as mulheres natildeo administravam seus proacuteprios bens e sequer tinham direito agrave propriedade conjunta com seus cocircnjuges No entanto se uma mulher permanecia sob a potestas do paterfamilias ela poderia ganhar uma independecircncia relativa apoacutes a morte do pai tornando-se sui iuris19 Este regime juriacutedico eacute apontado por alguns estudiosos como aquele que concedia mais liberdade agraves mulheres embora esta ainda tivesse que estar sob alguma forma de ldquotutela para mulheresrdquo (tutela mulierum)20 Durante a Repuacuteblica o tutor era geralmente algueacutem da famiacutelia patrilinear por exemplo um tio paterno (GRUBBS 2002 p 24) Seu papel era realizar algumas atividades legais e negoacutecios em nome da mulher tais como um testamento transacionar algum tipo de propriedade (res mancipii) ou emancipar escravos etc Berdowski (2007 p 285) defende que este instrumento flexibilizava o poder masculino sobre a mulher jaacute que nem sempre o tutor convivia no mesmo espaccedilo domeacutestico que a mulher e muito provavelmente seu controle natildeo seria tatildeo efetivo assim De tal forma que a partir do final da Repuacuteblica cada vez menos mulheres optaram por regimes que colocavam suas propriedades e a si proacuteprias sob o jugo do marido - ao inveacutes disso elas se tornavam sui iuris apoacutes a morte de seus

18 Segundo Pomeroy (1987 p 177) e Laacutezaro Guillamoacuten (2003 p 157) a partir do seacutec II a C a maioria dos matrimocircnios eram celebrados sob o regime sine manu o que na praacutetica originou um regime de separaccedilatildeo de bens que favoreceu a independecircncia econocircmica da mulher

19 As fontes arqueoloacutegicas indicam que o trabalho tecircxtil das filhas e escravas excediam a esfera domeacutestica embora elas fossem dependentes do pai ou do dono do empreendimento Natildeo eacute difiacutecil imaginar que este contexto pudesse contribuir para que filhas ou escravas pudessem alcanccedilar respectivamente o status de sui iuris ou mesmo de libertas e como tais pudessem seguir dedicando-se profissionalmente ao ofiacutecio ao qual se especializaram (LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 p 175)

20 Parece que o propoacutesito original da instituiccedilatildeo tutela mulierum era salvaguardar a heranccedila paterna da mulher para usufruto dos familiares masculinos do pai que por sua vez seriam seus herdeiros assim que ela morresse (GRUBBS 2002 p 24) Pelo visto sempre foi muito importante que o dinheiro e as propriedades ficassem sob a guarda da famiacutelia originaacuteria o que acabou por influenciar fortemente na evoluccedilatildeo das leis de heranccedila

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pais e adquiriam um tutor ou tutores (DIXON 1988 p 43) Ou seja havia espaccedilo para resistecircncia ainda que fosse velada

Entre o final da Repuacuteblica e iniacutecios do Principado a instituiccedilatildeo da tutela mulierum foi diminuindo em relevacircncia Em 9 d C Otaacutevio Augusto introduziu a ius (trium) liberorum uma lei que liberava do jugo da tutela mulerium as mulheres livres que tivessem parido trecircs filhos e para as libertas quatro (GRUBBS 2002 p 20) O imperador Claudio (41-54 d C) por sua vez aboliu a tutela para as mulheres nascidas livres (BERDOWSKI 2007 p 286)

O direito romano tardio21 seguiu esta loacutegica progressista com o reconhecimento legal dos direitos de heranccedila da matildee e mesmo dos filhos ilegiacutetimos tendecircncia jaacute observada na legislaccedilatildeo do segundo seacuteculo Muitas leis imperiais tardias foram dedicadas agrave bona materna O direito do pai sobre a bona materna foi sendo modificado de forma a que o marido detivesse apenas o usufruto (uso e posse em vida mas natildeo a propriedade absoluta ou o direito de vender e dispor) dos bens que seus filhos viessem a receber pelo lado de sua matildee (GRUBBS 2002 p 220)

Enfim haacute diversas evidecircncias de que a instituiccedilatildeo da tutela mulerium natildeo teria sido determinante para cercear a iniciativa nem a independecircncia econocircmica das mulheres deixando espaccedilo para aquelas que demonstraram habilidades comerciais e foram empreendedoras na antiga Roma (BERG 2016 DIXON 1988 amp 1992 GRUBBS 2002 LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 BERDOWSKI 2007 amp 2008) Havia espaccedilo para promoccedilatildeo social no mundo romano e muitas mulheres estavam no jogo num contexto pautado por ampla diversidade E a Arqueologia pode nos ajudar a comprovar Observem a figura nordm 1 abaixo

21 A fonte mais importante para o conhecimento do direito romano ldquoclaacutessicordquo eacute o Digesto de Justiniano que compreende cinquenta livros selecionados a partir das volumosas contribuiccedilotildees dos mais influentes juristas romanos atraveacutes dos tempos O Digesto foi compilado sob as ordens do imperador Justiniano do seacuteculo VI (reinou entre 527-565 d C) ou seja em periacuteodo bastante posterior ao apreciado neste trabalho mas serve para indicar uma tendecircncia evolutiva Justiniano instruiu sua equipe de juristas a ler milhares de paacuteginas de textos legais claacutessicos e sintetizaacute-los em um trabalho mais exiacuteguo preservando apenas o que ainda era vaacutelido e uacutetil naquele momento histoacuterico Tal medida permitiu que os estudiosos modernos reconstruiacutessem - ainda que de forma indireta e limitada - o conteuacutedo das obras originais que atualmente estatildeo perdidas (GRUBBS 2010 p 1)

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Figura 1 Relevo funeraacuterio em maacutermore de um accedilougueiro 2 d C Fonte Foto Elke Estel Skulpturensammlung Staatliche Kunstsammlungen Dresden Germany Cor-tesia de Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz BerlinStaatliche Kunstsammlungen DresdenElke EstelArt Resource NY In KNAPP 2013 p 75

Acima relevo funeraacuterio do seacutec 2 d C com representaccedilatildeo de cena cotidiana em um accedilougue em Roma indicando de modo claro o trabalho cooperativo o homem fatia as carnes enquanto a mulher toma conta dos livros Observem agora a figura 2

Figura 2 Escultura em relevo ca2 d C Ostia Museo Ostiense Ostia Antica Itaacutelia Inv 134 Fonte Foto Schwanke (Neg 19803236) Cortesia The Deutsches Archaumlologisches Institut em

Roma In KNAPP 2013 p 75

Temos acima uma escultura em relevo (ca 2 d c) com representaccedilatildeo de cena cotidiana no mercado duas mulheres trabalhando em uma loja atendendo os clientes na compra de gecircneros alimentiacutecios Outra atividade profissional desempenhada por mulheres pode ser depreendida a partir da

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figura 3 abaixo onde apresento mais uma representaccedilatildeo de cena cotidiana no comeacutercio da cidade monumento funeraacuterio datado entre o 1 e o 2 seacutec d C dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia que exercia uma profissatildeo que eacute considerada masculina ateacute os dias atuais Seraacute que as melhores fabricantes de sapatos em tempos romanos foram as mulheres A saber

Figura 3 monumento funeraacuterio dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia data-do entre o seacutec 1 a 2 d C Fonte (CIL 144698 apud LOacuteVEN 2016 p 210)

Enfim as figuras 1 2 e 3 representam mulheres em diferentes atuaccedilotildees profissionais e reforccedilam as evidecircncias que elas faziam parte do mercado de trabalho no mundo romano Este tipo de trabalho escultoacuterio era encomendado por interessados de diversos niacuteveis sociais e natildeo haacute motivos para supor que os artistas representassem cenas fictiacutecias ou imaginaacuterias

A discriminaccedilatildeo de gecircnero sem duacutevida circunscreveu a realidade do mercado de trabalho urbano romano mas isso natildeo deve nos cegar para as variadas e vitais contribuiccedilotildees das mulheres romanas para a economia

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Dispomos de documentaccedilatildeo arqueoloacutegica comprovando que as mulheres tinham ocupaccedilotildees muito amplas que vatildeo desde sapateiras ateacute escravas que fizeram da fiaccedilatildeo (quasillaria) suas vidsa Eacute necessaacuterio explicar ao inveacutes de justificar a ocorrecircncia regular de mulheres romanas que natildeo coincidem perfeitamente com a imagem da matrona domeacutestica (GROEN-VALLINGA 2013 p 296)

O trabalho feminino e a epigrafia

A epigrafia se apresenta como uma fonte direta de informaccedilotildees pois foram pessoas de diferentes estatutos juriacutedicos que mandaram realizar as inscriccedilotildees que tomando-se as devidas precauccedilotildees podem oferecer dados capazes de apoiar algumas conclusotildees vaacutelidas (MEDINA QUINTANA 2014 p 22) Portanto essa ciecircncia tem sido utilizada para elucidar aspectos da economia romana e para evidenciar os papeacuteis econocircmicos das mulheres Cabe aqui ressaltar o trabalho inovador que foi desenvolvido por Susan Treggiari que publicou trecircs artigos sobre as ocupaccedilotildees femininas (1975 1976 e 1979) baseados nas evidecircncias epigraacuteficas da cidade de Roma no periacuteodo imperial revelando uma tendecircncia de grande interesse pela histoacuteria das mulheres no final do seacutec XX Seu estudo recuperou imensa quantidade de dados acerca das ocupaccedilotildees profissionais femininas existentes na casa imperial e equipes domeacutesticas de famiacutelias abastadas na cidade de Roma bem como entre os setores artesanais e comerciais da cidade A pesquisa alcanccedilou vaacuterias conclusotildees importantes sobre empregos masculinos e femininos e representa uma contribuiccedilatildeo valiosa para o tema Infelizmente natildeo inspirou pesquisas subsequentes capazes de oferecer uma continuaccedilatildeo adequada em relaccedilatildeo aos temas que ela desenvolveu Portanto o trabalho de Treggiari continua atual e representa um formidaacutevel ponto de partida para novos estudos sobre os papeacuteis ocupacionais das mulheres romanas (LOVEacuteN 2016 p 201)

O principal corpus disponiacutevel para a Peniacutensula Ibeacuterica eacute o CIL - Corpus Inscriptionum Latinarum a primeira grande coleccedilatildeo epigraacutefica iniciada por Theacuteodor Mommsen em meados do seacuteculo XIX haacute tambeacutem diversas revistas especializadas sobre epigrafiacutea tais como LrsquoAnneacutee Epigraphique Hispania Epigraphica ou Hispania Antiqua Epigraphica que tecircm sido atualizadas a partir da incorporaccedilatildeo de novas inscriccedilotildees ou de renovadas interpretaccedilotildees de epiacutegrafes jaacute conhecidas Haacute tambeacutem recompilaccedilotildees de epiacutegrafes romanas localizadas nas proviacutencias linha que Geacuteza Alfoumlldy iniciou em 1975 com as inscriccedilotildees de Tarraco (GOROSTIDI 2013 pp 135-143 MEDINA QUINTANA 2014 p 22)

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As mulheres fiandeiras

Dentre os trabalhos tipicamente relegados agraves mulheres um se destaca o ofiacutecio de fiar latilde ou lanificium siacutembolo da feminilidade da bondade e da castidade Uma das imagens ideais de feminilidade no mundo antigo eacute representado por uma mulher fiando Ao longo da histoacuteria o imaginaacuterio patriarcal se apropriou desta icocircnica atividade para apresentar como deveria ser o comportamento ideal de toda mulher respeitaacutevel quieta trabalhadora e pudica - o que nos remete agrave imagem da fiel Peneacutelope sempre ocupada com seu tear e aguardando o retorno de Odisseu seu marido A figura das fiandeiras se encontra bastante representada na iconografia greco-romana de tal modo que a boa esposa dos ideais greco-romanos conseguiu transcender esses mundos e permaneceu viva no imaginaacuterio burguecircs Talvez por essa razatildeo vaacuterios estudos exploraram a relaccedilatildeo entre as mulheres e o mundo tecircxtil seja sob o vieacutes simboacutelico ou instrumental O fuso e roca satildeo portanto dois elementos associados com o feminino sendo apresentadas sob as mais diversas representaccedilotildees peccedilas de teatro objetos da vida cotidiana (vasos acircnforas espelhos) enxovais mosaicos pinturas parietais estelas funeraacuterias (MEDINA QUINTANA 2009 p 52) Vejam abaixo uma das representaccedilotildees de Peneacutelope em um vaso de figuras negras do seacutec V a C

Figura 4 Peneacutelope em seu tear assistida por Telecircmaco representado em um skyphos do seacuteculo V a C Fonte lthttpwwwperseustuftseduhopperimageimg=Perseusimage1993010667gt Acesso em 26122017

Diante destas questotildees podemos sugerir que a produccedilatildeo de tecidos rompia as barreiras sociais e unia todas as romanas uma vez que esta atividade representa um ldquofiordquo condutor entre as matronas de famiacutelia de alta posiccedilatildeo

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econocircmica suas escravas e as mulheres livres de baixa condiccedilatildeo social que desempenhavam a atividade para obter seu sustento Cada grupo feminino mantinha relaccedilatildeo muito peculiar com esta atividade com certeza muito diferentes entre si No caso das aristocratas consistia mais numa representaccedilatildeo simboacutelica - especialmente durante os finais da Repuacuteblica (133-31 a C) e o Principado (31 a C - 284 d C) - enquanto que para as escravas e as mulheres livres de condiccedilatildeo humilde representou um ofiacutecio verdadeiro (idem 2009 53) Presume-se que uma das razotildees para que este trabalho fosse tatildeo difundido na Antiguidade se deve por ter alccedilado o status de uacuteltimo recurso de sobrevivecircncia das mulheres pobres livres detendo a mesma importacircncia que a costura teve para a histoacuteria do trabalho feminino no seacuteculo XIX (TREGGIARI 1979 p 69)

Fulvia Lintearia em Tarraco

Para o caso da Hispacircnia romana Cartago Nova e Tarraco foram centros portuaacuterios artesanais cosmopolitas intimamente ligados agrave Roma e ldquoconectadosrdquo com as uacuteltimas tendecircncias contando com elevado percentual populacional de cidadatildeos fluentes em latim tais como soldados membros da administraccedilatildeo provincial negociantes e comerciantes Satildeo oriundas destas duas cidades as mais conhecidas epiacutegrafes latinas em pedra na Hispacircnia para o periacuteodo Republicano muitas delas estatildeo ligadas agrave esfera civil e religiosa fazendo parte de grandes complexos sepulcrais alguns com esculturas de togados sinalizando a ligaccedilatildeo entre epigrafia e monumentalizaccedilatildeo enquanto outras refletem suas crenccedilas religiosas Com frequecircncia satildeo epitaacutefios e nestas duas cidades a epigrafia latina se apresenta como um trabalho sobretudo encomendado por particulares (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 42-43)

Tarraco22 foi uma das cidades mais prestigiadas da Antiguidade Laacute podemos identificar um grupo de mulheres e homens membros da elite social da eacutepoca graccedilas agrave epigrafia preservada (DOMINGUEZ ARRANZ GREGORIO NAVARRO 2014 p 253) Felizmente nos tempos antigos era comum utilizar a pedra como suporte para inscriccedilatildeo de textos o que permitiu que recuperaacutessemos parte da histoacuteria desses povos Vale lembrar que este conjunto de epiacutegrafes conservadas representa iacutenfima fraccedilatildeo da produccedilatildeo escrita destas sociedades jaacute que os suportes da escrita que eles costumavam utilizar eram materiais mais baratos de origem mineral vegetal e animal

22 ldquoDentre as cidades da Hispacircnia romana a Colonia Iulia Urbs Triumphalis Tarraco eacute aquela com o mais rico patrimocircnio epigraacutefico () Eacute inestimaacutevel para o estudo da histoacuteria da cidade e do mundo em geral bem como a histoacuteria social (ALFOumlLDY apud GOROSTIDI 2013 p 135)

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tais como o pergaminho o papiro tabuletas de madeira placas de argila ou cera peles e etc Mas a natureza pereciacutevel destes materiais os condenou ao desaparecimento salvo rariacutessimas exceccedilotildees como as tabuletas encontradas em Vindolanda ou na Campacircnia (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 21-22)

Como jaacute aludido muito frequentemente as inscriccedilotildees funeraacuterias aludem ao trabalho em latilde que a defunta realizava (lanifica) Mas este universo era mais complexo e diversificado as artesatildes se especializavam de acordo com a fibra empregada Por exemplo a especialista em fiar o linho23 eacute a lintearia Beltraacuten Lloris e Estaraacuten Tolosa (2011 18) vatildeo aleacutem e natildeo soacute confirmam que a palavra lintearia se refere agrave profissatildeo de tecedora de linho bem como que esta ocupaccedilatildeo sem duacutevida ocorria na cidade de Tarraco haja visto que esta era conhecida pelo cultivo da planta que produz esta fibra como jaacute foi aludido por Pliacutenio o Velho (PLIacuteNIO Hist Nat XIX 10) Pois bem algueacutem em Tarraco dedicou uma epiacutegrafe para Fulvia lintearia (datada por volta da mudanccedila de Era inscriccedilatildeo hoje desaparecida) Medina Quintana (2009 p 61) esclarece que lintearia significa ldquovendedora de lenccedilosrdquo Treggiari (1979 p 70) acrescenta que provavelmente ela seria uma vendedora de roupas e que ela proacutepria deveria fiar o tecido para produzir as peccedilas que vendia

Devo ressaltar mais uma vez o trabalho de Geacuteza Alfoumlldy (1935ndash2011) apontado como o mais proeminente cientista no campo da epigrafia latina claacutessica e um dos principais especialistas no campo da Histoacuteria Social do mundo romano - que dedicou parte de sua trajetoacuteria acadecircmica ao levantamento epigraacutefico da cidade de Tarraco Em seguida dispomos a inscriccedilatildeo perdida tal como foi registrada pelo ceacutelebre professor

Fulvia lintearia

(CIL 02 04318a apud ALFOumlLDY 1975 p 1)

Abaixo a figura 5 sugere como deveria ser a aparecircncia de uma loja de tecidos no mundo romano

23 O linho proveacutem de uma planta herbaacutecea que chega a atingir um metro de altura e pertence agrave famiacutelia das linaacuteceas Abrange um certo nuacutemero de subespeacutecies reunidas pelos botacircnicos sob o nome de Linum Usitatissimum Fonte Wikipeacutedia

Tema Livre

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Figura 5 Estabelecimento de comeacutercio de tecidos Florenccedila Itaacutelia I d C Fonte (GLAD sd 2)

O casal enquanto unidade de produccedilatildeo

Nosso objetivo neste trabalho foi traccedilar um panorama geral de como podemos alcanccedilar a histoacuteria econocircmica das mulheres romanas atraveacutes da Arqueologia e de uma abordagem multidisciplinar adotando uma postura acadecircmica pautada pela equidade preocupada com a igualdade de gecircnero - obviamente sem a pretensatildeo de esgotar o tema Esta pesquisa pretende conscientizar que apesar das restriccedilotildees legais ideoloacutegicas e culturais pelas quais as mulheres passaram e continuam passando elas sempre desempenharam papel primordial na economia de todos os tempos Podemos resgatar suas trajetoacuterias natildeo somente como forccedila de trabalho como tambeacutem podemos destacar sua atuaccedilatildeo empreendedora lutando empenhadas em fazer sobreviver a famiacutelia e gerar sua descendecircncia aleacutem da de seu marido perpetuando um sistema As mulheres romanas se envolveram com certeza em atividades comerciais e negoacutecios em geral decerto natildeo de forma equivalente mas similar aos homens Mas natildeo soacute atuaram sempre como as inseparaacuteveis companheiras configurando-se como a outra variaacutevel da mesma equaccedilatildeo parte indissociaacutevel do casal enquanto unidade de produccedilatildeo Para os homens do povo as mulheres representavam uma oportunidade de viver mais e melhor de trabalhar e prosperar de aumentar sua qualidade de vida e garantir suas chances de transmitir seus genes adiante cumprindo o papel bioloacutegico original de ambos os sexos A uniatildeo faz a forccedila A ideia eacute antiga mas eficiente Para

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Tema Livre

a iconografia romana do periacuteodo o gesto do dextrarum iunctio ndash o famoso aperto de matildeos direitas ndash quando realizada entre um homem e uma mulher geralmente retrata um casal legalmente casado representando um siacutembolo da uniatildeo pelo bem comum que visa instintivamente agrave perpetuaccedilatildeo da espeacutecie Tal como demonstra a figura 6 abaixo

Figura 6 Placa funeraacuteria do lanarius de C Cafurnius Antonchus e de sua esposa Veturia Deuteria em Roma ca1 d C Fonte (CIL 69489 apud LOacuteVEN 2016 p 213)

Em suma para prosperar de forma efetiva o homem precisa da mulher provavelmente mais do que a mulher precisa do homem Mas esta polecircmica fica para pesquisas posteriores

Trabalho feminino hoje

Desde o Periacuteodo Claacutessico ateacute bem recentemente o mundo do trabalho feminino seguiu sem grandes modificaccedilotildees durante milecircnios ateacute que as revoluccedilotildees do seacuteculo XIX promoveram as mudanccedilas necessaacuterias para que novos sistemas educativos permitissem o acesso da mulher agrave cultura promovendo sua atuaccedilatildeo fora de casa e sua incorporaccedilatildeo agrave toda uma seacuterie de trabalhos que num primeiro momento representaram um mero prolongamento das tarefas desempenhadas no acircmbito domeacutestico ateacute que com o tempo foram ampliando sua participaccedilatildeo nos setores reconhecidamente produtivos (BENGOOCHEA JOVE 1998 p 242)

A partir da consolidaccedilatildeo do sistema capitalista do advento do movimento sufragista e da luta pelo direito agrave representaccedilatildeo poliacutetica a evoluccedilatildeo

Tema Livre

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da legislaccedilatildeo no que se refere aos direitos das mulheres evoluiu respondendo aos novos anseios da sociedade Apesar destas conquistas a desigualdade e exploraccedilotildees continuaram a ocorrer Natildeo obstante apoacutes as 1ordf e 2ordf Guerras Mundiais as mulheres tiveram a efetiva chance de ocupar seu espaccedilo no mercado de trabalho e desde entatildeo elas tecircm feito a diferenccedila No que se refere ao mundo ocidental estatiacutesticas apontam que as mulheres estatildeo avanccedilando em todas as aacutereas Elas respondem pela maior parte das vagas nas universidades Estatildeo conseguindo emprego com mais facilidade e seus rendimentos estatildeo crescendo em ritmo mais acelerado Contudo mesmo apoacutes tanta luta ainda natildeo alcanccedilaram posiccedilatildeo de igualdade perante os homens haja visto que continuam ocorrendo discriminaccedilotildees asseacutedios violecircncias e preconceitos que podem ser exemplificadas pela desigualdade salarial que persiste entre homens e mulheres na ordem de 30 em meacutedia Como se jaacute natildeo bastasse a representatividade das mulheres na poliacutetica e seu acesso aos cargos mais elevados do mundo corporativo e do serviccedilo puacuteblico continuam deixando muito a desejar

Isto posto fica claro de que as mulheres jaacute caminharam muito mas ainda haacute um longo caminho pela frente Contudo elas contam agora com o apoio de muitos homens que satildeo aderentes agrave sua causa e de vieses interpretativos que privilegiam a igualdade Eacute um processo que natildeo tem retorno Embora estejamos permanentemente agraves voltas com as reaccedilotildees do conservadorismo seraacute como jaacute o dissemos a rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade (BENGOOCHEA JOVE1998 p 243)

Contudo para continuarmos caminhando na direccedilatildeo da justiccedila sempre vamos precisar de mulheres que natildeo se conformam com as imposiccedilotildees da sociedade que sejam transgressoras ousadas valentes excecircntricas e fujam das normas recusem casamentos tranquilos e abram matildeo da paz do lar domesticado para descobrirem outros rumos ou para encontrarem-se consigo mesmas produzindo novos modos de estar no mundo A leitura feminista do passado permite um fortalecimento de si e das outras no presente (RAGO 2013 p 311)

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Tema Livre

Abstract Much ink has been spilled about gender in the Roman world Nonetheless something seems to be lacking the part that is up to the women in economic production of this society Past present or future women constitute at least half the population around the globe an indispensable working force either in ancient or modern times We know that since the beginning of the ages most women were forced to work hard in tedious and repetitive tasks arbitrarily imposed The activities used to start as early as childhood and it had never been properly recognized The aim of this work is therefore to recover the role of the womenrsquos work in the economies of Roman Hispania with special attention to the case of Tarraco starting from the end of the Roman Republic until the Principate Period raising local and elsewhere evidence to show the position women deserve in the economic production of Roman societyKeywords Classical studies Roman economy Womenrsquos work Gender studies Postmodernism

Referecircncias

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Normas de Publicaccedilatildeo

Normas de Publicaccedilatildeo

A Heacutelade eacute estruturada em trecircs seccedilotildees

a) Dossiecircs

b) Artigos de tema livre

c) Resenhas

Os dossiecircs satildeo propostos pelo Conselho Editorial que pode tanto convidar especialistas no tema quanto receber contribuiccedilotildees de autores interessados As chamadas satildeo puacuteblicas e feitas a cada ediccedilatildeo da revista Os artigos de tema livre podem abordar questotildees diversas desde que versem sobre a Antiguidade Seratildeo aceitas resenhas de livros ou coletacircneas com temaacuteticas associadas agrave Antiguidade que tenham sido publicados haacute pelo menos trecircs anos (considerando a data de envio da resenha)

Instruccedilotildees aos autores

- Exige-se que os autores tenham pelo menos o tiacutetulo de mestre Alunos de graduaccedilatildeo poderatildeo publicar artigos desde que em coautoria com doutores

- Todos os artigos satildeo avaliados por pelo menos dois pareceristas ad-hoc externos e anocircnimos no sistema de avaliaccedilatildeo por pares (duplo-cego) A publicaccedilatildeo depende tanto de sua aprovaccedilatildeo quanto da decisatildeo final do Conselho Editorial que pode recusar caso natildeo julgue adequado para compor a ediccedilatildeo

- Seratildeo aceitos artigos ineacuteditos escritos em portuguecircs francecircs inglecircs espanhol e italiano

- Os autores satildeo responsaacuteveis pela revisatildeo geral do texto

- Todas as propostas devem ser enviadas exclusivamente para o e-mail revistaheladegmailcom

Formato dos artigos

Todos os artigos deveratildeo ser enviados em formato Word (doc ou docx) margens 3 cm A4 fonte Times New Roman 12 pt Os tiacutetulos devem ser centralizados em caixa alta e negrito Abaixo do tiacutetulo agrave direita em itaacutelico e caixa normal deve constar o nome do autor com uma nota de rodapeacute indicando a maior titulaccedilatildeo a filiaccedilatildeo institucional e um e-mail para contato Em seguida

os resumos e palavras-chave em portuguecircs e liacutengua estrangeira alinhadas agrave esquerda No corpo do artigo todas as citaccedilotildees com mais de trecircs linhas devem ser destacadas As citaccedilotildees devem ser feitas da seguinte forma

- Se forem indicaccedilotildees bibliograacuteficas devem ser inseridas no corpo do texto entre parecircnteses Em caso de produccedilatildeo historiograacutefica deveraacute ser feita com sobrenome do autor ano e paacuteginas Exemplo (FINLEY 2013 p 71)

- Para citaccedilatildeo de textos antigos a indicaccedilatildeo seraacute feita com o nome do autor tiacutetulo da obra em negrito cantocapiacutetulo e passagem Exemplo (HOMERO Iliacuteada III 345)

- No caso de notas explicativas numerar e remeter ao final do artigo

Apoacutes o uacuteltimo paraacutegrafo dos artigos devem constar as Referecircncias lis-tadas em ordem alfabeacutetica pelo sobrenome do autor seguindo as normas da ABNT (NBR 10520) como nos exemplos

Para livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Ed-itora ano

Ex FINLEY Moses I Economia e Sociedade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

Para capiacutetulo de livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do Artigo In SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Editora ano p

Ex THOMAS Rosalind Ethnicity Genealogy and Hellenism in Herodo-tus In MALKIN Irad Ancient Perceptions of Greek Ethnicity Washing-ton DC Harvard University Press 2001 p 213-234

Para artigos de perioacutedicos

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do artigo Tiacutetulo do Perioacutedico Cidade v n ano p

Ex CARDOSO Ciro Flamarion O Egito e o Antigo Oriente Proacuteximo na segunda metade do segundo milecircnio aC Heacutelade Niteroacutei v 1 n 1 2000 p 16-29

Em caso de utilizaccedilatildeo de fontes especiais (grego aacuterabe hieroacuteglifo etc) o autor deveraacute enviar uma coacutepia das mesmas Caso utilize imagens aleacutem de constarem no corpo do texto as mesmas deveratildeo ser enviadas separadamente em uma resoluccedilatildeo de 300 dpi

wwwheladeuffbr

Page 5: HÉLADE - Volume 3, Número 3helade.uff.br/helade_v3_n3_edicaocompleta.pdf · 2018. 9. 20. · 3 O primeiro número da nova série (v. 1, n. 1) foi uma edição especial em que convidamos

Editorial

5

trabalhos apoacutes as criacuteticas e sugestotildees pertinentes A opccedilatildeo pela publicaccedilatildeo de dossiecircs3 estimulou diversas reflexotildees acerca de temaacuteticas prementes do nosso presente referendando natildeo apenas o fato de que toda Histoacuteria eacute por princiacutepio contemporacircnea mas tambeacutem que a Antiguidade eacute um locus privilegiado para refletirmos sobre nossos dilemas e conflitos Os nuacutemeros que sintetizam esse trabalho satildeo bastante elucidativos foram publicados ateacute o momento um total de 67 artigos o que assegura uma meacutedia de pouco mais de 8 artigos por nuacutemero

Desde o iniacutecio a revista buscou garantir a ampla participaccedilatildeo de especialistas que se dedicam ao estudo da Antiguidade Uma vez que os artigos satildeo avaliados pelo sistema ldquoduplo-cegordquo os editores partiram da premissa de que a qualidade estava antes associada ao meacuterito dos trabalhos do que pura e simplesmente agrave titulaccedilatildeo Nesse sentido ao longo desses trecircs anos acolhemos com entusiasmo artigos assinados por mestres doutorandos e doutores4 contrariando a loacutegica do doutoramento obrigatoacuterio comumente adotado como criteacuterio nas avaliaccedilotildees Outrossim como indicam os nuacutemeros 682 dos artigos foram enviados por especialistas com doutorado5 (45 no total) e 318 por mestres (22 no total) Trata-se em certa medida de uma proporccedilatildeo esperada tendo em vista que eacute usual acumular mais debates e reflexotildees agrave medida que possuiacutemos mais tempo dedicado agraves pesquisas Outrossim a participaccedilatildeo de pesquisadores em estaacutegios iniciais de formaccedilatildeo tambeacutem foi assegurada atraveacutes de artigos em coautoria Do total 56 artigos (833) foram assinados individualmente e 11 (166) em coautoria Ao longo do triecircnio a Heacutelade contou a participaccedilatildeo de 70 autores desses apenas 6 (87) assinaram mais de um artigo

3 O primeiro nuacutemero da nova seacuterie (v 1 n 1) foi uma ediccedilatildeo especial em que convidamos autores

da primeira seacuterie da revista a revisitarem os temas publicados haacute 15 anos Em seguida publicamos

dossiecircs com os seguintes tiacutetulos Literatura Antiga Tempo e Tradiccedilatildeo (v 1 n 2) Jogos Desporto e Praacuteticas Corporais na Antiguidade (v 2 n 1) Religiotildees no Mundo Antigo (v2 n 2) Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) e Etnicidade e

as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2)

4 Aleacutem de graduandos graduados e mestrados desde que em coautoria com doutores como

indicado em nossas normas de publicaccedilatildeo (httpwwwheladeuffbrnormashtml)

5 Incluindo os artigos em coautoria e nesse caso considerando a titulaccedilatildeo maacutexima de um dos

autores

6

EditorialA diversidade teoacuterico-metodoloacutegica foi assegurada pela ampla participaccedilatildeo de pesquisadores e pesquisadoras de Histoacuteria Letras Psicologia Filosofia e Arqueologia A pluralidade de temas tambeacutem ficou marcada por artigos que versavam sobre questotildees associadas agrave Antiguidade Claacutessica ao Antigo Oriente Proacuteximo e ao Ensino de Histoacuteria Em relaccedilatildeo agrave origem institucional dos autores os nuacutemeros indicam uma crescente ampliaccedilatildeo do escopo da revista e a recusa intransigente a qualquer possibilidade de endogenia A maioria dos participantes estaacute vinculada a universidades brasileiras6 (803)

6 Lista de universidades brasileiras participantes Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Universidade do Estado do Amapaacute (UEAP) Universidade Estadual do Maranhatildeo (UEMA)

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Universidade Federal do Espiacuterito Santo

(UFES) Universidade Federal Fluminense (UFF) Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Universidade Federal do Paranaacute (UFPR)

Universidade Federal do Recocircncavo da Bahia (UFRB) Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC) Universidade de Brasiacutelia (UnB) Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP) Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Editorial

7

mas a diversidade institucional dos autores estrangeiros7 (197 do total) sinaliza uma tendecircncia bastante significativa de internacionalizaccedilatildeo da Heacutelade No total foram vinte universidades brasileiras e dez universidades estrangeiras representadas por seus autores ao longo desse primeiro triecircnio

A preocupaccedilatildeo com a divulgaccedilatildeo dos trabalhos tambeacutem marcou e consolidou a participaccedilatildeo ativa da Heacutelade nas redes sociais em particular no Facebook (httpswwwfacebookcomrevistaheladeuff) Atualmente nessa rede social 4755 usuaacuterios acompanham nossas publicaccedilotildees Aleacutem de replicarmos notiacutecias relativas agrave Antiguidade divulgarmos a abertura de concursos puacuteblicos entrevistas lanccedilamentos editoriais e nuacutemeros de revistas tambeacutem dedicadas ao estudo do mundo antigo a divulgaccedilatildeo dos dossiecircs aproximou a Histoacuteria Antiga de um puacuteblico muitas vezes privado do acesso agrave produccedilatildeo acadecircmica pela forma com que nosso campo se estrutura O iacutendice de alcance das publicaccedilotildees eacute um poderoso indicativo desse movimento O uacuteltimo dossiecirc publicado Etnicidade e as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2) teve um alcance de 36272 pessoas Nuacutemero decerto bastante expressivo mas em nada equiparado ao de temaacuteticas que dialogam diretamente com questotildees poliacuteticas em que estamos diretamente envolvidos no presente da vida social O dossiecirc Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) por exemplo atingiu 51116 pessoas menos da metade das 127540 pessoas alcanccediladas pelo dossiecirc Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Esta atuaccedilatildeo atraveacutes das redes sociais seraacute ampliada no iniacutecio de 2018 com a construccedilatildeo de uma paacutegina no Academiaedu

A Heacutelade eacute resultado do envolvimento coletivo dos membros do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA) vinculado ao Departamento de Histoacuteria e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF) Trata-se de uma iniciativa somente possiacutevel no marco de um trabalho em equipe que envolve editores assistentes de ediccedilatildeo conselho editorial e conselho consultivo O crescimento e consolidaccedilatildeo da Heacutelade tambeacutem eacute a expressatildeo do suporte assegurado pela universidade puacuteblica e pelo trabalho que busca recrudescer seu caraacuteter democraacutetico assegurando o compromisso com uma instituiccedilatildeo que

7 Lista de universidades estrangeiras participantes Universidad Central de Venezuela Universidad

de Alicante Universidad de Moroacuten Universidad Nacional de Mar del Plata Universidade Aberta

de Lisboa Universitagrave degli studi di Roma ldquoTor Vergatardquo Universitagrave degli Studi di Verona

University of London Newcastle University e Universidade de Coimbra

8

Editorial

deve ser sempre gratuita e cada vez mais apta a fomentar ensino pesquisa e extensatildeo de qualidade Ainda que os nuacutemeros ajudem a produzir uma siacutentese do trabalho realizado nesse triecircnio e forneccedilam dados estatiacutesticos para os planejamentos futuros eles satildeo incapazes de representar nosso contentamento pelo acolhimento da revista A equipe da Heacutelade agradece os leitores assim como aos autores dos artigos que tambeacutem possibilitam que este trabalho aconteccedila Seguiremos com a mesma disposiccedilatildeo

Tema Livre

9

O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEM ACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA

Talita Nunes Silva Gonccedilalves1

Resumo O presente artigo visa fazer uma breve discussatildeo sobre o conceito de alteridade e seu uso nas pesquisas referentes a antiguidade grega para posteriormente abordar a construccedilatildeo da identidade helecircnica e mais especificamente a do cidadatildeo ateniense por meio da contraposiccedilatildeo com o femininoPalavras-chaves Identidade alteridade cidadatildeo Atenas feminino

Este artigo tem por objetivo inicial apresentar como o conceito de lsquoalteridadersquo tem sido abordado nas pesquisas em Histoacuteria Antiga e particularmente na Antiguidade Grega Num segundo momento propomos uma reflexatildeo concernente agrave construccedilatildeo da identidade helecircnica em contraposiccedilatildeo a figura do lsquoOutrorsquo o que se deu principalmente apoacutes o fim das guerras contra os persas Por uacuteltimo abordamos a alteridade feminina e a sua particularidade de se constituir um lsquoOutrorsquo dentro da proacutepria cultura grega e especificamente na ateniense

A noccedilatildeo moderna de lsquoalteridadersquo surge na deacutecada de 1960 no bojo dos estudos feministas e das pesquisas relativas aos esquecidos isto eacute aos excluiacutedos da histoacuteria (dentre os quais podemos citar as mulheres os escravos e os pobres) Tais estudos refletem intensamente sobre o significado deste conceito na sociedade As concepccedilotildees relativas agrave lsquoalteridadersquo se disseminaram por outros campos de estudo como a antropologia e a ciecircncia poliacutetica por meio da adaptaccedilatildeo gradativa das ideias do filoacutesofo Emmanuel Leacutevinais Seu pensamento encontra-se articulado em Alteriteacute e transcendance (1995) obra que reuacutene uma coleccedilatildeo de artigos publicados entre a deacutecada de 60 e o final dos anos 80

1 Doutora em Histoacuteria Antiga e professora substituta da Universidade Federal Fluminense Endereccedilo eletrocircnico talitanunesuolcombr

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Raphaeumll Weyland pesquisador que trabalhou com o tema Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (2012) ao refletir sobre a lsquoalteridadersquo pondera que os trabalhos publicados nos uacuteltimos anos sobre o assunto ldquonos mostram que cada um rejeita por meio da figura do lsquooutrorsquo (uma figura externa) as caracteriacutesticas que sua cultura considera negativasrdquo (WEYLAND 2012 p 4) O autor observa que ldquoeste lsquooutrorsquo natildeo eacute necessariamente eacutetnico ele pode ser tambeacutem econocircmico sexual ou mesmo poliacutetico O estudo da maneira como o outro eacute representado permite portanto compreender melhor os valores importantes da sociedade do emissor destas opiniotildees

O trabalho de Weyland relativamente recente mostra que a noccedilatildeo de lsquoalteridadersquo e os questionamentos suscitados por ela alcanccedilaram igualmente as pesquisas em histoacuteria antiga Haacute um bom nuacutemero de publicaccedilotildees que se inserem nesta perspectiva dentre as quais podemos destacar o livro O espelho de Heroacutedoto (1999) do historiador francecircs Franccedilois Hartog Esta obra tem sido desde sua publicaccedilatildeo muito importante para a reflexatildeo relativa agrave alteridade e a maneira como ela foi descrita Neste livro Hartog se concentra especialmente sobre o modo como Heroacutedoto descreveu os costumes dos citas e apresenta as contradiccedilotildees entre os relatos do historiador antigo e os dados arqueoloacutegicos Por meio da anaacutelise das Histoacuterias de Heroacutedoto o historiador francecircs busca examinar a lsquopsiquecircrsquo grega Para Hartog a identidade de um povo na antiguidade eacute definida pela documentaccedilatildeo textual por meio da contraposiccedilatildeo a um lsquooutrorsquo A identidade grega seria portanto delineada em oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de outros povos Obras como as de Edith Hall Inventing the Barbarian (1989) e de Paul Cartledge The Greeks A Portrait of Self and Others (1993) se inserem igualmente nesta perspectiva

Quanto agraves publicaccedilotildees mais recentes destacamos aqui Rethinking the Other in Antiquity (2011) de Erich Gruen The Invention of Racism in Classical Antiquity (2004) de Benjamin Isaac e The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus (2012) de Joseph Edward Skinner A escolha por mencionar estas obras se deve a fornecerem um indicativo das discussotildees atuais referentes agrave questatildeo lsquoalteridadersquo e lsquoantiguidadersquo Gruen se concentra nos gregos romanos e judeus enquanto Isaac nos dois primeiros e Skinner especificamente na Greacutecia antiga Erich Gruen busca se contrapor aos trabalhos publicados sobre alteridade na documentaccedilatildeo antiga Ele critica a visatildeo prevalecente entre os classicistas de que os povos da antiguidade reforccedilavam sua auto-percepccedilatildeo se contrapondo com o lsquoOutrorsquo frequentemente atraveacutes de estereoacutetipos e caricaturas hostis Gruen pretende mostrar como as atitudes dos antigos com relaccedilatildeo ao lsquoOutrorsquo natildeo expressam simplesmente contraste e alienaccedilatildeo

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mas tambeacutem constantemente reciprocidade e conexatildeo No entanto acaba exagerando a importacircncia das passagens que descrevem o lsquoOutrorsquo de forma positiva Jaacute Benjamin Isaac reitera a persistecircncia dos comentaacuterios negativos com relaccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo povos na documentaccedilatildeo antiga Isaac procura refutar a crenccedila comum de que os antigos gregos e romanos nutriam preconceitos eacutetnicos e culturais mas natildeo raciais Sua definiccedilatildeo de lsquoracismorsquo e o fato de se concentrar na documentaccedilatildeo textual tem sido criticados

Quanto ao livro de Skinner seu objetivo eacute suplantar a visatildeo tradicional de que a etnografia grega eacute um feito do seacuteculo V aC O autor analisa os escritos deixados pelos grandes autores da antiguidade com o intuito de perceber como os gregos antigos representavam outros povos e a si mesmos Neste sentido busca mostrar que os discursos de alteridade e identidade satildeo na realidade muito mais antigos do que os apresentados na literatura etnograacutefica relativa agraves guerras entre gregos e persas Skinner vecirc o percurso da etnografia grega como comeccedilando com Homero e segue este movimento ateacute Heroacutedoto Para ele a obra deste historiador antigo fundamental para a etnografia helecircnica delimita o que eacute ser grego Com relaccedilatildeo a este aspecto isto eacute ao que eacute ser grego Jonathan Hall reconhece a guerra contra os persas como um momento decisivo no modo como os helenos concebiam sua proacutepria identidade Ateacute entatildeo observa o autor a afiliaccedilatildeo eacutetnica (identidade eacutetnica) era preponderante na construccedilatildeo da auto-identidade helecircnica

Em Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture (2002) Jonathan Hall define a etnicidade Destacamos aqui alguns dos elementos de sua definiccedilatildeo 1) O grupo eacutetnico eacute uma auto-definiccedilatildeo de uma coletividade social que se constitui em oposiccedilatildeo a outros grupos de uma ordem semelhante 2) Liacutengua religiatildeo traccedilos culturais e elementos bioloacutegicos podem parecer ser marcadores de identificaccedilatildeo mas em uacuteltima instacircncia eles natildeo definem o grupo eacutetnico Eles satildeo marcadores superficiais 3) Os elementos centrais que determinam a participaccedilatildeo no grupo eacutetnico - e o distingue das demais coletividades sociais - satildeo uma suposta descendecircncia comum e parentesco uma associaccedilatildeo a um territoacuterio especiacutefico e um sentido histoacuterico compartilhado Nesta definiccedilatildeo a descendecircncia e parentesco comum (fictiacutecio ou natildeo) assumem uma posiccedilatildeo central Jonathan Hall no entanto argumenta que a base definidora da identidade helecircnica mudou de eacutetnica para um criteacuterio cultural durante o seacuteculo V aC Para Hall assim como para a maioria dos historiadores a guerra contra os persas fez entrar em cena a figura do baacuterbaro que passou a ser equivalente a lsquonatildeo-gregorsquo A emergecircncia da imagem estereotipada do baacuterbaro no seacuteculo V aC foi frequentemente considerada como um fator fundamental para a auto-

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definiccedilatildeo helecircnica Entretanto regularmente se supocircs que helenos e baacuterbaros eram categorias irremediavelmente opostas

Contrariamente a essa posiccedilatildeo Jonathan Hall considera que mais comumente os baacuterbaros natildeo eram vistos como uma categoria diametralmente oposta Pois se considerava que poderiam ser incluiacutedos entre os helenos Isto eacute um baacuterbaro poderia se tornar grego se adotasse a liacutengua os costumes e as praacuteticas gregas Para hall a possibilidade desse cruzamento soacute era possiacutevel porque a identidade grega passara a ser compreendida primeiramente em termos culturais O historiador observa tambeacutem que a definiccedilatildeo de helenicidade no Livro VIII das Histoacuterias de Heroacutedoto coloca os laccedilos de sangue no mesmo niacutevel dos criteacuterios culturais Contudo no plano de fundo das Histoacuterias as consideraccedilotildees culturais acabam por superar as noccedilotildees eacutetnicas nas definiccedilotildees dos grupos populacionais Jonathan Hall observa que mesmo em Tuciacutedides os baacuterbaros aparecem num estaacutegio de desenvolvimento cultural mais primitivo do que os gregos Mas haacute uma suposiccedilatildeo impliacutecita de que os baacuterbaros podem se tornar mais helecircnicos por meio da convergecircncia cultural Os escritores antigos do seacuteculo V aC mas tambeacutem do IV aC conceberiam assim as diferenccedilas humanas em termos mais culturais

Neste sentido Geneviegraveve Proulx em Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens (2008) pontua que Heroacutedoto ao desenvolver o tema central de suas Histoacuterias (as guerras entre os gregos e persas) e considerar a questatildeo das diferenccedilas culturais acaba por conceder um lugar agraves mulheres no estudo dos nomoi dos baacuterbaros Deste modo as atividades das mulheres nas exposiccedilotildees etnograacuteficas tornam-se importantes criteacuterios de descriccedilotildees Das 375 ocorrecircncias de mulheres nas Histoacuterias segundo Carolyn Dewald em Women and culture in Herodotusrsquo Histories (1981) 212 as apresentam como ativas (agindo de vaacuterias maneiras) e neste caso mais da metade das ocorrecircncias se encontram em descriccedilotildees etnograacuteficas Aleacutem disso Geneviegraveve Proulx mostra que as personagens femininas que aparecem individualizadas satildeo tambeacutem muito presentes em Heroacutedoto Estas mulheres que desempenham um papel no desenvolvimento dos eventos satildeo mais frequentemente pertencentes aos lsquobaacuterbarosrsquo O fato destas mulheres que aparecem como personagens individualizadas e das passagens que retratam as mulheres em posiccedilatildeo ativa se referirem mais comumente a natildeo-gregas apontam distinccedilotildees entre os costumes dos helenos e dos lsquobaacuterbarosrsquo

Desta forma notamos que o lsquoOutrorsquo assume um importante papel na definiccedilatildeo da identidade grega especialmente apoacutes as guerras contra os persas quando o termo lsquobaacuterbaroirsquo que se refere - como nos mostra Edith Hall - primeiramente aos persas acaba por incorporar o significado mais geneacuterico

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de natildeo-grego No entanto a definiccedilatildeo do que eacute ser grego natildeo se daacute apenas em oposiccedilatildeo ao baacuterbaro Ele natildeo eacute o lsquoOutrorsquo absoluto A cidade grega - e destacamos aqui que natildeo soacute as poacuteleis com regimes democraacuteticos -subsistia por meio de exclusotildees isto eacute por meio da segregaccedilatildeo das diferenccedilas existentes internamente Barbara Cassin e Nicole Loraux no prefaacutecio da obra Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros (1993) asseveram que a cidade grega se referindo as poacuteleis que foram democracias funcionava por meio de dois tipos de exclusotildees exteriores (estrangeiros e baacuterbaros) e interiores agrave poacutelis (mulheres metecos escravos) Isto posto iremos nos concentrar daqui em diante no papel da mulher como lsquoOutrorsquo ou seja como um dos lsquoOutrosrsquo em contraposiccedilatildeo aos quais o homem grego se definia Ademais centraremos nossa anaacutelise na Atenas Claacutessica e no papel do feminino na construccedilatildeo da cidadania ateniense isto eacute na definiccedilatildeo do cidadatildeo

Marta Mega de Andrade ao falar de seu livro A cidade das mulheres cidadania e alteridade feminina na Atenas Claacutessica (2001) afirma que ele tenta evidenciar a profunda alteridade que o gecircnero feminino representa na cultura claacutessica Nesta obra por meio do teatro ateniense de Euriacutepides e Aristoacutefanes Andrade busca observar o papel das mulheres (particularmente das lsquocidadatildesrsquo) na construccedilatildeo da cidadania ateniense A relaccedilatildeo do feminino com a cidadania surge devido ao fato de que a definiccedilatildeo da cidadania implica o reconhecimento de si e a delimitaccedilatildeo do lsquoOutrorsquo Sua definiccedilatildeo se daacute portanto em oposiccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo ou seja aos natildeo-cidadatildeos O feminino faz parte desta lsquoalteridadersquo e no espaccedilo do teatro a representa Em Euriacutepides e Aristoacutefanes vemos a mulher como o lsquoOutrorsquo na poacutelis No entanto a alteridade que ela simboliza eacute fundamental para a existecircncia da comunidade poliacuteade e da cidadania Natildeo soacute pelo papel que a poacutelis institucional lhe reserva na procriaccedilatildeo de filhos legiacutetimos e nas festas ciacutevicas mas tambeacutem pela sua atuaccedilatildeo no cotidiano (os espaccedilos que ocupa na poacutelis dos habitantes) O teatro mostra assim que o papel da mulher era muito mais amplo do que o que lhe era destinado pela lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo Assumindo a sua lsquoalteridadersquo seu caraacuteter duacutebio e potencialmente subversivo vemos em Euriacutepides as mulheres inseridas em espaccedilos que lhe satildeo negados como o da discussatildeo poliacutetica Jaacute em Aristoacutefanes a presenccedila delas na cidade eacute apresentada como uma possibilidade de governo do feminino

Em nosso entender Marta Mega de Andrade considera que ao assumir sua lsquoalteridadersquo as mulheres (e aqui se refere agraves lsquocidadatildesrsquo) ocupavam a poacutelis no cotidiano assumindo deste modo uma relaccedilatildeo ativa com a cidade Ao contraacuterio do que o modelo de recato silecircncio e reclusatildeo lhes prescrevia ao ocupar a lsquocidade do cotidianorsquo as lsquocidadatildesrsquo se apropriavam da sua caracteriacutestica como lsquoOutrorsquo A autora pontua que ao representar as mulheres ocupando espaccedilos

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o teatro as mostra por meio do desempenho de sua alteridade tomando uma posiccedilatildeo ativa na poacutelis Jaacute os discursos poliacuteticos como o Econocircmico de Xenofonte apagariam a caracteriacutestica do feminino como lsquoOutrorsquo ao mostrar as mulheres integradas ao papel (lsquorainha do larrsquo) que a cidade lhes confere como vemos abaixo

Entatildeo ordenei a minha esposa a se acostumar a ser tambeacutem disse ela mesma a guardiatilde das leis de nossa casa a inspecionar quando a ela mesma parecesse conveniente os utensiacutelios da casa como o comandante de uma guarniccedilatildeo inspeciona e examina se cada soldado estaacute em boa condiccedilatildeo como o conselho examina os cavalos e seus cavaleiros a elogiar e a honrar como uma rainha a quem for digno de ser e a reprovar e castigar a quem disso precisa (XENOFONTE Econocircmico IX 14-15)

Deste modo para a historiadora a poacutelis ateniense era tambeacutem uma lsquopoacutelis das mulheresrsquo

Marta Mega de Andrade pretende assim fazer ver que o tal lsquoclube de homensrsquo que teria sido a cidade grega (modelo que a historiografia ao longo do tempo reproduziu) era na verdade apenas uma parte do que constituiacutea a cidade A poacutelis que as mulheres ocupavam (a cidade das mulheres) natildeo era a lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo a poacutelis institucionalizada mas sim a lsquocidade cotidianarsquo As lsquocidadatildesrsquo transitavam entre as duas cidades A dos cidadatildeos e suas famiacutelias (a lsquocidade dos incluiacutedosrsquo) e a dos outros (ocupada pelos lsquoexcluiacutedosrsquo isto eacute por aqueles que natildeo eram cidadatildeos) Ademais segundo Violaine Sebillotte Cuchet as mulheres tambeacutem desempenhariam o poliacutetico Embora natildeo como os cidadatildeos masculinos que o desempenhavam por exemplo por meio de sua atuaccedilatildeo na assembleacuteia De acordo com a historiadora a

praacutetica ciacutevica funcionava factualmente graccedilas agrave inclusatildeo do lado escondido do ldquopoliacuteticordquo ou seja as cidadatildes () Nas praacuteticas ciacutevicas uacutenicos lugares efetivos do poliacutetico operavam cidadatildeos e cidadatildes Essas praacuteticas incluiacuteam para os primeiros assembleias deliberativas e judiciaacuterias e para todos os rituais comuns (incluindo o teatro) o intercacircmbio de bens (terras principalmente) e de pessoas (casamentos e adoccedilotildees) (CUCHET 2015 pp 17-18)

Isto posto retomemos a perspectiva de anaacutelise de Marta Mega de Andrade com relaccedilatildeo a caracterizaccedilatildeo de feminino em Xenofonte

Ao contraacuterio do que Andrade afirma natildeo consideramos que ldquoa alteridade feminina se perde em Xenofonterdquo Acreditamos que ela ainda estaacute presente em

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seu discurso Mesmo que o perigo do lsquoOutrorsquo feminino pareccedila apaziguado pela integraccedilatildeo da mulher como esposa e rainha do lar a alteridade representada pelo feminino ainda estaacute presente Pois no Econocircmico as atividades de Iscocircmaco e os espaccedilos em que deveria desenvolver preferencialmente suas funccedilotildees (o espaccedilo puacuteblico) se contrapotildeem as atividades de sua esposa e ao espaccedilo no qual as deveria desempenhar (o oicirckos) Embora as atividades de Iscocircmaco e de sua esposa se complementem natildeo deixam de ser diferentes Por conseguinte o papel do lsquocidadatildeorsquo e suas atribuiccedilotildees satildeo delimitados em contraposiccedilatildeo ao da lsquocidadatildersquo Desta forma mesmo neste discurso no qual o feminino eacute integrado (adequado) ele ainda representa o lsquoOutrorsquo E consideramos que mesmo quando a lsquocidadatildersquo procura observar os preceitos de comedimento silecircncio e reclusatildeo elas carregam o estigma da suspeita Violaine Sebillotte Cuchet pontua que

as cidadatildes nunca foram uma classe agrave parte nem tampouco foram percebidas pelos cidadatildeos como um grupo ameaccedilador ou reivindicativo Agraves vezes as mulheres enquanto matildees e esposas enquanto parceiras sexuais e parceiras de filiaccedilatildeo excitaram a imaginaccedilatildeo o desejo ou o oacutedio dos homens e natildeo as cidadatildes enquanto tais (CUCHET 2015 pp 17-18)

No entanto mesmo que as lsquocidadatildesrsquo enquanto grupo natildeo despertassem o temor dos homens consideramos que como mulheres elas levavam consigo o peso do estigma referido acima Pois as mulheres satildeo lsquofilhas de Pandorarsquo personagem miacutetica que personifica a alteridade do feminino no pensamento grego

Pandora eacute a primeira mulher Dela descende todo o genos gunaikon A narrativa miacutetica de sua criaccedilatildeo se encontra nos poemas Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo O mito de Pandora assim como os de outras sociedades se insere no conjunto de narrativas miacuteticas que ao abordar a criaccedilatildeo da mulher explicam o porquecirc existem dois sexos e natildeo apenas um Em tais narrativas a mulher eacute frequentemente um adendo na criaccedilatildeo Isto eacute ela eacute criada posteriormente a emergecircncia do homem O motivo dessa criaccedilatildeo secundaacuteria eacute explicado com frequumlecircncia nos mitos por uma atitude de uma divindade masculina visando atingir os homens Na tradiccedilatildeo judaico-cristatilde a criaccedilatildeo de Eva no livro do Gecircneses eacute mostrada como um ato de compaixatildeo divina a mulher eacute criada para amenizar a solidatildeo do homem Jaacute no mito grego o surgimento de Pandora decorre da fuacuteria de Zeus Independente do motivo de sua criaccedilatildeo o surgimento da mulher estabelece a condiccedilatildeo humana Isto eacute a mulher ldquointroduz a morte a anguacutestia e o mal no mundordquo assim como o trabalho penoso (ZEITLIN 2003 p 59)

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Eacute esta temaacutetica o estabelecimento da condiccedilatildeo humana - a diferenciaccedilatildeo entre homens e deuses juntamente com a origem do cosmos e a reparticcedilatildeo das prerrogativas e domiacutenios entre as divindades oliacutempicas que constitui o assunto da Teogonia Como puniccedilatildeo ao ardil do titatilde Prometeu por roubar o fogo Zeus cria a mulher um mal sobre a aparecircncia de um bem E mesmo se o homem resolve se apartar dele fugindo do casamento natildeo fica imune aos efeitos danosos que surgem com a criaccedilatildeo da mulher

Quem quer que fugindo do casamentoe atos perniciosos das mulheresescolhe natildeo se casar chega a velhice destrutivasem algueacutem para cuidar dele em sua avanccedilada idade(HESIacuteODO Teogonia vv 603-605)

Em Os Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo tambeacutem aborda a partir dessa perspectiva o surgimento da mulher

Entatildeo encolerizado disse o agrega-nuvens ZeuslsquoFilho de Jaacutepeto sobre todos haacutebil em suas tramas apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhasgrande praga para ti e para os homens vindourospara esses em lugar do fogo eu darei um mal e todos se alegraratildeo no acircnimo mimando muito este malrsquo(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 53-105)

Por conseguinte neste poema o poeta tambeacutem aborda o estabelecimento da condiccedilatildeo humana a partir da mulher Hesiacuteodo nomeia a primeira mulher como Pandora e se concentra na descriccedilatildeo detalhada dos dons (dolos) que lhe foram conferidos pelos deuses Pandora que eacute dada ao irmatildeo de Prometeu Epimeteu abre a jarra que continha todos os males os espalhando pelo mundo A partir de entatildeo os homens conviveratildeo com doenccedilas e muitas anguacutestias

Antes vivia sobre a terra a grei dos humanosa recato dos males dos difiacuteceis trabalhos das terriacuteveis doenccedilas que ao homem potildeem fimmas a mulher a grande tampa do jarro alccedilando dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 90-95)

No entanto de acordo com Pauline Schmitt Pantel o mito grego da criaccedilatildeo da mulher vai mais longe do que outras narrativas da criaccedilatildeo em sua avaliaccedilatildeo negativa das mulheres (2009) Pois como vimos Pandora eacute um ardil criado por ordem de Zeus e utilizado com o objetivo de se vingar da astuacutecia

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de Prometeu Criada com a intenccedilatildeo de causar um dano a natureza da mulher eacute ser um mal (SCHMITT PANTEL 2009 p 196) Aleacutem disto as mulheres (o geacutenos gunaikon) no mito grego aparece como um grupo a parte Embora a forma da mulher se assemelhe a humana ela natildeo pertence agrave humanidade Entretanto ela natildeo pertence igualmente ao acircmbito divino O feminino eacute um lsquooutrorsquo por natureza Sua alteridade estaacute ligada a ser um ardil um engano e a sua natureza ambiacutegua (natildeo faz parte da humanidade e nem da esfera divina) Marta Mega de Andrade pontua que eacute devido a alteridade do feminino estar ligada a sua ambiguumlidade que ele pode representar o lsquoOutrorsquo dentro de um nomos

Destarte em Hesiacuteodo jaacute podemos ver bem delineada a alteridade do feminino Seus poemas segundo Pauline Schmitt-Pantel se tornaram canocircnicos no pensamento grego como narrativas da criaccedilatildeo da ordem vigente do mundo e como base dos valores gregos O mito de criaccedilatildeo de Pandora representado em seus poemas teve portanto um impacto sobre a maneira como as mulheres foram vistas e o lugar que ocuparam na sociedade da Greacutecia Antiga A negatividade com que Hesiacuteodo representou agraves mulheres se tornou a base de uma atitude permanente com relaccedilatildeo a este lsquoOutrorsquo Desta forma seus poemas influenciaram os autores gregos das eacutepocas posteriores que as trataram como uma ameaccedila a unidade da sociedade masculina (SCHMITT-PANTEL 2009 p 198) Acreditamos que essa atitude negativa com relaccedilatildeo ao feminino baseada nas caracteriacutesticas que lhe foram atribuiacutedas pelo mito de criaccedilatildeo e que foram reproduzidas pelos demais autores gregos tiveram ressonacircncia na lsquoexclusatildeorsquo das mulheres da poacutelis institucionalizada

Abstract The present article aims to make a brief discussion about the concept of alterity and its use in researches concerning Greek antiquity to later address the construction of the hellenic identity and more specifically that of the athenian citizen through the opposition with the feminineKeywords Identity alterity citizen Athens feminine

Bibliografia

Documentaccedilatildeo TextualHESIacuteODO Teogonia Trad Jaa Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2006________ Os Trabalhos e os Dias TradLuiz Otaacutevio de Figueiredo Satildeo Paulo

Odysseus 2011XEacuteNOPHON Eacuteconomique Paris Les Belles Lettres 1949

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Referecircncias BibliograacuteficasANDRADE Marta Mega de A cidade das mulheres cidadania e alteridade

feminina na Atenas Claacutessica Rio de Janeiro LHIA 2001 CARTLEDGE Paul The Greeks A Portrait of Self and Others Oxford Oxford

University Press 1993CASSIN Barbara LORAUX Nicole PESCHANSKI Catherine Gregos

Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros Editora 34 1993 DEWALD C Women and culture in Herodotusrsquo Histories In Reflections of

Women in Antiquity New York Routledge 1981GRUEN Erich S Rethinking the Other in Antiquity Princeton Princeton

University Press 2011HALL Edith Inventing the Barbarian Inventing the Barbarian Greek Self-

Definition through Tragedy Oxford Clarendon Press 1989HARTOG Franccedilois O Espelho de Heroacutedoto ensaio sobre a representaccedilatildeo do

outro Belo Horizonte UFMG 1999HALL Jonathan Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture University of

Chicago Press 2002 ISAAC Benjamin The Invention of Racism in Classical Antiquity Princeton

Princeton University Press 2004LEacuteVINAIS Emmanuel Alteriteacute e transcendance Fata Morgana 1995PROULX Geneviegraveve Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens Tese

(Doutorado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Doctorat en histoire Queacutebec Canada 2008

SCHMITT-PANTEL Pauline Aithra et Pandora Femmes Genre et Citeacute dans la Gregravece antique Paris LrsquoHarmattan 2009

SEBILLOTTE CUCHET Violaine Cidadatildeos e cidadatildes na cidade grega claacutessica Onde atua o gecircnero Revista Tempo Niteroacutei v21 n38 2015 p1-20 SKINNER Joseph Edward The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus New York Oxford University Press 2012

WEYLAND Raphaeumll Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (Ammien Marcellin Theacuteodoret de Cyr Procope de Ceacutesareacutee) Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Queacutebec Canada 2012

ZEITLIN Froma I lsquoCap4 Signifying difference the myth of Pandorarsquo In HAWLEY Richard LEVICK Barbara (ed) Women in Antiquity new assessments 2003 p58-74

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GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTI-CAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLI-CA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES

Decircnis Renan Correcirca1

ldquoPor que fazer o elogio do anacronismo quando se eacute historiador Talvez para convidar os historiadores a se dispor agrave escuta do nosso tempo de incertezas prestando atenccedilatildeo a tudo que ultrapassa o tempo da narraccedilatildeo ordenada as disparadas assim como as ilhas de imobilidade negam o tempo na histoacuteria mas fazem o tempo da histoacuteriardquoNicole Loraux Eacuteloge de lrsquoanachronisme em histoire 2005

Resumo O artigo aborda o vocabulaacuterio e a estrutura de referecircncias sobre rupturas poliacuteticas e institucionais na aristoteacutelica Constituiccedilatildeo dos Atenienses com o intuito de problematizar a ideia de golpe juriacutedico-parlamentar contra a presidente brasileira Dilma Roussef em 2016 e os imbroacuteglios eacuteticos e conceituais desde tipo de mudanccedila poliacutetica O texto discute o vocabulaacuterio antigo especialmente no contexto ateniense com ecircnfase no pensamento poliacutetico de Aristoacuteteles Palavras-chave Constituiccedilatildeo dos Atenienses golpes de Estado rupturas poliacuteticas

1 A definiccedilatildeo de golpe de Estado eacute difiacutecil e polecircmica O termo significa a deposiccedilatildeo do poder de alguma pessoa ou instituiccedilatildeo legalmente investida de autoridade com diferentes graus de violecircncia eou cerceamento poliacutetico Sua formulaccedilatildeo claacutessica remonta ao seacuteculo XVII na obra Consideacuterations politiques sur les coups drsquoestat de Gabriel Naudeacute Concebida no contexto intelectual do debate sobre as ldquorazotildees de Estadordquo a obra oferece uma visatildeo mais ampla e positiva da ideia de golpe de Estado do a que utilizamos hoje podendo ser definida como uma medida extraordinaacuteria que excede as leis mas que um priacutencipe se vecirc obrigado a executar em vista do bem comum (GONCcedilALVES 2015 p 10 p

1 Prof Adjunto de Histoacuteria Antiga da UFRB Eacute Licenciado e Mestre em Histoacuteria pela UFRGS e atualmente realiza doutoramento em Estudos Claacutessicos pela Universidade de Coimbra E-mail para contato dniscorreagmailcom

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26-33) Trata-se claramente de uma defesa maquiaveacutelica da estrateacutegia poliacutetica na qual governantes desrespeitam as leis do Estado e fazem uso de violecircncia ilegal com uma racionalidade poliacutetica especiacutefica e supostamente nobre No entanto na contemporaneidade o termo eacute qualificado pela violecircncia poliacutetica expliacutecita e portanto possui um tom predominantemente negativo

No vocabulaacuterio histoacuterico contemporacircneo golpe de Estado faz fronteira semacircntica (e eacutetica) com a expressatildeo revoluccedilatildeo social pois possui sentido semelhante mas natildeo coincidente Ateacute o seacuteculo XVII o termo revoluccedilatildeo expressava a rotaccedilatildeo ciacuteclica e natural dos astros mas no XVIII ele toma forma como uma operaccedilatildeo histoacuterica proacutepria de uma ideologia do progresso (KOSELLECK 2006 p 37) A distinccedilatildeo reside na emergecircncia de algo inteiramente novo na Histoacuteria (ARENDT 1988 p 17-23) diferentemente das mudanccedilas ciacuteclicas concebidas por Naudeacute e Maquiavel Sendo um produto linguiacutestico da modernidade europeia a revoluccedilatildeo passa a expressar ambivalentemente golpes poliacuteticos sangrentos e inovaccedilotildees cientiacuteficas (KOSELLECK 2006 p 62) o que jaacute denota seu verniz mais positivo em contraste com a racionalidade de Estado maquiaveacutelica com que Naudeacute defendeu o golpe de Estado Nas concepccedilotildees iluministas e marxistas revoluccedilatildeo pressupotildee mudanccedilas natildeo apenas no aparelho estatal mas tambeacutem na proacutepria tessitura da sociedade tendo como exemplo as revoluccedilotildees liberais e socialistas na Europa contra o Antigo Regime

Em resumo revoluccedilatildeo social se distingue de golpe de Estado pela noccedilatildeo de progresso social e histoacuterico que de certa forma justifica a ruptura poliacutetica e social violenta Desta forma configura-se uma dicotomia entre golpe de Estado e revoluccedilatildeo social no que diz respeito agraves rupturas institucionais que remetem agraves ideias de retrocesso e progresso social e histoacuterico No entanto esta dicotomia faz sentido ainda hoje Qual outro arcabouccedilo conceitual se pode procurar para explicar perturbaccedilotildees poliacuteticas contemporacircneas

Os exemplos na histoacuteria recente do Brasil tecircm sido definidos a partir da dicotomia descrita acima em livros didaacuteticos brasileiros a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ainda eacute mencionada ambiguamente como Revoluccedilatildeo de 30 ou Golpe de 30 assim como de forma menos frequente o Golpe de Estado Civil-Militar de 64 tambeacutem eacute caracterizada como revoluccedilatildeo ainda que somente por seus defensores mais abertos entre eles figuras protofascistas como o parlamentar Jair Bolsonaro que goza de relativa popularidade na sociedade brasileira Desta forma o golpe de Estado natildeo se caracteriza soacute por ser violento mas por

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ser um retrocesso portanto algo negativo Recentemente este imbroacuteglio eacutetico-conceitual se abre novamente com a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 no qual os seus opositores acusam um golpe de Estado ainda que juriacutedico-parlamentar sem apoio militar

Ainda que amparado por forccedilas poliacuteticas legiacutetimas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal o processo que derrubou Rousseff eacute flagrantemente fruto de um regime de exceccedilatildeo que fez da Presidenta um bode expiatoacuterio de escacircndalos de corrupccedilatildeo que penetram em quase toda classe poliacutetica brasileira especialmente os protagonistas da sua deposiccedilatildeo o entatildeo presidente da Cacircmara dos Deputados Eduardo Cunha e o vice-presidente Michel Temer Cerca de um ano depois do Impeachment Eduardo Cunha encontra-se condenado a 15 anos de prisatildeo por corrupccedilatildeo e o Presidente em exerciacutecio Michel Temer vive intensa crise de legitimidade devido a gravaccedilotildees que comprovam seu envolvimento em crimes de corrupccedilatildeo Golpe Impeachment A discussatildeo precisa partir do consenso da irregularidade do sistema poliacutetico brasileiro que atuou na deposiccedilatildeo Aleacutem disso precisa desnudar as forccedilas sociais atuantes neste processo

O que o pensamento poliacutetico grego claacutessico tem a nos dizer sobre tal imbroacuteglio eacutetico-conceitual contemporacircneo Grosso modo os termos golpe de Estado e revoluccedilatildeo social natildeo tecircm correspondentes na antiguidade (ARENDT 1988 p 17) e comparar sociedades tatildeo diacutespares eacute obviamente arriscado Por outro lado a proacutepria estrutura de referecircncias a partir de qual o pensamento moderno atribui sentido ao jogo poliacutetico eacute oriundo do vocabulaacuterio claacutessico poliacutetica democracia oligarquia povo e aristocracia satildeo termos inequiacutevocos desta aproximaccedilatildeo entre antigos e modernos O objetivo aqui eacute discutir quais eram as referecircncias para a ideia de ruptura poliacutetica na Atenas antiga e especular como elas podem ajudar a compreender as disputas e reviravoltas contemporacircneas Para tanto opta-se por analisar a Constituiccedilatildeo dos Atenienses obra escrita em Atenas na segunda metade do seacutec IV a C pela escola peripateacutetica sob direccedilatildeo de Aristoacuteteles Ao fim do artigo voltarei a discutir o Impeachment de 2016 ao governo de Dilma Rousseff

Os noticiaacuterios da poliacutetica brasileira se assemelham a um enredo de traiccedilotildees delaccedilotildees e reviravoltas constantes mas eacute providencial extrair daiacute alguma racionalidade que nos ajude a sair do ciacuterculo vicioso de crise e paralisia poliacutetica imposta por instrumentos oligaacuterquicos de poder Como historiador e antiquista sigo o espiacuterito da epiacutegrafe que abre este artigo e disponho-me a

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escutar este tempo de incertezas de forma que o recurso das fontes antigas possa gerar o estranhamento necessaacuterio que dissolva o assombro intelectual diante das maliacutecias do poder contemporacircneo

2 No capiacutetulo 412 a Constituiccedilatildeo dos Atenienses enumera as mudanccedilas (μεταβολαί) no regime poliacutetico (πολιτεία2) ateniense ateacute a eacutepoca de sua escrita entre os anos 329 e 322 a C (RHODES 1992 p 51-58) A uacuteltima mudanccedila ocorre em 403 quando Trasiacutebulo liderou a facccedilatildeo popular que ocupava militarmente a regiatildeo portuaacuteria (ldquoFilerdquo e ldquoPireurdquo na citaccedilatildeo abaixo) numa guerra aberta contra os Trinta Tiranos que haviam sido postos no poder com apoio do estratego espartano Lisandro apoacutes a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso O cap 412 passa em resumo as mudanccedilas que ocorreram desde o periacuteodo heroico ateacute esta restauraccedilatildeo de 403

Das mudanccedilas [de regime] esta foi a deacutecima primeira em quantidade Desde o princiacutepio a primeira aconteceu com a migraccedilatildeo de Ion e seus companheiros pois entatildeo pela primeira vez foram formadas as quatro tribos e se estabeleceram os reis das tribos A segunda mas a primeira a ter uma forma de regime poliacutetico foi a ocorrida na eacutepoca de Teseu pouco divergindo da realeza Depois desta foi a da eacutepoca de Draacutecon na qual leis foram publicadas pela primeira vez A terceira depois da staacutesis na eacutepoca de Soacutelon e a partir da qual se tornou o comeccedilo da democracia A quarta foi a tirania na eacutepoca de Pisiacutestrato A quinta apoacutes a derrubada dos tiranos foi a de Cliacutestenes mais democraacutetica que a de Soacutelon A sexta foi depois das Guerras com os Medos estando a cargo do Conselho do Areoacutepago A seacutetima depois desta foi a que Aristides comeccedilou e Efialtes completou tendo derrubado o Conselho do Areoacutepago e nesta aconteceram muitos equiacutevocos por causa dos demagogos e do impeacuterio mariacutetimo A oitava foi o estabelecimento dos Quatrocentos e logo em seguida a nona foi a democracia de novo A deacutecima foi a tirania dos Trinta e a dos Dez A deacutecima primeira foi depois do retorno daqueles de File e do Pireu a partir da qual se desenvolveu ateacute a que existe hoje sempre aumentando o poder para a multidatildeo3

2 O termo denomina os direitos poliacuteticos individuais e o sentimento de pertencimento dos cidadatildeos das poacuteleis antigas mas tambeacutem o regime poliacutetico de uma poacutelis tradicional dividido num esquema tripartite do criteacuterio de extensatildeo da soberania poliacutetica para apenas um individuo (monarquia) para poucos (oligarquia) ou para muitos (democracia) Esta classificaccedilatildeo teraacute desdobramentos em outros tipos e tambeacutem existira na tradiccedilatildeo claacutessica todo um gecircnero literaacuterio das politeiacuteai do qual a proacutepria Constituicao dos Atenienses faz parte Ver BORDES 1982 16-46 231-260

3 Todas Traduccedilotildees de textos antigos satildeo de minha autoria Constituiccedilatildeo dos Atenienses 412 ἦν δὲ τῶν μεταβολῶν ἑνδεκάτη τὸν ἀριθμὸν αὕτη πρώτη μὲν γὰρ ἐγένετο μετάστασις τῶν ἐξ ἀρχῆς Ἴωνος καὶ τῶν μετrsquo αὐτοῦ συνοικησάντων τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς καὶ τοὺς φυλοβασιλέας κατέστησαν δευτέρα δὲ καὶ πρώτη μετὰ

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As rupturas institucionais satildeo chamadas μεταβολαί isto eacute mudanccedilas e estas somam onze no periacuteodo narrado pela obra Mas o que satildeo tais mudanccedilas Obviamente implicam num novo regime poliacutetico mas o que isto significa Certamente nada semelhante ao novo da revoluccedilatildeo Moderna (ARENDT 1988 p 17) A derrubada de pessoas em cargos de poder ou de uma instituiccedilatildeo Elas sempre ocorrem de forma violenta Um novo regime pode advir legalmente e pacificamente Quais os criteacuterios da Constituiccedilatildeo dos Atenienses para definir uma μεταβολή

O comeccedilo da obra estaacute mutilado e natildeo temos informaccedilatildeo sobre as duas primeiras mudanccedilas aleacutem do texto acima nada mais do que a racionalizaccedilatildeo dos mitos heroicos de Ion e Teseu A obra destaca a novidade de cada mudanccedila na de Ion foram formadas as quatro tribos pela primeira vez (τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς) na de Teseu o governo assumiu a forma de πολιτεία pela primeira vez (πρώτη μετὰ ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις) ainda que pouco divergindo da realeza (μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς) Da terceira mudanccedila temos apenas uma breve descriccedilatildeo no cap 4 que eacute considerado uma interpolaccedilatildeo por muitos autores (RHODES 1992 84-88 FRITZ 1954) e esta tambeacutem destaca uma novidade Draacutecon publicou leis pela primeira vez (ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον) Cabe notar a estranha redaccedilatildeo na qual a mudanccedila de Draacutecon natildeo eacute contabilizada a que vem a seguir eacute listada como ldquoterceirardquo (τρίτη) o que soacute reforccedila a ideia de tratar-se de fato de uma interpolaccedilatildeo inserida posteriormente

A terceira mudanccedila apresenta um ingrediente que acompanharaacute todas as seguintes a στάσις na cidade gera uma μεταβολή na πολιτεία ateniense O termo στάσις significa ldquotomar posiccedilatildeordquo mas tambeacutem ldquolevantar-serdquo (BAILLY 1901) assim como a ideia moderna de um ldquolevanterdquo mas nem sempre enquanto combate violento A στάσις eacute frequentemente traduzida por ldquoguerra civilrdquo mas eacute importante distinguir da bellum civile romana como a que opocircs Maacuterio e Sula sendo o exemplo romano uma guerra de fato cada lado constituiacutedo

ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις ἡ ἐπὶ Θησέως γενομένη μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς μετὰ δὲ ταύτην ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον τρίτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν στάσιν ἡ ἐπὶ Σόλωνος ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο τετάρτη δrsquo ἡ ἐπὶ Πεισιστράτου τυραννίς πέμπτη δrsquo ἡ μετὰ ltτὴνgt τῶν τυράννων κατάλυσιν ἡ Κλεισθένους δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος ἕκτη δrsquo ἡ μετὰ τὰ Μηδικά τῆς ἐξ Ἀρείου πάγου βουλῆς ἐπιστατούσης ἑβδόμη δὲ ἡ μετὰ ταύτην ἣν Ἀριστείδης μὲν ὑπέδειξεν Ἐφιάλτης δrsquo ἐπετέλεσεν καταλύσας τὴν Ἀρεοπαγῖτιν βουλήν ἐν ᾗ πλεῖστα συνέβη τὴν πόλιν διὰ τοὺς δημαγωγοὺς ἁμαρτάνειν διὰ τὴν τῆς θαλάττης ἀρχήν ὀγδόη δrsquo ἡ τῶν τετρακοσίων κατάστασις καὶ ltἡgt μετὰ ταύτην ἐνάτη δέ ἡ δημοκρατία πάλιν δεκάτη δrsquo ἡ τῶν τριάκοντα καὶ ἡ τῶν δέκα τυραννίς ἑνδεκάτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν ἀπὸ Φυλῆς καὶ ἐκ Πειραιέως κάθοδον ἀφrsquo ἧς διαγεγένηται μέχρι τῆς νῦν ἀεὶ προσεπιλαμβάνουσα τῷ πλήθει τὴν ἐξουσίαν

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por um exeacutercito organizado pois os latinos chamariam στάσις de seditio ou secessio sediccedilatildeo ou secessatildeo (BOTTERI 1989 pp 87-100) Estas ocorrem dentro do coletivo de cidadatildeos e natildeo entre dois grupos de cidades diferentes o que designa o termo πόλεμος guerra (LORAUX 2009 p 41 pp 51-52 p 61) logo στάσις estaacute fora do modelo tradicional de guerra e seu ideal ciacutevico de combate militar Em contraste com este caraacuteter positivo da πόλεμος a στάσις eacute vista como negativa como uma interrupccedilatildeo do equiliacutebrio e da ordem ou mesmo uma doenccedila da cidade (LORAUX 2009 p 58 p 61) Tal negatividade se expressa na religiosidade pois a recuperaccedilatildeo de uma στάσις muitas vezes pode exigir alguma forma de purificaccedilatildeo religiosa como a que o saacutebio Epimecircnides de Creta realizou em Atenas apoacutes a tentativa de tomar o poder na cidade realizada por Ciacutelon (Constituiccedilatildeo dos Atenienses cap 11)

Aleacutem disso a στάσις grega opotildee dois grupos de cidadatildeos de um lado o povo (δῆμος) ou multidatildeo (πλῆθος) do outro os notaacuteveis (γνώριμοι) ricos (πλούσιοι) ou poucos (ολίγοι) A oposiccedilatildeo se expressa na forma de antiacutetese e assimetria um polo eacute formado pelos que satildeo muitos anocircnimos e pobres enquanto o outro pelos que satildeo poucos ilustres e ricos4 Natildeo por acaso a Constituiccedilatildeo dos Atenienses destaca que o regime de Soacutelon apoacutes a στάσις que ele arbitrou sem tomar partido tornou-se o comeccedilo da democracia5 (ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο) Segundo John J Keaney (1963 pp 128-136) a obra narra a expansatildeo do poder do povo sobre as instituiccedilotildees da poacutelis especificamente os Tribunais a Assembleia e as magistraturas e cada uma das mudanccedilas de regime representa um avanccedilo ou recuo do povo sobre tais instituiccedilotildees De fato a partir de Soacutelon a obra natildeo menciona mais aquilo que aconteceu pela primeira vez em cada regime mas sempre destaca o conflito entre estas forccedilas antiteacuteticas e assimeacutetricas como a causa de um novo regime

Boa parte destas στάσεις da obra consiste na instauraccedilatildeo ou derrubada de tiranias de forma violenta (quarta quinta deacutecima e deacutecima primeira mudanccedilas) portanto estas analisarei estas pois satildeo conflitos militares com campos bem definidos Natildeo discutirei tambeacutem o complexo termo τυραννίς mas eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a ruptura institucional e os conflitos sociais nas cidades antigas (TRABULSI 1984 e IRWIN 2008 pp 205-261) No entanto haacute στάσεις que natildeo se confundem com πόλεμοι ou seja natildeo satildeo conflitos militares portanto satildeo operadas dentro de limites legais tornando-

4Observa-se o eco do pensamento aristoteacutelico da Poliacutetica 1296a segundo a qual o lado vencedor impotildee um regime de natureza oligaacuterquica ou democraacutetica

5Segundo a ideia tipicamente aristoteacutelica que Soacutelon foi o criador do regime mas natildeo previu suas caracteriacutesticas negativas posteriores Ver a Constituiccedilatildeo dos Atenienses 92 e a Poliacutetica II 1274a-b

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se um objeto interessante para comparaccedilatildeo com a situaccedilatildeo brasileira em 2016 Por qual motivo a obra natildeo distingue mudanccedilas institucionais paciacuteficas com rupturas violentas Qual eacute o criteacuterio principal para a definiccedilatildeo de uma μεταβολή

3 Vejamos o exemplo da sexta mudanccedila no cap 231

Depois das Guerras Meacutedicas o Conselho do Areoacutepago tornou-se forte de novo governava a cidade sem que nenhum decreto lhe garantisse a hegemonia mas porque assumira a responsabilidade na batalha naval de Salamina De fato com a hesitaccedilatildeo dos estrategos em relaccedilatildeo aos acontecimentos tendo proclamado que cada um se salvasse por si o Areoacutepago proveu oito dracmas para cada um e distribui e embarcou os barcos6

O conselho do Areoacutepago eacute uma instituiccedilatildeo oligaacuterquica pois dele soacute participam indiviacuteduos que jaacute ocuparam um dos cargos dentre os nove arcontes magistraturas para as quais estavam aptos somente membros das duas mais abastadas classes de cidadatildeos os cavaleiros e os pentacosiomedmnos7 Em contraste com este caraacuteter oligaacuterquico o regime anterior a quinta mudanccedila realizada por Cliacutestenes eacute descrita no cap 412 como ldquomais democraacutetica do que a de Soacutelonrdquo (δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος) A obra eacute clara ao afirmar que o poder do Areoacutepago natildeo adveacutem de nenhum decreto (οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν) e sim eacute fruto do vaacutecuo poliacutetico criado pela crise militar durante a guerra contra os Persas um vaacutecuo de poder que uma vez preenchido torna-se poder de fato pelos proacuteximos dezessete anos (cap 251)

Esta concepccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses estaacute certamente ligada ao movimento saudosista do seacutec IV do ldquoregime ancestralrdquo que idealizava a Atenas do periacuteodo anterior agrave Guerra do Peloponeso (FINLEY 1989 cap 2 LEAtildeO 2001 p 43-72 e ATACK 2010) Este regime idealizado eacute descrito como uma constituiccedilatildeo ldquomoderadardquo (Isoacutecrates Areopagiacutetico) ou ldquomistardquo (Aristoacuteteles Poliacutetica 1295b) com equiliacutebrio entre oligarquia e democracia A ideia eacute que em meados do seacutec V o regime era gerido de fato pelo Areoacutepago cuja natureza oligaacuterquica garantia o domiacutenio da elite enquanto que as instituiccedilotildees

6 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 231 μετὰ δὲ τὰ Μηδικὰ πάλιν ἴσχυσεν ἡ ἐν Ἀρείῳ πάγῳ βουλὴ καὶ διῴκει τὴν πόλιν οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν ἀλλὰ διὰ τὸ γενέσθαι τῆς περὶ Σαλαμῖνα ναυμαχίας αἰτία τῶν γὰρ στρατηγῶν ἐξαπορησάντων τοῖς πράγμασι καὶ κηρυξάν των σῴ[ζ]ειν ἕκαστον ἑαυτόν πορίσασα δραχμὰς ἑκάστῳ ὀκτὼ διέδωκε καὶ ἐνεβίβασεν εἰς τὰς ναῦς

7A criaccedilatildeo desta classificaccedilatildeo censitaacuteria eacute atribuiacuteda na obra agrave Soacutelon ver cap 73-4 no entanto ela seraacute mais ou menos vigente por todo o periacuteodo da democracia ateniense claacutessica

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democraacuteticas como a Assembleia e os Tribunais Populares equilibravam os excessos da elite e davam um quinhatildeo se poder ao povo O poder do Areoacutepago seraacute drasticamente restringido na seacutetima mudanccedila a seguir e voltaraacute a crescer durante o seacutec IV novamente ligado agrave ideia de ldquoregime ancestralrdquo (HANSEN 1999 p 288)

No seacutec V a hegemonia do Areoacutepago durou cerca de dezessete anos (cap 251) sendo este despojado do poder aos poucos atraveacutes de processos contra os areopagitas e suas prerrogativas impetrados pelos liacutederes do povo Aristides (412) e depois Efialtes (251-2) tanto nos Tribunais Populares como na Assembleia Nesta στάσις as armas satildeo processos legais de lideranccedilas democraacuteticas como Aristides e Temiacutestocles (233-5) este uacuteltimo segundo o autor a mente por traacutes de Efialtes assassinado em condiccedilotildees suspeitas (253-4) Portanto a hegemonia do Areoacutepago e sua posterior derrubada (sexta e seacutetima mudanccedilas de regime) satildeo descritas como resultados de uma espeacutecie de στάσις fria sem o calor da violecircncia e da ruptura institucional O enfrentamento das facccedilotildees antiteacuteticas e assimeacutetricas (o povo e a elite) ocorre nos Tribunais e Assembleias mas natildeo desemboca em conflito militar O uacutenico assassinato mencionado na obra de Efialtes ocorre no contexto de vitoacuteria de sua facccedilatildeo popular A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona apenas certo Aristoacutedico de Tacircnagra como assassino enquanto que Plutarco conta a versatildeo (Vida de Peacutericles 10) que o proacuteprio Plutarco natildeo daacute creacutedito de que o mandante do crime foi o sucessor de Efialtes como liacuteder do povo Peacutericles

Apoacutes a seacutetima mudanccedila Peacutericles seguiu tornando o regime mais popular retirando mais atribuiccedilotildees do Conselho do Areoacutepago (271) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses passa entatildeo a criticar os excessos demagoacutegicos deste periacuteodo especialmente o relaxamento do regime realizado por demagogos (261) o que se intensificou apoacutes morte de Peacutericles (281) Um dos aspectos deste relaxamento eacute que comeccedilaram a aceitar no arcontado os membros da classe dos zeugitas menos abastados do que os cavaleiros e os pentacosiomedmnos (262) uma medida certamente democraacutetica Peacutericles tambeacutem criou a remuneraccedilatildeo pela participaccedilatildeo nos Tribunais Populares (273) outra medida de caraacuteter anti-oligaacuterquico A obra destaca que depois de Peacutericles foi ldquoquando pela primeira vez o povo adotou um liacuteder que natildeo gozava de boa reputaccedilatildeo entre os capazesrdquo (πρῶτον γὰρ τότε προστάτην ἔλαβεν ὁ δῆμος οὐκ εὐδοκιμοῦντα παρὰ τοῖς ἐπιεικέσιν 281) O eufemismo da palavra ἐπιεικής ldquocapazesrdquo ldquoaptosrdquo obviamente descreve os mesmos oligarcas que se opuseram ao povo nas στάσεις de outrora pois o mesmo termo eacute utilizado tambeacutem no cap 261 para designar a facccedilatildeo oligaacuterquica Natildeo haacute sangue nestas mudanccedilas de regime mas haacute facccedilotildees e seus respectivos liacutederes logo haacute στάσις ainda que fria

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4 A oitava mudanccedila foi o estabelecimento do regime dos Quatrocentos no contexto da Guerra do Peloponeso e da desastrosa expediccedilatildeo contra Siracusa na Siciacutelia Nesta ocorrem claros sinais de esquentamento da στάσις ateniense Veja-se o cap 291

Entretanto depois do que aconteceu na Siciacutelia a posiccedilatildeo dos Lacedemocircnios ficou mais forte por causa da alianccedila com o Rei [da Peacutersia] e foram forccedilados ao regime dos Quatrocentos tendo posto em accedilatildeo a derrubada da democracia () mas muitos foram persuadidos sobretudo por achar que o Rei iria se aliar a eles se fizessem uma oligarquia8

Ainda que influenciada pela guerra externa o novo regime natildeo implica numa tomada violenta do poder Pelo contraacuterio a obra menciona que muitos foram persuadidos que tornar o regime mais oligaacuterquico era uma estrateacutegia para conquistar a alianccedila Persa e a salvaccedilatildeo da cidade Haacute relatos discrepantes sobre o clima poliacutetico desta mudanccedila de regime como descreve Tuciacutedides em VIII 66

Mas o povo e o Conselho ainda se reuniam na mesma forma de sorteio natildeo deliberavam nada que natildeo fosse da opiniatildeo dos conspiradores aleacutem disso os oradores eram todos deles e com eles examinavam o que estava prestes a ser dito Nenhum dos outros falava contra eles tendo medo e vendo a grande organizaccedilatildeo [dos conspiradores] se algueacutem falasse contra era diretamente executado de forma raacutepida Natildeo ocorria nem busca dos culpados nem justiccedila se fossem suspeitos mas o povo se mantinha quieto e tatildeo perplexo que se considerava lucro natildeo ter sofrido alguma violecircncia se ficasse calado9

O medo da violecircncia mantinha o povo calado ainda que as instituiccedilotildees democraacuteticas continuassem a funcionar As violecircncias contra opositores natildeo

8 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 291 ἐπεὶ δὲ μετὰ τὴν ἐν Σικελίᾳ γενομένην συμφορὰν ἰσχυρότερα τὰ τῶν Λακεδαιμονίων ἐγένετο διὰ τὴν πρὸς βασιλέα συμμαχίαν ἠναγκάσθησαν κι[νήσα]ντες τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι τὴνἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν ()μάλιστα δὲ συμπεισθέν των τῶν πολλῶν διὰ τὸ νομίζειν βασιλέα μᾶ[λ]λον ἑαυτοῖς συμπολεμήσειν ἐὰν διrsquo ὀλίγων ποιήσωνται τὴν πολιτείαν

9 Histoacuteria da Guerra dos Peloponeacutesios e Atenienses VIII 66 δῆμος μέντοι ὅμως ἔτι καὶ βουλὴ ἡ ἀπὸ τοῦ κυάμου ξυνελέγετο ἐβούλευον δὲ οὐδὲν ὅτι μὴ τοῖς ξυνεστῶσι δοκοίη ἀλλὰ καὶ οἱ λέγοντες ἐκ τούτων ἦσαν καὶ τὰ ῥηθησόμενα πρότερον αὐτοῖς προύσκεπτο ἀντέλεγέ τε οὐδεὶς ἔτι τῶν ἄλλων δεδιὼς καὶ ὁρῶν πολὺ τὸ ξυνεστηκός εἰ δέ τις καὶ ἀντείποι εὐθὺς ἐκ τρόπου τινὸς ἐπιτηδείου ἐτεθνήκει καὶ τῶν δρασάντων οὔτε ζήτησις οὔτrsquo εἰ ὑποπτεύοιντο δικαίωσις ἐγίγνετο ἀλλrsquoἡσυχίαν εἶχεν ὁ δῆμος καὶ κατάπληξιν τοιαύτην ὥστε κέρδος ὁ μὴ πάσχων τι βίαιον εἰ καὶ σιγῴη ἐνόμιζεν

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eram investigadas o que ajudava a manter as aparecircncias e alimentava o medo de opor-se aos conspiradores O relato de Tuciacutedides eacute brutal especialmente vindo de algueacutem que narra a conspiraccedilatildeo de perto como se dela tivesse participado (CANFORA 2015 pp 298-299) Em seguida Tuciacutedides conta (VIII 69-70) como os conspiradores mantiveram-se proacuteximos agraves armas ou com punhais escondidos mas permanecendo o povo quieto a violecircncia natildeo se fez necessaacuteria Trata-se da mesma στάσις entre povo e elite que pouco a pouco se torna mais quente e secretamente violenta ainda que haja esforccedilo para manter as aparecircncias institucionais

Vejamos o contraste com Tuciacutedides no cap 294 da Constituiccedilatildeo dos Atenienses

Os eleitos [para redigir proposiccedilotildees para a salvaccedilatildeo da cidade] primeiro escreveram ser compulsoacuterio aos priacutetanes submeter ao voto todos os pronunciamentos sobre a salvaccedilatildeo [da cidade] em seguida anularam as accedilotildees de ilegalidade as denuacutencias e as intimaccedilotildees para que assim qualquer um dos atenienses pudesse debater sobre as propostas como quisesse se algueacutem por conta disso multar ou intimar ou denunciar no Tribunal Popular que seja feito o depoimento e a prisatildeo dele diante dos estrategos e estes o entregariam aos Onze10 para a pena de morte11

A γραφή παρανόμων e a εἰσαγγελία aqui traduzidas como ldquoaccedilotildees de ilegalidaderdquo e ldquodenuacutenciasrdquo eram modalidade de processos juriacutedicos contra respectivamente proposiccedilotildees de leis e cidadatildeos que cometessem abusos contra as leis e o povo Possuiacuteam um caraacuteter eminentemente poliacutetico e atuavam como instrumentos contra abusos de poder de magistrados e tambeacutem como perseguiccedilatildeo contra adversaacuterios (HANSEN 1999 pp 205-218) Aos oligarcas pareceu necessaacuterio neutralizar tais instrumentos legais que poderiam se voltar contra eles e punir com a morte quem abrisse processos contra suas reformas ou seja neutralizar as armas legais da qual dispunha o povo para resistir agrave mudanccedila de regime A obra eacute clara ao descrever o regime dos Quatrocentos como uma ldquoderrubada da democraciardquo (291 τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι

10 Os Onze satildeo magistrados cuja funccedilatildeo era aplicar prisotildees e sentenccedilas de morte aos condenados nos tribunais

11 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 294 οἱ δrsquo αἱρεθέντες πρῶτον μὲν ἔγραψαν ἐπάναγκες εἶναι τοὺς πρυτάνεις ἅπαντα τὰ λεγόμενα περὶ τῆς σωτηρίας ἐπιψηφίζειν ἔπειτα τὰς τῶν παρανόμων γραφὰς καὶ τὰς εἰσαγγελίας καὶ τὰς προσκλήσεις ἀνεῖλον ὅπως ἂν οἱ ἐθέλοντες Ἀθηναίων συμβουλεύωσι περὶ τῶν προκειμένων ἐὰν δέ τις τούτων χάριν ἢ ζημιοῖ ἢ προςκαλῆται ἢ εἰσάγῃ εἰς δικαστήριον ἔνδειξιν αὐτοῦ εἶναι καὶ ἀπαγωγὴν πρὸς τοὺς στρατηγούς τοὺς δὲ στρατηγοὺς παραδοῦναι τοῖς ἕνδεκα θανάτῳ ζημιῶσαι

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τὴν ἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν) mas enquanto Tuciacutedides menciona duas vezes que os Quatrocentos assassinaram seus opositores (VIII 66 e 70) a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona tais mortes O contraste eacute claro na comparaccedilatildeo com a descriccedilatildeo que a mesma obra faz do regime dos Trinta Tiranos ao qual atribui a morte de milhares de cidadatildeos (354)

Os Quatrocentos prometeram entregar o regime aos Cinco Mil cidadatildeos mais capacitados por ldquosuas pessoasrdquo e por suas riquezas (295 τὴν δrsquo ἄλλην πολιτείαν ἐπιτρέψαι πᾶσαν Ἀθηναίων τοῖς δυνατωτάτοις καὶ τοῖς σώμασιν καὶ τοῖς χρήμασιν λῃτουργεῖν μὴ ἔλαττον ἢ πεντακισχιλίοις) Os capiacutetulos seguintes (cap 30 e 31) descrevem como seria este hipoteacutetico regime que nunca veio a existir uma vez que os Quatrocentos foram depostos quatro meses depois (331) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona em paraacutefrase a Tuciacutedides (VIII 68) que era a primeira vez que se estabelecera uma oligarquia em Atenas nos uacuteltimos 100 anos desde a expulsatildeo dos tiranos (322 ἡ μὲν οὖν ὀλιγαρχία τοῦτον κατέστη τὸν τρόπον () ἔτεσιν δrsquo ὕστερον τῆς τῶν τυράννων ἐκβολῆς μάλιστα ἑκατὸν)

Segundo a obra o regime dos Quatrocentos ruiu devido agrave defecccedilatildeo de alguns dos conspiradores entre eles Teracircmenes12 insatisfeitos com o fato que os Cinco Mil foram eleitos apenas nominalmente e os Quatrocentos governaram a cidade de fato (323) A administraccedilatildeo eacute brevemente remetida diretamente aos Cinco Mil (331-2) e em seguida ldquoo povo depotildee estes do regime com rapidezrdquo (341 Τούτους μὲν οὖν ἀφείλετο τὴν πολιτείαν ὁ δῆμος διὰ τάχους) restabelecendo a democracia novamente (412) Esta eacute a nona mudanccedila mais uma vez uma στάσις fria jaacute que a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona nenhuma violecircncia nesta deposiccedilatildeo enquanto Tuciacutedides descreve como ela foi antecedida pelo assassinato de um dos liacutederes dos Quatrocentos Friacutenico e a prisatildeo de outros por tropas sublevadas sob lideranccedila de Teracircmenes quando perceberam uma tentativa de facilitar a invasatildeo espartana (VIII 92) Todos foram julgados pelos Tribunais como conveacutem na democracia antiga e muitos foram condenados Apesar disso pode-se dizer que a derrubada dos Quatrocentos tambeacutem foi uma στάσις fria pois as condenaccedilotildees natildeo foram por derrubar a democracia Os processos contra os liacutederes dos Quatrocentos os acusavam de enviar embaixadas para Esparta em navio inimigo e atraveacutes de territoacuterios ocupados com propostas de paz desvantajosas para Atenas (CANFORA 2015 p 343-347) Entre estes processos incluem-se o insoacutelito caso contra o cadaacutever de Friacutenico (condenado depois de ter sido assassinado) e

12 Sobre a polecircmica historiograacutefica que se abre em torno da figura controversa de Teracircmenes na qual a Constituiccedilatildeo dos Atenienes se engaja avidamente nos cap 285 ver CANFORA 2015 p 411-427

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tambeacutem contra o ceacutelebre orador Antifonte A defecccedilatildeo de Teracircmenes e outros permitiu a reintegraccedilatildeo de boa parte dos apoiadores dos Quatrocentos ao corpo poliacutetico da cidade enquanto os restantes foram responsabilizados por tentarem negociar uma paz desvantajosa por Esparta mas natildeo por algo que os historiadores modernos chamam de golpe oligaacuterquico dos Quatrocentos

5 A guerra aberta a στάσις quente sanguinaacuteria e traumaacutetica aconteceraacute em 404 com a instalaccedilatildeo dos Trinta Tiranos apoacutes a derrota por Esparta (deacutecima mudanccedila) Apoacutes uma acachapante derrota na batalha naval de Egospoacutetamo Atenas eacute ocupada pelo general espartano Lisandro que no tratado de paz exige que a cidade adote o ldquoregime ancestralrdquo (342-3) Mais uma vez a στάσις se faz presente (343)

De um lado os populares tentavam preservar a democracia do outro aqueles associados em confrarias de notaacuteveis e aqueles dentre os exilados que retornaram depois da paz desejavam a oligarquia () Sendo Lisandro favoraacutevel aos oligarcas o povo apavorado foi forccedilado a votar a oligarquia13

Aqui natildeo haacute duacutevida do caraacuteter impositivo do regime por um exeacutercito ocupante natildeo por acaso eacute usado o termo ldquotiraniardquo para descrever um regime cujo ideaacuterio era oligarca Os Trinta revogaram as leis que restringiam o poder do Areoacutepago (352) comeccedilam a perseguir opositores causando enorme mortandade na cidade segundo a obra natildeo menos que mil e quinhentas pessoas (354) Entre os mortos estaacute Teracircmenes que eacute expulso do regime e condenado agrave morte por ter traiacutedo os Quatrocentos (371)

A expulsatildeo dos Trinta Tiranos (deacutecima primeira mudanccedila) ocorre graccedilas ao exeacutercito ateniense que permanecera democraacutetico e retornara da cidade aliada de Samos para reconquistar Atenas pela regiatildeo portuaacuteria em 403 (cap 37 e 38) Apoacutes este restabelecimento de democracia e a execuccedilatildeo dos liacutederes dos Trinta a negociaccedilatildeo de paz a Anistia ndash natildeo por acaso o mesmo termo usado no fim da Ditadura Civil-Militar brasileira ndash eacute longa traumaacutetica e complexa Os partidaacuterios do Trinta foram isolados no distrito de Elecircusis e proibidos de transitar em Atenas (cap 39 e 40) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses silencia sobre isso mas Xenofonte (Helecircnicas II 43) relata que os conflitos natildeo cessaram e alguns liacutederes de Elecircusis foram massacrados numa emboscada

13 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 343 οἱμὲνδημοτικοὶδιασῴζεινἐπειρῶντοτὸνδῆμον τῶν δὲ γνωρίμων οἱ μὲν ἐν ταῖς ἑταιρείαις ὄντες καὶ τῶν φυγάδων οἱ μετὰ τὴν εἰρήνην κατελθόντες ὀλιγαρχίας ἐπεθύμουν ()Λυσάνδρου δὲ προσθεμένου τοῖς ὀλιγαρχικοῖς καταπλαγεὶς ὁ δῆμος ἠναγκάσθη χειροτονεῖν τὴν ὀλιγαρχίαν

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em 40014 Quatro anos passaram-se entre a instalaccedilatildeo dos Trinta em 404 e o uacuteltimo acerto de contas em 400 Quatro anos para a στάσις ateniense esfriar novamente e os assassinatos e combates entre cidadatildeos cessarem iniciando um longo periacuteodo de oitenta anos nos quais a obra natildeo identifica nenhuma mudanccedila de regime A στάσις natildeo deixa de existir apenas torna-se novamente fria

6 Pode-se concluir que as mudanccedilas de regime na Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo residem na ideia de rompimento do Estado de Direito ou seja do sistema institucional vigente uma vez que as instituiccedilotildees podem ser legalmente reformadas ou mesmo extintas sem que haja distinccedilatildeo entre reformas e golpes de Estado para a Constituiccedilatildeo dos Atenienses todas satildeo μεταβολαί Tais mudanccedilas no entanto soacute ocorrem dentro de uma oscilaccedilatildeo dos trecircs tipos de regime (monarquia oligarquia democracia) e suas variantes positivas e negativas Ou seja elas refletem sempre os conflitos entre grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos os ricos contra os pobres os notaacuteveis contra a multidatildeo15 A raiz histoacuterica desta concepccedilatildeo estaacute na idealizaccedilatildeo do regime de Soacutelon cuja poesia eacute um testemunho de um pensamento que tenta equilibrar as tensotildees entre pobres e ricos multidatildeo e notaacuteveis16 Minha contribuiccedilatildeo central eacute perceber tais στάσεις podem assumir a forma de combates armados (στάσις quente) ou de processos juriacutedicos e emendas legislativas (στάσις fria)

Inexiste no pensamento poliacutetico claacutessico e aristoteacutelico a ideia de progresso histoacuterico que marca as concepccedilotildees modernas de revoluccedilatildeo social e golpe de Estado O ideal que se busca eacute de equiliacutebrio e moderaccedilatildeo diminuir os excessos e desigualdades dos extremos e natildeo necessariamente tomar o partido do povo algo provavelmente estranho ao pensamento peripateacutetico e tambeacutem agrave esmagadora maioria dos autores claacutessicos membros das elites Os proacuteprios democratas natildeo se enxergavam como ldquomais progressistasrdquo que os oligarcas Ao contraacuterio ambas facccedilotildees viam a si mesmos como legiacutetimas representantes de um idealizado regime ancestral de Atenas

O diaacutelogo constante entre o contemporacircneo e o antigo eacute perigoso e o anacronismo inevitaacutevel A democracia ateniense era muito diferente da moderna pressupunha participaccedilatildeo direta bem como a exclusatildeo de mulheres metecos e escravos O diaacutelogo pode ser uacutetil quando conceitos poliacuteticos do

14 Ver CANFORA 2015 pp 437-450

15 Esta concepccedilatildeo no qual a desigualdade eacute a causa motriz de toda στάσις natildeo estaacute distante daquilo que eacute discutido no livro 5 da Poliacutetica

16 Sobre a representaccedilatildeo de Soacutelon na obra ver o comentaacuterio dos cap 2 5-12 em CORREA 2012 pp 83-91

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contemporacircneo satildeo redefinidos com o contraste do antigo Investigar este diaacutelogo nos ajuda a elucidar os sentidos contemporacircneos atribuiacutedos aos termos antigos bem como a levantar questotildees que natildeo enunciamos mais por nossa incapacidade de olhar com estranhamento para nossos proacuteprios referenciais eacuteticos e conceituais

Neste sentido cabe notar que um dos aspectos centrais da crise poliacutetica instaurada no Brasil desde 2016 eacute a insuficiecircncia da diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais na sociedade brasileira isto eacute da distacircncia entre ricos e pobres A bonanccedila econocircmica dos Governos Lula garantiram estabilidade poliacutetica e a renda miacutenima dos setores mais vulneraacuteveis sem no entanto combater privileacutegios de setores oligaacuterquicos Pelo contraacuterio adotou-se um presidencialismo de coalizaccedilatildeo no qual a cooptaccedilatildeo de partidos ocorre atraveacutes de uma poliacutetica patrimonialista transpartidaacuteria e parasitaacuteria ao Estado que se pode chamar ldquoPemedebismordquo (NOBRE 2013) Esta eacute uma modalidade oligaacuterquica da poliacutetica que tomou forma desde a redemocratizaccedilatildeo de 1985 e se caracteriza pela ampla utilizaccedilatildeo de corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural no proacuteprio aparelho administrativo do Estado nas empresas estatais e tambeacutem em oligopoacutelios privados que negociam apoio financeiro a Partidos em troca de vantagens em contratos e licitaccedilotildees puacuteblicas Se tal praacutetica jaacute era presente nos governos de caraacuteter neo-liberal e privatista do Partido da Social Democracia Brasileira (1995-2002) parece ter se intensificado nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)

Dilma Rousseff foi derrubada do poder pelo o Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal instituiccedilotildees legiacutetimas mas o contexto histoacuterico que marca o processo natildeo eacute uma suacutebita vontade de aplicaccedilatildeo rigorosa da lei mas uma crise poliacutetica intensa que criou a oportunidade para reformas poliacuteticas de teor oligaacuterquico que visam o estancamento de poliacuteticas de diminuiccedilatildeo de desigualdade no contexto de recesso econocircmico Dilma Roussef eacute um bode expiatoacuterio de todos os crimes de morosidade e corrupccedilatildeo da classe poliacutetica brasileira e o sucessor Michel Temer rapidamente se apresentou como um ldquoreformadorrdquo isto eacute algueacutem que reverte todo o processo instaurado anteriormente Eacute uma στάσις fria entre os grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos de ricos e pobres do povo e dos donos do poder O Brasil conheceu processo semelhante no Golpe Militar de 64 contra o Governo Joatildeo Goulart sendo entatildeo uma στάσις quente com violecircncia institucional expliacutecita Em ambos os casos a Miacutedia tem papel predominante em pautar o debate puacuteblico e criar identidades junto agraves camadas populares que simpatizam com as reformas oligaacuterquicas a partir do seu teor conservador moralista de manutenccedilatildeo do

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status quo ameaccedilado pelas poliacuteticas de distribuiccedilatildeo de renda e discussotildees eacuteticas em torno da politicas identitaacuterias

O presidencialismo de coalizaccedilatildeo entrou em curto-circuito apoacutes a reeleiccedilatildeo de Dilma Roussehf em 2014 e o iniacutecio de uma poliacutetica de ajuste econocircmico que contrariava a propaganda eleitoral da candidata Este embuste eleitoral somado agraves poliacuteticas de combate agrave corrupccedilatildeo iniciadas pelo proacuteprio governo que acabaram se voltando contra ele proacuteprio e sua base partidaacuteria fez uma crise econocircmica torna-se tambeacutem poliacutetica A miacutedia e o sistema juriacutedico criaram uma situaccedilatildeo de fragilidade na qual os setores oligaacuterquicos se rebelam contra um Governo de centro-esquerda enfraquecido radicalizando a στάσις brasileira Apoacutes 13 anos o Partido dos Trabalhadores foi sacado do Poder natildeo por invasores externos mas por seus fiadores oligaacuterquicos que se identificam pelo patrimonialismo pela corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural do Pemedebismo somado agrave forccedila conservadora da Miacutedia e demais setores privados

A στάσις brasileira pendeu para o lado oligaacuterquico revelando o esgotamento do presidencialismo de coalizaccedilatildeo e pondo a nu os limites da poliacutetica de cooptaccedilatildeo da base atraveacutes de corrupccedilatildeo sistecircmica Natildeo por acaso os escacircndalos que atingem a esquerda ainda que reais e condenaacuteveis satildeo bodes expiatoacuterios nos quais a Miacutedia o Sistema Judiciaacuterio e a oligarquia poliacutetica descarregam seu rancor contra as poliacuteticas de diminuiccedilatildeo da desigualdade Mesmo quando estes setores oligaacuterquicos tentam fazer valer a mesma letra dura da lei para o lado conservador satildeo barrados por outras forccedilas que natildeo correspondem agrave luta contra corrupccedilatildeo mas sim agrave στάσις o conflito de interesses entre pobres e ricos entre multidatildeo e elite

A Esquerda partidaacuteria se ainda reivindica defender interesses populares e democraacuteticos precisa declarar uma guerra irrestrita agrave cultura poliacutetica patrimonialista do Pemedebismo Esta guerra natildeo pode ser combatida somente atraveacutes do sistema partidaacuterio-eleitoral uma vez que o Pemedebismo jaacute estaacute instalado em quase todos os Partidos e tem forte influecircncia no Judiciaacuterio alianccedila esta que permitiu a derrubada de Dilma Rousseff Eacute preciso atacar a fonte de poder do Pemedebismo o aparelhamento do Estado e o patrimonialismo parasitaacuterio e satildeo outras formas de radicalizaccedilatildeo da democracia que podem cumprir este papel Nesta luta a liccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses pode ser uacutetil a στάσις eacute uma luta de grupos antiteacuteticos assimeacutetricos de um lado uma multidatildeo pobre e anocircnima do outro poliacuteticos profissionais oligaacuterquicos grupos midiaacuteticos e corporativos conservadores Se a esquerda quer ter um papel nesta luta precisa juntar forccedilas com um destes grupos mas jamais com o outro

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Abstract The paper approaches the vocabulary and the structure of references about political and institutional ruptures in the Aristotelian Athenian Constitution in order to problematize the idea of legal and parliamentary coup against the Brazilian president Dilma Roussef in 2016 and the ethical and conceptual imbroglio of such kind of political change The text discusses the ancient vocabulary especially in the Athenian context and emphasize Aristotlersquos political thoughtKeywords Athenian Constitution Coup drsquoeacutetat political overthrow

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MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDADY ETERNA MEMORIA

Julio Loacutepez Saco1

Resumen Los mitos de origen griego vinculados con la muerte asiacute como los deseos de alcanzar la inmortalidad y una nueva vida en el Maacutes Allaacute a traveacutes de la eterna perduracioacuten del alma impregnaron la imaginacioacuten religiosa romana Con posterioridad a la muerte el ser humano se transformaba en una serie de entidades (lemures manes larvae penates lares) de no siempre faacutecil identificacioacuten Desde la oacuteptica romana la muerte requeriacutea una serie de honores funerarios bien establecidos para evitar la conversioacuten del fallecido en un fantasma sin descanso y para de ese modo apaciguar los componentes malignos o negativos En la antigua Roma la muerte era un acto social que en cuanto a los lugares de inhumacioacuten modos de celebracioacuten y cultos no igualaba a los fallecidos existiendo notables diferencias seguacuten la condicioacuten social o el estatus del muertoPalabras clave muerte inframundo rito culto

Introduccioacuten

El significado social del mundo de la muerte en la antiguumledad romana solamente puede conocerse gracias a determinada documentacioacuten literaria y epigraacutefica (inscripciones funerarias) la presencia de monumentos histoacutericos y necroacutepolis (con sus tipos de tumbas y ajuares funerarios) a la ritualidad que envolviacutea el duelo asiacute como a la interpretacioacuten de los mitos (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 5)

En la antiguumledad dos de los temas baacutesicos maacutes relevantes en los que se centraron los relatos eacutepicos y mitoloacutegicos fueron sin duda la adquisicioacuten de la

1 Doctor en Ciencias Sociales y Doctor en Historia Investigador y Profesor Titular Escuela de Historia Universidad Central de Venezuela Caracas Doctorado en Historia FHE-UCV E-mail julosaucvgmailcom

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inmortalidad y la buacutesqueda de la eterna juventud (PLATOacuteN Fedro 245e)2 En el trasfondo de tal buacutesqueda se encuentra la preocupacioacuten por la muerte tal y como innumerables mitos han reflejado de modos bastante variados (Gilgamesh Orfeo Heracles)

En teacuterminos generales los mitos de la muerte en la mitologiacutea (particularmente griega) afirmaban que las almas de los difuntos viajaban al mundo subterraacuteneo de Plutoacuten y Perseacutefone guiadas por Mercurio la deidad psicopompa por excelencia Se veiacutean obligadas a atravesar la laguna Estigia en la balsa conducida por Caronte El mundo subterraacuteneo teniacutea en su entrada un temible custodio el Can Cerbero (veacutease ilustracioacuten 3) Una vez en el inframundo se llevaba a cabo un juicio a las almas Despueacutes del veredicto las mismas eran trasladadas a siete regiones seguacuten fuese el caso La primera estaba destinada a los infantes no natos que no eran juzgados en la segunda moraban los inocentes condenados injustamente la tercera correspondiacutea a los suicidas mientras que la cuarta denominada Campo de Lagrimas era la zona en la que permaneciacutean los amantes infieles la quinta estaba habitada por heacuteroes crueles en tanto que la sexta era el famoso Taacutertaro lugar en el que se procediacutea a castigar a los perversos y finalmente la seacuteptima correspondiacutea a los Campos Eliacuteseos sitio de morada de las almas bondadosas en la felicidad eterna

Muerte e inmortalidad en las fuentes claacutesicas

Si bien ya los pitagoacutericos mencionan el alma seraacute PLATOacuteN (Repuacuteblica 580e Fedoacuten 69e-84b) quien ofrezca la posibilidad de una esperanza ante la muerte Lo mortal y lo inanimado es el cuerpo fiacutesico mientras que lo animado el aacutenima es lo que pervive el alma Las almas transmigran idea que tambieacuten defiende en el aacutembito romano OVIDIO (Metamorfosis XV 165-166) SALUSTIO (Sobre los dioses y el mundo 20-21) y VIRGILIO (Eneida VI 730-750) Este uacuteltimo autor sentildeala que el alma al morir ascendiacutea por mediacioacuten del aire para luego atravesar las aguas que habiacutea sobre el aire y al fin recorrer la atmoacutesfera que estaacute expuesta a los rayos solares Tal viaje suponiacutea una purificacioacuten del alma mediante los elementos el aire el agua y el sol (fuego) de modo que pudiese lograr estar limpia (purificada) para acceder al Eliacuteseo (PEREA YEBENES S 2012 pp 34-36 RHODE E 1948 pp

2 La fama la gloria imperecedera asiacute como la permanencia en el recuerdo de los vivos (ademaacutes de la descendencia) siempre constituyoacute una forma peculiar de inmortalidad Una preocupacioacuten evidente en heacuteroes guerreros como Aquiles o en grandes generales conquistadores como Alejandro Magno pero tambieacuten en personalidades como Julio Ceacutesar La inmortalidad seguacuten Platoacuten seraacute asiacute una prerrogativa del alma humana

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145-149 y ss) En el Eliacuteseo podiacutea permanecer o tambieacuten ser conducida al Leteo (olvido) para afrontar una nueva existencia terrenal

Tambieacuten CICEROacuteN en Suentildeo de Escipioacuten (Sobre la Repuacuteblica VI 13-26) defendiacutea la permanencia y por consiguiente la inmortalidad del alma Para los estoicos como SEacuteNECA (Cartas a Lucilio XLIV 2 De la Consolacioacuten a Helvia XI 7) el alma es aquello que el ser humano tiene de racional ademaacutes de divino Es la que ayudada por la filosofiacutea nos haraacute resistir a la fortuna y saber por tanto afrontar la muerte

Por el contrario los epicuacutereos negaban la inmortalidad El espiacuteritu que conferiacutea vida se disolviacutea en el aire y se perdiacutea para siempre tras la muerte Ello implicaba que las personas no teniacutean entonces por queacute temer el mundo del maacutes allaacute de modo que podiacutean dedicarse a disfrutar de este (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 87 PEREA YEBENES S 2012 p 40-45)

No hubo conceptos concretos en el mundo romano en relacioacuten a en queacute se convertiacutean los difuntos despueacutes de fallecer En cualquier caso la tradicioacuten romana vislumbra la existencia de los espiacuteritus de los muertos Se trataba de los Dii parentes et Manes iacutentimamente asociados a los Genii Tales genios permaneciacutean activos durante la vida diferenciaacutendose por sus valores morales que se prolongaban tras su muerte Dichos genios continuaban habitando en las sepulturas un factor que motivoacute su identificacioacuten con la osamenta las cenizas e incluso con los propios sepulcros

Los autores antiguos presentan disparidades en relacioacuten a la entidad en la que se trasformaba el ser humano con posterioridad a la muerte del cuerpo En tal sentido existieron distintas denominaciones (COULIANO I P 1993 pp 122-125 FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 346-348 y ss) El Genius del difunto se relacionaba con el vocablo Manes (los ilustres) emparentado a su vez con Lares Penates Larvae y Lemures La profusioacuten de denominaciones demuestra en cualquier caso la existencia de la creencia en la inmortalidad del alma tras la desaparicioacuten del cuerpo

Entidades del maacutes allaacute los Manes

Aquellos difuntos bondadosos que velaban por sus descendientes se denominaban Lares familiares mientras que los inquietos perturbadores o sencillamente nocivos y que ademaacutes asustaban con apariciones nocturnas se llamaban Larvae (PICCALUNGA 1961 pp 87-89 y ss) Si no se sabiacutea

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con seguridad en queacute se habiacutea convertido el alma del fallecido se nombraba Manes3 Manes eran en general los espiacuteritus de los muertos Los Manes familiares eran aquellos difuntos que pasaban a formar parte del conjunto de espiacuteritus metamorfoseados en divinidades Se puede decir que era la sombra del difunto su espiacuteritu santificado por el deceso y en consecuencia proclive a ser objeto de veneracioacuten y respeto aunque al tiempo de temor y ofuscacioacuten a lo desconocido

De una manera o de la otra lo cierto era que habiacutea que distinguir entre genios buenos y malos En tal sentido las almas de los difuntos eran ldquodiosesrdquo de los muertos o en todo caso entidades que se hallaban en el mundo de los muertos al lado de las divinidades infernales (Orcus por ejemplo) De esta forma los Manes podiacutean ser identificados con esas deidades (MONTERO HERRERO S 1990 p 42)

Desde la eacutepoca de Augusto algunos autores sobre todo Virgilio y LIVIO (Ab Urbe condita III 5811) emplearon el teacutermino Manes para detallar a ciertas divinidades infernales y sombras de los muertos SERVIO por su parte (Commentarius ad Aeneidam III 63) menciona que en tanto los dioses celestes eran los de los vivos las otras deidades en concreto los Manes eran los dioses de los muertos Seriacutean entonces unos dioses secundarios que dominaban las tinieblas nocturnas Se podriacutea decir al modo de TAacuteCITO (Vida de Agriacutecola) que eran sombras espiacuteritus fantasmales (PROPERCIO Elegiacutea IV 6-7)4

En teacuterminos generales el hombre comuacuten no sabiacutea con exactitud el significado de los Manes esto es si representaban el alma del difunto o se trataba de deidades de ultratumba En las inscripciones funerarias (veacutease ilustracioacuten 1) se mencionan estas divinidades sin precisar ni caraacutecter ni funciones ni atributos particulares (MONTERO HERRERO S 1990 p 43 COULIANO I P 1993 p 126 y ss) En ocasiones aparecen al lado de DM o Dis Manibus epiacutetetos como inferi (con lo cual se implicariacutea su calidad

3 Aunque designe el alma de un muerto el vocablo se usaba en plural Es probable que ello se deba a las arcaicas costumbres funerarias de la cultura Terramara por la cual se inhumaban los fallecidos en recintos comunes De tal modo el alma de los muertos permaneciacutea ldquovivardquo entre sus descendientes convirtieacutendose en espiacuteritus familiares VARROacuteN (De Lingua Latina VI 324 IX 3861) confunde los Manes con los Lares Los considera a ambos figuras eteacutereas Habitualmente se confundiacutea Lares con Larvae y con los Manes

4 Este autor sentildeala que los Manes existen y que en correspondencia la muerte no es el final definitivo Horacio expone que los Manes eran como ceniza sombras un recuerdo

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de dioses de ultratumba protectores de los fallecidos CIL II 2464 2722 VI 12311 X 2322 2565) y unas pocas veces otros como sacer o castus5

Para algunos autores como APULEYO (De Deo Socratis 25) el espiacuteritu humano despueacutes de haber salido del cuerpo se transformaba en una suerte de demonio que los antiguos llamaban Lemures

La ritualidad de la muerte

En los funerales era imprescindible que se tributara los honores debidos al fallecido (Iusta) Si se produciacutea alguacuten olvido o una irregularidad el difunto se convertiriacutea en un fantasma que no descansariacutea hasta que sus allegados o parientes le hicieran la debida justicia Esa necesidad de unos ritos funerarios que atendieran al difunto se continuaba tiempo despueacutes de la inhumacioacuten para asegurar su descanso eterno Existiacutea entonces la necesidad de que se recordara al difunto se dejara constancia de su existencia y se le rindiera culto a su numen (y a su nomen) para que perviviese en la memoria eterna

Un relevante nuacutemero de rituales se orientaban maacutes hacia el objetivo de apaciguar los componentes malignos de los difuntos que hacia una imprescindible suacuteplica como deidades activas En todos los casos se inmolaban viacutectimas se realizaban juegos combates de gladiadores como homenaje se ofrendaban alimentos en la tumba en determinados diacuteas concretos6 (cumpleantildeos diacutea de difuntos) y se conformaba un ajuar de diversos objetos

La muerte se concebiacutea en la antigua Roma como un acto social y en cierta medida puacuteblico El tiempo de luto para los familiares directos era de diez meses El funeral (funus) comenzaba en casa del difunto (BELAYCHE N 1993 pp 158-159 FREDOUILLE J C 1987 p 174) La familia acompantildeaba al moribundo a su cama y le daba un uacuteltimo beso para retener asiacute el alma que se escapaba por su boca Despueacutes de producirse el deceso se le

5 Con Dis Inferis Manibus se infiere el caraacutecter sacro de la tumba Los teacuterminos que delimitaban el sepulcro podiacutean considerarse sagrados En este caso la inscripcioacuten habitual era Dis Manibus Sacrum (DMS) que los primeros cristianos primitivos conservaron reinterpretaacutendola como Deo Magno Sancto

6 Los diacuteas de difuntos (Parentalia) se celebraban en febrero Otras fiestas dedicadas a los muertos fueron las Lemurias (celebradas en mayo) En esos especiales diacuteas las almas cuyos cuerpos no habiacutean recibido sepultura merodeaban en los hogares Por tal motivo el padre de familia debiacutea representar un ritual para alejar a esos espiacuteritus errantes Despueacutes de lavarse las manos como sentildea de purificacioacuten se metiacutea nueve habas negras en la boca Luego descalzo se desplazaba por la casa escupiendo las habas una a una para que nutriesen a los espiacuteritus malignos conocidos como Lemures

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cerraban los ojos y se le llamaba tres veces por su nombre para asiacute corroborar que realmente habiacutea fallecido A continuacioacuten el cuerpo era lavado perfumado con unguumlentos y finalmente vestido Seguacuten la costumbre griega se depositaba al lado del cadaacutever una moneda para que Caronte se cobrase por el transporte de su alma (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 34) El cuerpo se ubicaba sobre una litera con los pies mirando hacia la puerta de entrada y rodeado de flores un siacutembolo de la fragilidad de la vida pero a la par de la renovacioacuten Durante tres a siete diacuteas permaneciacutea expuesto el difunto Encima de la puerta de entrada de la casa se poniacutean ramas de abeto o de cipreacutes para asiacute avisar a los viandantes de la presencia de un muerto en el interior

El difunto en particular en los casos de romanos de alta condicioacuten social era trasladado por las calles de la ciudad (GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 43-56 y ss FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 355-356) Delante y detraacutes de la comitiva fuacutenebre (pompa funebris) se desplazaba un cortejo compuesto de esclavos tocando instrumentos musicales como flautas trompetas o trompas los portadores de antorchas el propio difunto en un atauacuted de madera abierta sobre una suerte de camilla (tambieacuten podiacutea ser llevado a hombros por miembros de la familia) (Veacutease ilustracioacuten 2) Detraacutes del difunto iba el resto del cortejo fuacutenebre formado por la familia y los amigos ademaacutes de una comitiva de personal pagado (plantildeideras mimos bailarines) y finalmente las fasces las representaciones de los momentos significativos de la vida del fallecido o aacuterboles genealoacutegicos del difunto (HINARD F 1995 p 98 PRIEUR J 1986 pp 112-115 y ss TIEMBLO MAGRO A 2011 p 167)

Hasta finales de la primera centuria de nuestra era el funeral se celebraba por la noche con la ayuda de la luz de antorchas Esto era asiacute porque la muerte era un suceso que se consideraba contaminante Sin embargo en siglos posteriores se comenzaron a realizar los ritos durante el diacutea excepto aquellos de nintildeos indigentes o suicidas

La tumba definitiva se consagraba con el sacrificio de una cerda (ilustracioacuten 5) Una vez que el sepulcro estaba ya finalizado y todo dispuesto se llamaba tres veces al alma del difunto para que pudiera entrar en la morada que se le habiacutea preparado para su nueva vida Despueacutes del entierro se levantaba una estatua del difunto en un lugar visible de la casa dentro de en una hornacina de madera

En el caso de la incineracioacuten la ceremonia se celebraba encima de una pira en forma de altar sobre la que se depositaba el atauacuted con el cadaacutever Se le abriacutean los ojos para que pudiera observar coacutemo su alma de dirigiacutea hacia el cielo

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(GNOLI G amp VERNANT JP 1982 p 60 FREDOUILLE J C 1987 pp 177-179) Se sacrificaban e incineraban animales y se arrojaban sobre la pira ofrendas de alimentos y perfumes Se le nombraba una uacuteltima vez y se encendiacutea la pira con antorchas El rito concluiacutea vertiendo agua y vino sobre la pira Finalmente los asistentes se despediacutean del difunto deseaacutendole que la tierra le fuera ligera Sit Tibi Terra Levis (STTL) una foacutermula muy habitual en las inscripciones funerarias

Es conveniente recordar que los monumentos funerarios de los romanos se ubicaban al margen de los liacutemites de la ciudad a ambos lados de la calzada principal Soliacutean ornarse con jardines

Al fallecer alguno de los componentes de la familia romana de inmediato pasaba a formar parte de los antepasados familiares verdaderos Manes protectores a los que se les homenajeaba manteniendo siempre ardiendo el fuego del hogar La tumba elegida no podiacutea ser cambiada de lugar pues los manes requeriacutean una morada fija (que se suponiacutea eterna) a la que se asociaban todos los difuntos de la familia

En teacuterminos generales se piensa que los muertos no llevaban una existencia que podriacutea considerarse feliz Es por ello que habiacutea que abastecer las tumbas con todo aquello que el fallecido necesitara (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 172 HINARD F 1995 p 102) Para apaciguar a los espiacuteritus de los muertos y hacerles maacutes llevadera su infelicidad se ofrendaban alimentos (leche vino miel pan huevos) en los sepulcros en nombre de las familias de las asociaciones profesionales o de las propias ciudades Habiacutea una suerte de obligacioacuten en ello no soacutelo de cara a los fallecidos pues se entendiacutea que la carencia de homenajes a los Manes provocaba pesadillas y enfermedades a los vivos

Los lugares para la eternidad

Los sepulcros no eran espacios sombriacuteos luacutegubres pues se entendiacutea que la muerte conviviacutea con la vida7 Los difuntos no debiacutean ser olvidados y por ello sus lugares de reposo final se vinculaban con el entorno circundante (CUMONT F 1942 p 63) En los epitafios no se vislumbran deseos

7El espacio dedicado al enterramiento sepulchrum adquiriacutea el caraacutecter de sitio sacro lucus religiosus inamovible inviolable e inalienable Al recinto uacutenicamente podiacutean acceder los familiares del fallecido

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inframundanos sino que abundan expresiones que se asocian con los vivos y con la vida mundana En general se escribiacutean para que el transeuacutente los leyera y asiacute hubiera una constancia de su paso por la vida que ya dejoacute (LAVAGNE H 1987 pp 163-164 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1144-1146 y ss CUMONT F 1942 pp 65-68) Por eso en ellos se encuentran relatos de la vida del muerto saludos o explicaciones de coacutemo murioacute En algunos incluso se hallan consejos y hasta pensamientos de tipo poliacutetico (BAYET J 1957 pp 42-45 y ss)

Ilustracioacuten 1 Inscripcioacuten funeraria del altar de Quinto Fulvio Fausto y Fulvio Prisco Siglo I Museo Nazionale Romano

Ilustracioacuten 2 Relieve en maacutermol de Amiternum en la que se representa la pompa funebris de un entierro Museo Aquilano siglo I aec

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Ilustraciones 3 y 4 (Izquierda) Hades y Cerbero Museo Arqueoloacutegico de Creta (derecha) urna cineraria del Museo Arqueoloacutegico de Palermo La inscripcioacuten reza asiacute D(is) M(anibus) S(acrum)

L(ucio) CORNELIO LAETO FILIO DVLCISSIMO QVI VIX(it) AN(nos) XVI M(enses) II D(ies) XXIIII SER(vius) CORNEL(ius) LAETVS PAT FEC

Ilustracioacuten 5 Ara de los Vicomagistri del vicus Aesculetus (fines del siglo I aec) Los magistrados (cuatro por cada vicus o barrio) eran elegidos anualmente para organizar las ceremonias sacrificiales

asociadas a los Lares Compitales a los que se ofreciacutea un cerdo y al Genius del princeps al que iba destinado un toro La inscripcioacuten habla del antildeo noveno desde la reorganizacioacuten de este culto por Augusto A la derecha los magistrados con la cabeza cubierta indicando una funcioacuten sacerdotal

Tambieacuten se observa un muacutesico con auloacutes Abajo los animales para el sacrificio

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Existieron en el mundo romano diferentes tipos de enterramientos Aquellas tumbas maacutes lujosas eran los sepulcros monumentales los mausoleos que podiacutean adquirir la forma de una casa o un templo Por su parte los columbaria era una gran tumba en cuyos muros se ubicaban nichos para depositar las urnas con las cenizas de los difuntos Aparecen desde el siglo I aec siendo empleadas hasta el siglo III y son inhumaciones colectivas propias de corporaciones funerarias Habiacutea tambieacuten fosas simples excavadas en el suelo algunas de ellas revestidas con cajas de ladrillo y con cubiertas de maacutermol (VAN ANDRINGA W 2006 p 1149)

Desde el siglo II la incineracioacuten fue paulatinamente reemplazada por la inhumacioacuten No obstante hubo una coexistencia de ambos modos funerarios La distincioacuten se relacionaba con la condicioacuten social o el estatus del fallecido En este sentido la inhumacioacuten se reservaba para la gente humilde y para los esclavos mientras que la incineracioacuten se usaba con los miembros de familias nobles patricias (GALINIER M 1999 pp 114-115 BELAYCHE N 1993 p 182) Asiacute poco a poco en lugar de utilizar urnas funerarias propias de la incineracioacuten (veacutease ilustracioacuten 4) se fue extendiendo la costumbre de enterrar a los muertos en cajas bien de madera o de piedra de las cuales derivariacutean los sarcoacutefagos (por otro lado conocidos ya en Etruria y en ciertas regiones del aacutembito heleniacutestico) usados en las inhumaciones Los sarcoacutefagos formaban parte de un monumento funerario (LAVAGNE H 1987 p 168) Soliacutean ser decorados con elementos simboacutelicos y con disentildeos geomeacutetricos (como los surcos ondulados o strigiles)

Los enterramientos individuales presentaban numerosos tipos de monumento funerario Las laacutepidas eran un elemento clave (PRIEUR J 1986 pp 127-128 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1150-1152 GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 91-92) Podiacutean ser estelas exentas coronadas por frontones piedras esculpidas con forma semiciliacutendrica (cupae) propias de esclavos y libertos pedestales y altares ornados con decoracioacuten vegetal o relieves con los bustos de los muertos empotrados en los muros de la tumba Enterramientos muy modestos eran por su parte las cajas de losas de pizarra de aacutenforas (muy empleadas para la inhumacioacuten de infantes) o tegulas reusadas

Conclusioacuten

El concepto de la pervivencia del alma humana en otra esfera es el punto de inicio a partir del cual la antiguumledad romana dedicoacute esfuerzos al recuerdo de sus fallecidos de sus antepasados Al margen de una relativamente confusa profusioacuten de entidades fantasmales como habitantes habituales del maacutes allaacute

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hubo siempre una necesidad de homenajear al difunto con rituales apropiados y en habitaacuteculos adecuados La diferenciacioacuten existente en las ceremonias fuacutenebres y en los propios lugares de descanso de unos y otros se asocioacute con la condicioacuten social o el estatus del fallecido A pesar de la falta de igualdad tras el deceso persistioacute siempre no obstante la creencia en la inmortalidad y la imperiosa necesidad de la pervivencia a traveacutes de la memoria eterna

Abstract The myths of origin Greek linked with the death as well as wishes of achieve the immortality and a new life in the more beyond through the eternal endurance of the soul permeated the imagination religious Roman After death the human turned into a series of entities (lemurs lares manes larvae penates) not always easy to identify From the Roman standpoint death required a series of well-established funeral honors to prevent the conversion of the deceased in a ghost without a break and to thereby appease the evil or negative components In ancient Rome the death was a social event which in terms of the places of burial ways of celebration and worship not equal to the deceased there are notable differences according to social condition or the status of the deadKeywords death underworld ritual cult

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ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO

Camila Alves Jourdan1

Resumo O poder do mar pode ser compreendido em sua capacidade de submersatildeo em sua imensidatildeo e vastidatildeo em sua profundidade e seu constante movimento Estas cinco caracteriacutesticas atribuiacutedas por Astrid Lindenlauf (2003) em seu estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno nos possibilita perceber as potencialidades do mar na atuaccedilatildeo do desaparecimento eou no encobrimento de rastros indesejados Deste modo pretendemos neste artigo analisar passagens que nos permitam elucidar a relaccedilatildeo de accedilotildees consideradas vergonhosascriminosas pela sociedade helecircnica com o mar em obras textuais dos periacuteodos arcaico e claacutessico e representaccedilatildeo imageacuteticaPalavras-chave Mar desaparecimento crimes

1 Alguns apontamentos sobre a morte

Um dos principais estudiosos acerca da questatildeo da morte foi Edgar Morin (1970) Para ele a ideia de morte soacute se torna compreensiacutevel quando podemos representaacute-la e conceitualizaacute-la ndash o que natildeo fazem os animais Para Morin a consciecircncia de morte estaacute relacionada agrave vida em sociedade humanamente organizada Deste modo somente os seres humanos dispotildeem de um arcabouccedilo cognitivo capaz de decodificar e assim compreender o ato de morrer bem como suas implicaccedilotildees aos vivos O reconhecimento da morte implica em uma consciecircncia do indiviacuteduo e de sua individualidade mesmo estando em sociedade A percepccedilatildeo de perda da proacutepria individualidade mostra um indiviacuteduo consciente de si Consciente de sua morte O enterramento dos cadaacuteveres marca a percepccedilatildeo de finitude da mortalidade humana Quando se inicia esse processamento e reflexatildeo sobre os seus mortos a morte ldquonatildeo se trata mais de uma questatildeo de instinto mas jaacute da aurora do pensamento humano que se traduz por uma espeacutecie de revolta contra a morterdquo (MORIN 1970 p 31)

1 Mestra e doutoranda em Histoacuteria Social pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA-UFF) E-mail camilaajourdangmailcom

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A morte eacute sobretudo um ato social E como social a morte natildeo se refere apenas ao indiviacuteduo mas a coletividade que estaacuteestava a sua volta ndash famiacutelia comunidade ciacuterculos de amizade e de outras formas de relacionamento Um rompimento de viacutenculos que ocorre quando o morto deixa de existir Entretanto eacute a ambiguidade que marca este momento crucial na interpretaccedilatildeo de Joseacute Carlos Rodrigues (2006 p 34) o morto apenas se libertou de seu aspecto terrestre para que assim pudesse dar continuidade agrave sua existecircncia em outro lugar ou seja de fato o morto natildeo deixa de existir pois a crenccedila na sobrevivecircncia de uma parte deste morto de um duplo permeia diversas sociedades De acordo com Maacutercia Maria de Medeiros

Uma antropologia histoacuterica da morte mostra com efeito que os homens das sociedades arcaicas repugnavam a ideacuteia de uma destruiccedilatildeo definitiva e total e consideravam que os mortos continuavam a levar a nosso lado uma vida invisiacutevel e natildeo cessam de intervir no curso da existecircncia daqueles que chamam a si mesmos de vivos (DASTUR Apud MEDEIROS 2008 p 154)

Esta interpretaccedilatildeo nos permite compreender o conjunto do imaginaacuterio helecircnico acerca do processo pelo qual passava o morto ndash a morte imputada por Thanatos ndash dos processos de manutenccedilatildeo de sua continuidade ndash ritos fuacutenebres ndash dos lugares-imaginados como locais de permanecircncia desse defunto ndash como os domiacutenios de Hades o reino dos mortos A ambiguidade neste cenaacuterio reside no fato de que a morte eacute a princiacutepio um ato de exclusatildeo de desligamento Entrementes esta exclusatildeo necessita ser compensada com a re-inserccedilatildeo do indiviacuteduo em uma espeacutecie de renascimento em uma nova vida em um novo grupo social em um novo mundo (RODRIGUES 2006 p 34) Esta nova inserccedilatildeo necessita de um trabalho de desagregaccedilatildeo em um domiacutenio e a inserccedilatildeo em um novo Esta accedilatildeo exige um esforccedilo nos campos simboacutelico e cognitivo para reorganizar tais desestruturaccedilotildees e reestruturaccedilotildees de relacionamentos sociais Deste modo eacute atraveacutes dos ritos fuacutenebres do enterro do defunto o meio que a sociedade encontrou para assegurar todo este processo (RODRIGUES 2006 p 42)

Os ritos fuacutenebres funcionam entatildeo como marca dessa nova inserccedilatildeo desse processo de continuidade Buscando o entendimento de todo o processamento das relaccedilotildees sociais do receacutem-morto e dos novos viacutenculos sociais criados pelos vivos Rodrigues parte da proposiccedilatildeo conceitual de Van Gennep para compreender os ritos fuacutenebres O ldquorito de passagemrdquo permite ao autor articular o processo de separaccedilatildeo do morto da sociedade dos vivos no qual afere a ideia de que a morte natildeo eacute um fim inexoraacutevel para o morto mas

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uma passagem de uma ldquoforma de vida social a uma outra ela natildeo eacute o fim da vida mas iniciaccedilatildeo a uma novardquo (RODRIGUES 2006 p 43)

Destarte a partir deste luto os ritos vinculados a morte representam um conjunto de condutas culturais que possuem grande importacircncia e que tem como funccedilatildeo a constituiccedilatildeo de uma memoacuteria coletiva sobre o morto (MEDEIROS 2008 p 154) E com isto eacute perceptiacutevel como a morte e os ritos que lhe seguem satildeo de caraacuteter social e fundamentais para a manutenccedilatildeo da ordem no mundo dos vivos e dos mortos

Sendo assim Jean-Pierre Vernant afirma que para os gregos a ldquoideacuteia que a morte eacute um limiar intransponiacutevel atraacutes do qual se encontra um mundo que eacute um mundo de horror de anonimato um magma onde todos se perdemrdquo (VERNANT 2009 p 83) A morte para os gregos estaacute presente na ldquovida da poacutelisrdquo isto eacute a praacutetica de cuidar dos tuacutemulos renderem-lhes honras fuacutenebres a existecircncia de dias de festivais dedicados aos mortos a ponto de ser uma preocupaccedilatildeo de ordem econocircmica para os legisladores da cidade (BURKERT1993 pp 376-379)

Morrer adquire um status paradoxal implica na morte do indiviacuteduo a sua ldquoviagem para o esquecimentordquo mas a rememoraccedilatildeo constante feita pelos vivos seja pelo canto dos poetas seja pelo memorial funeraacuterio Era fundamental assim que a singularidade da existecircncia do indiviacuteduo de seus feitos do que havia sido permanecessem inscritos para sempre na memoacuteria dos homens (VERNANT 2009 p 86)

2 As passagens relacionadas ao morrer no mar

Homero eacute o primeiro a nos apontar a construccedilatildeo de um discurso sobre a morte no mar Na passagem do canto IV nos versos 708-711 ressalta que o arauto Meacutedon conta agrave Peneacutelope sobre a empreitada de Telecircmaco e a armadilha preparada pelos pretendentes visando findar com a vida de seu filho Nesta fala afirma que a morte no mar permite o esquecimento do defunto

Em nau veloz cavalo salso marinho em plena imensidatildeo aquosa natildeo carecia que zarpasse O proacuteprio nome quer que naufrague entre os humanos (HOMERO Odisseia IV 708-711)2

2 οὐδέ τί μιν χρεὼ νηῶν ὠκυπόρων ἐπιβαινέμεν αἵ θ᾽ ἁλὸς ἵπποι ἀνδράσι γίγνονται περόωσι δὲ πουλὺν ἐφ᾽ ὑγρήν ἦ ἵνα μηδ᾽ ὄνομ᾽ αὐτοῦ ἐν ἀνθρώποισι λίπηται

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A armadilha feita pelos inimigos conduziria agrave morte o jovem Telecircmaco fazendo seu corpo perdesse entre as ondas do mar Com o corpo perdido o crime seria encoberto e o a memoacuteria do jovem perdida por natildeo ser realizado o enterramento corretamente

Neste mesmo sentido o poeta do VII seacuteculo aC Arquiacuteloco enfatiza num mesmo sentido discursivo que natildeo eacute possiacutevel conceder as honras fuacutenebres aos mortos no mar Posidon oculta a dor aos parentes jaacute que natildeo poderiam ver os corpos sendo queimados na ldquochama de Hefestosrdquo com a seguinte passagem

Se Hefesto tivesse envolvido em seu vestido a cabeccedila e os membros dele Oculta os dolorosos presentes do Senhor Poseidon (ARQUIacuteLOCO vv 5-6)

No entanto eacute com Hipocircnax poeta do seacuteculo VI aC que vemos a primeira relaccedilatildeo entre a morte no mar e um ato de puniccedilatildeo

diga-me o modo para que lsquoesse infamersquo morra de uma maneira infame apedrejado por decisatildeo conjunta das pessoas agraves margens do mar esteacuteril (HIPOcircNAX 135 vv 3-4)

Nesta passagem o autor faz referecircncia a morte por apedrejamento junto a beira do mar O mar completa a cena de uma morte com caraacuteter negativo infame com esterilidade

Percebemos ateacute aqui que durante o periacuteodo arcaico a morte no mar eacute algo natildeo desejado pelos helenos algo que gera uma problemaacutetica no sistema dos ritos fuacutenebres Tambeacutem eacute na construccedilatildeo de um discurso socialmente construiacutedo que relaciona a negatividade atribuiacuteda agrave morte no meio inoacutespito ao cenaacuterio de uma morte sem gloacuteria calcada na proposiccedilatildeo de ampliar a puniccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da morte de ldquoum infamerdquo Esse discurso perpassa os valores helecircnicos ateacute se cristalizar no discurso herodotiano

Na primeira das trecircs passagens Heroacutedoto nos relata um caso em que os nautai tentam usurpar os bens de um renomado aedo durante a travessia do mar Vejamos

Confiando em nenhum mais do que os Coriacutentios ele contratou um navio Coriacutentio para levaacute-lo a partir de Tarento Mas quando eles estavam em alto mar a tripulaccedilatildeo conspirarou para tomar o dinheiro de Arion e lanccedilaacute-lo ao mar Descobrindo isso ele suplicou fervorosamente pedindo por sua vida e oferecendo-lhes o seu dinheiro Mas a tripulaccedilatildeo natildeo iria ouvi-lo e disse-lhe quer se matar

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e assim receber o sepultamento em terra ou saltar para o mar de uma vez Abandonado a estes extremos Arion pediu que uma vez que eles tinham decido em suas mentes o deixassem ficar no conveacutes do navio com toda a sua regalia e cantar e ele prometeu que depois de cantar ele iria se entregar Os homens satisfeitos com a ideia de ouvir o melhor cantor do mundo afastaram-se em direccedilatildeo ao meio da nau a partir da popa Arion colocando todos os seus bens e tendo sua lira levantou-se no conveacutes e cantou a lsquoNomo orthiorsquo e quando a muacutesica terminou ele lanccedilou-se ao mar com todos os seus bens Assim a equipe partiu para Corinto mas um golfinho (assim diz a histoacuteria) tomou Arion em suas costas e o levou a Teacutenaro Desembarcando laacute ele foi para Corinto com seus bens e quando ele chegou ele relatou tudo o que havia acontecido Periandro ceacutetico manteve-o em regime de confinamento deixando-o ir a lugar nenhum e esperou pelos marinheiros Quando eles chegaram eles foram convocados e perguntou se trouxeram notiacutecias de Arion Enquanto eles estavam dizendo que ele estava seguro na Itaacutelia e que o tinha deixado satildeo e bem em Tarento Arion apareceu diante deles assim como foi quando ele pulou do navio espantado que natildeo podia mais negar o que foi provado contra eles (HEROacuteDOTO Histoacuterias I 24 2-7)3

Nesta passagem denotamos que para encobrir o crime a ser cometido contra Arion os navegantes optam por lanccedila-lo ao mar desaparecendo com seu corpo e escondendo o crime cometido Satildeo as atribuiccedilotildees que caracterizam o mar que apresentaremos em breve que aqui fica evidenciado o mar faz com que o corpo desapareccedila Aleacutem disso a oposiccedilatildeo ldquolanccedilar-se ao marrdquo e ldquoreceber o sepultamentordquo fica notadamente evidenciada nesta passagem Morrer no mar caso ele saltasse significaria a ausecircncia dos devidos ritos fuacutenebres

A passagem seguinte de Heroacutedoto mostra uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre o ato criminoso e a capacidade do mar de encobrir o corpo

3 οὔκων δὴ πείθειν αὐτὸν τούτοισι ἀλλὰ κελεύειν τοὺς πορθμέας ἢ αὐτὸν διαχρᾶσθαί μιν ὡς ἂν ταφῆς ἐν γῇ τύχῃ ἢ ἐκπηδᾶν ἐς τὴν θάλασσαν τὴν ταχίστην ἀπειληθέντα δὴ τὸν Ἀρίονα ἐς ἀπορίην παραιτήσασθαι ἐπειδή σφι οὕτω δοκέοι περιιδεῖν αὐτὸν ἐν τῇ σκευῇ πάσῃ στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι ἀεῖσαι ἀείσας δὲ ὑπεδέκετο ἑωυτὸν κατεργάσασθαι καὶ τοῖσι ἐσελθεῖν γὰρ ἡδονὴν εἰ μέλλοιεν ἀκούσεσθαι τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀοιδοῦ ἀναχωρῆσαι ἐκ τῆς πρύμνης ἐς μέσην νέα τὸν δὲ ἐνδύντα τε πᾶσαν τὴν σκευὴν καὶ λαβόντα τὴν κιθάρην στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι διεξελθεῖν νόμον τὸν ὄρθιον τελευτῶντος δὲ τοῦ νόμου ῥῖψαί μιν ἐς τὴν θάλασσαν ἑωυτὸν ὡς εἶχε σὺν τῇ σκευῇ πάσῃ καὶ τοὺς μὲν ἀποπλέειν ἐς Κόρινθον τὸν δὲ δελφῖνα λέγουσι ὑπολαβόντα ἐξενεῖκαι ἐπὶ Ταίναρον ἀποβάντα δέ αὐτὸν χωρέειν ἐς Κόρινθον σὺν τῇ σκευῇ καὶ ἀπικόμενον ἀπηγέεσθαι πᾶν τὸ γεγονός Περίανδρον δὲ ὑπὸ ἀπιστίης Ἀρίονα μὲν ἐν φυλακῇ ἔχειν οὐδαμῇ μετιέντα ἀνακῶς δὲ ἔχειν τῶν πορθμέων ὡς δὲ ἄρα παρεῖναι αὐτούς κληθέντας ἱστορέεσθαι εἴ τι λέγοιεν περὶ Ἀρίονος φαμένων δὲ ἐκείνων ὡς εἴη τε σῶς περὶ Ἰταλίην καί μιν εὖ πρήσσοντα λίποιεν ἐν Τάραντι ἐπιφανῆναί σφι τὸν Ἀρίονα ὥσπερ ἔχων ἐξεπήδησε καὶ τοὺς ἐκπλαγέντας οὐκ ἔχειν ἔτι ἐλεγχομένους ἀρνέεσθαι

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Temendo pois para si mesmo para que seu irmatildeo poderia mataacute-lo e assim por ser rei ele enviou Prexaspes o mais confiaacutevel de seus persas para a Peacutersia para mataacute-lo Prexaspes foi para Susa e matou Esmeacuterdis levando-o para caccedilar de acordo alguns ou de acordo com os outros levando ao mar Eritreu e laacute jogou-o nas aacuteguas profundas (HEROacuteDOTO Histoacuterias III 30 3)4

Na segunda passagem Cambises receoso por um sonho ordenou a morte de seu irmatildeo Esmeacuterdis com medo deste tirar seu trono Aqui o mar aparece como um lugar vinculado agrave ideia de morte escondida no qual natildeo haacute evidecircncias O fratriciacutedio real ainda que cometido por terceiros na visatildeo helecircnica era puniacutevel pois seria cometido um crime de sangue

Por fim a terceira passagem nos apresenta a histoacuteria de Estearco que induzido por sua nova esposa de que sua filha era uma prostituta pede a seu hoacutespede Temison que jogue sua filha ao mar Natildeo somente o pai se nega a cometer diretamente um crime familiar matando sua filha mas tambeacutem solicita-o ao hoacutespede ndash que acaba sentindo-se na necessidade de retribuir a hospitalidade de Estearco Na passagem vecirc-se ldquoe o manda que a jogue no marrsquo (HEROacuteDOTO Histoacuterias IV 154 3)5

O mar aparece novamente como aquele com o poder de encobrir os crimes cometidos atraveacutes da destruiccedilatildeo do corpo Nem o corpo nem o crime seriam levados de volta agrave sociedade O mar eacute entatildeo o espaccedilo do desaparecimento aquilo capaz de ldquoEsconder os corpos e os crimesrdquo

3 O mar que esconde os corpos e os crimes

Em um estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno realizado por Astrid Lindenlauf (2003 pp 416-433) no qual o Mediterracircneo servia como um toacutepos para o descarte de objetos indesejados6 percebemos que o mar era

4 πρὸς ὦν ταῦτα δείσας περὶ ἑωυτοῦ μή μιν ἀποκτείνας ὁ ἀδελφεὸς ἄρχῃ πέμπει Πρηξάσπεα ἐς Πέρσας ὃς ἦν οἱ ἀνὴρ Περσέων πιστότατος ἀποκτενέοντά μιν ὁ δὲ ἀναβὰς ἐς Σοῦσα ἀπέκτεινε Σμέρδιν οἳ μὲν λέγουσι ἐπ᾽ ἄγρην ἐξαγαγόντα οἳ δὲ ἐς τὴν Ἐρυθρὴν θάλασσαν προαγαγόντα καταποντῶσαι

5 καὶ ταύτην ἐκέλευε καταποντῶσαι ἀπαγαγόντα

6 Exemplos que a autora expotildee lanccedilamento de estaacutetua de liacutederes poliacuteticos indesejado que representaria uma declaraccedilatildeo poliacutetica simboacutelica visando o apagamento da memoacuteria O lanccedilamento do corpo de um inimigo assassinado representava a negaccedilatildeo do enterro (LINDENLAUF 2003 pp 420-421)

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compreendido entre os helenos antigos como um lugar de onde nada ndash exceto em alguns casos ndash retornava de volta agraves vistas da sociedade A profundidade sua capacidade de submersatildeo a imensidatildeo a vastidatildeo e o constante movimento do mar geravam a percepccedilatildeo do mar como uma possibilidade do desaparecimento por completo (LINDENLAUF 2003 pp 423-424) Assim tambeacutem ocorreria para aqueles que morriam em meio mariacutetimo Todo este imaginaacuterio de poder de desaparecimento de objetos e pessoas indesejadas nos reforccedila a ideia do mar como um local de morte sem retorno

A partir destas capacidades que geram os desaparecimentos em algumas das passagens destacadas percebemos sua utilizaccedilatildeo para o encobrimento de atos considerados criminosos Fosse pela trama dos pretendentes contra Telecircmaco fosse pelo assassinato de Esmeacuterdis por ordem do irmatildeo a temaacutetica e as discussotildees sobre os atos infracionais na ordem social tambeacutem eram pontuados pelos tragedioacutegrafos Sem nos adentrarmos especificamente nestas dramatizaccedilotildees cabe-nos ressaltar que a ideia de crime de sangue ndash caso de alguns de nossos apontamentos anteriores ndash poderia ser considerado um dos piores tipos de crime Deste modo as trageacutedias estatildeo repletas de personagens que cometem crimes e satildeo julgados e punidos por estas accedilotildees Do parriciacutedio de Eacutedipo do matriciacutedio de Orestes dos filiciacutedios de Medeacuteia e Agamecircmnon do fratriciacutedio de Eteacuteocles e Polinices os helenos conviviam com estes embates em cenas e em seu imaginaacuterio onde havia o conflito entre forccedilas opostas no qual se deturpava a ordem anteriormente estabelecida Aos personagens traacutegicos temos a oposiccedilatildeo do ethhos (caraacuteter) e do daacuteimon (destino) no qual seus destinos satildeo previamente traccedilados pelos deuses e que ainda assim satildeo responsaacuteveis por seus atos criminosos (SANTOS 2005 pp 63-64)

Entre a capacidade do mar para o encobrimento de objetos e a necessidade de se esconder os corpos de crimes abjetos o mar proporciona em diversos niacuteveis esta possibilidade Natildeo satildeo somente as cinco caracteriacutesticas destacadas por Lindenlauf mas tambeacutem se deve considerar os seres que habitam o mar e que compotildeem este cenaacuterio de destruiccedilatildeo Como aponta Papadoupolos e Ruscillo o poder do mar centrava-se na capacidade de engolir e esconder um ser humano completamente aleacutem de contar com as inuacutemeras criaturas comedoras de carne em suas profundezas deste modo a morte no mar era parte da tradiccedilatildeo poeacutetica grega (2012 p 215) ldquoDesde Homero que o mar eacute o lugar dos heroacuteis o percurso a ser desbravado com coragem astuacutecia e ajuda dos deuses Entretanto isso natildeo quer dizer que o medo natildeo estivesse presente

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Os gregos sabiam o que um naufraacutegio representavardquo (VIEIRA 2010 p 60) Tanto que encontramos imagens em ceracircmica que representam o naufraacutegio e o poder destrutivo dos seres que o habitam

Esta cena estaacute em uma cratera datada de final do seacuteculo VIII aC encontrada em Pitecussa em estilo geomeacutetrico tardio (BUCHNER 1966 p 8) Nela podemos ver o naufraacutegio de um navio e seus tripulantes Em cena uacutenica vemos uma grande nau virada para baixo e dois navegantes entre os peixes logo abaixo dela Mais a esquerda da cena um enorme peixe devora um homem sua cabeccedila jaacute estando dentro da boca do peixe inclusive No restante da cena temos outros corpos e uma grande variedade de peixes

Neste contexto do periacuteodo arcaico a navegaccedilatildeo no Mediterracircneo ocidental estava pautada no processo de expansatildeo helecircnica tanto territorial quanto comercial O imaginaacuterio dos perigos do mar e dos animais que o habitavam ndash verdadeiros devoradores de homens ndash permeavam tambeacutem a construccedilatildeo imageacutetica

Da cena que apresentamos quanto destes homens poderiam ter sobrevivido Em qual situaccedilatildeo os corpos dos cadaacuteveres estariam se fossem encontrados Este imaginaacuterio de horror de uma morte longe das vistas da poacutelis de ausecircncia do corpo em ritos fuacutenebres marca a capacidade do mar e dos seres que o habitam de encobrir as mortes que ali ocorriam fossem por tempestades ou perigos inerentes agrave navegaccedilatildeo fossem por crimes cometidos e que se desejavam esconder da sociedade

4 Consideraccedilotildees finais

Podemos ver a partir da documentaccedilatildeo em que realizamos anaacutelise que essa morte marinha se coloca como o oposto da morte com seus rituais e a aproxima de atos criminosos ndash no sentido de encobrir tais atos O corpo se perdeu entre as ondas do mar foi danificado natildeo pode receber as honras fuacutenebres Natildeo eacute a ldquobela morterdquo de um guerreiro em batalha ndash morte tatildeo

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valorizada nos discursos ndash mas a ausecircncia do indiviacuteduo no qual o corpo se decompotildee no mar

A morte no mar representa o ldquolsquoultraje ao cadaacuteverrsquo ou seja o tratamento que se quer infligir aos inimigos mortos para que natildeo se tornem memoraacuteveis para os deixar apodrecerrdquo (VERNANT 2009 p 91) Natildeo eacute somente o corpo mas o esquecimento que o indiviacuteduo teraacute na memoacuteria dos vivos Os rituais fuacutenebres marcam a mnemosyne ndash Memoacuteria ndash guardam a lembranccedila e a manteacutem viva

Como aponta Joseacute Carlos Rodrigues ldquoa morte do corpo pode ser a morte do siacutembolo que o corpo eacute a morte do siacutembolo da estrutura socialrdquo (RODRIGUES 2006 p40) A simbolizaccedilatildeo da vida do defunto lhe eacute impressa em seu enterramento seu corpo faz parte da demarcaccedilatildeo social Quando haacute a ausecircncia do corpo como se realiza a marca de sua vida no enterramento

Eacute neste sentido que os rituais fuacutenebres emergem como complexos ritos que projetam a vida coletiva da sociedade no enterramento Estes ritos dependeratildeo estreitamente do tipo de morte da condiccedilatildeo do morto do status social dos sobreviventesvivos e sua relaccedilatildeo com o desaparecidomorto (Idem) Assim a ausecircncia do corpo nos ritos fuacutenebres traz problemaacuteticas a serem sanadas pelos vivos Morrer no mar eacute em muitos casos perder o corpo natildeo voltar Realizar uma demarcaccedilatildeo espacial e conceder ao morto um novo lugar para habitar atraveacutes da estela funeraacuteria O ldquocorpo se perde entre as ondasrdquo como jaacute cantavam os antigos aedos e rapsodos E uma vez perdidos entre as ondas como descobrir a forma de sua morte Como se diz que foi uma morte por naufraacutegio ou assassinato em alto-mar O mar desde os antigos mostra assim todas as suas potencialidades Potencialidades diversas que os helenos buscaram compreender dominar e representar

Abstract The power of the sea can be understood in its submersion capacity in its immensity and vastness in its depth and its constant movement These five characteristics ascribed by Astrid Lindenlauf (2003) in their study of the sea as a place of ldquono-returnrdquo enable us to perceive the potentialities of the sea in the disappearance and or cover-up of unwanted traces Thus we intend in this article to analyze passages that allow us to elucidate the relation of actions considered shameful criminal by Hellenic society with the sea in textual works of the archaic and classic periods and imagery representationKeywords Sea disappearance crimes

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Greacutecia Antiga Satildeo Luis Cafeacute amp Laacutepis e Editora UEMA 2011

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A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTI-GUIDADE

Renata Cardoso de Sousa1

Existe por exemplo o gosto pela viagem ndash um prazer muito especial que natildeo deve ser confundido com fuga evasatildeo ou escapismo Eacute o gosto pela imersatildeo no desconhecido pelo conhecimento do outro pela exploraccedilatildeo da diversidade A satisfaccedilatildeo de se deixar transportar para outro tempo e outro espaccedilo viver outra vida com experiecircncias diferentes do cotidiano (MACHADO 2009 p 19 e 20)

Resumo Propomos pensar como eacute possiacutevel trabalhar o tema da etnicidade e do etnocentrismo na sala de aula a partir do uso de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade Para tal primeiramente eacute necessaacuterio estabelecer alguns criteacuterios para a utilizaccedilatildeo dessa literatura que ainda gera debates acerca da sua proficuidade bem como conceituar a etnicidade Partiremos dos conceitos de etnicidade (proposto por Fredrik Barth) e identidade-alteridade (de Marc Augeacute) para depois nos debruccedilarmos sobre propostas de trabalho com algumas adaptaccedilotildees selecionadasPalavras-chave Ensino de Histoacuteria adaptaccedilotildees literaacuterias etnicidade

Objetivamos nesse artigo pensar algumas questotildees concernentes tanto ao Ensino de Histoacuteria quanto agrave validade da utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade em sala de aula como forma de estiacutemulo agrave leitura Dentre essas questotildees estatildeo a) Por que tratar o tema da etnicidade e do etnocentrismo em sala de aula b) Por que recorrer agrave Antiguidade para (re)pensar a etnicidade c) Por que utilizar adaptaccedilotildees em sala de aula se podemos mediar a leitura do claacutessico com os alunos

Para tal proposta primeiro propomos pensar acerca do proacuteprio conceito e de sua importacircncia dentro do contexto escolar para depois pensarmos o

1 Professora Doutoranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada (PPGHC-UFRJ) Orientada pelo Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa Bolsista CAPES E-mail renatacardoso1990gmailcom

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conceito na Antiguidade grega Em seguida discutiremos a proficuidade das adaptaccedilotildees e definiremos mesmo o que seriam elas No final propomos algumas soluccedilotildees para o trabalho com o conceito de etnicidade utilizando adaptaccedilotildees da Odisseia em sala de aula com exemplos praacuteticos

10 ldquoA Histoacuteria eacute decorebardquo ou ldquoA Histoacuteria ensina fatos do passado natildeo do presenterdquo o senso comum e o Ensino de

Histoacuteria

Quem eacute professor de Histoacuteria em algum momento jaacute deve ter ouvido essas duas frases de alunos pais de alunos ou ateacute mesmo de diretores ou coordenadores Entretanto quando nos deparamos com as pesquisas no acircmbito do Ensino de Histoacuteria (e na aacuterea de ensino em geral) percebemos o quanto essas duas visotildees estatildeo ultrapassadas Os proacuteprios Paracircmetros Curriculares Nacionais do Ensino de Histoacuteria (PCN) desconstroem essa ideia

A construccedilatildeo de noccedilotildees interfere nas estruturas cognitivas do aluno modificando a maneira como ele compreende os elementos do mundo e as relaccedilotildees que esses elementos estabelecem entre si Isso significa dizer que quando o estudante apreende uma noccedilatildeo grande parte do que ele sabe e pensa eacute reorganizado a partir dela Na medida em que o ensino de Histoacuteria lhe possibilita construir noccedilotildees ocorrem mudanccedilas no seu modo de entender a si mesmo os outros as relaccedilotildees sociais e a Histoacuteria Os novos domiacutenios cognitivos do aluno podem interferir de certo modo nas suas relaccedilotildees pessoais e sociais e nos seus compromissos e afetividades com as classes os grupos sociais as culturas os valores e as geraccedilotildees do passado e do futuro (BRASIL 1998 p 35)

Sendo assim o Ensino de Histoacuteria deixa de se basear na mera reproduccedilatildeo dos fatos histoacutericos e a cobranccedila deles nas provas ele comeccedila a elaborar uma seacuterie de objetivos (como os proacuteprios objetivos gerais do PCN ndash BRASIL 1998 p 43) que buscam a utilizaccedilatildeo da Histoacuteria para construir pessoas criacuteticas capazes de utilizar o arcabouccedilo conceitual que possuem para discutir acerca da sua proacutepria realidade e tambeacutem modificaacute-la

Fato eacute que frequentemente nos deparamos com esses dois estereoacutetipos do Ensino de Histoacuteria os quais dificultam (mas natildeo impossibilitam) o avanccedilo da aplicaccedilatildeo da pesquisa agrave praacutetica escolar (algo tambeacutem tatildeo caro ao PCN2) Ainda nos deparamos com muitos estereoacutetipos nos livros didaacuteticos

2 ldquoNas uacuteltimas deacutecadas por diferentes razotildees nota-se uma crescente preocupaccedilatildeo dos professores do ensino fundamental em acompanhar e participar do debate historiograacutefico criando

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de Histoacuteria (como a ldquoIdade Meacutedia trevosardquo ou a ldquoinvasatildeo dos baacuterbarosrdquo) bem como agraves vezes somos pressionados como professores a fazer provas que satildeo meras verificaccedilotildees e natildeo avaliaccedilotildees (LUCKESI 2008 p 93) A Histoacuteria eacute para ser compreendida natildeo decorada por meio de um questionaacuterio E ela eacute para ser compreendida natildeo para servir de exemplo mas para fazer refletir acerca do nosso proacuteprio presente e nos fazer entender como chegamos ao ponto em que estamos

A avaliaccedilatildeo nesse sentido deixaria de se ater apenas agrave verificaccedilatildeo de um conteuacutedo fatual inculcado mas traria situaccedilotildees-problema e questotildees culturais do proacuteprio cotidiano e da realidade nacional e internacional para que o aluno pudesse aplicar os conhecimentos acerca do estudo da Histoacuteria Ele demonstraria que de fato aprendeu a pensar historicamente e a aplicar esse pensamento agrave sua realidade e natildeo apenas decorou o conteuacutedo para passar de ano

Isso natildeo significa abandonar o fato histoacuterico mas sobretudo utilizaacute-los para pensar acerca do presente e instigar o contato com a alteridade por parte do educando a fim de que ele possa assim reconhecer sua proacutepria identidade e natildeo desrespeitar ou repudiar as maneiras pelas quais o Outro constroacutei sua proacutepria identidade Esse eacute outro ponto (o respeito agraves alteridades) que toca o PCN (BRASIL 1998 p 35 e 36) de modo natildeo a simplesmente ldquoformar cidadatildeos brasileirosrdquo como era a proposta majoritaacuteria no Ensino de Histoacuteria (NADAI 2017 p 30) mas formar pessoas que tecircm o respeito como valor maacuteximo

Em tempos sombrios nos quais cada vez mais vemos um retrocesso em relaccedilatildeo ao respeito aos direitos humanos e agraves pessoas que pensamagem diferente de noacutes nos quais a liberdade de expressatildeo eacute confundida com liberdade de opressatildeo e liberdade de ofensa eacute mister que o exerciacutecio da alteridade seja um dos nortes da Educaccedilatildeo Para isso eacute preciso compreender alguns conceitos como os de identidade alteridade etnicidade e etnocentrismo Eacute por esse motivo que eacute importante na sala de aula natildeo soacute ldquopassarmos todo o conteuacutedordquo mas tambeacutem fazer os educandos refletirem acerca dos conceitos que perpassam a Histoacuteria

As conceituaccedilotildees e as noccedilotildees em vez de serem trabalhadas por meio de suas caracteriacutesticas geneacutericas assumem especificaccedilotildees histoacutericas possibilitando

aproximaccedilotildees entre o conhecimento histoacuterico e o saber histoacuterico escolar Reconhece-se que o conhecimento cientiacutefico tem seus objetivos sociais e eacute reelaborado de diversas maneiras para o conjunto da sociedade Na escola ele adquire ainda uma relevacircncia especiacutefica quando eacute recriado para fins didaacuteticosrdquo (BRASIL 1998 p 30)

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o diaacutelogo entre os sujeitos que falam pelos documentos legados ao presente e aqueles que os interpretam Nesse sentido eacute importante recuperar na Histoacuteria a historicidade dos conceitos sua relaccedilatildeo com a interpretaccedilatildeo e categorizaccedilatildeo de fenocircmenos em contextos temporais especiacuteficos (BRASIL 1998 p 82)

ldquoRevoluccedilatildeordquo ldquodescobrimentordquo ldquonacionalismordquo ldquoidentidaderdquo ldquoalteridaderdquo e ldquoetnicidaderdquo satildeo exemplos de conceitos que estatildeo presentes em vaacuterias eacutepocas em vaacuterias sociedades e inclusive na nossa proacutepria sociedade Aleacutem disso esses conceitos satildeo passiacuteveis de interpretaccedilotildees diversas revelando a reflexatildeo acerca deles bastante profiacutecua para o aluno entender melhor o que eacute a Histoacuteria e o que eacute o processo histoacuterico No entanto eacute preciso que o professor saiba lidar com esses conceitos

Se o professor natildeo tiver clareza sobre o sentido e aplicaccedilatildeo de conceitos como cidadania diferenccedila semelhanccedila permanecircncia transformaccedilatildeo questionamento convivecircncia e outros que compotildeem o vocabulaacuterio dos programas e materiais de ensino como seraacute possiacutevel conduzir ou mesmo participar de um projeto de aprendizagem (MICELI 2017 p 40 ndash grifos do autor)

Por isso eacute necessaacuterio que antes de entrarmos no meacuterito do trabalho com o conceito de etnicidade compreendecirc-lo melhor sobretudo no que tange a Greacutecia Antiga nosso foco de anaacutelise

20 O que eacute a etnicidade

Essa eacute uma pergunta sem resposta definitiva desde os anos 1960 se tenta fechar o conceito de etnicidade mas sem sucesso uma vez que essas tentativas como a de Burgess em 1978 de se cristalizar de modo estanque o conceito acaba mais por generalizaacute-lo do que defini-lo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Contudo precisamos considerar que a etnicidade diferentemente da alteridade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a origem em comum de um povo conectada com um territoacuterio especiacutefico

Eacute Fredrik Barth quem estabelece um conceito de etnicidade bastante proacuteximo do que entendemos por etnicidade o autor afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidaderdquo

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afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (2011 p 141) eacute aquele que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees raciaisrdquo

Aleacutem disso Barth enfoca justamente nos limites do grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo (LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)

Por colocar em jogo essa relaccedilatildeo entre o ldquoNoacutesrdquo e o ldquoElesrdquo eacute imprescindiacutevel aliar agraves anaacutelises eacutetnicas o par conceitual identidadealteridade Seguimos o norte teoacuterico do antropoacutelogo Marc Augeacute que natildeo enxerga esses dois conceitos de maneira diametralmente oposta mas como um par complementaacuterio a identidade natildeo existe sem definiccedilotildees de alteridade e vice-versa (AUGEacute 1998 p 28) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no contato entre os colonizadores e os nativos e procuramos reapropriar proficuamente seu arcabouccedilo conceitual para a anaacutelise do nosso objeto histoacuterico-discursivo

O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica assim como o de etnicidade o contato com outras culturas eacute imbuiacutedo de choques No entanto Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de Outro retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) O proacuteprio conectivo adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 pp 63-64) o ldquooutrordquo assemelha-se ao ldquomasrdquo ao adverso

Os estudos de etnicidade em relaccedilatildeo agrave Antiguidade grega satildeo recentes e encontraram em Edith Hall Jonathan Hall e Irad Malkin grande expressatildeo Este uacuteltimo sobretudo adentra mais ainda o tema retirando das Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) o suposto meacuterito de ter contribuiacutedo para o desenvolvimento de relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e seus Outros se debruccedilando sobre a Odisseia de Homero

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No nosso trabalho de doutorado objetivamos incluir a Iliacuteada no centro das discussotildees acerca da etnicidade tambeacutem bem como pensar a construccedilatildeo de um processo discursivo em torno da etnicidade e da identidade-alteridade em Homero Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides sendo o primeiro o arquitexto desses trecircs uacuteltimos Objetivamos analisar como as fronteiras eacutetnicas entre os gregos e seus Outros (e posteriormente entre a poacutelis ateniense e as demais sobretudo as peloponeacutesicas) satildeo construiacutedas desde as epopeias homeacutericas inclusive a Iliacuteada no bojo da relaccedilatildeo de inimizade na guerra entre troianos e aqueus

Na Odisseia de fato as relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e os seus Outros ficam mais evidentes por conta dos enfrentamentos de Odisseu com a alteridade em sua viagem de retorno a Iacutetaca Embora ele se depare com diversos povos (como os ciacutecones os lestrigotildees os lotoacutefagos e ateacute mesmo os feaacutecios que embora muito parecidos com os gregos em sua cultura resistem agrave amizade ritual elemento distintivo entre eles e os baacuterbaros no processo discursivo helecircnico) e pessoas (como Circe e Calipso que satildeo feiticeiras) que destoam do ideal de conduta e civilizaccedilatildeo gregas eacute no episoacutedio dos ciclopes que as marcas eacutetnicas entre os gregos e seus Outros ficaratildeo mais evidentes

Esse episoacutedio eacute tatildeo marcante que ele natildeo se restringe apenas ao Canto IX no qual ele eacute narrado em vaacuterios Cantos da Odisseia o Ciacuteclope reaparece mesmo que seja apenas mencionado (HOMERO Odisseia I vv 69-73 II vv 19-20 X vv 200 e 435 XII vv 209-212 XX vv 18-21 XXIII vv 312-314) Haacute uma construccedilatildeo de fronteiras eacutetnicas flagrante nesse encontro que seraacute explorada no seacuteculo V aC por Euriacutepides no seu drama satiacuterico O Ciacuteclope Eles satildeo descritos do seguinte modo por Odisseu ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεμίστων ἱκόμεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)

Polifemo eacute descrito como um monstro aos olhos do heroacutei eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) como os outros Ciclopes O Ciclope nega uma suacuteplica ao natildeo hospedar Odisseu Isso gera um estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) A consequecircncia da perdiccedilatildeo dele eacute o vazamento de seu uacutenico olho pelo heroacutei da epopeia Contudo a proacutepria hyacutebris (desmedida) de Odisseu ao se vangloriar de tal feito o faz vagar mais pelo mar ateacute conseguir chegar em sua terra natal Iacutetaca

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Para definir o que ele entende por civilizaccedilatildeo ele utiliza a definiccedilatildeo do Outro os gregos respeitam a lei porque os Outros natildeo o fazem a agricultura eacute a atividade que concede identidade aos gregos porque os Outros natildeo a praticam o patildeo eacute o alimento por excelecircncia dos gregos porque os outros natildeo cozinham o alimento nem o fabricam E assim por diante Do mesmo modo noacutes fazemos nos orgulhamos de certos traccedilos eacutetnicos porque satildeo exclusivos a noacutes no plano discursivo natildeo satildeo compartilhados com os Outros

Para levar essa discussatildeo para a sala de aula propomos a utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees Para tal devemos primeiramente definir o que entendemos por adaptaccedilatildeo e debater acerca das particularidades do uso e estudo delas

30 Consideraccedilotildees iniciais acerca da recepccedilatildeo das adaptaccedilotildees

Quando vamos ao cinema assistir a um filme baseado em um livro eacute comum sairmos frustrados acabamos chegando agrave conclusatildeo de que era melhor ter lido o livro somente Cenas satildeo cortadas ou amalgamadas os personagens e os cenaacuterios nem sempre correspondem agrave descriccedilatildeo do livro os diaacutelogos satildeo suprimidos e ou simplificados Isso ocorre porque um livro na verdade satildeo muitos livros cada vez que algueacutem o lecirc interpreta e imagina de um jeito os personagens cenaacuterios cenas diaacutelogos Eacute como se fosse um filme interior passando dentro de nossas cabeccedilas E nenhum cineasta pode estar dentro de nossas cabeccedilas para imaginar como gostariacuteamos de ver um livro representado nas telas Afinal ele mesmo imaginou e criou o mundo do livro em seus pensamentos tambeacutem

Aleacutem disso haacute a questatildeo da narrativa a dinacircmica de um livro eacute diferente da de um roteiro de cinema dos planos cinematograacuteficos que existem no discurso fiacutelmico Seguindo o mesmo raciociacutenio podemos pensar acerca das adaptaccedilotildees literaacuterias O adaptador leu o livro imaginou-o viveu todas aquelas cenas e personagens em sua mente Entretanto ele decide natildeo ficar com isso somente para si ele quer contar para crianccedilas e jovens o que leu o que imaginou o que interpretou E faz a adaptaccedilatildeo daquele livro para um puacuteblico infanto-juvenil cuja literatura demanda um outro tipo de linguagem um outro tipo de discurso diferente daquele do livro para um puacuteblico adulto ou para um puacuteblico infanto-juvenil de eacutepocas precedentes

Por conta disso as adaptaccedilotildees satildeo vistas agraves vezes como elementos empobrecedores dos claacutessicos

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A adaptaccedilatildeo das obras claacutessicas das literaturas nacional e mundial eacute um tema que desperta polecircmica e divide opiniotildees Natildeo poderia ser diferente jaacute que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo natildeo se reduz a um sentido consensual pode ser associada tanto agrave noccedilatildeo de ldquoenriquecimentordquo quanto agrave de ldquoempobrecimentordquo Geralmente argumenta-se que empobreceria as literaturas claacutessicas em virtude de um processo de atualizaccedilatildeo e de simplificaccedilatildeo que visaria a atender a puacuteblicos especiacuteficos como o infantil e o infanto-juvenil Por razotildees semelhantes tornaria possiacutevel o enriquecimento da formaccedilatildeo educativa desses puacuteblicos introduzindo obras de difiacutecil acesso cuja linguagem seria ldquocomplexardquo ou temporalmente distante da linguagem com a qual tais leitores estariam habituados Em ambos os casos a adaptaccedilatildeo seria um conceito amplo que abarcaria as mais diversas formas de linguagem como histoacuteria em quadrinhos adaptaccedilotildees cinematograacuteficas e televisivas desenhos animados audio-books e os trabalhos em forma de narrativa (AMORIM 2005 p 119)

De fato a adaptaccedilatildeo ou releitura daquele livro natildeo seraacute igual ao original assim como o filme do livro natildeo eacute igual ao livro afinal a proposta eacute diferente e os autores satildeo diferentes ldquoA reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a lsquomesma coisarsquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidaderdquo (AMORIM 2005 p 95) Se nos deparamos com uma adaptaccedilatildeo de Miguel de Cervantes William Shakespeare ou Homero natildeo satildeo mais Cervantes Shakespeare e Homero que estatildeo contando aquela histoacuteria eacute o autor da proacutepria adaptaccedilatildeo

Parece oacutebvio afirmar isso mas ainda existe uma preocupaccedilatildeo em denunciar as dissonacircncias entre a adaptaccedilatildeo e o original em detrimento de analisar os porquecircs daquelas dissonacircncias Os textos claacutessicos satildeo arquitextos tanto para as adaptaccedilotildees ou releituras quanto para outros textos que natildeo faccedilam referecircncia direta a esses claacutessicos Os temas da morte que gera vinganccedila por parte daquele que ainda vive dos erros do heroacutei que o leva ao amadurecimento do reconhecimento da bestializaccedilatildeo do ser humano do ponto fraco do heroacutei satildeo vistos inuacutemeras vezes na literatura mundial e estatildeo presentes em textos que remontam agrave Antiguidade Claacutessica Deveria ser Robinson Crusoeacute menos claacutessico que Odisseu Ou Robin Hood menos claacutessico que Paacuteris Afinal o tema da permanecircncia em lugares hostis e da descoberta do filho perdido natildeo foram criados por Defoe e Dumas respectivamente O proacuteprio Alexandre Dumas ao escrever seu As aventuras de Robin Hood estava recriando o personagem das gestas medievais que foram cristalizadas na escrita tempos depois de terem sido cantadas por seacuteculos Afinal

A reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a ldquomesma coisardquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em

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novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidade (AMORIM 2005 p 95)

40 Afinal o que eacute uma adaptaccedilatildeo

Yves Gambier logo no iniacutecio do seu artigo escreve que a adaptaccedilatildeo natildeo teve ainda algum estudo rigoroso ou sistemaacutetico sendo caracterizada sobretudo pela ldquofetichizaccedilatildeordquo do original ldquoA partir de quando podemos dizer que ela [a adaptaccedilatildeo] desfigura lsquotrairsquo o original Segundo quais normas ela se realizardquo (GAMBIER 1992 p 421 e 424)

Objetivamos pensar aqui a adaptaccedilatildeo como ldquolsquohistoacuterias recontadasrsquo reescrituras de obras claacutessicas das literaturas estrangeira e nacional direcionadas a um puacuteblico especiacutefico como o infanto-juvenilrdquo (AMORIM 2005 p 16) Satildeo ldquotextos novos construiacutedos sobre enredos antigosrdquo (FEIJOacute 2010 p 42) Essas adaptaccedilotildees natildeo deixam de ser traduccedilotildees e tambeacutem releituras uma vez que estatildeo recontando as histoacuterias originais a fim de tornaacute-las inteligiacuteveis para o sujeito destinataacuterio delas as crianccedilas e os jovens

Yves Gambier (1992 p 422) inclusive critica uma tentativa de diferenciar adaptaccedilatildeo de traduccedilatildeo mostrando que adaptaccedilatildeo pode ser concebida como a) praacutetica de ldquoadicionar eou omitir para que o texto de chegada (TC) tenha o lsquomesmo efeitorsquo que o texto de partida (TP) dando-se enfoque aos receptores (cultura e liacutengua de chegada)rdquo b) ldquofazer obra original a partir de uma outra composta no mesmo sistema de signos ou natildeordquo c) ldquotransformar um texto visando um certo leitorado por razotildees e segundo criteacuterios socioeconocircmicos declarados ou natildeordquo Desse modo inclusive ele ratifica o conceito de ldquotradaptaccedilatildeordquo de Michel Garneau que viria a eliminar as dicotomias entre a adaptaccedilatildeo e a traduccedilatildeo

O fato de o sujeito destinataacuterio delas serem crianccedilas e jovens natildeo implica que as adaptaccedilotildees sejam exclusivas a esse puacuteblico uma vez que adultos podem se tornar sujeitos receptores desses textos O contraacuterio tambeacutem acontece ldquoPode ateacute acontecer que a crianccedila entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o natildeo foi venha a preferir o segundo Tudo eacute misterioso nesse reino que o homem comeccedila a desconhecer desde que o comeccedila a abandonarrdquo (MEIRELES 2016 p 19)

As adaptaccedilotildees satildeo ldquoum tipo especial de traduccedilatildeo que envolve[m] seleccedilatildeo de conteuacutedo ndash pois resume[m] o enredo ndash e adequaccedilatildeo da linguagem para apresentar a obra escolhida aos jovens de um novo tempo e assim a tradiccedilatildeo

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se perpetua e se legitima por meio da renovaccedilatildeordquo (FEIJOacute 2010 p 44) Ela eacute a ldquoatualizaccedilatildeo de um discurso literaacuteriordquo (FEIJOacute 2010 p 63) pois ldquo[] as obras tradicionais satildeo reelaboradas ou reinterpretadas agrave luz das preocupaccedilotildees sociais morais e literaacuterias de cada momento histoacutericordquo (COLOMER 2017 p 25)

Em defesa das adaptaccedilotildees existe uma tendecircncia a se utilizar o conceito de interdiscurso3 arquitexto4 ou intertexto5 oriundos da Anaacutelise do Discurso no intuito de se dizer que assim como os diversos textos contemporacircneos utilizam os claacutessicos e natildeo satildeo criticados as adaptaccedilotildees assim tambeacutem natildeo o devem ser6 Contudo natildeo compartilhamos dessa ideia os processos interdiscursivos que perpassam os textos natildeo devem ser confundidos ou assemelhados a uma tentativa de tornar inteligiacutevel e acessiacutevel textos por parte de um puacuteblico leitor iniciante como eacute o caso da adaptaccedilatildeo

As adaptaccedilotildees geralmente (mas natildeo necessariamente) estatildeo atreladas agrave literatura infanto-juvenil Foi a partir do seacuteculo XVIII (quando uma noccedilatildeo de infacircncia comeccedila a surgir) que a literatura infanto-juvenil comeccedila a aparecer7 mas com esses fins exclusivamente exemplares Teresa Colomer (2017 p 19)

3 Interdiscurso eacute o conjunto de discursos que antecedem um texto e que o perpassam

4 O arquitexto eacute um texto claacutessico

5 Intertexto satildeo os textos que estatildeo presentes em outros textos seja por meio de citaccedilatildeo direta ou referecircncia sem necessariamente apontar a autoria original

6 ldquoEm favor da posiccedilatildeo de [Monteiro] Lobato e Nelly [Novaes Coelho] seria interessante ainda argumentar que se aceitamos o conceito de intertexto ou seja essa ideia de que a literatura se constroacutei como infinito mosaico de citaccedilotildees e influecircncias mais ou menos remotas a desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees deveria ser amenizada Afinal se eacute vaacutelida a premissa de que alguns lsquoclaacutessicosrsquo satildeo obras fundadoras ou canocircnicas que ao longo do tempo se tornam balizas significativas para um dado patrimocircnio cultural ateacute que ponto as demais obras produzidas natildeo podem ser compreendidas como contiacutenuas lsquoadaptaccedilotildeesrsquo literaacuterias dessas matrizesrdquo (CECCANTINI 2004 p 86)ouldquoSe aceitarmos a ideia de que os claacutessicos podem ser classificados como lsquotextos primeirosrsquo [esse seria o arquitexto] e dar origem indefinidamente a novos textos ndash sempre atualizados com o contexto histoacuterico em que satildeo produzidos e com puacuteblico a que se destinam ndash entatildeo poderemos pensar a adaptaccedilatildeo como um procedimento habitual e inerente agrave renovaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria como perpetuaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos cacircnonesrdquo (FEIJOacute 2010 p 43)

7 Teresa Colomer se refere aqui agrave literatura cujo sujeito destinataacuterio eram as crianccedilas e jovens Podemos entender melhor essa ideia se analisarmos as trecircs categorias de livros infantis natildeo-intencionais que Ceciacutelia Meireles (2016 p 52) distingue em 1951 1) a redaccedilatildeo escrita das tradiccedilotildees orais (como Perrault e Grimm) 2) os livros escritos para uma determinada crianccedila que depois passaram para uso geral (como La Fontaine) 3) livros natildeo escritos para crianccedilas que vieram a cair em suas matildeos e dos quais se fizeram adaptaccedilotildees visando tornaacute-los mais compreensiacuteveis ou adequados ao puacuteblico infantil

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afirma que por muito tempo a literatura voltada para crianccedilas e adolescentes focou na exemplaridade e no didatismo Natildeo que os textos antigos como Homero natildeo trouxessem coacutedigos de conduta a serem seguidos (ateacute porque esses textos eram utilizados na formaccedilatildeo dos gregos poliacuteades) mas eles natildeo foram escritos com tal propoacutesito (MEIRELES 2016 p 43)

Colomer (2017 p 20) defende que a literatura infanto-juvenil estaacute aleacutem disso ela vai ldquo1) Iniciar o acesso ao imaginaacuterio compartilhado por uma determinada sociedade 2) Desenvolver o domiacutenio da linguagem atraveacutes das formas narrativas poeacuteticas e dramaacuteticas do discurso literaacuterio 3) Oferecer uma representaccedilatildeo articulada do mundo que sirva como instrumento de socializaccedilatildeo das novas geraccedilotildeesrdquo A literatura infantil natildeo serve soacute para ensinar exemplos mas para tornar a crianccedila um leitor literaacuterio (COLOMER 2017 p 31)

Para o Ensino da Histoacuteria a primeira e a terceira funccedilatildeo satildeo essenciais para que consideremos o uso dessa literatura na sala de aula As primeiras adaptaccedilotildees inclusive foram feitas por professores (FEIJOacute 2010 p 61) Daiacute a importacircncia da atividade pedagoacutegica para o bom aproveitamento de uma adaptaccedilatildeo Para trabalhar com esse tipo de literatura eacute necessaacuterio ler o original a fim de tanto poder selecionar melhor as adaptaccedilotildees aos propoacutesitos da atividade pedagoacutegica proposta quanto trabalhar melhor com a adaptaccedilatildeo na sala de aula (FEIJOacute 2010 p 150)

No Brasil as adaptaccedilotildees se popularizaram nos anos 1970 junto com a literatura infanto-juvenil em geral (FEIJOacute 2010) Entretanto jaacute no iniacutecio do seacuteculo temos as primeiras adaptaccedilotildees literaacuterias aqui feitas por Monteiro Lobato A partir dele muitos outros autores renomados da literatura brasileira se dedicaram agrave adaptaccedilatildeo Clarice Lispector Rubem Braga Paulo Mendes Campos Ana Maria Machado Essa uacuteltima inclusive aleacutem de escrever adaptaccedilotildees refletiu acerca delas em seu Como e por que ler os claacutessicos universais desde cedo

Defendemos que a adaptaccedilatildeo natildeo pode ser tratada como literatura inferior uma vez que isso seria tratar a literatura infanto-juvenil do mesmo modo Aleacutem disso quantas pessoas natildeo comeccedilaram a ler os claacutessicos porque leram boas adaptaccedilotildees deles na infacircncia Joatildeo Luiacutes Ceccantini em 1997 escreveu para o jornal Proleitura um artigo sobre as adaptaccedilotildees de claacutessicos e afirmou que ldquoa cada adaptaccedilatildeo bem realizada de um claacutessico (nas vaacuterias linguagens) eacute grande o nuacutemero de leitores que se dirige aos textos originaisrdquo (CECCANTINI 2004 p 87) Fato este que atestei inuacutemeras vezes ao longo da minha experiecircncia como professora do Instituto de Histoacuteria da Universidade

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Federal do Rio de Janeiro quando alunos vinham me abordar para conversar sobre as epopeias homeacutericas e as trageacutedias e mostrando que o interesse deles era derivado de eles terem lido quando crianccedilas adaptaccedilotildees desses claacutessicos

A adaptaccedilatildeo manteacutem na memoacuteria o original o claacutessico mas tambeacutem gesta mudanccedilas que dialogam com a escrita contemporacircnea agrave adaptaccedilatildeo (AMORIM 2005 p 30)

As inuacutemeras adaptaccedilotildees realizadas em momentos histoacutericos distintos concretizam o postulado de que a literatura natildeo se apresenta como uma uacutenica resposta para as diferentes perguntas surgidas em cada eacutepoca porque tanto o leitor como suas inquietaccedilotildees se modificam O olhar direcionado para obra busca compreender o presente ou mesmo o passado mas a sua histoacuteria natildeo eacute a igual a dos leitores preteacuteritos logo as questotildees formuladas ao texto seratildeo outras Cabe ao adaptador sujeito histoacuterico do seu tempo compreender as indagaccedilotildees dos leitores infanto-juvenis e as possibilidades da obra ao ser adaptada de respondecirc-las (CARVALHO 2006 p 18)

Desse modo eacute mais profiacutecuo analisar as adaptaccedilotildees como textos que dialogam com seus proacuteprios contextos de produccedilatildeo natildeo com os contextos de seus originais Afinal o autor das adaptaccedilotildees eacute um sujeito receptor a posteriori que natildeo estaacute inserido no contexto dos sujeitos destinataacuterios e receptores da eacutepoca em que o claacutessico foi composto (o que natildeo impede de procurar saber acerca desse contexto devendo inclusive fazecirc-lo para que sua adaptaccedilatildeo seja de boa qualidade)

50 Colocando em praacutetica ndash algumas breves sugestotildees

Por que trabalhar com a Antiguidade Claacutessica para se falar de etnicidade Ana Maria Machado ao falar sobre a literatura claacutessica afirma que

Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade a cultura grega antiga sempre despertou o entusiasmo de leitores apaixonados em diferentes eacutepocas histoacutericas Satildeo uma fonte inesgotaacutevel onde sempre podemos beber Para muita gente eles satildeo os mais fascinantes de todos os claacutessicos Provavelmente satildeo os que mais marcaram toda a cultura ocidental (MACHADO 2009 p 26)

Contudo um outro aspecto preocupa o professor o da obrigatoriedade da leitura como algo prejudicial ao interesse do aluno Maacuterio Feijoacute (2010 p 14) e Ana Maria Machado (2009 p 13) ao escreverem sobre a questatildeo da obrigatoriedade da leitura na sala de aula defendem cada um a seu modo

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que ningueacutem deve ser obrigado a ler algo de que natildeo goste uma vez que isso pode ndash em vez de gerar o efeito pretendido que eacute fazer a crianccedila ou o jovem tomar gosto pela leitura ndash gerar o efeito inverso e fazer com que eles tenham ojeriza agrave leitura Teresa Colomer defende essa obrigatoriedade (COLOMER p 92 e 93)

[] na atualidade aumentam as vozes que defendem a responsabilidade social de oferecer aos meninos e agraves meninas o acesso a uma tradiccedilatildeo cultural compartilhada pela coletividade Isso requer a criaccedilatildeo de um horizonte de leituras ldquoclaacutessicasrdquo entendidas como um conjunto formado pelo folclore os tiacutetulos mais valorizados da literatura infantil e o iniacutecio da leitura das grandes obras universais (COLOMER 2017 p 127)

Contudo ela tambeacutem defende que essa literatura natildeo pode ser maccedilante levando em consideraccedilatildeo sempre os interesses dos alunos uma vez que eles natildeo satildeo meros receptores dos conhecimentos Para ela ldquoos melhores livros satildeo aqueles que estabelecem um compromisso entre o que as crianccedilas podem entender sozinhas e o que podem compreender por meio de um esforccedilo da imaginaccedilatildeo que seja suficientemente compensadordquo (COLOMER 2017 p 37)

Eacute fato que os poemas de Homero possuem uma linguagem a qual a crianccedila e o jovem do seacuteculo XXI podem natildeo conseguir acessar sem mediaccedilatildeo Ana Maria Machado (2009 p 11 e 12) coloca que

Eacute claro que hoje em dia o ensino eacute diferente e o mundo eacute outro Natildeo se concebe que as crianccedilas sejam postas a estudar latim e grego ou a ler pesadas versotildees completas e originais de livros antigos ndash como jaacute foi de praxe em vaacuterias famiacutelias de algumas sociedades haacute um seacuteculo Apenas natildeo precisamos cair no extremo oposto Ou seja o de achar que qualquer leitura de claacutessico pelos jovens perdeu o sentido e portanto deve ser abandonada nestes tempos de primazia da imagem e domiacutenio das diferentes telas sobre a palavra impressa em papel

Assim a mediaccedilatildeo entre os educandos e esses claacutessicos pode ser feita tanto pelos professores quanto pelas proacuteprias adaptaccedilotildees Sugerimos aqui um trabalho que conjugue ambos a adaptaccedilatildeo caminhando junto com o claacutessico A adaptaccedilatildeo sozinha natildeo daacute a dimensatildeo do claacutessico eacute preciso que noacutes mediadores conheccedilamos bem esse claacutessico para que consigamos ter um bom aproveitamento das adaptaccedilotildees

As boas adaptaccedilotildees satildeo aquelas que conseguem manter o mesmo fio condutor da obra original e traga as mesmas imagens marcantes da mesma Uma adaptaccedilatildeo da Odisseia sem o Ciclope por exemplo natildeo seria uma boa

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adaptaccedilatildeo uma vez que essa imagem eacute muito marcante ateacute mesmo dentro da proacutepria obra como jaacute vimos Sendo assim propomos aqui dois modos de trabalho com adaptaccedilotildees Contudo em ambos os casos cremos ser necessaacuterio trazer um pouco do original para que o aluno tenha dimensatildeo do claacutessico e como ele foi composto

Esse trabalho natildeo deve estar inserido no planejamento como se fosse uma mera curiosidade acerca do mundo grego antigo ele deve dialogar com o conteuacutedo programaacutetico Isso auxilia o professor nas estrateacutegias de ensino desse conteuacutedo bem como faz com que ele aproveite o tempo em sala de aula Muito se fala da questatildeo da ldquofata de tempordquo para se fazer atividades luacutedicas e diferentes com os alunos mas pouco se fala da inaptidatildeo do professor em conseguir associar essas atividades luacutedicas ao proacuteprio ensino do ldquoconteuacutedordquo em si

De fato satildeo muitos conteuacutedos para administrar em pouco tempo por isso essas atividades que a priori seriam tidas como ldquoextraclasserdquo devem ser incluiacutedas como metodologia mesmo de ensino deles Um documento (seja ele texto escrito imagem filme) natildeo deve ser utilizado para ilustrar um conteuacutedo mas para auxiliar na sua compreensatildeo Eacute possiacutevel tambeacutem utilizar esses documentos para avaliaccedilotildees fazendo com que o aluno relacione o conteuacutedo com o proacuteprio documento e estimulando-o a pensar acerca da sua proacutepria realidade a partir daquele documento A avaliaccedilatildeo resultante do trabalho com adaptaccedilatildeo natildeo deve ser o preenchimento de uma ficha de leitura ou um questionaacuterio pois isso acaba se tornando uma verificaccedilatildeo nos moldes que jaacute discutimos

Sendo assim escolhemos duas adaptaccedilotildees para trabalhar de dois modos distintos a Odisseia adaptada por Marcos Maffei e ilustrada por Eloar Guazzelli Filho para a Coleccedilatildeo Recontar (Escala Educacional 2004) e Odisseia de Homero (Segundo Joatildeo Viacutetor) de Gustavo Piqueira Em ambos os casos pensamos atividades para dois tempos de aula Existem duas opccedilotildees pedir para os alunos lerem a adaptaccedilatildeo previamente ou lecirc-la junto com eles em sala de aula apontando durante a leitura o conteuacutedo programaacutetico de Greacutecia a ser trabalhado

51 Odisseia de Marcos Maffei e Eloar Guazzelli Filho

Essa coleccedilatildeo segundo os editores foi feita para levar aos pequenos histoacuterias atemporais que continuam a divertir e ensinar O caraacuteter pedagoacutegico da literatura infantil ainda aparece aqui como norte A Odisseia especificamente eacute dividida em vinte e quatro capiacutetulos bem como a obra original eacute dividida em vinte e quatro cantos

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O intuito do adaptador eacute resumir os principais acontecimentos da Odisseia sem contudo desrespeitar a divisatildeo em cantos feita pelos saacutebios alexandrinos Sendo assim a histoacuteria segue a narrativa homeacuterica poreacutem de maneira adaptada agrave linguagem e agrave dinacircmica da narraccedilatildeo em prosa

O ideal eacute que o professor leia junto com os alunos a obra e selecione um dos capiacutetulos para trazer o canto original e lecirc-lo tambeacutem com os alunos incentivando-os a compreender as diferenccedilas entre uma narrativa e outra tanto em relaccedilatildeo ao gecircnero quanto em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees escolhidas para a contagem da histoacuteria Nesse momento eacute possiacutevel introduzir aos alunos os conteuacutedos relativos agrave literatura grega bem como o proacuteprio contexto no qual as epopeias homeacutericas estatildeo ancoradas (como o proacuteprio processo de formaccedilatildeo de apoikiacuteai ndash ldquocolocircniasrdquo ndash gregas ao longo do Mediterracircneo) O professor pode mostrar como cada povo que Odisseu encontra eacute marcado pela sua presenccedila

Propomos aqui eleger o capiacutetulo 9 referente ao canto IX o qual relata o encontro de Odisseu com o Ciclope Eacute um dos capiacutetulos mais extensos do livro e que traz a seguinte caracterizaccedilatildeo do Ciclope

Fomos entatildeo parar noutra ilha onde havia aacutegua e muitas cabras Dali se via uma terra que parecia habitada e no dia seguinte decidi ir ateacute laacute soacute com meu navio Ancoramos onde havia uma grande caverna Escolhi doze de meus homens e fomos ateacute ela levando odres de vinho para ter algo a oferecer Na enorme caverna havia cestos cheios de queijos e cercados com filhotes de ovelhas e cabras mas seu dono levara seus rebanhos para pastar Ele natildeo demorou a chegar com um feixe de lenha tatildeo grande que fez um estrondo ao ser largado no chatildeo e corremos a nos esconder pois era um Ciclope um gigante enorme de um olho soacute Ele fechou a caverna com uma pedra imensa e muito pesada e ao acender o fogo nos viu e perguntou com sua voz tremenda quem eacuteramos (MAFFEI 2004 p 20)

Aqui o exagero (no corpo na voz nos atos do Ciclope) eacute reiterado vaacuterias vezes a fim de mostrar a monstruosidade do personagem A imagem do pelṓrios eacute aqui evidente bem como nas ilustraccedilotildees que os mostram extremamente gigantes frente aos navios gregos O texto continua de modo a narrar como o Ciclope devora os homens de Odisseu reiterando a imagem de que ele natildeo eacute um ldquohomem comedor de patildeordquo Esses satildeo os signos de etnicidade e alteridade que se repetem na adaptaccedilatildeo

No texto de Homero (IX vv 176-301) outros elementos se destacam como a dicotomia entre o cru e o cozido (com a presenccedila da fumaccedila dos fornos) o desconhecimento das leis a convivecircncia em comunidade e a ausecircncia

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de amizade ritual Todos esses elementos tecircm a ver com a construccedilatildeo da dicotomia entre o grego e seus Outros e mais tarde entre o grego e o baacuterbaro

A terra dos ciclopes que perto viviam observaacutevamossua fumaccedila e o som de ovelhas e cabrasQuando o sol mergulhou e vieram as trevasentatildeo repousamos na rebentaccedilatildeo do marQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosentatildeo eu realizando assembleia disse entre eleslsquoOs outros voacutes aqui ficai meus leais companheirosmas eu com minha nau e meus companheirosvou verificar esses homens de que tipo eles satildeose desmedidos selvagens e natildeo civilizadosou hospitaleiros com mente que teme o deusrsquoDito isso embarquei e pedi aos companheirosque tambeacutem embarcassem e os cabos soltassemLogo embarcaram e sentaram-se junto aos calccedilose alinhados golpeavam o mar cinzento com remosMas ao chegarmos a esse lugar que perto ficavalaacute vimos no extremo uma caverna junto ao maralta agrave sombra de loureiros Laacute grande rebanhoovelhas e cabras pernoitava em torno cercaalta se construiacutera com blocos de uma pedreiracom grandes pinheiros e carvalhos alta-copaLaacute pernoitava um varatildeo portentoso ele que o rebanhosozinho apascentava afastado aos outros natildeovisitava mas longe vivendo normas ignoravaDe fato era um assombro portentoso natildeo pareciaum varatildeo come-patildeo mas um pico matosodos altos montes que surge soacute longe dos outrosEntatildeo aos demais leais companheiros pedique laacute junto agrave nau ficassem e guardassem a naumas eu apoacutes escolher doze nobres companheirosfui Levava um odre de cabra com vinho escurodoce que me dera Maacuteron filho de Euantessacerdote de Apolo que zela por Ismarosporque junto com filho e esposa noacutes o protegemosvenerando-o pois habitava bosque arvorejadode Febo Apolo Deu-me presentes radiantesde ouro bem trabalhado sete pesos me deume deu acircnfora toda de prata e depoisvinho em doze acircnforas dupla-alccedila ao todo verteudoce puro bebida divina A esse ningueacutemconhecia nem escravo nem criado em sua casasoacute ele proacuteprio a cara esposa e uma soacute governantaQuando algueacutem bebesse esse vinho tinto doce como melenchia um caacutelice e doze medidas de aacutegua

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vertia um doce aroma da acircnfora emanavaprodigioso entatildeo impossiacutevel seria abster-seEu trazia um grande odre cheio dele e tambeacutem acepipesno alforje logo meu acircnimo orgulhoso pensouque encontraria varatildeo vestido com grande bravuraselvagem natildeo conhecendo bem tradiccedilotildees nem normasCeacuteleres nos dirigimos ao antro e dentro natildeoo achamos mas apascentava no pasto gordos rebanhosApoacutes chegar ao antro a tudo contemplamoscestos abarrotados de queijo cercados repletosde ovelhas e cabritos separados por categoriasencerrados agrave parte os mais velhos agrave parte medianosagrave parte filhotes Todas as vasilhas transbordavam de soroe baldes e tigelas fabricadas com as quais ordenhavaLaacute os companheiros suplicaram-me para primeiropegar algum queijo e voltar e depoisligeiro ateacute a nau veloz cabritos e ovelhasdos cercados arrastar e navegar pela aacutegua salgadamas natildeo obedeci (e teria sido muito mais vantajoso)para poder vecirc-lo esperando que me desse regalosPois apoacutes surgir natildeo seria amaacutevel com os companheirosTendo laacute aceso o fogo sacrificamos e tambeacutem noacutescomemos parte do queijo e dentro o esperamossentados ateacute voltar com ovelhas trazia ponderoso pesode madeira seca que seria usado para seu jantarLanccedilando-o fora do antro produziu um estrondonoacutes com medo recuamos ateacute o fundo do antroEle agrave ampla gruta tocou o gordo rebanhotantas quantas ordenhava e os machos deixou foracarneiros e bodes no exterior atraacutes da alta cercaEntatildeo ergueu e pocircs na entrada grande rochaponderosa a ela nem vinte e dois carrosoacutetimos de quatro rodas solevariam do solotal rochedo alcantilado colocou na entradaSentado ordenhava ovelhas e cabras balentestudo com adequaccedilatildeo e pocircs um filhote sob cada umaLogo metade do branco leite separou para coalhare pocircs os coalhos apoacutes juntaacute-los em cestos tranccediladosmetade laacute colocou em barris para que estivessedisponiacutevel para ele beber em seu jantarMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zeloentatildeo ao acender o fogo viu-nos e perguntoulsquoEstranhos quem sois Donde navegastes por fluentes viasAcaso devido a um assunto ou levianos vagaistal qual piratas ao mar Esses vagamarriscando suas vidas levando dano a gentes alheiasrsquoAssim falou e nosso coraccedilatildeo rachou-se

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atemorizados com a voz pesada e o portento em siMesmo assim com palavras respondendo disse-lhelsquoNoacutes aqueus vindos de Troia vagamos longe do cursodevido a todos os ventos pelo grande abismo de mare ansiando ir para casa por outra rota outros percursosviemos assim talvez Zeus quis armar um planoTropa de Agamecircmnon filho de Atreu proclamamos serdesse cuja fama eacute agora a maior sob o paacuteramodevastou grande cidade e tropas dilaceroumuitas Noacutes poreacutem chegando a esses teus joelhosnos dirigimos esperando nos hospedares bem ou mesmodares um regalo o que eacute costume entre hoacutespedesMas respeita os deuses poderoso somos teus suplicantesZeus eacute o vingador de suplicantes e hoacutespedeso dos-hoacutespedes que respeitaacuteveis hoacutespedes acompanharsquoAssim falei e logo respondeu com impiedoso acircnimolsquoEacutes tolo estrangeiro ou vieste de longetu que me pedes aos deuses temer ou evitarOs ciclopes natildeo se preocupam com Zeus porta-eacutegidenem com deuses ditosos pois somos bem mais poderososnem eu para evitar a braveza de Zeus a ti poupariaou a teus companheiros se o acircnimo natildeo me pedisseMas dize-me onde aportaste a nau engenhosaalgures no extremo ou perto preciso saberrsquoAssim falou testando-me e eu bem arguto percebirespondendo disse-lhe com palavras ardilosaslsquoMinha nau sucumbiu a Posecircidon treme-solocontra rochedo lanccedilou-a nos limites de vossa terralevando-a rumo ao cabo vento trouxe-a do marMas eu com esses aiacute escapei do abrupto fimrsquoAssim falei e natildeo me respondeu com impiedoso acircnimomas de suacutebito sobre os companheiros estendeu as matildeose tendo dois agarrado como cachorrinhos ao chatildeoarrojou-os miolos escorriam no chatildeo e molhavam o soloApoacutes cortaacute-los em pedaccedilos aprontou o jantarcomia-os como leatildeo da montanha e nada deixouviacutesceras carnes e ossos cheios de tutanoNoacutes aos prantos erguemos os braccedilos a Zeusvendo o feito terriacutevel e a impotecircncia deteve o acircnimoMas quando o ciclope encheu o grande estocircmagoapoacutes comer carne humana e depois beber leite purodeitou-se no antro esticando-se entre o rebanhoConsiderei no eneacutergico acircnimo dele chegarmais perto puxar a espada afiada da coxae golpear no peito onde o diafragma segura o fiacutegadoapoacutes alcanccedilar com a matildeo mas outro acircnimo impediuLaacute mesmo tambeacutem noacutes nos finariacuteamos em abrupto fimda alta entrada natildeo teriacuteamos conseguido no braccedilo

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afastar a ponderosa pedra que laacute depositaraAssim gemendo aguardamos a divina AuroraQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosele acendeu o fogo e ordenhou esplecircndido rebanhotudo com adequaccedilatildeo e sob cada fecircmea deixou o filhoteMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zelode novo ele agarrou dois de noacutes e o almoccedilo preparou8

O interessante eacute aleacutem de destacar esses elementos poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais da Greacutecia Antiga fazer o aluno pensar instigando-o a reconhecer os elementos de diferenciaccedilatildeo entre o grego e o Outro dentro das duas narrativas (a adaptaccedilatildeo e o canto IX) Aleacutem disso podemos incitaacute-lo a uma discussatildeo atual o que diferencia o brasileiro do estrangeiro hoje O que caracteriza a nossa cultura Qual tem sido a nossa postura em relaccedilatildeo aos estrangeiros dentro do nosso paiacutes Nossas fronteiras eacutetnicas satildeo as mesmas dos gregos Por quecirc

52 A Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor)

O livro de Gustavo Piqueira talvez seja uma das recontagens da Odisseia menos convencionais com ilustraccedilotildees dele mesmo traz a histoacuteria da Odisseia contada pelos olhos de Joatildeo Viacutetor aluno de recuperaccedilatildeo do 6ordm ano do Ensino Fundamental II (e pela construccedilatildeo do personagem ao longo da narrativa de famiacutelia conservadora e de classe meacutedia) que precisa ler esse eacutepico para entregar um trabalho final e conseguir finalmente passar de ano O problema eacute que em vez de retirar na biblioteca da escola uma adaptaccedilatildeo (como fez seu amigo Fumaccedila) ele vai com o claacutessico original para casa

Ao longo de todo o livro Joatildeo Viacutetor se depara com situaccedilotildees completamente estranhas para ele que rendem comentaacuterios jocosos de sua parte Em caixa normal temos a recontagem feita pelo aluno mas em negrito e itaacutelico temos os comentaacuterios dele aos episoacutedios que ele narra o que nos possibilita conhecer a personalidade dele e o mundo em que ele vive Logo na capa do trabalho (PIQUEIRA 2013 p 7) o aluno se vecirc obrigado a colocar ldquoResumo e interpretaccedilatildeo do livro Odisseia escrito por Homero da Silvardquo visto que ldquona ediccedilatildeo que peguei na biblioteca natildeo havia sobrenome do autor apenas o primeiro nome Homero Como todo mundo tem sobrenome coloquei um bem comumrdquo

Logo na narrativa do Canto I vemos uma situaccedilatildeo que inspira reflexotildees acerca do etnocentrismo e da alteridade Joatildeo Viacutetor natildeo reconhece o politeiacutesmo

8 Traduccedilatildeo de Christian Werner

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grego questionando Homero Afinal natildeo existe ldquoUm deus chamado Poseidonrdquo porque ldquoDeus soacute tem um e ele se chama Deus mesmo E seu filho natildeo eacute nenhum lsquociclope Polifemorsquo mas Jesus Que ateacute o Fumaccedila sabe foi crucificado natildeo cegadordquo (PIQUEIRA 2013 p 16) Adiante (PIQUEIRA 2013 p 17) ele reafirma que ldquopelo visto neste livro tem um punhado de deuses entatildeo natildeo vou mais discuti ok Se Homero da Silva natildeo sabe que soacute existe um Deus problema dele Eacute tarde da noite tenho o livro inteiro para ler e preciso passar de anordquo

Pode parecer a priori que eacute apenas uma crianccedila que desconhece o politeiacutesmo e se vecirc estranhando a religiatildeo do Outro no entanto a postura de Joatildeo Viacutetor eacute combativa reafirmando suas crenccedilas em detrimento da tentativa de contemplaccedilatildeo e compreensatildeo do Outro A ideia de que existe uma religiatildeo uacutenica e verdadeira denota como o etnocentrismo estaacute entranhado na visatildeo de Joatildeo Viacutetor (mesmo que ele natildeo tenha consciecircncia de que estaacute sendo etnocecircntrico) Eacute esse tipo de visatildeo preconceituosa (no sentido mesmo do termo de preacute-julgar) que deve ser questionada em sala de aula e levada agrave reflexatildeo

No entanto ao continuar a descriccedilatildeo do Canto I ele se depara com Athenaacute se transformando em Mentes um homem e fica confuso ldquoProfessora estou na duacutevida se chamo Atena de lsquoorsquo ou lsquoarsquo agora que ela mudou de sexo O que devo fazer Hoje em dia eacute um assunto tatildeo delicado natildeo quero soar preconceituosordquo (PIQUEIRA 2013 p 17) As questotildees de gecircnero satildeo mais palpaacuteveis para Joatildeo Viacutetor do que as questotildees de etnicidade uma vez que ele tem a sensibilidade de querer saber como ele deveria identificar Athenaacute que na sua visatildeo seria um transgecircnero O adaptador aqui mostra que os debates acerca desse tipo de intoleracircncia satildeo mais frequentes na sociedade

O Canto IX eacute um dos mais extensos (satildeo 6 paacuteginas escritas e mais 3 de ilustraccedilotildees) Eacute interessante perceber como a construccedilatildeo da cena do Ciacuteclope se daacute de modo diverso em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees precedentes e o proacuteprio texto homeacuterico No livro Joatildeo Viacutetor vecirc Odisseu como um malfeitor

Ulisses revela a Alciacutenoo sua identidade e comeccedila a contar tudo que lhe aconteceu desde que deixara Troia Primeiro deu uma passada em Iacutesmaro onde saqueou cidades e chacinou homens aleacutem de tomar mulheres e tesouros que dividiu com os outros para que ningueacutem reclamasse Ou seja bandido Natildeo haacute outra palavra para definir Ulisses a natildeo ser essa professora Denise Ladratildeo assassino e sequestrador Bandido E o pior conta seus crimes tranquilatildeo ldquoChacinei homens levei suas mulheresrdquo Como pode professora Eacute muita impunidade natildeo Muita Meus pais vivem comentando sobre isso aqui em casa Dizem que

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os ricos cometem as maiores barbaridades e sempre se safam Que moramos no paiacutes do colarinho branco Pelo visto Ulisses tambeacutem tinha costas quentes Do contraacuterio natildeo arriscaria tagarelar por aiacute suas falcatruas (PIQUEIRA 2013 p 62)

O interessante perceber eacute que aqui diferentemente da Odisseia original e da adaptaccedilatildeo que trabalhamos anteriormente natildeo haacute uma tentativa de reforccedilar as fronteiras eacutetnicas gregas Joatildeo Viacutetor critica o ldquoGreek way of liferdquo pondo em xeque tanto a ideia de civilizaccedilatildeo dentro do poema quanto a imagem do heroacutei na Greacutecia Antiga Como assim ser um heroacutei implica em praticar atitudes que hoje em dia seriam condenaacuteveis Daiacute a importacircncia de retornar a esse original a fim de que os alunos compreendam o porquecirc dessa mudanccedila

Os ciclopes satildeo descritos como ldquohorriacuteveis gigantes de um olho soacuterdquo (PIQUEIRA 2013 p 63) o Ciclope como um ldquomedonho giganterdquo (PIQUEIRA 2013 p 67) reforccedilando a ideia da monstruosidade deles Contudo Joatildeo Viacutetor ao comentar a atitude do Ciclope de devorar amigos de Odisseu escreve ldquoQuem mandou entrar de bico na casa dos outros Daacute nissordquo (PIQUEIRA 2013 p 67) As atitudes de Odisseu e de seus companheiros satildeo bastantes questionadas mostrando o estranhamento do menino em relaccedilatildeo agrave cultura helecircnica

Nessa adaptaccedilatildeo podemos chamar a atenccedilatildeo para a proacutepria construccedilatildeo de civilidade dentro de ambas sociedades a helecircnica arcaica (em Homero) e a brasileira do seacuteculo XXI (na adaptaccedilatildeo a realidade de Joatildeo Viacutetor) mostrando como mudaram as nossas noccedilotildees de civilidade barbaridade e fronteiras eacutetnicas ao longo do tempo histoacuterico Em vez de uma repulsa ao Ciclope aqui vemos uma empatia pautada pelo desconhecimento de Joatildeo Viacutetor das fronteiras eacutetnicas helecircnicas e do ideal de civilizaccedilatildeo construiacutedo por eles com a legitimaccedilatildeo dessas fronteiras Aleacutem disso ela eacute interessante para discutir a nossa proacutepria relaccedilatildeo de alteridade em relaccedilatildeo aos gregos a fim de desconstruir o etnocentrismo presente em nossas concepccedilotildees contemporacircneas

60 Consideraccedilotildees finais

Em virtude do apresentado pudemos concluir que eacute imprescindiacutevel abordar conceitos no Ensino da Histoacuteria a fim de que o aluno possa melhor compreender e modificar de maneira mais efetiva o seu cotidiano Por isso defendemos a abordagem do conceito de etnicidade na sala de aula mas sem antes reforccedilar que o professor deve ele mesmo compreender bem o conceito antes de trabalhar com ele

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Do mesmo modo o professor deve conhecer bem os textos claacutessicos com os quais ele quer trabalhar mesmo que ele vaacute utilizar adaptaccedilotildees Aleacutem disso vemos como eacute importante a leitura como Ana Maria Machado (2009 p 13) colocou ler eacute uma forma de resistecircncia sendo a utilizaccedilatildeo de textos imprescindiacutevel para a formaccedilatildeo natildeo somente de um leitor literaacuterio mas de uma pessoa criacutetica e consciente

[] a forccedila educativa da literatura reside precisamente no que facilita formas e materiais para essa ampliaccedilatildeo de possibilidades permite estabelecer uma visatildeo distinta sobre o mundo pocircr-se no lugar do outro e ser capaz de adotar uma visatildeo contraacuteria distanciar-se das palavras usuais ou da realidade em que algueacutem estaacute imerso e vecirc-lo como se o contemplasse pela primeira vez (COLOMER 2017 p 21)

A boa adaptaccedilatildeo nesse sentido ajuda a perpetuar na memoacuteria o claacutessico ldquoComo entatildeo se daacute a real permanecircncia da obra literaacuteria Ora pela conquista de novos leitores A adaptaccedilatildeo constitui uma estrateacutegia para apresentar a uma nova geraccedilatildeo de leitores um discurso literaacuterio legitimado pela instituiccedilatildeo escolarrdquo (FEIJOacute 2010 p 43) Assim como Odisseu o aluno ao ler viaja por mundos Outros que o faz refletir acerca de sua proacutepria realidade ao conhecer outras realidades

Utilizar a Histoacuteria Antiga para abordar um conceito tatildeo caro a noacutes cotidianamente que vemos nos noticiaacuterios as empreitadas dos refugiados para fugirem das guerras e serem recebidos de maneira deploraacutevel em diversos paiacuteses as tensotildees crescentes entre diversas etnias ao redor do mundo e a nossa proacutepria falta de sensibilidade agraves vezes em compreender o Outro em sua cultura e etnicidade mostra como cada vez mais eacute necessaacuterio retornar ao claacutessico para pensarmos o contemporacircneo A Histoacuteria Antiga ainda natildeo estaacute ultrapassada

Abstract We propose to think how to enter the ethnicity and ethnocentrism theme in classrooms by using adaptations of the Antiquity classics To accomplish this aim it is necessary to establish some criteria to use this kind of literature which still generates debates on its profitability as well as to define ethnicity We will start with the following concepts ethnicity (as Fredrik Barth pointed it) and identity-otherness (as Marc Augeacute does) in order to propose some activities with selected adaptationsKeywords History Teaching literary adaptations ethnicity

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Referecircncias

Documentaccedilatildeo textualHOMERO Odisseia Trad Christian Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014

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tomo 82 fasc 389-390 p 1-13 janjun 1969NADAI E O ensino de Histoacuteria e a ldquopedagogia do cidadatildeordquo In PINSKY J (Org)

O Ensino de Histoacuteria e a criaccedilatildeo do fato Satildeo Paulo Contexto 2017 p 27-35PIQUEIRA G Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor) Satildeo Paulo Editora

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Grupos eacutetnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth Satildeo Paulo Ed UNESP 1998

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COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeO AS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacute-TICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA

Alexandre Santos de Moraes1

Resumo O objetivo desse artigo eacute observar as tensotildees entre Aquiles e Agamecircmnon atraveacutes do binocircmio conceitual competiccedilatildeocooperaccedilatildeo Busca-se entender natildeo apenas as variaacuteveis dessa oposiccedilatildeo mas tambeacutem como as ideias de competiccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo que se instauram ao longo da querela sugere um modo de ser eacutetico-poliacutetico que distingue os heroacuteisPalavras-chave Competiccedilatildeo Cooperaccedilatildeo Aquiles Agamecircmnon Iliacuteada

Do ponto de vista conceitual cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo satildeo duas ideias tatildeo abrangentes que escapam ao monopoacutelio das aacutereas do saber institucionalizadas Natildeo haacute nenhuma poliacutecia acadecircmica que resguarde para si e para seus escolhidos a possibilidade de uso desse binocircmio que parece anunciar natildeo apenas um modelo de entendimento de dinacircmicas sociais mas verdadeiramente um modo de ser eacutetico-poliacutetico no mundo

Veja por exemplo que do ponto de vista comercial estimula-se mecanismos de competiccedilatildeo entre os funcionaacuterios para impulsionar as vendas ao mesmo tempo em que se defende disposiccedilotildees cooperativas que estimulem a coesatildeo do grupo para que haja o que vender (MACEDO 1961 p 105) Tal vieacutes no marco da Nova Sociologia Econocircmica identifica a dificuldade de correlacionar cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo entre empresas e o papel do Estado como seu guardiatildeo e criador2 O tema eacute complexo e natildeo se dispotildee na visatildeo de muitos analistas agrave polarizaccedilatildeo que defende os males e benefiacutecios de uma e outra como dado essencial bem como o valor estrutural que cada uma das

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) E-mail asmoraesgmailcom

2 Veja por exemplo o debate presente em FLIGSTEIN Neil Markets as politics political-cultural approach to market institutions In American Sociological Review v 61 1996

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disposiccedilotildees parece ensejar em um ambiente especiacutefico Marx por exemplo identificava que a cooperaccedilatildeo era instrumento fundamental para organizar o trabalho no mundo capitalista (MARX 1980 p 347) diferentemente do que pensam muitos defensores do (neo)liberalismo para os quais a concorrecircncia (identificada com a competiccedilatildeo) eacute beneacutefica a todos em um ambiente de mercado autorregulado regido por entes privados que supostamente conspiram ao lado de seus lucros pessoais para uma situaccedilatildeo de bem-estar social3

Para aleacutem do pensamento econocircmico as anaacutelises acerca de competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo frequentemente debatidas no marco dos princiacutepios organizativos de grupos e agrupamentos estimulando pesquisas em diversas aacutereas das Ciecircncias Humanas e Sociais Some-se a elas as pesquisas sobre Evoluccedilatildeo que avaliam as habilidades de indiviacuteduos de diversas espeacutecies em especial dos hominiacutedeos e de primatas natildeo-humanos4 Em muitos casos haacute uma evidente ecircnfase no princiacutepio cooperativo (ou altruiacutesta ou de solidariedade muacutetua) que atuaria no fundamento de nossa proacutepria existecircncia

Obviamente diante da variedade vertiginosa de possibilidades de entendimento desse binocircmio eacute preciso fazer algumas escolhas Por princiacutepio ao longo desse artigo consideraremos que 1) Competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo disposiccedilotildees atitudinais que envolvem sujeitos ou grupos em funccedilatildeo de objetivos especiacuteficos 2) Atitudes cooperativas e competitivas natildeo representam aspectos gerais do modus vivendi especiacutefico de uma ou outra formaccedilatildeo social ou seja natildeo haacute comunidades que sejam exclusivamente competitivas eou cooperativas 3) disposiccedilotildees cooperativas eou competitivas satildeo por princiacutepio situacionais ainda que haja mecanismos sociais que ensejem uma ou outra postura em determinadas situaccedilotildees 4) Ainda que haja discordacircncias identificamos a tendecircncia de associar a uma disposiccedilatildeo cooperativa a prevalecircncia do bem comum sobre o individual e na competitiva a valorizaccedilatildeo do individual em detrimento do bem comum e por fim 5) em determinado evento ou acontecimento grupos e sujeitos natildeo apresentam necessariamente um padratildeo de disposiccedilotildees coeso podendo variar em funccedilatildeo das circunstacircncias e objetivos almejados

O caso de um conflito armado envolvendo diferentes grupos eacute bastante elucidativo Em uma guerra por princiacutepio haacute pelo menos duas partes

3 Eacute possiacutevel ateacute mesmo identificar a defesa da competiccedilatildeo como um discurso de competecircncia fundado em caracteriacutesticas psicoloacutegicas O debate eacute longo e repleto de variaacuteveis (BENDASSOLLI 2001 p 65-76 NEVES 2009)

4 Nos uacuteltimos anos tem se delineado um especial interesse pela loacutegica cooperativa explorada em diversos trabalhos A tiacutetulo de referecircncia sobre esse debate vale consultar AXELROD 1997 HAMMERSTEIN 2003 MARSHALL 2010 PATTON 2009 WILLER 2009

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que competem entre si para alcanccedilar um objetivo Na ausecircncia de acordos diplomaacuteticos o sucesso de uma parte depende necessariamente do fracasso da outra parte Tomando isoladamente cada uma das partes haacute tambeacutem o pressuposto de que eacute necessaacuterio existir uma razoaacutevel coesatildeo entre seus membros para que o objetivo final qual seja a superaccedilatildeo do adversaacuterio seja alcanccedilado de tal modo que em um ambiente de batalha os integrantes de um mesmo exeacutercito precisam cooperar entre si Essa loacutegica geral contudo natildeo resiste necessariamente a situaccedilotildees que provocam disputas internas produzindo ruiacutedos entre os agentes quando haacute disposiccedilotildees contraacuterias que fazem exceder nas relaccedilotildees imediatas o fim uacuteltimo por que conspiram em suas accedilotildees conjuntas

Com base nesse exemplo quando fazemos a remissatildeo agrave experiecircncia dos povos antigos a lembranccedila imediata confunde-se tambeacutem com a narrativa mais recuada de que temos notiacutecia e que se desvela diante de noacutes como um excelente campo de experimentaccedilatildeo Na Iliacuteada a dissenccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon natildeo eacute apenas o substrato discursivo que assegura a coerecircncia e a loacutegica interna do poema mas tambeacutem a proacutepria manifestaccedilatildeo do nuacutecleo narrativo do eacutepico que conduz com os auspiacutecios dos deuses os eventos ulteriores na Guerra de Troacuteia Mais do que indicar os efeitos da dissensatildeo suas consequecircncias e caracteriacutesticas eacute desejaacutevel analisar o binocircmio competiccedilatildeocooperaccedilatildeo no marco de uma separaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica que o antecede e que parece situar os heroacuteis em duas formas distintas de ser no mundo Tais formas representam um topos que enseja por forccedila da incompletude dos proacuteprios sujeitos uma espeacutecie de ldquogatilhordquo o possiacutevel estopim para o conflito interno sempre que a poliacutetica entra em estado de falecircncia

Somos levados a conhecer logo nos versos prologais o anuacutencio da coacutelera (μῆνις) de Aquiles A causa como bem se sabe tem a ver com um ruiacutedo envolvendo os privileacutegios em torno da divisatildeo do butim de guerra Apoacutes o saque a Tebas foram recolhidos os despojos e os aqueus dividiram-nos entre si A Agamecircmnon coube Criseida filha de Crises sacerdote de Apolo ao passo que a Aquiles coube Briseida Daacute-se que o pai de Criseida o velho Crises suplicou aos aqueus que devolvessem sua filha em troca do pagamento de um resgate mas teve seu pedido negado Mais do que isso Agamecircmnon o mandou embora com aacutesperas palavras O anciatildeo recorreu agrave Apolo e pediu que tal ofensa seja retaliada ldquoQue paguem com tuas setas os Dacircnaos as minhas laacutegrimasrdquo (HOMERO Iliacuteada I v 42)

O pedido foi acolhido pelo deus Por nove dias as setas faziam as piras arderem continuamente na cremaccedilatildeo dos mortos Tambeacutem uma peste atingiu o acampamento aqueu Tatildeo grave era a situaccedilatildeo que por influecircncia de Hera

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uma assembleia foi convocada para discutirem e buscarem remeacutedio para tais males Aquiles tomou a palavra e sugeriu para que natildeo voltassem frustrados a casa que o adivinho Calcas fosse consultado para que todos soubessem atraveacutes de sua videcircncia como solucionar a querela Calcas tergiversou e disse ter receio de encolerizar ldquoaquele que rege poderoso os Argivos e a quem obedecem os Aqueusrdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 78-79) Aquiles assegurou sua fala e disse que iria protegecirc-lo Calcas entatildeo diz que Agamecircmnon deveria abrir matildeo de Criseida Tem iniacutecio a querela

Eacute preciso aqui esclarecer brevemente os sentidos da reaccedilatildeo de Agamecircmnon Uma vez conquistada a vitoacuteria e tendo sido pilhada uma cidade derrotada os produtos do saque satildeo colocados em comum para serem divididos Eacute o momento oportuno de observar os privileacutegios (γέρεα) que cabem aos sujeitos mais destacados assegurando a ldquoparte de honrardquo (τιμή) que toca cada um e seu precircmio (γέρας) correspondente5 O precircmio de Agamecircmnon ndash no caso Criseida ndash representava natildeo somente um bem de valor material mas tambeacutem e principalmente um siacutembolo de prestiacutegio a marca de deferecircncia que permite que o grupo o identifique como um sujeito de destaque Sua outorga visa reforccedilar publicamente a distinccedilatildeo social do outorgado O geacuteras6 portanto ratifica a posiccedilatildeo de soberania e atua para demarcar do ponto de vista das estruturas altamente hierarquizadas de poder a coesatildeo interna desse proacuteprio grupo7 A preocupante condiccedilatildeo de ἀγέραστος ldquodesprovido de precircmiordquo eacute vista como uma afronta grave agrave economia de prestiacutegio e agrave honra do heroacutei

A honra como aposta Finley (1958 p 143) em seu bem conhecido trabalho eacute um valor sobretudo competitivo ldquoEn la naturaleza del honor estaacute

5 Como diz Neyde Theml (1995 p 150) ldquoo exerciacutecio do poder real eacute em Homero resultado de acumulaccedilotildees de geacuterea privileacutegios que distinguem o rei com seus direitos e deveres para com a comunidade global Os γέρεα reais na Iliacuteada satildeo de 4 tipos a parte de honra (timeacute) sobre o botim praacuteticas especiais no banquete um teacutemenos presentes (dons e contra-dons) e direitos especiaisrdquo

6 Os sentidos de γέρας eacute importante frisar vatildeo muito aleacutem da loacutegica associada a um bem material Tambeacutem pode significar num sentido imaterial ldquoprerrogativardquo ou ldquoprivileacutegio honoriacuteficordquo A tiacutetulo de exemplo Neacutestor diz que por ser idoso natildeo teria meios de participar ativamente do combate como participava outrora mas que incitaria os guerreiros e com suas decisotildees e palavras afinal ldquoeacute esse o privileacutegio dos anciatildeosrdquo - τὸ γὰρ γέρας ἐστὶ γερόντων (HOMERO Iliacuteada IV v 323)

7 E natildeo custa recordar as epopeias apresentam ldquouma sociedade notadamente dividida em dois estratos de um lado os basileis os nobres os ricos proprietaacuterios de um domiacutenio de terra do oicirckos os chefes de guerra que ocupam o topo da hierarquia social e deteacutem os privileacutegios e as honras e do outro lado a massa de homens comuns O proacuteprio gecircnero da epopeia por ser destinado por princiacutepio a um puacuteblico aristocraacutetico obviamente faz com que o interesse dos poetas se associem essencialmente aos fatos e gestos dos basileisrdquo (SCHEID-TISSINIER 2002 p 1)

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que tiene que ser exclusivo o por lo menos jeraacuterquico Si todos adquieren igual honor no hay honor para ninguno Asiacute el mundo de Odiseo era necessariamente de fiera competecircncia porque cada heacuteroe luchava para sobrepasar a los otrosrdquo Ainda que Finley esteja correto essa natureza competitiva se aplica a um tipo de disputa que presume um ambiente belicoso em que dois adversaacuterios se enfrentem sendo outrossim incapaz de explicar as tensotildees em torno da timeacute em que supostos aliados como Aquiles e Agamecircmnon se percebem envolvidos como bem observou Margalit Finkelberg (1998 p 16) A visatildeo de Finley presume a competiccedilatildeo exclusivamente envolvendo adversaacuterios e natildeo sujeitos do mesmo grupo Como adiantamos as disposiccedilotildees competitivas e cooperativas satildeo situacionais o que exige uma observaccedilatildeo atenta de sua manifestaccedilatildeo

Em uma situaccedilatildeo corriqueira uma vez distribuiacutedos os butins de guerra a posse dos gerea seria respeitada e ningueacutem por princiacutepio deveria devolver o lote de honra que recebeu A crise que a fuacuteria apoliacutenea inaugura exige que haja uma revisatildeo da distribuiccedilatildeo que tendencialmente seria irreversiacutevel de tal modo que aleacutem das setas que matam e da peste que adoece Apolo tambeacutem instaura a discoacuterdia que enfraquece Agamecircmnon que eacute absolutamente consciente de seus privileacutegios se vecirc obrigado a revecirc-los para cooperar com a mesma coletividade que os assegura O Atrida poreacutem tenta fazecirc-lo conciliando o inconciliaacutevel Em resposta a Calcas apoacutes acusaacute-lo de soacute profetizar desgraccedilas diz

ldquoMas apesar disso restituiacute-la-ei se for isso a coisa melhor Quero que o povo seja salvo de preferecircncia a que pereccedila Mas preparai pra mim outro precircmio para que natildeo seja soacute eu entre os Argivos que fico sem precircmio pois tal seria indecoroso Pois deves todos voacutes como o meu precircmio vai para outra parterdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 116-120)

Em certo sentido a devoluccedilatildeo de Criseida representou simultaneamente uma disposiccedilatildeo cooperativa e competitiva cooperativa em primeiro lugar porque Agamecircmnon concordou com a devoluccedilatildeo de seu geacuteras competitiva em segundo porque natildeo admitiu ser o uacutenico a ficar sem precircmio exigindo que o butim fosse novamente redistribuiacutedo para que inevitavelmente outro guerreiro fosse ageiacuteratos e natildeo ele preservando assim seus privileacutegios e soberania Aquiles fiando-se na tradiccedilatildeo discordou da proposta de Agamecircmnon e argumentou ldquoNada sabemos de riqueza que jaza num fundo comum mas os despojos das cidades saqueadas foram distribuiacutedos e seria

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indecoroso tentar reaver tais coisas de junto do povordquo (HOMERO Iliacuteada I vv 124-126) Mais do que isso em caraacuteter compensatoacuterio sugeriu que os aqueus o recompensariam em trecircs ou quatro vezes quando Troacuteia fosse saqueada

Impossiacutevel natildeo identificar na fala do filho de Peleu uma tentativa de negociaccedilatildeo face ao conflito Agamecircmnon contudo reconhece no discurso de Aquiles uma tentativa de engano e faz uma assertiva ainda mais dura se os aqueus natildeo substituiacuterem o precircmio perdido iria retiraacute-lo agrave forccedila de quem quer que seja (HOMERO Iliacuteada I vv 138-139) A tensatildeo aumenta e a loacutegica competitiva envolvendo o liacuteder das multidotildees e o melhor dos aqueus atinge seu cliacutemax Como eacute bem conhecido Agamecircmnon decide que seria Briseida o geacuteras de Aquiles a recompensa pela devoluccedilatildeo de Criseida Nesse momento decreta-se a falecircncia da poliacutetica e nenhuma negociaccedilatildeo se torna possiacutevel pois o filho de Peleu eacute envolvido pessoalmente na soluccedilatildeo de uma questatildeo coletiva e sua honra eacute visceralmente maculada Segue-se uma seacuterie de acusaccedilotildees ofensas e mesmo em uma tentativa de assassinato natildeo fosse contido por Atena Aquiles teria sacado o glaacutedio e decepado a cabeccedila do basileu (HOMERO Iliacuteada I vv 187-195) O resultado final eacute o afastamento voluntaacuterio de Aquiles que se isola no acampamento dos Mirmidotildees e desaparece natildeo apenas do combate mas da proacutepria narrativa jaacute que suas accedilotildees soacute voltam a ser descritas no Canto IX O reaparecimento aliaacutes se daacute de uma maneira bastante insoacutelita Aacutejax Odisseu e Fecircnix o encontram deleitando-se com sua lira tendo apenas Paacutetroclo como audiecircncia em uma atitude fugidia e descompromissada com o calor do conflito que entatildeo aumentava devido agrave sua ausecircncia (HOMERO Iliacuteada IX vv 185-191)

Esse reencontro soacute ocorre porque Agamecircmnon reconhece que sem Aquiles o asseacutedio dos troianos aumentaria e chegaria o momento em que as naus dos aqueus seriam incendiadas sacramentando a derrota Em outras palavras seria derrotado da competiccedilatildeo com os troianos em funccedilatildeo da competiccedilatildeo particular que estabeleceu com o Peacutelida Quem o convence a retroceder eacute Neacutestor uma voz sempre atuante e eficaz na negociaccedilatildeo de conflitos ldquotiraste a jovem Briseida da tenda do furibundo Aquiles coisa que natildeo aprovamos Na verdade eu proacuteprio tudo fiz para te dissuadir mas tu cedeste ao teu espiacuterito altivo e sobre um homem excelente honrado pelos deuses lanccedilaste desonrardquo (HOMERO Iliacuteada IX vv 106-111) Agamecircmnon concorda com avaliaccedilatildeo e atribui a dissensatildeo ao desvario (ἄτη) de que foi viacutetima Mais do que isso concorda em abandonar a disposiccedilatildeo competitiva

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e buscar a reconciliaccedilatildeo com a oferta de uma imensa quantidade de presentes (δῶρον) incluindo a proacutepria Briseida acompanhada da promessa de que natildeo foi sexualmente tocada (HOMERO Iliacuteada IX vv 133-134) O Atrida percebe que se natildeo fizesse do adversaacuterio seu aliado o inimigo comum venceria o preacutelio e todos perderiam Tenta desse modo resgatar a poliacutetica falida por seu proacuteprio desatino

Desta vez a inflexibilidade fica a cargo de Aquiles e o custo da recusa agrave poliacutetica seria plenamente sentido Aacutejax Odisseu e Fecircnix satildeo enviados para tentar convencecirc-lo mas seus esforccedilos foram em vatildeo Aquiles resistiu Posteriormente tambeacutem Paacutetroclo fez uma criacutetica severa tatildeo dura quanto inuacutetil Apoacutes prestar assistecircncia meacutedica aos feridos observou que Diomedes Odisseu Agamecircmnon e Euriacutepilo os melhores combatentes estavam impedidos de lutar e nesse sentido ponderou

ldquoQue sobre mim nunca recaia esta ira que tu alimentaspois terriacutevel eacute teu pensar Que homem vindouro a tirecorreraacute se (vergonhoso) natildeo evitas a ruiacutena dos AqueusImpiedoso Natildeo aceito que Peleu condutor de cavalos seja teu painem que Teacutetis seja tua matildee Foste parido pelo glauco mar epelas rochas escapardas Por isso tens a mente peacutetrea durardquo (HOMERO Iliacuteada XVI vv 30-35)

Aquiles novamente manteacutem-se irredutiacutevel Volta a mencionar as tristezas que se abateram com a tomada de Briseida e recorda que soacute lutaria caso o combate se aproximasse de suas proacuteprias naus (HOMERO Iliacuteada XVI vv 49-63) Eacute bem verdade que Aquiles se sensibilizou quando as primeiras naus argivas foram incendiadas Tambeacutem concordou que Paacutetroclo fosse combater (HOMERO Iliacuteada XVI vv 126-129) e chegou a organizar as falanges a incitar os guerreiros e a fazer uma libaccedilatildeo a Zeus suplicando pelo sucesso da empreitada Aquiles por fim resolve ver (εἶδον) as lutas entre aqueus e troianos (HOMERO Iliacuteada XVI vv 255-256) abdicando da indiferenccedila Apesar disso manteacutem seu afastamento voluntaacuterio para assegurar a vivacidade da competiccedilatildeo com o Atrida

Os resultados destes combates foram decisivos para que Aquiles reavaliasse os sentidos de sua coacutelera pois cumpriu-se a prediccedilatildeo de Zeus Paacutetroclo morto eacute uma puniccedilatildeo ao seu afastamento bem como o evento catalizador que obrigaacute-lo-aacute a rever seu ostracismo A reaccedilatildeo agrave morte do amigo foi absolutamente intempestiva e do sofrimento (πένθος) nasce a constataccedilatildeo de sua proacutepria responsabilidade Teacutetis que ouviu o pranto do filho foi ter com

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ele para consolaacute-lo Aquiles em resposta disse ldquoQue imediatamente eu morra pois natildeo socorri o companheiro quando morto ele foirdquo (HOMERO Iliacuteada XVIII vv 98-99) Mas ao longo da mesma resposta Aquiles natildeo limita sua responsabilidade agrave morte de Paacutetroclo e a despeito de todas as recompensas todos os pedidos e todas as suacuteplicas eacute apenas por meio da dor que lanccedila um olhar retrospectivo em direccedilatildeo agrave proacutepria conduta

Que a discoacuterdia se exile dos homens e dos deusese a raiva amarga que oprime ateacute o mais inventivo de todos raiva muito doce dulciacutessima mais que o mel a escorrere que se expande como fumaccedila no peito dos homensassim a ira me causou Agamecircmnon soberano entre os homensMas tudo isso torna-se passado apesar de todo o sofrimento no peito refreando o coraccedilatildeo pois as urgecircncias sobrepujam(HOMERO Iliacuteada XVIII vv 107-113)

Trata-se de uma nova etapa a ira que nutria em relaccedilatildeo a Agamecircmnon eacute convertida na fuacuteria doravante dirigida a Heacutector reestabelecendo a competiccedilatildeo com o inimigo externo e a cooperaccedilatildeo com os aliados no conflito Quando a proacutepria Teacutetis recomenda ao filho que renuncie agrave coacutelera8 contra Agamecircmnon e convoque a assembleia para se reapresentar ao exeacutercito aqueu (HOMERO Iliacuteada XIX vv 34-36) enseja o derradeiro movimento de reconciliaccedilatildeo com a coletividade E Aquiles o faz atendendo os auspiacutecios maternos Com todos os seus pares reunidos o Pelida assume o centro da assembleia e proclama

Atrida teraacute sido isto o melhor para ambospara ti e para mim quando com os coraccedilotildees lutuososdevorados no imo nos enfrentamos por conta da donzelaPudera que em minhas naus Aacutertemis a tivesse matado com sua seta no dia em que a tomei como espoacutelio do saque a LirnessoSoacute assim natildeo teriam incontaacuteveis aqueus crivado os dentes no solopelas matildeos inimigas enquanto eu perseverava em minha ira(HOMERO Iliacuteada XIX vv 56-62)

O ritmo da dissensatildeo envolve nesse sentido um jogo intenso de competiccedilatildeo em torno da loacutegica da honra e seus privileacutegios de negociaccedilotildees frustradas de conflitos insoluacuteveis e soluccedilotildees que ultrapassam a poliacutetica Por forccedila talvez de sua juventude e da intemperanccedila que eacute tiacutepica dos jovens em Homero Aquiles soacute foi interpelado pela forccedila compulsoacuteria da pedagogia do

8 Afinal ldquoa ordem social e a vida comunitaacuteria civilizada ndash consequentemente a Cultura Grega ndash foi imaginada pelo menos em parte sobre o deslocamento da erisrdquo (WILSON 1938 p 132)

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sofrimento do ldquoaprender pelo sofrerrdquo (πάθει μάθος)9 que parece colocar no marco das relaccedilotildees sociais natildeo a competiccedilatildeo mas a cooperaccedilatildeo como valor fundante que preside a relaccedilatildeo do sujeito com seus pares e que envolve a assunccedilatildeo de responsabilidades

Esse debate nos remete ao claacutessico Merity and Responsability (1960) tese de doutorado de Arthur W Adkins O autor se dedicou a investigar no acircmbito da eacutetica grega o desenvolvimento do conceito de responsabilidade moral Em linhas gerais Adkins considerou que o sistema de valores homeacuterico era caracterizado pela dimensatildeo competitiva em torno da areteacute prevalecendo desta forma sobre um padratildeo cooperativo (ADKINS 1960 p 46) Sua abordagem apesar da importacircncia foi alvo de inuacutemeras criacuteticas com destaque para aquelas expressas pelas publicaccedilotildees de Long (1970) Lloyd-Jones (1971) Rowe (1983) e Cairns (1993) Os argumentos dependiam da percepccedilatildeo de que existia de um lado o espiacuterito agoniacutestico competitivo centrado em uma tocircnica individualista e do outro lado o princiacutepio cooperativo necessaacuterio para a apoio muacutetuo centrado nos ideais coletivos Nancy Demand chega ao ponto de associar estes princiacutepios aos contatos estabelecidos entre os oikoi no Periacuteodo Claacutessico para ela tal relaccedilatildeo era ldquomais competitiva do que cooperativa pois as casas se desafiavam em uma competiccedilatildeo por honra e ciuacuteme e neste enfrentamento todas estavam continuamente vulneraacuteveis agrave perdardquo (DEMAND 2004 p 3) o que decerto soacute poderia fazer sentido em casos isolados mas nunca como regra geral Graham Zanker (1997 p 2) em sua criacutetica a Adkins entende essa questatildeo como uma falsa dicotomia ao passo que ldquoeacute faacutecil encontrar momentos na Iliacuteada em que guerreiros competem uns com os outros na batalha para atingir um objetivo comum de vitoacuteriardquo

A tendecircncia geral do debate radica-se em certo sentido em esforccedilos para definir se a competiccedilatildeo ou a cooperaccedilatildeo tomadas em um sentido holiacutestico representam cada qual um paradigma a partir da qual a outra parte do binocircmio seria vista sob regime de exceccedilatildeo Em outras palavras se o modo de ser eacutetico-poliacutetico eacute por excelecircncia competitivo a cooperaccedilatildeo se torna

9 Ainda que natildeo apareccedila expresso nesses termos na Iliacuteada o πάθει μάθος de Aquiles se tornou objeto de discussatildeo a partir de um bem conhecido artigo Pearl Cleveland Wilson Nele o autor argumenta ldquoEm sua primeira apariccedilatildeo ele [Aquiles] eacute altamente considerado com todas as qualidades que pertencem ao heroiacutesmo juvenil No entanto com o desenrolar da trama ele natildeo mostra preocupaccedilatildeo com qualquer outro sofrimento que natildeo seja seu proacuteprio O que lhe falta neste sentido eacute aquilo que Heacutector possui cuja compreensatildeo leva o leitor moderno a cultivar simpatia por ele Esse sentimento continua sendo desconhecido por Aquiles natildeo por que ele seja incapaz de conhececirc-lo mas porque ainda natildeo foi despertado para essa experiecircnciardquo (WILSON 1938 p 560) O tema tambeacutem eacute conhecido pelo debate de Bruno Snell (2005 p 19) para quem o πάθει μάθος atua como um ldquomal necessaacuteriordquo ldquopois este aprende com um mal a precaver-se contra outro malrdquo

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ocasional do mesmo modo que se eacute feita a opccedilatildeo pela loacutegica cooperativa a competiccedilatildeo eacute aquilo que foge agrave regra A tarefa eacute bastante difiacutecil porque variaacuteveis incidem o tempo inteiro para colocar em xeque uma pretensa ordem que sobrepairava sobre as relaccedilotildees sociais forccedilando-nos a duvidar se tal dicotomia eacute empiricamente observaacutevel em um todo que nem de longe se permite e se propotildee coerente

Fato significativo eacute que a mentalidade grega identifica o permanente estado de incompletude dos sujeitos razatildeo pela qual sobrepaira um estado latente que transita entre o conflito (no qual as diferenccedilas satildeo inconciliaacuteveis) e a complementaridade (quando as diferenccedilas satildeo justapostas em prol de um objetivo comum) Eacute precisamente esse o uacuteltimo ponto que julgamos importante pocircr em evidecircncia para compreender a relaccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon

A justificativa bem conhecida estaacute assente em um topos religioso os deuses natildeo datildeo aos homens tudo ao mesmo tempo Trata-se de um sintoma bem observado em diversas situaccedilotildees e das muitas que poderiacuteamos usar como exemplo vale recordar a dupla moira de Aquiles que sua matildee divina previu se ficasse em Troacuteia e combatesse os troianos morreria jovem e teria gloacuteria eterna se para casa retornasse teria vida longa mas seu nome seria esquecido (HOMERO Iliacuteada IX vv 410-416) Haacute para cada bem um mal correspondente Na Odisseia o aedo Demoacutedoco que celebrava os festins na feaacutecia tambeacutem prefigura essa loacutegica irremediaacutevel posto que a Musa muito o amava ldquoDera-lhe tanto o bem como o mal Privara-o da vista dos olhos mas um doce canto lhe concederardquo (HOMERO Odisseia VIII vv 63-64) Uma das melhores formulaccedilotildees dessa loacutegica pode ser lida na fala de Polidamante a Heacutector

ldquoHeitor muita dificuldade tens tu em dar ouvidos a bons conselhosPorque o deus te concedeu preeminecircncia nas faccedilanhas guerreirasTambeacutem por isso queres estar acima de todos no conselhoSoacute que tu proacuteprio natildeo seraacutes capaz de abarcar todas as coisas Eacute que a um homem daacute o deus as faccedilanhas guerrilhasA outro a danccedila e a outro ainda a lira e o cantoE no peito de outro coloca Zeus que vecirc ao ao longeUma mente excelente de que muitos homens tiram vantagemA muitos ele consegue salvar coisa que sabe mais que todosrdquo(HOMERO Iliacuteada XIII vv 724-734)

Na troca de acusaccedilotildees entre Agamecircmnon e Aquiles a potecircncia guerreira do melhor dos aqueus claramente confrontava a lideranccedila poliacutetica do Atrida De um lado um basileu que ainda que combatesse tinha seus meacuteritos pouco

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associados agrave superaccedilatildeo dos adversaacuterios em campo de batalha do outro um jovem guerreiro que a todos superava no combate mas que era inaacutebil com as palavras Agamecircmnon diz a Aquiles ldquoDe todos os reis criados por Zeus eacutes para mim o mais odioso Sempre te satildeo gratos os conflitos as guerras e as lutas Se eacutes excepcionalmente possante eacute porque um deus tal te concedeurdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 176-178) Aquiles por sua vez diz a Agamecircmnon ldquoRei voraz com o proacuteprio povo eacute sobre nulidades que tu reinas se assim natildeo fosse oacute Atrida esta agora seria a tua uacuteltima insolecircnciardquo (HOMERO Iliacuteada I vv 231-232) Quem percebe a gravidade da dissensatildeo e busca intervir eacute Neacutestor precisamente pela sabedoria que se acumulou ao longo dos anos Falando primeiramente a Agamecircmnon diz

ldquoQue natildeo procures tu nobre embora sejas tirar-lhe a donzelaMas deixa-a estar foi a ele primeiro que os aqueus deram o precircmioQuanto a ti oacute Pelida natildeo procures agrave forccedila conflitos com o reiPois natildeo eacute honra qualquer a de um rei detentor de ceptroA quem Zeus concedeu a gloacuteriaEmbora sejas tu o mais forte pois eacute uma deusa que tens por matildeeEle eacute mais poderoso uma vez que reina sobre muitos maisrdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 275-281)

A fala ponderada de Neacutestor eacute um sintoma da perspectiva natildeo apenas dos poetas mas das aristocracias a quem cantavam e que gostariam de se sentir representadas nos versos hexameacutetricos O anciatildeo consegue criticar a decisatildeo de Agamecircmnon sem colocar em suspenso sua soberania Ao mesmo tempo dirige-se a Aquiles louvando seu meacuterito guerreiro sem abdicar da necessidade de submissatildeo ao poder de quem reina sobre mais gente Neacutestor percebeu que no interior do exeacutercito aqueu cada uma das partes exacerbava a ausecircncia da outra e que isoladamente competindo entre si o enfraquecimento dos gregos abriria espaccedilo para o fortalecimento dos troianos

Eacute precisamente nesse ponto que competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo dialogam natildeo como pares antiteacuteticos mas como um modo de ser que depende fundamentalmente do objetivo comum compete-se contra o outro e coopera-se internamente para atingir o mesmo fim Qualquer ruiacutedo qualquer idiossincrasia uma palavra que excede ou uma negociaccedilatildeo que se frustra arrasta consigo consequecircncias funestas graccedilas agrave incapacidade de dar a cada parte do binocircmio o espaccedilo consagrado que lhe cabe

Por fim e sobretudo haacute um modo de ser que pode ser complementar ou excludente ensejando por correspondecircncia a cooperaccedilatildeo ou competiccedilatildeo Se a fala de Neacutestor sugere que a cooperaccedilatildeo entre aliados eacute absolutamente

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necessaacuteria e deve ser tomada como princiacutepio orientador das relaccedilotildees sociais as proacuteprias diferenccedilas divinamente justificadas (os deuses natildeo datildeo tudo a todos) ensejam o amaacutelgama da competiccedilatildeo e fazem com que esteja sempre agrave espreita rodeando os heroacuteis no marco de suas potecircncias e carecircncias O fiel da balanccedila o ponto de apoio o ldquonoacute goacuterdiordquo que assegura a coesatildeo ou conflito eacute insisto a poliacutetica Eacute pela poliacutetica que o ser eacutetico-poliacutetico se manifesta e consegue pocircr a si proacuteprio e o outro em perspectiva olhando as diferenccedilas como possiacuteveis complementos e natildeo como foco de dissociaccedilatildeo Apolo sabia disso quando lanccedilou a discoacuterdia Agamecircmnon se apercebeu quando reconheceu seu desvario Aquiles aprendeu quando perdeu Paacutetroclo Neacutestor jaacute sabia antecipadamente E se haacute um sentido embora esquecido que preside a busca pela poliacutetica eacute certamente bem comum ainda que muitos insistam que eacute possiacutevel atingi-lo fora de uma disposiccedilatildeo cooperativa

Abstract The aim of this article is to observe the tensions between Achilles and Agamemon through the conceptual bionmial competitioncooperation Itrsquos intend not only understand the variables of this opposition but also how the ideas of competition and cooperation sets a quarrel and suggest an ethical-political way of being that distinghishes those heroesKeywords Competition Cooperation Achilles Agamenon Iliad

Referecircncias

Documentaccedilatildeo Textual

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A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTO DOS PODERES PA-RENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS

Bruno DrsquoAmbros1

Resumo Mostramos neste artigo que a democracia grega nasceu efetivamente com a reorganizaccedilatildeo territorial aacutetica de Cliacutestenes em 508 aC atraveacutes do enfraquecimento dos genoi e phratriai em prol dos demoi A democracia assim desde seu surgimento parece ter sido uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema semelhante do conflito entre a distribuiccedilatildeo de poder local e regional Palavras-chave Cliacutestenes Democracia Greacutecia antiga Oligarquias

A escassa produccedilatildeo bibliograacutefica histoacuterica sobre o tema do nascimento da democracia na Greacutecia Antiga por vezes gera certa simplificaccedilatildeo da temaacutetica criando uma idealizaccedilatildeo da democracia participativa grega e esquecendo os variados elementos que a constituiacuteram Sem a adequada compreensatildeo dos detalhes histoacutericos que compuseram o nascimento da democracia arriscamos dizer eacute quase impossiacutevel compreender adequadamente Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e toda a produccedilatildeo filosoacutefica subsequente sobre o tema da poliacutetica As vaacuterias criacuteticas que os filoacutesofos antigos fizeram agrave democracia grega adveacutem de muitos elementos histoacutericos factuais que natildeo estatildeo naturalmente presentes nos textos destes pensadores e soacute podem ser compreendidos agrave luz da histoacuteria poliacutetica grega

Heroacutedoto em seu relato fictiacutecio na sua Histoacuterias relaciona trecircs reis persas ndash Otanes Megabises e Dario ndash com respectivamente os trecircs regimes poliacuteticos claacutessicos ndash democracia aristocracia e monarquia Este relato ajudou a consolidar no imaginaacuterio grego estas trecircs formas de governo e jaacute nele se percebe uma valoraccedilatildeo negativa da democracia Isoacutecrates em seu Evaacutegoras tambeacutem vecirc negativamente a democracia grega por seu caraacuteter igualitarista poreacutem elogia Soacutelon e Cliacutestenes que em sua opiniatildeo foram homens que foram

1 Doutorando em filosofia pela UFPR E-mail dambrosbrunogmailcom

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capazes de construir uma cidade-estado longe da monarquia Xenofonte nos Memoraacuteveis e Ciropeacutedia despreza a democracia que para ele era um regime calcado na indisciplina popular e portanto um regime titubeante A famosa criacutetica platocircnica agrave democracia na Repuacuteblica natildeo inova exceto na sua teoria da degenerescecircncia dos regimes poliacuteticos partindo do melhor para o pior ou seja a democracia esta seria ruim porque se baseia num homem sem virtude Aristoacuteteles em sua Poliacutetica rejeita a teoria platocircnica da degenerescecircncia das formas de governo e afirma que a democracia eacute uma forma de governo degenerada que exclui o interesse comum e beneficia o interesse de uma classe particular os mais pobres

Em suma percebe-se que a democracia ao menos para as classes cultas natildeo era um regime bem No entanto se atentarmos somente para os argumentos presentes nos textos destes autores citados excluindo o contexto histoacuterico anterior natildeo compreenderemos esta antipatia agrave democracia em sua totalidade Eacute preciso portanto voltar-se para os acontecimentos histoacutericos

O principal evento para a consolidaccedilatildeo da democracia aleacutem das reformas anteriores de Soacutelon e dos Pisistraacutetidas foi sem duacutevida a reforma territorial sob Cliacutestenes ocorrida por volta de 508 aC Foi esta reforma que ao reconfigurar a demografia aacutetica enfraqueceu os laccedilos parentais das famiacutelias aristocraacuteticas aacuteticas e possibilitou a participaccedilatildeo poliacutetica efetiva nas eleiccedilotildees e nas instituiccedilotildees democraacuteticas atenienses O que houve em outros termos foi que os novos demoi nascentes como nova divisatildeo territorial administrativa se contrapocircs com a divisatildeo familiar tradicional de parentesco denominada genos o que contribuiu para a exacerbaccedilatildeo da antiacutetese entre uma aristocracia familiar local estabelecida e uma democracia poliacutetica translocal introduzida2 Todo o debate filosoacutefico poliacutetico concernente sobre a democracia tinha como pano de fundo os nuacutecleos de gens na Greacutecia antiga e a nova configuraccedilatildeo demograacutefica de Cliacutestenes os demoi

Cliacutestenes nasceu por volta de 570 aC e era membro do clatilde dos Alcmeocircnidas neto do tirano Cliacutestenes de Siacutecion tio de Peacutericles e avocirc de Alcebiacuteades Quanto ao seu legado Cliacutestenes tomou uma seacuterie de medidas reformatoacuterias principalmente no que tange agrave reorganizaccedilatildeo poliacutetica do territoacuterio da Aacutetica mudando a organizaccedilatildeo poliacutetica ateniense que era baseada em quatro tradicionais tribos com fortes laccedilos de parentesco entre si que foram responsaacuteveis pelas tiranias anteriores A fim de impedir que a tirania se

2 Sobre a diferenccedila entre γένος e δῆμος na Aacutetica claacutessica faz-se mister conferir o capiacutetulo X da parte II da obra de Fustel de Coulanges (2009) jaacute bem conhecida entre os helenistas e latinistas onde o autor defende a tese de que a gens era a famiacutelia em sua primitiva organizaccedilatildeo de parentesco e unidade e natildeo como se pensava na eacutepoca um artifiacutecio administrativo de relaccedilotildees de parentesco

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instalasse novamente atraveacutes destas relaccedilotildees de parentesco Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em dez tribos de acordo com sua area de residecircncia o seu dēmos Estas reformas territoriais foram na verdade uma ldquodessacralizaccedilatildeo da paacutetriardquo (KERCKHOVE 1980 p 27) e consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo em curso na Greacutecia Arcaica (DrsquoAMBROS 2014)

Os principais feitos de Cliacutestenes durante seu arcontado foram basicamente seis a reorganizaccedilatildeo demograacutefica do territoacuterio aacutetico o consequumlente fortalecimento dos dēmos em detrimento das antigas phratriai a reorganizaccedilatildeo da boulḗ em 500 participantes a reorganizaccedilatildeo da dikasteria a corte popular a instituiccedilatildeo do ostracismo e a cunhagem do conceito de isonomia que durante o seacuteculo V iria desembocar no conceito de democracia

Quanto a estas outras reformas o estabelecimento de corpos legislativos feitos de indiviacuteduos escolhidos por eleiccedilatildeo foi tambeacutem mais um atentado contra o parentesco e a hereditariedade aristocraacutetica Ainda sua reorganizaccedilatildeo da Boulecirc que primariamente foi feita por 400 membros para 500 membros 50 de cada tribo e a introduccedilatildeo do juramento bouleacutetico que propunha antecipadamente a agenda a ser discutida na ekkleacutesia foram importantes para esta desestabilizaccedilatildeo aristocraacutetica A reorganizaccedilatildeo do tribunal da dikasteria e a criaccedilatildeo do ostracismo usado pela primeira vez em 487 aC com a finalidade de expulsar da cidade qualquer um que ameaccedilasse a democracia foram mecanismos uacuteteis para o enfraquecimento do poder parental-aristocraacutetico

A ascensatildeo de Cliacutestenes ao arcontado se deu apoacutes a expulsatildeo de Hiacuteppias de Atenas quando Isaacutegoras entra na disputa pelo arcontado com Cliacutestenes ambos aristocratas Isaacutegoras aliou-se com o rei Cleomenes I de Esparta e exilou Cliacutestenes junto com 700 famiacutelias e tornou-se arconte epocircnimo em 507 aC Seu grande erro poreacutem foi tentar dissolver a boulḗ3 que resistiu e angariou o apoio do povo e forccedilou Isaacutegoras a fugir para a Acroacutepolis que laacute permaneceu por dois dias sendo expulso no terceiro junto com os espartanos aliados (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 721ndash2) Cliacutestenes entatildeo junto com os outros exilados retornou a Atenas e tornou-se arconte com apoio do povo e dos aristocratas hetairoi (cavalaria)

Conflitos entre aristocratas como entre Isaacutegoras e Cliacutestenes estava se tornando ldquofora de modardquo (BUCKLEY 2010 p 118) O povo de modo geral e igualmente a parcela de nobres por meacuterito financeiro estava enfastiada de disputas entre facccedilotildees aristocraacuteticas que natildeo percebendo a mudanccedila dos tempos ainda sustentava valores e coacutedigos de honra anacrocircnicos Cliacutestenes

3 Na verdade Heroacutedoto natildeo explicita se foi a Bouleacute ou o Areoacutepago que Isaacutegoras quis remover

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arguto poliacutetico e membro da aristocracia percebeu isso jaacute durante o periacuteodo de tirania onde os tiranos para se manter no poder adotavam medidas populistas que natildeo os tornavam dependentes dos humores inconstantes das facccedilotildees aristocraacuteticas mas do proacuteprio povo E lidar com o povo ignorante cujos interesses satildeo miacutenimos eacute muito mais faacutecil que lidar com uma aristocracia com infinitos interesses econocircmicos e poliacuteticos e coacutedigos de honra fastidiosos

Inspirado no bem suscedido populismo4 precedente dos pisistraacutetidas Cliacutestenes toma medidas igualmente populistas para se manter no poder desagradando naturalmente a classe aristocraacutetica da qual ele mesmo fazia parte Dentre estas medidas as principais foram duas a reforma demograacutefica e a ampliaccedilatildeo dos poderes da ekklesia Heroacutedoto (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 662 692) sublinha este caraacuteter oportunista das medidas de Cliacutestenes e igualmente Aristoacuteteles quando diz que ldquoCliacutestenes trouxe o povo para o seu lado cedendo o controle do Estado para o plethos (plebe)rdquo (ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 202) Portanto apesar de Cliacutestenes ser considerado o real fundador da primeira democracia na histoacuteria seus interesses natildeo foram altruiacutestas mas permeados de interesses pessoais e aristocraacuteticos ou mais amenamente uma ldquocombinaccedilatildeo de auto-interesse e acuidade puacuteblicardquo (BUCKLEY 2010 p 120)

Assim a democracia ateniense nasce propriamente com Cliacutestenes em funccedilatildeo de sua reforma demograacutefica do territoacuterio Aacutetico Os principais motores destas reformas foram dois que se inter-relacionam o problema da cidadania ateniense e o problema das unidades parental-aristocraacuteticas Passemos a seguir a explicaacute-las

Durante o arcontado de Soacutelon muitos estrangeiros vieram para Atenas por sua prosperidade crescente com sua abertura econocircmica para trabalhar nos mais diversos ramos sendo o principal o artesanato Igualmente durante

4 O populismo termo moderno eacute um fenocircmeno que liga-se diretamente agrave tirania O tirano era essencialmente um populista estava ao lado do povo e contra os aristocratas Heroacutedoto (V 926) diz que a sanha do tirano eacute essencialmente a igualdade ldquocortar todas as espigas maiores que as outrasrdquo Glotz (1988 p 92) resume magistralmente qual era de fato o objetivo do tirano ldquoreduzir os poderes da aristocracia e exalccedilar os humildesrdquo Por isso na tipologia poliacutetica platocircnica agrave democracia natildeo eacute reservado a ela um bom lugar pois o intervalo entre a democracia e o populismo e portanto agrave tirania eacute curto O povo no baixo medievo grego cultuava deuses locais ctocircnicos sendo um deles Dioniso (lembremos que como Cristo ele desceu ao Hades e ressuscitou segundo o Hino Homeacuterico LIII) A aristocracia cultuava deuses com caraacuteter universal os deuses oliacutempicos Para agradar o povo Pisiacutestrato promove os cultos ctocircnicos populares sendo o principal o culto a Dioniso construindo um templo e instituindo o festival da Grande Dionisia onde em 535 aC foi encenado a primeira trageacutedia tendo como vencedor Thespis de Icaacuteria Assim nasce oficialmente o culto a Dioniso e a Trageacutedia grega sob os auspiacutecios do populismo tiracircnico (cf GLOTZ 1988 p 93)

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os pisistraacutetidas muitas novas pessoas vieram para Atenas para servir como mercenaacuterios do exeacutercito puacuteblico Assim durante todo o seacuteculo VI Atenas recebeu uma quantidade crescente de estrangeiros que no governo de Soacutelon vieram para trabalhar como artesatildeos de vasos e no governo dos pisistraacutetidas vieram para trabalhar como mercenaacuterios no exeacutercito puacuteblico estes foram os famosos meacutetoikos (estrangeiros)

Durante o governo de Cliacutestenes Atenas jaacute era habitada pelos netos e bisnetos destas pessoas no entanto sem cidadania aacutetica ainda Assim tiacutenhamos trecircs geraccedilotildees de estrangeiros que ainda natildeo tinham a cidadania ateniense plena Atenas durante o seacuteculo VI aC teve um crescimento demograacutefico significativo e a propaganda poliacutetica dos pisistraacutetidas em transformar Atenas no centro cultural Aacutetico foi bem-sucedida ao trazerem os festivais dionisiacuteacos teatro e os jogos oliacutempicos para a cidade Desde modo aleacutem dos descendentes daqueles estrangeiros que vieram para Atenas sob Soacutelon e os pisistraacutetidas sob Cliacutestenes afluiacuteram para Atenas muitos outros estrangeiros

A uacutenica prova formal de cidadania ateniense antes de Cliacutestenes eram as fratriai que reivindicavam para si uma origem miacutetica como seus nomes atestam Assim quando Cliacutestenes fez a reforma geopoliacutetica aacutetica criando os demoi ele automaticamente aboliu o antigo criteacuterio de cidadania criando um novo os demoi (BUCKLEY 2010 p 120) O termo deme tem um sentido muito especiacutefico na Aacutetica pois de fato se refere ldquounidade poliacutetica associada com as reformas de Cliacutestenesrdquo (TRAILL 1975 p73)

Para compreender a natureza e extensatildeo da reforma geopoliacutetica aacutetica de Cliacutestenes em deme eacute preciso compreender a natureza das quatro unidades parental-aristocraacuteticas aacuteticas anteriores phylai phratriai genē e oikoi ou anchisteia Eric Voegelin (2012 p 190) chama-as de ldquoestruturas gentiacutelicasrdquo de sinecismo da civilizaccedilatildeo helecircnica e as apresenta em niacuteveis da maior para a menor respectivamente5 Estas estruturas gentiacutelicas da civilizaccedilatildeo helecircnica tinham caracteriacutesticas tribais e foram determinantes do processo de sinecismo aacutetico ou seja na uniatildeo dos vaacuterios vilarejos aacuteticos em torno de um centro poliacutetico uacutenico Atenas durante o seacuteculo V ac

Ao longo do seacuteculo VII ac as phratriai satildeo a base da sociedade englobam tambeacutem os genē e se legitima como poder poliacutetico tendo regras proacuteprias podendo promulgar decretos proacuteprios possuir bens e dignitaacuterios

5 Contudo natildeo sabemos exatamente se os philai eram partes das phratriai ou contrariamente se as phratriai eram parte das philai (LAMBERT 1993 p 1516)

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tem seu proacuteprio sacerdote e culto As lideranccedilas das phratriai eram hereditaacuterias e portanto natildeo-democraacuteticas (BUCKLEY 2010 p 122) As phratriai eram o foco da aristocracia e uma vez que a aristocracia era um problema para o povo logo eram igualmente o foco do problema As phratriai podiam dividir-se ou fundir-se conforme sua fraqueza ou forccedila poliacutetica e segundo as circunstacircncias (LAMBERT 1993 p 11) e esta grande mobilidade espontacircnea foi provavelmente o motivo que as fizeram sobreviver durante os 200 anos de democracia como ldquoorganizaccedilotildees extra-urbanasrdquo ( JONES 1999 p 210)

A fundaccedilatildeo das phratriai foi atribuiacuteda agrave figura miacutetica de Ion personificaccedilatildeo da identidade jocircnica (LAMBERT 1993 p 3) Atenas estava organizada em quatro tribos jocircnicas agrupadas em phratriai e genē baseadas num parentesco miacutetico com algum heroacutei (FINE 1983 p 229) Este recurso genealoacutegico a um ancestral miacutetico comum foi recorrente em todas as phratriai e pode se atestar tanto pelo sufixo patroniacutemico -idai nos nomes das phratriai como Alkmeonidai e Demotionidai como pelo famoso festival de Apatouria cujo nome derivaria de homopatoria ou seja ldquomesmo pairdquo (LAMBERT 1993 p 8) Apesar de o recurso genealoacutegico-miacutetico natildeo ser verdadeiro como hoje compreendemos a noccedilatildeo de verdade como correspondecircncia de fato as phratriai consistiam de pessoas com uma ancestralidade comum chamados homogalaktes e a membresia nas phratriai natildeo era reservada somente aos ricos eupatridai (FINE 1983 p 186) mas estendida a todos os que vinham a pertencer a uma phratriai Deste modo as phratriai eram organizaccedilotildees de parentesco primordialmente constituiacutedas por phraacuteter vizinhos proacuteximos e amigos de famiacutelia Haacute trecircs evidecircncias segundo Lambert (1993 pp 4-5) da existecircncia das phratriai aacuteticas trinta inscriccedilotildees arqueoloacutegicas preservadas obras tardias dos seacuteculos V e IV aC em especial Isaeus e Demoacutestenes e scholia variados como os ensaios de Plutarco Pausanias e Ateneu Em Homero a fratria eacute uma ldquosubdivisatildeo da tribordquo e uma ldquobase de organizaccedilatildeo militarrdquo de modo que o homem sem fratria eacute considerado um ldquofora de leirdquo (VIAL 2013 p189) A palavra phrater significa literalmente irmatildeo mas em Homero natildeo se usa a palavra phrater para se referir a irmatildeo mas sim adelphos e kasignetos (FINE 1983 p 35) O termo phratria eacute mencionado pela primeira vez na Iliacuteada (II vv 362-363 IX vv 63-64) quando Nestor fala a Agamenon para dividir os homens por tribos e phratriai Uma hipoacutetese para a origem das phratriai bem aceita eacute a de que na ldquoEra das Trevasrdquo grega os nobres agrupados em genē organizaram seus dependentes em phratriai para melhor controle cada uma estando sob o domiacutenio de um ou mais gene (FINE 1983 p 186) Assim a organizaccedilatildeo em phratriai formam um modo de organizaccedilatildeo dos genē e de fato as phratriai organizaram a vida social e poliacutetica grega desde sua

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apariccedilatildeo por volta de 2000 aC ateacute seu fim no segundo seacuteculo II aC como atesta uma inscriccedilatildeo em uma colocircnia grega em Naacutepoles

As outras estruturas gentiacutelicas phylai genē e anchisteia satildeo partes constituintes do que seratildeo as poleis futuramente Agrave medida que a noccedilatildeo de sujeito vai tomando escopo ndash como se pode atestar pela epopeacuteia liacuterica e trageacutedia ateacute seu ponto culminante com a filosofia ndash o mundo tribal aristocraacutetico vai dando lugar ao mundo das poleis democraacuteticas O sujeito ldquo[] sempre permaneceu numa posiccedilatildeo de mediaccedilatildeo por meio dos parentescos sanguiacuteneos tribais fictiacutecios e estreitos no interior da poacutelisrdquo (VOEGELIN 2012 p 189)

Cliacutestenes mudou a situaccedilatildeo poliacutetica aacutetica mudando a situaccedilatildeo geopoliacutetica Agora o centro das decisotildees poliacuteticas natildeo eram mais as phratriai mas os demoi Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em trecircs regiotildees geopoliacuteticas Paralia Mesogeia e Astu E cada uma destas aacutereas foi subdividida em dez partes chamadas tritiacuteas6 que por sua vez englobavam um certo nuacutemero de demes (BRAADEN 1955 p 22) De acordo com Braaden (1955 p 28) ldquoas tritiacuteas eram aacutereas geograacuteficas compactas e em alguns lugares contiacuteguasrdquo A subdivisatildeo aacutetica foi uma forma de ldquomisturar o povordquo (BUCKLEY 2010 p 128 BRAADEN 1995 p 23) As reformas de Cliacutestenes ldquopodem ter intentado transcender barreiras locais juntando homens dos distritos rurais urbanos e costeiros e desenvolver um sentimento de uniatildeordquo (HIGNETT 1952 p 141) Esta divisatildeo aacutetica foi a maneira achada para solucionar os conflitos parental-aristocraacuteticos entre as diversas facccedilotildees e partidos7

A principal diferenccedila entre as phratriai e os demoi era a ldquoconstituiccedilatildeo democraacuteticardquo (BUCKLEY 2010 p123) destes uacuteltimos Todos os temas concernentes aos demoi eram decididos natildeo mais por uma pequena phratria seleta mas por todo o demos

Alguns especialistas sustentam que Cliacutestenes com sua reforma demograacutefica desejava aumentar o poder das cidades e outros que ao contraacuterio

6 As dez era a dos Erectidas Egeus Pandion Leocircnides Acamantes Oineis Cecroacutepides Hipotoontes Eacircntides e Antiacuteoques e estavam espalhadas por todo o territoacuterio aacutetico em diferentes locais tendo muitas vezes a mesma tribo em locais diferentes totalizando assim trinta tritiacuteas Na mesma tritiacutea havia vaacuterios demoi e se crecirc ter havido cerca de 140 dēmoi em toda a Aacutetica Cada tribo eacute composta por trecircs tritiacuteas a da costa cidade e planiacutecie Cada tritiacutea foi nomeada segundo o demo dominante

7Alguns partidos regionais do seacuteculo VI aC eram pedieis cujo nuacutecleo estava concentrado na aacuterea de planiacutecie e tinha Licurgo como liacuteder paralioi cujo nuacutecleo era a aacuterea costeira e era famoso por ser a regiatildeo dos Alcmeocircnidas e por fim os hyperacrioi os ldquoaleacutem dos montesrdquo Cliacutestenes desejava quebrar a velha rivalidade entre os pediakoi paralioi e diakrioi e a influecircncia dos eupatridai (BRAADEN 1955 pp 23- 25)

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ele desejava diminuir De fato Cliacutestenes estava mais interessado dentre as trecircs grandes aacutereas em que a Aacutetica foi divida na aacuterea urbana provavelmente porque a maior parte das famiacutelias nobres eram de centros urbanos (BRAADEN 1955 pp 28-29) Aleacutem disso ldquoas tritiacuteas da Cidade consistiam de somente um demos que como a evidecircncia arqueoloacutegica mostra era a sede poliacutetica dos Alcmeocircnidasrdquo (BUCKLEY 2010 p 127) ou seja a proacutepria facccedilatildeo de Cliacutestenes

Deste modo as reformas tribais de Cliacutestenes foram um grande senatildeo o mais importante fator no desenvolvimento da democracia ateniense mas foram tambeacutem um meio de fortalecer a permanecircncia poliacutetica dos Alcmeocircnidas agraves custas de seus oponentes (BUCKLEY 2010 p 128)

Estas famiacutelias mantiveram influecircncia poliacutetica sobre o territoacuterio de onde vieram apesar de suas residecircncias estarem em aacutereas urbanas Alguns alegam como Braaden (1955 p 29) que a reforma territorial de Cliacutestenes natildeo foi um meio de beneficiar a plebe mas os aristocratas porque ldquoera necessaacuterio inventar um sistema pelo qual elas pudessem ser espalhadas por todas as tribos enquanto ainda usando localidade como a base para a cidadaniardquo

As rivalidades e conflitos entre as facccedilotildees podem ter sido causadas pela ambiccedilatildeo de poucas famiacutelias ou clatildes aristocraacuteticos que eram capazes de usar seus domiacutenios de certas regiotildees da Aacutetica como arma poliacutetica Cliacutestenes percebeu que estes blocos regionais de poder com seus liacutederes aristocraacuteticos sustentados em poder pode seus amigos e dependentes pela rede de velhas lealdades e alianccedilas eram o maior obstaacuteculo para a estabilidade poliacutetica Consequentemente houve uma radical reorganizaccedilatildeo do corpo citadino e por isso das quatro tribos jocircnicas sob os fundamentos que a dependecircncia poliacutetica do povo comum poderia somente ser quebrada pela separaccedilatildeo poliacutetica de seus liacutederes aristocraacuteticos (BUCKLEY 2010 p 126)

A artificializaccedilatildeo do territoacuterio atraveacutes de uma reforma geopoliacutetica foi o modo encontrado para enfraquecer o poder das fratrias fortalecer o poder do povo e ldquoquebrar os fortalecidos poderes regionais destes clatildes aristocraacuteticos e suas facccedilotildees acabando com as funccedilotildees poliacuteticas das fratrias e das velhas tribos [hellip] (BUCKLEY 2010 p 122) No entanto ao mesmo tempo foi um modo de fortalecer o poder de uma fratria especiacutefica a proacutepria de Cliacutestenes e descentralizar as decisotildees poliacuteticas e unificar o estado Poderiacuteamos dizer assim que a democracia ateniense foi consequumlecircncia de uma demografia antes de tudo

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Como dito acima um dos problemas sociais mais urgentes resolvidos sob Cliacutestenes ao final do seacuteculo VI eram os novos cidadatildeos sem cidadania ateniense plena A nova base de cidadania instituiacuteda por Cliacutestenes foi a localidade de nascimento e isso facilitou a inclusatildeo de novos cidadatildeos (BRAADEN 1955 p 22) Com as phratriai enfraquecidas a base de confianccedila para a cidadania agora natildeo eram mais o parentesco fictiacutecio com algum heroacutei mas simplesmente o demos ao qual algueacutem fazia parte Os deme garantiriam cidadania ateniense natildeo soacute para antigos habitantes mas tambeacutem para os novos conforme relata o proacuteprio Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses 214) Voegelin tambeacutem nos confirma ao dizer que ldquoa cidadania agora dependia do pertencimento a um dos demoirdquo e diz que a consequecircncia geral deste feito foi uma ldquodemocratizaccedilatildeo bem-sucedida da constituiccedilatildeo dissolvendo o poder da antiga estrutura gentiacutelica (VOEGELIN 2012 p190)

Aleacutem deste alargamento da cidadania a reforma demograacutefica clisteneana repercutiu na organizaccedilatildeo militar pois agora os ldquogenerais de qualquer tribo poderia vir de qualquer uma das trecircs regiotildees da Aacuteticardquo (BRAADEN 1955 p 26) A reforma territorial de Cliacutestenes foi ldquoum sistema pelo qual os Eupatridai seus inimigos talvez mas ainda homens de habilidade pudessem ser usados para favorecer na posiccedilatildeo militar e na nova e poderosa posiccedilatildeo de Prytaneisrdquo (BRAADEN 1955 p 30)

Este eacute um sistema extremamente complexo e foi implantado por Cliacutestenes com a finalidade de abolir os privileacutegios patroniacutemicos em favor dos demoniacutemicos o que aumentou o senso de pertenccedila a um dēmos nos indiviacuteduos ficando as relaccedilotildees familiares de genos cada vez mais tecircnues O dēmos portanto foi uma divisatildeo territorial artificial para impedir a forccedila poliacutetica dos genos Poderiacuteamos dizer que esse conflito entre genos e demos eacute o conflito entre a lei do Estado e o direito familiar ou ainda o conflito entre poder central e poderes regionais que estaraacute presente durante toda a histoacuteria da poliacutetica e da filosofia poliacutetica culminando em soluccedilotildees futuras como federalismo e a teoria da divisatildeo dos poderes

Esta estrateacutegia geopoliacutetica se deu justamente pela excessiva forccedila das relaccedilotildees parentais que o genos proporcionava frequentemente levando ao poder um membro proeminente de um genos que natildeo legislaria em favor do puacuteblico O genos assim se tornava representante por excelecircncia da aristocracia Logicamente a decisatildeo de Cliacutestenes natildeo foi inicialmente bem vista pois diluiacutea as relaccedilotildees familiares tradicionais do genos em troca de relaccedilotildees artificiais novas do dēmos O que se tornava decisivo daqui em diante para a poliacutetica Aacutetica natildeo era mais o nascimento a estirpe a hereditariedade miacutetica reivindicada pela aristocracia A arete saia do campo de virtudes familiares para virtudes sociais

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sempre tendo em vista a comunidade Cliacutestenes desta forma literalmente instituiu a democracia

O que foi entatildeo a democracia Aacutetica antiga Foi uma divisatildeo territorial uma estrateacutegia geopoliacutetica em prol de todas as pessoas e natildeo somente de grupos familiares bem instituiacutedos Portanto para a democracia Aacutetica antiga foi de suma importacircncia a artificializaccedilatildeo do territoacuterio Soacute desta forma pode-se afrouxar os laccedilos parentais tradicionais que sempre tenderam a se agrupar e formar oligarquias em prol de laccedilos puacuteblicos que por estarem territorialmente distantes e natildeo terem proximidades familiares auxiliaram no sentimento de pertenccedila territorial

Abstract We show in this article that Greek democracy was actually born with the Attic territorial reorganization of Cliacutestenes in 508 bC through the weakening of the genoi and phratriai in favor of the demoi Democracy then since its inception seems to have been an attempt to solve the similar problem of the conflict between the distribution of local and regional powerKeywords Cleisthenes Democracy Ancient Greece Oligarchies

Referecircncias

ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 2ordf Ed Lisboa Calouste Goubenkian 2009

BRADEEN Donald The trittyes in Cleisthenesrsquo reforms In Transactions and proceedings of the American philological association Vol86 1955 pp22-30

BUCKLEY Terry Aspects of Greek history 750ndash323bc A source-based approach London Routledge 2010

COULANGES Fustel de A cidade antiga Satildeo Paulo Martin Claret 2009DrsquoAMBROS Bruno Rodrigo Um estudo histoacuterico sobre a emergecircncia da

democracia como consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo na Greacutecia arcaica (594ndash508 aC) Orientador Jean Gabriel Castro - Florianoacutepolis SC 2014 119 p Trabalho de Conclusatildeo de Curso (graduaccedilatildeo) Universidade Federal de Santa Catarina

FINE John Van Antwerp The ancient greeks a critical history Harvard University Press 1983

GLOTZ Gustave A cidade grega Satildeo Paulo Bertrand Brasil 1988HEROacuteDOTO Histoacuterias livro V Lisboa Ediccedilotildees 70 2007JONES Nicholas The associations of classical Athens the response to

democracy Oxford University Press 1999KERCKHOVE Derrick De A Theory of Greek Tragedy SubStance Vol 9 No

4 Issue 29 (1980) pp 23-36

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LAMBERT SD The phratries of Attica Michigan Monographs in Classical Antiquity Michigan University Press 1993

TRAILL John S The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council Hesperia Supplements v 14 - The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council 1975 pp 139-169

VIAL Claude Vocabulaacuterio da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2013VOEGELIN Eric Histoacuteria das ideias poliacuteticas 1 Helenismo Roma e

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2012

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TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES

Paulo Pires Duprat1

Miserius nihil est quam mulier ldquoNada eacute mais miseraacutevel do que uma mulherrdquo

(PLAUTO As Baacutequides 41)

Resumo Muito se escreveu sobre gecircnero no mundo romano Natildeo obstante algo parece estar faltando a parte que cabe agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica desta sociedade Passado presente ou futuro as mulheres constituem no miacutenimo metade da populaccedilatildeo ao redor do globo uma forccedila de trabalho imprescindiacutevel seja em sociedades antigas ou modernas Sabemos que desde o comeccedilo dos tempos a maioria das mulheres foi submetida ao trabalho duro sob a forma de tarefas cansativas e repetitivas impostas de forma arbitraacuteria Tais atividades comeccedilavam ainda na infacircncia e jamais receberam o devido reconhecimento O objetivo deste trabalho eacute portanto resgatar o papel do trabalho das mulheres nas economias da Hispacircnia romana com especial atenccedilatildeo ao caso de Tarraco entre finais da Repuacuteblica ateacute o Principado levantando subsiacutedios locais e alhures para demonstrar a parte que coube agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica da sociedade romana

Palavras-chave Estudos claacutessicos Economia romana Trabalho feminino Estudos de gecircnero Poacutes-modernismo

Estudos claacutessicos e a naturalizaccedilatildeo dos preconceitos

Lamentamos iniciar este artigo afirmando que os estudos claacutessicos satildeo com certeza um dos campos acadecircmicos mais conservadores hieraacuterquicos e patriarcais (SKINNER 1983 p 183) Eminentes classicistas criacuteticos reconheceram que ldquoos estudos claacutessicos tecircm sido com poucas exceccedilotildees antiteoacutericos em geral e antifeministas em particularrdquo nas palavras de Nancy Sorkin Rabinowitz em sua provocante introduccedilatildeo ao Feminist theory and

1 Doutorando em Histoacuteria pela Unicamp sob orientaccedilatildeo de Pedro Paulo Abreu Funari Servidor puacuteblico federal ativo desde 2005 atuando como bibliotecaacuterio lotado na FAUUFRJ E-mail ppdupratyahoocombr

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the Classics (1993 p 1) Os estudos claacutessicos tecircm reforccedilado pontos de vista conservadores de diversas maneiras na maioria dos casos ao apoiarem-se em uma leitura empirista a partir do senso comum dos documentos antigos O uso do senso comum para a manutenccedilatildeo de relaccedilotildees iniacutequas de poder segundo as agudas observaccedilotildees do linguista britacircnico Norman Fairclough (1990 pp 84-91) contribui para que relaccedilotildees de poder injustas sejam mantidas pela naturalizaccedilatildeo dos discursos Rejeitamos portanto esta abordagem derivada do senso comum na medida em que apenas uma anaacutelise criacutetica permite compreender o ldquomasculinordquo e o ldquofemininordquo como construccedilotildees sociais que variam em termos de classe social gecircnero e etnicidade em diferentes periacuteodos histoacutericos e em diferentes sociedades (FUNARI 1995b pp 179-80) O trecho abaixo deixa claro nossa percepccedilatildeo

Eacute uma histoacuteria circular que se torna mais intensa agrave medida em que a contamos Eacute um meio de controle social e tem sido usado para regular as atividades e aspiraccedilotildees de grupos laquonaturalmenteraquo subordinados Haacute muitos presentes e passados a serem narrados mas os perdedores do jogo satildeo frequentemente os mesmos grupos subordinados (SCOTT 1993 p 8)

Enfim haacute caminhos mais justos e viaacuteveis O vieacutes com o qual nos propomos a investigar o papel nas mulheres na sociedade romana eacute declaradamente inspirado no movimento feminista que convenceu alguns historiadores2 a substituir sua perspectiva de ldquosexordquo para ldquogecircnerordquo aqui entendida como construccedilatildeo social e natildeo como categoria natural como jaacute aludido

Desconstruindo preconceitos

Por ocasiatildeo da virada do seacuteculo XX para o XXI observamos abordagens de vanguarda que transformaram os estudos claacutessicos Os historiadores do mundo romano acostumados com narrativas de cunho poliacutetico econocircmico ou militar se depararam com o surgimento de uma geraccedilatildeo de estudiosos preocupados com a revisatildeo de conceitos consagrados de criacuteticas a modelos interpretativos de cunho normativo aleacutem de muacuteltiplas propostas sobre temas ineacuteditos sendo explorados Reflexotildees sobre a cultura romana as relaccedilotildees de

2 Dentre os quais me incluo No que concerne ao meu caso em particular francamente inspirado pela teoria desconstrutivista presente nas obras de Foucault e nas leituras feministas e poacutes-feministas indicadas pela linha de pesquisa das profordfs Luana Tvardovskas Margareth Rago e Pedro Paulo Funari a partir das aulas ministradas em no 1ordm e 2ordm semestres de 2017 seguindo as prerrogativas do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Unicamp

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gecircnero conflitos eacutetnicos ou a formaccedilatildeo das novas identidades a partir do embate entre romanos e natildeo romanos passaram a figurar com mais intensidade nas publicaccedilotildees acadecircmicas especializadas Este processo que estaacute inserido em um contexto muito mais amplo resulta de questionamentos epistemoloacutegicos que as Ciecircncias Humanas tecircm enfrentado desde a deacutecada de 1960 As criacuteticas de M Foucault3 por exemplo proporcionaram uma revisatildeo no papel dos acadecircmicos e aos poucos foi se concretizando a percepccedilatildeo na qual o historiador produz discursos sobre o passado constantemente ressignificados a partir de suas proacuteprias convicccedilotildees preconceitos e limitaccedilotildees Assim vaacuterios pressupostos tatildeo arraigados na historiografia tais como a neutralidade a objetividade a busca pelo real a essecircncia de sujeitos universais e o ordenamento dos acontecimentos a partir da noccedilatildeo de classes sociais e seus conflitos socioeconocircmicos entraram em xeque e foram revistos e criticados abrindo espaccedilo para repensar as categorias de anaacutelise do passado e as metodologias empregadas para sua interpretaccedilatildeo (FUNARI GARRAFFONI 2008 p 102)

Nossas reflexotildees acerca do mundo romano inserem-se neste contexto Afinal consideramos que o estudo da Antiguidade Claacutessica natildeo precisa reforccedilar preconceitos nem constituir-se em elemento de opressatildeo (FUNARI 1995a p 31) Por outro lado devemos ter em conta que a cultura material eacute o resultado direto do trabalho humano enquanto o documento escrito eacute uma representaccedilatildeo ideoloacutegica da realidade transposta para o texto Os documentos escritos informam-nos sobre as ideias de seus autores em geral uma elite masculina que sabia ler e escrever A escrita assim eacute um instrumento de poder de classe (FUNARI 2003 p 40)

Deste modo acreditamos que muitas pesquisas que se baseiam exclusivamente em obras literaacuterias podem incorrer em imprecisotildees naturalizando discursos e cristalizando opiniotildees que na realidade natildeo eram compartilhadas pela maioria da sociedade A observaccedilatildeo abaixo resume nossa posiccedilatildeo

Para um periacuteodo como o da Histoacuteria romana ou grega () apenas a Arqueologia podia trazer informaccedilotildees concretas e se tinha a consciecircncia clara que a literatura era ldquofonterdquo mas de um valor decerto relativo erudito elitista () Quem lia Quem escrevia Quem nos garantia a fidelidade das versotildees chegadas ateacute noacutes (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

3 Margareth Rago (1995 p 72) considera que as perspectivas de Foucault representaram uma verdadeira revoluccedilatildeo na historiografia uma ldquonova maneira de problematizar a Histoacuteria de pensar o evento e as categorias atraveacutes das quais se constroacutei o discurso do historiadorrdquo (grifo da autora)

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Por tais razotildees destacamos a centralidade da Arqueologia como ferramenta natildeo soacute para compor quadro mais amplo de evidecircncias como tambeacutem para refutar algumas ideias contidas nessas fontes escritas que muitas vezes informam mais sobre a opiniatildeo dos seus autores do que da ldquorealidaderdquo que eles julgavam contar4 Felizmente jaacute acumulamos alguma tradiccedilatildeo de pesquisa arqueoloacutegica no campo da economia romana Graccedilas ao grande nuacutemero de evidecircncias disponiacuteveis o conhecimento tem evoluiacutedo tanto no campo das economias provinciais quanto no da metroacutepole Inuacutemeros artefatos resultantes de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas e o rico material epigraacutefico recuperado tecircm fomentado pesquisas que oferecem um quadro mais representativo das atividades econocircmicas desenvolvidas5 Haacute casos em que a evidecircncia eacute relativamente abundante e homogecircnea tais como por exemplo as inscriccedilotildees e os artefatos arqueoloacutegicos de Pompeacuteia ou os arquivos dos papiros gregos do Egito (BERDOWSKI 2007 p 283) que apontam para um quadro econocircmico-social muito mais multifacetado do que alguns vieses querem nos fazer crer6

As mulheres e sua Histoacuteria

Nas uacuteltimas deacutecadas temos observado sistemaacuteticos estudos sobre a atividade das mulheres na economia romana nos quais satildeo evidenciados seus papeis como forccedila de trabalho ou mesmo como empreendedoras Esta nova historiografia ao abordar as relaccedilotildees entre os sexos como resultado de uma

4 A misoginia dos autores da Antiguidade eacute flagrante e salta aos olhos Um bom exemplo disto eacute Taacutecito As mulheres descritas nos Anais de Taacutecito foram dissecadas remontadas e analisadas a partir de perspectivas psicoloacutegicas literaacuterias e ateacute dramaacuteticas Embora suas caracterizaccedilotildees sejam repletas de elementos retoacutericos em algumas ocasiotildees o autor retratou as mulheres como pessoas obcecadas pelo poder Ao referir-se agrave Agripina matildee de Nero fica patente sua fixaccedilatildeo no estereoacutetipo da dux femina e seu temor da influecircncia feminina sobre os homens - que ele considerava maligna ndash e seu alerta quanto aos ldquoperigosrdquo do abuso de poder por parte das mulheres (LrsquoHOIR 1994 McHUGH 2012 MELLOR 2010 p 131) Natildeo vamos nos aprofundar neste tema pois a noacutes interessa para o momento a atuaccedilatildeo econocircmica da mulher romana de classe baixa e meacutedia

5 A epigrafia representa portanto um manancial insubstituiacutevel Conforme aponta Encarnaccedilatildeo ldquopouco saberiacuteamos da organizaccedilatildeo romana na Peniacutensula Ibeacuterica se natildeo tiveacutessemos os documentos epigraacuteficosrdquo (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

6 O tema da economia na Antiguidade continua sendo perpassado por conflitantes visotildees acerca das rupturas e continuidades com o mundo moderno evidenciado pela polecircmica entre ldquoprimitivistasrdquo e ldquomodernistasrdquo Inicialmente conhecido como ldquoBuumlcher-Meyer Controversyrdquo este debate se encontra estigmatizado por incorrer em variaccedilotildees de uma mesma temaacutetica Seus principais artiacutefices satildeo Weber Rostovtzeff Polanyi com especial destaque para as teorias minimalistas de Moses Finley A controveacutersia eacute antiga mas estaacute distante de seu esgotamento (DUPRAT 2015 p 16) O caminho mais seguro eacute o do meio (SALLER 2002 p 252 DUPRAT 2015 pp 23-51)

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construccedilatildeo social (RAGO 1995 p 80) modificou os meacutetodos e as perspectivas da histoacuteria tradicional7 tornando-a cada vez menos descritiva mais relacional e para muitos mais problematizada A rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade8

Eacute importante ressaltar que a noccedilatildeo de economia tratada nesta pesquisa pode estar mais proacutexima do conceito original de oikonomia do mundo antigo do que a do atual a etimologia grega traduziria este termo como ldquogestatildeo domeacutesticardquo noccedilatildeo complexa com diversas implicaccedilotildees9 Sua raiz estaacute no oikos unidade domeacutestica de produccedilatildeo na qual se baseava a polis grega e cujo modelo seraacute transmitido agrave Roma Assim sendo a economia greco-romana repousava sobre nuacutecleos domeacutesticos de produccedilatildeo10 onde a participaccedilatildeo das mulheres eacute evidente Neste sentido o oikos se configura como ceacutelula econocircmica baacutesica local onde se garante a subsistecircncia aleacutem de promover a reproduccedilatildeo humana Trata-se por conseguinte de uma unidade de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo em si mesma (MIROacuteN PEacuteREZ 2004 p 67 apud MEDINA QUINTANA 2014 pp 22-23)

No mais devemos elaborar uma abordagem holiacutestica de modo a contemplar o caraacuteter diverso das relaccedilotildees de gecircnero na Antiguidade Precisamos

7 Segundo Rago (1995 p 71) ldquoos historiadores do grupo dos Annales se preocuparam com as estruturas e os diferentes ritmos e temporalidades dos fenocircmenos histoacutericos privilegiando as longas permanecircncias mentais sociais geograacuteficas e etc que Braudel identificaria posteriormente como la longue dureacutee ou seja a longa duraccedilatildeo em detrimento das mudanccedilas sociaisrdquo Bengoochea Jove (1998 p 243) acrescenta que ldquoa historiografia acadecircmica tradicional centrava sua investigaccedilatildeo na experiecircncia histoacuterica do varatildeo (grifo meu) e quando abordava a participaccedilatildeo da mulher era sempre sob o vieacutes da santa regente reformadora ou estadista Nem a revista Annales (publicada desde 1929) nem a historiografia marxista embora tenha cunhado o enfoque metodoloacutegico da ldquoHistoacuteria totalrdquo se ocuparam da problemaacutetica da mulher a natildeo ser sob perspectivas tradicionaisrdquo

8 Bengoochea Jove (1998 p 243) potildee nestes termos concluindo que a invisibilidade da mulher adveio da proacutepria concepccedilatildeo androcecircntrica e eurocecircntrica da histoacuteria que selecionou os acontecimentos que julgava dignos de anaacutelise em detrimento de outros que relegou ao esquecimento

9 Resguardo-me assim da polecircmica acerca do emprego do termo ldquoeconomiardquo para descrever realidades do mundo antigo pois haacute o argumento ldquofiloloacutegicordquo de que nem a palavra nem o conceito remontam agrave Antiguidade mas a momentos posteriores e portanto estranhos agrave consciecircncia antiga Para maiores informaccedilotildees sobre o tema sugiro Juumlrgen Deininger (2012) Ciro Cardoso (2011) e Pedro Paulo Funari

10 A famiacutelia romana foi a principal unidade de produccedilatildeo reproduccedilatildeo consumo e transmissatildeo intergeracional de propriedade e conhecimentos que englobam a produccedilatildeo no mundo romano Esta declaraccedilatildeo aparentemente banal tem implicaccedilotildees de longo alcance Na antiguidade romana (bem como em outras sociedades preacute-industriais) a famiacutelia organizava o trabalho em fazendas familiares e em oficinas urbanas tomando decisotildees sobre como implementar os esforccedilos de homens mulheres e crianccedilas (SALLER 2011 p 116)

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ter em mente que os estudos claacutessicos por conta de seu caraacuteter transdisciplinar demandam o estudo da Histoacuteria Filologia Literatura Antropologia Sociologia Arqueologia Arquitetura Histoacuteria da Arte Geografia Metalurgia Biologia entre muitas outras Tais vieses estatildeo naturalmente abertos para uma abordagem dos temas sob uma oacutetica multicultural e pluralista Em uacuteltima anaacutelise a interdisciplinaridade seraacute a ferramenta decisiva as ciecircncias natildeo satildeo apenas auxiliares umas das outras elas se locupletam Afinal os dados materiais podem confirmar complementar ou mesmo contradizer as informaccedilotildees das fontes histoacutericas (FUNARI 2003 pp 85-86)

Mulheres romanas convenccedilotildees leis e exclusatildeo social

A exclusatildeo das mulheres da histoacuteria do trabalho na Antiguidade pode ser considerada uma omissatildeo intencional no registro de sua atuaccedilatildeo Portanto se o pesquisador natildeo estiver procurando os sinais do trabalho feminino nas fontes eacute evidente que ele natildeo vai encontraacute-los As fontes literaacuterias pouco ajudam a delinear a participaccedilatildeo das mulheres e eacute faacutecil compreender o porquecirc muitos dos ideais filosoacuteficos gregos foram incorporados ao modo de vida romano (ALFARO GINER 2009 p 15) Entre os gregos havia a percepccedilatildeo de que o trabalho diaacuterio alienava o indiviacuteduo e seria degradante Eles consideravam que os ofiacutecios manuais deformavam o corpo e o espiacuterito representava um castigo para os seres humanos um esforccedilo individual grave ou um dever penoso11

De tal forma que o trabalho diaacuterio sobretudo o manual era estigmatizado no mundo antigo e jamais obteve o status de atividade ldquodignificanterdquo que logrou alcanccedilar apoacutes o advento da moderna sociedade de consumo Segundo a loacutegica machista dos letrados escritores da Antiguidade o que conferia dignidade era a atividade fundiaacuteria participar da economia como um abastado proprietaacuterio de terras do sexo masculino e viver do trabalho de seus escravos dispondo de tempo livre para o oacutecio (otium) e assim poder refletir sobre causas mais elevadas envolvendo-se em atividades consideradas artisticamente valiosas ou iluminadoras (tais como a Retoacuterica a Literatura ou a Filosofia) Devido a este modo elitista de pensar o trabalho das pessoas comuns acabou sendo destituiacutedo de qualquer valor sobretudo o das mulheres uma vez que os escritores que contaram esta histoacuteria faziam parte desta elite e menosprezaram o peso econocircmico e social que suportaram as pessoas dos demais extratos da sociedade ou seja aqueles que precisavam trabalhar diariamente para viver ou seja a grande maioria da populaccedilatildeo

11 Cf XENOFONTE Oecon IV 2 VI 5 Cir V 3 47 ARISTOacuteTELES Poliacutetica III 5 3 IV 4 9 apoacutes ALFARO GINER 2009 p 16)

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Aqui entendido como um discurso de poder este ideal greco-romano sustentava tambeacutem que homens e mulheres deveriam viver em esferas separadas O domiacutenio puacuteblico seria prerrogativa masculina enquanto que a mulher permanecia na privacidade da esfera domeacutestica Por implicaccedilatildeo o direito de engajar-se abertamente nas artes artesanato e o comeacutercio seria teoricamente reservado aos homens12 A disseminaccedilatildeo deste ldquoidealrdquo eacute predominante nas fontes literaacuterias e haacute uma pecha elitista fortemente ligada a ele (GROEN-VALLINGA 2013 p 295) Para a elite a atuaccedilatildeo da mulher estava limitada agrave esfera da famiacutelia e da household13 a casa por excelecircncia da Antiguidade aqui entendida como unidade de produccedilatildeo o que pressupunha certa autossuficiecircncia alimentar bem como a confecccedilatildeo das vestimentas num mundo onde inexistiam as facilidades proporcionadas pelas modernas redes varejistas que dispomos atualmente Tal configuraccedilatildeo econocircmica e social determinou que

A mulher tinha um papel especiacutefico e determinado no seio da casa e portanto na cidade A famiacutelia patriarcal impocircs limites sociais que as circunscreveram ao interior do lugar Os objetivos ter certeza sobre a legitimidade da descendecircncia e usar a mulher como moeda de troca nos assuntos da famiacutelia Uma ampla seacuterie de teorias para obter a submissatildeo da mulher a esses ldquopapeis marcadosrdquo foram desenvolvendo um corpo doutrinaacuterio Partindo da base da maior forccedila masculina e da debilidade da mulher se argumenta sua diferente capacidade para a realizaccedilatildeo das vaacuterias atividades (ALFARO GINER 2009 p 16)

A fraqueza fiacutesica atribuiacuteda agraves mulheres14 intimamente relacionada com seu papel bioloacutegico como matildee foi e continua sendo uma grande

12 Na Antiguidade a noccedilatildeo que emergiu a partir dos escritos de Aristoacuteteles Xenofonte e Columela era de que a divisatildeo baacutesica do trabalho confinava ldquonaturalmenterdquo as mulheres aos ambientes fechados ocupadas em tarefas domeacutesticas enquanto o papel dos homens era adquirir fora da casa os recursos necessaacuterios segundo essas fontes literaacuterias o trabalho feminino fora da casa seria uma anomalia (FOXHALL 1989 apud BERG 2016 p 51) Este eacute um discurso de elite e nossa pesquisa busca contestar tal noccedilatildeo apoiada pela Arqueologia e por uma nova abordagem multidisciplinar

13 A concepccedilatildeo de famiacutelia na sociedade greco-romana era muito diferente da moderna O latim claacutessico natildeo nos fornece termo ou expressatildeo para o que hoje compreendemos como ldquofamiacuteliardquo na cultura ocidental contemporacircnea tampouco para o que entendemos como constitutivo do nuacutecleo parental ou familiar - matildee pai filhos A centralidade que esse nuacutecleo parental desempenhava no entanto na sociedade romana onde um vasto nuacutemero de escravos e clientes pertencia e compunha aquilo que eles chamavam de famiacutelia (um ramo da gens da linhagem patrilinear) tem sido assunto de debates e estudos normalmente envolvendo a fusatildeo ou a distinccedilatildeo entre os sentidos que damos hodiernamente agrave noccedilatildeo de famiacutelia (como family) e o que os angloacutefonos entendem como ldquohouseholdldquo (TAMANINI 2014 p 215)

14 Para uma anaacutelise pormenorizada sobre o tema vide Grubbs (2002)

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inibiccedilatildeo para sua participaccedilatildeo no mercado de trabalho As mulheres foram naturalmente predestinadas a cuidar das crianccedilas e muitas vezes ficaram em casa para fazecirc-lo como consequecircncia a gestatildeo da famiacutelia tambeacutem se tornou sua responsabilidade (GROEN-VALLINGA 2013 p 297) De tal modo que as mulheres normalmente eram exaltadas pelo seu papel familiar por sua performance em prol da sobrevivecircncia da prole e natildeo por sua produccedilatildeo econocircmica Consideremos o famoso epitaacutefio de Amymone

Hic sita est Amymone Marci optima et pulcherrima lanifica pia pudica frugi casta domiseda

Aqui jaz enterrada Amymone (esposa) de Marcus melhor e mais bonita fiandeira obediente modesta frugal casta e dona-de-casa (CIL 6 11602)15

Natildeo eacute difiacutecil perceber que a capacidade reprodutora da mulher delineou esta convenccedilatildeo social que conhecemos bem a mulher ideal deve ser fiel boa matildee e dona de casa exemplar a perfeita matrona Contudo a desigualdade de gecircnero na economia natildeo eacute imposta somente atraveacutes de uma divisatildeo de trabalho desfavoraacutevel16 Ela decorre por conta da elaboraccedilatildeo de leis que tambeacutem instituem direitos desfavoraacuteveis Na legislaccedilatildeo greco-romana os direitos das mulheres de possuir comprar e vender legar e receber legados foram severamente restritos Ademais uma ampla gama de convenccedilotildees culturais e ideoloacutegicas restringiu o progresso econocircmico das mulheres (BERG 2016 p 50)

Em iniacutecios do periacuteodo republicano as mulheres tiveram reduzidas oportunidades para administrar seus proacuteprios negoacutecios Todos os membros femininos da famiacutelia romana se encontravam sob a autoridade legal do paterfamilias17 o chefe masculino da famiacutelia (em geral o progenitor) que tinha

15 Traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Groen-Vallinga (2013 p 297) versatildeo para o portuguecircs minha

16 Tanto as leis quanto a divisatildeo do trabalho foram altamente desfavoraacuteveis agraves mulheres na Antiguidade A divisatildeo do trabalho continua bastante desigual na maioria das sociedades de modo que algumas ocupaccedilotildees ainda satildeo consideradas exclusivamente femininas ou masculinas A quantidade eou a qualidade de qualquer tipo de matildeo de obra atribuiacuteda a um determinado indiviacuteduo tambeacutem foi naturalmente fortemente ditado por fatores diversos aleacutem do gecircnero tais como status social classe riqueza idade cidadania educaccedilatildeo ambiente urbano ou rural (BERG 2016 p 50)

17 Alguns autores suspeitam que a autoridade do paterfamilias romano natildeo era tatildeo absolu-ta quanto se apregoa e pode obscurecer nossa perspectiva da realidade laquoeacute importante olhar cuidadosamente para a forccedila da convenccedilatildeo que provavelmente atenuou o exerciacutecio da autoridade paterna dando agrave matildee muitos direitos efetivos que tinham pouca ou nenhuma base na lei formalraquo (DIXON 1988 p 43)

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prerrogativa em todos os tipos de accedilotildees legais dentre as quais comprar vender contrair diacutevidas intermediar transaccedilotildees etc O poder (potestas) do paterfamilias alcanccedilava todos os membros desta grande famiacutelia romana esposa filhos escravos e outros membros do clatilde natildeo necessariamente ligados por laccedilos de sangue Se uma filha se casasse com o parceiro sob o regime sine manu18 isso significava que ela permanecia sob as ordens de seu pai Caso contraacuterio ela passava para a ldquomatildeordquo (in manu) de seu marido Em alguns casos quando o marido natildeo detinha direitos plenos a mulher podia ficar sob a potestas do seu sogro (BERDOWSKI 2007 p 285)

Em ambos os casos as mulheres natildeo administravam seus proacuteprios bens e sequer tinham direito agrave propriedade conjunta com seus cocircnjuges No entanto se uma mulher permanecia sob a potestas do paterfamilias ela poderia ganhar uma independecircncia relativa apoacutes a morte do pai tornando-se sui iuris19 Este regime juriacutedico eacute apontado por alguns estudiosos como aquele que concedia mais liberdade agraves mulheres embora esta ainda tivesse que estar sob alguma forma de ldquotutela para mulheresrdquo (tutela mulierum)20 Durante a Repuacuteblica o tutor era geralmente algueacutem da famiacutelia patrilinear por exemplo um tio paterno (GRUBBS 2002 p 24) Seu papel era realizar algumas atividades legais e negoacutecios em nome da mulher tais como um testamento transacionar algum tipo de propriedade (res mancipii) ou emancipar escravos etc Berdowski (2007 p 285) defende que este instrumento flexibilizava o poder masculino sobre a mulher jaacute que nem sempre o tutor convivia no mesmo espaccedilo domeacutestico que a mulher e muito provavelmente seu controle natildeo seria tatildeo efetivo assim De tal forma que a partir do final da Repuacuteblica cada vez menos mulheres optaram por regimes que colocavam suas propriedades e a si proacuteprias sob o jugo do marido - ao inveacutes disso elas se tornavam sui iuris apoacutes a morte de seus

18 Segundo Pomeroy (1987 p 177) e Laacutezaro Guillamoacuten (2003 p 157) a partir do seacutec II a C a maioria dos matrimocircnios eram celebrados sob o regime sine manu o que na praacutetica originou um regime de separaccedilatildeo de bens que favoreceu a independecircncia econocircmica da mulher

19 As fontes arqueoloacutegicas indicam que o trabalho tecircxtil das filhas e escravas excediam a esfera domeacutestica embora elas fossem dependentes do pai ou do dono do empreendimento Natildeo eacute difiacutecil imaginar que este contexto pudesse contribuir para que filhas ou escravas pudessem alcanccedilar respectivamente o status de sui iuris ou mesmo de libertas e como tais pudessem seguir dedicando-se profissionalmente ao ofiacutecio ao qual se especializaram (LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 p 175)

20 Parece que o propoacutesito original da instituiccedilatildeo tutela mulierum era salvaguardar a heranccedila paterna da mulher para usufruto dos familiares masculinos do pai que por sua vez seriam seus herdeiros assim que ela morresse (GRUBBS 2002 p 24) Pelo visto sempre foi muito importante que o dinheiro e as propriedades ficassem sob a guarda da famiacutelia originaacuteria o que acabou por influenciar fortemente na evoluccedilatildeo das leis de heranccedila

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pais e adquiriam um tutor ou tutores (DIXON 1988 p 43) Ou seja havia espaccedilo para resistecircncia ainda que fosse velada

Entre o final da Repuacuteblica e iniacutecios do Principado a instituiccedilatildeo da tutela mulierum foi diminuindo em relevacircncia Em 9 d C Otaacutevio Augusto introduziu a ius (trium) liberorum uma lei que liberava do jugo da tutela mulerium as mulheres livres que tivessem parido trecircs filhos e para as libertas quatro (GRUBBS 2002 p 20) O imperador Claudio (41-54 d C) por sua vez aboliu a tutela para as mulheres nascidas livres (BERDOWSKI 2007 p 286)

O direito romano tardio21 seguiu esta loacutegica progressista com o reconhecimento legal dos direitos de heranccedila da matildee e mesmo dos filhos ilegiacutetimos tendecircncia jaacute observada na legislaccedilatildeo do segundo seacuteculo Muitas leis imperiais tardias foram dedicadas agrave bona materna O direito do pai sobre a bona materna foi sendo modificado de forma a que o marido detivesse apenas o usufruto (uso e posse em vida mas natildeo a propriedade absoluta ou o direito de vender e dispor) dos bens que seus filhos viessem a receber pelo lado de sua matildee (GRUBBS 2002 p 220)

Enfim haacute diversas evidecircncias de que a instituiccedilatildeo da tutela mulerium natildeo teria sido determinante para cercear a iniciativa nem a independecircncia econocircmica das mulheres deixando espaccedilo para aquelas que demonstraram habilidades comerciais e foram empreendedoras na antiga Roma (BERG 2016 DIXON 1988 amp 1992 GRUBBS 2002 LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 BERDOWSKI 2007 amp 2008) Havia espaccedilo para promoccedilatildeo social no mundo romano e muitas mulheres estavam no jogo num contexto pautado por ampla diversidade E a Arqueologia pode nos ajudar a comprovar Observem a figura nordm 1 abaixo

21 A fonte mais importante para o conhecimento do direito romano ldquoclaacutessicordquo eacute o Digesto de Justiniano que compreende cinquenta livros selecionados a partir das volumosas contribuiccedilotildees dos mais influentes juristas romanos atraveacutes dos tempos O Digesto foi compilado sob as ordens do imperador Justiniano do seacuteculo VI (reinou entre 527-565 d C) ou seja em periacuteodo bastante posterior ao apreciado neste trabalho mas serve para indicar uma tendecircncia evolutiva Justiniano instruiu sua equipe de juristas a ler milhares de paacuteginas de textos legais claacutessicos e sintetizaacute-los em um trabalho mais exiacuteguo preservando apenas o que ainda era vaacutelido e uacutetil naquele momento histoacuterico Tal medida permitiu que os estudiosos modernos reconstruiacutessem - ainda que de forma indireta e limitada - o conteuacutedo das obras originais que atualmente estatildeo perdidas (GRUBBS 2010 p 1)

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Figura 1 Relevo funeraacuterio em maacutermore de um accedilougueiro 2 d C Fonte Foto Elke Estel Skulpturensammlung Staatliche Kunstsammlungen Dresden Germany Cor-tesia de Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz BerlinStaatliche Kunstsammlungen DresdenElke EstelArt Resource NY In KNAPP 2013 p 75

Acima relevo funeraacuterio do seacutec 2 d C com representaccedilatildeo de cena cotidiana em um accedilougue em Roma indicando de modo claro o trabalho cooperativo o homem fatia as carnes enquanto a mulher toma conta dos livros Observem agora a figura 2

Figura 2 Escultura em relevo ca2 d C Ostia Museo Ostiense Ostia Antica Itaacutelia Inv 134 Fonte Foto Schwanke (Neg 19803236) Cortesia The Deutsches Archaumlologisches Institut em

Roma In KNAPP 2013 p 75

Temos acima uma escultura em relevo (ca 2 d c) com representaccedilatildeo de cena cotidiana no mercado duas mulheres trabalhando em uma loja atendendo os clientes na compra de gecircneros alimentiacutecios Outra atividade profissional desempenhada por mulheres pode ser depreendida a partir da

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figura 3 abaixo onde apresento mais uma representaccedilatildeo de cena cotidiana no comeacutercio da cidade monumento funeraacuterio datado entre o 1 e o 2 seacutec d C dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia que exercia uma profissatildeo que eacute considerada masculina ateacute os dias atuais Seraacute que as melhores fabricantes de sapatos em tempos romanos foram as mulheres A saber

Figura 3 monumento funeraacuterio dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia data-do entre o seacutec 1 a 2 d C Fonte (CIL 144698 apud LOacuteVEN 2016 p 210)

Enfim as figuras 1 2 e 3 representam mulheres em diferentes atuaccedilotildees profissionais e reforccedilam as evidecircncias que elas faziam parte do mercado de trabalho no mundo romano Este tipo de trabalho escultoacuterio era encomendado por interessados de diversos niacuteveis sociais e natildeo haacute motivos para supor que os artistas representassem cenas fictiacutecias ou imaginaacuterias

A discriminaccedilatildeo de gecircnero sem duacutevida circunscreveu a realidade do mercado de trabalho urbano romano mas isso natildeo deve nos cegar para as variadas e vitais contribuiccedilotildees das mulheres romanas para a economia

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Dispomos de documentaccedilatildeo arqueoloacutegica comprovando que as mulheres tinham ocupaccedilotildees muito amplas que vatildeo desde sapateiras ateacute escravas que fizeram da fiaccedilatildeo (quasillaria) suas vidsa Eacute necessaacuterio explicar ao inveacutes de justificar a ocorrecircncia regular de mulheres romanas que natildeo coincidem perfeitamente com a imagem da matrona domeacutestica (GROEN-VALLINGA 2013 p 296)

O trabalho feminino e a epigrafia

A epigrafia se apresenta como uma fonte direta de informaccedilotildees pois foram pessoas de diferentes estatutos juriacutedicos que mandaram realizar as inscriccedilotildees que tomando-se as devidas precauccedilotildees podem oferecer dados capazes de apoiar algumas conclusotildees vaacutelidas (MEDINA QUINTANA 2014 p 22) Portanto essa ciecircncia tem sido utilizada para elucidar aspectos da economia romana e para evidenciar os papeacuteis econocircmicos das mulheres Cabe aqui ressaltar o trabalho inovador que foi desenvolvido por Susan Treggiari que publicou trecircs artigos sobre as ocupaccedilotildees femininas (1975 1976 e 1979) baseados nas evidecircncias epigraacuteficas da cidade de Roma no periacuteodo imperial revelando uma tendecircncia de grande interesse pela histoacuteria das mulheres no final do seacutec XX Seu estudo recuperou imensa quantidade de dados acerca das ocupaccedilotildees profissionais femininas existentes na casa imperial e equipes domeacutesticas de famiacutelias abastadas na cidade de Roma bem como entre os setores artesanais e comerciais da cidade A pesquisa alcanccedilou vaacuterias conclusotildees importantes sobre empregos masculinos e femininos e representa uma contribuiccedilatildeo valiosa para o tema Infelizmente natildeo inspirou pesquisas subsequentes capazes de oferecer uma continuaccedilatildeo adequada em relaccedilatildeo aos temas que ela desenvolveu Portanto o trabalho de Treggiari continua atual e representa um formidaacutevel ponto de partida para novos estudos sobre os papeacuteis ocupacionais das mulheres romanas (LOVEacuteN 2016 p 201)

O principal corpus disponiacutevel para a Peniacutensula Ibeacuterica eacute o CIL - Corpus Inscriptionum Latinarum a primeira grande coleccedilatildeo epigraacutefica iniciada por Theacuteodor Mommsen em meados do seacuteculo XIX haacute tambeacutem diversas revistas especializadas sobre epigrafiacutea tais como LrsquoAnneacutee Epigraphique Hispania Epigraphica ou Hispania Antiqua Epigraphica que tecircm sido atualizadas a partir da incorporaccedilatildeo de novas inscriccedilotildees ou de renovadas interpretaccedilotildees de epiacutegrafes jaacute conhecidas Haacute tambeacutem recompilaccedilotildees de epiacutegrafes romanas localizadas nas proviacutencias linha que Geacuteza Alfoumlldy iniciou em 1975 com as inscriccedilotildees de Tarraco (GOROSTIDI 2013 pp 135-143 MEDINA QUINTANA 2014 p 22)

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As mulheres fiandeiras

Dentre os trabalhos tipicamente relegados agraves mulheres um se destaca o ofiacutecio de fiar latilde ou lanificium siacutembolo da feminilidade da bondade e da castidade Uma das imagens ideais de feminilidade no mundo antigo eacute representado por uma mulher fiando Ao longo da histoacuteria o imaginaacuterio patriarcal se apropriou desta icocircnica atividade para apresentar como deveria ser o comportamento ideal de toda mulher respeitaacutevel quieta trabalhadora e pudica - o que nos remete agrave imagem da fiel Peneacutelope sempre ocupada com seu tear e aguardando o retorno de Odisseu seu marido A figura das fiandeiras se encontra bastante representada na iconografia greco-romana de tal modo que a boa esposa dos ideais greco-romanos conseguiu transcender esses mundos e permaneceu viva no imaginaacuterio burguecircs Talvez por essa razatildeo vaacuterios estudos exploraram a relaccedilatildeo entre as mulheres e o mundo tecircxtil seja sob o vieacutes simboacutelico ou instrumental O fuso e roca satildeo portanto dois elementos associados com o feminino sendo apresentadas sob as mais diversas representaccedilotildees peccedilas de teatro objetos da vida cotidiana (vasos acircnforas espelhos) enxovais mosaicos pinturas parietais estelas funeraacuterias (MEDINA QUINTANA 2009 p 52) Vejam abaixo uma das representaccedilotildees de Peneacutelope em um vaso de figuras negras do seacutec V a C

Figura 4 Peneacutelope em seu tear assistida por Telecircmaco representado em um skyphos do seacuteculo V a C Fonte lthttpwwwperseustuftseduhopperimageimg=Perseusimage1993010667gt Acesso em 26122017

Diante destas questotildees podemos sugerir que a produccedilatildeo de tecidos rompia as barreiras sociais e unia todas as romanas uma vez que esta atividade representa um ldquofiordquo condutor entre as matronas de famiacutelia de alta posiccedilatildeo

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econocircmica suas escravas e as mulheres livres de baixa condiccedilatildeo social que desempenhavam a atividade para obter seu sustento Cada grupo feminino mantinha relaccedilatildeo muito peculiar com esta atividade com certeza muito diferentes entre si No caso das aristocratas consistia mais numa representaccedilatildeo simboacutelica - especialmente durante os finais da Repuacuteblica (133-31 a C) e o Principado (31 a C - 284 d C) - enquanto que para as escravas e as mulheres livres de condiccedilatildeo humilde representou um ofiacutecio verdadeiro (idem 2009 53) Presume-se que uma das razotildees para que este trabalho fosse tatildeo difundido na Antiguidade se deve por ter alccedilado o status de uacuteltimo recurso de sobrevivecircncia das mulheres pobres livres detendo a mesma importacircncia que a costura teve para a histoacuteria do trabalho feminino no seacuteculo XIX (TREGGIARI 1979 p 69)

Fulvia Lintearia em Tarraco

Para o caso da Hispacircnia romana Cartago Nova e Tarraco foram centros portuaacuterios artesanais cosmopolitas intimamente ligados agrave Roma e ldquoconectadosrdquo com as uacuteltimas tendecircncias contando com elevado percentual populacional de cidadatildeos fluentes em latim tais como soldados membros da administraccedilatildeo provincial negociantes e comerciantes Satildeo oriundas destas duas cidades as mais conhecidas epiacutegrafes latinas em pedra na Hispacircnia para o periacuteodo Republicano muitas delas estatildeo ligadas agrave esfera civil e religiosa fazendo parte de grandes complexos sepulcrais alguns com esculturas de togados sinalizando a ligaccedilatildeo entre epigrafia e monumentalizaccedilatildeo enquanto outras refletem suas crenccedilas religiosas Com frequecircncia satildeo epitaacutefios e nestas duas cidades a epigrafia latina se apresenta como um trabalho sobretudo encomendado por particulares (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 42-43)

Tarraco22 foi uma das cidades mais prestigiadas da Antiguidade Laacute podemos identificar um grupo de mulheres e homens membros da elite social da eacutepoca graccedilas agrave epigrafia preservada (DOMINGUEZ ARRANZ GREGORIO NAVARRO 2014 p 253) Felizmente nos tempos antigos era comum utilizar a pedra como suporte para inscriccedilatildeo de textos o que permitiu que recuperaacutessemos parte da histoacuteria desses povos Vale lembrar que este conjunto de epiacutegrafes conservadas representa iacutenfima fraccedilatildeo da produccedilatildeo escrita destas sociedades jaacute que os suportes da escrita que eles costumavam utilizar eram materiais mais baratos de origem mineral vegetal e animal

22 ldquoDentre as cidades da Hispacircnia romana a Colonia Iulia Urbs Triumphalis Tarraco eacute aquela com o mais rico patrimocircnio epigraacutefico () Eacute inestimaacutevel para o estudo da histoacuteria da cidade e do mundo em geral bem como a histoacuteria social (ALFOumlLDY apud GOROSTIDI 2013 p 135)

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tais como o pergaminho o papiro tabuletas de madeira placas de argila ou cera peles e etc Mas a natureza pereciacutevel destes materiais os condenou ao desaparecimento salvo rariacutessimas exceccedilotildees como as tabuletas encontradas em Vindolanda ou na Campacircnia (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 21-22)

Como jaacute aludido muito frequentemente as inscriccedilotildees funeraacuterias aludem ao trabalho em latilde que a defunta realizava (lanifica) Mas este universo era mais complexo e diversificado as artesatildes se especializavam de acordo com a fibra empregada Por exemplo a especialista em fiar o linho23 eacute a lintearia Beltraacuten Lloris e Estaraacuten Tolosa (2011 18) vatildeo aleacutem e natildeo soacute confirmam que a palavra lintearia se refere agrave profissatildeo de tecedora de linho bem como que esta ocupaccedilatildeo sem duacutevida ocorria na cidade de Tarraco haja visto que esta era conhecida pelo cultivo da planta que produz esta fibra como jaacute foi aludido por Pliacutenio o Velho (PLIacuteNIO Hist Nat XIX 10) Pois bem algueacutem em Tarraco dedicou uma epiacutegrafe para Fulvia lintearia (datada por volta da mudanccedila de Era inscriccedilatildeo hoje desaparecida) Medina Quintana (2009 p 61) esclarece que lintearia significa ldquovendedora de lenccedilosrdquo Treggiari (1979 p 70) acrescenta que provavelmente ela seria uma vendedora de roupas e que ela proacutepria deveria fiar o tecido para produzir as peccedilas que vendia

Devo ressaltar mais uma vez o trabalho de Geacuteza Alfoumlldy (1935ndash2011) apontado como o mais proeminente cientista no campo da epigrafia latina claacutessica e um dos principais especialistas no campo da Histoacuteria Social do mundo romano - que dedicou parte de sua trajetoacuteria acadecircmica ao levantamento epigraacutefico da cidade de Tarraco Em seguida dispomos a inscriccedilatildeo perdida tal como foi registrada pelo ceacutelebre professor

Fulvia lintearia

(CIL 02 04318a apud ALFOumlLDY 1975 p 1)

Abaixo a figura 5 sugere como deveria ser a aparecircncia de uma loja de tecidos no mundo romano

23 O linho proveacutem de uma planta herbaacutecea que chega a atingir um metro de altura e pertence agrave famiacutelia das linaacuteceas Abrange um certo nuacutemero de subespeacutecies reunidas pelos botacircnicos sob o nome de Linum Usitatissimum Fonte Wikipeacutedia

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Figura 5 Estabelecimento de comeacutercio de tecidos Florenccedila Itaacutelia I d C Fonte (GLAD sd 2)

O casal enquanto unidade de produccedilatildeo

Nosso objetivo neste trabalho foi traccedilar um panorama geral de como podemos alcanccedilar a histoacuteria econocircmica das mulheres romanas atraveacutes da Arqueologia e de uma abordagem multidisciplinar adotando uma postura acadecircmica pautada pela equidade preocupada com a igualdade de gecircnero - obviamente sem a pretensatildeo de esgotar o tema Esta pesquisa pretende conscientizar que apesar das restriccedilotildees legais ideoloacutegicas e culturais pelas quais as mulheres passaram e continuam passando elas sempre desempenharam papel primordial na economia de todos os tempos Podemos resgatar suas trajetoacuterias natildeo somente como forccedila de trabalho como tambeacutem podemos destacar sua atuaccedilatildeo empreendedora lutando empenhadas em fazer sobreviver a famiacutelia e gerar sua descendecircncia aleacutem da de seu marido perpetuando um sistema As mulheres romanas se envolveram com certeza em atividades comerciais e negoacutecios em geral decerto natildeo de forma equivalente mas similar aos homens Mas natildeo soacute atuaram sempre como as inseparaacuteveis companheiras configurando-se como a outra variaacutevel da mesma equaccedilatildeo parte indissociaacutevel do casal enquanto unidade de produccedilatildeo Para os homens do povo as mulheres representavam uma oportunidade de viver mais e melhor de trabalhar e prosperar de aumentar sua qualidade de vida e garantir suas chances de transmitir seus genes adiante cumprindo o papel bioloacutegico original de ambos os sexos A uniatildeo faz a forccedila A ideia eacute antiga mas eficiente Para

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a iconografia romana do periacuteodo o gesto do dextrarum iunctio ndash o famoso aperto de matildeos direitas ndash quando realizada entre um homem e uma mulher geralmente retrata um casal legalmente casado representando um siacutembolo da uniatildeo pelo bem comum que visa instintivamente agrave perpetuaccedilatildeo da espeacutecie Tal como demonstra a figura 6 abaixo

Figura 6 Placa funeraacuteria do lanarius de C Cafurnius Antonchus e de sua esposa Veturia Deuteria em Roma ca1 d C Fonte (CIL 69489 apud LOacuteVEN 2016 p 213)

Em suma para prosperar de forma efetiva o homem precisa da mulher provavelmente mais do que a mulher precisa do homem Mas esta polecircmica fica para pesquisas posteriores

Trabalho feminino hoje

Desde o Periacuteodo Claacutessico ateacute bem recentemente o mundo do trabalho feminino seguiu sem grandes modificaccedilotildees durante milecircnios ateacute que as revoluccedilotildees do seacuteculo XIX promoveram as mudanccedilas necessaacuterias para que novos sistemas educativos permitissem o acesso da mulher agrave cultura promovendo sua atuaccedilatildeo fora de casa e sua incorporaccedilatildeo agrave toda uma seacuterie de trabalhos que num primeiro momento representaram um mero prolongamento das tarefas desempenhadas no acircmbito domeacutestico ateacute que com o tempo foram ampliando sua participaccedilatildeo nos setores reconhecidamente produtivos (BENGOOCHEA JOVE 1998 p 242)

A partir da consolidaccedilatildeo do sistema capitalista do advento do movimento sufragista e da luta pelo direito agrave representaccedilatildeo poliacutetica a evoluccedilatildeo

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da legislaccedilatildeo no que se refere aos direitos das mulheres evoluiu respondendo aos novos anseios da sociedade Apesar destas conquistas a desigualdade e exploraccedilotildees continuaram a ocorrer Natildeo obstante apoacutes as 1ordf e 2ordf Guerras Mundiais as mulheres tiveram a efetiva chance de ocupar seu espaccedilo no mercado de trabalho e desde entatildeo elas tecircm feito a diferenccedila No que se refere ao mundo ocidental estatiacutesticas apontam que as mulheres estatildeo avanccedilando em todas as aacutereas Elas respondem pela maior parte das vagas nas universidades Estatildeo conseguindo emprego com mais facilidade e seus rendimentos estatildeo crescendo em ritmo mais acelerado Contudo mesmo apoacutes tanta luta ainda natildeo alcanccedilaram posiccedilatildeo de igualdade perante os homens haja visto que continuam ocorrendo discriminaccedilotildees asseacutedios violecircncias e preconceitos que podem ser exemplificadas pela desigualdade salarial que persiste entre homens e mulheres na ordem de 30 em meacutedia Como se jaacute natildeo bastasse a representatividade das mulheres na poliacutetica e seu acesso aos cargos mais elevados do mundo corporativo e do serviccedilo puacuteblico continuam deixando muito a desejar

Isto posto fica claro de que as mulheres jaacute caminharam muito mas ainda haacute um longo caminho pela frente Contudo elas contam agora com o apoio de muitos homens que satildeo aderentes agrave sua causa e de vieses interpretativos que privilegiam a igualdade Eacute um processo que natildeo tem retorno Embora estejamos permanentemente agraves voltas com as reaccedilotildees do conservadorismo seraacute como jaacute o dissemos a rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade (BENGOOCHEA JOVE1998 p 243)

Contudo para continuarmos caminhando na direccedilatildeo da justiccedila sempre vamos precisar de mulheres que natildeo se conformam com as imposiccedilotildees da sociedade que sejam transgressoras ousadas valentes excecircntricas e fujam das normas recusem casamentos tranquilos e abram matildeo da paz do lar domesticado para descobrirem outros rumos ou para encontrarem-se consigo mesmas produzindo novos modos de estar no mundo A leitura feminista do passado permite um fortalecimento de si e das outras no presente (RAGO 2013 p 311)

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Abstract Much ink has been spilled about gender in the Roman world Nonetheless something seems to be lacking the part that is up to the women in economic production of this society Past present or future women constitute at least half the population around the globe an indispensable working force either in ancient or modern times We know that since the beginning of the ages most women were forced to work hard in tedious and repetitive tasks arbitrarily imposed The activities used to start as early as childhood and it had never been properly recognized The aim of this work is therefore to recover the role of the womenrsquos work in the economies of Roman Hispania with special attention to the case of Tarraco starting from the end of the Roman Republic until the Principate Period raising local and elsewhere evidence to show the position women deserve in the economic production of Roman societyKeywords Classical studies Roman economy Womenrsquos work Gender studies Postmodernism

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Normas de Publicaccedilatildeo

Normas de Publicaccedilatildeo

A Heacutelade eacute estruturada em trecircs seccedilotildees

a) Dossiecircs

b) Artigos de tema livre

c) Resenhas

Os dossiecircs satildeo propostos pelo Conselho Editorial que pode tanto convidar especialistas no tema quanto receber contribuiccedilotildees de autores interessados As chamadas satildeo puacuteblicas e feitas a cada ediccedilatildeo da revista Os artigos de tema livre podem abordar questotildees diversas desde que versem sobre a Antiguidade Seratildeo aceitas resenhas de livros ou coletacircneas com temaacuteticas associadas agrave Antiguidade que tenham sido publicados haacute pelo menos trecircs anos (considerando a data de envio da resenha)

Instruccedilotildees aos autores

- Exige-se que os autores tenham pelo menos o tiacutetulo de mestre Alunos de graduaccedilatildeo poderatildeo publicar artigos desde que em coautoria com doutores

- Todos os artigos satildeo avaliados por pelo menos dois pareceristas ad-hoc externos e anocircnimos no sistema de avaliaccedilatildeo por pares (duplo-cego) A publicaccedilatildeo depende tanto de sua aprovaccedilatildeo quanto da decisatildeo final do Conselho Editorial que pode recusar caso natildeo julgue adequado para compor a ediccedilatildeo

- Seratildeo aceitos artigos ineacuteditos escritos em portuguecircs francecircs inglecircs espanhol e italiano

- Os autores satildeo responsaacuteveis pela revisatildeo geral do texto

- Todas as propostas devem ser enviadas exclusivamente para o e-mail revistaheladegmailcom

Formato dos artigos

Todos os artigos deveratildeo ser enviados em formato Word (doc ou docx) margens 3 cm A4 fonte Times New Roman 12 pt Os tiacutetulos devem ser centralizados em caixa alta e negrito Abaixo do tiacutetulo agrave direita em itaacutelico e caixa normal deve constar o nome do autor com uma nota de rodapeacute indicando a maior titulaccedilatildeo a filiaccedilatildeo institucional e um e-mail para contato Em seguida

os resumos e palavras-chave em portuguecircs e liacutengua estrangeira alinhadas agrave esquerda No corpo do artigo todas as citaccedilotildees com mais de trecircs linhas devem ser destacadas As citaccedilotildees devem ser feitas da seguinte forma

- Se forem indicaccedilotildees bibliograacuteficas devem ser inseridas no corpo do texto entre parecircnteses Em caso de produccedilatildeo historiograacutefica deveraacute ser feita com sobrenome do autor ano e paacuteginas Exemplo (FINLEY 2013 p 71)

- Para citaccedilatildeo de textos antigos a indicaccedilatildeo seraacute feita com o nome do autor tiacutetulo da obra em negrito cantocapiacutetulo e passagem Exemplo (HOMERO Iliacuteada III 345)

- No caso de notas explicativas numerar e remeter ao final do artigo

Apoacutes o uacuteltimo paraacutegrafo dos artigos devem constar as Referecircncias lis-tadas em ordem alfabeacutetica pelo sobrenome do autor seguindo as normas da ABNT (NBR 10520) como nos exemplos

Para livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Ed-itora ano

Ex FINLEY Moses I Economia e Sociedade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

Para capiacutetulo de livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do Artigo In SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Editora ano p

Ex THOMAS Rosalind Ethnicity Genealogy and Hellenism in Herodo-tus In MALKIN Irad Ancient Perceptions of Greek Ethnicity Washing-ton DC Harvard University Press 2001 p 213-234

Para artigos de perioacutedicos

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do artigo Tiacutetulo do Perioacutedico Cidade v n ano p

Ex CARDOSO Ciro Flamarion O Egito e o Antigo Oriente Proacuteximo na segunda metade do segundo milecircnio aC Heacutelade Niteroacutei v 1 n 1 2000 p 16-29

Em caso de utilizaccedilatildeo de fontes especiais (grego aacuterabe hieroacuteglifo etc) o autor deveraacute enviar uma coacutepia das mesmas Caso utilize imagens aleacutem de constarem no corpo do texto as mesmas deveratildeo ser enviadas separadamente em uma resoluccedilatildeo de 300 dpi

wwwheladeuffbr

Page 6: HÉLADE - Volume 3, Número 3helade.uff.br/helade_v3_n3_edicaocompleta.pdf · 2018. 9. 20. · 3 O primeiro número da nova série (v. 1, n. 1) foi uma edição especial em que convidamos

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EditorialA diversidade teoacuterico-metodoloacutegica foi assegurada pela ampla participaccedilatildeo de pesquisadores e pesquisadoras de Histoacuteria Letras Psicologia Filosofia e Arqueologia A pluralidade de temas tambeacutem ficou marcada por artigos que versavam sobre questotildees associadas agrave Antiguidade Claacutessica ao Antigo Oriente Proacuteximo e ao Ensino de Histoacuteria Em relaccedilatildeo agrave origem institucional dos autores os nuacutemeros indicam uma crescente ampliaccedilatildeo do escopo da revista e a recusa intransigente a qualquer possibilidade de endogenia A maioria dos participantes estaacute vinculada a universidades brasileiras6 (803)

6 Lista de universidades brasileiras participantes Universidade Regional de Blumenau (FURB)

Universidade do Estado do Amapaacute (UEAP) Universidade Estadual do Maranhatildeo (UEMA)

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Universidade Federal do Espiacuterito Santo

(UFES) Universidade Federal Fluminense (UFF) Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Universidade Federal do Paranaacute (UFPR)

Universidade Federal do Recocircncavo da Bahia (UFRB) Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC) Universidade de Brasiacutelia (UnB) Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) Universidade Federal de Satildeo Paulo (UNIFESP) Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Editorial

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mas a diversidade institucional dos autores estrangeiros7 (197 do total) sinaliza uma tendecircncia bastante significativa de internacionalizaccedilatildeo da Heacutelade No total foram vinte universidades brasileiras e dez universidades estrangeiras representadas por seus autores ao longo desse primeiro triecircnio

A preocupaccedilatildeo com a divulgaccedilatildeo dos trabalhos tambeacutem marcou e consolidou a participaccedilatildeo ativa da Heacutelade nas redes sociais em particular no Facebook (httpswwwfacebookcomrevistaheladeuff) Atualmente nessa rede social 4755 usuaacuterios acompanham nossas publicaccedilotildees Aleacutem de replicarmos notiacutecias relativas agrave Antiguidade divulgarmos a abertura de concursos puacuteblicos entrevistas lanccedilamentos editoriais e nuacutemeros de revistas tambeacutem dedicadas ao estudo do mundo antigo a divulgaccedilatildeo dos dossiecircs aproximou a Histoacuteria Antiga de um puacuteblico muitas vezes privado do acesso agrave produccedilatildeo acadecircmica pela forma com que nosso campo se estrutura O iacutendice de alcance das publicaccedilotildees eacute um poderoso indicativo desse movimento O uacuteltimo dossiecirc publicado Etnicidade e as Poliacuteticas das Identidades nas Sociedades Antigas (v 3 n 2) teve um alcance de 36272 pessoas Nuacutemero decerto bastante expressivo mas em nada equiparado ao de temaacuteticas que dialogam diretamente com questotildees poliacuteticas em que estamos diretamente envolvidos no presente da vida social O dossiecirc Golpes e Formas de Resistecircncia na Antiguidade (v 3 n 1) por exemplo atingiu 51116 pessoas menos da metade das 127540 pessoas alcanccediladas pelo dossiecirc Homoerotismo na Antiguidade (v 2 n 3) Esta atuaccedilatildeo atraveacutes das redes sociais seraacute ampliada no iniacutecio de 2018 com a construccedilatildeo de uma paacutegina no Academiaedu

A Heacutelade eacute resultado do envolvimento coletivo dos membros do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA) vinculado ao Departamento de Histoacuteria e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF) Trata-se de uma iniciativa somente possiacutevel no marco de um trabalho em equipe que envolve editores assistentes de ediccedilatildeo conselho editorial e conselho consultivo O crescimento e consolidaccedilatildeo da Heacutelade tambeacutem eacute a expressatildeo do suporte assegurado pela universidade puacuteblica e pelo trabalho que busca recrudescer seu caraacuteter democraacutetico assegurando o compromisso com uma instituiccedilatildeo que

7 Lista de universidades estrangeiras participantes Universidad Central de Venezuela Universidad

de Alicante Universidad de Moroacuten Universidad Nacional de Mar del Plata Universidade Aberta

de Lisboa Universitagrave degli studi di Roma ldquoTor Vergatardquo Universitagrave degli Studi di Verona

University of London Newcastle University e Universidade de Coimbra

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Editorial

deve ser sempre gratuita e cada vez mais apta a fomentar ensino pesquisa e extensatildeo de qualidade Ainda que os nuacutemeros ajudem a produzir uma siacutentese do trabalho realizado nesse triecircnio e forneccedilam dados estatiacutesticos para os planejamentos futuros eles satildeo incapazes de representar nosso contentamento pelo acolhimento da revista A equipe da Heacutelade agradece os leitores assim como aos autores dos artigos que tambeacutem possibilitam que este trabalho aconteccedila Seguiremos com a mesma disposiccedilatildeo

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O FEMININO COMO lsquoOUTROrsquo UMA ABORDAGEM ACERCA DA ALTERIDADE NA ANTIGUIDADE GREGA

Talita Nunes Silva Gonccedilalves1

Resumo O presente artigo visa fazer uma breve discussatildeo sobre o conceito de alteridade e seu uso nas pesquisas referentes a antiguidade grega para posteriormente abordar a construccedilatildeo da identidade helecircnica e mais especificamente a do cidadatildeo ateniense por meio da contraposiccedilatildeo com o femininoPalavras-chaves Identidade alteridade cidadatildeo Atenas feminino

Este artigo tem por objetivo inicial apresentar como o conceito de lsquoalteridadersquo tem sido abordado nas pesquisas em Histoacuteria Antiga e particularmente na Antiguidade Grega Num segundo momento propomos uma reflexatildeo concernente agrave construccedilatildeo da identidade helecircnica em contraposiccedilatildeo a figura do lsquoOutrorsquo o que se deu principalmente apoacutes o fim das guerras contra os persas Por uacuteltimo abordamos a alteridade feminina e a sua particularidade de se constituir um lsquoOutrorsquo dentro da proacutepria cultura grega e especificamente na ateniense

A noccedilatildeo moderna de lsquoalteridadersquo surge na deacutecada de 1960 no bojo dos estudos feministas e das pesquisas relativas aos esquecidos isto eacute aos excluiacutedos da histoacuteria (dentre os quais podemos citar as mulheres os escravos e os pobres) Tais estudos refletem intensamente sobre o significado deste conceito na sociedade As concepccedilotildees relativas agrave lsquoalteridadersquo se disseminaram por outros campos de estudo como a antropologia e a ciecircncia poliacutetica por meio da adaptaccedilatildeo gradativa das ideias do filoacutesofo Emmanuel Leacutevinais Seu pensamento encontra-se articulado em Alteriteacute e transcendance (1995) obra que reuacutene uma coleccedilatildeo de artigos publicados entre a deacutecada de 60 e o final dos anos 80

1 Doutora em Histoacuteria Antiga e professora substituta da Universidade Federal Fluminense Endereccedilo eletrocircnico talitanunesuolcombr

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Raphaeumll Weyland pesquisador que trabalhou com o tema Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (2012) ao refletir sobre a lsquoalteridadersquo pondera que os trabalhos publicados nos uacuteltimos anos sobre o assunto ldquonos mostram que cada um rejeita por meio da figura do lsquooutrorsquo (uma figura externa) as caracteriacutesticas que sua cultura considera negativasrdquo (WEYLAND 2012 p 4) O autor observa que ldquoeste lsquooutrorsquo natildeo eacute necessariamente eacutetnico ele pode ser tambeacutem econocircmico sexual ou mesmo poliacutetico O estudo da maneira como o outro eacute representado permite portanto compreender melhor os valores importantes da sociedade do emissor destas opiniotildees

O trabalho de Weyland relativamente recente mostra que a noccedilatildeo de lsquoalteridadersquo e os questionamentos suscitados por ela alcanccedilaram igualmente as pesquisas em histoacuteria antiga Haacute um bom nuacutemero de publicaccedilotildees que se inserem nesta perspectiva dentre as quais podemos destacar o livro O espelho de Heroacutedoto (1999) do historiador francecircs Franccedilois Hartog Esta obra tem sido desde sua publicaccedilatildeo muito importante para a reflexatildeo relativa agrave alteridade e a maneira como ela foi descrita Neste livro Hartog se concentra especialmente sobre o modo como Heroacutedoto descreveu os costumes dos citas e apresenta as contradiccedilotildees entre os relatos do historiador antigo e os dados arqueoloacutegicos Por meio da anaacutelise das Histoacuterias de Heroacutedoto o historiador francecircs busca examinar a lsquopsiquecircrsquo grega Para Hartog a identidade de um povo na antiguidade eacute definida pela documentaccedilatildeo textual por meio da contraposiccedilatildeo a um lsquooutrorsquo A identidade grega seria portanto delineada em oposiccedilatildeo agraves caracteriacutesticas de outros povos Obras como as de Edith Hall Inventing the Barbarian (1989) e de Paul Cartledge The Greeks A Portrait of Self and Others (1993) se inserem igualmente nesta perspectiva

Quanto agraves publicaccedilotildees mais recentes destacamos aqui Rethinking the Other in Antiquity (2011) de Erich Gruen The Invention of Racism in Classical Antiquity (2004) de Benjamin Isaac e The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus (2012) de Joseph Edward Skinner A escolha por mencionar estas obras se deve a fornecerem um indicativo das discussotildees atuais referentes agrave questatildeo lsquoalteridadersquo e lsquoantiguidadersquo Gruen se concentra nos gregos romanos e judeus enquanto Isaac nos dois primeiros e Skinner especificamente na Greacutecia antiga Erich Gruen busca se contrapor aos trabalhos publicados sobre alteridade na documentaccedilatildeo antiga Ele critica a visatildeo prevalecente entre os classicistas de que os povos da antiguidade reforccedilavam sua auto-percepccedilatildeo se contrapondo com o lsquoOutrorsquo frequentemente atraveacutes de estereoacutetipos e caricaturas hostis Gruen pretende mostrar como as atitudes dos antigos com relaccedilatildeo ao lsquoOutrorsquo natildeo expressam simplesmente contraste e alienaccedilatildeo

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mas tambeacutem constantemente reciprocidade e conexatildeo No entanto acaba exagerando a importacircncia das passagens que descrevem o lsquoOutrorsquo de forma positiva Jaacute Benjamin Isaac reitera a persistecircncia dos comentaacuterios negativos com relaccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo povos na documentaccedilatildeo antiga Isaac procura refutar a crenccedila comum de que os antigos gregos e romanos nutriam preconceitos eacutetnicos e culturais mas natildeo raciais Sua definiccedilatildeo de lsquoracismorsquo e o fato de se concentrar na documentaccedilatildeo textual tem sido criticados

Quanto ao livro de Skinner seu objetivo eacute suplantar a visatildeo tradicional de que a etnografia grega eacute um feito do seacuteculo V aC O autor analisa os escritos deixados pelos grandes autores da antiguidade com o intuito de perceber como os gregos antigos representavam outros povos e a si mesmos Neste sentido busca mostrar que os discursos de alteridade e identidade satildeo na realidade muito mais antigos do que os apresentados na literatura etnograacutefica relativa agraves guerras entre gregos e persas Skinner vecirc o percurso da etnografia grega como comeccedilando com Homero e segue este movimento ateacute Heroacutedoto Para ele a obra deste historiador antigo fundamental para a etnografia helecircnica delimita o que eacute ser grego Com relaccedilatildeo a este aspecto isto eacute ao que eacute ser grego Jonathan Hall reconhece a guerra contra os persas como um momento decisivo no modo como os helenos concebiam sua proacutepria identidade Ateacute entatildeo observa o autor a afiliaccedilatildeo eacutetnica (identidade eacutetnica) era preponderante na construccedilatildeo da auto-identidade helecircnica

Em Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture (2002) Jonathan Hall define a etnicidade Destacamos aqui alguns dos elementos de sua definiccedilatildeo 1) O grupo eacutetnico eacute uma auto-definiccedilatildeo de uma coletividade social que se constitui em oposiccedilatildeo a outros grupos de uma ordem semelhante 2) Liacutengua religiatildeo traccedilos culturais e elementos bioloacutegicos podem parecer ser marcadores de identificaccedilatildeo mas em uacuteltima instacircncia eles natildeo definem o grupo eacutetnico Eles satildeo marcadores superficiais 3) Os elementos centrais que determinam a participaccedilatildeo no grupo eacutetnico - e o distingue das demais coletividades sociais - satildeo uma suposta descendecircncia comum e parentesco uma associaccedilatildeo a um territoacuterio especiacutefico e um sentido histoacuterico compartilhado Nesta definiccedilatildeo a descendecircncia e parentesco comum (fictiacutecio ou natildeo) assumem uma posiccedilatildeo central Jonathan Hall no entanto argumenta que a base definidora da identidade helecircnica mudou de eacutetnica para um criteacuterio cultural durante o seacuteculo V aC Para Hall assim como para a maioria dos historiadores a guerra contra os persas fez entrar em cena a figura do baacuterbaro que passou a ser equivalente a lsquonatildeo-gregorsquo A emergecircncia da imagem estereotipada do baacuterbaro no seacuteculo V aC foi frequentemente considerada como um fator fundamental para a auto-

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definiccedilatildeo helecircnica Entretanto regularmente se supocircs que helenos e baacuterbaros eram categorias irremediavelmente opostas

Contrariamente a essa posiccedilatildeo Jonathan Hall considera que mais comumente os baacuterbaros natildeo eram vistos como uma categoria diametralmente oposta Pois se considerava que poderiam ser incluiacutedos entre os helenos Isto eacute um baacuterbaro poderia se tornar grego se adotasse a liacutengua os costumes e as praacuteticas gregas Para hall a possibilidade desse cruzamento soacute era possiacutevel porque a identidade grega passara a ser compreendida primeiramente em termos culturais O historiador observa tambeacutem que a definiccedilatildeo de helenicidade no Livro VIII das Histoacuterias de Heroacutedoto coloca os laccedilos de sangue no mesmo niacutevel dos criteacuterios culturais Contudo no plano de fundo das Histoacuterias as consideraccedilotildees culturais acabam por superar as noccedilotildees eacutetnicas nas definiccedilotildees dos grupos populacionais Jonathan Hall observa que mesmo em Tuciacutedides os baacuterbaros aparecem num estaacutegio de desenvolvimento cultural mais primitivo do que os gregos Mas haacute uma suposiccedilatildeo impliacutecita de que os baacuterbaros podem se tornar mais helecircnicos por meio da convergecircncia cultural Os escritores antigos do seacuteculo V aC mas tambeacutem do IV aC conceberiam assim as diferenccedilas humanas em termos mais culturais

Neste sentido Geneviegraveve Proulx em Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens (2008) pontua que Heroacutedoto ao desenvolver o tema central de suas Histoacuterias (as guerras entre os gregos e persas) e considerar a questatildeo das diferenccedilas culturais acaba por conceder um lugar agraves mulheres no estudo dos nomoi dos baacuterbaros Deste modo as atividades das mulheres nas exposiccedilotildees etnograacuteficas tornam-se importantes criteacuterios de descriccedilotildees Das 375 ocorrecircncias de mulheres nas Histoacuterias segundo Carolyn Dewald em Women and culture in Herodotusrsquo Histories (1981) 212 as apresentam como ativas (agindo de vaacuterias maneiras) e neste caso mais da metade das ocorrecircncias se encontram em descriccedilotildees etnograacuteficas Aleacutem disso Geneviegraveve Proulx mostra que as personagens femininas que aparecem individualizadas satildeo tambeacutem muito presentes em Heroacutedoto Estas mulheres que desempenham um papel no desenvolvimento dos eventos satildeo mais frequentemente pertencentes aos lsquobaacuterbarosrsquo O fato destas mulheres que aparecem como personagens individualizadas e das passagens que retratam as mulheres em posiccedilatildeo ativa se referirem mais comumente a natildeo-gregas apontam distinccedilotildees entre os costumes dos helenos e dos lsquobaacuterbarosrsquo

Desta forma notamos que o lsquoOutrorsquo assume um importante papel na definiccedilatildeo da identidade grega especialmente apoacutes as guerras contra os persas quando o termo lsquobaacuterbaroirsquo que se refere - como nos mostra Edith Hall - primeiramente aos persas acaba por incorporar o significado mais geneacuterico

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de natildeo-grego No entanto a definiccedilatildeo do que eacute ser grego natildeo se daacute apenas em oposiccedilatildeo ao baacuterbaro Ele natildeo eacute o lsquoOutrorsquo absoluto A cidade grega - e destacamos aqui que natildeo soacute as poacuteleis com regimes democraacuteticos -subsistia por meio de exclusotildees isto eacute por meio da segregaccedilatildeo das diferenccedilas existentes internamente Barbara Cassin e Nicole Loraux no prefaacutecio da obra Gregos Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros (1993) asseveram que a cidade grega se referindo as poacuteleis que foram democracias funcionava por meio de dois tipos de exclusotildees exteriores (estrangeiros e baacuterbaros) e interiores agrave poacutelis (mulheres metecos escravos) Isto posto iremos nos concentrar daqui em diante no papel da mulher como lsquoOutrorsquo ou seja como um dos lsquoOutrosrsquo em contraposiccedilatildeo aos quais o homem grego se definia Ademais centraremos nossa anaacutelise na Atenas Claacutessica e no papel do feminino na construccedilatildeo da cidadania ateniense isto eacute na definiccedilatildeo do cidadatildeo

Marta Mega de Andrade ao falar de seu livro A cidade das mulheres cidadania e alteridade feminina na Atenas Claacutessica (2001) afirma que ele tenta evidenciar a profunda alteridade que o gecircnero feminino representa na cultura claacutessica Nesta obra por meio do teatro ateniense de Euriacutepides e Aristoacutefanes Andrade busca observar o papel das mulheres (particularmente das lsquocidadatildesrsquo) na construccedilatildeo da cidadania ateniense A relaccedilatildeo do feminino com a cidadania surge devido ao fato de que a definiccedilatildeo da cidadania implica o reconhecimento de si e a delimitaccedilatildeo do lsquoOutrorsquo Sua definiccedilatildeo se daacute portanto em oposiccedilatildeo aos lsquoOutrosrsquo ou seja aos natildeo-cidadatildeos O feminino faz parte desta lsquoalteridadersquo e no espaccedilo do teatro a representa Em Euriacutepides e Aristoacutefanes vemos a mulher como o lsquoOutrorsquo na poacutelis No entanto a alteridade que ela simboliza eacute fundamental para a existecircncia da comunidade poliacuteade e da cidadania Natildeo soacute pelo papel que a poacutelis institucional lhe reserva na procriaccedilatildeo de filhos legiacutetimos e nas festas ciacutevicas mas tambeacutem pela sua atuaccedilatildeo no cotidiano (os espaccedilos que ocupa na poacutelis dos habitantes) O teatro mostra assim que o papel da mulher era muito mais amplo do que o que lhe era destinado pela lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo Assumindo a sua lsquoalteridadersquo seu caraacuteter duacutebio e potencialmente subversivo vemos em Euriacutepides as mulheres inseridas em espaccedilos que lhe satildeo negados como o da discussatildeo poliacutetica Jaacute em Aristoacutefanes a presenccedila delas na cidade eacute apresentada como uma possibilidade de governo do feminino

Em nosso entender Marta Mega de Andrade considera que ao assumir sua lsquoalteridadersquo as mulheres (e aqui se refere agraves lsquocidadatildesrsquo) ocupavam a poacutelis no cotidiano assumindo deste modo uma relaccedilatildeo ativa com a cidade Ao contraacuterio do que o modelo de recato silecircncio e reclusatildeo lhes prescrevia ao ocupar a lsquocidade do cotidianorsquo as lsquocidadatildesrsquo se apropriavam da sua caracteriacutestica como lsquoOutrorsquo A autora pontua que ao representar as mulheres ocupando espaccedilos

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o teatro as mostra por meio do desempenho de sua alteridade tomando uma posiccedilatildeo ativa na poacutelis Jaacute os discursos poliacuteticos como o Econocircmico de Xenofonte apagariam a caracteriacutestica do feminino como lsquoOutrorsquo ao mostrar as mulheres integradas ao papel (lsquorainha do larrsquo) que a cidade lhes confere como vemos abaixo

Entatildeo ordenei a minha esposa a se acostumar a ser tambeacutem disse ela mesma a guardiatilde das leis de nossa casa a inspecionar quando a ela mesma parecesse conveniente os utensiacutelios da casa como o comandante de uma guarniccedilatildeo inspeciona e examina se cada soldado estaacute em boa condiccedilatildeo como o conselho examina os cavalos e seus cavaleiros a elogiar e a honrar como uma rainha a quem for digno de ser e a reprovar e castigar a quem disso precisa (XENOFONTE Econocircmico IX 14-15)

Deste modo para a historiadora a poacutelis ateniense era tambeacutem uma lsquopoacutelis das mulheresrsquo

Marta Mega de Andrade pretende assim fazer ver que o tal lsquoclube de homensrsquo que teria sido a cidade grega (modelo que a historiografia ao longo do tempo reproduziu) era na verdade apenas uma parte do que constituiacutea a cidade A poacutelis que as mulheres ocupavam (a cidade das mulheres) natildeo era a lsquocomunidade dos cidadatildeosrsquo a poacutelis institucionalizada mas sim a lsquocidade cotidianarsquo As lsquocidadatildesrsquo transitavam entre as duas cidades A dos cidadatildeos e suas famiacutelias (a lsquocidade dos incluiacutedosrsquo) e a dos outros (ocupada pelos lsquoexcluiacutedosrsquo isto eacute por aqueles que natildeo eram cidadatildeos) Ademais segundo Violaine Sebillotte Cuchet as mulheres tambeacutem desempenhariam o poliacutetico Embora natildeo como os cidadatildeos masculinos que o desempenhavam por exemplo por meio de sua atuaccedilatildeo na assembleacuteia De acordo com a historiadora a

praacutetica ciacutevica funcionava factualmente graccedilas agrave inclusatildeo do lado escondido do ldquopoliacuteticordquo ou seja as cidadatildes () Nas praacuteticas ciacutevicas uacutenicos lugares efetivos do poliacutetico operavam cidadatildeos e cidadatildes Essas praacuteticas incluiacuteam para os primeiros assembleias deliberativas e judiciaacuterias e para todos os rituais comuns (incluindo o teatro) o intercacircmbio de bens (terras principalmente) e de pessoas (casamentos e adoccedilotildees) (CUCHET 2015 pp 17-18)

Isto posto retomemos a perspectiva de anaacutelise de Marta Mega de Andrade com relaccedilatildeo a caracterizaccedilatildeo de feminino em Xenofonte

Ao contraacuterio do que Andrade afirma natildeo consideramos que ldquoa alteridade feminina se perde em Xenofonterdquo Acreditamos que ela ainda estaacute presente em

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seu discurso Mesmo que o perigo do lsquoOutrorsquo feminino pareccedila apaziguado pela integraccedilatildeo da mulher como esposa e rainha do lar a alteridade representada pelo feminino ainda estaacute presente Pois no Econocircmico as atividades de Iscocircmaco e os espaccedilos em que deveria desenvolver preferencialmente suas funccedilotildees (o espaccedilo puacuteblico) se contrapotildeem as atividades de sua esposa e ao espaccedilo no qual as deveria desempenhar (o oicirckos) Embora as atividades de Iscocircmaco e de sua esposa se complementem natildeo deixam de ser diferentes Por conseguinte o papel do lsquocidadatildeorsquo e suas atribuiccedilotildees satildeo delimitados em contraposiccedilatildeo ao da lsquocidadatildersquo Desta forma mesmo neste discurso no qual o feminino eacute integrado (adequado) ele ainda representa o lsquoOutrorsquo E consideramos que mesmo quando a lsquocidadatildersquo procura observar os preceitos de comedimento silecircncio e reclusatildeo elas carregam o estigma da suspeita Violaine Sebillotte Cuchet pontua que

as cidadatildes nunca foram uma classe agrave parte nem tampouco foram percebidas pelos cidadatildeos como um grupo ameaccedilador ou reivindicativo Agraves vezes as mulheres enquanto matildees e esposas enquanto parceiras sexuais e parceiras de filiaccedilatildeo excitaram a imaginaccedilatildeo o desejo ou o oacutedio dos homens e natildeo as cidadatildes enquanto tais (CUCHET 2015 pp 17-18)

No entanto mesmo que as lsquocidadatildesrsquo enquanto grupo natildeo despertassem o temor dos homens consideramos que como mulheres elas levavam consigo o peso do estigma referido acima Pois as mulheres satildeo lsquofilhas de Pandorarsquo personagem miacutetica que personifica a alteridade do feminino no pensamento grego

Pandora eacute a primeira mulher Dela descende todo o genos gunaikon A narrativa miacutetica de sua criaccedilatildeo se encontra nos poemas Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo O mito de Pandora assim como os de outras sociedades se insere no conjunto de narrativas miacuteticas que ao abordar a criaccedilatildeo da mulher explicam o porquecirc existem dois sexos e natildeo apenas um Em tais narrativas a mulher eacute frequentemente um adendo na criaccedilatildeo Isto eacute ela eacute criada posteriormente a emergecircncia do homem O motivo dessa criaccedilatildeo secundaacuteria eacute explicado com frequumlecircncia nos mitos por uma atitude de uma divindade masculina visando atingir os homens Na tradiccedilatildeo judaico-cristatilde a criaccedilatildeo de Eva no livro do Gecircneses eacute mostrada como um ato de compaixatildeo divina a mulher eacute criada para amenizar a solidatildeo do homem Jaacute no mito grego o surgimento de Pandora decorre da fuacuteria de Zeus Independente do motivo de sua criaccedilatildeo o surgimento da mulher estabelece a condiccedilatildeo humana Isto eacute a mulher ldquointroduz a morte a anguacutestia e o mal no mundordquo assim como o trabalho penoso (ZEITLIN 2003 p 59)

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Eacute esta temaacutetica o estabelecimento da condiccedilatildeo humana - a diferenciaccedilatildeo entre homens e deuses juntamente com a origem do cosmos e a reparticcedilatildeo das prerrogativas e domiacutenios entre as divindades oliacutempicas que constitui o assunto da Teogonia Como puniccedilatildeo ao ardil do titatilde Prometeu por roubar o fogo Zeus cria a mulher um mal sobre a aparecircncia de um bem E mesmo se o homem resolve se apartar dele fugindo do casamento natildeo fica imune aos efeitos danosos que surgem com a criaccedilatildeo da mulher

Quem quer que fugindo do casamentoe atos perniciosos das mulheresescolhe natildeo se casar chega a velhice destrutivasem algueacutem para cuidar dele em sua avanccedilada idade(HESIacuteODO Teogonia vv 603-605)

Em Os Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo tambeacutem aborda a partir dessa perspectiva o surgimento da mulher

Entatildeo encolerizado disse o agrega-nuvens ZeuslsquoFilho de Jaacutepeto sobre todos haacutebil em suas tramas apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhasgrande praga para ti e para os homens vindourospara esses em lugar do fogo eu darei um mal e todos se alegraratildeo no acircnimo mimando muito este malrsquo(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 53-105)

Por conseguinte neste poema o poeta tambeacutem aborda o estabelecimento da condiccedilatildeo humana a partir da mulher Hesiacuteodo nomeia a primeira mulher como Pandora e se concentra na descriccedilatildeo detalhada dos dons (dolos) que lhe foram conferidos pelos deuses Pandora que eacute dada ao irmatildeo de Prometeu Epimeteu abre a jarra que continha todos os males os espalhando pelo mundo A partir de entatildeo os homens conviveratildeo com doenccedilas e muitas anguacutestias

Antes vivia sobre a terra a grei dos humanosa recato dos males dos difiacuteceis trabalhos das terriacuteveis doenccedilas que ao homem potildeem fimmas a mulher a grande tampa do jarro alccedilando dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares(HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias vv 90-95)

No entanto de acordo com Pauline Schmitt Pantel o mito grego da criaccedilatildeo da mulher vai mais longe do que outras narrativas da criaccedilatildeo em sua avaliaccedilatildeo negativa das mulheres (2009) Pois como vimos Pandora eacute um ardil criado por ordem de Zeus e utilizado com o objetivo de se vingar da astuacutecia

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de Prometeu Criada com a intenccedilatildeo de causar um dano a natureza da mulher eacute ser um mal (SCHMITT PANTEL 2009 p 196) Aleacutem disto as mulheres (o geacutenos gunaikon) no mito grego aparece como um grupo a parte Embora a forma da mulher se assemelhe a humana ela natildeo pertence agrave humanidade Entretanto ela natildeo pertence igualmente ao acircmbito divino O feminino eacute um lsquooutrorsquo por natureza Sua alteridade estaacute ligada a ser um ardil um engano e a sua natureza ambiacutegua (natildeo faz parte da humanidade e nem da esfera divina) Marta Mega de Andrade pontua que eacute devido a alteridade do feminino estar ligada a sua ambiguumlidade que ele pode representar o lsquoOutrorsquo dentro de um nomos

Destarte em Hesiacuteodo jaacute podemos ver bem delineada a alteridade do feminino Seus poemas segundo Pauline Schmitt-Pantel se tornaram canocircnicos no pensamento grego como narrativas da criaccedilatildeo da ordem vigente do mundo e como base dos valores gregos O mito de criaccedilatildeo de Pandora representado em seus poemas teve portanto um impacto sobre a maneira como as mulheres foram vistas e o lugar que ocuparam na sociedade da Greacutecia Antiga A negatividade com que Hesiacuteodo representou agraves mulheres se tornou a base de uma atitude permanente com relaccedilatildeo a este lsquoOutrorsquo Desta forma seus poemas influenciaram os autores gregos das eacutepocas posteriores que as trataram como uma ameaccedila a unidade da sociedade masculina (SCHMITT-PANTEL 2009 p 198) Acreditamos que essa atitude negativa com relaccedilatildeo ao feminino baseada nas caracteriacutesticas que lhe foram atribuiacutedas pelo mito de criaccedilatildeo e que foram reproduzidas pelos demais autores gregos tiveram ressonacircncia na lsquoexclusatildeorsquo das mulheres da poacutelis institucionalizada

Abstract The present article aims to make a brief discussion about the concept of alterity and its use in researches concerning Greek antiquity to later address the construction of the hellenic identity and more specifically that of the athenian citizen through the opposition with the feminineKeywords Identity alterity citizen Athens feminine

Bibliografia

Documentaccedilatildeo TextualHESIacuteODO Teogonia Trad Jaa Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2006________ Os Trabalhos e os Dias TradLuiz Otaacutevio de Figueiredo Satildeo Paulo

Odysseus 2011XEacuteNOPHON Eacuteconomique Paris Les Belles Lettres 1949

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Referecircncias BibliograacuteficasANDRADE Marta Mega de A cidade das mulheres cidadania e alteridade

feminina na Atenas Claacutessica Rio de Janeiro LHIA 2001 CARTLEDGE Paul The Greeks A Portrait of Self and Others Oxford Oxford

University Press 1993CASSIN Barbara LORAUX Nicole PESCHANSKI Catherine Gregos

Baacuterbaros Estrangeiros A cidade e seus outros Editora 34 1993 DEWALD C Women and culture in Herodotusrsquo Histories In Reflections of

Women in Antiquity New York Routledge 1981GRUEN Erich S Rethinking the Other in Antiquity Princeton Princeton

University Press 2011HALL Edith Inventing the Barbarian Inventing the Barbarian Greek Self-

Definition through Tragedy Oxford Clarendon Press 1989HARTOG Franccedilois O Espelho de Heroacutedoto ensaio sobre a representaccedilatildeo do

outro Belo Horizonte UFMG 1999HALL Jonathan Hellenicity Betwenn Ethnicity and Culture University of

Chicago Press 2002 ISAAC Benjamin The Invention of Racism in Classical Antiquity Princeton

Princeton University Press 2004LEacuteVINAIS Emmanuel Alteriteacute e transcendance Fata Morgana 1995PROULX Geneviegraveve Femmes et feacuteminin chez les historiens grecs anciens Tese

(Doutorado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Doctorat en histoire Queacutebec Canada 2008

SCHMITT-PANTEL Pauline Aithra et Pandora Femmes Genre et Citeacute dans la Gregravece antique Paris LrsquoHarmattan 2009

SEBILLOTTE CUCHET Violaine Cidadatildeos e cidadatildes na cidade grega claacutessica Onde atua o gecircnero Revista Tempo Niteroacutei v21 n38 2015 p1-20 SKINNER Joseph Edward The invention of Greek ethnography from Homer to Herodotus New York Oxford University Press 2012

WEYLAND Raphaeumll Visions de lrsquoalteacuteriteacute dans lrsquoAntiquiteacute lrsquohistoriographie et le cas des Perses sassanides (Ammien Marcellin Theacuteodoret de Cyr Procope de Ceacutesareacutee) Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) - Universiteacute du Queacutebec agrave Montreacuteal Queacutebec Canada 2012

ZEITLIN Froma I lsquoCap4 Signifying difference the myth of Pandorarsquo In HAWLEY Richard LEVICK Barbara (ed) Women in Antiquity new assessments 2003 p58-74

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GOLPE STAacuteSIS E METABOLḖ CRITEacuteRIOS CONCEITUAIS PARA RUPTURAS POLIacuteTI-CAS E INSTITUCIONAIS NA ARISTOTEacuteLI-CA CONSTITUICcedilAtildeO DOS ATENIENSES

Decircnis Renan Correcirca1

ldquoPor que fazer o elogio do anacronismo quando se eacute historiador Talvez para convidar os historiadores a se dispor agrave escuta do nosso tempo de incertezas prestando atenccedilatildeo a tudo que ultrapassa o tempo da narraccedilatildeo ordenada as disparadas assim como as ilhas de imobilidade negam o tempo na histoacuteria mas fazem o tempo da histoacuteriardquoNicole Loraux Eacuteloge de lrsquoanachronisme em histoire 2005

Resumo O artigo aborda o vocabulaacuterio e a estrutura de referecircncias sobre rupturas poliacuteticas e institucionais na aristoteacutelica Constituiccedilatildeo dos Atenienses com o intuito de problematizar a ideia de golpe juriacutedico-parlamentar contra a presidente brasileira Dilma Roussef em 2016 e os imbroacuteglios eacuteticos e conceituais desde tipo de mudanccedila poliacutetica O texto discute o vocabulaacuterio antigo especialmente no contexto ateniense com ecircnfase no pensamento poliacutetico de Aristoacuteteles Palavras-chave Constituiccedilatildeo dos Atenienses golpes de Estado rupturas poliacuteticas

1 A definiccedilatildeo de golpe de Estado eacute difiacutecil e polecircmica O termo significa a deposiccedilatildeo do poder de alguma pessoa ou instituiccedilatildeo legalmente investida de autoridade com diferentes graus de violecircncia eou cerceamento poliacutetico Sua formulaccedilatildeo claacutessica remonta ao seacuteculo XVII na obra Consideacuterations politiques sur les coups drsquoestat de Gabriel Naudeacute Concebida no contexto intelectual do debate sobre as ldquorazotildees de Estadordquo a obra oferece uma visatildeo mais ampla e positiva da ideia de golpe de Estado do a que utilizamos hoje podendo ser definida como uma medida extraordinaacuteria que excede as leis mas que um priacutencipe se vecirc obrigado a executar em vista do bem comum (GONCcedilALVES 2015 p 10 p

1 Prof Adjunto de Histoacuteria Antiga da UFRB Eacute Licenciado e Mestre em Histoacuteria pela UFRGS e atualmente realiza doutoramento em Estudos Claacutessicos pela Universidade de Coimbra E-mail para contato dniscorreagmailcom

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26-33) Trata-se claramente de uma defesa maquiaveacutelica da estrateacutegia poliacutetica na qual governantes desrespeitam as leis do Estado e fazem uso de violecircncia ilegal com uma racionalidade poliacutetica especiacutefica e supostamente nobre No entanto na contemporaneidade o termo eacute qualificado pela violecircncia poliacutetica expliacutecita e portanto possui um tom predominantemente negativo

No vocabulaacuterio histoacuterico contemporacircneo golpe de Estado faz fronteira semacircntica (e eacutetica) com a expressatildeo revoluccedilatildeo social pois possui sentido semelhante mas natildeo coincidente Ateacute o seacuteculo XVII o termo revoluccedilatildeo expressava a rotaccedilatildeo ciacuteclica e natural dos astros mas no XVIII ele toma forma como uma operaccedilatildeo histoacuterica proacutepria de uma ideologia do progresso (KOSELLECK 2006 p 37) A distinccedilatildeo reside na emergecircncia de algo inteiramente novo na Histoacuteria (ARENDT 1988 p 17-23) diferentemente das mudanccedilas ciacuteclicas concebidas por Naudeacute e Maquiavel Sendo um produto linguiacutestico da modernidade europeia a revoluccedilatildeo passa a expressar ambivalentemente golpes poliacuteticos sangrentos e inovaccedilotildees cientiacuteficas (KOSELLECK 2006 p 62) o que jaacute denota seu verniz mais positivo em contraste com a racionalidade de Estado maquiaveacutelica com que Naudeacute defendeu o golpe de Estado Nas concepccedilotildees iluministas e marxistas revoluccedilatildeo pressupotildee mudanccedilas natildeo apenas no aparelho estatal mas tambeacutem na proacutepria tessitura da sociedade tendo como exemplo as revoluccedilotildees liberais e socialistas na Europa contra o Antigo Regime

Em resumo revoluccedilatildeo social se distingue de golpe de Estado pela noccedilatildeo de progresso social e histoacuterico que de certa forma justifica a ruptura poliacutetica e social violenta Desta forma configura-se uma dicotomia entre golpe de Estado e revoluccedilatildeo social no que diz respeito agraves rupturas institucionais que remetem agraves ideias de retrocesso e progresso social e histoacuterico No entanto esta dicotomia faz sentido ainda hoje Qual outro arcabouccedilo conceitual se pode procurar para explicar perturbaccedilotildees poliacuteticas contemporacircneas

Os exemplos na histoacuteria recente do Brasil tecircm sido definidos a partir da dicotomia descrita acima em livros didaacuteticos brasileiros a ascensatildeo de Getuacutelio Vargas ainda eacute mencionada ambiguamente como Revoluccedilatildeo de 30 ou Golpe de 30 assim como de forma menos frequente o Golpe de Estado Civil-Militar de 64 tambeacutem eacute caracterizada como revoluccedilatildeo ainda que somente por seus defensores mais abertos entre eles figuras protofascistas como o parlamentar Jair Bolsonaro que goza de relativa popularidade na sociedade brasileira Desta forma o golpe de Estado natildeo se caracteriza soacute por ser violento mas por

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ser um retrocesso portanto algo negativo Recentemente este imbroacuteglio eacutetico-conceitual se abre novamente com a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 no qual os seus opositores acusam um golpe de Estado ainda que juriacutedico-parlamentar sem apoio militar

Ainda que amparado por forccedilas poliacuteticas legiacutetimas como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal o processo que derrubou Rousseff eacute flagrantemente fruto de um regime de exceccedilatildeo que fez da Presidenta um bode expiatoacuterio de escacircndalos de corrupccedilatildeo que penetram em quase toda classe poliacutetica brasileira especialmente os protagonistas da sua deposiccedilatildeo o entatildeo presidente da Cacircmara dos Deputados Eduardo Cunha e o vice-presidente Michel Temer Cerca de um ano depois do Impeachment Eduardo Cunha encontra-se condenado a 15 anos de prisatildeo por corrupccedilatildeo e o Presidente em exerciacutecio Michel Temer vive intensa crise de legitimidade devido a gravaccedilotildees que comprovam seu envolvimento em crimes de corrupccedilatildeo Golpe Impeachment A discussatildeo precisa partir do consenso da irregularidade do sistema poliacutetico brasileiro que atuou na deposiccedilatildeo Aleacutem disso precisa desnudar as forccedilas sociais atuantes neste processo

O que o pensamento poliacutetico grego claacutessico tem a nos dizer sobre tal imbroacuteglio eacutetico-conceitual contemporacircneo Grosso modo os termos golpe de Estado e revoluccedilatildeo social natildeo tecircm correspondentes na antiguidade (ARENDT 1988 p 17) e comparar sociedades tatildeo diacutespares eacute obviamente arriscado Por outro lado a proacutepria estrutura de referecircncias a partir de qual o pensamento moderno atribui sentido ao jogo poliacutetico eacute oriundo do vocabulaacuterio claacutessico poliacutetica democracia oligarquia povo e aristocracia satildeo termos inequiacutevocos desta aproximaccedilatildeo entre antigos e modernos O objetivo aqui eacute discutir quais eram as referecircncias para a ideia de ruptura poliacutetica na Atenas antiga e especular como elas podem ajudar a compreender as disputas e reviravoltas contemporacircneas Para tanto opta-se por analisar a Constituiccedilatildeo dos Atenienses obra escrita em Atenas na segunda metade do seacutec IV a C pela escola peripateacutetica sob direccedilatildeo de Aristoacuteteles Ao fim do artigo voltarei a discutir o Impeachment de 2016 ao governo de Dilma Rousseff

Os noticiaacuterios da poliacutetica brasileira se assemelham a um enredo de traiccedilotildees delaccedilotildees e reviravoltas constantes mas eacute providencial extrair daiacute alguma racionalidade que nos ajude a sair do ciacuterculo vicioso de crise e paralisia poliacutetica imposta por instrumentos oligaacuterquicos de poder Como historiador e antiquista sigo o espiacuterito da epiacutegrafe que abre este artigo e disponho-me a

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escutar este tempo de incertezas de forma que o recurso das fontes antigas possa gerar o estranhamento necessaacuterio que dissolva o assombro intelectual diante das maliacutecias do poder contemporacircneo

2 No capiacutetulo 412 a Constituiccedilatildeo dos Atenienses enumera as mudanccedilas (μεταβολαί) no regime poliacutetico (πολιτεία2) ateniense ateacute a eacutepoca de sua escrita entre os anos 329 e 322 a C (RHODES 1992 p 51-58) A uacuteltima mudanccedila ocorre em 403 quando Trasiacutebulo liderou a facccedilatildeo popular que ocupava militarmente a regiatildeo portuaacuteria (ldquoFilerdquo e ldquoPireurdquo na citaccedilatildeo abaixo) numa guerra aberta contra os Trinta Tiranos que haviam sido postos no poder com apoio do estratego espartano Lisandro apoacutes a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso O cap 412 passa em resumo as mudanccedilas que ocorreram desde o periacuteodo heroico ateacute esta restauraccedilatildeo de 403

Das mudanccedilas [de regime] esta foi a deacutecima primeira em quantidade Desde o princiacutepio a primeira aconteceu com a migraccedilatildeo de Ion e seus companheiros pois entatildeo pela primeira vez foram formadas as quatro tribos e se estabeleceram os reis das tribos A segunda mas a primeira a ter uma forma de regime poliacutetico foi a ocorrida na eacutepoca de Teseu pouco divergindo da realeza Depois desta foi a da eacutepoca de Draacutecon na qual leis foram publicadas pela primeira vez A terceira depois da staacutesis na eacutepoca de Soacutelon e a partir da qual se tornou o comeccedilo da democracia A quarta foi a tirania na eacutepoca de Pisiacutestrato A quinta apoacutes a derrubada dos tiranos foi a de Cliacutestenes mais democraacutetica que a de Soacutelon A sexta foi depois das Guerras com os Medos estando a cargo do Conselho do Areoacutepago A seacutetima depois desta foi a que Aristides comeccedilou e Efialtes completou tendo derrubado o Conselho do Areoacutepago e nesta aconteceram muitos equiacutevocos por causa dos demagogos e do impeacuterio mariacutetimo A oitava foi o estabelecimento dos Quatrocentos e logo em seguida a nona foi a democracia de novo A deacutecima foi a tirania dos Trinta e a dos Dez A deacutecima primeira foi depois do retorno daqueles de File e do Pireu a partir da qual se desenvolveu ateacute a que existe hoje sempre aumentando o poder para a multidatildeo3

2 O termo denomina os direitos poliacuteticos individuais e o sentimento de pertencimento dos cidadatildeos das poacuteleis antigas mas tambeacutem o regime poliacutetico de uma poacutelis tradicional dividido num esquema tripartite do criteacuterio de extensatildeo da soberania poliacutetica para apenas um individuo (monarquia) para poucos (oligarquia) ou para muitos (democracia) Esta classificaccedilatildeo teraacute desdobramentos em outros tipos e tambeacutem existira na tradiccedilatildeo claacutessica todo um gecircnero literaacuterio das politeiacuteai do qual a proacutepria Constituicao dos Atenienses faz parte Ver BORDES 1982 16-46 231-260

3 Todas Traduccedilotildees de textos antigos satildeo de minha autoria Constituiccedilatildeo dos Atenienses 412 ἦν δὲ τῶν μεταβολῶν ἑνδεκάτη τὸν ἀριθμὸν αὕτη πρώτη μὲν γὰρ ἐγένετο μετάστασις τῶν ἐξ ἀρχῆς Ἴωνος καὶ τῶν μετrsquo αὐτοῦ συνοικησάντων τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς καὶ τοὺς φυλοβασιλέας κατέστησαν δευτέρα δὲ καὶ πρώτη μετὰ

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As rupturas institucionais satildeo chamadas μεταβολαί isto eacute mudanccedilas e estas somam onze no periacuteodo narrado pela obra Mas o que satildeo tais mudanccedilas Obviamente implicam num novo regime poliacutetico mas o que isto significa Certamente nada semelhante ao novo da revoluccedilatildeo Moderna (ARENDT 1988 p 17) A derrubada de pessoas em cargos de poder ou de uma instituiccedilatildeo Elas sempre ocorrem de forma violenta Um novo regime pode advir legalmente e pacificamente Quais os criteacuterios da Constituiccedilatildeo dos Atenienses para definir uma μεταβολή

O comeccedilo da obra estaacute mutilado e natildeo temos informaccedilatildeo sobre as duas primeiras mudanccedilas aleacutem do texto acima nada mais do que a racionalizaccedilatildeo dos mitos heroicos de Ion e Teseu A obra destaca a novidade de cada mudanccedila na de Ion foram formadas as quatro tribos pela primeira vez (τότε γὰρ πρῶτον εἰς τὰς τέτταρας συνενεμήθησαν φυλάς) na de Teseu o governo assumiu a forma de πολιτεία pela primeira vez (πρώτη μετὰ ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις) ainda que pouco divergindo da realeza (μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς) Da terceira mudanccedila temos apenas uma breve descriccedilatildeo no cap 4 que eacute considerado uma interpolaccedilatildeo por muitos autores (RHODES 1992 84-88 FRITZ 1954) e esta tambeacutem destaca uma novidade Draacutecon publicou leis pela primeira vez (ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον) Cabe notar a estranha redaccedilatildeo na qual a mudanccedila de Draacutecon natildeo eacute contabilizada a que vem a seguir eacute listada como ldquoterceirardquo (τρίτη) o que soacute reforccedila a ideia de tratar-se de fato de uma interpolaccedilatildeo inserida posteriormente

A terceira mudanccedila apresenta um ingrediente que acompanharaacute todas as seguintes a στάσις na cidade gera uma μεταβολή na πολιτεία ateniense O termo στάσις significa ldquotomar posiccedilatildeordquo mas tambeacutem ldquolevantar-serdquo (BAILLY 1901) assim como a ideia moderna de um ldquolevanterdquo mas nem sempre enquanto combate violento A στάσις eacute frequentemente traduzida por ldquoguerra civilrdquo mas eacute importante distinguir da bellum civile romana como a que opocircs Maacuterio e Sula sendo o exemplo romano uma guerra de fato cada lado constituiacutedo

ταύτη[ν] ἔχουσά τι πολιτείας τάξις ἡ ἐπὶ Θησέως γενομένη μικρὸν παρεγκλίνουσα τῆς βασιλικῆς μετὰ δὲ ταύτην ἡ ἐπὶ Δράκοντος ἐν ᾗ καὶ νόμους ἀνέγραψαν πρῶτον τρίτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν στάσιν ἡ ἐπὶ Σόλωνος ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο τετάρτη δrsquo ἡ ἐπὶ Πεισιστράτου τυραννίς πέμπτη δrsquo ἡ μετὰ ltτὴνgt τῶν τυράννων κατάλυσιν ἡ Κλεισθένους δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος ἕκτη δrsquo ἡ μετὰ τὰ Μηδικά τῆς ἐξ Ἀρείου πάγου βουλῆς ἐπιστατούσης ἑβδόμη δὲ ἡ μετὰ ταύτην ἣν Ἀριστείδης μὲν ὑπέδειξεν Ἐφιάλτης δrsquo ἐπετέλεσεν καταλύσας τὴν Ἀρεοπαγῖτιν βουλήν ἐν ᾗ πλεῖστα συνέβη τὴν πόλιν διὰ τοὺς δημαγωγοὺς ἁμαρτάνειν διὰ τὴν τῆς θαλάττης ἀρχήν ὀγδόη δrsquo ἡ τῶν τετρακοσίων κατάστασις καὶ ltἡgt μετὰ ταύτην ἐνάτη δέ ἡ δημοκρατία πάλιν δεκάτη δrsquo ἡ τῶν τριάκοντα καὶ ἡ τῶν δέκα τυραννίς ἑνδεκάτη δrsquo ἡ μετὰ τὴν ἀπὸ Φυλῆς καὶ ἐκ Πειραιέως κάθοδον ἀφrsquo ἧς διαγεγένηται μέχρι τῆς νῦν ἀεὶ προσεπιλαμβάνουσα τῷ πλήθει τὴν ἐξουσίαν

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por um exeacutercito organizado pois os latinos chamariam στάσις de seditio ou secessio sediccedilatildeo ou secessatildeo (BOTTERI 1989 pp 87-100) Estas ocorrem dentro do coletivo de cidadatildeos e natildeo entre dois grupos de cidades diferentes o que designa o termo πόλεμος guerra (LORAUX 2009 p 41 pp 51-52 p 61) logo στάσις estaacute fora do modelo tradicional de guerra e seu ideal ciacutevico de combate militar Em contraste com este caraacuteter positivo da πόλεμος a στάσις eacute vista como negativa como uma interrupccedilatildeo do equiliacutebrio e da ordem ou mesmo uma doenccedila da cidade (LORAUX 2009 p 58 p 61) Tal negatividade se expressa na religiosidade pois a recuperaccedilatildeo de uma στάσις muitas vezes pode exigir alguma forma de purificaccedilatildeo religiosa como a que o saacutebio Epimecircnides de Creta realizou em Atenas apoacutes a tentativa de tomar o poder na cidade realizada por Ciacutelon (Constituiccedilatildeo dos Atenienses cap 11)

Aleacutem disso a στάσις grega opotildee dois grupos de cidadatildeos de um lado o povo (δῆμος) ou multidatildeo (πλῆθος) do outro os notaacuteveis (γνώριμοι) ricos (πλούσιοι) ou poucos (ολίγοι) A oposiccedilatildeo se expressa na forma de antiacutetese e assimetria um polo eacute formado pelos que satildeo muitos anocircnimos e pobres enquanto o outro pelos que satildeo poucos ilustres e ricos4 Natildeo por acaso a Constituiccedilatildeo dos Atenienses destaca que o regime de Soacutelon apoacutes a στάσις que ele arbitrou sem tomar partido tornou-se o comeccedilo da democracia5 (ἀφrsquo ἧς ἀρχὴ δημοκρατίας ἐγένετο) Segundo John J Keaney (1963 pp 128-136) a obra narra a expansatildeo do poder do povo sobre as instituiccedilotildees da poacutelis especificamente os Tribunais a Assembleia e as magistraturas e cada uma das mudanccedilas de regime representa um avanccedilo ou recuo do povo sobre tais instituiccedilotildees De fato a partir de Soacutelon a obra natildeo menciona mais aquilo que aconteceu pela primeira vez em cada regime mas sempre destaca o conflito entre estas forccedilas antiteacuteticas e assimeacutetricas como a causa de um novo regime

Boa parte destas στάσεις da obra consiste na instauraccedilatildeo ou derrubada de tiranias de forma violenta (quarta quinta deacutecima e deacutecima primeira mudanccedilas) portanto estas analisarei estas pois satildeo conflitos militares com campos bem definidos Natildeo discutirei tambeacutem o complexo termo τυραννίς mas eacute inequiacutevoca sua relaccedilatildeo com a ruptura institucional e os conflitos sociais nas cidades antigas (TRABULSI 1984 e IRWIN 2008 pp 205-261) No entanto haacute στάσεις que natildeo se confundem com πόλεμοι ou seja natildeo satildeo conflitos militares portanto satildeo operadas dentro de limites legais tornando-

4Observa-se o eco do pensamento aristoteacutelico da Poliacutetica 1296a segundo a qual o lado vencedor impotildee um regime de natureza oligaacuterquica ou democraacutetica

5Segundo a ideia tipicamente aristoteacutelica que Soacutelon foi o criador do regime mas natildeo previu suas caracteriacutesticas negativas posteriores Ver a Constituiccedilatildeo dos Atenienses 92 e a Poliacutetica II 1274a-b

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se um objeto interessante para comparaccedilatildeo com a situaccedilatildeo brasileira em 2016 Por qual motivo a obra natildeo distingue mudanccedilas institucionais paciacuteficas com rupturas violentas Qual eacute o criteacuterio principal para a definiccedilatildeo de uma μεταβολή

3 Vejamos o exemplo da sexta mudanccedila no cap 231

Depois das Guerras Meacutedicas o Conselho do Areoacutepago tornou-se forte de novo governava a cidade sem que nenhum decreto lhe garantisse a hegemonia mas porque assumira a responsabilidade na batalha naval de Salamina De fato com a hesitaccedilatildeo dos estrategos em relaccedilatildeo aos acontecimentos tendo proclamado que cada um se salvasse por si o Areoacutepago proveu oito dracmas para cada um e distribui e embarcou os barcos6

O conselho do Areoacutepago eacute uma instituiccedilatildeo oligaacuterquica pois dele soacute participam indiviacuteduos que jaacute ocuparam um dos cargos dentre os nove arcontes magistraturas para as quais estavam aptos somente membros das duas mais abastadas classes de cidadatildeos os cavaleiros e os pentacosiomedmnos7 Em contraste com este caraacuteter oligaacuterquico o regime anterior a quinta mudanccedila realizada por Cliacutestenes eacute descrita no cap 412 como ldquomais democraacutetica do que a de Soacutelonrdquo (δημοτικωτέρα τῆς Σόλωνος) A obra eacute clara ao afirmar que o poder do Areoacutepago natildeo adveacutem de nenhum decreto (οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν) e sim eacute fruto do vaacutecuo poliacutetico criado pela crise militar durante a guerra contra os Persas um vaacutecuo de poder que uma vez preenchido torna-se poder de fato pelos proacuteximos dezessete anos (cap 251)

Esta concepccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses estaacute certamente ligada ao movimento saudosista do seacutec IV do ldquoregime ancestralrdquo que idealizava a Atenas do periacuteodo anterior agrave Guerra do Peloponeso (FINLEY 1989 cap 2 LEAtildeO 2001 p 43-72 e ATACK 2010) Este regime idealizado eacute descrito como uma constituiccedilatildeo ldquomoderadardquo (Isoacutecrates Areopagiacutetico) ou ldquomistardquo (Aristoacuteteles Poliacutetica 1295b) com equiliacutebrio entre oligarquia e democracia A ideia eacute que em meados do seacutec V o regime era gerido de fato pelo Areoacutepago cuja natureza oligaacuterquica garantia o domiacutenio da elite enquanto que as instituiccedilotildees

6 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 231 μετὰ δὲ τὰ Μηδικὰ πάλιν ἴσχυσεν ἡ ἐν Ἀρείῳ πάγῳ βουλὴ καὶ διῴκει τὴν πόλιν οὐδενὶ δόγματι λαβοῦσα τὴν ἡγεμονίαν ἀλλὰ διὰ τὸ γενέσθαι τῆς περὶ Σαλαμῖνα ναυμαχίας αἰτία τῶν γὰρ στρατηγῶν ἐξαπορησάντων τοῖς πράγμασι καὶ κηρυξάν των σῴ[ζ]ειν ἕκαστον ἑαυτόν πορίσασα δραχμὰς ἑκάστῳ ὀκτὼ διέδωκε καὶ ἐνεβίβασεν εἰς τὰς ναῦς

7A criaccedilatildeo desta classificaccedilatildeo censitaacuteria eacute atribuiacuteda na obra agrave Soacutelon ver cap 73-4 no entanto ela seraacute mais ou menos vigente por todo o periacuteodo da democracia ateniense claacutessica

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democraacuteticas como a Assembleia e os Tribunais Populares equilibravam os excessos da elite e davam um quinhatildeo se poder ao povo O poder do Areoacutepago seraacute drasticamente restringido na seacutetima mudanccedila a seguir e voltaraacute a crescer durante o seacutec IV novamente ligado agrave ideia de ldquoregime ancestralrdquo (HANSEN 1999 p 288)

No seacutec V a hegemonia do Areoacutepago durou cerca de dezessete anos (cap 251) sendo este despojado do poder aos poucos atraveacutes de processos contra os areopagitas e suas prerrogativas impetrados pelos liacutederes do povo Aristides (412) e depois Efialtes (251-2) tanto nos Tribunais Populares como na Assembleia Nesta στάσις as armas satildeo processos legais de lideranccedilas democraacuteticas como Aristides e Temiacutestocles (233-5) este uacuteltimo segundo o autor a mente por traacutes de Efialtes assassinado em condiccedilotildees suspeitas (253-4) Portanto a hegemonia do Areoacutepago e sua posterior derrubada (sexta e seacutetima mudanccedilas de regime) satildeo descritas como resultados de uma espeacutecie de στάσις fria sem o calor da violecircncia e da ruptura institucional O enfrentamento das facccedilotildees antiteacuteticas e assimeacutetricas (o povo e a elite) ocorre nos Tribunais e Assembleias mas natildeo desemboca em conflito militar O uacutenico assassinato mencionado na obra de Efialtes ocorre no contexto de vitoacuteria de sua facccedilatildeo popular A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona apenas certo Aristoacutedico de Tacircnagra como assassino enquanto que Plutarco conta a versatildeo (Vida de Peacutericles 10) que o proacuteprio Plutarco natildeo daacute creacutedito de que o mandante do crime foi o sucessor de Efialtes como liacuteder do povo Peacutericles

Apoacutes a seacutetima mudanccedila Peacutericles seguiu tornando o regime mais popular retirando mais atribuiccedilotildees do Conselho do Areoacutepago (271) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses passa entatildeo a criticar os excessos demagoacutegicos deste periacuteodo especialmente o relaxamento do regime realizado por demagogos (261) o que se intensificou apoacutes morte de Peacutericles (281) Um dos aspectos deste relaxamento eacute que comeccedilaram a aceitar no arcontado os membros da classe dos zeugitas menos abastados do que os cavaleiros e os pentacosiomedmnos (262) uma medida certamente democraacutetica Peacutericles tambeacutem criou a remuneraccedilatildeo pela participaccedilatildeo nos Tribunais Populares (273) outra medida de caraacuteter anti-oligaacuterquico A obra destaca que depois de Peacutericles foi ldquoquando pela primeira vez o povo adotou um liacuteder que natildeo gozava de boa reputaccedilatildeo entre os capazesrdquo (πρῶτον γὰρ τότε προστάτην ἔλαβεν ὁ δῆμος οὐκ εὐδοκιμοῦντα παρὰ τοῖς ἐπιεικέσιν 281) O eufemismo da palavra ἐπιεικής ldquocapazesrdquo ldquoaptosrdquo obviamente descreve os mesmos oligarcas que se opuseram ao povo nas στάσεις de outrora pois o mesmo termo eacute utilizado tambeacutem no cap 261 para designar a facccedilatildeo oligaacuterquica Natildeo haacute sangue nestas mudanccedilas de regime mas haacute facccedilotildees e seus respectivos liacutederes logo haacute στάσις ainda que fria

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4 A oitava mudanccedila foi o estabelecimento do regime dos Quatrocentos no contexto da Guerra do Peloponeso e da desastrosa expediccedilatildeo contra Siracusa na Siciacutelia Nesta ocorrem claros sinais de esquentamento da στάσις ateniense Veja-se o cap 291

Entretanto depois do que aconteceu na Siciacutelia a posiccedilatildeo dos Lacedemocircnios ficou mais forte por causa da alianccedila com o Rei [da Peacutersia] e foram forccedilados ao regime dos Quatrocentos tendo posto em accedilatildeo a derrubada da democracia () mas muitos foram persuadidos sobretudo por achar que o Rei iria se aliar a eles se fizessem uma oligarquia8

Ainda que influenciada pela guerra externa o novo regime natildeo implica numa tomada violenta do poder Pelo contraacuterio a obra menciona que muitos foram persuadidos que tornar o regime mais oligaacuterquico era uma estrateacutegia para conquistar a alianccedila Persa e a salvaccedilatildeo da cidade Haacute relatos discrepantes sobre o clima poliacutetico desta mudanccedila de regime como descreve Tuciacutedides em VIII 66

Mas o povo e o Conselho ainda se reuniam na mesma forma de sorteio natildeo deliberavam nada que natildeo fosse da opiniatildeo dos conspiradores aleacutem disso os oradores eram todos deles e com eles examinavam o que estava prestes a ser dito Nenhum dos outros falava contra eles tendo medo e vendo a grande organizaccedilatildeo [dos conspiradores] se algueacutem falasse contra era diretamente executado de forma raacutepida Natildeo ocorria nem busca dos culpados nem justiccedila se fossem suspeitos mas o povo se mantinha quieto e tatildeo perplexo que se considerava lucro natildeo ter sofrido alguma violecircncia se ficasse calado9

O medo da violecircncia mantinha o povo calado ainda que as instituiccedilotildees democraacuteticas continuassem a funcionar As violecircncias contra opositores natildeo

8 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 291 ἐπεὶ δὲ μετὰ τὴν ἐν Σικελίᾳ γενομένην συμφορὰν ἰσχυρότερα τὰ τῶν Λακεδαιμονίων ἐγένετο διὰ τὴν πρὸς βασιλέα συμμαχίαν ἠναγκάσθησαν κι[νήσα]ντες τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι τὴνἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν ()μάλιστα δὲ συμπεισθέν των τῶν πολλῶν διὰ τὸ νομίζειν βασιλέα μᾶ[λ]λον ἑαυτοῖς συμπολεμήσειν ἐὰν διrsquo ὀλίγων ποιήσωνται τὴν πολιτείαν

9 Histoacuteria da Guerra dos Peloponeacutesios e Atenienses VIII 66 δῆμος μέντοι ὅμως ἔτι καὶ βουλὴ ἡ ἀπὸ τοῦ κυάμου ξυνελέγετο ἐβούλευον δὲ οὐδὲν ὅτι μὴ τοῖς ξυνεστῶσι δοκοίη ἀλλὰ καὶ οἱ λέγοντες ἐκ τούτων ἦσαν καὶ τὰ ῥηθησόμενα πρότερον αὐτοῖς προύσκεπτο ἀντέλεγέ τε οὐδεὶς ἔτι τῶν ἄλλων δεδιὼς καὶ ὁρῶν πολὺ τὸ ξυνεστηκός εἰ δέ τις καὶ ἀντείποι εὐθὺς ἐκ τρόπου τινὸς ἐπιτηδείου ἐτεθνήκει καὶ τῶν δρασάντων οὔτε ζήτησις οὔτrsquo εἰ ὑποπτεύοιντο δικαίωσις ἐγίγνετο ἀλλrsquoἡσυχίαν εἶχεν ὁ δῆμος καὶ κατάπληξιν τοιαύτην ὥστε κέρδος ὁ μὴ πάσχων τι βίαιον εἰ καὶ σιγῴη ἐνόμιζεν

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eram investigadas o que ajudava a manter as aparecircncias e alimentava o medo de opor-se aos conspiradores O relato de Tuciacutedides eacute brutal especialmente vindo de algueacutem que narra a conspiraccedilatildeo de perto como se dela tivesse participado (CANFORA 2015 pp 298-299) Em seguida Tuciacutedides conta (VIII 69-70) como os conspiradores mantiveram-se proacuteximos agraves armas ou com punhais escondidos mas permanecendo o povo quieto a violecircncia natildeo se fez necessaacuteria Trata-se da mesma στάσις entre povo e elite que pouco a pouco se torna mais quente e secretamente violenta ainda que haja esforccedilo para manter as aparecircncias institucionais

Vejamos o contraste com Tuciacutedides no cap 294 da Constituiccedilatildeo dos Atenienses

Os eleitos [para redigir proposiccedilotildees para a salvaccedilatildeo da cidade] primeiro escreveram ser compulsoacuterio aos priacutetanes submeter ao voto todos os pronunciamentos sobre a salvaccedilatildeo [da cidade] em seguida anularam as accedilotildees de ilegalidade as denuacutencias e as intimaccedilotildees para que assim qualquer um dos atenienses pudesse debater sobre as propostas como quisesse se algueacutem por conta disso multar ou intimar ou denunciar no Tribunal Popular que seja feito o depoimento e a prisatildeo dele diante dos estrategos e estes o entregariam aos Onze10 para a pena de morte11

A γραφή παρανόμων e a εἰσαγγελία aqui traduzidas como ldquoaccedilotildees de ilegalidaderdquo e ldquodenuacutenciasrdquo eram modalidade de processos juriacutedicos contra respectivamente proposiccedilotildees de leis e cidadatildeos que cometessem abusos contra as leis e o povo Possuiacuteam um caraacuteter eminentemente poliacutetico e atuavam como instrumentos contra abusos de poder de magistrados e tambeacutem como perseguiccedilatildeo contra adversaacuterios (HANSEN 1999 pp 205-218) Aos oligarcas pareceu necessaacuterio neutralizar tais instrumentos legais que poderiam se voltar contra eles e punir com a morte quem abrisse processos contra suas reformas ou seja neutralizar as armas legais da qual dispunha o povo para resistir agrave mudanccedila de regime A obra eacute clara ao descrever o regime dos Quatrocentos como uma ldquoderrubada da democraciardquo (291 τὴν δημοκρατίαν καταστῆσαι

10 Os Onze satildeo magistrados cuja funccedilatildeo era aplicar prisotildees e sentenccedilas de morte aos condenados nos tribunais

11 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 294 οἱ δrsquo αἱρεθέντες πρῶτον μὲν ἔγραψαν ἐπάναγκες εἶναι τοὺς πρυτάνεις ἅπαντα τὰ λεγόμενα περὶ τῆς σωτηρίας ἐπιψηφίζειν ἔπειτα τὰς τῶν παρανόμων γραφὰς καὶ τὰς εἰσαγγελίας καὶ τὰς προσκλήσεις ἀνεῖλον ὅπως ἂν οἱ ἐθέλοντες Ἀθηναίων συμβουλεύωσι περὶ τῶν προκειμένων ἐὰν δέ τις τούτων χάριν ἢ ζημιοῖ ἢ προςκαλῆται ἢ εἰσάγῃ εἰς δικαστήριον ἔνδειξιν αὐτοῦ εἶναι καὶ ἀπαγωγὴν πρὸς τοὺς στρατηγούς τοὺς δὲ στρατηγοὺς παραδοῦναι τοῖς ἕνδεκα θανάτῳ ζημιῶσαι

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τὴν ἐπὶ τῶν τετρακοσίων πολιτείαν) mas enquanto Tuciacutedides menciona duas vezes que os Quatrocentos assassinaram seus opositores (VIII 66 e 70) a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona tais mortes O contraste eacute claro na comparaccedilatildeo com a descriccedilatildeo que a mesma obra faz do regime dos Trinta Tiranos ao qual atribui a morte de milhares de cidadatildeos (354)

Os Quatrocentos prometeram entregar o regime aos Cinco Mil cidadatildeos mais capacitados por ldquosuas pessoasrdquo e por suas riquezas (295 τὴν δrsquo ἄλλην πολιτείαν ἐπιτρέψαι πᾶσαν Ἀθηναίων τοῖς δυνατωτάτοις καὶ τοῖς σώμασιν καὶ τοῖς χρήμασιν λῃτουργεῖν μὴ ἔλαττον ἢ πεντακισχιλίοις) Os capiacutetulos seguintes (cap 30 e 31) descrevem como seria este hipoteacutetico regime que nunca veio a existir uma vez que os Quatrocentos foram depostos quatro meses depois (331) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses menciona em paraacutefrase a Tuciacutedides (VIII 68) que era a primeira vez que se estabelecera uma oligarquia em Atenas nos uacuteltimos 100 anos desde a expulsatildeo dos tiranos (322 ἡ μὲν οὖν ὀλιγαρχία τοῦτον κατέστη τὸν τρόπον () ἔτεσιν δrsquo ὕστερον τῆς τῶν τυράννων ἐκβολῆς μάλιστα ἑκατὸν)

Segundo a obra o regime dos Quatrocentos ruiu devido agrave defecccedilatildeo de alguns dos conspiradores entre eles Teracircmenes12 insatisfeitos com o fato que os Cinco Mil foram eleitos apenas nominalmente e os Quatrocentos governaram a cidade de fato (323) A administraccedilatildeo eacute brevemente remetida diretamente aos Cinco Mil (331-2) e em seguida ldquoo povo depotildee estes do regime com rapidezrdquo (341 Τούτους μὲν οὖν ἀφείλετο τὴν πολιτείαν ὁ δῆμος διὰ τάχους) restabelecendo a democracia novamente (412) Esta eacute a nona mudanccedila mais uma vez uma στάσις fria jaacute que a Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo menciona nenhuma violecircncia nesta deposiccedilatildeo enquanto Tuciacutedides descreve como ela foi antecedida pelo assassinato de um dos liacutederes dos Quatrocentos Friacutenico e a prisatildeo de outros por tropas sublevadas sob lideranccedila de Teracircmenes quando perceberam uma tentativa de facilitar a invasatildeo espartana (VIII 92) Todos foram julgados pelos Tribunais como conveacutem na democracia antiga e muitos foram condenados Apesar disso pode-se dizer que a derrubada dos Quatrocentos tambeacutem foi uma στάσις fria pois as condenaccedilotildees natildeo foram por derrubar a democracia Os processos contra os liacutederes dos Quatrocentos os acusavam de enviar embaixadas para Esparta em navio inimigo e atraveacutes de territoacuterios ocupados com propostas de paz desvantajosas para Atenas (CANFORA 2015 p 343-347) Entre estes processos incluem-se o insoacutelito caso contra o cadaacutever de Friacutenico (condenado depois de ter sido assassinado) e

12 Sobre a polecircmica historiograacutefica que se abre em torno da figura controversa de Teracircmenes na qual a Constituiccedilatildeo dos Atenienes se engaja avidamente nos cap 285 ver CANFORA 2015 p 411-427

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tambeacutem contra o ceacutelebre orador Antifonte A defecccedilatildeo de Teracircmenes e outros permitiu a reintegraccedilatildeo de boa parte dos apoiadores dos Quatrocentos ao corpo poliacutetico da cidade enquanto os restantes foram responsabilizados por tentarem negociar uma paz desvantajosa por Esparta mas natildeo por algo que os historiadores modernos chamam de golpe oligaacuterquico dos Quatrocentos

5 A guerra aberta a στάσις quente sanguinaacuteria e traumaacutetica aconteceraacute em 404 com a instalaccedilatildeo dos Trinta Tiranos apoacutes a derrota por Esparta (deacutecima mudanccedila) Apoacutes uma acachapante derrota na batalha naval de Egospoacutetamo Atenas eacute ocupada pelo general espartano Lisandro que no tratado de paz exige que a cidade adote o ldquoregime ancestralrdquo (342-3) Mais uma vez a στάσις se faz presente (343)

De um lado os populares tentavam preservar a democracia do outro aqueles associados em confrarias de notaacuteveis e aqueles dentre os exilados que retornaram depois da paz desejavam a oligarquia () Sendo Lisandro favoraacutevel aos oligarcas o povo apavorado foi forccedilado a votar a oligarquia13

Aqui natildeo haacute duacutevida do caraacuteter impositivo do regime por um exeacutercito ocupante natildeo por acaso eacute usado o termo ldquotiraniardquo para descrever um regime cujo ideaacuterio era oligarca Os Trinta revogaram as leis que restringiam o poder do Areoacutepago (352) comeccedilam a perseguir opositores causando enorme mortandade na cidade segundo a obra natildeo menos que mil e quinhentas pessoas (354) Entre os mortos estaacute Teracircmenes que eacute expulso do regime e condenado agrave morte por ter traiacutedo os Quatrocentos (371)

A expulsatildeo dos Trinta Tiranos (deacutecima primeira mudanccedila) ocorre graccedilas ao exeacutercito ateniense que permanecera democraacutetico e retornara da cidade aliada de Samos para reconquistar Atenas pela regiatildeo portuaacuteria em 403 (cap 37 e 38) Apoacutes este restabelecimento de democracia e a execuccedilatildeo dos liacutederes dos Trinta a negociaccedilatildeo de paz a Anistia ndash natildeo por acaso o mesmo termo usado no fim da Ditadura Civil-Militar brasileira ndash eacute longa traumaacutetica e complexa Os partidaacuterios do Trinta foram isolados no distrito de Elecircusis e proibidos de transitar em Atenas (cap 39 e 40) A Constituiccedilatildeo dos Atenienses silencia sobre isso mas Xenofonte (Helecircnicas II 43) relata que os conflitos natildeo cessaram e alguns liacutederes de Elecircusis foram massacrados numa emboscada

13 Constituiccedilatildeo dos Atenienses 343 οἱμὲνδημοτικοὶδιασῴζεινἐπειρῶντοτὸνδῆμον τῶν δὲ γνωρίμων οἱ μὲν ἐν ταῖς ἑταιρείαις ὄντες καὶ τῶν φυγάδων οἱ μετὰ τὴν εἰρήνην κατελθόντες ὀλιγαρχίας ἐπεθύμουν ()Λυσάνδρου δὲ προσθεμένου τοῖς ὀλιγαρχικοῖς καταπλαγεὶς ὁ δῆμος ἠναγκάσθη χειροτονεῖν τὴν ὀλιγαρχίαν

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em 40014 Quatro anos passaram-se entre a instalaccedilatildeo dos Trinta em 404 e o uacuteltimo acerto de contas em 400 Quatro anos para a στάσις ateniense esfriar novamente e os assassinatos e combates entre cidadatildeos cessarem iniciando um longo periacuteodo de oitenta anos nos quais a obra natildeo identifica nenhuma mudanccedila de regime A στάσις natildeo deixa de existir apenas torna-se novamente fria

6 Pode-se concluir que as mudanccedilas de regime na Constituiccedilatildeo dos Atenienses natildeo residem na ideia de rompimento do Estado de Direito ou seja do sistema institucional vigente uma vez que as instituiccedilotildees podem ser legalmente reformadas ou mesmo extintas sem que haja distinccedilatildeo entre reformas e golpes de Estado para a Constituiccedilatildeo dos Atenienses todas satildeo μεταβολαί Tais mudanccedilas no entanto soacute ocorrem dentro de uma oscilaccedilatildeo dos trecircs tipos de regime (monarquia oligarquia democracia) e suas variantes positivas e negativas Ou seja elas refletem sempre os conflitos entre grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos os ricos contra os pobres os notaacuteveis contra a multidatildeo15 A raiz histoacuterica desta concepccedilatildeo estaacute na idealizaccedilatildeo do regime de Soacutelon cuja poesia eacute um testemunho de um pensamento que tenta equilibrar as tensotildees entre pobres e ricos multidatildeo e notaacuteveis16 Minha contribuiccedilatildeo central eacute perceber tais στάσεις podem assumir a forma de combates armados (στάσις quente) ou de processos juriacutedicos e emendas legislativas (στάσις fria)

Inexiste no pensamento poliacutetico claacutessico e aristoteacutelico a ideia de progresso histoacuterico que marca as concepccedilotildees modernas de revoluccedilatildeo social e golpe de Estado O ideal que se busca eacute de equiliacutebrio e moderaccedilatildeo diminuir os excessos e desigualdades dos extremos e natildeo necessariamente tomar o partido do povo algo provavelmente estranho ao pensamento peripateacutetico e tambeacutem agrave esmagadora maioria dos autores claacutessicos membros das elites Os proacuteprios democratas natildeo se enxergavam como ldquomais progressistasrdquo que os oligarcas Ao contraacuterio ambas facccedilotildees viam a si mesmos como legiacutetimas representantes de um idealizado regime ancestral de Atenas

O diaacutelogo constante entre o contemporacircneo e o antigo eacute perigoso e o anacronismo inevitaacutevel A democracia ateniense era muito diferente da moderna pressupunha participaccedilatildeo direta bem como a exclusatildeo de mulheres metecos e escravos O diaacutelogo pode ser uacutetil quando conceitos poliacuteticos do

14 Ver CANFORA 2015 pp 437-450

15 Esta concepccedilatildeo no qual a desigualdade eacute a causa motriz de toda στάσις natildeo estaacute distante daquilo que eacute discutido no livro 5 da Poliacutetica

16 Sobre a representaccedilatildeo de Soacutelon na obra ver o comentaacuterio dos cap 2 5-12 em CORREA 2012 pp 83-91

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contemporacircneo satildeo redefinidos com o contraste do antigo Investigar este diaacutelogo nos ajuda a elucidar os sentidos contemporacircneos atribuiacutedos aos termos antigos bem como a levantar questotildees que natildeo enunciamos mais por nossa incapacidade de olhar com estranhamento para nossos proacuteprios referenciais eacuteticos e conceituais

Neste sentido cabe notar que um dos aspectos centrais da crise poliacutetica instaurada no Brasil desde 2016 eacute a insuficiecircncia da diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais na sociedade brasileira isto eacute da distacircncia entre ricos e pobres A bonanccedila econocircmica dos Governos Lula garantiram estabilidade poliacutetica e a renda miacutenima dos setores mais vulneraacuteveis sem no entanto combater privileacutegios de setores oligaacuterquicos Pelo contraacuterio adotou-se um presidencialismo de coalizaccedilatildeo no qual a cooptaccedilatildeo de partidos ocorre atraveacutes de uma poliacutetica patrimonialista transpartidaacuteria e parasitaacuteria ao Estado que se pode chamar ldquoPemedebismordquo (NOBRE 2013) Esta eacute uma modalidade oligaacuterquica da poliacutetica que tomou forma desde a redemocratizaccedilatildeo de 1985 e se caracteriza pela ampla utilizaccedilatildeo de corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural no proacuteprio aparelho administrativo do Estado nas empresas estatais e tambeacutem em oligopoacutelios privados que negociam apoio financeiro a Partidos em troca de vantagens em contratos e licitaccedilotildees puacuteblicas Se tal praacutetica jaacute era presente nos governos de caraacuteter neo-liberal e privatista do Partido da Social Democracia Brasileira (1995-2002) parece ter se intensificado nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016)

Dilma Rousseff foi derrubada do poder pelo o Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal instituiccedilotildees legiacutetimas mas o contexto histoacuterico que marca o processo natildeo eacute uma suacutebita vontade de aplicaccedilatildeo rigorosa da lei mas uma crise poliacutetica intensa que criou a oportunidade para reformas poliacuteticas de teor oligaacuterquico que visam o estancamento de poliacuteticas de diminuiccedilatildeo de desigualdade no contexto de recesso econocircmico Dilma Roussef eacute um bode expiatoacuterio de todos os crimes de morosidade e corrupccedilatildeo da classe poliacutetica brasileira e o sucessor Michel Temer rapidamente se apresentou como um ldquoreformadorrdquo isto eacute algueacutem que reverte todo o processo instaurado anteriormente Eacute uma στάσις fria entre os grupos antiteacuteticos e assimeacutetricos de ricos e pobres do povo e dos donos do poder O Brasil conheceu processo semelhante no Golpe Militar de 64 contra o Governo Joatildeo Goulart sendo entatildeo uma στάσις quente com violecircncia institucional expliacutecita Em ambos os casos a Miacutedia tem papel predominante em pautar o debate puacuteblico e criar identidades junto agraves camadas populares que simpatizam com as reformas oligaacuterquicas a partir do seu teor conservador moralista de manutenccedilatildeo do

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status quo ameaccedilado pelas poliacuteticas de distribuiccedilatildeo de renda e discussotildees eacuteticas em torno da politicas identitaacuterias

O presidencialismo de coalizaccedilatildeo entrou em curto-circuito apoacutes a reeleiccedilatildeo de Dilma Roussehf em 2014 e o iniacutecio de uma poliacutetica de ajuste econocircmico que contrariava a propaganda eleitoral da candidata Este embuste eleitoral somado agraves poliacuteticas de combate agrave corrupccedilatildeo iniciadas pelo proacuteprio governo que acabaram se voltando contra ele proacuteprio e sua base partidaacuteria fez uma crise econocircmica torna-se tambeacutem poliacutetica A miacutedia e o sistema juriacutedico criaram uma situaccedilatildeo de fragilidade na qual os setores oligaacuterquicos se rebelam contra um Governo de centro-esquerda enfraquecido radicalizando a στάσις brasileira Apoacutes 13 anos o Partido dos Trabalhadores foi sacado do Poder natildeo por invasores externos mas por seus fiadores oligaacuterquicos que se identificam pelo patrimonialismo pela corrupccedilatildeo sistecircmica e estrutural do Pemedebismo somado agrave forccedila conservadora da Miacutedia e demais setores privados

A στάσις brasileira pendeu para o lado oligaacuterquico revelando o esgotamento do presidencialismo de coalizaccedilatildeo e pondo a nu os limites da poliacutetica de cooptaccedilatildeo da base atraveacutes de corrupccedilatildeo sistecircmica Natildeo por acaso os escacircndalos que atingem a esquerda ainda que reais e condenaacuteveis satildeo bodes expiatoacuterios nos quais a Miacutedia o Sistema Judiciaacuterio e a oligarquia poliacutetica descarregam seu rancor contra as poliacuteticas de diminuiccedilatildeo da desigualdade Mesmo quando estes setores oligaacuterquicos tentam fazer valer a mesma letra dura da lei para o lado conservador satildeo barrados por outras forccedilas que natildeo correspondem agrave luta contra corrupccedilatildeo mas sim agrave στάσις o conflito de interesses entre pobres e ricos entre multidatildeo e elite

A Esquerda partidaacuteria se ainda reivindica defender interesses populares e democraacuteticos precisa declarar uma guerra irrestrita agrave cultura poliacutetica patrimonialista do Pemedebismo Esta guerra natildeo pode ser combatida somente atraveacutes do sistema partidaacuterio-eleitoral uma vez que o Pemedebismo jaacute estaacute instalado em quase todos os Partidos e tem forte influecircncia no Judiciaacuterio alianccedila esta que permitiu a derrubada de Dilma Rousseff Eacute preciso atacar a fonte de poder do Pemedebismo o aparelhamento do Estado e o patrimonialismo parasitaacuterio e satildeo outras formas de radicalizaccedilatildeo da democracia que podem cumprir este papel Nesta luta a liccedilatildeo da Constituiccedilatildeo dos Atenienses pode ser uacutetil a στάσις eacute uma luta de grupos antiteacuteticos assimeacutetricos de um lado uma multidatildeo pobre e anocircnima do outro poliacuteticos profissionais oligaacuterquicos grupos midiaacuteticos e corporativos conservadores Se a esquerda quer ter um papel nesta luta precisa juntar forccedilas com um destes grupos mas jamais com o outro

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Abstract The paper approaches the vocabulary and the structure of references about political and institutional ruptures in the Aristotelian Athenian Constitution in order to problematize the idea of legal and parliamentary coup against the Brazilian president Dilma Roussef in 2016 and the ethical and conceptual imbroglio of such kind of political change The text discusses the ancient vocabulary especially in the Athenian context and emphasize Aristotlersquos political thoughtKeywords Athenian Constitution Coup drsquoeacutetat political overthrow

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MUERTE E INFRAMUNDO EN LA ANTIGUA ROMA INMORTALIDADY ETERNA MEMORIA

Julio Loacutepez Saco1

Resumen Los mitos de origen griego vinculados con la muerte asiacute como los deseos de alcanzar la inmortalidad y una nueva vida en el Maacutes Allaacute a traveacutes de la eterna perduracioacuten del alma impregnaron la imaginacioacuten religiosa romana Con posterioridad a la muerte el ser humano se transformaba en una serie de entidades (lemures manes larvae penates lares) de no siempre faacutecil identificacioacuten Desde la oacuteptica romana la muerte requeriacutea una serie de honores funerarios bien establecidos para evitar la conversioacuten del fallecido en un fantasma sin descanso y para de ese modo apaciguar los componentes malignos o negativos En la antigua Roma la muerte era un acto social que en cuanto a los lugares de inhumacioacuten modos de celebracioacuten y cultos no igualaba a los fallecidos existiendo notables diferencias seguacuten la condicioacuten social o el estatus del muertoPalabras clave muerte inframundo rito culto

Introduccioacuten

El significado social del mundo de la muerte en la antiguumledad romana solamente puede conocerse gracias a determinada documentacioacuten literaria y epigraacutefica (inscripciones funerarias) la presencia de monumentos histoacutericos y necroacutepolis (con sus tipos de tumbas y ajuares funerarios) a la ritualidad que envolviacutea el duelo asiacute como a la interpretacioacuten de los mitos (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 5)

En la antiguumledad dos de los temas baacutesicos maacutes relevantes en los que se centraron los relatos eacutepicos y mitoloacutegicos fueron sin duda la adquisicioacuten de la

1 Doctor en Ciencias Sociales y Doctor en Historia Investigador y Profesor Titular Escuela de Historia Universidad Central de Venezuela Caracas Doctorado en Historia FHE-UCV E-mail julosaucvgmailcom

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inmortalidad y la buacutesqueda de la eterna juventud (PLATOacuteN Fedro 245e)2 En el trasfondo de tal buacutesqueda se encuentra la preocupacioacuten por la muerte tal y como innumerables mitos han reflejado de modos bastante variados (Gilgamesh Orfeo Heracles)

En teacuterminos generales los mitos de la muerte en la mitologiacutea (particularmente griega) afirmaban que las almas de los difuntos viajaban al mundo subterraacuteneo de Plutoacuten y Perseacutefone guiadas por Mercurio la deidad psicopompa por excelencia Se veiacutean obligadas a atravesar la laguna Estigia en la balsa conducida por Caronte El mundo subterraacuteneo teniacutea en su entrada un temible custodio el Can Cerbero (veacutease ilustracioacuten 3) Una vez en el inframundo se llevaba a cabo un juicio a las almas Despueacutes del veredicto las mismas eran trasladadas a siete regiones seguacuten fuese el caso La primera estaba destinada a los infantes no natos que no eran juzgados en la segunda moraban los inocentes condenados injustamente la tercera correspondiacutea a los suicidas mientras que la cuarta denominada Campo de Lagrimas era la zona en la que permaneciacutean los amantes infieles la quinta estaba habitada por heacuteroes crueles en tanto que la sexta era el famoso Taacutertaro lugar en el que se procediacutea a castigar a los perversos y finalmente la seacuteptima correspondiacutea a los Campos Eliacuteseos sitio de morada de las almas bondadosas en la felicidad eterna

Muerte e inmortalidad en las fuentes claacutesicas

Si bien ya los pitagoacutericos mencionan el alma seraacute PLATOacuteN (Repuacuteblica 580e Fedoacuten 69e-84b) quien ofrezca la posibilidad de una esperanza ante la muerte Lo mortal y lo inanimado es el cuerpo fiacutesico mientras que lo animado el aacutenima es lo que pervive el alma Las almas transmigran idea que tambieacuten defiende en el aacutembito romano OVIDIO (Metamorfosis XV 165-166) SALUSTIO (Sobre los dioses y el mundo 20-21) y VIRGILIO (Eneida VI 730-750) Este uacuteltimo autor sentildeala que el alma al morir ascendiacutea por mediacioacuten del aire para luego atravesar las aguas que habiacutea sobre el aire y al fin recorrer la atmoacutesfera que estaacute expuesta a los rayos solares Tal viaje suponiacutea una purificacioacuten del alma mediante los elementos el aire el agua y el sol (fuego) de modo que pudiese lograr estar limpia (purificada) para acceder al Eliacuteseo (PEREA YEBENES S 2012 pp 34-36 RHODE E 1948 pp

2 La fama la gloria imperecedera asiacute como la permanencia en el recuerdo de los vivos (ademaacutes de la descendencia) siempre constituyoacute una forma peculiar de inmortalidad Una preocupacioacuten evidente en heacuteroes guerreros como Aquiles o en grandes generales conquistadores como Alejandro Magno pero tambieacuten en personalidades como Julio Ceacutesar La inmortalidad seguacuten Platoacuten seraacute asiacute una prerrogativa del alma humana

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145-149 y ss) En el Eliacuteseo podiacutea permanecer o tambieacuten ser conducida al Leteo (olvido) para afrontar una nueva existencia terrenal

Tambieacuten CICEROacuteN en Suentildeo de Escipioacuten (Sobre la Repuacuteblica VI 13-26) defendiacutea la permanencia y por consiguiente la inmortalidad del alma Para los estoicos como SEacuteNECA (Cartas a Lucilio XLIV 2 De la Consolacioacuten a Helvia XI 7) el alma es aquello que el ser humano tiene de racional ademaacutes de divino Es la que ayudada por la filosofiacutea nos haraacute resistir a la fortuna y saber por tanto afrontar la muerte

Por el contrario los epicuacutereos negaban la inmortalidad El espiacuteritu que conferiacutea vida se disolviacutea en el aire y se perdiacutea para siempre tras la muerte Ello implicaba que las personas no teniacutean entonces por queacute temer el mundo del maacutes allaacute de modo que podiacutean dedicarse a disfrutar de este (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 87 PEREA YEBENES S 2012 p 40-45)

No hubo conceptos concretos en el mundo romano en relacioacuten a en queacute se convertiacutean los difuntos despueacutes de fallecer En cualquier caso la tradicioacuten romana vislumbra la existencia de los espiacuteritus de los muertos Se trataba de los Dii parentes et Manes iacutentimamente asociados a los Genii Tales genios permaneciacutean activos durante la vida diferenciaacutendose por sus valores morales que se prolongaban tras su muerte Dichos genios continuaban habitando en las sepulturas un factor que motivoacute su identificacioacuten con la osamenta las cenizas e incluso con los propios sepulcros

Los autores antiguos presentan disparidades en relacioacuten a la entidad en la que se trasformaba el ser humano con posterioridad a la muerte del cuerpo En tal sentido existieron distintas denominaciones (COULIANO I P 1993 pp 122-125 FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 346-348 y ss) El Genius del difunto se relacionaba con el vocablo Manes (los ilustres) emparentado a su vez con Lares Penates Larvae y Lemures La profusioacuten de denominaciones demuestra en cualquier caso la existencia de la creencia en la inmortalidad del alma tras la desaparicioacuten del cuerpo

Entidades del maacutes allaacute los Manes

Aquellos difuntos bondadosos que velaban por sus descendientes se denominaban Lares familiares mientras que los inquietos perturbadores o sencillamente nocivos y que ademaacutes asustaban con apariciones nocturnas se llamaban Larvae (PICCALUNGA 1961 pp 87-89 y ss) Si no se sabiacutea

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con seguridad en queacute se habiacutea convertido el alma del fallecido se nombraba Manes3 Manes eran en general los espiacuteritus de los muertos Los Manes familiares eran aquellos difuntos que pasaban a formar parte del conjunto de espiacuteritus metamorfoseados en divinidades Se puede decir que era la sombra del difunto su espiacuteritu santificado por el deceso y en consecuencia proclive a ser objeto de veneracioacuten y respeto aunque al tiempo de temor y ofuscacioacuten a lo desconocido

De una manera o de la otra lo cierto era que habiacutea que distinguir entre genios buenos y malos En tal sentido las almas de los difuntos eran ldquodiosesrdquo de los muertos o en todo caso entidades que se hallaban en el mundo de los muertos al lado de las divinidades infernales (Orcus por ejemplo) De esta forma los Manes podiacutean ser identificados con esas deidades (MONTERO HERRERO S 1990 p 42)

Desde la eacutepoca de Augusto algunos autores sobre todo Virgilio y LIVIO (Ab Urbe condita III 5811) emplearon el teacutermino Manes para detallar a ciertas divinidades infernales y sombras de los muertos SERVIO por su parte (Commentarius ad Aeneidam III 63) menciona que en tanto los dioses celestes eran los de los vivos las otras deidades en concreto los Manes eran los dioses de los muertos Seriacutean entonces unos dioses secundarios que dominaban las tinieblas nocturnas Se podriacutea decir al modo de TAacuteCITO (Vida de Agriacutecola) que eran sombras espiacuteritus fantasmales (PROPERCIO Elegiacutea IV 6-7)4

En teacuterminos generales el hombre comuacuten no sabiacutea con exactitud el significado de los Manes esto es si representaban el alma del difunto o se trataba de deidades de ultratumba En las inscripciones funerarias (veacutease ilustracioacuten 1) se mencionan estas divinidades sin precisar ni caraacutecter ni funciones ni atributos particulares (MONTERO HERRERO S 1990 p 43 COULIANO I P 1993 p 126 y ss) En ocasiones aparecen al lado de DM o Dis Manibus epiacutetetos como inferi (con lo cual se implicariacutea su calidad

3 Aunque designe el alma de un muerto el vocablo se usaba en plural Es probable que ello se deba a las arcaicas costumbres funerarias de la cultura Terramara por la cual se inhumaban los fallecidos en recintos comunes De tal modo el alma de los muertos permaneciacutea ldquovivardquo entre sus descendientes convirtieacutendose en espiacuteritus familiares VARROacuteN (De Lingua Latina VI 324 IX 3861) confunde los Manes con los Lares Los considera a ambos figuras eteacutereas Habitualmente se confundiacutea Lares con Larvae y con los Manes

4 Este autor sentildeala que los Manes existen y que en correspondencia la muerte no es el final definitivo Horacio expone que los Manes eran como ceniza sombras un recuerdo

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de dioses de ultratumba protectores de los fallecidos CIL II 2464 2722 VI 12311 X 2322 2565) y unas pocas veces otros como sacer o castus5

Para algunos autores como APULEYO (De Deo Socratis 25) el espiacuteritu humano despueacutes de haber salido del cuerpo se transformaba en una suerte de demonio que los antiguos llamaban Lemures

La ritualidad de la muerte

En los funerales era imprescindible que se tributara los honores debidos al fallecido (Iusta) Si se produciacutea alguacuten olvido o una irregularidad el difunto se convertiriacutea en un fantasma que no descansariacutea hasta que sus allegados o parientes le hicieran la debida justicia Esa necesidad de unos ritos funerarios que atendieran al difunto se continuaba tiempo despueacutes de la inhumacioacuten para asegurar su descanso eterno Existiacutea entonces la necesidad de que se recordara al difunto se dejara constancia de su existencia y se le rindiera culto a su numen (y a su nomen) para que perviviese en la memoria eterna

Un relevante nuacutemero de rituales se orientaban maacutes hacia el objetivo de apaciguar los componentes malignos de los difuntos que hacia una imprescindible suacuteplica como deidades activas En todos los casos se inmolaban viacutectimas se realizaban juegos combates de gladiadores como homenaje se ofrendaban alimentos en la tumba en determinados diacuteas concretos6 (cumpleantildeos diacutea de difuntos) y se conformaba un ajuar de diversos objetos

La muerte se concebiacutea en la antigua Roma como un acto social y en cierta medida puacuteblico El tiempo de luto para los familiares directos era de diez meses El funeral (funus) comenzaba en casa del difunto (BELAYCHE N 1993 pp 158-159 FREDOUILLE J C 1987 p 174) La familia acompantildeaba al moribundo a su cama y le daba un uacuteltimo beso para retener asiacute el alma que se escapaba por su boca Despueacutes de producirse el deceso se le

5 Con Dis Inferis Manibus se infiere el caraacutecter sacro de la tumba Los teacuterminos que delimitaban el sepulcro podiacutean considerarse sagrados En este caso la inscripcioacuten habitual era Dis Manibus Sacrum (DMS) que los primeros cristianos primitivos conservaron reinterpretaacutendola como Deo Magno Sancto

6 Los diacuteas de difuntos (Parentalia) se celebraban en febrero Otras fiestas dedicadas a los muertos fueron las Lemurias (celebradas en mayo) En esos especiales diacuteas las almas cuyos cuerpos no habiacutean recibido sepultura merodeaban en los hogares Por tal motivo el padre de familia debiacutea representar un ritual para alejar a esos espiacuteritus errantes Despueacutes de lavarse las manos como sentildea de purificacioacuten se metiacutea nueve habas negras en la boca Luego descalzo se desplazaba por la casa escupiendo las habas una a una para que nutriesen a los espiacuteritus malignos conocidos como Lemures

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cerraban los ojos y se le llamaba tres veces por su nombre para asiacute corroborar que realmente habiacutea fallecido A continuacioacuten el cuerpo era lavado perfumado con unguumlentos y finalmente vestido Seguacuten la costumbre griega se depositaba al lado del cadaacutever una moneda para que Caronte se cobrase por el transporte de su alma (BENASSAR I amp GARDNER JF 1995 p 34) El cuerpo se ubicaba sobre una litera con los pies mirando hacia la puerta de entrada y rodeado de flores un siacutembolo de la fragilidad de la vida pero a la par de la renovacioacuten Durante tres a siete diacuteas permaneciacutea expuesto el difunto Encima de la puerta de entrada de la casa se poniacutean ramas de abeto o de cipreacutes para asiacute avisar a los viandantes de la presencia de un muerto en el interior

El difunto en particular en los casos de romanos de alta condicioacuten social era trasladado por las calles de la ciudad (GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 43-56 y ss FERNAacuteNDEZ URIEL P amp MANtildeAS ROMERO I 2013 pp 355-356) Delante y detraacutes de la comitiva fuacutenebre (pompa funebris) se desplazaba un cortejo compuesto de esclavos tocando instrumentos musicales como flautas trompetas o trompas los portadores de antorchas el propio difunto en un atauacuted de madera abierta sobre una suerte de camilla (tambieacuten podiacutea ser llevado a hombros por miembros de la familia) (Veacutease ilustracioacuten 2) Detraacutes del difunto iba el resto del cortejo fuacutenebre formado por la familia y los amigos ademaacutes de una comitiva de personal pagado (plantildeideras mimos bailarines) y finalmente las fasces las representaciones de los momentos significativos de la vida del fallecido o aacuterboles genealoacutegicos del difunto (HINARD F 1995 p 98 PRIEUR J 1986 pp 112-115 y ss TIEMBLO MAGRO A 2011 p 167)

Hasta finales de la primera centuria de nuestra era el funeral se celebraba por la noche con la ayuda de la luz de antorchas Esto era asiacute porque la muerte era un suceso que se consideraba contaminante Sin embargo en siglos posteriores se comenzaron a realizar los ritos durante el diacutea excepto aquellos de nintildeos indigentes o suicidas

La tumba definitiva se consagraba con el sacrificio de una cerda (ilustracioacuten 5) Una vez que el sepulcro estaba ya finalizado y todo dispuesto se llamaba tres veces al alma del difunto para que pudiera entrar en la morada que se le habiacutea preparado para su nueva vida Despueacutes del entierro se levantaba una estatua del difunto en un lugar visible de la casa dentro de en una hornacina de madera

En el caso de la incineracioacuten la ceremonia se celebraba encima de una pira en forma de altar sobre la que se depositaba el atauacuted con el cadaacutever Se le abriacutean los ojos para que pudiera observar coacutemo su alma de dirigiacutea hacia el cielo

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(GNOLI G amp VERNANT JP 1982 p 60 FREDOUILLE J C 1987 pp 177-179) Se sacrificaban e incineraban animales y se arrojaban sobre la pira ofrendas de alimentos y perfumes Se le nombraba una uacuteltima vez y se encendiacutea la pira con antorchas El rito concluiacutea vertiendo agua y vino sobre la pira Finalmente los asistentes se despediacutean del difunto deseaacutendole que la tierra le fuera ligera Sit Tibi Terra Levis (STTL) una foacutermula muy habitual en las inscripciones funerarias

Es conveniente recordar que los monumentos funerarios de los romanos se ubicaban al margen de los liacutemites de la ciudad a ambos lados de la calzada principal Soliacutean ornarse con jardines

Al fallecer alguno de los componentes de la familia romana de inmediato pasaba a formar parte de los antepasados familiares verdaderos Manes protectores a los que se les homenajeaba manteniendo siempre ardiendo el fuego del hogar La tumba elegida no podiacutea ser cambiada de lugar pues los manes requeriacutean una morada fija (que se suponiacutea eterna) a la que se asociaban todos los difuntos de la familia

En teacuterminos generales se piensa que los muertos no llevaban una existencia que podriacutea considerarse feliz Es por ello que habiacutea que abastecer las tumbas con todo aquello que el fallecido necesitara (TIEMBLO MAGRO A 2011 p 172 HINARD F 1995 p 102) Para apaciguar a los espiacuteritus de los muertos y hacerles maacutes llevadera su infelicidad se ofrendaban alimentos (leche vino miel pan huevos) en los sepulcros en nombre de las familias de las asociaciones profesionales o de las propias ciudades Habiacutea una suerte de obligacioacuten en ello no soacutelo de cara a los fallecidos pues se entendiacutea que la carencia de homenajes a los Manes provocaba pesadillas y enfermedades a los vivos

Los lugares para la eternidad

Los sepulcros no eran espacios sombriacuteos luacutegubres pues se entendiacutea que la muerte conviviacutea con la vida7 Los difuntos no debiacutean ser olvidados y por ello sus lugares de reposo final se vinculaban con el entorno circundante (CUMONT F 1942 p 63) En los epitafios no se vislumbran deseos

7El espacio dedicado al enterramiento sepulchrum adquiriacutea el caraacutecter de sitio sacro lucus religiosus inamovible inviolable e inalienable Al recinto uacutenicamente podiacutean acceder los familiares del fallecido

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inframundanos sino que abundan expresiones que se asocian con los vivos y con la vida mundana En general se escribiacutean para que el transeuacutente los leyera y asiacute hubiera una constancia de su paso por la vida que ya dejoacute (LAVAGNE H 1987 pp 163-164 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1144-1146 y ss CUMONT F 1942 pp 65-68) Por eso en ellos se encuentran relatos de la vida del muerto saludos o explicaciones de coacutemo murioacute En algunos incluso se hallan consejos y hasta pensamientos de tipo poliacutetico (BAYET J 1957 pp 42-45 y ss)

Ilustracioacuten 1 Inscripcioacuten funeraria del altar de Quinto Fulvio Fausto y Fulvio Prisco Siglo I Museo Nazionale Romano

Ilustracioacuten 2 Relieve en maacutermol de Amiternum en la que se representa la pompa funebris de un entierro Museo Aquilano siglo I aec

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Ilustraciones 3 y 4 (Izquierda) Hades y Cerbero Museo Arqueoloacutegico de Creta (derecha) urna cineraria del Museo Arqueoloacutegico de Palermo La inscripcioacuten reza asiacute D(is) M(anibus) S(acrum)

L(ucio) CORNELIO LAETO FILIO DVLCISSIMO QVI VIX(it) AN(nos) XVI M(enses) II D(ies) XXIIII SER(vius) CORNEL(ius) LAETVS PAT FEC

Ilustracioacuten 5 Ara de los Vicomagistri del vicus Aesculetus (fines del siglo I aec) Los magistrados (cuatro por cada vicus o barrio) eran elegidos anualmente para organizar las ceremonias sacrificiales

asociadas a los Lares Compitales a los que se ofreciacutea un cerdo y al Genius del princeps al que iba destinado un toro La inscripcioacuten habla del antildeo noveno desde la reorganizacioacuten de este culto por Augusto A la derecha los magistrados con la cabeza cubierta indicando una funcioacuten sacerdotal

Tambieacuten se observa un muacutesico con auloacutes Abajo los animales para el sacrificio

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Existieron en el mundo romano diferentes tipos de enterramientos Aquellas tumbas maacutes lujosas eran los sepulcros monumentales los mausoleos que podiacutean adquirir la forma de una casa o un templo Por su parte los columbaria era una gran tumba en cuyos muros se ubicaban nichos para depositar las urnas con las cenizas de los difuntos Aparecen desde el siglo I aec siendo empleadas hasta el siglo III y son inhumaciones colectivas propias de corporaciones funerarias Habiacutea tambieacuten fosas simples excavadas en el suelo algunas de ellas revestidas con cajas de ladrillo y con cubiertas de maacutermol (VAN ANDRINGA W 2006 p 1149)

Desde el siglo II la incineracioacuten fue paulatinamente reemplazada por la inhumacioacuten No obstante hubo una coexistencia de ambos modos funerarios La distincioacuten se relacionaba con la condicioacuten social o el estatus del fallecido En este sentido la inhumacioacuten se reservaba para la gente humilde y para los esclavos mientras que la incineracioacuten se usaba con los miembros de familias nobles patricias (GALINIER M 1999 pp 114-115 BELAYCHE N 1993 p 182) Asiacute poco a poco en lugar de utilizar urnas funerarias propias de la incineracioacuten (veacutease ilustracioacuten 4) se fue extendiendo la costumbre de enterrar a los muertos en cajas bien de madera o de piedra de las cuales derivariacutean los sarcoacutefagos (por otro lado conocidos ya en Etruria y en ciertas regiones del aacutembito heleniacutestico) usados en las inhumaciones Los sarcoacutefagos formaban parte de un monumento funerario (LAVAGNE H 1987 p 168) Soliacutean ser decorados con elementos simboacutelicos y con disentildeos geomeacutetricos (como los surcos ondulados o strigiles)

Los enterramientos individuales presentaban numerosos tipos de monumento funerario Las laacutepidas eran un elemento clave (PRIEUR J 1986 pp 127-128 VAN ANDRINGA W 2006 pp 1150-1152 GNOLI G amp VERNANT JP 1982 pp 91-92) Podiacutean ser estelas exentas coronadas por frontones piedras esculpidas con forma semiciliacutendrica (cupae) propias de esclavos y libertos pedestales y altares ornados con decoracioacuten vegetal o relieves con los bustos de los muertos empotrados en los muros de la tumba Enterramientos muy modestos eran por su parte las cajas de losas de pizarra de aacutenforas (muy empleadas para la inhumacioacuten de infantes) o tegulas reusadas

Conclusioacuten

El concepto de la pervivencia del alma humana en otra esfera es el punto de inicio a partir del cual la antiguumledad romana dedicoacute esfuerzos al recuerdo de sus fallecidos de sus antepasados Al margen de una relativamente confusa profusioacuten de entidades fantasmales como habitantes habituales del maacutes allaacute

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hubo siempre una necesidad de homenajear al difunto con rituales apropiados y en habitaacuteculos adecuados La diferenciacioacuten existente en las ceremonias fuacutenebres y en los propios lugares de descanso de unos y otros se asocioacute con la condicioacuten social o el estatus del fallecido A pesar de la falta de igualdad tras el deceso persistioacute siempre no obstante la creencia en la inmortalidad y la imperiosa necesidad de la pervivencia a traveacutes de la memoria eterna

Abstract The myths of origin Greek linked with the death as well as wishes of achieve the immortality and a new life in the more beyond through the eternal endurance of the soul permeated the imagination religious Roman After death the human turned into a series of entities (lemurs lares manes larvae penates) not always easy to identify From the Roman standpoint death required a series of well-established funeral honors to prevent the conversion of the deceased in a ghost without a break and to thereby appease the evil or negative components In ancient Rome the death was a social event which in terms of the places of burial ways of celebration and worship not equal to the deceased there are notable differences according to social condition or the status of the deadKeywords death underworld ritual cult

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ESCONDER OS CORPOS E OS CRIMES O MAR COMO UM LUGAR DE NAtildeO-RETORNO

Camila Alves Jourdan1

Resumo O poder do mar pode ser compreendido em sua capacidade de submersatildeo em sua imensidatildeo e vastidatildeo em sua profundidade e seu constante movimento Estas cinco caracteriacutesticas atribuiacutedas por Astrid Lindenlauf (2003) em seu estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno nos possibilita perceber as potencialidades do mar na atuaccedilatildeo do desaparecimento eou no encobrimento de rastros indesejados Deste modo pretendemos neste artigo analisar passagens que nos permitam elucidar a relaccedilatildeo de accedilotildees consideradas vergonhosascriminosas pela sociedade helecircnica com o mar em obras textuais dos periacuteodos arcaico e claacutessico e representaccedilatildeo imageacuteticaPalavras-chave Mar desaparecimento crimes

1 Alguns apontamentos sobre a morte

Um dos principais estudiosos acerca da questatildeo da morte foi Edgar Morin (1970) Para ele a ideia de morte soacute se torna compreensiacutevel quando podemos representaacute-la e conceitualizaacute-la ndash o que natildeo fazem os animais Para Morin a consciecircncia de morte estaacute relacionada agrave vida em sociedade humanamente organizada Deste modo somente os seres humanos dispotildeem de um arcabouccedilo cognitivo capaz de decodificar e assim compreender o ato de morrer bem como suas implicaccedilotildees aos vivos O reconhecimento da morte implica em uma consciecircncia do indiviacuteduo e de sua individualidade mesmo estando em sociedade A percepccedilatildeo de perda da proacutepria individualidade mostra um indiviacuteduo consciente de si Consciente de sua morte O enterramento dos cadaacuteveres marca a percepccedilatildeo de finitude da mortalidade humana Quando se inicia esse processamento e reflexatildeo sobre os seus mortos a morte ldquonatildeo se trata mais de uma questatildeo de instinto mas jaacute da aurora do pensamento humano que se traduz por uma espeacutecie de revolta contra a morterdquo (MORIN 1970 p 31)

1 Mestra e doutoranda em Histoacuteria Social pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA-UFF) E-mail camilaajourdangmailcom

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A morte eacute sobretudo um ato social E como social a morte natildeo se refere apenas ao indiviacuteduo mas a coletividade que estaacuteestava a sua volta ndash famiacutelia comunidade ciacuterculos de amizade e de outras formas de relacionamento Um rompimento de viacutenculos que ocorre quando o morto deixa de existir Entretanto eacute a ambiguidade que marca este momento crucial na interpretaccedilatildeo de Joseacute Carlos Rodrigues (2006 p 34) o morto apenas se libertou de seu aspecto terrestre para que assim pudesse dar continuidade agrave sua existecircncia em outro lugar ou seja de fato o morto natildeo deixa de existir pois a crenccedila na sobrevivecircncia de uma parte deste morto de um duplo permeia diversas sociedades De acordo com Maacutercia Maria de Medeiros

Uma antropologia histoacuterica da morte mostra com efeito que os homens das sociedades arcaicas repugnavam a ideacuteia de uma destruiccedilatildeo definitiva e total e consideravam que os mortos continuavam a levar a nosso lado uma vida invisiacutevel e natildeo cessam de intervir no curso da existecircncia daqueles que chamam a si mesmos de vivos (DASTUR Apud MEDEIROS 2008 p 154)

Esta interpretaccedilatildeo nos permite compreender o conjunto do imaginaacuterio helecircnico acerca do processo pelo qual passava o morto ndash a morte imputada por Thanatos ndash dos processos de manutenccedilatildeo de sua continuidade ndash ritos fuacutenebres ndash dos lugares-imaginados como locais de permanecircncia desse defunto ndash como os domiacutenios de Hades o reino dos mortos A ambiguidade neste cenaacuterio reside no fato de que a morte eacute a princiacutepio um ato de exclusatildeo de desligamento Entrementes esta exclusatildeo necessita ser compensada com a re-inserccedilatildeo do indiviacuteduo em uma espeacutecie de renascimento em uma nova vida em um novo grupo social em um novo mundo (RODRIGUES 2006 p 34) Esta nova inserccedilatildeo necessita de um trabalho de desagregaccedilatildeo em um domiacutenio e a inserccedilatildeo em um novo Esta accedilatildeo exige um esforccedilo nos campos simboacutelico e cognitivo para reorganizar tais desestruturaccedilotildees e reestruturaccedilotildees de relacionamentos sociais Deste modo eacute atraveacutes dos ritos fuacutenebres do enterro do defunto o meio que a sociedade encontrou para assegurar todo este processo (RODRIGUES 2006 p 42)

Os ritos fuacutenebres funcionam entatildeo como marca dessa nova inserccedilatildeo desse processo de continuidade Buscando o entendimento de todo o processamento das relaccedilotildees sociais do receacutem-morto e dos novos viacutenculos sociais criados pelos vivos Rodrigues parte da proposiccedilatildeo conceitual de Van Gennep para compreender os ritos fuacutenebres O ldquorito de passagemrdquo permite ao autor articular o processo de separaccedilatildeo do morto da sociedade dos vivos no qual afere a ideia de que a morte natildeo eacute um fim inexoraacutevel para o morto mas

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uma passagem de uma ldquoforma de vida social a uma outra ela natildeo eacute o fim da vida mas iniciaccedilatildeo a uma novardquo (RODRIGUES 2006 p 43)

Destarte a partir deste luto os ritos vinculados a morte representam um conjunto de condutas culturais que possuem grande importacircncia e que tem como funccedilatildeo a constituiccedilatildeo de uma memoacuteria coletiva sobre o morto (MEDEIROS 2008 p 154) E com isto eacute perceptiacutevel como a morte e os ritos que lhe seguem satildeo de caraacuteter social e fundamentais para a manutenccedilatildeo da ordem no mundo dos vivos e dos mortos

Sendo assim Jean-Pierre Vernant afirma que para os gregos a ldquoideacuteia que a morte eacute um limiar intransponiacutevel atraacutes do qual se encontra um mundo que eacute um mundo de horror de anonimato um magma onde todos se perdemrdquo (VERNANT 2009 p 83) A morte para os gregos estaacute presente na ldquovida da poacutelisrdquo isto eacute a praacutetica de cuidar dos tuacutemulos renderem-lhes honras fuacutenebres a existecircncia de dias de festivais dedicados aos mortos a ponto de ser uma preocupaccedilatildeo de ordem econocircmica para os legisladores da cidade (BURKERT1993 pp 376-379)

Morrer adquire um status paradoxal implica na morte do indiviacuteduo a sua ldquoviagem para o esquecimentordquo mas a rememoraccedilatildeo constante feita pelos vivos seja pelo canto dos poetas seja pelo memorial funeraacuterio Era fundamental assim que a singularidade da existecircncia do indiviacuteduo de seus feitos do que havia sido permanecessem inscritos para sempre na memoacuteria dos homens (VERNANT 2009 p 86)

2 As passagens relacionadas ao morrer no mar

Homero eacute o primeiro a nos apontar a construccedilatildeo de um discurso sobre a morte no mar Na passagem do canto IV nos versos 708-711 ressalta que o arauto Meacutedon conta agrave Peneacutelope sobre a empreitada de Telecircmaco e a armadilha preparada pelos pretendentes visando findar com a vida de seu filho Nesta fala afirma que a morte no mar permite o esquecimento do defunto

Em nau veloz cavalo salso marinho em plena imensidatildeo aquosa natildeo carecia que zarpasse O proacuteprio nome quer que naufrague entre os humanos (HOMERO Odisseia IV 708-711)2

2 οὐδέ τί μιν χρεὼ νηῶν ὠκυπόρων ἐπιβαινέμεν αἵ θ᾽ ἁλὸς ἵπποι ἀνδράσι γίγνονται περόωσι δὲ πουλὺν ἐφ᾽ ὑγρήν ἦ ἵνα μηδ᾽ ὄνομ᾽ αὐτοῦ ἐν ἀνθρώποισι λίπηται

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A armadilha feita pelos inimigos conduziria agrave morte o jovem Telecircmaco fazendo seu corpo perdesse entre as ondas do mar Com o corpo perdido o crime seria encoberto e o a memoacuteria do jovem perdida por natildeo ser realizado o enterramento corretamente

Neste mesmo sentido o poeta do VII seacuteculo aC Arquiacuteloco enfatiza num mesmo sentido discursivo que natildeo eacute possiacutevel conceder as honras fuacutenebres aos mortos no mar Posidon oculta a dor aos parentes jaacute que natildeo poderiam ver os corpos sendo queimados na ldquochama de Hefestosrdquo com a seguinte passagem

Se Hefesto tivesse envolvido em seu vestido a cabeccedila e os membros dele Oculta os dolorosos presentes do Senhor Poseidon (ARQUIacuteLOCO vv 5-6)

No entanto eacute com Hipocircnax poeta do seacuteculo VI aC que vemos a primeira relaccedilatildeo entre a morte no mar e um ato de puniccedilatildeo

diga-me o modo para que lsquoesse infamersquo morra de uma maneira infame apedrejado por decisatildeo conjunta das pessoas agraves margens do mar esteacuteril (HIPOcircNAX 135 vv 3-4)

Nesta passagem o autor faz referecircncia a morte por apedrejamento junto a beira do mar O mar completa a cena de uma morte com caraacuteter negativo infame com esterilidade

Percebemos ateacute aqui que durante o periacuteodo arcaico a morte no mar eacute algo natildeo desejado pelos helenos algo que gera uma problemaacutetica no sistema dos ritos fuacutenebres Tambeacutem eacute na construccedilatildeo de um discurso socialmente construiacutedo que relaciona a negatividade atribuiacuteda agrave morte no meio inoacutespito ao cenaacuterio de uma morte sem gloacuteria calcada na proposiccedilatildeo de ampliar a puniccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo da morte de ldquoum infamerdquo Esse discurso perpassa os valores helecircnicos ateacute se cristalizar no discurso herodotiano

Na primeira das trecircs passagens Heroacutedoto nos relata um caso em que os nautai tentam usurpar os bens de um renomado aedo durante a travessia do mar Vejamos

Confiando em nenhum mais do que os Coriacutentios ele contratou um navio Coriacutentio para levaacute-lo a partir de Tarento Mas quando eles estavam em alto mar a tripulaccedilatildeo conspirarou para tomar o dinheiro de Arion e lanccedilaacute-lo ao mar Descobrindo isso ele suplicou fervorosamente pedindo por sua vida e oferecendo-lhes o seu dinheiro Mas a tripulaccedilatildeo natildeo iria ouvi-lo e disse-lhe quer se matar

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e assim receber o sepultamento em terra ou saltar para o mar de uma vez Abandonado a estes extremos Arion pediu que uma vez que eles tinham decido em suas mentes o deixassem ficar no conveacutes do navio com toda a sua regalia e cantar e ele prometeu que depois de cantar ele iria se entregar Os homens satisfeitos com a ideia de ouvir o melhor cantor do mundo afastaram-se em direccedilatildeo ao meio da nau a partir da popa Arion colocando todos os seus bens e tendo sua lira levantou-se no conveacutes e cantou a lsquoNomo orthiorsquo e quando a muacutesica terminou ele lanccedilou-se ao mar com todos os seus bens Assim a equipe partiu para Corinto mas um golfinho (assim diz a histoacuteria) tomou Arion em suas costas e o levou a Teacutenaro Desembarcando laacute ele foi para Corinto com seus bens e quando ele chegou ele relatou tudo o que havia acontecido Periandro ceacutetico manteve-o em regime de confinamento deixando-o ir a lugar nenhum e esperou pelos marinheiros Quando eles chegaram eles foram convocados e perguntou se trouxeram notiacutecias de Arion Enquanto eles estavam dizendo que ele estava seguro na Itaacutelia e que o tinha deixado satildeo e bem em Tarento Arion apareceu diante deles assim como foi quando ele pulou do navio espantado que natildeo podia mais negar o que foi provado contra eles (HEROacuteDOTO Histoacuterias I 24 2-7)3

Nesta passagem denotamos que para encobrir o crime a ser cometido contra Arion os navegantes optam por lanccedila-lo ao mar desaparecendo com seu corpo e escondendo o crime cometido Satildeo as atribuiccedilotildees que caracterizam o mar que apresentaremos em breve que aqui fica evidenciado o mar faz com que o corpo desapareccedila Aleacutem disso a oposiccedilatildeo ldquolanccedilar-se ao marrdquo e ldquoreceber o sepultamentordquo fica notadamente evidenciada nesta passagem Morrer no mar caso ele saltasse significaria a ausecircncia dos devidos ritos fuacutenebres

A passagem seguinte de Heroacutedoto mostra uma intriacutenseca relaccedilatildeo entre o ato criminoso e a capacidade do mar de encobrir o corpo

3 οὔκων δὴ πείθειν αὐτὸν τούτοισι ἀλλὰ κελεύειν τοὺς πορθμέας ἢ αὐτὸν διαχρᾶσθαί μιν ὡς ἂν ταφῆς ἐν γῇ τύχῃ ἢ ἐκπηδᾶν ἐς τὴν θάλασσαν τὴν ταχίστην ἀπειληθέντα δὴ τὸν Ἀρίονα ἐς ἀπορίην παραιτήσασθαι ἐπειδή σφι οὕτω δοκέοι περιιδεῖν αὐτὸν ἐν τῇ σκευῇ πάσῃ στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι ἀεῖσαι ἀείσας δὲ ὑπεδέκετο ἑωυτὸν κατεργάσασθαι καὶ τοῖσι ἐσελθεῖν γὰρ ἡδονὴν εἰ μέλλοιεν ἀκούσεσθαι τοῦ ἀρίστου ἀνθρώπων ἀοιδοῦ ἀναχωρῆσαι ἐκ τῆς πρύμνης ἐς μέσην νέα τὸν δὲ ἐνδύντα τε πᾶσαν τὴν σκευὴν καὶ λαβόντα τὴν κιθάρην στάντα ἐν τοῖσι ἑδωλίοισι διεξελθεῖν νόμον τὸν ὄρθιον τελευτῶντος δὲ τοῦ νόμου ῥῖψαί μιν ἐς τὴν θάλασσαν ἑωυτὸν ὡς εἶχε σὺν τῇ σκευῇ πάσῃ καὶ τοὺς μὲν ἀποπλέειν ἐς Κόρινθον τὸν δὲ δελφῖνα λέγουσι ὑπολαβόντα ἐξενεῖκαι ἐπὶ Ταίναρον ἀποβάντα δέ αὐτὸν χωρέειν ἐς Κόρινθον σὺν τῇ σκευῇ καὶ ἀπικόμενον ἀπηγέεσθαι πᾶν τὸ γεγονός Περίανδρον δὲ ὑπὸ ἀπιστίης Ἀρίονα μὲν ἐν φυλακῇ ἔχειν οὐδαμῇ μετιέντα ἀνακῶς δὲ ἔχειν τῶν πορθμέων ὡς δὲ ἄρα παρεῖναι αὐτούς κληθέντας ἱστορέεσθαι εἴ τι λέγοιεν περὶ Ἀρίονος φαμένων δὲ ἐκείνων ὡς εἴη τε σῶς περὶ Ἰταλίην καί μιν εὖ πρήσσοντα λίποιεν ἐν Τάραντι ἐπιφανῆναί σφι τὸν Ἀρίονα ὥσπερ ἔχων ἐξεπήδησε καὶ τοὺς ἐκπλαγέντας οὐκ ἔχειν ἔτι ἐλεγχομένους ἀρνέεσθαι

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Temendo pois para si mesmo para que seu irmatildeo poderia mataacute-lo e assim por ser rei ele enviou Prexaspes o mais confiaacutevel de seus persas para a Peacutersia para mataacute-lo Prexaspes foi para Susa e matou Esmeacuterdis levando-o para caccedilar de acordo alguns ou de acordo com os outros levando ao mar Eritreu e laacute jogou-o nas aacuteguas profundas (HEROacuteDOTO Histoacuterias III 30 3)4

Na segunda passagem Cambises receoso por um sonho ordenou a morte de seu irmatildeo Esmeacuterdis com medo deste tirar seu trono Aqui o mar aparece como um lugar vinculado agrave ideia de morte escondida no qual natildeo haacute evidecircncias O fratriciacutedio real ainda que cometido por terceiros na visatildeo helecircnica era puniacutevel pois seria cometido um crime de sangue

Por fim a terceira passagem nos apresenta a histoacuteria de Estearco que induzido por sua nova esposa de que sua filha era uma prostituta pede a seu hoacutespede Temison que jogue sua filha ao mar Natildeo somente o pai se nega a cometer diretamente um crime familiar matando sua filha mas tambeacutem solicita-o ao hoacutespede ndash que acaba sentindo-se na necessidade de retribuir a hospitalidade de Estearco Na passagem vecirc-se ldquoe o manda que a jogue no marrsquo (HEROacuteDOTO Histoacuterias IV 154 3)5

O mar aparece novamente como aquele com o poder de encobrir os crimes cometidos atraveacutes da destruiccedilatildeo do corpo Nem o corpo nem o crime seriam levados de volta agrave sociedade O mar eacute entatildeo o espaccedilo do desaparecimento aquilo capaz de ldquoEsconder os corpos e os crimesrdquo

3 O mar que esconde os corpos e os crimes

Em um estudo sobre o mar como um lugar de natildeo-retorno realizado por Astrid Lindenlauf (2003 pp 416-433) no qual o Mediterracircneo servia como um toacutepos para o descarte de objetos indesejados6 percebemos que o mar era

4 πρὸς ὦν ταῦτα δείσας περὶ ἑωυτοῦ μή μιν ἀποκτείνας ὁ ἀδελφεὸς ἄρχῃ πέμπει Πρηξάσπεα ἐς Πέρσας ὃς ἦν οἱ ἀνὴρ Περσέων πιστότατος ἀποκτενέοντά μιν ὁ δὲ ἀναβὰς ἐς Σοῦσα ἀπέκτεινε Σμέρδιν οἳ μὲν λέγουσι ἐπ᾽ ἄγρην ἐξαγαγόντα οἳ δὲ ἐς τὴν Ἐρυθρὴν θάλασσαν προαγαγόντα καταποντῶσαι

5 καὶ ταύτην ἐκέλευε καταποντῶσαι ἀπαγαγόντα

6 Exemplos que a autora expotildee lanccedilamento de estaacutetua de liacutederes poliacuteticos indesejado que representaria uma declaraccedilatildeo poliacutetica simboacutelica visando o apagamento da memoacuteria O lanccedilamento do corpo de um inimigo assassinado representava a negaccedilatildeo do enterro (LINDENLAUF 2003 pp 420-421)

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compreendido entre os helenos antigos como um lugar de onde nada ndash exceto em alguns casos ndash retornava de volta agraves vistas da sociedade A profundidade sua capacidade de submersatildeo a imensidatildeo a vastidatildeo e o constante movimento do mar geravam a percepccedilatildeo do mar como uma possibilidade do desaparecimento por completo (LINDENLAUF 2003 pp 423-424) Assim tambeacutem ocorreria para aqueles que morriam em meio mariacutetimo Todo este imaginaacuterio de poder de desaparecimento de objetos e pessoas indesejadas nos reforccedila a ideia do mar como um local de morte sem retorno

A partir destas capacidades que geram os desaparecimentos em algumas das passagens destacadas percebemos sua utilizaccedilatildeo para o encobrimento de atos considerados criminosos Fosse pela trama dos pretendentes contra Telecircmaco fosse pelo assassinato de Esmeacuterdis por ordem do irmatildeo a temaacutetica e as discussotildees sobre os atos infracionais na ordem social tambeacutem eram pontuados pelos tragedioacutegrafos Sem nos adentrarmos especificamente nestas dramatizaccedilotildees cabe-nos ressaltar que a ideia de crime de sangue ndash caso de alguns de nossos apontamentos anteriores ndash poderia ser considerado um dos piores tipos de crime Deste modo as trageacutedias estatildeo repletas de personagens que cometem crimes e satildeo julgados e punidos por estas accedilotildees Do parriciacutedio de Eacutedipo do matriciacutedio de Orestes dos filiciacutedios de Medeacuteia e Agamecircmnon do fratriciacutedio de Eteacuteocles e Polinices os helenos conviviam com estes embates em cenas e em seu imaginaacuterio onde havia o conflito entre forccedilas opostas no qual se deturpava a ordem anteriormente estabelecida Aos personagens traacutegicos temos a oposiccedilatildeo do ethhos (caraacuteter) e do daacuteimon (destino) no qual seus destinos satildeo previamente traccedilados pelos deuses e que ainda assim satildeo responsaacuteveis por seus atos criminosos (SANTOS 2005 pp 63-64)

Entre a capacidade do mar para o encobrimento de objetos e a necessidade de se esconder os corpos de crimes abjetos o mar proporciona em diversos niacuteveis esta possibilidade Natildeo satildeo somente as cinco caracteriacutesticas destacadas por Lindenlauf mas tambeacutem se deve considerar os seres que habitam o mar e que compotildeem este cenaacuterio de destruiccedilatildeo Como aponta Papadoupolos e Ruscillo o poder do mar centrava-se na capacidade de engolir e esconder um ser humano completamente aleacutem de contar com as inuacutemeras criaturas comedoras de carne em suas profundezas deste modo a morte no mar era parte da tradiccedilatildeo poeacutetica grega (2012 p 215) ldquoDesde Homero que o mar eacute o lugar dos heroacuteis o percurso a ser desbravado com coragem astuacutecia e ajuda dos deuses Entretanto isso natildeo quer dizer que o medo natildeo estivesse presente

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Os gregos sabiam o que um naufraacutegio representavardquo (VIEIRA 2010 p 60) Tanto que encontramos imagens em ceracircmica que representam o naufraacutegio e o poder destrutivo dos seres que o habitam

Esta cena estaacute em uma cratera datada de final do seacuteculo VIII aC encontrada em Pitecussa em estilo geomeacutetrico tardio (BUCHNER 1966 p 8) Nela podemos ver o naufraacutegio de um navio e seus tripulantes Em cena uacutenica vemos uma grande nau virada para baixo e dois navegantes entre os peixes logo abaixo dela Mais a esquerda da cena um enorme peixe devora um homem sua cabeccedila jaacute estando dentro da boca do peixe inclusive No restante da cena temos outros corpos e uma grande variedade de peixes

Neste contexto do periacuteodo arcaico a navegaccedilatildeo no Mediterracircneo ocidental estava pautada no processo de expansatildeo helecircnica tanto territorial quanto comercial O imaginaacuterio dos perigos do mar e dos animais que o habitavam ndash verdadeiros devoradores de homens ndash permeavam tambeacutem a construccedilatildeo imageacutetica

Da cena que apresentamos quanto destes homens poderiam ter sobrevivido Em qual situaccedilatildeo os corpos dos cadaacuteveres estariam se fossem encontrados Este imaginaacuterio de horror de uma morte longe das vistas da poacutelis de ausecircncia do corpo em ritos fuacutenebres marca a capacidade do mar e dos seres que o habitam de encobrir as mortes que ali ocorriam fossem por tempestades ou perigos inerentes agrave navegaccedilatildeo fossem por crimes cometidos e que se desejavam esconder da sociedade

4 Consideraccedilotildees finais

Podemos ver a partir da documentaccedilatildeo em que realizamos anaacutelise que essa morte marinha se coloca como o oposto da morte com seus rituais e a aproxima de atos criminosos ndash no sentido de encobrir tais atos O corpo se perdeu entre as ondas do mar foi danificado natildeo pode receber as honras fuacutenebres Natildeo eacute a ldquobela morterdquo de um guerreiro em batalha ndash morte tatildeo

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valorizada nos discursos ndash mas a ausecircncia do indiviacuteduo no qual o corpo se decompotildee no mar

A morte no mar representa o ldquolsquoultraje ao cadaacuteverrsquo ou seja o tratamento que se quer infligir aos inimigos mortos para que natildeo se tornem memoraacuteveis para os deixar apodrecerrdquo (VERNANT 2009 p 91) Natildeo eacute somente o corpo mas o esquecimento que o indiviacuteduo teraacute na memoacuteria dos vivos Os rituais fuacutenebres marcam a mnemosyne ndash Memoacuteria ndash guardam a lembranccedila e a manteacutem viva

Como aponta Joseacute Carlos Rodrigues ldquoa morte do corpo pode ser a morte do siacutembolo que o corpo eacute a morte do siacutembolo da estrutura socialrdquo (RODRIGUES 2006 p40) A simbolizaccedilatildeo da vida do defunto lhe eacute impressa em seu enterramento seu corpo faz parte da demarcaccedilatildeo social Quando haacute a ausecircncia do corpo como se realiza a marca de sua vida no enterramento

Eacute neste sentido que os rituais fuacutenebres emergem como complexos ritos que projetam a vida coletiva da sociedade no enterramento Estes ritos dependeratildeo estreitamente do tipo de morte da condiccedilatildeo do morto do status social dos sobreviventesvivos e sua relaccedilatildeo com o desaparecidomorto (Idem) Assim a ausecircncia do corpo nos ritos fuacutenebres traz problemaacuteticas a serem sanadas pelos vivos Morrer no mar eacute em muitos casos perder o corpo natildeo voltar Realizar uma demarcaccedilatildeo espacial e conceder ao morto um novo lugar para habitar atraveacutes da estela funeraacuteria O ldquocorpo se perde entre as ondasrdquo como jaacute cantavam os antigos aedos e rapsodos E uma vez perdidos entre as ondas como descobrir a forma de sua morte Como se diz que foi uma morte por naufraacutegio ou assassinato em alto-mar O mar desde os antigos mostra assim todas as suas potencialidades Potencialidades diversas que os helenos buscaram compreender dominar e representar

Abstract The power of the sea can be understood in its submersion capacity in its immensity and vastness in its depth and its constant movement These five characteristics ascribed by Astrid Lindenlauf (2003) in their study of the sea as a place of ldquono-returnrdquo enable us to perceive the potentialities of the sea in the disappearance and or cover-up of unwanted traces Thus we intend in this article to analyze passages that allow us to elucidate the relation of actions considered shameful criminal by Hellenic society with the sea in textual works of the archaic and classic periods and imagery representationKeywords Sea disappearance crimes

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Greacutecia Antiga Satildeo Luis Cafeacute amp Laacutepis e Editora UEMA 2011

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A ETNICIDADE NA SALA DE AULA O USO DE ADAPTACcedilOtildeES DE CLAacuteSSICOS DA ANTI-GUIDADE

Renata Cardoso de Sousa1

Existe por exemplo o gosto pela viagem ndash um prazer muito especial que natildeo deve ser confundido com fuga evasatildeo ou escapismo Eacute o gosto pela imersatildeo no desconhecido pelo conhecimento do outro pela exploraccedilatildeo da diversidade A satisfaccedilatildeo de se deixar transportar para outro tempo e outro espaccedilo viver outra vida com experiecircncias diferentes do cotidiano (MACHADO 2009 p 19 e 20)

Resumo Propomos pensar como eacute possiacutevel trabalhar o tema da etnicidade e do etnocentrismo na sala de aula a partir do uso de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade Para tal primeiramente eacute necessaacuterio estabelecer alguns criteacuterios para a utilizaccedilatildeo dessa literatura que ainda gera debates acerca da sua proficuidade bem como conceituar a etnicidade Partiremos dos conceitos de etnicidade (proposto por Fredrik Barth) e identidade-alteridade (de Marc Augeacute) para depois nos debruccedilarmos sobre propostas de trabalho com algumas adaptaccedilotildees selecionadasPalavras-chave Ensino de Histoacuteria adaptaccedilotildees literaacuterias etnicidade

Objetivamos nesse artigo pensar algumas questotildees concernentes tanto ao Ensino de Histoacuteria quanto agrave validade da utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees de claacutessicos da Antiguidade em sala de aula como forma de estiacutemulo agrave leitura Dentre essas questotildees estatildeo a) Por que tratar o tema da etnicidade e do etnocentrismo em sala de aula b) Por que recorrer agrave Antiguidade para (re)pensar a etnicidade c) Por que utilizar adaptaccedilotildees em sala de aula se podemos mediar a leitura do claacutessico com os alunos

Para tal proposta primeiro propomos pensar acerca do proacuteprio conceito e de sua importacircncia dentro do contexto escolar para depois pensarmos o

1 Professora Doutoranda do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada (PPGHC-UFRJ) Orientada pelo Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa Bolsista CAPES E-mail renatacardoso1990gmailcom

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conceito na Antiguidade grega Em seguida discutiremos a proficuidade das adaptaccedilotildees e definiremos mesmo o que seriam elas No final propomos algumas soluccedilotildees para o trabalho com o conceito de etnicidade utilizando adaptaccedilotildees da Odisseia em sala de aula com exemplos praacuteticos

10 ldquoA Histoacuteria eacute decorebardquo ou ldquoA Histoacuteria ensina fatos do passado natildeo do presenterdquo o senso comum e o Ensino de

Histoacuteria

Quem eacute professor de Histoacuteria em algum momento jaacute deve ter ouvido essas duas frases de alunos pais de alunos ou ateacute mesmo de diretores ou coordenadores Entretanto quando nos deparamos com as pesquisas no acircmbito do Ensino de Histoacuteria (e na aacuterea de ensino em geral) percebemos o quanto essas duas visotildees estatildeo ultrapassadas Os proacuteprios Paracircmetros Curriculares Nacionais do Ensino de Histoacuteria (PCN) desconstroem essa ideia

A construccedilatildeo de noccedilotildees interfere nas estruturas cognitivas do aluno modificando a maneira como ele compreende os elementos do mundo e as relaccedilotildees que esses elementos estabelecem entre si Isso significa dizer que quando o estudante apreende uma noccedilatildeo grande parte do que ele sabe e pensa eacute reorganizado a partir dela Na medida em que o ensino de Histoacuteria lhe possibilita construir noccedilotildees ocorrem mudanccedilas no seu modo de entender a si mesmo os outros as relaccedilotildees sociais e a Histoacuteria Os novos domiacutenios cognitivos do aluno podem interferir de certo modo nas suas relaccedilotildees pessoais e sociais e nos seus compromissos e afetividades com as classes os grupos sociais as culturas os valores e as geraccedilotildees do passado e do futuro (BRASIL 1998 p 35)

Sendo assim o Ensino de Histoacuteria deixa de se basear na mera reproduccedilatildeo dos fatos histoacutericos e a cobranccedila deles nas provas ele comeccedila a elaborar uma seacuterie de objetivos (como os proacuteprios objetivos gerais do PCN ndash BRASIL 1998 p 43) que buscam a utilizaccedilatildeo da Histoacuteria para construir pessoas criacuteticas capazes de utilizar o arcabouccedilo conceitual que possuem para discutir acerca da sua proacutepria realidade e tambeacutem modificaacute-la

Fato eacute que frequentemente nos deparamos com esses dois estereoacutetipos do Ensino de Histoacuteria os quais dificultam (mas natildeo impossibilitam) o avanccedilo da aplicaccedilatildeo da pesquisa agrave praacutetica escolar (algo tambeacutem tatildeo caro ao PCN2) Ainda nos deparamos com muitos estereoacutetipos nos livros didaacuteticos

2 ldquoNas uacuteltimas deacutecadas por diferentes razotildees nota-se uma crescente preocupaccedilatildeo dos professores do ensino fundamental em acompanhar e participar do debate historiograacutefico criando

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de Histoacuteria (como a ldquoIdade Meacutedia trevosardquo ou a ldquoinvasatildeo dos baacuterbarosrdquo) bem como agraves vezes somos pressionados como professores a fazer provas que satildeo meras verificaccedilotildees e natildeo avaliaccedilotildees (LUCKESI 2008 p 93) A Histoacuteria eacute para ser compreendida natildeo decorada por meio de um questionaacuterio E ela eacute para ser compreendida natildeo para servir de exemplo mas para fazer refletir acerca do nosso proacuteprio presente e nos fazer entender como chegamos ao ponto em que estamos

A avaliaccedilatildeo nesse sentido deixaria de se ater apenas agrave verificaccedilatildeo de um conteuacutedo fatual inculcado mas traria situaccedilotildees-problema e questotildees culturais do proacuteprio cotidiano e da realidade nacional e internacional para que o aluno pudesse aplicar os conhecimentos acerca do estudo da Histoacuteria Ele demonstraria que de fato aprendeu a pensar historicamente e a aplicar esse pensamento agrave sua realidade e natildeo apenas decorou o conteuacutedo para passar de ano

Isso natildeo significa abandonar o fato histoacuterico mas sobretudo utilizaacute-los para pensar acerca do presente e instigar o contato com a alteridade por parte do educando a fim de que ele possa assim reconhecer sua proacutepria identidade e natildeo desrespeitar ou repudiar as maneiras pelas quais o Outro constroacutei sua proacutepria identidade Esse eacute outro ponto (o respeito agraves alteridades) que toca o PCN (BRASIL 1998 p 35 e 36) de modo natildeo a simplesmente ldquoformar cidadatildeos brasileirosrdquo como era a proposta majoritaacuteria no Ensino de Histoacuteria (NADAI 2017 p 30) mas formar pessoas que tecircm o respeito como valor maacuteximo

Em tempos sombrios nos quais cada vez mais vemos um retrocesso em relaccedilatildeo ao respeito aos direitos humanos e agraves pessoas que pensamagem diferente de noacutes nos quais a liberdade de expressatildeo eacute confundida com liberdade de opressatildeo e liberdade de ofensa eacute mister que o exerciacutecio da alteridade seja um dos nortes da Educaccedilatildeo Para isso eacute preciso compreender alguns conceitos como os de identidade alteridade etnicidade e etnocentrismo Eacute por esse motivo que eacute importante na sala de aula natildeo soacute ldquopassarmos todo o conteuacutedordquo mas tambeacutem fazer os educandos refletirem acerca dos conceitos que perpassam a Histoacuteria

As conceituaccedilotildees e as noccedilotildees em vez de serem trabalhadas por meio de suas caracteriacutesticas geneacutericas assumem especificaccedilotildees histoacutericas possibilitando

aproximaccedilotildees entre o conhecimento histoacuterico e o saber histoacuterico escolar Reconhece-se que o conhecimento cientiacutefico tem seus objetivos sociais e eacute reelaborado de diversas maneiras para o conjunto da sociedade Na escola ele adquire ainda uma relevacircncia especiacutefica quando eacute recriado para fins didaacuteticosrdquo (BRASIL 1998 p 30)

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o diaacutelogo entre os sujeitos que falam pelos documentos legados ao presente e aqueles que os interpretam Nesse sentido eacute importante recuperar na Histoacuteria a historicidade dos conceitos sua relaccedilatildeo com a interpretaccedilatildeo e categorizaccedilatildeo de fenocircmenos em contextos temporais especiacuteficos (BRASIL 1998 p 82)

ldquoRevoluccedilatildeordquo ldquodescobrimentordquo ldquonacionalismordquo ldquoidentidaderdquo ldquoalteridaderdquo e ldquoetnicidaderdquo satildeo exemplos de conceitos que estatildeo presentes em vaacuterias eacutepocas em vaacuterias sociedades e inclusive na nossa proacutepria sociedade Aleacutem disso esses conceitos satildeo passiacuteveis de interpretaccedilotildees diversas revelando a reflexatildeo acerca deles bastante profiacutecua para o aluno entender melhor o que eacute a Histoacuteria e o que eacute o processo histoacuterico No entanto eacute preciso que o professor saiba lidar com esses conceitos

Se o professor natildeo tiver clareza sobre o sentido e aplicaccedilatildeo de conceitos como cidadania diferenccedila semelhanccedila permanecircncia transformaccedilatildeo questionamento convivecircncia e outros que compotildeem o vocabulaacuterio dos programas e materiais de ensino como seraacute possiacutevel conduzir ou mesmo participar de um projeto de aprendizagem (MICELI 2017 p 40 ndash grifos do autor)

Por isso eacute necessaacuterio que antes de entrarmos no meacuterito do trabalho com o conceito de etnicidade compreendecirc-lo melhor sobretudo no que tange a Greacutecia Antiga nosso foco de anaacutelise

20 O que eacute a etnicidade

Essa eacute uma pergunta sem resposta definitiva desde os anos 1960 se tenta fechar o conceito de etnicidade mas sem sucesso uma vez que essas tentativas como a de Burgess em 1978 de se cristalizar de modo estanque o conceito acaba mais por generalizaacute-lo do que defini-lo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Contudo precisamos considerar que a etnicidade diferentemente da alteridade tem relaccedilatildeo intriacutenseca com a origem em comum de um povo conectada com um territoacuterio especiacutefico

Eacute Fredrik Barth quem estabelece um conceito de etnicidade bastante proacuteximo do que entendemos por etnicidade o autor afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado pelo conceito de etnicidaderdquo

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afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (2011 p 141) eacute aquele que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees raciaisrdquo

Aleacutem disso Barth enfoca justamente nos limites do grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo (LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)

Por colocar em jogo essa relaccedilatildeo entre o ldquoNoacutesrdquo e o ldquoElesrdquo eacute imprescindiacutevel aliar agraves anaacutelises eacutetnicas o par conceitual identidadealteridade Seguimos o norte teoacuterico do antropoacutelogo Marc Augeacute que natildeo enxerga esses dois conceitos de maneira diametralmente oposta mas como um par complementaacuterio a identidade natildeo existe sem definiccedilotildees de alteridade e vice-versa (AUGEacute 1998 p 28) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no contato entre os colonizadores e os nativos e procuramos reapropriar proficuamente seu arcabouccedilo conceitual para a anaacutelise do nosso objeto histoacuterico-discursivo

O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica assim como o de etnicidade o contato com outras culturas eacute imbuiacutedo de choques No entanto Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de Outro retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) O proacuteprio conectivo adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 pp 63-64) o ldquooutrordquo assemelha-se ao ldquomasrdquo ao adverso

Os estudos de etnicidade em relaccedilatildeo agrave Antiguidade grega satildeo recentes e encontraram em Edith Hall Jonathan Hall e Irad Malkin grande expressatildeo Este uacuteltimo sobretudo adentra mais ainda o tema retirando das Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) o suposto meacuterito de ter contribuiacutedo para o desenvolvimento de relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e seus Outros se debruccedilando sobre a Odisseia de Homero

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No nosso trabalho de doutorado objetivamos incluir a Iliacuteada no centro das discussotildees acerca da etnicidade tambeacutem bem como pensar a construccedilatildeo de um processo discursivo em torno da etnicidade e da identidade-alteridade em Homero Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides sendo o primeiro o arquitexto desses trecircs uacuteltimos Objetivamos analisar como as fronteiras eacutetnicas entre os gregos e seus Outros (e posteriormente entre a poacutelis ateniense e as demais sobretudo as peloponeacutesicas) satildeo construiacutedas desde as epopeias homeacutericas inclusive a Iliacuteada no bojo da relaccedilatildeo de inimizade na guerra entre troianos e aqueus

Na Odisseia de fato as relaccedilotildees eacutetnicas entre os gregos e os seus Outros ficam mais evidentes por conta dos enfrentamentos de Odisseu com a alteridade em sua viagem de retorno a Iacutetaca Embora ele se depare com diversos povos (como os ciacutecones os lestrigotildees os lotoacutefagos e ateacute mesmo os feaacutecios que embora muito parecidos com os gregos em sua cultura resistem agrave amizade ritual elemento distintivo entre eles e os baacuterbaros no processo discursivo helecircnico) e pessoas (como Circe e Calipso que satildeo feiticeiras) que destoam do ideal de conduta e civilizaccedilatildeo gregas eacute no episoacutedio dos ciclopes que as marcas eacutetnicas entre os gregos e seus Outros ficaratildeo mais evidentes

Esse episoacutedio eacute tatildeo marcante que ele natildeo se restringe apenas ao Canto IX no qual ele eacute narrado em vaacuterios Cantos da Odisseia o Ciacuteclope reaparece mesmo que seja apenas mencionado (HOMERO Odisseia I vv 69-73 II vv 19-20 X vv 200 e 435 XII vv 209-212 XX vv 18-21 XXIII vv 312-314) Haacute uma construccedilatildeo de fronteiras eacutetnicas flagrante nesse encontro que seraacute explorada no seacuteculo V aC por Euriacutepides no seu drama satiacuterico O Ciacuteclope Eles satildeo descritos do seguinte modo por Odisseu ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεμίστων ἱκόμεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)

Polifemo eacute descrito como um monstro aos olhos do heroacutei eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) como os outros Ciclopes O Ciclope nega uma suacuteplica ao natildeo hospedar Odisseu Isso gera um estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) A consequecircncia da perdiccedilatildeo dele eacute o vazamento de seu uacutenico olho pelo heroacutei da epopeia Contudo a proacutepria hyacutebris (desmedida) de Odisseu ao se vangloriar de tal feito o faz vagar mais pelo mar ateacute conseguir chegar em sua terra natal Iacutetaca

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Para definir o que ele entende por civilizaccedilatildeo ele utiliza a definiccedilatildeo do Outro os gregos respeitam a lei porque os Outros natildeo o fazem a agricultura eacute a atividade que concede identidade aos gregos porque os Outros natildeo a praticam o patildeo eacute o alimento por excelecircncia dos gregos porque os outros natildeo cozinham o alimento nem o fabricam E assim por diante Do mesmo modo noacutes fazemos nos orgulhamos de certos traccedilos eacutetnicos porque satildeo exclusivos a noacutes no plano discursivo natildeo satildeo compartilhados com os Outros

Para levar essa discussatildeo para a sala de aula propomos a utilizaccedilatildeo de adaptaccedilotildees Para tal devemos primeiramente definir o que entendemos por adaptaccedilatildeo e debater acerca das particularidades do uso e estudo delas

30 Consideraccedilotildees iniciais acerca da recepccedilatildeo das adaptaccedilotildees

Quando vamos ao cinema assistir a um filme baseado em um livro eacute comum sairmos frustrados acabamos chegando agrave conclusatildeo de que era melhor ter lido o livro somente Cenas satildeo cortadas ou amalgamadas os personagens e os cenaacuterios nem sempre correspondem agrave descriccedilatildeo do livro os diaacutelogos satildeo suprimidos e ou simplificados Isso ocorre porque um livro na verdade satildeo muitos livros cada vez que algueacutem o lecirc interpreta e imagina de um jeito os personagens cenaacuterios cenas diaacutelogos Eacute como se fosse um filme interior passando dentro de nossas cabeccedilas E nenhum cineasta pode estar dentro de nossas cabeccedilas para imaginar como gostariacuteamos de ver um livro representado nas telas Afinal ele mesmo imaginou e criou o mundo do livro em seus pensamentos tambeacutem

Aleacutem disso haacute a questatildeo da narrativa a dinacircmica de um livro eacute diferente da de um roteiro de cinema dos planos cinematograacuteficos que existem no discurso fiacutelmico Seguindo o mesmo raciociacutenio podemos pensar acerca das adaptaccedilotildees literaacuterias O adaptador leu o livro imaginou-o viveu todas aquelas cenas e personagens em sua mente Entretanto ele decide natildeo ficar com isso somente para si ele quer contar para crianccedilas e jovens o que leu o que imaginou o que interpretou E faz a adaptaccedilatildeo daquele livro para um puacuteblico infanto-juvenil cuja literatura demanda um outro tipo de linguagem um outro tipo de discurso diferente daquele do livro para um puacuteblico adulto ou para um puacuteblico infanto-juvenil de eacutepocas precedentes

Por conta disso as adaptaccedilotildees satildeo vistas agraves vezes como elementos empobrecedores dos claacutessicos

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A adaptaccedilatildeo das obras claacutessicas das literaturas nacional e mundial eacute um tema que desperta polecircmica e divide opiniotildees Natildeo poderia ser diferente jaacute que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo natildeo se reduz a um sentido consensual pode ser associada tanto agrave noccedilatildeo de ldquoenriquecimentordquo quanto agrave de ldquoempobrecimentordquo Geralmente argumenta-se que empobreceria as literaturas claacutessicas em virtude de um processo de atualizaccedilatildeo e de simplificaccedilatildeo que visaria a atender a puacuteblicos especiacuteficos como o infantil e o infanto-juvenil Por razotildees semelhantes tornaria possiacutevel o enriquecimento da formaccedilatildeo educativa desses puacuteblicos introduzindo obras de difiacutecil acesso cuja linguagem seria ldquocomplexardquo ou temporalmente distante da linguagem com a qual tais leitores estariam habituados Em ambos os casos a adaptaccedilatildeo seria um conceito amplo que abarcaria as mais diversas formas de linguagem como histoacuteria em quadrinhos adaptaccedilotildees cinematograacuteficas e televisivas desenhos animados audio-books e os trabalhos em forma de narrativa (AMORIM 2005 p 119)

De fato a adaptaccedilatildeo ou releitura daquele livro natildeo seraacute igual ao original assim como o filme do livro natildeo eacute igual ao livro afinal a proposta eacute diferente e os autores satildeo diferentes ldquoA reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a lsquomesma coisarsquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidaderdquo (AMORIM 2005 p 95) Se nos deparamos com uma adaptaccedilatildeo de Miguel de Cervantes William Shakespeare ou Homero natildeo satildeo mais Cervantes Shakespeare e Homero que estatildeo contando aquela histoacuteria eacute o autor da proacutepria adaptaccedilatildeo

Parece oacutebvio afirmar isso mas ainda existe uma preocupaccedilatildeo em denunciar as dissonacircncias entre a adaptaccedilatildeo e o original em detrimento de analisar os porquecircs daquelas dissonacircncias Os textos claacutessicos satildeo arquitextos tanto para as adaptaccedilotildees ou releituras quanto para outros textos que natildeo faccedilam referecircncia direta a esses claacutessicos Os temas da morte que gera vinganccedila por parte daquele que ainda vive dos erros do heroacutei que o leva ao amadurecimento do reconhecimento da bestializaccedilatildeo do ser humano do ponto fraco do heroacutei satildeo vistos inuacutemeras vezes na literatura mundial e estatildeo presentes em textos que remontam agrave Antiguidade Claacutessica Deveria ser Robinson Crusoeacute menos claacutessico que Odisseu Ou Robin Hood menos claacutessico que Paacuteris Afinal o tema da permanecircncia em lugares hostis e da descoberta do filho perdido natildeo foram criados por Defoe e Dumas respectivamente O proacuteprio Alexandre Dumas ao escrever seu As aventuras de Robin Hood estava recriando o personagem das gestas medievais que foram cristalizadas na escrita tempos depois de terem sido cantadas por seacuteculos Afinal

A reescritura proposta natildeo eacute simplesmente a ldquomesma coisardquo que o texto original haacute novas associaccedilotildees e outros interesses que satildeo focalizados em

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novos contextos satildeo outros alunos e professores que se serviratildeo da obra num contexto cultural marcado por sua especificidade (AMORIM 2005 p 95)

40 Afinal o que eacute uma adaptaccedilatildeo

Yves Gambier logo no iniacutecio do seu artigo escreve que a adaptaccedilatildeo natildeo teve ainda algum estudo rigoroso ou sistemaacutetico sendo caracterizada sobretudo pela ldquofetichizaccedilatildeordquo do original ldquoA partir de quando podemos dizer que ela [a adaptaccedilatildeo] desfigura lsquotrairsquo o original Segundo quais normas ela se realizardquo (GAMBIER 1992 p 421 e 424)

Objetivamos pensar aqui a adaptaccedilatildeo como ldquolsquohistoacuterias recontadasrsquo reescrituras de obras claacutessicas das literaturas estrangeira e nacional direcionadas a um puacuteblico especiacutefico como o infanto-juvenilrdquo (AMORIM 2005 p 16) Satildeo ldquotextos novos construiacutedos sobre enredos antigosrdquo (FEIJOacute 2010 p 42) Essas adaptaccedilotildees natildeo deixam de ser traduccedilotildees e tambeacutem releituras uma vez que estatildeo recontando as histoacuterias originais a fim de tornaacute-las inteligiacuteveis para o sujeito destinataacuterio delas as crianccedilas e os jovens

Yves Gambier (1992 p 422) inclusive critica uma tentativa de diferenciar adaptaccedilatildeo de traduccedilatildeo mostrando que adaptaccedilatildeo pode ser concebida como a) praacutetica de ldquoadicionar eou omitir para que o texto de chegada (TC) tenha o lsquomesmo efeitorsquo que o texto de partida (TP) dando-se enfoque aos receptores (cultura e liacutengua de chegada)rdquo b) ldquofazer obra original a partir de uma outra composta no mesmo sistema de signos ou natildeordquo c) ldquotransformar um texto visando um certo leitorado por razotildees e segundo criteacuterios socioeconocircmicos declarados ou natildeordquo Desse modo inclusive ele ratifica o conceito de ldquotradaptaccedilatildeordquo de Michel Garneau que viria a eliminar as dicotomias entre a adaptaccedilatildeo e a traduccedilatildeo

O fato de o sujeito destinataacuterio delas serem crianccedilas e jovens natildeo implica que as adaptaccedilotildees sejam exclusivas a esse puacuteblico uma vez que adultos podem se tornar sujeitos receptores desses textos O contraacuterio tambeacutem acontece ldquoPode ateacute acontecer que a crianccedila entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o natildeo foi venha a preferir o segundo Tudo eacute misterioso nesse reino que o homem comeccedila a desconhecer desde que o comeccedila a abandonarrdquo (MEIRELES 2016 p 19)

As adaptaccedilotildees satildeo ldquoum tipo especial de traduccedilatildeo que envolve[m] seleccedilatildeo de conteuacutedo ndash pois resume[m] o enredo ndash e adequaccedilatildeo da linguagem para apresentar a obra escolhida aos jovens de um novo tempo e assim a tradiccedilatildeo

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se perpetua e se legitima por meio da renovaccedilatildeordquo (FEIJOacute 2010 p 44) Ela eacute a ldquoatualizaccedilatildeo de um discurso literaacuteriordquo (FEIJOacute 2010 p 63) pois ldquo[] as obras tradicionais satildeo reelaboradas ou reinterpretadas agrave luz das preocupaccedilotildees sociais morais e literaacuterias de cada momento histoacutericordquo (COLOMER 2017 p 25)

Em defesa das adaptaccedilotildees existe uma tendecircncia a se utilizar o conceito de interdiscurso3 arquitexto4 ou intertexto5 oriundos da Anaacutelise do Discurso no intuito de se dizer que assim como os diversos textos contemporacircneos utilizam os claacutessicos e natildeo satildeo criticados as adaptaccedilotildees assim tambeacutem natildeo o devem ser6 Contudo natildeo compartilhamos dessa ideia os processos interdiscursivos que perpassam os textos natildeo devem ser confundidos ou assemelhados a uma tentativa de tornar inteligiacutevel e acessiacutevel textos por parte de um puacuteblico leitor iniciante como eacute o caso da adaptaccedilatildeo

As adaptaccedilotildees geralmente (mas natildeo necessariamente) estatildeo atreladas agrave literatura infanto-juvenil Foi a partir do seacuteculo XVIII (quando uma noccedilatildeo de infacircncia comeccedila a surgir) que a literatura infanto-juvenil comeccedila a aparecer7 mas com esses fins exclusivamente exemplares Teresa Colomer (2017 p 19)

3 Interdiscurso eacute o conjunto de discursos que antecedem um texto e que o perpassam

4 O arquitexto eacute um texto claacutessico

5 Intertexto satildeo os textos que estatildeo presentes em outros textos seja por meio de citaccedilatildeo direta ou referecircncia sem necessariamente apontar a autoria original

6 ldquoEm favor da posiccedilatildeo de [Monteiro] Lobato e Nelly [Novaes Coelho] seria interessante ainda argumentar que se aceitamos o conceito de intertexto ou seja essa ideia de que a literatura se constroacutei como infinito mosaico de citaccedilotildees e influecircncias mais ou menos remotas a desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees deveria ser amenizada Afinal se eacute vaacutelida a premissa de que alguns lsquoclaacutessicosrsquo satildeo obras fundadoras ou canocircnicas que ao longo do tempo se tornam balizas significativas para um dado patrimocircnio cultural ateacute que ponto as demais obras produzidas natildeo podem ser compreendidas como contiacutenuas lsquoadaptaccedilotildeesrsquo literaacuterias dessas matrizesrdquo (CECCANTINI 2004 p 86)ouldquoSe aceitarmos a ideia de que os claacutessicos podem ser classificados como lsquotextos primeirosrsquo [esse seria o arquitexto] e dar origem indefinidamente a novos textos ndash sempre atualizados com o contexto histoacuterico em que satildeo produzidos e com puacuteblico a que se destinam ndash entatildeo poderemos pensar a adaptaccedilatildeo como um procedimento habitual e inerente agrave renovaccedilatildeo da tradiccedilatildeo literaacuteria como perpetuaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos cacircnonesrdquo (FEIJOacute 2010 p 43)

7 Teresa Colomer se refere aqui agrave literatura cujo sujeito destinataacuterio eram as crianccedilas e jovens Podemos entender melhor essa ideia se analisarmos as trecircs categorias de livros infantis natildeo-intencionais que Ceciacutelia Meireles (2016 p 52) distingue em 1951 1) a redaccedilatildeo escrita das tradiccedilotildees orais (como Perrault e Grimm) 2) os livros escritos para uma determinada crianccedila que depois passaram para uso geral (como La Fontaine) 3) livros natildeo escritos para crianccedilas que vieram a cair em suas matildeos e dos quais se fizeram adaptaccedilotildees visando tornaacute-los mais compreensiacuteveis ou adequados ao puacuteblico infantil

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afirma que por muito tempo a literatura voltada para crianccedilas e adolescentes focou na exemplaridade e no didatismo Natildeo que os textos antigos como Homero natildeo trouxessem coacutedigos de conduta a serem seguidos (ateacute porque esses textos eram utilizados na formaccedilatildeo dos gregos poliacuteades) mas eles natildeo foram escritos com tal propoacutesito (MEIRELES 2016 p 43)

Colomer (2017 p 20) defende que a literatura infanto-juvenil estaacute aleacutem disso ela vai ldquo1) Iniciar o acesso ao imaginaacuterio compartilhado por uma determinada sociedade 2) Desenvolver o domiacutenio da linguagem atraveacutes das formas narrativas poeacuteticas e dramaacuteticas do discurso literaacuterio 3) Oferecer uma representaccedilatildeo articulada do mundo que sirva como instrumento de socializaccedilatildeo das novas geraccedilotildeesrdquo A literatura infantil natildeo serve soacute para ensinar exemplos mas para tornar a crianccedila um leitor literaacuterio (COLOMER 2017 p 31)

Para o Ensino da Histoacuteria a primeira e a terceira funccedilatildeo satildeo essenciais para que consideremos o uso dessa literatura na sala de aula As primeiras adaptaccedilotildees inclusive foram feitas por professores (FEIJOacute 2010 p 61) Daiacute a importacircncia da atividade pedagoacutegica para o bom aproveitamento de uma adaptaccedilatildeo Para trabalhar com esse tipo de literatura eacute necessaacuterio ler o original a fim de tanto poder selecionar melhor as adaptaccedilotildees aos propoacutesitos da atividade pedagoacutegica proposta quanto trabalhar melhor com a adaptaccedilatildeo na sala de aula (FEIJOacute 2010 p 150)

No Brasil as adaptaccedilotildees se popularizaram nos anos 1970 junto com a literatura infanto-juvenil em geral (FEIJOacute 2010) Entretanto jaacute no iniacutecio do seacuteculo temos as primeiras adaptaccedilotildees literaacuterias aqui feitas por Monteiro Lobato A partir dele muitos outros autores renomados da literatura brasileira se dedicaram agrave adaptaccedilatildeo Clarice Lispector Rubem Braga Paulo Mendes Campos Ana Maria Machado Essa uacuteltima inclusive aleacutem de escrever adaptaccedilotildees refletiu acerca delas em seu Como e por que ler os claacutessicos universais desde cedo

Defendemos que a adaptaccedilatildeo natildeo pode ser tratada como literatura inferior uma vez que isso seria tratar a literatura infanto-juvenil do mesmo modo Aleacutem disso quantas pessoas natildeo comeccedilaram a ler os claacutessicos porque leram boas adaptaccedilotildees deles na infacircncia Joatildeo Luiacutes Ceccantini em 1997 escreveu para o jornal Proleitura um artigo sobre as adaptaccedilotildees de claacutessicos e afirmou que ldquoa cada adaptaccedilatildeo bem realizada de um claacutessico (nas vaacuterias linguagens) eacute grande o nuacutemero de leitores que se dirige aos textos originaisrdquo (CECCANTINI 2004 p 87) Fato este que atestei inuacutemeras vezes ao longo da minha experiecircncia como professora do Instituto de Histoacuteria da Universidade

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Federal do Rio de Janeiro quando alunos vinham me abordar para conversar sobre as epopeias homeacutericas e as trageacutedias e mostrando que o interesse deles era derivado de eles terem lido quando crianccedilas adaptaccedilotildees desses claacutessicos

A adaptaccedilatildeo manteacutem na memoacuteria o original o claacutessico mas tambeacutem gesta mudanccedilas que dialogam com a escrita contemporacircnea agrave adaptaccedilatildeo (AMORIM 2005 p 30)

As inuacutemeras adaptaccedilotildees realizadas em momentos histoacutericos distintos concretizam o postulado de que a literatura natildeo se apresenta como uma uacutenica resposta para as diferentes perguntas surgidas em cada eacutepoca porque tanto o leitor como suas inquietaccedilotildees se modificam O olhar direcionado para obra busca compreender o presente ou mesmo o passado mas a sua histoacuteria natildeo eacute a igual a dos leitores preteacuteritos logo as questotildees formuladas ao texto seratildeo outras Cabe ao adaptador sujeito histoacuterico do seu tempo compreender as indagaccedilotildees dos leitores infanto-juvenis e as possibilidades da obra ao ser adaptada de respondecirc-las (CARVALHO 2006 p 18)

Desse modo eacute mais profiacutecuo analisar as adaptaccedilotildees como textos que dialogam com seus proacuteprios contextos de produccedilatildeo natildeo com os contextos de seus originais Afinal o autor das adaptaccedilotildees eacute um sujeito receptor a posteriori que natildeo estaacute inserido no contexto dos sujeitos destinataacuterios e receptores da eacutepoca em que o claacutessico foi composto (o que natildeo impede de procurar saber acerca desse contexto devendo inclusive fazecirc-lo para que sua adaptaccedilatildeo seja de boa qualidade)

50 Colocando em praacutetica ndash algumas breves sugestotildees

Por que trabalhar com a Antiguidade Claacutessica para se falar de etnicidade Ana Maria Machado ao falar sobre a literatura claacutessica afirma que

Guardada por tanto tempo e reconhecida como um tesouro da humanidade a cultura grega antiga sempre despertou o entusiasmo de leitores apaixonados em diferentes eacutepocas histoacutericas Satildeo uma fonte inesgotaacutevel onde sempre podemos beber Para muita gente eles satildeo os mais fascinantes de todos os claacutessicos Provavelmente satildeo os que mais marcaram toda a cultura ocidental (MACHADO 2009 p 26)

Contudo um outro aspecto preocupa o professor o da obrigatoriedade da leitura como algo prejudicial ao interesse do aluno Maacuterio Feijoacute (2010 p 14) e Ana Maria Machado (2009 p 13) ao escreverem sobre a questatildeo da obrigatoriedade da leitura na sala de aula defendem cada um a seu modo

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que ningueacutem deve ser obrigado a ler algo de que natildeo goste uma vez que isso pode ndash em vez de gerar o efeito pretendido que eacute fazer a crianccedila ou o jovem tomar gosto pela leitura ndash gerar o efeito inverso e fazer com que eles tenham ojeriza agrave leitura Teresa Colomer defende essa obrigatoriedade (COLOMER p 92 e 93)

[] na atualidade aumentam as vozes que defendem a responsabilidade social de oferecer aos meninos e agraves meninas o acesso a uma tradiccedilatildeo cultural compartilhada pela coletividade Isso requer a criaccedilatildeo de um horizonte de leituras ldquoclaacutessicasrdquo entendidas como um conjunto formado pelo folclore os tiacutetulos mais valorizados da literatura infantil e o iniacutecio da leitura das grandes obras universais (COLOMER 2017 p 127)

Contudo ela tambeacutem defende que essa literatura natildeo pode ser maccedilante levando em consideraccedilatildeo sempre os interesses dos alunos uma vez que eles natildeo satildeo meros receptores dos conhecimentos Para ela ldquoos melhores livros satildeo aqueles que estabelecem um compromisso entre o que as crianccedilas podem entender sozinhas e o que podem compreender por meio de um esforccedilo da imaginaccedilatildeo que seja suficientemente compensadordquo (COLOMER 2017 p 37)

Eacute fato que os poemas de Homero possuem uma linguagem a qual a crianccedila e o jovem do seacuteculo XXI podem natildeo conseguir acessar sem mediaccedilatildeo Ana Maria Machado (2009 p 11 e 12) coloca que

Eacute claro que hoje em dia o ensino eacute diferente e o mundo eacute outro Natildeo se concebe que as crianccedilas sejam postas a estudar latim e grego ou a ler pesadas versotildees completas e originais de livros antigos ndash como jaacute foi de praxe em vaacuterias famiacutelias de algumas sociedades haacute um seacuteculo Apenas natildeo precisamos cair no extremo oposto Ou seja o de achar que qualquer leitura de claacutessico pelos jovens perdeu o sentido e portanto deve ser abandonada nestes tempos de primazia da imagem e domiacutenio das diferentes telas sobre a palavra impressa em papel

Assim a mediaccedilatildeo entre os educandos e esses claacutessicos pode ser feita tanto pelos professores quanto pelas proacuteprias adaptaccedilotildees Sugerimos aqui um trabalho que conjugue ambos a adaptaccedilatildeo caminhando junto com o claacutessico A adaptaccedilatildeo sozinha natildeo daacute a dimensatildeo do claacutessico eacute preciso que noacutes mediadores conheccedilamos bem esse claacutessico para que consigamos ter um bom aproveitamento das adaptaccedilotildees

As boas adaptaccedilotildees satildeo aquelas que conseguem manter o mesmo fio condutor da obra original e traga as mesmas imagens marcantes da mesma Uma adaptaccedilatildeo da Odisseia sem o Ciclope por exemplo natildeo seria uma boa

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adaptaccedilatildeo uma vez que essa imagem eacute muito marcante ateacute mesmo dentro da proacutepria obra como jaacute vimos Sendo assim propomos aqui dois modos de trabalho com adaptaccedilotildees Contudo em ambos os casos cremos ser necessaacuterio trazer um pouco do original para que o aluno tenha dimensatildeo do claacutessico e como ele foi composto

Esse trabalho natildeo deve estar inserido no planejamento como se fosse uma mera curiosidade acerca do mundo grego antigo ele deve dialogar com o conteuacutedo programaacutetico Isso auxilia o professor nas estrateacutegias de ensino desse conteuacutedo bem como faz com que ele aproveite o tempo em sala de aula Muito se fala da questatildeo da ldquofata de tempordquo para se fazer atividades luacutedicas e diferentes com os alunos mas pouco se fala da inaptidatildeo do professor em conseguir associar essas atividades luacutedicas ao proacuteprio ensino do ldquoconteuacutedordquo em si

De fato satildeo muitos conteuacutedos para administrar em pouco tempo por isso essas atividades que a priori seriam tidas como ldquoextraclasserdquo devem ser incluiacutedas como metodologia mesmo de ensino deles Um documento (seja ele texto escrito imagem filme) natildeo deve ser utilizado para ilustrar um conteuacutedo mas para auxiliar na sua compreensatildeo Eacute possiacutevel tambeacutem utilizar esses documentos para avaliaccedilotildees fazendo com que o aluno relacione o conteuacutedo com o proacuteprio documento e estimulando-o a pensar acerca da sua proacutepria realidade a partir daquele documento A avaliaccedilatildeo resultante do trabalho com adaptaccedilatildeo natildeo deve ser o preenchimento de uma ficha de leitura ou um questionaacuterio pois isso acaba se tornando uma verificaccedilatildeo nos moldes que jaacute discutimos

Sendo assim escolhemos duas adaptaccedilotildees para trabalhar de dois modos distintos a Odisseia adaptada por Marcos Maffei e ilustrada por Eloar Guazzelli Filho para a Coleccedilatildeo Recontar (Escala Educacional 2004) e Odisseia de Homero (Segundo Joatildeo Viacutetor) de Gustavo Piqueira Em ambos os casos pensamos atividades para dois tempos de aula Existem duas opccedilotildees pedir para os alunos lerem a adaptaccedilatildeo previamente ou lecirc-la junto com eles em sala de aula apontando durante a leitura o conteuacutedo programaacutetico de Greacutecia a ser trabalhado

51 Odisseia de Marcos Maffei e Eloar Guazzelli Filho

Essa coleccedilatildeo segundo os editores foi feita para levar aos pequenos histoacuterias atemporais que continuam a divertir e ensinar O caraacuteter pedagoacutegico da literatura infantil ainda aparece aqui como norte A Odisseia especificamente eacute dividida em vinte e quatro capiacutetulos bem como a obra original eacute dividida em vinte e quatro cantos

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O intuito do adaptador eacute resumir os principais acontecimentos da Odisseia sem contudo desrespeitar a divisatildeo em cantos feita pelos saacutebios alexandrinos Sendo assim a histoacuteria segue a narrativa homeacuterica poreacutem de maneira adaptada agrave linguagem e agrave dinacircmica da narraccedilatildeo em prosa

O ideal eacute que o professor leia junto com os alunos a obra e selecione um dos capiacutetulos para trazer o canto original e lecirc-lo tambeacutem com os alunos incentivando-os a compreender as diferenccedilas entre uma narrativa e outra tanto em relaccedilatildeo ao gecircnero quanto em relaccedilatildeo agraves noccedilotildees escolhidas para a contagem da histoacuteria Nesse momento eacute possiacutevel introduzir aos alunos os conteuacutedos relativos agrave literatura grega bem como o proacuteprio contexto no qual as epopeias homeacutericas estatildeo ancoradas (como o proacuteprio processo de formaccedilatildeo de apoikiacuteai ndash ldquocolocircniasrdquo ndash gregas ao longo do Mediterracircneo) O professor pode mostrar como cada povo que Odisseu encontra eacute marcado pela sua presenccedila

Propomos aqui eleger o capiacutetulo 9 referente ao canto IX o qual relata o encontro de Odisseu com o Ciclope Eacute um dos capiacutetulos mais extensos do livro e que traz a seguinte caracterizaccedilatildeo do Ciclope

Fomos entatildeo parar noutra ilha onde havia aacutegua e muitas cabras Dali se via uma terra que parecia habitada e no dia seguinte decidi ir ateacute laacute soacute com meu navio Ancoramos onde havia uma grande caverna Escolhi doze de meus homens e fomos ateacute ela levando odres de vinho para ter algo a oferecer Na enorme caverna havia cestos cheios de queijos e cercados com filhotes de ovelhas e cabras mas seu dono levara seus rebanhos para pastar Ele natildeo demorou a chegar com um feixe de lenha tatildeo grande que fez um estrondo ao ser largado no chatildeo e corremos a nos esconder pois era um Ciclope um gigante enorme de um olho soacute Ele fechou a caverna com uma pedra imensa e muito pesada e ao acender o fogo nos viu e perguntou com sua voz tremenda quem eacuteramos (MAFFEI 2004 p 20)

Aqui o exagero (no corpo na voz nos atos do Ciclope) eacute reiterado vaacuterias vezes a fim de mostrar a monstruosidade do personagem A imagem do pelṓrios eacute aqui evidente bem como nas ilustraccedilotildees que os mostram extremamente gigantes frente aos navios gregos O texto continua de modo a narrar como o Ciclope devora os homens de Odisseu reiterando a imagem de que ele natildeo eacute um ldquohomem comedor de patildeordquo Esses satildeo os signos de etnicidade e alteridade que se repetem na adaptaccedilatildeo

No texto de Homero (IX vv 176-301) outros elementos se destacam como a dicotomia entre o cru e o cozido (com a presenccedila da fumaccedila dos fornos) o desconhecimento das leis a convivecircncia em comunidade e a ausecircncia

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de amizade ritual Todos esses elementos tecircm a ver com a construccedilatildeo da dicotomia entre o grego e seus Outros e mais tarde entre o grego e o baacuterbaro

A terra dos ciclopes que perto viviam observaacutevamossua fumaccedila e o som de ovelhas e cabrasQuando o sol mergulhou e vieram as trevasentatildeo repousamos na rebentaccedilatildeo do marQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosentatildeo eu realizando assembleia disse entre eleslsquoOs outros voacutes aqui ficai meus leais companheirosmas eu com minha nau e meus companheirosvou verificar esses homens de que tipo eles satildeose desmedidos selvagens e natildeo civilizadosou hospitaleiros com mente que teme o deusrsquoDito isso embarquei e pedi aos companheirosque tambeacutem embarcassem e os cabos soltassemLogo embarcaram e sentaram-se junto aos calccedilose alinhados golpeavam o mar cinzento com remosMas ao chegarmos a esse lugar que perto ficavalaacute vimos no extremo uma caverna junto ao maralta agrave sombra de loureiros Laacute grande rebanhoovelhas e cabras pernoitava em torno cercaalta se construiacutera com blocos de uma pedreiracom grandes pinheiros e carvalhos alta-copaLaacute pernoitava um varatildeo portentoso ele que o rebanhosozinho apascentava afastado aos outros natildeovisitava mas longe vivendo normas ignoravaDe fato era um assombro portentoso natildeo pareciaum varatildeo come-patildeo mas um pico matosodos altos montes que surge soacute longe dos outrosEntatildeo aos demais leais companheiros pedique laacute junto agrave nau ficassem e guardassem a naumas eu apoacutes escolher doze nobres companheirosfui Levava um odre de cabra com vinho escurodoce que me dera Maacuteron filho de Euantessacerdote de Apolo que zela por Ismarosporque junto com filho e esposa noacutes o protegemosvenerando-o pois habitava bosque arvorejadode Febo Apolo Deu-me presentes radiantesde ouro bem trabalhado sete pesos me deume deu acircnfora toda de prata e depoisvinho em doze acircnforas dupla-alccedila ao todo verteudoce puro bebida divina A esse ningueacutemconhecia nem escravo nem criado em sua casasoacute ele proacuteprio a cara esposa e uma soacute governantaQuando algueacutem bebesse esse vinho tinto doce como melenchia um caacutelice e doze medidas de aacutegua

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vertia um doce aroma da acircnfora emanavaprodigioso entatildeo impossiacutevel seria abster-seEu trazia um grande odre cheio dele e tambeacutem acepipesno alforje logo meu acircnimo orgulhoso pensouque encontraria varatildeo vestido com grande bravuraselvagem natildeo conhecendo bem tradiccedilotildees nem normasCeacuteleres nos dirigimos ao antro e dentro natildeoo achamos mas apascentava no pasto gordos rebanhosApoacutes chegar ao antro a tudo contemplamoscestos abarrotados de queijo cercados repletosde ovelhas e cabritos separados por categoriasencerrados agrave parte os mais velhos agrave parte medianosagrave parte filhotes Todas as vasilhas transbordavam de soroe baldes e tigelas fabricadas com as quais ordenhavaLaacute os companheiros suplicaram-me para primeiropegar algum queijo e voltar e depoisligeiro ateacute a nau veloz cabritos e ovelhasdos cercados arrastar e navegar pela aacutegua salgadamas natildeo obedeci (e teria sido muito mais vantajoso)para poder vecirc-lo esperando que me desse regalosPois apoacutes surgir natildeo seria amaacutevel com os companheirosTendo laacute aceso o fogo sacrificamos e tambeacutem noacutescomemos parte do queijo e dentro o esperamossentados ateacute voltar com ovelhas trazia ponderoso pesode madeira seca que seria usado para seu jantarLanccedilando-o fora do antro produziu um estrondonoacutes com medo recuamos ateacute o fundo do antroEle agrave ampla gruta tocou o gordo rebanhotantas quantas ordenhava e os machos deixou foracarneiros e bodes no exterior atraacutes da alta cercaEntatildeo ergueu e pocircs na entrada grande rochaponderosa a ela nem vinte e dois carrosoacutetimos de quatro rodas solevariam do solotal rochedo alcantilado colocou na entradaSentado ordenhava ovelhas e cabras balentestudo com adequaccedilatildeo e pocircs um filhote sob cada umaLogo metade do branco leite separou para coalhare pocircs os coalhos apoacutes juntaacute-los em cestos tranccediladosmetade laacute colocou em barris para que estivessedisponiacutevel para ele beber em seu jantarMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zeloentatildeo ao acender o fogo viu-nos e perguntoulsquoEstranhos quem sois Donde navegastes por fluentes viasAcaso devido a um assunto ou levianos vagaistal qual piratas ao mar Esses vagamarriscando suas vidas levando dano a gentes alheiasrsquoAssim falou e nosso coraccedilatildeo rachou-se

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atemorizados com a voz pesada e o portento em siMesmo assim com palavras respondendo disse-lhelsquoNoacutes aqueus vindos de Troia vagamos longe do cursodevido a todos os ventos pelo grande abismo de mare ansiando ir para casa por outra rota outros percursosviemos assim talvez Zeus quis armar um planoTropa de Agamecircmnon filho de Atreu proclamamos serdesse cuja fama eacute agora a maior sob o paacuteramodevastou grande cidade e tropas dilaceroumuitas Noacutes poreacutem chegando a esses teus joelhosnos dirigimos esperando nos hospedares bem ou mesmodares um regalo o que eacute costume entre hoacutespedesMas respeita os deuses poderoso somos teus suplicantesZeus eacute o vingador de suplicantes e hoacutespedeso dos-hoacutespedes que respeitaacuteveis hoacutespedes acompanharsquoAssim falei e logo respondeu com impiedoso acircnimolsquoEacutes tolo estrangeiro ou vieste de longetu que me pedes aos deuses temer ou evitarOs ciclopes natildeo se preocupam com Zeus porta-eacutegidenem com deuses ditosos pois somos bem mais poderososnem eu para evitar a braveza de Zeus a ti poupariaou a teus companheiros se o acircnimo natildeo me pedisseMas dize-me onde aportaste a nau engenhosaalgures no extremo ou perto preciso saberrsquoAssim falou testando-me e eu bem arguto percebirespondendo disse-lhe com palavras ardilosaslsquoMinha nau sucumbiu a Posecircidon treme-solocontra rochedo lanccedilou-a nos limites de vossa terralevando-a rumo ao cabo vento trouxe-a do marMas eu com esses aiacute escapei do abrupto fimrsquoAssim falei e natildeo me respondeu com impiedoso acircnimomas de suacutebito sobre os companheiros estendeu as matildeose tendo dois agarrado como cachorrinhos ao chatildeoarrojou-os miolos escorriam no chatildeo e molhavam o soloApoacutes cortaacute-los em pedaccedilos aprontou o jantarcomia-os como leatildeo da montanha e nada deixouviacutesceras carnes e ossos cheios de tutanoNoacutes aos prantos erguemos os braccedilos a Zeusvendo o feito terriacutevel e a impotecircncia deteve o acircnimoMas quando o ciclope encheu o grande estocircmagoapoacutes comer carne humana e depois beber leite purodeitou-se no antro esticando-se entre o rebanhoConsiderei no eneacutergico acircnimo dele chegarmais perto puxar a espada afiada da coxae golpear no peito onde o diafragma segura o fiacutegadoapoacutes alcanccedilar com a matildeo mas outro acircnimo impediuLaacute mesmo tambeacutem noacutes nos finariacuteamos em abrupto fimda alta entrada natildeo teriacuteamos conseguido no braccedilo

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afastar a ponderosa pedra que laacute depositaraAssim gemendo aguardamos a divina AuroraQuando surgiu a nasce-cedo Aurora dedos-roacuteseosele acendeu o fogo e ordenhou esplecircndido rebanhotudo com adequaccedilatildeo e sob cada fecircmea deixou o filhoteMas apoacutes ocupar-se de suas tarefas com zelode novo ele agarrou dois de noacutes e o almoccedilo preparou8

O interessante eacute aleacutem de destacar esses elementos poliacuteticos econocircmicos sociais e culturais da Greacutecia Antiga fazer o aluno pensar instigando-o a reconhecer os elementos de diferenciaccedilatildeo entre o grego e o Outro dentro das duas narrativas (a adaptaccedilatildeo e o canto IX) Aleacutem disso podemos incitaacute-lo a uma discussatildeo atual o que diferencia o brasileiro do estrangeiro hoje O que caracteriza a nossa cultura Qual tem sido a nossa postura em relaccedilatildeo aos estrangeiros dentro do nosso paiacutes Nossas fronteiras eacutetnicas satildeo as mesmas dos gregos Por quecirc

52 A Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor)

O livro de Gustavo Piqueira talvez seja uma das recontagens da Odisseia menos convencionais com ilustraccedilotildees dele mesmo traz a histoacuteria da Odisseia contada pelos olhos de Joatildeo Viacutetor aluno de recuperaccedilatildeo do 6ordm ano do Ensino Fundamental II (e pela construccedilatildeo do personagem ao longo da narrativa de famiacutelia conservadora e de classe meacutedia) que precisa ler esse eacutepico para entregar um trabalho final e conseguir finalmente passar de ano O problema eacute que em vez de retirar na biblioteca da escola uma adaptaccedilatildeo (como fez seu amigo Fumaccedila) ele vai com o claacutessico original para casa

Ao longo de todo o livro Joatildeo Viacutetor se depara com situaccedilotildees completamente estranhas para ele que rendem comentaacuterios jocosos de sua parte Em caixa normal temos a recontagem feita pelo aluno mas em negrito e itaacutelico temos os comentaacuterios dele aos episoacutedios que ele narra o que nos possibilita conhecer a personalidade dele e o mundo em que ele vive Logo na capa do trabalho (PIQUEIRA 2013 p 7) o aluno se vecirc obrigado a colocar ldquoResumo e interpretaccedilatildeo do livro Odisseia escrito por Homero da Silvardquo visto que ldquona ediccedilatildeo que peguei na biblioteca natildeo havia sobrenome do autor apenas o primeiro nome Homero Como todo mundo tem sobrenome coloquei um bem comumrdquo

Logo na narrativa do Canto I vemos uma situaccedilatildeo que inspira reflexotildees acerca do etnocentrismo e da alteridade Joatildeo Viacutetor natildeo reconhece o politeiacutesmo

8 Traduccedilatildeo de Christian Werner

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grego questionando Homero Afinal natildeo existe ldquoUm deus chamado Poseidonrdquo porque ldquoDeus soacute tem um e ele se chama Deus mesmo E seu filho natildeo eacute nenhum lsquociclope Polifemorsquo mas Jesus Que ateacute o Fumaccedila sabe foi crucificado natildeo cegadordquo (PIQUEIRA 2013 p 16) Adiante (PIQUEIRA 2013 p 17) ele reafirma que ldquopelo visto neste livro tem um punhado de deuses entatildeo natildeo vou mais discuti ok Se Homero da Silva natildeo sabe que soacute existe um Deus problema dele Eacute tarde da noite tenho o livro inteiro para ler e preciso passar de anordquo

Pode parecer a priori que eacute apenas uma crianccedila que desconhece o politeiacutesmo e se vecirc estranhando a religiatildeo do Outro no entanto a postura de Joatildeo Viacutetor eacute combativa reafirmando suas crenccedilas em detrimento da tentativa de contemplaccedilatildeo e compreensatildeo do Outro A ideia de que existe uma religiatildeo uacutenica e verdadeira denota como o etnocentrismo estaacute entranhado na visatildeo de Joatildeo Viacutetor (mesmo que ele natildeo tenha consciecircncia de que estaacute sendo etnocecircntrico) Eacute esse tipo de visatildeo preconceituosa (no sentido mesmo do termo de preacute-julgar) que deve ser questionada em sala de aula e levada agrave reflexatildeo

No entanto ao continuar a descriccedilatildeo do Canto I ele se depara com Athenaacute se transformando em Mentes um homem e fica confuso ldquoProfessora estou na duacutevida se chamo Atena de lsquoorsquo ou lsquoarsquo agora que ela mudou de sexo O que devo fazer Hoje em dia eacute um assunto tatildeo delicado natildeo quero soar preconceituosordquo (PIQUEIRA 2013 p 17) As questotildees de gecircnero satildeo mais palpaacuteveis para Joatildeo Viacutetor do que as questotildees de etnicidade uma vez que ele tem a sensibilidade de querer saber como ele deveria identificar Athenaacute que na sua visatildeo seria um transgecircnero O adaptador aqui mostra que os debates acerca desse tipo de intoleracircncia satildeo mais frequentes na sociedade

O Canto IX eacute um dos mais extensos (satildeo 6 paacuteginas escritas e mais 3 de ilustraccedilotildees) Eacute interessante perceber como a construccedilatildeo da cena do Ciacuteclope se daacute de modo diverso em relaccedilatildeo agraves adaptaccedilotildees precedentes e o proacuteprio texto homeacuterico No livro Joatildeo Viacutetor vecirc Odisseu como um malfeitor

Ulisses revela a Alciacutenoo sua identidade e comeccedila a contar tudo que lhe aconteceu desde que deixara Troia Primeiro deu uma passada em Iacutesmaro onde saqueou cidades e chacinou homens aleacutem de tomar mulheres e tesouros que dividiu com os outros para que ningueacutem reclamasse Ou seja bandido Natildeo haacute outra palavra para definir Ulisses a natildeo ser essa professora Denise Ladratildeo assassino e sequestrador Bandido E o pior conta seus crimes tranquilatildeo ldquoChacinei homens levei suas mulheresrdquo Como pode professora Eacute muita impunidade natildeo Muita Meus pais vivem comentando sobre isso aqui em casa Dizem que

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os ricos cometem as maiores barbaridades e sempre se safam Que moramos no paiacutes do colarinho branco Pelo visto Ulisses tambeacutem tinha costas quentes Do contraacuterio natildeo arriscaria tagarelar por aiacute suas falcatruas (PIQUEIRA 2013 p 62)

O interessante perceber eacute que aqui diferentemente da Odisseia original e da adaptaccedilatildeo que trabalhamos anteriormente natildeo haacute uma tentativa de reforccedilar as fronteiras eacutetnicas gregas Joatildeo Viacutetor critica o ldquoGreek way of liferdquo pondo em xeque tanto a ideia de civilizaccedilatildeo dentro do poema quanto a imagem do heroacutei na Greacutecia Antiga Como assim ser um heroacutei implica em praticar atitudes que hoje em dia seriam condenaacuteveis Daiacute a importacircncia de retornar a esse original a fim de que os alunos compreendam o porquecirc dessa mudanccedila

Os ciclopes satildeo descritos como ldquohorriacuteveis gigantes de um olho soacuterdquo (PIQUEIRA 2013 p 63) o Ciclope como um ldquomedonho giganterdquo (PIQUEIRA 2013 p 67) reforccedilando a ideia da monstruosidade deles Contudo Joatildeo Viacutetor ao comentar a atitude do Ciclope de devorar amigos de Odisseu escreve ldquoQuem mandou entrar de bico na casa dos outros Daacute nissordquo (PIQUEIRA 2013 p 67) As atitudes de Odisseu e de seus companheiros satildeo bastantes questionadas mostrando o estranhamento do menino em relaccedilatildeo agrave cultura helecircnica

Nessa adaptaccedilatildeo podemos chamar a atenccedilatildeo para a proacutepria construccedilatildeo de civilidade dentro de ambas sociedades a helecircnica arcaica (em Homero) e a brasileira do seacuteculo XXI (na adaptaccedilatildeo a realidade de Joatildeo Viacutetor) mostrando como mudaram as nossas noccedilotildees de civilidade barbaridade e fronteiras eacutetnicas ao longo do tempo histoacuterico Em vez de uma repulsa ao Ciclope aqui vemos uma empatia pautada pelo desconhecimento de Joatildeo Viacutetor das fronteiras eacutetnicas helecircnicas e do ideal de civilizaccedilatildeo construiacutedo por eles com a legitimaccedilatildeo dessas fronteiras Aleacutem disso ela eacute interessante para discutir a nossa proacutepria relaccedilatildeo de alteridade em relaccedilatildeo aos gregos a fim de desconstruir o etnocentrismo presente em nossas concepccedilotildees contemporacircneas

60 Consideraccedilotildees finais

Em virtude do apresentado pudemos concluir que eacute imprescindiacutevel abordar conceitos no Ensino da Histoacuteria a fim de que o aluno possa melhor compreender e modificar de maneira mais efetiva o seu cotidiano Por isso defendemos a abordagem do conceito de etnicidade na sala de aula mas sem antes reforccedilar que o professor deve ele mesmo compreender bem o conceito antes de trabalhar com ele

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Do mesmo modo o professor deve conhecer bem os textos claacutessicos com os quais ele quer trabalhar mesmo que ele vaacute utilizar adaptaccedilotildees Aleacutem disso vemos como eacute importante a leitura como Ana Maria Machado (2009 p 13) colocou ler eacute uma forma de resistecircncia sendo a utilizaccedilatildeo de textos imprescindiacutevel para a formaccedilatildeo natildeo somente de um leitor literaacuterio mas de uma pessoa criacutetica e consciente

[] a forccedila educativa da literatura reside precisamente no que facilita formas e materiais para essa ampliaccedilatildeo de possibilidades permite estabelecer uma visatildeo distinta sobre o mundo pocircr-se no lugar do outro e ser capaz de adotar uma visatildeo contraacuteria distanciar-se das palavras usuais ou da realidade em que algueacutem estaacute imerso e vecirc-lo como se o contemplasse pela primeira vez (COLOMER 2017 p 21)

A boa adaptaccedilatildeo nesse sentido ajuda a perpetuar na memoacuteria o claacutessico ldquoComo entatildeo se daacute a real permanecircncia da obra literaacuteria Ora pela conquista de novos leitores A adaptaccedilatildeo constitui uma estrateacutegia para apresentar a uma nova geraccedilatildeo de leitores um discurso literaacuterio legitimado pela instituiccedilatildeo escolarrdquo (FEIJOacute 2010 p 43) Assim como Odisseu o aluno ao ler viaja por mundos Outros que o faz refletir acerca de sua proacutepria realidade ao conhecer outras realidades

Utilizar a Histoacuteria Antiga para abordar um conceito tatildeo caro a noacutes cotidianamente que vemos nos noticiaacuterios as empreitadas dos refugiados para fugirem das guerras e serem recebidos de maneira deploraacutevel em diversos paiacuteses as tensotildees crescentes entre diversas etnias ao redor do mundo e a nossa proacutepria falta de sensibilidade agraves vezes em compreender o Outro em sua cultura e etnicidade mostra como cada vez mais eacute necessaacuterio retornar ao claacutessico para pensarmos o contemporacircneo A Histoacuteria Antiga ainda natildeo estaacute ultrapassada

Abstract We propose to think how to enter the ethnicity and ethnocentrism theme in classrooms by using adaptations of the Antiquity classics To accomplish this aim it is necessary to establish some criteria to use this kind of literature which still generates debates on its profitability as well as to define ethnicity We will start with the following concepts ethnicity (as Fredrik Barth pointed it) and identity-otherness (as Marc Augeacute does) in order to propose some activities with selected adaptationsKeywords History Teaching literary adaptations ethnicity

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Referecircncias

Documentaccedilatildeo textualHOMERO Odisseia Trad Christian Werner Satildeo Paulo Cosac Naify 2014

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tomo 82 fasc 389-390 p 1-13 janjun 1969NADAI E O ensino de Histoacuteria e a ldquopedagogia do cidadatildeordquo In PINSKY J (Org)

O Ensino de Histoacuteria e a criaccedilatildeo do fato Satildeo Paulo Contexto 2017 p 27-35PIQUEIRA G Odisseia de Homero (segundo Joatildeo Viacutetor) Satildeo Paulo Editora

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COMPETICcedilAtildeO COOPERACcedilAtildeO CONFLITO E NEGOCIACcedilAtildeO AS TENSOtildeES EacuteTICO-POLIacute-TICAS ENTRE AQUILES E AGAcircMENON NA ILIacuteADA

Alexandre Santos de Moraes1

Resumo O objetivo desse artigo eacute observar as tensotildees entre Aquiles e Agamecircmnon atraveacutes do binocircmio conceitual competiccedilatildeocooperaccedilatildeo Busca-se entender natildeo apenas as variaacuteveis dessa oposiccedilatildeo mas tambeacutem como as ideias de competiccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo que se instauram ao longo da querela sugere um modo de ser eacutetico-poliacutetico que distingue os heroacuteisPalavras-chave Competiccedilatildeo Cooperaccedilatildeo Aquiles Agamecircmnon Iliacuteada

Do ponto de vista conceitual cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo satildeo duas ideias tatildeo abrangentes que escapam ao monopoacutelio das aacutereas do saber institucionalizadas Natildeo haacute nenhuma poliacutecia acadecircmica que resguarde para si e para seus escolhidos a possibilidade de uso desse binocircmio que parece anunciar natildeo apenas um modelo de entendimento de dinacircmicas sociais mas verdadeiramente um modo de ser eacutetico-poliacutetico no mundo

Veja por exemplo que do ponto de vista comercial estimula-se mecanismos de competiccedilatildeo entre os funcionaacuterios para impulsionar as vendas ao mesmo tempo em que se defende disposiccedilotildees cooperativas que estimulem a coesatildeo do grupo para que haja o que vender (MACEDO 1961 p 105) Tal vieacutes no marco da Nova Sociologia Econocircmica identifica a dificuldade de correlacionar cooperaccedilatildeo e competiccedilatildeo entre empresas e o papel do Estado como seu guardiatildeo e criador2 O tema eacute complexo e natildeo se dispotildee na visatildeo de muitos analistas agrave polarizaccedilatildeo que defende os males e benefiacutecios de uma e outra como dado essencial bem como o valor estrutural que cada uma das

1 Professor do Departamento de Histoacuteria e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense Membro do Nuacutecleo de Estudos de Representaccedilotildees e de Imagens da Antiguidade (NEREIDAUFF) e do Laboratoacuterio de Histoacuteria Antiga (LHIAUFRJ) E-mail asmoraesgmailcom

2 Veja por exemplo o debate presente em FLIGSTEIN Neil Markets as politics political-cultural approach to market institutions In American Sociological Review v 61 1996

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disposiccedilotildees parece ensejar em um ambiente especiacutefico Marx por exemplo identificava que a cooperaccedilatildeo era instrumento fundamental para organizar o trabalho no mundo capitalista (MARX 1980 p 347) diferentemente do que pensam muitos defensores do (neo)liberalismo para os quais a concorrecircncia (identificada com a competiccedilatildeo) eacute beneacutefica a todos em um ambiente de mercado autorregulado regido por entes privados que supostamente conspiram ao lado de seus lucros pessoais para uma situaccedilatildeo de bem-estar social3

Para aleacutem do pensamento econocircmico as anaacutelises acerca de competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo frequentemente debatidas no marco dos princiacutepios organizativos de grupos e agrupamentos estimulando pesquisas em diversas aacutereas das Ciecircncias Humanas e Sociais Some-se a elas as pesquisas sobre Evoluccedilatildeo que avaliam as habilidades de indiviacuteduos de diversas espeacutecies em especial dos hominiacutedeos e de primatas natildeo-humanos4 Em muitos casos haacute uma evidente ecircnfase no princiacutepio cooperativo (ou altruiacutesta ou de solidariedade muacutetua) que atuaria no fundamento de nossa proacutepria existecircncia

Obviamente diante da variedade vertiginosa de possibilidades de entendimento desse binocircmio eacute preciso fazer algumas escolhas Por princiacutepio ao longo desse artigo consideraremos que 1) Competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo satildeo disposiccedilotildees atitudinais que envolvem sujeitos ou grupos em funccedilatildeo de objetivos especiacuteficos 2) Atitudes cooperativas e competitivas natildeo representam aspectos gerais do modus vivendi especiacutefico de uma ou outra formaccedilatildeo social ou seja natildeo haacute comunidades que sejam exclusivamente competitivas eou cooperativas 3) disposiccedilotildees cooperativas eou competitivas satildeo por princiacutepio situacionais ainda que haja mecanismos sociais que ensejem uma ou outra postura em determinadas situaccedilotildees 4) Ainda que haja discordacircncias identificamos a tendecircncia de associar a uma disposiccedilatildeo cooperativa a prevalecircncia do bem comum sobre o individual e na competitiva a valorizaccedilatildeo do individual em detrimento do bem comum e por fim 5) em determinado evento ou acontecimento grupos e sujeitos natildeo apresentam necessariamente um padratildeo de disposiccedilotildees coeso podendo variar em funccedilatildeo das circunstacircncias e objetivos almejados

O caso de um conflito armado envolvendo diferentes grupos eacute bastante elucidativo Em uma guerra por princiacutepio haacute pelo menos duas partes

3 Eacute possiacutevel ateacute mesmo identificar a defesa da competiccedilatildeo como um discurso de competecircncia fundado em caracteriacutesticas psicoloacutegicas O debate eacute longo e repleto de variaacuteveis (BENDASSOLLI 2001 p 65-76 NEVES 2009)

4 Nos uacuteltimos anos tem se delineado um especial interesse pela loacutegica cooperativa explorada em diversos trabalhos A tiacutetulo de referecircncia sobre esse debate vale consultar AXELROD 1997 HAMMERSTEIN 2003 MARSHALL 2010 PATTON 2009 WILLER 2009

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que competem entre si para alcanccedilar um objetivo Na ausecircncia de acordos diplomaacuteticos o sucesso de uma parte depende necessariamente do fracasso da outra parte Tomando isoladamente cada uma das partes haacute tambeacutem o pressuposto de que eacute necessaacuterio existir uma razoaacutevel coesatildeo entre seus membros para que o objetivo final qual seja a superaccedilatildeo do adversaacuterio seja alcanccedilado de tal modo que em um ambiente de batalha os integrantes de um mesmo exeacutercito precisam cooperar entre si Essa loacutegica geral contudo natildeo resiste necessariamente a situaccedilotildees que provocam disputas internas produzindo ruiacutedos entre os agentes quando haacute disposiccedilotildees contraacuterias que fazem exceder nas relaccedilotildees imediatas o fim uacuteltimo por que conspiram em suas accedilotildees conjuntas

Com base nesse exemplo quando fazemos a remissatildeo agrave experiecircncia dos povos antigos a lembranccedila imediata confunde-se tambeacutem com a narrativa mais recuada de que temos notiacutecia e que se desvela diante de noacutes como um excelente campo de experimentaccedilatildeo Na Iliacuteada a dissenccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon natildeo eacute apenas o substrato discursivo que assegura a coerecircncia e a loacutegica interna do poema mas tambeacutem a proacutepria manifestaccedilatildeo do nuacutecleo narrativo do eacutepico que conduz com os auspiacutecios dos deuses os eventos ulteriores na Guerra de Troacuteia Mais do que indicar os efeitos da dissensatildeo suas consequecircncias e caracteriacutesticas eacute desejaacutevel analisar o binocircmio competiccedilatildeocooperaccedilatildeo no marco de uma separaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica que o antecede e que parece situar os heroacuteis em duas formas distintas de ser no mundo Tais formas representam um topos que enseja por forccedila da incompletude dos proacuteprios sujeitos uma espeacutecie de ldquogatilhordquo o possiacutevel estopim para o conflito interno sempre que a poliacutetica entra em estado de falecircncia

Somos levados a conhecer logo nos versos prologais o anuacutencio da coacutelera (μῆνις) de Aquiles A causa como bem se sabe tem a ver com um ruiacutedo envolvendo os privileacutegios em torno da divisatildeo do butim de guerra Apoacutes o saque a Tebas foram recolhidos os despojos e os aqueus dividiram-nos entre si A Agamecircmnon coube Criseida filha de Crises sacerdote de Apolo ao passo que a Aquiles coube Briseida Daacute-se que o pai de Criseida o velho Crises suplicou aos aqueus que devolvessem sua filha em troca do pagamento de um resgate mas teve seu pedido negado Mais do que isso Agamecircmnon o mandou embora com aacutesperas palavras O anciatildeo recorreu agrave Apolo e pediu que tal ofensa seja retaliada ldquoQue paguem com tuas setas os Dacircnaos as minhas laacutegrimasrdquo (HOMERO Iliacuteada I v 42)

O pedido foi acolhido pelo deus Por nove dias as setas faziam as piras arderem continuamente na cremaccedilatildeo dos mortos Tambeacutem uma peste atingiu o acampamento aqueu Tatildeo grave era a situaccedilatildeo que por influecircncia de Hera

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uma assembleia foi convocada para discutirem e buscarem remeacutedio para tais males Aquiles tomou a palavra e sugeriu para que natildeo voltassem frustrados a casa que o adivinho Calcas fosse consultado para que todos soubessem atraveacutes de sua videcircncia como solucionar a querela Calcas tergiversou e disse ter receio de encolerizar ldquoaquele que rege poderoso os Argivos e a quem obedecem os Aqueusrdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 78-79) Aquiles assegurou sua fala e disse que iria protegecirc-lo Calcas entatildeo diz que Agamecircmnon deveria abrir matildeo de Criseida Tem iniacutecio a querela

Eacute preciso aqui esclarecer brevemente os sentidos da reaccedilatildeo de Agamecircmnon Uma vez conquistada a vitoacuteria e tendo sido pilhada uma cidade derrotada os produtos do saque satildeo colocados em comum para serem divididos Eacute o momento oportuno de observar os privileacutegios (γέρεα) que cabem aos sujeitos mais destacados assegurando a ldquoparte de honrardquo (τιμή) que toca cada um e seu precircmio (γέρας) correspondente5 O precircmio de Agamecircmnon ndash no caso Criseida ndash representava natildeo somente um bem de valor material mas tambeacutem e principalmente um siacutembolo de prestiacutegio a marca de deferecircncia que permite que o grupo o identifique como um sujeito de destaque Sua outorga visa reforccedilar publicamente a distinccedilatildeo social do outorgado O geacuteras6 portanto ratifica a posiccedilatildeo de soberania e atua para demarcar do ponto de vista das estruturas altamente hierarquizadas de poder a coesatildeo interna desse proacuteprio grupo7 A preocupante condiccedilatildeo de ἀγέραστος ldquodesprovido de precircmiordquo eacute vista como uma afronta grave agrave economia de prestiacutegio e agrave honra do heroacutei

A honra como aposta Finley (1958 p 143) em seu bem conhecido trabalho eacute um valor sobretudo competitivo ldquoEn la naturaleza del honor estaacute

5 Como diz Neyde Theml (1995 p 150) ldquoo exerciacutecio do poder real eacute em Homero resultado de acumulaccedilotildees de geacuterea privileacutegios que distinguem o rei com seus direitos e deveres para com a comunidade global Os γέρεα reais na Iliacuteada satildeo de 4 tipos a parte de honra (timeacute) sobre o botim praacuteticas especiais no banquete um teacutemenos presentes (dons e contra-dons) e direitos especiaisrdquo

6 Os sentidos de γέρας eacute importante frisar vatildeo muito aleacutem da loacutegica associada a um bem material Tambeacutem pode significar num sentido imaterial ldquoprerrogativardquo ou ldquoprivileacutegio honoriacuteficordquo A tiacutetulo de exemplo Neacutestor diz que por ser idoso natildeo teria meios de participar ativamente do combate como participava outrora mas que incitaria os guerreiros e com suas decisotildees e palavras afinal ldquoeacute esse o privileacutegio dos anciatildeosrdquo - τὸ γὰρ γέρας ἐστὶ γερόντων (HOMERO Iliacuteada IV v 323)

7 E natildeo custa recordar as epopeias apresentam ldquouma sociedade notadamente dividida em dois estratos de um lado os basileis os nobres os ricos proprietaacuterios de um domiacutenio de terra do oicirckos os chefes de guerra que ocupam o topo da hierarquia social e deteacutem os privileacutegios e as honras e do outro lado a massa de homens comuns O proacuteprio gecircnero da epopeia por ser destinado por princiacutepio a um puacuteblico aristocraacutetico obviamente faz com que o interesse dos poetas se associem essencialmente aos fatos e gestos dos basileisrdquo (SCHEID-TISSINIER 2002 p 1)

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que tiene que ser exclusivo o por lo menos jeraacuterquico Si todos adquieren igual honor no hay honor para ninguno Asiacute el mundo de Odiseo era necessariamente de fiera competecircncia porque cada heacuteroe luchava para sobrepasar a los otrosrdquo Ainda que Finley esteja correto essa natureza competitiva se aplica a um tipo de disputa que presume um ambiente belicoso em que dois adversaacuterios se enfrentem sendo outrossim incapaz de explicar as tensotildees em torno da timeacute em que supostos aliados como Aquiles e Agamecircmnon se percebem envolvidos como bem observou Margalit Finkelberg (1998 p 16) A visatildeo de Finley presume a competiccedilatildeo exclusivamente envolvendo adversaacuterios e natildeo sujeitos do mesmo grupo Como adiantamos as disposiccedilotildees competitivas e cooperativas satildeo situacionais o que exige uma observaccedilatildeo atenta de sua manifestaccedilatildeo

Em uma situaccedilatildeo corriqueira uma vez distribuiacutedos os butins de guerra a posse dos gerea seria respeitada e ningueacutem por princiacutepio deveria devolver o lote de honra que recebeu A crise que a fuacuteria apoliacutenea inaugura exige que haja uma revisatildeo da distribuiccedilatildeo que tendencialmente seria irreversiacutevel de tal modo que aleacutem das setas que matam e da peste que adoece Apolo tambeacutem instaura a discoacuterdia que enfraquece Agamecircmnon que eacute absolutamente consciente de seus privileacutegios se vecirc obrigado a revecirc-los para cooperar com a mesma coletividade que os assegura O Atrida poreacutem tenta fazecirc-lo conciliando o inconciliaacutevel Em resposta a Calcas apoacutes acusaacute-lo de soacute profetizar desgraccedilas diz

ldquoMas apesar disso restituiacute-la-ei se for isso a coisa melhor Quero que o povo seja salvo de preferecircncia a que pereccedila Mas preparai pra mim outro precircmio para que natildeo seja soacute eu entre os Argivos que fico sem precircmio pois tal seria indecoroso Pois deves todos voacutes como o meu precircmio vai para outra parterdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 116-120)

Em certo sentido a devoluccedilatildeo de Criseida representou simultaneamente uma disposiccedilatildeo cooperativa e competitiva cooperativa em primeiro lugar porque Agamecircmnon concordou com a devoluccedilatildeo de seu geacuteras competitiva em segundo porque natildeo admitiu ser o uacutenico a ficar sem precircmio exigindo que o butim fosse novamente redistribuiacutedo para que inevitavelmente outro guerreiro fosse ageiacuteratos e natildeo ele preservando assim seus privileacutegios e soberania Aquiles fiando-se na tradiccedilatildeo discordou da proposta de Agamecircmnon e argumentou ldquoNada sabemos de riqueza que jaza num fundo comum mas os despojos das cidades saqueadas foram distribuiacutedos e seria

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indecoroso tentar reaver tais coisas de junto do povordquo (HOMERO Iliacuteada I vv 124-126) Mais do que isso em caraacuteter compensatoacuterio sugeriu que os aqueus o recompensariam em trecircs ou quatro vezes quando Troacuteia fosse saqueada

Impossiacutevel natildeo identificar na fala do filho de Peleu uma tentativa de negociaccedilatildeo face ao conflito Agamecircmnon contudo reconhece no discurso de Aquiles uma tentativa de engano e faz uma assertiva ainda mais dura se os aqueus natildeo substituiacuterem o precircmio perdido iria retiraacute-lo agrave forccedila de quem quer que seja (HOMERO Iliacuteada I vv 138-139) A tensatildeo aumenta e a loacutegica competitiva envolvendo o liacuteder das multidotildees e o melhor dos aqueus atinge seu cliacutemax Como eacute bem conhecido Agamecircmnon decide que seria Briseida o geacuteras de Aquiles a recompensa pela devoluccedilatildeo de Criseida Nesse momento decreta-se a falecircncia da poliacutetica e nenhuma negociaccedilatildeo se torna possiacutevel pois o filho de Peleu eacute envolvido pessoalmente na soluccedilatildeo de uma questatildeo coletiva e sua honra eacute visceralmente maculada Segue-se uma seacuterie de acusaccedilotildees ofensas e mesmo em uma tentativa de assassinato natildeo fosse contido por Atena Aquiles teria sacado o glaacutedio e decepado a cabeccedila do basileu (HOMERO Iliacuteada I vv 187-195) O resultado final eacute o afastamento voluntaacuterio de Aquiles que se isola no acampamento dos Mirmidotildees e desaparece natildeo apenas do combate mas da proacutepria narrativa jaacute que suas accedilotildees soacute voltam a ser descritas no Canto IX O reaparecimento aliaacutes se daacute de uma maneira bastante insoacutelita Aacutejax Odisseu e Fecircnix o encontram deleitando-se com sua lira tendo apenas Paacutetroclo como audiecircncia em uma atitude fugidia e descompromissada com o calor do conflito que entatildeo aumentava devido agrave sua ausecircncia (HOMERO Iliacuteada IX vv 185-191)

Esse reencontro soacute ocorre porque Agamecircmnon reconhece que sem Aquiles o asseacutedio dos troianos aumentaria e chegaria o momento em que as naus dos aqueus seriam incendiadas sacramentando a derrota Em outras palavras seria derrotado da competiccedilatildeo com os troianos em funccedilatildeo da competiccedilatildeo particular que estabeleceu com o Peacutelida Quem o convence a retroceder eacute Neacutestor uma voz sempre atuante e eficaz na negociaccedilatildeo de conflitos ldquotiraste a jovem Briseida da tenda do furibundo Aquiles coisa que natildeo aprovamos Na verdade eu proacuteprio tudo fiz para te dissuadir mas tu cedeste ao teu espiacuterito altivo e sobre um homem excelente honrado pelos deuses lanccedilaste desonrardquo (HOMERO Iliacuteada IX vv 106-111) Agamecircmnon concorda com avaliaccedilatildeo e atribui a dissensatildeo ao desvario (ἄτη) de que foi viacutetima Mais do que isso concorda em abandonar a disposiccedilatildeo competitiva

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e buscar a reconciliaccedilatildeo com a oferta de uma imensa quantidade de presentes (δῶρον) incluindo a proacutepria Briseida acompanhada da promessa de que natildeo foi sexualmente tocada (HOMERO Iliacuteada IX vv 133-134) O Atrida percebe que se natildeo fizesse do adversaacuterio seu aliado o inimigo comum venceria o preacutelio e todos perderiam Tenta desse modo resgatar a poliacutetica falida por seu proacuteprio desatino

Desta vez a inflexibilidade fica a cargo de Aquiles e o custo da recusa agrave poliacutetica seria plenamente sentido Aacutejax Odisseu e Fecircnix satildeo enviados para tentar convencecirc-lo mas seus esforccedilos foram em vatildeo Aquiles resistiu Posteriormente tambeacutem Paacutetroclo fez uma criacutetica severa tatildeo dura quanto inuacutetil Apoacutes prestar assistecircncia meacutedica aos feridos observou que Diomedes Odisseu Agamecircmnon e Euriacutepilo os melhores combatentes estavam impedidos de lutar e nesse sentido ponderou

ldquoQue sobre mim nunca recaia esta ira que tu alimentaspois terriacutevel eacute teu pensar Que homem vindouro a tirecorreraacute se (vergonhoso) natildeo evitas a ruiacutena dos AqueusImpiedoso Natildeo aceito que Peleu condutor de cavalos seja teu painem que Teacutetis seja tua matildee Foste parido pelo glauco mar epelas rochas escapardas Por isso tens a mente peacutetrea durardquo (HOMERO Iliacuteada XVI vv 30-35)

Aquiles novamente manteacutem-se irredutiacutevel Volta a mencionar as tristezas que se abateram com a tomada de Briseida e recorda que soacute lutaria caso o combate se aproximasse de suas proacuteprias naus (HOMERO Iliacuteada XVI vv 49-63) Eacute bem verdade que Aquiles se sensibilizou quando as primeiras naus argivas foram incendiadas Tambeacutem concordou que Paacutetroclo fosse combater (HOMERO Iliacuteada XVI vv 126-129) e chegou a organizar as falanges a incitar os guerreiros e a fazer uma libaccedilatildeo a Zeus suplicando pelo sucesso da empreitada Aquiles por fim resolve ver (εἶδον) as lutas entre aqueus e troianos (HOMERO Iliacuteada XVI vv 255-256) abdicando da indiferenccedila Apesar disso manteacutem seu afastamento voluntaacuterio para assegurar a vivacidade da competiccedilatildeo com o Atrida

Os resultados destes combates foram decisivos para que Aquiles reavaliasse os sentidos de sua coacutelera pois cumpriu-se a prediccedilatildeo de Zeus Paacutetroclo morto eacute uma puniccedilatildeo ao seu afastamento bem como o evento catalizador que obrigaacute-lo-aacute a rever seu ostracismo A reaccedilatildeo agrave morte do amigo foi absolutamente intempestiva e do sofrimento (πένθος) nasce a constataccedilatildeo de sua proacutepria responsabilidade Teacutetis que ouviu o pranto do filho foi ter com

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ele para consolaacute-lo Aquiles em resposta disse ldquoQue imediatamente eu morra pois natildeo socorri o companheiro quando morto ele foirdquo (HOMERO Iliacuteada XVIII vv 98-99) Mas ao longo da mesma resposta Aquiles natildeo limita sua responsabilidade agrave morte de Paacutetroclo e a despeito de todas as recompensas todos os pedidos e todas as suacuteplicas eacute apenas por meio da dor que lanccedila um olhar retrospectivo em direccedilatildeo agrave proacutepria conduta

Que a discoacuterdia se exile dos homens e dos deusese a raiva amarga que oprime ateacute o mais inventivo de todos raiva muito doce dulciacutessima mais que o mel a escorrere que se expande como fumaccedila no peito dos homensassim a ira me causou Agamecircmnon soberano entre os homensMas tudo isso torna-se passado apesar de todo o sofrimento no peito refreando o coraccedilatildeo pois as urgecircncias sobrepujam(HOMERO Iliacuteada XVIII vv 107-113)

Trata-se de uma nova etapa a ira que nutria em relaccedilatildeo a Agamecircmnon eacute convertida na fuacuteria doravante dirigida a Heacutector reestabelecendo a competiccedilatildeo com o inimigo externo e a cooperaccedilatildeo com os aliados no conflito Quando a proacutepria Teacutetis recomenda ao filho que renuncie agrave coacutelera8 contra Agamecircmnon e convoque a assembleia para se reapresentar ao exeacutercito aqueu (HOMERO Iliacuteada XIX vv 34-36) enseja o derradeiro movimento de reconciliaccedilatildeo com a coletividade E Aquiles o faz atendendo os auspiacutecios maternos Com todos os seus pares reunidos o Pelida assume o centro da assembleia e proclama

Atrida teraacute sido isto o melhor para ambospara ti e para mim quando com os coraccedilotildees lutuososdevorados no imo nos enfrentamos por conta da donzelaPudera que em minhas naus Aacutertemis a tivesse matado com sua seta no dia em que a tomei como espoacutelio do saque a LirnessoSoacute assim natildeo teriam incontaacuteveis aqueus crivado os dentes no solopelas matildeos inimigas enquanto eu perseverava em minha ira(HOMERO Iliacuteada XIX vv 56-62)

O ritmo da dissensatildeo envolve nesse sentido um jogo intenso de competiccedilatildeo em torno da loacutegica da honra e seus privileacutegios de negociaccedilotildees frustradas de conflitos insoluacuteveis e soluccedilotildees que ultrapassam a poliacutetica Por forccedila talvez de sua juventude e da intemperanccedila que eacute tiacutepica dos jovens em Homero Aquiles soacute foi interpelado pela forccedila compulsoacuteria da pedagogia do

8 Afinal ldquoa ordem social e a vida comunitaacuteria civilizada ndash consequentemente a Cultura Grega ndash foi imaginada pelo menos em parte sobre o deslocamento da erisrdquo (WILSON 1938 p 132)

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sofrimento do ldquoaprender pelo sofrerrdquo (πάθει μάθος)9 que parece colocar no marco das relaccedilotildees sociais natildeo a competiccedilatildeo mas a cooperaccedilatildeo como valor fundante que preside a relaccedilatildeo do sujeito com seus pares e que envolve a assunccedilatildeo de responsabilidades

Esse debate nos remete ao claacutessico Merity and Responsability (1960) tese de doutorado de Arthur W Adkins O autor se dedicou a investigar no acircmbito da eacutetica grega o desenvolvimento do conceito de responsabilidade moral Em linhas gerais Adkins considerou que o sistema de valores homeacuterico era caracterizado pela dimensatildeo competitiva em torno da areteacute prevalecendo desta forma sobre um padratildeo cooperativo (ADKINS 1960 p 46) Sua abordagem apesar da importacircncia foi alvo de inuacutemeras criacuteticas com destaque para aquelas expressas pelas publicaccedilotildees de Long (1970) Lloyd-Jones (1971) Rowe (1983) e Cairns (1993) Os argumentos dependiam da percepccedilatildeo de que existia de um lado o espiacuterito agoniacutestico competitivo centrado em uma tocircnica individualista e do outro lado o princiacutepio cooperativo necessaacuterio para a apoio muacutetuo centrado nos ideais coletivos Nancy Demand chega ao ponto de associar estes princiacutepios aos contatos estabelecidos entre os oikoi no Periacuteodo Claacutessico para ela tal relaccedilatildeo era ldquomais competitiva do que cooperativa pois as casas se desafiavam em uma competiccedilatildeo por honra e ciuacuteme e neste enfrentamento todas estavam continuamente vulneraacuteveis agrave perdardquo (DEMAND 2004 p 3) o que decerto soacute poderia fazer sentido em casos isolados mas nunca como regra geral Graham Zanker (1997 p 2) em sua criacutetica a Adkins entende essa questatildeo como uma falsa dicotomia ao passo que ldquoeacute faacutecil encontrar momentos na Iliacuteada em que guerreiros competem uns com os outros na batalha para atingir um objetivo comum de vitoacuteriardquo

A tendecircncia geral do debate radica-se em certo sentido em esforccedilos para definir se a competiccedilatildeo ou a cooperaccedilatildeo tomadas em um sentido holiacutestico representam cada qual um paradigma a partir da qual a outra parte do binocircmio seria vista sob regime de exceccedilatildeo Em outras palavras se o modo de ser eacutetico-poliacutetico eacute por excelecircncia competitivo a cooperaccedilatildeo se torna

9 Ainda que natildeo apareccedila expresso nesses termos na Iliacuteada o πάθει μάθος de Aquiles se tornou objeto de discussatildeo a partir de um bem conhecido artigo Pearl Cleveland Wilson Nele o autor argumenta ldquoEm sua primeira apariccedilatildeo ele [Aquiles] eacute altamente considerado com todas as qualidades que pertencem ao heroiacutesmo juvenil No entanto com o desenrolar da trama ele natildeo mostra preocupaccedilatildeo com qualquer outro sofrimento que natildeo seja seu proacuteprio O que lhe falta neste sentido eacute aquilo que Heacutector possui cuja compreensatildeo leva o leitor moderno a cultivar simpatia por ele Esse sentimento continua sendo desconhecido por Aquiles natildeo por que ele seja incapaz de conhececirc-lo mas porque ainda natildeo foi despertado para essa experiecircnciardquo (WILSON 1938 p 560) O tema tambeacutem eacute conhecido pelo debate de Bruno Snell (2005 p 19) para quem o πάθει μάθος atua como um ldquomal necessaacuteriordquo ldquopois este aprende com um mal a precaver-se contra outro malrdquo

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ocasional do mesmo modo que se eacute feita a opccedilatildeo pela loacutegica cooperativa a competiccedilatildeo eacute aquilo que foge agrave regra A tarefa eacute bastante difiacutecil porque variaacuteveis incidem o tempo inteiro para colocar em xeque uma pretensa ordem que sobrepairava sobre as relaccedilotildees sociais forccedilando-nos a duvidar se tal dicotomia eacute empiricamente observaacutevel em um todo que nem de longe se permite e se propotildee coerente

Fato significativo eacute que a mentalidade grega identifica o permanente estado de incompletude dos sujeitos razatildeo pela qual sobrepaira um estado latente que transita entre o conflito (no qual as diferenccedilas satildeo inconciliaacuteveis) e a complementaridade (quando as diferenccedilas satildeo justapostas em prol de um objetivo comum) Eacute precisamente esse o uacuteltimo ponto que julgamos importante pocircr em evidecircncia para compreender a relaccedilatildeo entre Aquiles e Agamecircmnon

A justificativa bem conhecida estaacute assente em um topos religioso os deuses natildeo datildeo aos homens tudo ao mesmo tempo Trata-se de um sintoma bem observado em diversas situaccedilotildees e das muitas que poderiacuteamos usar como exemplo vale recordar a dupla moira de Aquiles que sua matildee divina previu se ficasse em Troacuteia e combatesse os troianos morreria jovem e teria gloacuteria eterna se para casa retornasse teria vida longa mas seu nome seria esquecido (HOMERO Iliacuteada IX vv 410-416) Haacute para cada bem um mal correspondente Na Odisseia o aedo Demoacutedoco que celebrava os festins na feaacutecia tambeacutem prefigura essa loacutegica irremediaacutevel posto que a Musa muito o amava ldquoDera-lhe tanto o bem como o mal Privara-o da vista dos olhos mas um doce canto lhe concederardquo (HOMERO Odisseia VIII vv 63-64) Uma das melhores formulaccedilotildees dessa loacutegica pode ser lida na fala de Polidamante a Heacutector

ldquoHeitor muita dificuldade tens tu em dar ouvidos a bons conselhosPorque o deus te concedeu preeminecircncia nas faccedilanhas guerreirasTambeacutem por isso queres estar acima de todos no conselhoSoacute que tu proacuteprio natildeo seraacutes capaz de abarcar todas as coisas Eacute que a um homem daacute o deus as faccedilanhas guerrilhasA outro a danccedila e a outro ainda a lira e o cantoE no peito de outro coloca Zeus que vecirc ao ao longeUma mente excelente de que muitos homens tiram vantagemA muitos ele consegue salvar coisa que sabe mais que todosrdquo(HOMERO Iliacuteada XIII vv 724-734)

Na troca de acusaccedilotildees entre Agamecircmnon e Aquiles a potecircncia guerreira do melhor dos aqueus claramente confrontava a lideranccedila poliacutetica do Atrida De um lado um basileu que ainda que combatesse tinha seus meacuteritos pouco

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associados agrave superaccedilatildeo dos adversaacuterios em campo de batalha do outro um jovem guerreiro que a todos superava no combate mas que era inaacutebil com as palavras Agamecircmnon diz a Aquiles ldquoDe todos os reis criados por Zeus eacutes para mim o mais odioso Sempre te satildeo gratos os conflitos as guerras e as lutas Se eacutes excepcionalmente possante eacute porque um deus tal te concedeurdquo (HOMERO Iliacuteada I vv 176-178) Aquiles por sua vez diz a Agamecircmnon ldquoRei voraz com o proacuteprio povo eacute sobre nulidades que tu reinas se assim natildeo fosse oacute Atrida esta agora seria a tua uacuteltima insolecircnciardquo (HOMERO Iliacuteada I vv 231-232) Quem percebe a gravidade da dissensatildeo e busca intervir eacute Neacutestor precisamente pela sabedoria que se acumulou ao longo dos anos Falando primeiramente a Agamecircmnon diz

ldquoQue natildeo procures tu nobre embora sejas tirar-lhe a donzelaMas deixa-a estar foi a ele primeiro que os aqueus deram o precircmioQuanto a ti oacute Pelida natildeo procures agrave forccedila conflitos com o reiPois natildeo eacute honra qualquer a de um rei detentor de ceptroA quem Zeus concedeu a gloacuteriaEmbora sejas tu o mais forte pois eacute uma deusa que tens por matildeeEle eacute mais poderoso uma vez que reina sobre muitos maisrdquo(HOMERO Iliacuteada I vv 275-281)

A fala ponderada de Neacutestor eacute um sintoma da perspectiva natildeo apenas dos poetas mas das aristocracias a quem cantavam e que gostariam de se sentir representadas nos versos hexameacutetricos O anciatildeo consegue criticar a decisatildeo de Agamecircmnon sem colocar em suspenso sua soberania Ao mesmo tempo dirige-se a Aquiles louvando seu meacuterito guerreiro sem abdicar da necessidade de submissatildeo ao poder de quem reina sobre mais gente Neacutestor percebeu que no interior do exeacutercito aqueu cada uma das partes exacerbava a ausecircncia da outra e que isoladamente competindo entre si o enfraquecimento dos gregos abriria espaccedilo para o fortalecimento dos troianos

Eacute precisamente nesse ponto que competiccedilatildeo e cooperaccedilatildeo dialogam natildeo como pares antiteacuteticos mas como um modo de ser que depende fundamentalmente do objetivo comum compete-se contra o outro e coopera-se internamente para atingir o mesmo fim Qualquer ruiacutedo qualquer idiossincrasia uma palavra que excede ou uma negociaccedilatildeo que se frustra arrasta consigo consequecircncias funestas graccedilas agrave incapacidade de dar a cada parte do binocircmio o espaccedilo consagrado que lhe cabe

Por fim e sobretudo haacute um modo de ser que pode ser complementar ou excludente ensejando por correspondecircncia a cooperaccedilatildeo ou competiccedilatildeo Se a fala de Neacutestor sugere que a cooperaccedilatildeo entre aliados eacute absolutamente

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necessaacuteria e deve ser tomada como princiacutepio orientador das relaccedilotildees sociais as proacuteprias diferenccedilas divinamente justificadas (os deuses natildeo datildeo tudo a todos) ensejam o amaacutelgama da competiccedilatildeo e fazem com que esteja sempre agrave espreita rodeando os heroacuteis no marco de suas potecircncias e carecircncias O fiel da balanccedila o ponto de apoio o ldquonoacute goacuterdiordquo que assegura a coesatildeo ou conflito eacute insisto a poliacutetica Eacute pela poliacutetica que o ser eacutetico-poliacutetico se manifesta e consegue pocircr a si proacuteprio e o outro em perspectiva olhando as diferenccedilas como possiacuteveis complementos e natildeo como foco de dissociaccedilatildeo Apolo sabia disso quando lanccedilou a discoacuterdia Agamecircmnon se apercebeu quando reconheceu seu desvario Aquiles aprendeu quando perdeu Paacutetroclo Neacutestor jaacute sabia antecipadamente E se haacute um sentido embora esquecido que preside a busca pela poliacutetica eacute certamente bem comum ainda que muitos insistam que eacute possiacutevel atingi-lo fora de uma disposiccedilatildeo cooperativa

Abstract The aim of this article is to observe the tensions between Achilles and Agamemon through the conceptual bionmial competitioncooperation Itrsquos intend not only understand the variables of this opposition but also how the ideas of competition and cooperation sets a quarrel and suggest an ethical-political way of being that distinghishes those heroesKeywords Competition Cooperation Achilles Agamenon Iliad

Referecircncias

Documentaccedilatildeo Textual

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A REORGANIZACcedilAtildeO TERRITORIAL AacuteTICA SOB CLIacuteSTENES A DEMOCRACIA COMO ENFRAQUECIMENTO DOS PODERES PA-RENTAL-ARISTOCRAacuteTICOS

Bruno DrsquoAmbros1

Resumo Mostramos neste artigo que a democracia grega nasceu efetivamente com a reorganizaccedilatildeo territorial aacutetica de Cliacutestenes em 508 aC atraveacutes do enfraquecimento dos genoi e phratriai em prol dos demoi A democracia assim desde seu surgimento parece ter sido uma tentativa de soluccedilatildeo para o problema semelhante do conflito entre a distribuiccedilatildeo de poder local e regional Palavras-chave Cliacutestenes Democracia Greacutecia antiga Oligarquias

A escassa produccedilatildeo bibliograacutefica histoacuterica sobre o tema do nascimento da democracia na Greacutecia Antiga por vezes gera certa simplificaccedilatildeo da temaacutetica criando uma idealizaccedilatildeo da democracia participativa grega e esquecendo os variados elementos que a constituiacuteram Sem a adequada compreensatildeo dos detalhes histoacutericos que compuseram o nascimento da democracia arriscamos dizer eacute quase impossiacutevel compreender adequadamente Platatildeo Xenofonte Aristoacuteteles e toda a produccedilatildeo filosoacutefica subsequente sobre o tema da poliacutetica As vaacuterias criacuteticas que os filoacutesofos antigos fizeram agrave democracia grega adveacutem de muitos elementos histoacutericos factuais que natildeo estatildeo naturalmente presentes nos textos destes pensadores e soacute podem ser compreendidos agrave luz da histoacuteria poliacutetica grega

Heroacutedoto em seu relato fictiacutecio na sua Histoacuterias relaciona trecircs reis persas ndash Otanes Megabises e Dario ndash com respectivamente os trecircs regimes poliacuteticos claacutessicos ndash democracia aristocracia e monarquia Este relato ajudou a consolidar no imaginaacuterio grego estas trecircs formas de governo e jaacute nele se percebe uma valoraccedilatildeo negativa da democracia Isoacutecrates em seu Evaacutegoras tambeacutem vecirc negativamente a democracia grega por seu caraacuteter igualitarista poreacutem elogia Soacutelon e Cliacutestenes que em sua opiniatildeo foram homens que foram

1 Doutorando em filosofia pela UFPR E-mail dambrosbrunogmailcom

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capazes de construir uma cidade-estado longe da monarquia Xenofonte nos Memoraacuteveis e Ciropeacutedia despreza a democracia que para ele era um regime calcado na indisciplina popular e portanto um regime titubeante A famosa criacutetica platocircnica agrave democracia na Repuacuteblica natildeo inova exceto na sua teoria da degenerescecircncia dos regimes poliacuteticos partindo do melhor para o pior ou seja a democracia esta seria ruim porque se baseia num homem sem virtude Aristoacuteteles em sua Poliacutetica rejeita a teoria platocircnica da degenerescecircncia das formas de governo e afirma que a democracia eacute uma forma de governo degenerada que exclui o interesse comum e beneficia o interesse de uma classe particular os mais pobres

Em suma percebe-se que a democracia ao menos para as classes cultas natildeo era um regime bem No entanto se atentarmos somente para os argumentos presentes nos textos destes autores citados excluindo o contexto histoacuterico anterior natildeo compreenderemos esta antipatia agrave democracia em sua totalidade Eacute preciso portanto voltar-se para os acontecimentos histoacutericos

O principal evento para a consolidaccedilatildeo da democracia aleacutem das reformas anteriores de Soacutelon e dos Pisistraacutetidas foi sem duacutevida a reforma territorial sob Cliacutestenes ocorrida por volta de 508 aC Foi esta reforma que ao reconfigurar a demografia aacutetica enfraqueceu os laccedilos parentais das famiacutelias aristocraacuteticas aacuteticas e possibilitou a participaccedilatildeo poliacutetica efetiva nas eleiccedilotildees e nas instituiccedilotildees democraacuteticas atenienses O que houve em outros termos foi que os novos demoi nascentes como nova divisatildeo territorial administrativa se contrapocircs com a divisatildeo familiar tradicional de parentesco denominada genos o que contribuiu para a exacerbaccedilatildeo da antiacutetese entre uma aristocracia familiar local estabelecida e uma democracia poliacutetica translocal introduzida2 Todo o debate filosoacutefico poliacutetico concernente sobre a democracia tinha como pano de fundo os nuacutecleos de gens na Greacutecia antiga e a nova configuraccedilatildeo demograacutefica de Cliacutestenes os demoi

Cliacutestenes nasceu por volta de 570 aC e era membro do clatilde dos Alcmeocircnidas neto do tirano Cliacutestenes de Siacutecion tio de Peacutericles e avocirc de Alcebiacuteades Quanto ao seu legado Cliacutestenes tomou uma seacuterie de medidas reformatoacuterias principalmente no que tange agrave reorganizaccedilatildeo poliacutetica do territoacuterio da Aacutetica mudando a organizaccedilatildeo poliacutetica ateniense que era baseada em quatro tradicionais tribos com fortes laccedilos de parentesco entre si que foram responsaacuteveis pelas tiranias anteriores A fim de impedir que a tirania se

2 Sobre a diferenccedila entre γένος e δῆμος na Aacutetica claacutessica faz-se mister conferir o capiacutetulo X da parte II da obra de Fustel de Coulanges (2009) jaacute bem conhecida entre os helenistas e latinistas onde o autor defende a tese de que a gens era a famiacutelia em sua primitiva organizaccedilatildeo de parentesco e unidade e natildeo como se pensava na eacutepoca um artifiacutecio administrativo de relaccedilotildees de parentesco

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instalasse novamente atraveacutes destas relaccedilotildees de parentesco Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em dez tribos de acordo com sua area de residecircncia o seu dēmos Estas reformas territoriais foram na verdade uma ldquodessacralizaccedilatildeo da paacutetriardquo (KERCKHOVE 1980 p 27) e consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo em curso na Greacutecia Arcaica (DrsquoAMBROS 2014)

Os principais feitos de Cliacutestenes durante seu arcontado foram basicamente seis a reorganizaccedilatildeo demograacutefica do territoacuterio aacutetico o consequumlente fortalecimento dos dēmos em detrimento das antigas phratriai a reorganizaccedilatildeo da boulḗ em 500 participantes a reorganizaccedilatildeo da dikasteria a corte popular a instituiccedilatildeo do ostracismo e a cunhagem do conceito de isonomia que durante o seacuteculo V iria desembocar no conceito de democracia

Quanto a estas outras reformas o estabelecimento de corpos legislativos feitos de indiviacuteduos escolhidos por eleiccedilatildeo foi tambeacutem mais um atentado contra o parentesco e a hereditariedade aristocraacutetica Ainda sua reorganizaccedilatildeo da Boulecirc que primariamente foi feita por 400 membros para 500 membros 50 de cada tribo e a introduccedilatildeo do juramento bouleacutetico que propunha antecipadamente a agenda a ser discutida na ekkleacutesia foram importantes para esta desestabilizaccedilatildeo aristocraacutetica A reorganizaccedilatildeo do tribunal da dikasteria e a criaccedilatildeo do ostracismo usado pela primeira vez em 487 aC com a finalidade de expulsar da cidade qualquer um que ameaccedilasse a democracia foram mecanismos uacuteteis para o enfraquecimento do poder parental-aristocraacutetico

A ascensatildeo de Cliacutestenes ao arcontado se deu apoacutes a expulsatildeo de Hiacuteppias de Atenas quando Isaacutegoras entra na disputa pelo arcontado com Cliacutestenes ambos aristocratas Isaacutegoras aliou-se com o rei Cleomenes I de Esparta e exilou Cliacutestenes junto com 700 famiacutelias e tornou-se arconte epocircnimo em 507 aC Seu grande erro poreacutem foi tentar dissolver a boulḗ3 que resistiu e angariou o apoio do povo e forccedilou Isaacutegoras a fugir para a Acroacutepolis que laacute permaneceu por dois dias sendo expulso no terceiro junto com os espartanos aliados (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 721ndash2) Cliacutestenes entatildeo junto com os outros exilados retornou a Atenas e tornou-se arconte com apoio do povo e dos aristocratas hetairoi (cavalaria)

Conflitos entre aristocratas como entre Isaacutegoras e Cliacutestenes estava se tornando ldquofora de modardquo (BUCKLEY 2010 p 118) O povo de modo geral e igualmente a parcela de nobres por meacuterito financeiro estava enfastiada de disputas entre facccedilotildees aristocraacuteticas que natildeo percebendo a mudanccedila dos tempos ainda sustentava valores e coacutedigos de honra anacrocircnicos Cliacutestenes

3 Na verdade Heroacutedoto natildeo explicita se foi a Bouleacute ou o Areoacutepago que Isaacutegoras quis remover

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arguto poliacutetico e membro da aristocracia percebeu isso jaacute durante o periacuteodo de tirania onde os tiranos para se manter no poder adotavam medidas populistas que natildeo os tornavam dependentes dos humores inconstantes das facccedilotildees aristocraacuteticas mas do proacuteprio povo E lidar com o povo ignorante cujos interesses satildeo miacutenimos eacute muito mais faacutecil que lidar com uma aristocracia com infinitos interesses econocircmicos e poliacuteticos e coacutedigos de honra fastidiosos

Inspirado no bem suscedido populismo4 precedente dos pisistraacutetidas Cliacutestenes toma medidas igualmente populistas para se manter no poder desagradando naturalmente a classe aristocraacutetica da qual ele mesmo fazia parte Dentre estas medidas as principais foram duas a reforma demograacutefica e a ampliaccedilatildeo dos poderes da ekklesia Heroacutedoto (HEROacuteDOTO Histoacuterias V 662 692) sublinha este caraacuteter oportunista das medidas de Cliacutestenes e igualmente Aristoacuteteles quando diz que ldquoCliacutestenes trouxe o povo para o seu lado cedendo o controle do Estado para o plethos (plebe)rdquo (ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 202) Portanto apesar de Cliacutestenes ser considerado o real fundador da primeira democracia na histoacuteria seus interesses natildeo foram altruiacutestas mas permeados de interesses pessoais e aristocraacuteticos ou mais amenamente uma ldquocombinaccedilatildeo de auto-interesse e acuidade puacuteblicardquo (BUCKLEY 2010 p 120)

Assim a democracia ateniense nasce propriamente com Cliacutestenes em funccedilatildeo de sua reforma demograacutefica do territoacuterio Aacutetico Os principais motores destas reformas foram dois que se inter-relacionam o problema da cidadania ateniense e o problema das unidades parental-aristocraacuteticas Passemos a seguir a explicaacute-las

Durante o arcontado de Soacutelon muitos estrangeiros vieram para Atenas por sua prosperidade crescente com sua abertura econocircmica para trabalhar nos mais diversos ramos sendo o principal o artesanato Igualmente durante

4 O populismo termo moderno eacute um fenocircmeno que liga-se diretamente agrave tirania O tirano era essencialmente um populista estava ao lado do povo e contra os aristocratas Heroacutedoto (V 926) diz que a sanha do tirano eacute essencialmente a igualdade ldquocortar todas as espigas maiores que as outrasrdquo Glotz (1988 p 92) resume magistralmente qual era de fato o objetivo do tirano ldquoreduzir os poderes da aristocracia e exalccedilar os humildesrdquo Por isso na tipologia poliacutetica platocircnica agrave democracia natildeo eacute reservado a ela um bom lugar pois o intervalo entre a democracia e o populismo e portanto agrave tirania eacute curto O povo no baixo medievo grego cultuava deuses locais ctocircnicos sendo um deles Dioniso (lembremos que como Cristo ele desceu ao Hades e ressuscitou segundo o Hino Homeacuterico LIII) A aristocracia cultuava deuses com caraacuteter universal os deuses oliacutempicos Para agradar o povo Pisiacutestrato promove os cultos ctocircnicos populares sendo o principal o culto a Dioniso construindo um templo e instituindo o festival da Grande Dionisia onde em 535 aC foi encenado a primeira trageacutedia tendo como vencedor Thespis de Icaacuteria Assim nasce oficialmente o culto a Dioniso e a Trageacutedia grega sob os auspiacutecios do populismo tiracircnico (cf GLOTZ 1988 p 93)

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os pisistraacutetidas muitas novas pessoas vieram para Atenas para servir como mercenaacuterios do exeacutercito puacuteblico Assim durante todo o seacuteculo VI Atenas recebeu uma quantidade crescente de estrangeiros que no governo de Soacutelon vieram para trabalhar como artesatildeos de vasos e no governo dos pisistraacutetidas vieram para trabalhar como mercenaacuterios no exeacutercito puacuteblico estes foram os famosos meacutetoikos (estrangeiros)

Durante o governo de Cliacutestenes Atenas jaacute era habitada pelos netos e bisnetos destas pessoas no entanto sem cidadania aacutetica ainda Assim tiacutenhamos trecircs geraccedilotildees de estrangeiros que ainda natildeo tinham a cidadania ateniense plena Atenas durante o seacuteculo VI aC teve um crescimento demograacutefico significativo e a propaganda poliacutetica dos pisistraacutetidas em transformar Atenas no centro cultural Aacutetico foi bem-sucedida ao trazerem os festivais dionisiacuteacos teatro e os jogos oliacutempicos para a cidade Desde modo aleacutem dos descendentes daqueles estrangeiros que vieram para Atenas sob Soacutelon e os pisistraacutetidas sob Cliacutestenes afluiacuteram para Atenas muitos outros estrangeiros

A uacutenica prova formal de cidadania ateniense antes de Cliacutestenes eram as fratriai que reivindicavam para si uma origem miacutetica como seus nomes atestam Assim quando Cliacutestenes fez a reforma geopoliacutetica aacutetica criando os demoi ele automaticamente aboliu o antigo criteacuterio de cidadania criando um novo os demoi (BUCKLEY 2010 p 120) O termo deme tem um sentido muito especiacutefico na Aacutetica pois de fato se refere ldquounidade poliacutetica associada com as reformas de Cliacutestenesrdquo (TRAILL 1975 p73)

Para compreender a natureza e extensatildeo da reforma geopoliacutetica aacutetica de Cliacutestenes em deme eacute preciso compreender a natureza das quatro unidades parental-aristocraacuteticas aacuteticas anteriores phylai phratriai genē e oikoi ou anchisteia Eric Voegelin (2012 p 190) chama-as de ldquoestruturas gentiacutelicasrdquo de sinecismo da civilizaccedilatildeo helecircnica e as apresenta em niacuteveis da maior para a menor respectivamente5 Estas estruturas gentiacutelicas da civilizaccedilatildeo helecircnica tinham caracteriacutesticas tribais e foram determinantes do processo de sinecismo aacutetico ou seja na uniatildeo dos vaacuterios vilarejos aacuteticos em torno de um centro poliacutetico uacutenico Atenas durante o seacuteculo V ac

Ao longo do seacuteculo VII ac as phratriai satildeo a base da sociedade englobam tambeacutem os genē e se legitima como poder poliacutetico tendo regras proacuteprias podendo promulgar decretos proacuteprios possuir bens e dignitaacuterios

5 Contudo natildeo sabemos exatamente se os philai eram partes das phratriai ou contrariamente se as phratriai eram parte das philai (LAMBERT 1993 p 1516)

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tem seu proacuteprio sacerdote e culto As lideranccedilas das phratriai eram hereditaacuterias e portanto natildeo-democraacuteticas (BUCKLEY 2010 p 122) As phratriai eram o foco da aristocracia e uma vez que a aristocracia era um problema para o povo logo eram igualmente o foco do problema As phratriai podiam dividir-se ou fundir-se conforme sua fraqueza ou forccedila poliacutetica e segundo as circunstacircncias (LAMBERT 1993 p 11) e esta grande mobilidade espontacircnea foi provavelmente o motivo que as fizeram sobreviver durante os 200 anos de democracia como ldquoorganizaccedilotildees extra-urbanasrdquo ( JONES 1999 p 210)

A fundaccedilatildeo das phratriai foi atribuiacuteda agrave figura miacutetica de Ion personificaccedilatildeo da identidade jocircnica (LAMBERT 1993 p 3) Atenas estava organizada em quatro tribos jocircnicas agrupadas em phratriai e genē baseadas num parentesco miacutetico com algum heroacutei (FINE 1983 p 229) Este recurso genealoacutegico a um ancestral miacutetico comum foi recorrente em todas as phratriai e pode se atestar tanto pelo sufixo patroniacutemico -idai nos nomes das phratriai como Alkmeonidai e Demotionidai como pelo famoso festival de Apatouria cujo nome derivaria de homopatoria ou seja ldquomesmo pairdquo (LAMBERT 1993 p 8) Apesar de o recurso genealoacutegico-miacutetico natildeo ser verdadeiro como hoje compreendemos a noccedilatildeo de verdade como correspondecircncia de fato as phratriai consistiam de pessoas com uma ancestralidade comum chamados homogalaktes e a membresia nas phratriai natildeo era reservada somente aos ricos eupatridai (FINE 1983 p 186) mas estendida a todos os que vinham a pertencer a uma phratriai Deste modo as phratriai eram organizaccedilotildees de parentesco primordialmente constituiacutedas por phraacuteter vizinhos proacuteximos e amigos de famiacutelia Haacute trecircs evidecircncias segundo Lambert (1993 pp 4-5) da existecircncia das phratriai aacuteticas trinta inscriccedilotildees arqueoloacutegicas preservadas obras tardias dos seacuteculos V e IV aC em especial Isaeus e Demoacutestenes e scholia variados como os ensaios de Plutarco Pausanias e Ateneu Em Homero a fratria eacute uma ldquosubdivisatildeo da tribordquo e uma ldquobase de organizaccedilatildeo militarrdquo de modo que o homem sem fratria eacute considerado um ldquofora de leirdquo (VIAL 2013 p189) A palavra phrater significa literalmente irmatildeo mas em Homero natildeo se usa a palavra phrater para se referir a irmatildeo mas sim adelphos e kasignetos (FINE 1983 p 35) O termo phratria eacute mencionado pela primeira vez na Iliacuteada (II vv 362-363 IX vv 63-64) quando Nestor fala a Agamenon para dividir os homens por tribos e phratriai Uma hipoacutetese para a origem das phratriai bem aceita eacute a de que na ldquoEra das Trevasrdquo grega os nobres agrupados em genē organizaram seus dependentes em phratriai para melhor controle cada uma estando sob o domiacutenio de um ou mais gene (FINE 1983 p 186) Assim a organizaccedilatildeo em phratriai formam um modo de organizaccedilatildeo dos genē e de fato as phratriai organizaram a vida social e poliacutetica grega desde sua

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apariccedilatildeo por volta de 2000 aC ateacute seu fim no segundo seacuteculo II aC como atesta uma inscriccedilatildeo em uma colocircnia grega em Naacutepoles

As outras estruturas gentiacutelicas phylai genē e anchisteia satildeo partes constituintes do que seratildeo as poleis futuramente Agrave medida que a noccedilatildeo de sujeito vai tomando escopo ndash como se pode atestar pela epopeacuteia liacuterica e trageacutedia ateacute seu ponto culminante com a filosofia ndash o mundo tribal aristocraacutetico vai dando lugar ao mundo das poleis democraacuteticas O sujeito ldquo[] sempre permaneceu numa posiccedilatildeo de mediaccedilatildeo por meio dos parentescos sanguiacuteneos tribais fictiacutecios e estreitos no interior da poacutelisrdquo (VOEGELIN 2012 p 189)

Cliacutestenes mudou a situaccedilatildeo poliacutetica aacutetica mudando a situaccedilatildeo geopoliacutetica Agora o centro das decisotildees poliacuteticas natildeo eram mais as phratriai mas os demoi Cliacutestenes dividiu a Aacutetica em trecircs regiotildees geopoliacuteticas Paralia Mesogeia e Astu E cada uma destas aacutereas foi subdividida em dez partes chamadas tritiacuteas6 que por sua vez englobavam um certo nuacutemero de demes (BRAADEN 1955 p 22) De acordo com Braaden (1955 p 28) ldquoas tritiacuteas eram aacutereas geograacuteficas compactas e em alguns lugares contiacuteguasrdquo A subdivisatildeo aacutetica foi uma forma de ldquomisturar o povordquo (BUCKLEY 2010 p 128 BRAADEN 1995 p 23) As reformas de Cliacutestenes ldquopodem ter intentado transcender barreiras locais juntando homens dos distritos rurais urbanos e costeiros e desenvolver um sentimento de uniatildeordquo (HIGNETT 1952 p 141) Esta divisatildeo aacutetica foi a maneira achada para solucionar os conflitos parental-aristocraacuteticos entre as diversas facccedilotildees e partidos7

A principal diferenccedila entre as phratriai e os demoi era a ldquoconstituiccedilatildeo democraacuteticardquo (BUCKLEY 2010 p123) destes uacuteltimos Todos os temas concernentes aos demoi eram decididos natildeo mais por uma pequena phratria seleta mas por todo o demos

Alguns especialistas sustentam que Cliacutestenes com sua reforma demograacutefica desejava aumentar o poder das cidades e outros que ao contraacuterio

6 As dez era a dos Erectidas Egeus Pandion Leocircnides Acamantes Oineis Cecroacutepides Hipotoontes Eacircntides e Antiacuteoques e estavam espalhadas por todo o territoacuterio aacutetico em diferentes locais tendo muitas vezes a mesma tribo em locais diferentes totalizando assim trinta tritiacuteas Na mesma tritiacutea havia vaacuterios demoi e se crecirc ter havido cerca de 140 dēmoi em toda a Aacutetica Cada tribo eacute composta por trecircs tritiacuteas a da costa cidade e planiacutecie Cada tritiacutea foi nomeada segundo o demo dominante

7Alguns partidos regionais do seacuteculo VI aC eram pedieis cujo nuacutecleo estava concentrado na aacuterea de planiacutecie e tinha Licurgo como liacuteder paralioi cujo nuacutecleo era a aacuterea costeira e era famoso por ser a regiatildeo dos Alcmeocircnidas e por fim os hyperacrioi os ldquoaleacutem dos montesrdquo Cliacutestenes desejava quebrar a velha rivalidade entre os pediakoi paralioi e diakrioi e a influecircncia dos eupatridai (BRAADEN 1955 pp 23- 25)

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ele desejava diminuir De fato Cliacutestenes estava mais interessado dentre as trecircs grandes aacutereas em que a Aacutetica foi divida na aacuterea urbana provavelmente porque a maior parte das famiacutelias nobres eram de centros urbanos (BRAADEN 1955 pp 28-29) Aleacutem disso ldquoas tritiacuteas da Cidade consistiam de somente um demos que como a evidecircncia arqueoloacutegica mostra era a sede poliacutetica dos Alcmeocircnidasrdquo (BUCKLEY 2010 p 127) ou seja a proacutepria facccedilatildeo de Cliacutestenes

Deste modo as reformas tribais de Cliacutestenes foram um grande senatildeo o mais importante fator no desenvolvimento da democracia ateniense mas foram tambeacutem um meio de fortalecer a permanecircncia poliacutetica dos Alcmeocircnidas agraves custas de seus oponentes (BUCKLEY 2010 p 128)

Estas famiacutelias mantiveram influecircncia poliacutetica sobre o territoacuterio de onde vieram apesar de suas residecircncias estarem em aacutereas urbanas Alguns alegam como Braaden (1955 p 29) que a reforma territorial de Cliacutestenes natildeo foi um meio de beneficiar a plebe mas os aristocratas porque ldquoera necessaacuterio inventar um sistema pelo qual elas pudessem ser espalhadas por todas as tribos enquanto ainda usando localidade como a base para a cidadaniardquo

As rivalidades e conflitos entre as facccedilotildees podem ter sido causadas pela ambiccedilatildeo de poucas famiacutelias ou clatildes aristocraacuteticos que eram capazes de usar seus domiacutenios de certas regiotildees da Aacutetica como arma poliacutetica Cliacutestenes percebeu que estes blocos regionais de poder com seus liacutederes aristocraacuteticos sustentados em poder pode seus amigos e dependentes pela rede de velhas lealdades e alianccedilas eram o maior obstaacuteculo para a estabilidade poliacutetica Consequentemente houve uma radical reorganizaccedilatildeo do corpo citadino e por isso das quatro tribos jocircnicas sob os fundamentos que a dependecircncia poliacutetica do povo comum poderia somente ser quebrada pela separaccedilatildeo poliacutetica de seus liacutederes aristocraacuteticos (BUCKLEY 2010 p 126)

A artificializaccedilatildeo do territoacuterio atraveacutes de uma reforma geopoliacutetica foi o modo encontrado para enfraquecer o poder das fratrias fortalecer o poder do povo e ldquoquebrar os fortalecidos poderes regionais destes clatildes aristocraacuteticos e suas facccedilotildees acabando com as funccedilotildees poliacuteticas das fratrias e das velhas tribos [hellip] (BUCKLEY 2010 p 122) No entanto ao mesmo tempo foi um modo de fortalecer o poder de uma fratria especiacutefica a proacutepria de Cliacutestenes e descentralizar as decisotildees poliacuteticas e unificar o estado Poderiacuteamos dizer assim que a democracia ateniense foi consequumlecircncia de uma demografia antes de tudo

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Como dito acima um dos problemas sociais mais urgentes resolvidos sob Cliacutestenes ao final do seacuteculo VI eram os novos cidadatildeos sem cidadania ateniense plena A nova base de cidadania instituiacuteda por Cliacutestenes foi a localidade de nascimento e isso facilitou a inclusatildeo de novos cidadatildeos (BRAADEN 1955 p 22) Com as phratriai enfraquecidas a base de confianccedila para a cidadania agora natildeo eram mais o parentesco fictiacutecio com algum heroacutei mas simplesmente o demos ao qual algueacutem fazia parte Os deme garantiriam cidadania ateniense natildeo soacute para antigos habitantes mas tambeacutem para os novos conforme relata o proacuteprio Aristoacuteteles (Constituiccedilatildeo dos atenienses 214) Voegelin tambeacutem nos confirma ao dizer que ldquoa cidadania agora dependia do pertencimento a um dos demoirdquo e diz que a consequecircncia geral deste feito foi uma ldquodemocratizaccedilatildeo bem-sucedida da constituiccedilatildeo dissolvendo o poder da antiga estrutura gentiacutelica (VOEGELIN 2012 p190)

Aleacutem deste alargamento da cidadania a reforma demograacutefica clisteneana repercutiu na organizaccedilatildeo militar pois agora os ldquogenerais de qualquer tribo poderia vir de qualquer uma das trecircs regiotildees da Aacuteticardquo (BRAADEN 1955 p 26) A reforma territorial de Cliacutestenes foi ldquoum sistema pelo qual os Eupatridai seus inimigos talvez mas ainda homens de habilidade pudessem ser usados para favorecer na posiccedilatildeo militar e na nova e poderosa posiccedilatildeo de Prytaneisrdquo (BRAADEN 1955 p 30)

Este eacute um sistema extremamente complexo e foi implantado por Cliacutestenes com a finalidade de abolir os privileacutegios patroniacutemicos em favor dos demoniacutemicos o que aumentou o senso de pertenccedila a um dēmos nos indiviacuteduos ficando as relaccedilotildees familiares de genos cada vez mais tecircnues O dēmos portanto foi uma divisatildeo territorial artificial para impedir a forccedila poliacutetica dos genos Poderiacuteamos dizer que esse conflito entre genos e demos eacute o conflito entre a lei do Estado e o direito familiar ou ainda o conflito entre poder central e poderes regionais que estaraacute presente durante toda a histoacuteria da poliacutetica e da filosofia poliacutetica culminando em soluccedilotildees futuras como federalismo e a teoria da divisatildeo dos poderes

Esta estrateacutegia geopoliacutetica se deu justamente pela excessiva forccedila das relaccedilotildees parentais que o genos proporcionava frequentemente levando ao poder um membro proeminente de um genos que natildeo legislaria em favor do puacuteblico O genos assim se tornava representante por excelecircncia da aristocracia Logicamente a decisatildeo de Cliacutestenes natildeo foi inicialmente bem vista pois diluiacutea as relaccedilotildees familiares tradicionais do genos em troca de relaccedilotildees artificiais novas do dēmos O que se tornava decisivo daqui em diante para a poliacutetica Aacutetica natildeo era mais o nascimento a estirpe a hereditariedade miacutetica reivindicada pela aristocracia A arete saia do campo de virtudes familiares para virtudes sociais

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sempre tendo em vista a comunidade Cliacutestenes desta forma literalmente instituiu a democracia

O que foi entatildeo a democracia Aacutetica antiga Foi uma divisatildeo territorial uma estrateacutegia geopoliacutetica em prol de todas as pessoas e natildeo somente de grupos familiares bem instituiacutedos Portanto para a democracia Aacutetica antiga foi de suma importacircncia a artificializaccedilatildeo do territoacuterio Soacute desta forma pode-se afrouxar os laccedilos parentais tradicionais que sempre tenderam a se agrupar e formar oligarquias em prol de laccedilos puacuteblicos que por estarem territorialmente distantes e natildeo terem proximidades familiares auxiliaram no sentimento de pertenccedila territorial

Abstract We show in this article that Greek democracy was actually born with the Attic territorial reorganization of Cliacutestenes in 508 bC through the weakening of the genoi and phratriai in favor of the demoi Democracy then since its inception seems to have been an attempt to solve the similar problem of the conflict between the distribution of local and regional powerKeywords Cleisthenes Democracy Ancient Greece Oligarchies

Referecircncias

ARISTOacuteTELES Constituiccedilatildeo dos atenienses 2ordf Ed Lisboa Calouste Goubenkian 2009

BRADEEN Donald The trittyes in Cleisthenesrsquo reforms In Transactions and proceedings of the American philological association Vol86 1955 pp22-30

BUCKLEY Terry Aspects of Greek history 750ndash323bc A source-based approach London Routledge 2010

COULANGES Fustel de A cidade antiga Satildeo Paulo Martin Claret 2009DrsquoAMBROS Bruno Rodrigo Um estudo histoacuterico sobre a emergecircncia da

democracia como consequecircncia do processo de racionalizaccedilatildeo na Greacutecia arcaica (594ndash508 aC) Orientador Jean Gabriel Castro - Florianoacutepolis SC 2014 119 p Trabalho de Conclusatildeo de Curso (graduaccedilatildeo) Universidade Federal de Santa Catarina

FINE John Van Antwerp The ancient greeks a critical history Harvard University Press 1983

GLOTZ Gustave A cidade grega Satildeo Paulo Bertrand Brasil 1988HEROacuteDOTO Histoacuterias livro V Lisboa Ediccedilotildees 70 2007JONES Nicholas The associations of classical Athens the response to

democracy Oxford University Press 1999KERCKHOVE Derrick De A Theory of Greek Tragedy SubStance Vol 9 No

4 Issue 29 (1980) pp 23-36

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LAMBERT SD The phratries of Attica Michigan Monographs in Classical Antiquity Michigan University Press 1993

TRAILL John S The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council Hesperia Supplements v 14 - The Political Organization of Attica A Study of the Demes Trittyes and Phylai and Their Representation in the Athenian Council 1975 pp 139-169

VIAL Claude Vocabulaacuterio da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2013VOEGELIN Eric Histoacuteria das ideias poliacuteticas 1 Helenismo Roma e

cristianismo primitivo Satildeo Paulo Eacute realizaccedilotildees 2012

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TRABALHO FEMININO NA HISPAcircNIA ROMANA PRECONCEITOS E RESGATES

Paulo Pires Duprat1

Miserius nihil est quam mulier ldquoNada eacute mais miseraacutevel do que uma mulherrdquo

(PLAUTO As Baacutequides 41)

Resumo Muito se escreveu sobre gecircnero no mundo romano Natildeo obstante algo parece estar faltando a parte que cabe agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica desta sociedade Passado presente ou futuro as mulheres constituem no miacutenimo metade da populaccedilatildeo ao redor do globo uma forccedila de trabalho imprescindiacutevel seja em sociedades antigas ou modernas Sabemos que desde o comeccedilo dos tempos a maioria das mulheres foi submetida ao trabalho duro sob a forma de tarefas cansativas e repetitivas impostas de forma arbitraacuteria Tais atividades comeccedilavam ainda na infacircncia e jamais receberam o devido reconhecimento O objetivo deste trabalho eacute portanto resgatar o papel do trabalho das mulheres nas economias da Hispacircnia romana com especial atenccedilatildeo ao caso de Tarraco entre finais da Repuacuteblica ateacute o Principado levantando subsiacutedios locais e alhures para demonstrar a parte que coube agraves mulheres na produccedilatildeo econocircmica da sociedade romana

Palavras-chave Estudos claacutessicos Economia romana Trabalho feminino Estudos de gecircnero Poacutes-modernismo

Estudos claacutessicos e a naturalizaccedilatildeo dos preconceitos

Lamentamos iniciar este artigo afirmando que os estudos claacutessicos satildeo com certeza um dos campos acadecircmicos mais conservadores hieraacuterquicos e patriarcais (SKINNER 1983 p 183) Eminentes classicistas criacuteticos reconheceram que ldquoos estudos claacutessicos tecircm sido com poucas exceccedilotildees antiteoacutericos em geral e antifeministas em particularrdquo nas palavras de Nancy Sorkin Rabinowitz em sua provocante introduccedilatildeo ao Feminist theory and

1 Doutorando em Histoacuteria pela Unicamp sob orientaccedilatildeo de Pedro Paulo Abreu Funari Servidor puacuteblico federal ativo desde 2005 atuando como bibliotecaacuterio lotado na FAUUFRJ E-mail ppdupratyahoocombr

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the Classics (1993 p 1) Os estudos claacutessicos tecircm reforccedilado pontos de vista conservadores de diversas maneiras na maioria dos casos ao apoiarem-se em uma leitura empirista a partir do senso comum dos documentos antigos O uso do senso comum para a manutenccedilatildeo de relaccedilotildees iniacutequas de poder segundo as agudas observaccedilotildees do linguista britacircnico Norman Fairclough (1990 pp 84-91) contribui para que relaccedilotildees de poder injustas sejam mantidas pela naturalizaccedilatildeo dos discursos Rejeitamos portanto esta abordagem derivada do senso comum na medida em que apenas uma anaacutelise criacutetica permite compreender o ldquomasculinordquo e o ldquofemininordquo como construccedilotildees sociais que variam em termos de classe social gecircnero e etnicidade em diferentes periacuteodos histoacutericos e em diferentes sociedades (FUNARI 1995b pp 179-80) O trecho abaixo deixa claro nossa percepccedilatildeo

Eacute uma histoacuteria circular que se torna mais intensa agrave medida em que a contamos Eacute um meio de controle social e tem sido usado para regular as atividades e aspiraccedilotildees de grupos laquonaturalmenteraquo subordinados Haacute muitos presentes e passados a serem narrados mas os perdedores do jogo satildeo frequentemente os mesmos grupos subordinados (SCOTT 1993 p 8)

Enfim haacute caminhos mais justos e viaacuteveis O vieacutes com o qual nos propomos a investigar o papel nas mulheres na sociedade romana eacute declaradamente inspirado no movimento feminista que convenceu alguns historiadores2 a substituir sua perspectiva de ldquosexordquo para ldquogecircnerordquo aqui entendida como construccedilatildeo social e natildeo como categoria natural como jaacute aludido

Desconstruindo preconceitos

Por ocasiatildeo da virada do seacuteculo XX para o XXI observamos abordagens de vanguarda que transformaram os estudos claacutessicos Os historiadores do mundo romano acostumados com narrativas de cunho poliacutetico econocircmico ou militar se depararam com o surgimento de uma geraccedilatildeo de estudiosos preocupados com a revisatildeo de conceitos consagrados de criacuteticas a modelos interpretativos de cunho normativo aleacutem de muacuteltiplas propostas sobre temas ineacuteditos sendo explorados Reflexotildees sobre a cultura romana as relaccedilotildees de

2 Dentre os quais me incluo No que concerne ao meu caso em particular francamente inspirado pela teoria desconstrutivista presente nas obras de Foucault e nas leituras feministas e poacutes-feministas indicadas pela linha de pesquisa das profordfs Luana Tvardovskas Margareth Rago e Pedro Paulo Funari a partir das aulas ministradas em no 1ordm e 2ordm semestres de 2017 seguindo as prerrogativas do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Unicamp

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gecircnero conflitos eacutetnicos ou a formaccedilatildeo das novas identidades a partir do embate entre romanos e natildeo romanos passaram a figurar com mais intensidade nas publicaccedilotildees acadecircmicas especializadas Este processo que estaacute inserido em um contexto muito mais amplo resulta de questionamentos epistemoloacutegicos que as Ciecircncias Humanas tecircm enfrentado desde a deacutecada de 1960 As criacuteticas de M Foucault3 por exemplo proporcionaram uma revisatildeo no papel dos acadecircmicos e aos poucos foi se concretizando a percepccedilatildeo na qual o historiador produz discursos sobre o passado constantemente ressignificados a partir de suas proacuteprias convicccedilotildees preconceitos e limitaccedilotildees Assim vaacuterios pressupostos tatildeo arraigados na historiografia tais como a neutralidade a objetividade a busca pelo real a essecircncia de sujeitos universais e o ordenamento dos acontecimentos a partir da noccedilatildeo de classes sociais e seus conflitos socioeconocircmicos entraram em xeque e foram revistos e criticados abrindo espaccedilo para repensar as categorias de anaacutelise do passado e as metodologias empregadas para sua interpretaccedilatildeo (FUNARI GARRAFFONI 2008 p 102)

Nossas reflexotildees acerca do mundo romano inserem-se neste contexto Afinal consideramos que o estudo da Antiguidade Claacutessica natildeo precisa reforccedilar preconceitos nem constituir-se em elemento de opressatildeo (FUNARI 1995a p 31) Por outro lado devemos ter em conta que a cultura material eacute o resultado direto do trabalho humano enquanto o documento escrito eacute uma representaccedilatildeo ideoloacutegica da realidade transposta para o texto Os documentos escritos informam-nos sobre as ideias de seus autores em geral uma elite masculina que sabia ler e escrever A escrita assim eacute um instrumento de poder de classe (FUNARI 2003 p 40)

Deste modo acreditamos que muitas pesquisas que se baseiam exclusivamente em obras literaacuterias podem incorrer em imprecisotildees naturalizando discursos e cristalizando opiniotildees que na realidade natildeo eram compartilhadas pela maioria da sociedade A observaccedilatildeo abaixo resume nossa posiccedilatildeo

Para um periacuteodo como o da Histoacuteria romana ou grega () apenas a Arqueologia podia trazer informaccedilotildees concretas e se tinha a consciecircncia clara que a literatura era ldquofonterdquo mas de um valor decerto relativo erudito elitista () Quem lia Quem escrevia Quem nos garantia a fidelidade das versotildees chegadas ateacute noacutes (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

3 Margareth Rago (1995 p 72) considera que as perspectivas de Foucault representaram uma verdadeira revoluccedilatildeo na historiografia uma ldquonova maneira de problematizar a Histoacuteria de pensar o evento e as categorias atraveacutes das quais se constroacutei o discurso do historiadorrdquo (grifo da autora)

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Por tais razotildees destacamos a centralidade da Arqueologia como ferramenta natildeo soacute para compor quadro mais amplo de evidecircncias como tambeacutem para refutar algumas ideias contidas nessas fontes escritas que muitas vezes informam mais sobre a opiniatildeo dos seus autores do que da ldquorealidaderdquo que eles julgavam contar4 Felizmente jaacute acumulamos alguma tradiccedilatildeo de pesquisa arqueoloacutegica no campo da economia romana Graccedilas ao grande nuacutemero de evidecircncias disponiacuteveis o conhecimento tem evoluiacutedo tanto no campo das economias provinciais quanto no da metroacutepole Inuacutemeros artefatos resultantes de escavaccedilotildees arqueoloacutegicas e o rico material epigraacutefico recuperado tecircm fomentado pesquisas que oferecem um quadro mais representativo das atividades econocircmicas desenvolvidas5 Haacute casos em que a evidecircncia eacute relativamente abundante e homogecircnea tais como por exemplo as inscriccedilotildees e os artefatos arqueoloacutegicos de Pompeacuteia ou os arquivos dos papiros gregos do Egito (BERDOWSKI 2007 p 283) que apontam para um quadro econocircmico-social muito mais multifacetado do que alguns vieses querem nos fazer crer6

As mulheres e sua Histoacuteria

Nas uacuteltimas deacutecadas temos observado sistemaacuteticos estudos sobre a atividade das mulheres na economia romana nos quais satildeo evidenciados seus papeis como forccedila de trabalho ou mesmo como empreendedoras Esta nova historiografia ao abordar as relaccedilotildees entre os sexos como resultado de uma

4 A misoginia dos autores da Antiguidade eacute flagrante e salta aos olhos Um bom exemplo disto eacute Taacutecito As mulheres descritas nos Anais de Taacutecito foram dissecadas remontadas e analisadas a partir de perspectivas psicoloacutegicas literaacuterias e ateacute dramaacuteticas Embora suas caracterizaccedilotildees sejam repletas de elementos retoacutericos em algumas ocasiotildees o autor retratou as mulheres como pessoas obcecadas pelo poder Ao referir-se agrave Agripina matildee de Nero fica patente sua fixaccedilatildeo no estereoacutetipo da dux femina e seu temor da influecircncia feminina sobre os homens - que ele considerava maligna ndash e seu alerta quanto aos ldquoperigosrdquo do abuso de poder por parte das mulheres (LrsquoHOIR 1994 McHUGH 2012 MELLOR 2010 p 131) Natildeo vamos nos aprofundar neste tema pois a noacutes interessa para o momento a atuaccedilatildeo econocircmica da mulher romana de classe baixa e meacutedia

5 A epigrafia representa portanto um manancial insubstituiacutevel Conforme aponta Encarnaccedilatildeo ldquopouco saberiacuteamos da organizaccedilatildeo romana na Peniacutensula Ibeacuterica se natildeo tiveacutessemos os documentos epigraacuteficosrdquo (ENCARNACcedilAtildeO 2010 p 13)

6 O tema da economia na Antiguidade continua sendo perpassado por conflitantes visotildees acerca das rupturas e continuidades com o mundo moderno evidenciado pela polecircmica entre ldquoprimitivistasrdquo e ldquomodernistasrdquo Inicialmente conhecido como ldquoBuumlcher-Meyer Controversyrdquo este debate se encontra estigmatizado por incorrer em variaccedilotildees de uma mesma temaacutetica Seus principais artiacutefices satildeo Weber Rostovtzeff Polanyi com especial destaque para as teorias minimalistas de Moses Finley A controveacutersia eacute antiga mas estaacute distante de seu esgotamento (DUPRAT 2015 p 16) O caminho mais seguro eacute o do meio (SALLER 2002 p 252 DUPRAT 2015 pp 23-51)

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construccedilatildeo social (RAGO 1995 p 80) modificou os meacutetodos e as perspectivas da histoacuteria tradicional7 tornando-a cada vez menos descritiva mais relacional e para muitos mais problematizada A rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade8

Eacute importante ressaltar que a noccedilatildeo de economia tratada nesta pesquisa pode estar mais proacutexima do conceito original de oikonomia do mundo antigo do que a do atual a etimologia grega traduziria este termo como ldquogestatildeo domeacutesticardquo noccedilatildeo complexa com diversas implicaccedilotildees9 Sua raiz estaacute no oikos unidade domeacutestica de produccedilatildeo na qual se baseava a polis grega e cujo modelo seraacute transmitido agrave Roma Assim sendo a economia greco-romana repousava sobre nuacutecleos domeacutesticos de produccedilatildeo10 onde a participaccedilatildeo das mulheres eacute evidente Neste sentido o oikos se configura como ceacutelula econocircmica baacutesica local onde se garante a subsistecircncia aleacutem de promover a reproduccedilatildeo humana Trata-se por conseguinte de uma unidade de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo em si mesma (MIROacuteN PEacuteREZ 2004 p 67 apud MEDINA QUINTANA 2014 pp 22-23)

No mais devemos elaborar uma abordagem holiacutestica de modo a contemplar o caraacuteter diverso das relaccedilotildees de gecircnero na Antiguidade Precisamos

7 Segundo Rago (1995 p 71) ldquoos historiadores do grupo dos Annales se preocuparam com as estruturas e os diferentes ritmos e temporalidades dos fenocircmenos histoacutericos privilegiando as longas permanecircncias mentais sociais geograacuteficas e etc que Braudel identificaria posteriormente como la longue dureacutee ou seja a longa duraccedilatildeo em detrimento das mudanccedilas sociaisrdquo Bengoochea Jove (1998 p 243) acrescenta que ldquoa historiografia acadecircmica tradicional centrava sua investigaccedilatildeo na experiecircncia histoacuterica do varatildeo (grifo meu) e quando abordava a participaccedilatildeo da mulher era sempre sob o vieacutes da santa regente reformadora ou estadista Nem a revista Annales (publicada desde 1929) nem a historiografia marxista embora tenha cunhado o enfoque metodoloacutegico da ldquoHistoacuteria totalrdquo se ocuparam da problemaacutetica da mulher a natildeo ser sob perspectivas tradicionaisrdquo

8 Bengoochea Jove (1998 p 243) potildee nestes termos concluindo que a invisibilidade da mulher adveio da proacutepria concepccedilatildeo androcecircntrica e eurocecircntrica da histoacuteria que selecionou os acontecimentos que julgava dignos de anaacutelise em detrimento de outros que relegou ao esquecimento

9 Resguardo-me assim da polecircmica acerca do emprego do termo ldquoeconomiardquo para descrever realidades do mundo antigo pois haacute o argumento ldquofiloloacutegicordquo de que nem a palavra nem o conceito remontam agrave Antiguidade mas a momentos posteriores e portanto estranhos agrave consciecircncia antiga Para maiores informaccedilotildees sobre o tema sugiro Juumlrgen Deininger (2012) Ciro Cardoso (2011) e Pedro Paulo Funari

10 A famiacutelia romana foi a principal unidade de produccedilatildeo reproduccedilatildeo consumo e transmissatildeo intergeracional de propriedade e conhecimentos que englobam a produccedilatildeo no mundo romano Esta declaraccedilatildeo aparentemente banal tem implicaccedilotildees de longo alcance Na antiguidade romana (bem como em outras sociedades preacute-industriais) a famiacutelia organizava o trabalho em fazendas familiares e em oficinas urbanas tomando decisotildees sobre como implementar os esforccedilos de homens mulheres e crianccedilas (SALLER 2011 p 116)

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ter em mente que os estudos claacutessicos por conta de seu caraacuteter transdisciplinar demandam o estudo da Histoacuteria Filologia Literatura Antropologia Sociologia Arqueologia Arquitetura Histoacuteria da Arte Geografia Metalurgia Biologia entre muitas outras Tais vieses estatildeo naturalmente abertos para uma abordagem dos temas sob uma oacutetica multicultural e pluralista Em uacuteltima anaacutelise a interdisciplinaridade seraacute a ferramenta decisiva as ciecircncias natildeo satildeo apenas auxiliares umas das outras elas se locupletam Afinal os dados materiais podem confirmar complementar ou mesmo contradizer as informaccedilotildees das fontes histoacutericas (FUNARI 2003 pp 85-86)

Mulheres romanas convenccedilotildees leis e exclusatildeo social

A exclusatildeo das mulheres da histoacuteria do trabalho na Antiguidade pode ser considerada uma omissatildeo intencional no registro de sua atuaccedilatildeo Portanto se o pesquisador natildeo estiver procurando os sinais do trabalho feminino nas fontes eacute evidente que ele natildeo vai encontraacute-los As fontes literaacuterias pouco ajudam a delinear a participaccedilatildeo das mulheres e eacute faacutecil compreender o porquecirc muitos dos ideais filosoacuteficos gregos foram incorporados ao modo de vida romano (ALFARO GINER 2009 p 15) Entre os gregos havia a percepccedilatildeo de que o trabalho diaacuterio alienava o indiviacuteduo e seria degradante Eles consideravam que os ofiacutecios manuais deformavam o corpo e o espiacuterito representava um castigo para os seres humanos um esforccedilo individual grave ou um dever penoso11

De tal forma que o trabalho diaacuterio sobretudo o manual era estigmatizado no mundo antigo e jamais obteve o status de atividade ldquodignificanterdquo que logrou alcanccedilar apoacutes o advento da moderna sociedade de consumo Segundo a loacutegica machista dos letrados escritores da Antiguidade o que conferia dignidade era a atividade fundiaacuteria participar da economia como um abastado proprietaacuterio de terras do sexo masculino e viver do trabalho de seus escravos dispondo de tempo livre para o oacutecio (otium) e assim poder refletir sobre causas mais elevadas envolvendo-se em atividades consideradas artisticamente valiosas ou iluminadoras (tais como a Retoacuterica a Literatura ou a Filosofia) Devido a este modo elitista de pensar o trabalho das pessoas comuns acabou sendo destituiacutedo de qualquer valor sobretudo o das mulheres uma vez que os escritores que contaram esta histoacuteria faziam parte desta elite e menosprezaram o peso econocircmico e social que suportaram as pessoas dos demais extratos da sociedade ou seja aqueles que precisavam trabalhar diariamente para viver ou seja a grande maioria da populaccedilatildeo

11 Cf XENOFONTE Oecon IV 2 VI 5 Cir V 3 47 ARISTOacuteTELES Poliacutetica III 5 3 IV 4 9 apoacutes ALFARO GINER 2009 p 16)

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Aqui entendido como um discurso de poder este ideal greco-romano sustentava tambeacutem que homens e mulheres deveriam viver em esferas separadas O domiacutenio puacuteblico seria prerrogativa masculina enquanto que a mulher permanecia na privacidade da esfera domeacutestica Por implicaccedilatildeo o direito de engajar-se abertamente nas artes artesanato e o comeacutercio seria teoricamente reservado aos homens12 A disseminaccedilatildeo deste ldquoidealrdquo eacute predominante nas fontes literaacuterias e haacute uma pecha elitista fortemente ligada a ele (GROEN-VALLINGA 2013 p 295) Para a elite a atuaccedilatildeo da mulher estava limitada agrave esfera da famiacutelia e da household13 a casa por excelecircncia da Antiguidade aqui entendida como unidade de produccedilatildeo o que pressupunha certa autossuficiecircncia alimentar bem como a confecccedilatildeo das vestimentas num mundo onde inexistiam as facilidades proporcionadas pelas modernas redes varejistas que dispomos atualmente Tal configuraccedilatildeo econocircmica e social determinou que

A mulher tinha um papel especiacutefico e determinado no seio da casa e portanto na cidade A famiacutelia patriarcal impocircs limites sociais que as circunscreveram ao interior do lugar Os objetivos ter certeza sobre a legitimidade da descendecircncia e usar a mulher como moeda de troca nos assuntos da famiacutelia Uma ampla seacuterie de teorias para obter a submissatildeo da mulher a esses ldquopapeis marcadosrdquo foram desenvolvendo um corpo doutrinaacuterio Partindo da base da maior forccedila masculina e da debilidade da mulher se argumenta sua diferente capacidade para a realizaccedilatildeo das vaacuterias atividades (ALFARO GINER 2009 p 16)

A fraqueza fiacutesica atribuiacuteda agraves mulheres14 intimamente relacionada com seu papel bioloacutegico como matildee foi e continua sendo uma grande

12 Na Antiguidade a noccedilatildeo que emergiu a partir dos escritos de Aristoacuteteles Xenofonte e Columela era de que a divisatildeo baacutesica do trabalho confinava ldquonaturalmenterdquo as mulheres aos ambientes fechados ocupadas em tarefas domeacutesticas enquanto o papel dos homens era adquirir fora da casa os recursos necessaacuterios segundo essas fontes literaacuterias o trabalho feminino fora da casa seria uma anomalia (FOXHALL 1989 apud BERG 2016 p 51) Este eacute um discurso de elite e nossa pesquisa busca contestar tal noccedilatildeo apoiada pela Arqueologia e por uma nova abordagem multidisciplinar

13 A concepccedilatildeo de famiacutelia na sociedade greco-romana era muito diferente da moderna O latim claacutessico natildeo nos fornece termo ou expressatildeo para o que hoje compreendemos como ldquofamiacuteliardquo na cultura ocidental contemporacircnea tampouco para o que entendemos como constitutivo do nuacutecleo parental ou familiar - matildee pai filhos A centralidade que esse nuacutecleo parental desempenhava no entanto na sociedade romana onde um vasto nuacutemero de escravos e clientes pertencia e compunha aquilo que eles chamavam de famiacutelia (um ramo da gens da linhagem patrilinear) tem sido assunto de debates e estudos normalmente envolvendo a fusatildeo ou a distinccedilatildeo entre os sentidos que damos hodiernamente agrave noccedilatildeo de famiacutelia (como family) e o que os angloacutefonos entendem como ldquohouseholdldquo (TAMANINI 2014 p 215)

14 Para uma anaacutelise pormenorizada sobre o tema vide Grubbs (2002)

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inibiccedilatildeo para sua participaccedilatildeo no mercado de trabalho As mulheres foram naturalmente predestinadas a cuidar das crianccedilas e muitas vezes ficaram em casa para fazecirc-lo como consequecircncia a gestatildeo da famiacutelia tambeacutem se tornou sua responsabilidade (GROEN-VALLINGA 2013 p 297) De tal modo que as mulheres normalmente eram exaltadas pelo seu papel familiar por sua performance em prol da sobrevivecircncia da prole e natildeo por sua produccedilatildeo econocircmica Consideremos o famoso epitaacutefio de Amymone

Hic sita est Amymone Marci optima et pulcherrima lanifica pia pudica frugi casta domiseda

Aqui jaz enterrada Amymone (esposa) de Marcus melhor e mais bonita fiandeira obediente modesta frugal casta e dona-de-casa (CIL 6 11602)15

Natildeo eacute difiacutecil perceber que a capacidade reprodutora da mulher delineou esta convenccedilatildeo social que conhecemos bem a mulher ideal deve ser fiel boa matildee e dona de casa exemplar a perfeita matrona Contudo a desigualdade de gecircnero na economia natildeo eacute imposta somente atraveacutes de uma divisatildeo de trabalho desfavoraacutevel16 Ela decorre por conta da elaboraccedilatildeo de leis que tambeacutem instituem direitos desfavoraacuteveis Na legislaccedilatildeo greco-romana os direitos das mulheres de possuir comprar e vender legar e receber legados foram severamente restritos Ademais uma ampla gama de convenccedilotildees culturais e ideoloacutegicas restringiu o progresso econocircmico das mulheres (BERG 2016 p 50)

Em iniacutecios do periacuteodo republicano as mulheres tiveram reduzidas oportunidades para administrar seus proacuteprios negoacutecios Todos os membros femininos da famiacutelia romana se encontravam sob a autoridade legal do paterfamilias17 o chefe masculino da famiacutelia (em geral o progenitor) que tinha

15 Traduccedilatildeo do latim para o inglecircs de Groen-Vallinga (2013 p 297) versatildeo para o portuguecircs minha

16 Tanto as leis quanto a divisatildeo do trabalho foram altamente desfavoraacuteveis agraves mulheres na Antiguidade A divisatildeo do trabalho continua bastante desigual na maioria das sociedades de modo que algumas ocupaccedilotildees ainda satildeo consideradas exclusivamente femininas ou masculinas A quantidade eou a qualidade de qualquer tipo de matildeo de obra atribuiacuteda a um determinado indiviacuteduo tambeacutem foi naturalmente fortemente ditado por fatores diversos aleacutem do gecircnero tais como status social classe riqueza idade cidadania educaccedilatildeo ambiente urbano ou rural (BERG 2016 p 50)

17 Alguns autores suspeitam que a autoridade do paterfamilias romano natildeo era tatildeo absolu-ta quanto se apregoa e pode obscurecer nossa perspectiva da realidade laquoeacute importante olhar cuidadosamente para a forccedila da convenccedilatildeo que provavelmente atenuou o exerciacutecio da autoridade paterna dando agrave matildee muitos direitos efetivos que tinham pouca ou nenhuma base na lei formalraquo (DIXON 1988 p 43)

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prerrogativa em todos os tipos de accedilotildees legais dentre as quais comprar vender contrair diacutevidas intermediar transaccedilotildees etc O poder (potestas) do paterfamilias alcanccedilava todos os membros desta grande famiacutelia romana esposa filhos escravos e outros membros do clatilde natildeo necessariamente ligados por laccedilos de sangue Se uma filha se casasse com o parceiro sob o regime sine manu18 isso significava que ela permanecia sob as ordens de seu pai Caso contraacuterio ela passava para a ldquomatildeordquo (in manu) de seu marido Em alguns casos quando o marido natildeo detinha direitos plenos a mulher podia ficar sob a potestas do seu sogro (BERDOWSKI 2007 p 285)

Em ambos os casos as mulheres natildeo administravam seus proacuteprios bens e sequer tinham direito agrave propriedade conjunta com seus cocircnjuges No entanto se uma mulher permanecia sob a potestas do paterfamilias ela poderia ganhar uma independecircncia relativa apoacutes a morte do pai tornando-se sui iuris19 Este regime juriacutedico eacute apontado por alguns estudiosos como aquele que concedia mais liberdade agraves mulheres embora esta ainda tivesse que estar sob alguma forma de ldquotutela para mulheresrdquo (tutela mulierum)20 Durante a Repuacuteblica o tutor era geralmente algueacutem da famiacutelia patrilinear por exemplo um tio paterno (GRUBBS 2002 p 24) Seu papel era realizar algumas atividades legais e negoacutecios em nome da mulher tais como um testamento transacionar algum tipo de propriedade (res mancipii) ou emancipar escravos etc Berdowski (2007 p 285) defende que este instrumento flexibilizava o poder masculino sobre a mulher jaacute que nem sempre o tutor convivia no mesmo espaccedilo domeacutestico que a mulher e muito provavelmente seu controle natildeo seria tatildeo efetivo assim De tal forma que a partir do final da Repuacuteblica cada vez menos mulheres optaram por regimes que colocavam suas propriedades e a si proacuteprias sob o jugo do marido - ao inveacutes disso elas se tornavam sui iuris apoacutes a morte de seus

18 Segundo Pomeroy (1987 p 177) e Laacutezaro Guillamoacuten (2003 p 157) a partir do seacutec II a C a maioria dos matrimocircnios eram celebrados sob o regime sine manu o que na praacutetica originou um regime de separaccedilatildeo de bens que favoreceu a independecircncia econocircmica da mulher

19 As fontes arqueoloacutegicas indicam que o trabalho tecircxtil das filhas e escravas excediam a esfera domeacutestica embora elas fossem dependentes do pai ou do dono do empreendimento Natildeo eacute difiacutecil imaginar que este contexto pudesse contribuir para que filhas ou escravas pudessem alcanccedilar respectivamente o status de sui iuris ou mesmo de libertas e como tais pudessem seguir dedicando-se profissionalmente ao ofiacutecio ao qual se especializaram (LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 p 175)

20 Parece que o propoacutesito original da instituiccedilatildeo tutela mulierum era salvaguardar a heranccedila paterna da mulher para usufruto dos familiares masculinos do pai que por sua vez seriam seus herdeiros assim que ela morresse (GRUBBS 2002 p 24) Pelo visto sempre foi muito importante que o dinheiro e as propriedades ficassem sob a guarda da famiacutelia originaacuteria o que acabou por influenciar fortemente na evoluccedilatildeo das leis de heranccedila

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pais e adquiriam um tutor ou tutores (DIXON 1988 p 43) Ou seja havia espaccedilo para resistecircncia ainda que fosse velada

Entre o final da Repuacuteblica e iniacutecios do Principado a instituiccedilatildeo da tutela mulierum foi diminuindo em relevacircncia Em 9 d C Otaacutevio Augusto introduziu a ius (trium) liberorum uma lei que liberava do jugo da tutela mulerium as mulheres livres que tivessem parido trecircs filhos e para as libertas quatro (GRUBBS 2002 p 20) O imperador Claudio (41-54 d C) por sua vez aboliu a tutela para as mulheres nascidas livres (BERDOWSKI 2007 p 286)

O direito romano tardio21 seguiu esta loacutegica progressista com o reconhecimento legal dos direitos de heranccedila da matildee e mesmo dos filhos ilegiacutetimos tendecircncia jaacute observada na legislaccedilatildeo do segundo seacuteculo Muitas leis imperiais tardias foram dedicadas agrave bona materna O direito do pai sobre a bona materna foi sendo modificado de forma a que o marido detivesse apenas o usufruto (uso e posse em vida mas natildeo a propriedade absoluta ou o direito de vender e dispor) dos bens que seus filhos viessem a receber pelo lado de sua matildee (GRUBBS 2002 p 220)

Enfim haacute diversas evidecircncias de que a instituiccedilatildeo da tutela mulerium natildeo teria sido determinante para cercear a iniciativa nem a independecircncia econocircmica das mulheres deixando espaccedilo para aquelas que demonstraram habilidades comerciais e foram empreendedoras na antiga Roma (BERG 2016 DIXON 1988 amp 1992 GRUBBS 2002 LAacuteZARO GUILLAMOacuteN 2003 BERDOWSKI 2007 amp 2008) Havia espaccedilo para promoccedilatildeo social no mundo romano e muitas mulheres estavam no jogo num contexto pautado por ampla diversidade E a Arqueologia pode nos ajudar a comprovar Observem a figura nordm 1 abaixo

21 A fonte mais importante para o conhecimento do direito romano ldquoclaacutessicordquo eacute o Digesto de Justiniano que compreende cinquenta livros selecionados a partir das volumosas contribuiccedilotildees dos mais influentes juristas romanos atraveacutes dos tempos O Digesto foi compilado sob as ordens do imperador Justiniano do seacuteculo VI (reinou entre 527-565 d C) ou seja em periacuteodo bastante posterior ao apreciado neste trabalho mas serve para indicar uma tendecircncia evolutiva Justiniano instruiu sua equipe de juristas a ler milhares de paacuteginas de textos legais claacutessicos e sintetizaacute-los em um trabalho mais exiacuteguo preservando apenas o que ainda era vaacutelido e uacutetil naquele momento histoacuterico Tal medida permitiu que os estudiosos modernos reconstruiacutessem - ainda que de forma indireta e limitada - o conteuacutedo das obras originais que atualmente estatildeo perdidas (GRUBBS 2010 p 1)

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Figura 1 Relevo funeraacuterio em maacutermore de um accedilougueiro 2 d C Fonte Foto Elke Estel Skulpturensammlung Staatliche Kunstsammlungen Dresden Germany Cor-tesia de Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz BerlinStaatliche Kunstsammlungen DresdenElke EstelArt Resource NY In KNAPP 2013 p 75

Acima relevo funeraacuterio do seacutec 2 d C com representaccedilatildeo de cena cotidiana em um accedilougue em Roma indicando de modo claro o trabalho cooperativo o homem fatia as carnes enquanto a mulher toma conta dos livros Observem agora a figura 2

Figura 2 Escultura em relevo ca2 d C Ostia Museo Ostiense Ostia Antica Itaacutelia Inv 134 Fonte Foto Schwanke (Neg 19803236) Cortesia The Deutsches Archaumlologisches Institut em

Roma In KNAPP 2013 p 75

Temos acima uma escultura em relevo (ca 2 d c) com representaccedilatildeo de cena cotidiana no mercado duas mulheres trabalhando em uma loja atendendo os clientes na compra de gecircneros alimentiacutecios Outra atividade profissional desempenhada por mulheres pode ser depreendida a partir da

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figura 3 abaixo onde apresento mais uma representaccedilatildeo de cena cotidiana no comeacutercio da cidade monumento funeraacuterio datado entre o 1 e o 2 seacutec d C dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia que exercia uma profissatildeo que eacute considerada masculina ateacute os dias atuais Seraacute que as melhores fabricantes de sapatos em tempos romanos foram as mulheres A saber

Figura 3 monumento funeraacuterio dedicado agrave sapateira (sutrix) Septimia Stratonice de Oacutestia data-do entre o seacutec 1 a 2 d C Fonte (CIL 144698 apud LOacuteVEN 2016 p 210)

Enfim as figuras 1 2 e 3 representam mulheres em diferentes atuaccedilotildees profissionais e reforccedilam as evidecircncias que elas faziam parte do mercado de trabalho no mundo romano Este tipo de trabalho escultoacuterio era encomendado por interessados de diversos niacuteveis sociais e natildeo haacute motivos para supor que os artistas representassem cenas fictiacutecias ou imaginaacuterias

A discriminaccedilatildeo de gecircnero sem duacutevida circunscreveu a realidade do mercado de trabalho urbano romano mas isso natildeo deve nos cegar para as variadas e vitais contribuiccedilotildees das mulheres romanas para a economia

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Dispomos de documentaccedilatildeo arqueoloacutegica comprovando que as mulheres tinham ocupaccedilotildees muito amplas que vatildeo desde sapateiras ateacute escravas que fizeram da fiaccedilatildeo (quasillaria) suas vidsa Eacute necessaacuterio explicar ao inveacutes de justificar a ocorrecircncia regular de mulheres romanas que natildeo coincidem perfeitamente com a imagem da matrona domeacutestica (GROEN-VALLINGA 2013 p 296)

O trabalho feminino e a epigrafia

A epigrafia se apresenta como uma fonte direta de informaccedilotildees pois foram pessoas de diferentes estatutos juriacutedicos que mandaram realizar as inscriccedilotildees que tomando-se as devidas precauccedilotildees podem oferecer dados capazes de apoiar algumas conclusotildees vaacutelidas (MEDINA QUINTANA 2014 p 22) Portanto essa ciecircncia tem sido utilizada para elucidar aspectos da economia romana e para evidenciar os papeacuteis econocircmicos das mulheres Cabe aqui ressaltar o trabalho inovador que foi desenvolvido por Susan Treggiari que publicou trecircs artigos sobre as ocupaccedilotildees femininas (1975 1976 e 1979) baseados nas evidecircncias epigraacuteficas da cidade de Roma no periacuteodo imperial revelando uma tendecircncia de grande interesse pela histoacuteria das mulheres no final do seacutec XX Seu estudo recuperou imensa quantidade de dados acerca das ocupaccedilotildees profissionais femininas existentes na casa imperial e equipes domeacutesticas de famiacutelias abastadas na cidade de Roma bem como entre os setores artesanais e comerciais da cidade A pesquisa alcanccedilou vaacuterias conclusotildees importantes sobre empregos masculinos e femininos e representa uma contribuiccedilatildeo valiosa para o tema Infelizmente natildeo inspirou pesquisas subsequentes capazes de oferecer uma continuaccedilatildeo adequada em relaccedilatildeo aos temas que ela desenvolveu Portanto o trabalho de Treggiari continua atual e representa um formidaacutevel ponto de partida para novos estudos sobre os papeacuteis ocupacionais das mulheres romanas (LOVEacuteN 2016 p 201)

O principal corpus disponiacutevel para a Peniacutensula Ibeacuterica eacute o CIL - Corpus Inscriptionum Latinarum a primeira grande coleccedilatildeo epigraacutefica iniciada por Theacuteodor Mommsen em meados do seacuteculo XIX haacute tambeacutem diversas revistas especializadas sobre epigrafiacutea tais como LrsquoAnneacutee Epigraphique Hispania Epigraphica ou Hispania Antiqua Epigraphica que tecircm sido atualizadas a partir da incorporaccedilatildeo de novas inscriccedilotildees ou de renovadas interpretaccedilotildees de epiacutegrafes jaacute conhecidas Haacute tambeacutem recompilaccedilotildees de epiacutegrafes romanas localizadas nas proviacutencias linha que Geacuteza Alfoumlldy iniciou em 1975 com as inscriccedilotildees de Tarraco (GOROSTIDI 2013 pp 135-143 MEDINA QUINTANA 2014 p 22)

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As mulheres fiandeiras

Dentre os trabalhos tipicamente relegados agraves mulheres um se destaca o ofiacutecio de fiar latilde ou lanificium siacutembolo da feminilidade da bondade e da castidade Uma das imagens ideais de feminilidade no mundo antigo eacute representado por uma mulher fiando Ao longo da histoacuteria o imaginaacuterio patriarcal se apropriou desta icocircnica atividade para apresentar como deveria ser o comportamento ideal de toda mulher respeitaacutevel quieta trabalhadora e pudica - o que nos remete agrave imagem da fiel Peneacutelope sempre ocupada com seu tear e aguardando o retorno de Odisseu seu marido A figura das fiandeiras se encontra bastante representada na iconografia greco-romana de tal modo que a boa esposa dos ideais greco-romanos conseguiu transcender esses mundos e permaneceu viva no imaginaacuterio burguecircs Talvez por essa razatildeo vaacuterios estudos exploraram a relaccedilatildeo entre as mulheres e o mundo tecircxtil seja sob o vieacutes simboacutelico ou instrumental O fuso e roca satildeo portanto dois elementos associados com o feminino sendo apresentadas sob as mais diversas representaccedilotildees peccedilas de teatro objetos da vida cotidiana (vasos acircnforas espelhos) enxovais mosaicos pinturas parietais estelas funeraacuterias (MEDINA QUINTANA 2009 p 52) Vejam abaixo uma das representaccedilotildees de Peneacutelope em um vaso de figuras negras do seacutec V a C

Figura 4 Peneacutelope em seu tear assistida por Telecircmaco representado em um skyphos do seacuteculo V a C Fonte lthttpwwwperseustuftseduhopperimageimg=Perseusimage1993010667gt Acesso em 26122017

Diante destas questotildees podemos sugerir que a produccedilatildeo de tecidos rompia as barreiras sociais e unia todas as romanas uma vez que esta atividade representa um ldquofiordquo condutor entre as matronas de famiacutelia de alta posiccedilatildeo

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econocircmica suas escravas e as mulheres livres de baixa condiccedilatildeo social que desempenhavam a atividade para obter seu sustento Cada grupo feminino mantinha relaccedilatildeo muito peculiar com esta atividade com certeza muito diferentes entre si No caso das aristocratas consistia mais numa representaccedilatildeo simboacutelica - especialmente durante os finais da Repuacuteblica (133-31 a C) e o Principado (31 a C - 284 d C) - enquanto que para as escravas e as mulheres livres de condiccedilatildeo humilde representou um ofiacutecio verdadeiro (idem 2009 53) Presume-se que uma das razotildees para que este trabalho fosse tatildeo difundido na Antiguidade se deve por ter alccedilado o status de uacuteltimo recurso de sobrevivecircncia das mulheres pobres livres detendo a mesma importacircncia que a costura teve para a histoacuteria do trabalho feminino no seacuteculo XIX (TREGGIARI 1979 p 69)

Fulvia Lintearia em Tarraco

Para o caso da Hispacircnia romana Cartago Nova e Tarraco foram centros portuaacuterios artesanais cosmopolitas intimamente ligados agrave Roma e ldquoconectadosrdquo com as uacuteltimas tendecircncias contando com elevado percentual populacional de cidadatildeos fluentes em latim tais como soldados membros da administraccedilatildeo provincial negociantes e comerciantes Satildeo oriundas destas duas cidades as mais conhecidas epiacutegrafes latinas em pedra na Hispacircnia para o periacuteodo Republicano muitas delas estatildeo ligadas agrave esfera civil e religiosa fazendo parte de grandes complexos sepulcrais alguns com esculturas de togados sinalizando a ligaccedilatildeo entre epigrafia e monumentalizaccedilatildeo enquanto outras refletem suas crenccedilas religiosas Com frequecircncia satildeo epitaacutefios e nestas duas cidades a epigrafia latina se apresenta como um trabalho sobretudo encomendado por particulares (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 42-43)

Tarraco22 foi uma das cidades mais prestigiadas da Antiguidade Laacute podemos identificar um grupo de mulheres e homens membros da elite social da eacutepoca graccedilas agrave epigrafia preservada (DOMINGUEZ ARRANZ GREGORIO NAVARRO 2014 p 253) Felizmente nos tempos antigos era comum utilizar a pedra como suporte para inscriccedilatildeo de textos o que permitiu que recuperaacutessemos parte da histoacuteria desses povos Vale lembrar que este conjunto de epiacutegrafes conservadas representa iacutenfima fraccedilatildeo da produccedilatildeo escrita destas sociedades jaacute que os suportes da escrita que eles costumavam utilizar eram materiais mais baratos de origem mineral vegetal e animal

22 ldquoDentre as cidades da Hispacircnia romana a Colonia Iulia Urbs Triumphalis Tarraco eacute aquela com o mais rico patrimocircnio epigraacutefico () Eacute inestimaacutevel para o estudo da histoacuteria da cidade e do mundo em geral bem como a histoacuteria social (ALFOumlLDY apud GOROSTIDI 2013 p 135)

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tais como o pergaminho o papiro tabuletas de madeira placas de argila ou cera peles e etc Mas a natureza pereciacutevel destes materiais os condenou ao desaparecimento salvo rariacutessimas exceccedilotildees como as tabuletas encontradas em Vindolanda ou na Campacircnia (BELTRAacuteN LLOacuteRIS 2005 pp 21-22)

Como jaacute aludido muito frequentemente as inscriccedilotildees funeraacuterias aludem ao trabalho em latilde que a defunta realizava (lanifica) Mas este universo era mais complexo e diversificado as artesatildes se especializavam de acordo com a fibra empregada Por exemplo a especialista em fiar o linho23 eacute a lintearia Beltraacuten Lloris e Estaraacuten Tolosa (2011 18) vatildeo aleacutem e natildeo soacute confirmam que a palavra lintearia se refere agrave profissatildeo de tecedora de linho bem como que esta ocupaccedilatildeo sem duacutevida ocorria na cidade de Tarraco haja visto que esta era conhecida pelo cultivo da planta que produz esta fibra como jaacute foi aludido por Pliacutenio o Velho (PLIacuteNIO Hist Nat XIX 10) Pois bem algueacutem em Tarraco dedicou uma epiacutegrafe para Fulvia lintearia (datada por volta da mudanccedila de Era inscriccedilatildeo hoje desaparecida) Medina Quintana (2009 p 61) esclarece que lintearia significa ldquovendedora de lenccedilosrdquo Treggiari (1979 p 70) acrescenta que provavelmente ela seria uma vendedora de roupas e que ela proacutepria deveria fiar o tecido para produzir as peccedilas que vendia

Devo ressaltar mais uma vez o trabalho de Geacuteza Alfoumlldy (1935ndash2011) apontado como o mais proeminente cientista no campo da epigrafia latina claacutessica e um dos principais especialistas no campo da Histoacuteria Social do mundo romano - que dedicou parte de sua trajetoacuteria acadecircmica ao levantamento epigraacutefico da cidade de Tarraco Em seguida dispomos a inscriccedilatildeo perdida tal como foi registrada pelo ceacutelebre professor

Fulvia lintearia

(CIL 02 04318a apud ALFOumlLDY 1975 p 1)

Abaixo a figura 5 sugere como deveria ser a aparecircncia de uma loja de tecidos no mundo romano

23 O linho proveacutem de uma planta herbaacutecea que chega a atingir um metro de altura e pertence agrave famiacutelia das linaacuteceas Abrange um certo nuacutemero de subespeacutecies reunidas pelos botacircnicos sob o nome de Linum Usitatissimum Fonte Wikipeacutedia

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Figura 5 Estabelecimento de comeacutercio de tecidos Florenccedila Itaacutelia I d C Fonte (GLAD sd 2)

O casal enquanto unidade de produccedilatildeo

Nosso objetivo neste trabalho foi traccedilar um panorama geral de como podemos alcanccedilar a histoacuteria econocircmica das mulheres romanas atraveacutes da Arqueologia e de uma abordagem multidisciplinar adotando uma postura acadecircmica pautada pela equidade preocupada com a igualdade de gecircnero - obviamente sem a pretensatildeo de esgotar o tema Esta pesquisa pretende conscientizar que apesar das restriccedilotildees legais ideoloacutegicas e culturais pelas quais as mulheres passaram e continuam passando elas sempre desempenharam papel primordial na economia de todos os tempos Podemos resgatar suas trajetoacuterias natildeo somente como forccedila de trabalho como tambeacutem podemos destacar sua atuaccedilatildeo empreendedora lutando empenhadas em fazer sobreviver a famiacutelia e gerar sua descendecircncia aleacutem da de seu marido perpetuando um sistema As mulheres romanas se envolveram com certeza em atividades comerciais e negoacutecios em geral decerto natildeo de forma equivalente mas similar aos homens Mas natildeo soacute atuaram sempre como as inseparaacuteveis companheiras configurando-se como a outra variaacutevel da mesma equaccedilatildeo parte indissociaacutevel do casal enquanto unidade de produccedilatildeo Para os homens do povo as mulheres representavam uma oportunidade de viver mais e melhor de trabalhar e prosperar de aumentar sua qualidade de vida e garantir suas chances de transmitir seus genes adiante cumprindo o papel bioloacutegico original de ambos os sexos A uniatildeo faz a forccedila A ideia eacute antiga mas eficiente Para

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a iconografia romana do periacuteodo o gesto do dextrarum iunctio ndash o famoso aperto de matildeos direitas ndash quando realizada entre um homem e uma mulher geralmente retrata um casal legalmente casado representando um siacutembolo da uniatildeo pelo bem comum que visa instintivamente agrave perpetuaccedilatildeo da espeacutecie Tal como demonstra a figura 6 abaixo

Figura 6 Placa funeraacuteria do lanarius de C Cafurnius Antonchus e de sua esposa Veturia Deuteria em Roma ca1 d C Fonte (CIL 69489 apud LOacuteVEN 2016 p 213)

Em suma para prosperar de forma efetiva o homem precisa da mulher provavelmente mais do que a mulher precisa do homem Mas esta polecircmica fica para pesquisas posteriores

Trabalho feminino hoje

Desde o Periacuteodo Claacutessico ateacute bem recentemente o mundo do trabalho feminino seguiu sem grandes modificaccedilotildees durante milecircnios ateacute que as revoluccedilotildees do seacuteculo XIX promoveram as mudanccedilas necessaacuterias para que novos sistemas educativos permitissem o acesso da mulher agrave cultura promovendo sua atuaccedilatildeo fora de casa e sua incorporaccedilatildeo agrave toda uma seacuterie de trabalhos que num primeiro momento representaram um mero prolongamento das tarefas desempenhadas no acircmbito domeacutestico ateacute que com o tempo foram ampliando sua participaccedilatildeo nos setores reconhecidamente produtivos (BENGOOCHEA JOVE 1998 p 242)

A partir da consolidaccedilatildeo do sistema capitalista do advento do movimento sufragista e da luta pelo direito agrave representaccedilatildeo poliacutetica a evoluccedilatildeo

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da legislaccedilatildeo no que se refere aos direitos das mulheres evoluiu respondendo aos novos anseios da sociedade Apesar destas conquistas a desigualdade e exploraccedilotildees continuaram a ocorrer Natildeo obstante apoacutes as 1ordf e 2ordf Guerras Mundiais as mulheres tiveram a efetiva chance de ocupar seu espaccedilo no mercado de trabalho e desde entatildeo elas tecircm feito a diferenccedila No que se refere ao mundo ocidental estatiacutesticas apontam que as mulheres estatildeo avanccedilando em todas as aacutereas Elas respondem pela maior parte das vagas nas universidades Estatildeo conseguindo emprego com mais facilidade e seus rendimentos estatildeo crescendo em ritmo mais acelerado Contudo mesmo apoacutes tanta luta ainda natildeo alcanccedilaram posiccedilatildeo de igualdade perante os homens haja visto que continuam ocorrendo discriminaccedilotildees asseacutedios violecircncias e preconceitos que podem ser exemplificadas pela desigualdade salarial que persiste entre homens e mulheres na ordem de 30 em meacutedia Como se jaacute natildeo bastasse a representatividade das mulheres na poliacutetica e seu acesso aos cargos mais elevados do mundo corporativo e do serviccedilo puacuteblico continuam deixando muito a desejar

Isto posto fica claro de que as mulheres jaacute caminharam muito mas ainda haacute um longo caminho pela frente Contudo elas contam agora com o apoio de muitos homens que satildeo aderentes agrave sua causa e de vieses interpretativos que privilegiam a igualdade Eacute um processo que natildeo tem retorno Embora estejamos permanentemente agraves voltas com as reaccedilotildees do conservadorismo seraacute como jaacute o dissemos a rejeiccedilatildeo de alguns a criacutetica velada e o ceticismo de outros natildeo vatildeo conseguir deter o processo de reabilitaccedilatildeo das mulheres na histoacuteria pois prescindir dele seria prescindir da metade da humanidade (BENGOOCHEA JOVE1998 p 243)

Contudo para continuarmos caminhando na direccedilatildeo da justiccedila sempre vamos precisar de mulheres que natildeo se conformam com as imposiccedilotildees da sociedade que sejam transgressoras ousadas valentes excecircntricas e fujam das normas recusem casamentos tranquilos e abram matildeo da paz do lar domesticado para descobrirem outros rumos ou para encontrarem-se consigo mesmas produzindo novos modos de estar no mundo A leitura feminista do passado permite um fortalecimento de si e das outras no presente (RAGO 2013 p 311)

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Abstract Much ink has been spilled about gender in the Roman world Nonetheless something seems to be lacking the part that is up to the women in economic production of this society Past present or future women constitute at least half the population around the globe an indispensable working force either in ancient or modern times We know that since the beginning of the ages most women were forced to work hard in tedious and repetitive tasks arbitrarily imposed The activities used to start as early as childhood and it had never been properly recognized The aim of this work is therefore to recover the role of the womenrsquos work in the economies of Roman Hispania with special attention to the case of Tarraco starting from the end of the Roman Republic until the Principate Period raising local and elsewhere evidence to show the position women deserve in the economic production of Roman societyKeywords Classical studies Roman economy Womenrsquos work Gender studies Postmodernism

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Normas de Publicaccedilatildeo

Normas de Publicaccedilatildeo

A Heacutelade eacute estruturada em trecircs seccedilotildees

a) Dossiecircs

b) Artigos de tema livre

c) Resenhas

Os dossiecircs satildeo propostos pelo Conselho Editorial que pode tanto convidar especialistas no tema quanto receber contribuiccedilotildees de autores interessados As chamadas satildeo puacuteblicas e feitas a cada ediccedilatildeo da revista Os artigos de tema livre podem abordar questotildees diversas desde que versem sobre a Antiguidade Seratildeo aceitas resenhas de livros ou coletacircneas com temaacuteticas associadas agrave Antiguidade que tenham sido publicados haacute pelo menos trecircs anos (considerando a data de envio da resenha)

Instruccedilotildees aos autores

- Exige-se que os autores tenham pelo menos o tiacutetulo de mestre Alunos de graduaccedilatildeo poderatildeo publicar artigos desde que em coautoria com doutores

- Todos os artigos satildeo avaliados por pelo menos dois pareceristas ad-hoc externos e anocircnimos no sistema de avaliaccedilatildeo por pares (duplo-cego) A publicaccedilatildeo depende tanto de sua aprovaccedilatildeo quanto da decisatildeo final do Conselho Editorial que pode recusar caso natildeo julgue adequado para compor a ediccedilatildeo

- Seratildeo aceitos artigos ineacuteditos escritos em portuguecircs francecircs inglecircs espanhol e italiano

- Os autores satildeo responsaacuteveis pela revisatildeo geral do texto

- Todas as propostas devem ser enviadas exclusivamente para o e-mail revistaheladegmailcom

Formato dos artigos

Todos os artigos deveratildeo ser enviados em formato Word (doc ou docx) margens 3 cm A4 fonte Times New Roman 12 pt Os tiacutetulos devem ser centralizados em caixa alta e negrito Abaixo do tiacutetulo agrave direita em itaacutelico e caixa normal deve constar o nome do autor com uma nota de rodapeacute indicando a maior titulaccedilatildeo a filiaccedilatildeo institucional e um e-mail para contato Em seguida

os resumos e palavras-chave em portuguecircs e liacutengua estrangeira alinhadas agrave esquerda No corpo do artigo todas as citaccedilotildees com mais de trecircs linhas devem ser destacadas As citaccedilotildees devem ser feitas da seguinte forma

- Se forem indicaccedilotildees bibliograacuteficas devem ser inseridas no corpo do texto entre parecircnteses Em caso de produccedilatildeo historiograacutefica deveraacute ser feita com sobrenome do autor ano e paacuteginas Exemplo (FINLEY 2013 p 71)

- Para citaccedilatildeo de textos antigos a indicaccedilatildeo seraacute feita com o nome do autor tiacutetulo da obra em negrito cantocapiacutetulo e passagem Exemplo (HOMERO Iliacuteada III 345)

- No caso de notas explicativas numerar e remeter ao final do artigo

Apoacutes o uacuteltimo paraacutegrafo dos artigos devem constar as Referecircncias lis-tadas em ordem alfabeacutetica pelo sobrenome do autor seguindo as normas da ABNT (NBR 10520) como nos exemplos

Para livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Ed-itora ano

Ex FINLEY Moses I Economia e Sociedade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

Para capiacutetulo de livros

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do Artigo In SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do livro subtiacutetulo Cidade Editora ano p

Ex THOMAS Rosalind Ethnicity Genealogy and Hellenism in Herodo-tus In MALKIN Irad Ancient Perceptions of Greek Ethnicity Washing-ton DC Harvard University Press 2001 p 213-234

Para artigos de perioacutedicos

SOBRENOME Preacute-nome do autor Tiacutetulo do artigo Tiacutetulo do Perioacutedico Cidade v n ano p

Ex CARDOSO Ciro Flamarion O Egito e o Antigo Oriente Proacuteximo na segunda metade do segundo milecircnio aC Heacutelade Niteroacutei v 1 n 1 2000 p 16-29

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