historiografia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇAO EM HISTÓRIA Do mundo das ideias à caverna: o conhecimento histórico na crise do presentismo Débora Regina Vogt Na constituição das disciplinas e na história dessas foi necessário delimitar o que seria(m) o(s) seu(s) objeto(s) de estudo, o que as separa das semelhantes e como eram os profissionais. Como arquivos em uma grande gaveta lá estavam seus objetos, metodologias, objetivos, etc. Tais dados foram e são mutáveis no decorrer do tempo, mas são parte constituinte do que chamamos disciplina, sendo essenciais na produção intelectual, na distribuição de verbas e no reconhecimento entre pares. O entendimento sobre o passado pareceu ser durante muitos anos o que diferenciava a história de outras disciplinas das ciências humanas. Se todas tinham o comportamento humano como objeto de estudo, nós éramos os profissionais que se dedicavam ao estudo do pretérito, senhores do passado e de sua narrativa. Entretanto, o surgimento do que François Hartog chama de

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Teoria da História

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UNVERSDADE FEDERAL DO RO GRANDE DO SULNSTTUTO DE FLOSOFA E CNCAS HUMANASPROGRAMA DE PS GRADUAAO EM HSTRADo mundo das ideias caverna: o conhecimento histrico na crise do presentismoDbora Regina VogtNa constituio das disciplinas e na histria dessas foinecessrio delimitar o queseria(m) o(s) seu(s)objeto(s)de estudo,oqueasseparadas semelhantese comoeram os profissionais. Como arquivos em uma grande gaveta l estavam seus objetos,metodologias, objetivos, etc. Tais dados foram e so mutveis no decorrer do tempo,mas so parte constituinte do que chamamos disciplina, sendo essenciais na produointelectual, na distribuio de verbas e no reconhecimento entre pares. O entendimento sobre o passado pareceu ser durante muitos anos o quediferenciava a histria de outras disciplinas das cincias humanas. Se todas tinham ocomportamento humano como objeto de estudo, ns ramos os profissionais que sededicavam ao estudo do pretrito, senhores do passado e de sua narrativa.Entretanto,o surgimento do que Franois Hartog chama de presentismo1 marca de nossa era, trazuma crise para a constituio de nossa disciplina. Tal conceito no se restringe narrativa historiogrfica, j que sua abrangncia serefere a nossa era. A sensao de um presente que no termina, que opaco e de umpassado que no se constitui como tal marca de nossa gerao e impactou as quevieram antes de ns. As novas tecnologias, a preciso das informaes em tempo realso exemplos do que temos acesso e jamais foi sonhado anteriormente. A guerra do Vietn foi a primeira que teve transmisso ao vivo pelas redes de TV. Ostelespectadores podiam ver de suas casas o embate com o inimigo. Por outro lado,podemostercontatocomossobreviventesdoholocausto, doscamposdetrabalhosoviticosecomasnarrativasdosqueviveramasditadurasmilitaresnaAmrica1Presentismo o termo que Franois Hartog d ao regime historiogrfico atual. De acordo com ele,regime historiogrfico no tem o mesmo sentido que poca: "Esta noo que estou propondo aqui difereda de poca. poca significa, no meu entender, apenas um corte no tempo linear [...] Por regime, querosignificar algomaisativo. Entendidoscomoumaexpressodaexperinciatemporal, regimesnomarcam meramente o tempo de forma neutra, mas antes organizam o passado como uma sequncia deestruturas. Trata-se de um enquadramento acadmico da experincia (Erfahrung) do tempo, que, emcontrapartida, conforma nossos modos de discorrer e de vivenciar nosso prprio tempo [...] (HARTOG,1993, p. 3).Latina.Em nenhuma poca o cotidiano simples foi invadido por um leva to grande deinformaes que descrevem com preciso massacres de populaes inteiras. Temosos dados, as imagens e fontes quase inesgotveis que descrevem os acontecimentosdo sculo XX. Opresentesemisturacomopassadodeumaformaquequestionanossavisocientificistadahistria. Noquesejaimpossvel encontrar massacresquetenhamcorrelatos na Antiguidade ou mesmo em outras pocas. No entanto, nas fontes, objetosdenossasanlises,elesjesto "frios,socomocilindrosno laboratrio,tratadoscom seriedade, com critrios ticos, mas no mexem com nossas emoesnecessariamente. No entanto, como escrever sobre um evento que ainda "quente?Como dar inteligibilidade para acontecimentos que marcaram a vida de uma sociedadee cujas caractersticas so sentidas at hoje? As respostas s questes colocadas acima no so fceis e tem suscitado muitosdebates no campo acadmico. Nossos objetos no so mais "frios, encontrados emarquivos, a espera que o historiador os "desvende e conte como as "coisasaconteceram2. As narrativas sobre eventos limtrofes no se transformam em passado,o luto continua e os que viveram o que narramos querem tambm deixar seu relatotestemunhal, que parece ser mais crveldo que a fria narrativa do historiador. Comotrabalhar nessa conjuntura? Como fazer nosso trabalho e separar pesquisador e objetoquandoossujeitos permanecemelutamhojepelo reconhecimento desuahistria?Seria possvel a iseno poltica como parece exigir uma pretensa urea cientfica?Na espera de refletir sobre as questes aqui colocadas dividirei esse artigo em trspartes. Na primeira, desejo refletir sobre os regimes de historicidade at o presentismoe suas consequncias na historiografia, na segunda quero discutir o carter cientficodahistria, baseadonaepistemologiadacincia. Essadiscussopermeianossaconstituiocomodisciplina, jquetemcomoeixocentral aconstruodoprprioconhecimento. Na ultima parte, baseado em E. R. Ankersmit, desejo apresentar umatentativa de resposta para nossa crise presentista e nosso papelcomo historiadoresnessa conjuntura.1. Regimes de Historicidade e a narrativa historiogrfica na era presentista2 A frase repetida exausto referese concepo histrica de Leopold von Ranke (17951886). Ele foium dos principais responsveis pela formao da historiografia crtica na Alemanha. Sua seriedade ecrtica s fontes foram fundamentais para a constituio da histria como disciplina.2Segundo Maria ns Mudrovcic (2013), baseado em Franois Hartog, seriam trsosregimeshistoriogrficosprincipaisquejestiveramemcursonaconstituiodahistriacomodisciplina.Oprimeiroseria ahistriacomomestradavida, queviaanarrativa historiogrfica como conjunto de exemplos que deveriam guiar em direo virtude e ao bom governo. O segundo, herdeiro da Revoluo Francesa, inaugura aviso de que histria no se repete, que progressiva e que evolui. A terceira, vividapor ns atualmente, um presente que se confunde com o passado, pois um estadotemporal que no passa e por isso chamado de presentista. As marcas do momento contemporneo seriam a sensao da imutabilidade dotempo, a centralidade da memria e as demandas de uma sociedade de consumo quej no v a histria de forma teleolgica. Sem consenso entre historiadores, voltamo-nos a prpria psicologia e neurocincia na busca de compreender o que nossos antigosmtodos j no do conta. A histria no seria mais desenvolvida pelo progresso cujofim o aprimoramento do homem, mas uma narrativa voltada s demandas de nossasociedade contempornea. preciso dizer que embora esses regimes historiogrficos fossem dominantes emseu tempo, eles no foram as nicas formas de se narrar o passado. Diversas visessobre o passado dividiramo mesmo momento histrico, embora no fossemdominantes.A histriamagistravitae, criadapelos antigos, porexemplo,carregaapercepo de que nada novo na narrativa historiogrfica, sendo uma eternarepetio, como no movimento dos astros. A histria seria a repetio constante do quej ocorreu anteriormente, como na natureza, fazendo parte do corpo maior do prpriouniverso e toda sua dimenso.Mircea Eliade descreve desta forma o tempo mtico:nstalar-se num territrio equivale, em ltima instncia, a consagr-lo: Quando ainstalao j no provisria, como nos nmades, mas permanente, como ocaso dos sedentrios, implica uma deciso vital que compromete a existncia detoda a comunidade. "Situar-se num lugar, organiz-lo, habit-lo so aes quepressupem uma escolha existencial: a escolha do Universo que se est pronto aassumir ao "cri-lo. Ora, esse "Universo sempre a rplica do Universo exemplarcriadoehabitadopelosdeuses: participa, portanto, dasantidadedaobradosdeuses (ELADE, 1992, p. 23) [grifos so meus].Fazendopartedeumplanomaior, ohomemrepetiaoquejhaviaocorridoanteriormente. Um bom exemplo desta viso o significado da palavra "revoluo queantes da Revoluo Francesa significava "mover em giro, ou seja, voltar ao lugar departida, como os astros no universo faziam (OSTRENSKY, 2006). Como partes de umaordem csmica maior, a histria se repetia infinitamente e essa no era digna de ser3narrada. Oquequebravaessalgicadeveriaser narrado, jque, comoumfeitomemorvel, seriatransmitidosnovasgeraesnabuscadavirtude. Oshomenseram fadados finitude e morte como no resto da natureza, desta forma, entrar paraa histria por meio de narrativa historiogrfica era um meio de compartilhar em parte daimortalidade dos deuses. Oquesediferenciavadaordemcsmicaedocotidianoeraoque se tornavadignodanarrativa dohistoriador, poiseraveculo de aprendizado naconstruo daRepblica. Nas palavras de Ccero:"[...] a histria testemunha dos sculos, luz daverdade, vidadamemria,mestradavida,mensageiradopassado" (CCERO, DeOratore, , 36) [grifo so meus]. O papel da histria seria instruo, conhecimento eestava ligada oratria e a prtica virtuosa, necessria para um bom governo. A histria como mestra da vida esteve presente na Antiguidade e renasce comfora na Europa do Renascimento que busca no passado a virtude necessria para aconstruo de seu tempo. Lidos e ensinados nas escolas, os antigos eram vistos comoguias, como instrutores da nova era que os modernos imaginavam construir. O prprioconceito deRenascimentocarrega em sio sentidode se voltar a umtempoque jhaviapassado. Tal pensamentoimpensvel paraahistoriografiapsRevoluoFrancesa. Concomitante histriaMagistra Vitae, a escatologia ocupou durante muitotempo a mente dos que escreviam sobre histria. Embora no seja citada por vriosautores quando se reflete sobre a histria como disciplina, importante dizer que aconcepocristaprimeiraquevotempocomoirrepetvel, jqueDeushaviacriadoohomemeJesushaviavindoaomundoumanicavez. EscritorescristosnarraramoseventosquepresenciaramcomodesignosdeDeus, cumprimentodeprofecias que j estavam descritas na Bblia. Nessa viso, embora o homem no crienada de novo, j que tudo est sob o controle de Deus, ele maior que a natureza, jque tudo que ele faz histrico e impossvel de se repetir.O tempo, mutvel e finito,nessa viso, contrasta com a imortalidade e imutabilidade de Deus. H presente, hpassado e h futuro, numa linha linear, at o fim dos tempos. Nas palavras de SantoAgostinho: Naeternidade, aocontrrio, nadapassa, tudopresente, aopassoqueotempo nunca todopresente.Esse talverque o passado impelidopelofuturo e que todo o futuro est precedido dum passado, e todo o passado efuturo so criados e emanam d'Aquele que sempre presente. Quem poder4prender o corao do homem, para que pare e veja como a eternidade imveldetermina o futuro e o passado, no sendo ela nem passado nem futuro? [...] ( AGOSTNHO, 1973,p. 263) [grifos so meus].MesmoqueDeus, navisoescatolgica, estejaforadamortalidadeefinitudehumana,os sereshumanos estoimersosnumalinha quenoserepete, mas queconduz a um futuro, no necessariamente de forma progressiva, mas de acordo comos desgnios da divindade. ARevoluo Francesa, contudo, quebra muitos dosparadigmasanteriores. Oprpriotermorevoluo, comomencionei anteriormente,perde o significado anterior, sendo usado a partir de agora como referncia a um tempototalmente novo e que progressivo. Para o regime moderno, segundo Hartog (1993, p. 4), no h mais vriashistrias, mas uma somente, que marcha em direo ao progresso. Nesse sentido, omodelo, o exemplar, cede lugar ao unvoco e que no pode se repetir.A lio vem dofuturo, no mais do passado. Na linha de Koselleck (2006), muda-se o horizonte deexpectativa e o espao de experincia3, j que no se imagina que a histria persistena repetio do passado. A percepo do novo representativa no prprio calendrio,substitudonaFrananostemposrevolucionriosenaexpresso"antigoregime,usada para designar os tempos anteriores Revoluo Francesa. Entretanto, os regimes de historicidade no seguem necessariamente uma linhalinear. Eles compactuam entre si, sendo usados de acordo com os objetivos em voga.Napoleo, porexemplo, citadoporHartog, exemplodessaconjuntura.Aomesmotempo em que ele inaugura um novo tempo, marca dos perodos revolucionrios quemexem com a Europa, era leitor de Plutarco e tinha fascnio por Alexandre Magno.Naspalavras de Hartog sobre Napoleo:[...] Como Alexandre, que, aps ter derrotado Dario, o rei persa, desposou suafilha, Napoleo desposou a filha do imperador austraco, aps ter destrudo oSacro mprio Romano Germnico (e proclama seu filho como Rei de Roma).Caso perdido. Podemos nos valer tambm de um famoso quadro para dizer amesmacoisa. A"BatalhadeAlexandre" foi pintadaem1529por Altdorfer(mostraabatalhadessosentreosgregoseospersas). Napoleo, semsurpresa, apreciava-odeveras, tantoqueem1800otrouxeparaParis[...](HARTOG, 1993, p. 11).3Koselleck (2006, p. 306-327) trabalha com os conceitos de "espao de experincia e "horizonte deexpectativa como categorias histricas. So formas de categorizar a narrativa, pois tudo ocorre baseadoem experincias do que j ocorreu e na expectativa do que ocorrer no futuro. Ou seja, os dois conceitosso dados antropolgicos prvios, base de toda histria humana, pois eles abarcam passado e futuro.sso no significa que so estticos, so mveis e mudam a forma como pensamos a histria. sso s iriamudar na era do progresso, aps as mudanas da era moderna na Europa.5Nohcomoconstruir umpensamentosobreofuturosemohorizontedopassado. Napoleo se via como os heris do passado, inaugurando umtempodiferente, como outros o fizeramantes dele. Tal como o Alexandre macednico,Napoleoseviacomoinaugurador deumaera, quemudavaapolticaemtodaaEuropa. Ouseja, mesmocomaconcepodeummomentounvoco, opassadocontinua sendo referncia. Entretanto, na era moderna o futuro que esclarece o passado, j que a narrativadsentidoaopresenteeaopassadodohistoriador. Hartogcolocaoregimedehistoricidade moderno entre 1789 e 1989,ou seja,entreaRevoluo Francesa e aqueda do muro de Berlim, marcas de uma era que finda e outra que inicia. Esse longoperodo que comporta dois sculos, no entanto, tem como marca a prpriaprofissionalizao de nossa disciplina. NosculoXX, nomomentodainstitucionalizaodahistria, elatrabalhaemfavor dos estados-naes que criam seu passado, no s como exemplo, mas comoveculos que movimentam a criao de um povo, visto como orgnico. A histria passaa ter ares cientficos e, tendo como modelo as cincias exatas, preconiza a separaoentre objeto e pesquisador na busca de objetividade para o relato. A inteno aqui no refletir sobre as vrias fases desse modelo, que passaramde uma pretensaobjetividade vinda das fontes at o questionamento de sua neutralidade. No entanto, importante salientar que nos debates que visavam a profissionalizao, buscou-se aseparao entre objeto e historiador, ou seja, entre o narrador e suas fontes.De acordo com Mudrovcic (2013, p. 17), nesse conjunto em que a disciplina seinstitucionalizaetomaaresdecincia, temosoconceitode"passadohistrico.Aoprimeiro momento, pode parecer estranho discutir taltermo. Fomos ensinados de talformaqueparecealgotrivial quenosocupamosdopretritoequenossanarrativaversa sobre o passado4. nesse conjunto que se estabelece muito da crise que hojesevivenahistoriografia. Sempassadoseparadodopresentepor umalinhaclara,sentimentos como se no pudesse existir histria, pelo menos no do mesmo modelode outrora. 4 Perelman e Tyteca (2005) em seu "Tratado da Argumentao chamam ateno sobre elementos centraisnas comunidades discursivas de quase todo lugar. Para que exista argumentao necessrio entre oradore auditrio, ou entre leitor e autor, certos acordos bases emcima do que toda argumentao desenvolvida. Assim, partindo de elementos que so comuns proposto que se discuta sobre determinadotema. Algumas coisas so de tal forma bvias para um grupo que no so colocadas em questo. Em nossocaso, podemos citar o entendimento que a histria uma disciplina e que nosso campo o passado. Aquesto que por no refletirmos sobre o que parece bvio tomamos tal pressuposto como verdade quaseuniversal e ele no necessariamente o . 6 O passado histrico seria nosso objeto de estudo, correlato ao laboratrio de umqumico. Ele pode ser de indivduos, de comunidade, de uma nao, etc. O importante que seja "o outro, que no faz parte de ns e que por isso possa ser analisado edescrito de forma pretensamente objetiva. Desta forma, quebramos a prpria lgicaanterior, da histria mestra da vida. O passado est separado de ns e unvoco, norepetvel e por isso mesmo, no pode ser guia do presente, pois um abismo nos separadele. E se a histria no era mais guia para as aes humanas, era cincia e por issoseu trabalho era justificvel e deveria ser realizado e patrocinado. A narrativa deveriater comomtodoafriezaeadistnciamesmoquesetratassedeguerrasoudeeventoslimtrofes. DeacordocomohistoriadorChrisLorenz, citadopor Medrovcic(2013), por exemplo, para se tornar histria era necessria uma distncia mnima decinquentaanosparaqueosacontecimentosestivessem"frios, emboracemanosfossemmaisseguros. Estarpertodoseventospoderiafazercomqueohistoriadortivesse uma viso parcial e limitada do que estava narrando.Sem interesses prticosno presente, o passado deveria bastar em "si mesmo, sem relao com o presente. Comumadistnciaconsidervel, anarrativadeveriaexplicar opassado, darinteligibilidade e um sentido. nesse contexto que dominou na historiografia o conceitode "histria problema. Como as fontes no falampor si, mas somente quandoquestionadas e analisadas pelo historiador, compete a ele construir sua pesquisa deuma forma problematizadora, mesmo que essa seja semrelao como mundocontemporneo. A "histria problema, fruto dos Annales, foi e ainda um entendimento comumentre historiadores, ponto preliminar onde advm as discusses. Com aproximaescoma geografia, a sociologia e a economia, anarrativa historiogrfica procurouproduzir uma forma de cincia que se via como menos inocente do que a positivista5, jque problematizava as fontes a partir do olhar do historiador.Ahistriadeviaexplicar eelarepresentavaoquestionamentodasociedadeocidental sobre seu passado. March Block em seu livro "A Estranha Derrota procuraentender comoosfrancesesforamderrotadospelosalemesnaPrimeiraGuerra5A discussosobreahistriados Annalesesuaimportncianahistoriografiatemtomadoaolongodotempomuitocampoemterrasbrasileiras. ssosedevemuitoinflunciaqueahistoriografiafrancesaexerce sobre oBrasil.Jose D'Assuno Barros(2010) problematizaalgumas questes fundamentais daconstruo da histria dos Annales, seu contraponto ao historicismo e positivismo e a histria problema, quetem como ponto fundamental a distino entre passado e presente.7Mundial. Como um soldado-historiador, sua anlise no sentido de problematizar seuprpriotestemunho,demonstrando oserros cometidosporseu pasnos campos debatalha. Desta forma, o professor recorre histria para explicar o que ele mesmo noconsegue entender pelo que presenciou.Nas palavras dele:Apontaremos ento a parte que cabe histria de nossa preparaoestratgica? Algunspensaramassim: "Devemosacreditarque ahistrianosenganou? Foi a dvida que surpreendi nos lbios de um oficial recm sado daescola, nos ltimos dias de nossa estada na Normandia, j assombrados peladerrota. Pretendiacomissolanar dvidassobreoensinopretensamentehistrico que recebeu [...] Mas esse ensino no a histria. Era, na verdade, oantpoda da cincia que queria demonstrar. [...]Pois a histria , por essncia,cincia da mudana. Ela sabe e ensina que dois eventos no se repetem demodo absolutamente igual [...] (BLOCK, 2011, p. 21).A histria no enganava como pensava o jovem oficial, porque ela no se repete,sendo cada guerra nica, como estratgias e formas de pensar que so particulares.Marc Blockchega a afirmar queoerro dos franceses foiimaginarque venceriam aguerracomosmesmosmtodosdoperodonapolenico.A histriaexplicava, nocomorepetionosentidodemestradavida, mascomoentendimentodeerroscometidos e de compreenso do presente. Nesseentendimento, opassadonomuda, somentesemodificamosnossosentendimentos sobre o que ocorreu e, como consequncia, a prpria narrativa(MUDROVCC, 2013, p. 21). Oprprio testemunho no temo mesmo grau deimportncia que a narrativa historiogrfica, isso porque ele parcial, influenciado aindapelos acontecimentos que vivenciou. A narrativa do historiador, pela distncia temporal, mais objetiva e por isso mesmo, podemos afirmar, mais verdadeira. A virada lingustica6no campo acadmico e acontecimentos limtrofes do sculoXX terminaram por balanar a distino to clara at ento entre passado e presente,sendo que o primeiro era visto como o centro do trabalho do historiador. Oquestionamento frente ao prprio passado como construo parece balanar oentendimento do historiador. Se no entendimento comum a fonte seria o "tribunaldeapelao como pensava Ginsburg (1993), importante perceber que esse trao dopassado tambm foi construdo pela linguagem e o contexto que apontamos por nsescolhido e transmitido pelas palavras. Elas poderiam ser neutras? 6 O termo "Virada Lingustica esta associado aos questionamentos sobre a linguagem e sua capacidade desimplesmente"representar opassado, comoumelemento neutro. Oprincipal representantedessesquestionamentos Hayden White que aproximou a histria da literatura ao afirmas que os historiadoresescreviam atravs de metforas, os tropos dos discursos.8[...] A velha noo de que a linguagem (ou a conscincia) "reflete a sociedadepareceaohistoriador umaafirmativaquenoprestasuficienteatenoaotempo. A linguagem reflete a si mesma e fala extensamente sobre si mesma. Aresposta nova experincia toma a forma de uma descoberta e uma discussode novasdificuldades na linguagem.Em vez de sesupor um nico espelhorefletindo acontecimentos de um mundo exterior, no momento de suaocorrncia, seria melhor supor um sistema de espelhos voltados para dentro epara fora em diversos ngulos, de maneira a refletir as ocorrncias do mundoespelhado, emgrandeparte, atravsdosmodoscomoserefletemunsaosoutros [...] (POCOCK, 2003, p. 56).Nossomundointelectual,social epolticocodificadoatravsdalinguagemeseriainteressante perguntar-nosatquepontoalgoexisteatsertransformadoempalavras ou se possvel que algo exista fora da lngua. Utilizando-me da metfora quePocockfez, alinguagemnoseriaoespelhodarealidade, masespelhosqueserefletem por diversos ngulos, tanto sincrnica como diacronicamente. Cada novidadeno mundo externo aparece por ngulos diferentes e os espelhos, por sua vez, refletema imagem do outro que veio do exterior, que mostra a imagem que veio do anterior,mas que ele mesmo havia provocado. Aps algum tempo, caberia perguntar de ondeveio a primeira imagem e como se formaram a multiplicidade de imagens possveis.No entanto, durante algum tempo, pensamos que esse elemento, esttico, era ummeroartefatoquenoslevavaatransmitir oqueoreal nosmostrava.A funodalinguagem seria neutra, algo que necessitaramos, obviamente, mas que no interferiaemnossoconhecimentoounomodocomoesseseprocessa. Seuobjetivoseriasomente demonstrar o que sabamos, pura e simplesmente. Contudo, cabe perguntar,existiria algo atrs da linguagem para ser desvelado, descoberto por nossaconscincia?Ouseriaela, tambm, formadoraepartedessereal doqual aparecesimplesmente como acessrio?Essas discusses em relao linguagem e seu uso na narrativa terminaram porquestionar nossa pretensa separao entre objeto e narrador. Se o relato construdopelohistoriador atravsdesuapesquisa, leituraeanlise, pode-seafirmar queoprprio passado, to claramente nosso campo, tambm uma construo(MUDROVCC, 2013, p. 22). Mesmo as fontes que seriam nossos dados "objetivos77 Quando trabalhamos com historiografia e discutimos o "fazer histrico, cansamos de discutir o valor dasfontes para qualquer anlise e interpretao que se proponha histrica. No entendidas isoladamente, masem relao constante com seu contexto, as fontes deveriam ser interpretadas, inseridas em seu momentohistrico e social. Entretanto, esses "restos do passado so formados por palavras, cdigos lingusticos,que precisam ser interpretados para fazerem algum sentido para ns, seus leitores. O prprio contexto social, polticoeeconmico- tambmtextualizado, jquepor meiodoscdigoslingusticosqueconstrumosnossoentendimentosobreo mundoondenossa fonte estinserida.Asdefiniessobre arealidade tambm esto compreendidas em processos textuais. Mesmo quando nos referimos ao "mundoreal, das experincias e das relaes sociais, estamos falando sobre algo que s pode ser compreendido9so envoltas em processotextuais de modo que s conseguem ser entendidas destaforma. Sendo assim, no h como definir o que est fora ou dentro do texto, j quemesmo o que est fora de nosso eixo principal codificado atravs de palavras (LACAPRA, 1998, p. 241).Por outro lado, presenciamos, como afirma Hartog, na era do presentismo, umpresente que no transforma em passado seus traumas, mas os revive a cada relatotestemunhal, comoseaindaimpactadopelanossacapacidadedefazer omal. Asnovas tecnologias que conectam o mundo e mudaram a vida de milhares, as guerras,os genocdios, o terrorismo de estado, etc, so marcas de nossa era.Acrescentaramos, tambm, atualmente, os encontros comooutro, odeclniodaEuropa e o crescimento do fundamentalismo religioso em vrias frentes, muitas vezessem explicao aos nossos olhos limitados. Guerrasegenocdiossocometidospelasociedadeocidental mesmoapstermos produzido tanto conhecimento sobre o passado. Logo aps a Primeira Guerraocorre a segunda, que mais mortfera que a anterior. Como entender tal conjuntura eadmitir que no estamos avanando em direo h algo melhor?Frenteaessasquestes, nossacapacidadedeexplicarcomohistoriadoreslimitada, jquepodamosnossaimaginaoaoquedizemnossasfontesafimdeproduzir conhecimento de uma forma que ser academicamente aceito. Reproduzimosas anlises, nos restringimos a ler obras historiogrficas e limitamos nossa capacidadedeexplicaoeentendimento. Asmetodologiasutilizadasnaescritaparecemnocomportar acompreensodesseseventosquenosecolocamnopassado, masatingem nossa sociedade contempornea. As duas guerras mundiais, o holocausto, os crimes de Stalin ou as ditaduras naAmrica Latina so alguns exemplos de eventos que fogem a nossa capacidade deexplicao. Literatura, filmes e relatos de memria tendem a convencer mais e melhor,fazendo com que muitas vezes exista um vazio historiogrfico em termos de explicaoconvincente para os eventos limtrofes.Hayden White afirma, inclusive, que a primeiracrise da histria ocorreu aps a Guerra Mundial devido incapacidade doshistoriadores anteciparem a guerra e depois darem uma explicao sobre a sua causa. por meio da lngua. Entretanto, o modo como entendemos o sentido do que nos apresentadoexteriormente e fora de nosso "aparato mental no s um processo subjetivo, mas poltico tambm, jque, enquantohistoriadoreseintrpretesdetextos, somosintroduzidos numprocessoquerelacionapassado, presenteefuturonumainter-relaoentrecontinuidades edescontinuidades histricas(LACAPRA, 1998, p. 283).10APrimeiraGuerraMundial muitofezparadestruir oquerestavadoprestgio da histria entre os artistas e os cientistas sociais [...] A histriaque se supunha fornecer algum tipo de preparao para a vida, que sejulgava ser o "ensino da filosofia por meio de exemplos, pouco fizera nosentidodepreparar oshomensparaoadventodaguerra; nolhesensinaraoquedelesseesperavaduranteaguerra; e, quandoestaacabou, oshistoriadorespareciamincapazesdeelevar-seacimadasestreitas alianas partidrias e de compreender a guerra de algum modosignificativo [...] (WHTE, 1994, p. 48).Seasduasguerrasforameventossemexplicaeslgicaseconvincentesparaa historiografia,dequeformaahistriapodercompreendercivilizaesdafrica e comunidades que s tomamos conhecimento de sua existncia na era ps-colonial? Como continuar dividindo a histria na linha linear que vai da histria antigaao perodo contemporneo sem que esses povos possam ser encaixados?Amemriaocupaolugar queanteseraocupadopelahistria. Eorelatotestemunhal, que anteriormente era visto como fonte passvel de crtica pelohistoriador, tem uma preponderncia no cenrio atual que falta para o historiador.Opesquisador seria umfrio analista enquanto a testemunha seria aquele que"realmente viu e por isso seu relato seria mais confivel.Desta forma, o passado que no termina de passar, mas que vive em forma decomemorao, monumentos,entreoutros,transforma-seemobjetodahistriadopresente (MUDROVCC, 2013, p. 25). Essa questo profunda e estrutural porqueesta "no separao questiona nossa capacidade de fazer cincia (pelo menos domodo como pensado anteriormente) e nossa constituio enquanto disciplina. Na era do testemunho vivida por ns atualmente o passado no passa e nem seconstitui comodiferentedens. Tal comoosexemplosdaMagistraVitae, elespermanecem como exemplares do que j ocorreu e pode voltar a ocorrer. Em seuestudo Berber Bervenarge (2012), demonstra como isso representativo nas vriascomisses da verdade que se espalharam pelo mundo.Os conceitos de justia, dememria e de tica norteiam a formao de todos esses grupos.Eles representam,segundo o autor, o declnio da noo de progresso e avano, to caras ahistoriografia moderna. CitandoFreud, Bervenarge(2012)lembraqueassimcomoindividualmentepreciso viver o luto para que ele passe e seja possvel apreciar o presente,socialmente necessrio viver o luto para que a sociedade consiga se restabelecer.11A questo que no vivemos o luto, o recalcamos e a consequncia que ele nopassa. Sem um passado claro e separado de ns, nossos mecanismos metodolgicosparecem perder sua razo de ser. como se nosso objeto, to claramente expostonas fontes anteriormente, j no existisse. Como fazer histria nessa conjuntura? Ocaminho tentar encontrar o "passado que parece ter se perdido ou esquadrinhar aformacomopensamosqueacinciadeveserfeita?Emmeutextooptariapelasegunda possibilidade.2. A histria como cinciaSe Ren Descartes8 apontado como o pai da cincia moderna, pelacentralidadedadvida, doquestionamentofrenteaoqueosolhosveemepelapredominncia do raciocnio matemtico, podemos buscar a raiz dessa percepomaisrecuadanotempo, naAntiguidade. OmitodacavernadePlatotorna-secentralna separao entre mundo civil, terreno e por isso sujeito a discusso e acontrovrsia (doxa), e o mundo das ideias, de como as coisas realmente so (logos).Oprimeiroseriaanossapoltica, osegundoacincia, invarivel ecorreta, massomente alcanvel pelos que conseguem sair das "amarras da civilizao.Nomito, Plato, pelabocadeSocrtes, descrevepessoasamarradaspelasmos e ps dentro de uma caverna de uma forma que s conseguem ver o fundo dado local onde h uma parede.Fora da caverna h pessoas e essas falam e isso sepode ouvir dentro da caverna, mas entre elas e o mundo l fora h um muro quesepara os dois locais. Somente as sombras so projetadas dentro do recinto. Noentanto, como aquelas pessoas nunca saram da caverna, elas imaginam que o queveemna sua frente arealidadeeos ecos so os sons emitidos peloqueconseguemvisualizar. Umdelesconseguesesoltar enoprimeiromomentoficaconfundidodevidoluz, jqueseusolhosaindanoeramacostumados. Apsalgummomento, ele finalmente compreende que esseera omundoreal, dasverdadescomorealmenteseconstituem. Oqueviaanteriormenteeramapenas8 Para Ren Descartes, a verdade deve ser buscada no modelo da geometria, me de todas ascincias. Overossmil, nestaviso, falsoenodeveserobjetodaprticadascinciasoudafilosofia. Emsuaspalavras:[...] Comoarazojmehaviapersuadidodequedeveriadeixardeacreditar tantonascoisasqueparecemser manifestamentefalsascomonaquelasquenosointeiramente certas e indubitveis, o menor fundamento para uma dvida seria suficiente para mefazer rejeitar qualquer de minhas opinies [...] (DESCARTES, Meditaes, 8-9) [grifos so meus].12sombrasdoquerealmenteexistia.Alegrepelanovadescobertaetristeporseusamigosaindaestaremnaescurido, elevoltacavernaetentaconvenc-losetraz-los realidade. No entanto, eles no o aceitam e o julgam como louco.A alegoria da caverna est na constituio do que chamamos de cincia. Paraque o filsofo ou cientista possa fazer cincia, ele deve se retirar da vida pblica, dapoltica, dasdiscussessemsoluoparaalcanar omundodoconhecimentoverdadeiro e infalvel. Nesse sentido, no h continuidade entre os dois mundos. Emumestaescurido, nooutroaluzreal. Emumhameraopinio, nooutrooraciocnio inquestionvel.H, nesse mito, incorporado a viso sobre cincia, duas rupturas. Uma a dasada do sbio da caverna e de suas limitaes, marcadas como do mundo humanoe terreno. A outra a descontinuidade entre os dois locais: o mundo l fora e o dacaverna (LATOUR, 2004, p. 27). O sbio retorna caverna, ele tem a verdade sobreascoisas, masnoentendido, dadocomolouco, pelalimitaodosqueoouvem.Essa ideia de cincia, como procurarei demonstrar, termina por marcar tambmnossoconhecimentohistricoeaqui estaaraizdemuitodenossodesconfortomoderno pela no separao entre passado e presente. Com um objeto que no saida caverna e que nos impossibilita de sair, no conseguimos "ver as coisas como"elas so. Como enxergar o "mundo real se nossos objetos continuam dentro daescuridodacaverna?Aseparaoaparentementeclaraanterior demonstraserartificial e nos lana a novos desafios. Como construir conhecimento nessaconjuntura?No mito, o sbio, aps ver o mundo exterior, volta caverna como possuidor deum conhecimento que os habitantes do localainda no tm. Seus resultados soindiscutveis, pois ele contemplou a verdade absoluta e na nsia de relatar aos seusantigos companheiros, volta s sombras. Um pontosalientadopor Bruno Latour (2004), que na alegoria onicoqueconsegue fazer a ruptura entre os dois mundos o sbio-filsofo: o pesquisador e ocientista. Eleonicocapazdetransitar entreosdoislocais. Apassagemfechada para todos, mas aberta para ele. [...] Nele e por ele a tirania do mundo social se interrompemilagrosamente: noir, paralhepermitir contemplar, enfim, omundoobjetivo; no voltar, para lhe permitir substituir, qualum novo Moises, a13indiscutvellegislao de leis cientificas pela tirania da ignorncia. Semesta dupla ruptura, no ha Cincia, nem epistemologia, nem politica sobinfluncia, nem concepo ocidental da vida publica (LATOUR, 2004, p.28).Nomito, adurascustasocientistacortasuasamarraseconheceomundoexterior,paraentovoltarao mundo dacavernaetentarconvencer seusantigoscolegas sobre as verdades ento descobertas. Ele ignorado porque tido comoum louco. Ele tem o conhecimento, mas no o poder da palavra, de persuaso.No entanto, como afirma Latour (2004), a condio do sbio atualmente j no a mesma. Oramentos, equipamentos, laboratrios e empresas financiam sua ida aomundo externo e pagam para ouvir suas novidades, pois o nico que tem acesso averdade. Aportaestreitaeapertadadesadadacavernatornou-seumalargaavenida por onde eles podem passar e voltar sempre que forem descoberta demais um trao que precisa ser "desvelado.Noentanto, seoscientistascadavezvivemmaisemconjuntocomavidapblica, sendo patrocinados por empresas e pelo prprio estado, demonstrando queno h a separao entre poltica e cincia, sem essa diviso antolgica entre a vidacivil e conhecimento cientfico parece que a prpria cincia perde sua razo de ser.Por qual razo? difcil responder essaquesto, ocertoqueherdamos aseparaoentredoismundoseissodcomoheranaapretensaveracidadedoconhecimento cientfico. Por meio desta questo epistemolgica, o vozeiro infindvelda arena poltica cala-se e aceita a voz do sbio, do nico que transita entre os doismundos.A pretensa transcendncia da cincia parece ser a nica sada para o caosda vida civil (LATOUR, 2004). Se no aceitarmos talseparao podemos sertaxados de relativistas. Ora, agravidade no existe? Se eu saltar de umprdio no caio no cho? Osacontecimentos,em nosso caso, no aconteceram realmente? Poderiaa verdadeser relativa e a diviso entre o mundo civil e a cincia uma mera alegoria? Foram asguerras feitas por palavras? Na arena poltica, sempre acontecimentos limtrofes socitados na defesa da invariabilidade da cincia ou da narrativa historiogrfica. Se, polidamente, assinalamosqueafacilidadecomaqual ossbiospassam do mundo social aquele das realidades exteriores, acomodidade com que fazem experincia por esta importao-exportaode leis cientficas, a rapidez com a qualeles convertem o humano e oobjetivo provam bem que no h ruptura entre os dois mundos, e que setrata muito mais de umtecido semcostura, seremos acusados de14relativismo; dir-se- que tentamos dar a Cincia uma "explicao social";denunciaroemns molestas tendncias aoimoralismo; talvez nosperguntaropublicamentesecremosounonarealidadedomundoexterior ou se estamos prestes a nos lanar do dcimo quinto andar deurn prdio, pois estimamos que as leis da gravidade, elas tambm sejamconstrudas socialmente (LATOUR, 2004, p. 30)No entanto, se contra todas as evidncias continuamos a crer que existe essaruptura entre o mundo da cincia e da vida poltica porque politicamente conveniente que isso ocorra. E esse o motivo de tanta crise de objetividade dascincias. Ao aproxim-la do mundo humano, h o medo que ela perca sua urea econsequentemente sua crena como verdade universal. De acordo com Latour (2004,p.32), a continuao da alegoria dacaverna permitea reedio dasduas esferascomo realidades antagnicas, s transpostas pelo sbio.As vozes no tm o mesmovaloroupoder,poisnemtodas podem sairdacavernaem direoaomundodasideias.Aquelaqueconseguesair dasamarrassociaisepor meiodaascesedoconhecimento descobre como as coisas verdadeiramente so deve voltar e ter suafala ouvida mais que todas as outras.Autoridade, poder e crena so os eixos dessabalana, muito mais que o entendimento sobre uma pretensa objetividade. Qual a utilidade do mito da caverna hoje? A de permitir uma constituioque organize a vida pblica em duas camaras: a primeira a este saloobscuro desenhado por Plato, onde os ignorantes se encontramacorrentados, sem poder olhar-se, comunicando-se apenas por ficesprojetadas[...] asegundasesituadoladodefora, emummundocomposto de ummundo no de humanos, mas de no humanos,insensveis as nossas disputas, as nossas ignorncias [...] Toda astuciado modelo esta no papel desempenhado por este bem pequeno papel depessoas nicas capazes de fazer a ligao entre as duas assembleias[...]Apesar dofascnioexercidopelasideiasai compreendidoentreaqueles que pretendem denunciar o idealismo [...] trata-se de repartir ospoderes, inventando, ao mesmo tempo, uma certa definio de cincia euma certa definio da poltica[...] (LATOUR, 2004, p. 33) [ grifos someus].Alm da viso de cincia que o mito termina por transmitir, importante salientarque a alegoria carrega tambm uma compreenso de vida social. Ela desprovida deobjetividade, de conhecimento real, sendo a representao, por meio de sombras, anicacompreensopossvel. Omundodentrodacavernacaticoenssomosamarrados pelas mos e ps. Somos levados a olhar somente para uma realidadeque imaginamos ser a verdadeira, mas ela no basta de sombra da verdade: umaviso superficial das coisas. 15Tal distino aparece na prpria linguagem, comum ouvirmos falar da "cinciacomo um ente, cuja verdade unvoca e imutvel. A construo socialdo que elasignifica mutvelno decorrer do tempo - parece fugir da compreenso dos que ausamcomoelementodepoder.BrunoLatour(2004), emsuabuscadeaproximarsociologia e cincia, afirma que a prpria palavra "natureza como um ser exterior,que tem desejos e forma uma construo social, ocidental, ausente historicamenteem outras culturas. Com um termo somente alcana-se dois objetivos: qualifica-se umser por seu pertencimento a certo domnio da realidade e ao mesmo tempo classifica-se hierarquicamente, dando autoridade a fala. O bom selvagem, que cuida da natureza, a respeita, diferente do homem brancoe moderno, nada mais reflete do uma viso de natureza como invarivel.Claramenteno temos acesso natureza, pois ela , em si, uma construo social, sendo que oque pensamos sobre ela varivel e historicamente construdo. Destaforma, quandofalamos sobrepor fimaoantropocentrismo, por umavalorizao da natureza como igual ao homem, demonstramos nossa viso sobre ooutro e sobre ns mesmos como mais evoludos e por isso, tambm, maisdestruidores. Em outras palavras, nada mais somos do que extremamenteetnocntricos. Essas noes refletem as sociedades que a produziram, tal como nosgregos, ingleses, romanos, etc, aolongodotempo. Ocrescimentodosestudosecolgicos mais do que refletir uma mudana climtica ou do mundo natural,representa nosso mundo social.Analogamente, tal como na cincia, pensamos no historiador como o indivduoque se retira do mundo civil, das vozes destoantes que no chegam a lugar nenhum.O profissional deve se isolar do que externo e, atravs da anlise das fontes querepresentam a verdade objetiva -, deve produzir o conhecimento historiogrfico. Talconcepo esta no centro do mal estar moderno com opresentismo. Noconseguimos mais sair da caverna, continuamos ali, pois nossos objetos noconseguem transformar-se em passado e ir para o mundo da luz, onde tudo claro eunvoco. O holocausto, os crimes de estado na Amrica Latina e o fim dos sistemastotalitrios so eventos que no vo embora, mas so rememorados continuamente.Eavozdatestemunhatomaolugar dohistoriador, poisparecetransmitir maisfielmente a sensao de veracidade e confiabilidade.Entender,noentanto, araizdenossacrenanaseparaoentrepassadoepresente ou entre fontes e mundo contemporneo, tal como entre o mundo das ideias16eacavernademonstraqueacrisenotemsuarazodeser,jqueapretensaseparao entre as duas esferas, justificvel na produo do conhecimento,simplesmente no existe. Estudando a Antiguidade, a dade Media ou osacontecimentoslimtrofesqueaindalembramosemdatascivis, podemosentenderque todo conhecimento marcado pelo nosso localsocial, pela nossa formao e,inclusive, posio poltica. Asgrandesdiscussessobreapossibilidadedeconstruir umconhecimentohistrico verdadeiro perdem muito de sua razo de ser se compreendemos que elascarregamumavisodecinciaque, comoprocurei demonstrar, rebatidapelosnossosprprioscolegasdascinciasexatas. Seconcepescomo"natureza e"cincia somutveis historicamente esocialmente ereiteram, mais quetudo,cdigos sociais erelaes depoder eautoridade, podemos dizer omesmodahistria. ComoBrunoLatour (2004), colocaemseutexto, nohumacincia, masvrias, formadas por aqueles que julgampoderemsair da caverna e trazer overdadeiro sentido das coisas. Da mesma forma, mesmo com metodologia e anlisecrtica, podemos entender que no h uma histria como conceito, mas umaconcepo que foi e mutvel de acordo com o tempo. Esse pressuposto, para boapartedensaceito, poisumdenossostrabalhosfundamentaisdemonstrarahistoricidadedetodasascoisas, inclusivedenossadisciplina. Contudo, caroemexe com as estruturas epistemolgicas entender que construmos nossoconhecimentononomundodasideias, dascoisasclarasedefinidas, masnacaverna das vozes dissonantes que no veem claramente. Em outras palavras, o presentimo, trabalhado por Franois Hartog e pela Marianes Medrovcic, s traz a tona um pressuposto que bsico no s para as cinciashumanas, mas para as exatas tambm: no h duas camaras e no h "verdadesparaseremvistas peloqueconseguesedesvencilhar domundodaescurido.Hannah Arendt (2000) chega a afirmar que o filsofo visto como um ser que temparte do mundo dos deuses, pois somente ele consegue enxergar o que esta por trsdasaparncias. Aquestoquepor trsdelas, nohnada, poistudooquesabemos por meio do que vemos, codificado atravs da linguagem e passveldeentendimento. O que est fora no acessvel, se existe, e o mais provvel que noexista. No h nada por trs para ser desvelado, o conhecimento passa pelo caos daarena poltica e no meio dela apresenta seus resultados. No nos retiramos para fazer17pesquisa e produzir conhecimento, mesmo sozinhos em nossas salas ou laboratrios,carregamos a caverna conosco.Arendt (2000), em seu livro "A Vida do Esprito, trata da primazia da aparncia,uma aparente contradio contratoda uma tradio filosfica que apresentao quevimos como enganador, j que seria necessrio buscar o que est por trs. Segundoela, ateoriadosdoismundosumafalsiametafsica. Adicotomiademonstrainclusive a predominncia da aparncia, j que nela que o filsofo nasce e ela quedeve romper para buscar a suposta essncia das coisas. Paradescobrir oquerealmente, ofilsofodevedeixaromundodasaparncias entre as quais ele naturalmente eoriginalmente se encontraemcasa- como fez Parmnides quando foi transportado, almdosumbrais da noite e do dia, para a estrada divina "muito distante dos usuaiscaminhos humanos9, e como tambm fez Plato na alegoria da Caverna.O mundo das aparncias anterior a qualquer regio que o filsofo possaescolher comosua"verdadeira morada, masque, noentanto, no olocalem que ele nasceu [...] a noo de que deve haver algo que sejameraaparnciasemprefoi aqualidadequeomundotemdeaparecer(ARENDT, 2000, P. 39-40)E mais, o mundo das aparncias substitudo por outro que tambm aparente,embora apresente outra dimenso e por isso demonstre ser verdadeiro. Um exemplodadopelaautoraavidaanimal, queexteriormenteapresenta-secomsimetriaediferenciao, mas internamente do a aparncia de terem sido construdos por partee, mais, so semelhantes nos animais desenvolvidos. Muito diferente do que ocorrena aparncia que diferente entre si. Para Plato a busca do filsofo deveria ser pelo fundamento, a causa real dascoisas,no pelas consequncias que podem servistasno mundo dasaparncias.Assim, Socrtesestatrsdedefiniesabsolutaseinvariveis, enquantoseusoponentes, os sofistas procuramadoxa, a opinio, o varivel, o que no hconsenso, mas esta no campo da discusso e da prpria retrica. Para os sofistas averdade poderia ser relativa e buscvelno mundo das aparncias e da experinciadaspessoas. ParaPlato, aincapacidadedeencontrar consensonomundodosproblemas humanos faz com que ele despreze tal forma de conhecimento (ARENDT,2007, p. 101).9 Segundo a alegoria, Parmnides transportado alm dos umbrais da noite e do dia para a morada daDeusa, que o acolhe para que ento ele se instrua do intrpido corao da Verdade persuasiva. O localde encontrar conhecimento no a assembleia no meio dos homens, onde s se encontra adoxa, noo logos.18O argumento antigo, mas a busca moderna pelo mundo que est por trs doque nossos olhos veem deu nova fora antiga crena. Duvidar sempre do sensocomume das evidncias o principio da cincia moderna. Claramente essametodologia possibilitou no caso das cincias naturais muitas descobertas, como oformato da terra ou o local desta no espao. No caso da histria, nos fez descrer naingenuidadedosdadosefontes, possibilitandocompreenderanarrativacomoumprocesso. Noentanto, acreditar quesejapossvel sair domundodasaparncias,como o sbio da alegoria, sem que esse nos influencie, uma inocncia terica quecarrega em si certa arrogncia intelectual. !. A histria como representa"#oComo procureimostrar na sesso anterior, a ideia de uma separao entre omundo das ideias e o nosso uma marca registrada da cincia moderna econtempornea que tem heranas na Antiguidade. interessante refletir, no entanto,que um discpulo de Plato, Aristteles pensou de forma bem diferente a forma comoo conhecimento constitudo. Para Plato, a linguagem um campo enganoso, onde as opinies tomam lugare no h a busca da verdade. o terreno dos sofistas, seus inimigos discursivos, queno buscam a verdade, mas apenas convencer. nfelizmente acessamos os sofistaspelos olhos de seu inimigo e o que temos deles so poucos fragmentos. No entanto,sabemos que, donos de retrica e atuando na superfcie, sem objetivos de acessar "omundo as ideias, eram mal vistos pelo autor da alegoria da caverna.Para Aristteles, no entanto, o campo da discusso pela argumentao esta nomesmo nvel que o conhecimento demonstrativo, eles s tem naturezas diferentes.Oraciocniodialticoaliceradoempremissasaparentementeprovveisquetemmtodo reconhecido e baseado no verossmil10. Ningum discute a evidncia, sediscute no campo do plausvel, provvel, convincente, etc, e esse um conhecimentoto vlido quanto o demonstrativo.10[...] aotomar comoobjetodesuapreocupaofilosficaoestudodamaneiraespecficaderaciocinar por argumentos, Aristteles no pretendeu que qualquer encadeamento entre proposies,quedesrespeitasseospostuladosdademonstraoanaltica, pudesse, tosomentepelaforaretrica de quem os sustentava, alcanar o estatuto da argumentao dialtica [...] a preocupao dopensamentofilosficonosentidodenolegitimar todasequaisquer manifestaesdointelectohumanomasapenasasresultantesdedeterminadomtodo, quepossibiliteocontroledesuapertinncia- tambm estava, de algum modo, presente na viso aristotlica[...](COELHO, 1985, p.XV) [grifos so meus].19[...] o raciocnio um argumento em que, estabelecidas certas coisas,outras coisas diferentes se deduzem necessariamente das primeiras. (a)O raciocnio uma "demonstrao quando as premissas das quais parteso verdadeiras e primeiras [...] b, o raciocnio "dialtico quando partede opinies geralmente aceitas [...] (ARSTTELES, Tpicos).O campo das palavras, para Aristteles, no era necessariamente o campo doinverossmil, mas do provvel, no da mesma forma que a demonstrao, mas pormeio da argumentao. Por meiode raciocnios encadeados, que seriamosentinemas, era possvel se chegar ao consenso, por caminhos diferentes doconhecimento demonstrvel.Na arena pblica e nos discursos no senado romano a retrica era amplamenteutilizada. Seu estudo era feito com esmero e era necessrio na boa administraopblica. No Renascimento, os ensinos sobre a retrica eram usados para todos quequisessem governar ou exercer o direito. No entanto, como era ligada escolstica,presente na dade Mdia, aos poucos seu estudo foi saindo dos currculos oficiais,sendo substituda pelo conhecimento demonstrvel, de Descartes11. Esse modelodecincia, quedescartaapossibilidadedeseobter conhecimentopor meiodaargumentao e discusso - base da alegoria da caverna- muitas vezesnegligenciado pelos historiadores nos debates sobre a epistemologia doconhecimento histrico. No desejo de se equiparar as cincias da natureza, mas no tendo a mesmametodologia que elas, a histria se entrecruza num caminho perigoso entre a cinciaentendidadaformacomoapresentamos- ealiteraturaouaarte. Parecequereiteramos que no existe possibilidade de conhecimento na doxa, na caverna, onde,propriamentedito, nossoambientedetrabalhoedeondesaem asfontesquepesquisamos. E nesse local tambm, no mundo poltico, que lemos nossos textos,contrapomos a outros, escrevemos e produzimos nossa historiografia.Emumtextocidodenominado"FardodaHistria, HaydenWhitecrticaoshistoriadoresporsecolocaremcomomediadoresdaarteedacinciaaomesmotempo em que no se submetem aos critrios metodolgicos de nenhuma delas. Deacordo com ele, muitos profissionais da rea ainda no se deram conta que no possvel separar ambas. Assim, se produz narrativas que fogema padres de11Descartes no aceitava no aceitava o que no fosse do campo da evidncia, s vlido o quepode ser demonstrado, o verossmil, pela sua incapacidade de encontrar a resposta matemtica,falso (DESCARTES, O Discurso do Mtodo).20reconhecimento emoutras reas por uma pretensa singularidade da histria.Conservadores por excelncia, os profissionais teriam se usado de uma ingenuidademetodolgica deliberada.[...]A histriatalvezadisciplinaconservadorapor excelncia. DesdemeadosdosculoXX, amaioriadoshistoriadoressimulouumtipodeingenuidade metodolgica deliberada. A princpio, essa ingenuidade serviaa umpropsito: resguardava o historiador da tendncia a adotar ossistemas explicativos monsticos de um idealismo militante na filosofia e deumpositivo igualmente militante na cincia. Mas esta suspeio desistema tornou-se uma espcie de reao condicionada entrehistoriadores que tem levado a uma oposio, em todos os setores dessarea profissional, a praticamente qualquer tipo de auto-anlise crtica [...](WHTE, 1994, p. 40).PorumladoWhitetemrazo,somosto meticulososemnossoestudoenabuscadesedestacar entrenossosparesquepor vezesnosrestringimosalersomente o que de nossa rea de conhecimento a fim de poder dominar tudo o quese fala em determinado campo. sso obviamente limita nossa capacidade de fazercomparaes, boasanliseseproduzir narrativasconvincentes. Por outrolado,diferente do que ele diz, esse um problema que no est somente em nossa rea.Como apresentei na cesso anterior, cientistas de vrias reas ainda acreditam napossvel separao entre cincia e arte ou entre o conhecimento cientfico(espisteme) e a mera opinio (doxa).Embora muito se tenha avanado no sentidode mostrar que todo conhecimento socialmente produzido, a alegoria da cavernareitera posies de poder. O cientista fala, o povo escuta.Nessa lgica, sem a possibilidade de produzir cincia tais como pensamos quefazemosqumicosoubilogoseartecomofazemosliteratos, defendemo-nosafirmando que estamos num caminho do meio, que tem traos de ambos os lados. importante lembrar, no entanto, que essa pretensa separao falsa no s emnosso conhecimento - porque esta no mundo humano, das discusses e incertezas-mas porque toda forma de experimento produzido por seres humanos, que nosaem da caverna, simplesmente porque no possvel sair. Contudo, White no faz a defesa de uma histria neutra e asctica, sua propostaumahistoriografiamaispreocupadacomosproblemasdopresente, quenoestudeopassadocomumfimemsi mesmo. Suavozseriaumadasvozesnodilogoculturaldenosso tempo,na medidaem que consideraa arte e a cinciacomocamposdistintosdetrabalho. Destaforma, abuscanoseriapela"viso21verdadeira, mas pela compreenso de um ponto de vista, sendo tambm possveisvrios outros. Alm disso, poderia mudar seu estilo e seu modo de narrar caso eleno atendesse mais aos seus objetivos, como fazem os prprios cientistas.[...] Pois deveramos reconhecer que o que constitui os prprios fatos oproblemaqueohistoriador, comooartista, temtentadosolucionar naescolhadametforacomquepossaordenar oseumundopassado,presente e futuro. Deveramos apenas exigir que o historiadordemonstrasse algum tato no uso de suas metforas regentes: que no assobrecarregasse com dados nem deixasse de utiliza-las ao mximo; querespeitasse a lgica implcita no modo do discurso pelo qual optou, e que,quandoasuametforacomeasseasemostrar incapazdeconciliarcertos tipos de dados, ele abandonasse a metfora e procurasse outra [...](WHTE,1994, p. 60).Nessa lgica, a centralidade da escrita o eixo fundador. Sem ser entendidopelos seus contemporneos no faz sentido escrever histria. necessrio que ohistoriador se utilize das metforas apropriadas para ordenar seu mundo e construirseu discurso entre as muitas vozes que tem seu lugar na poltica e no cotidiano dassociedades.F.R. Ankersmit (2012) entendequeparaahistriaasdiscussessobreaverdade12e falsidade no se aplicam, j que trabalhamos sobre o eixo dainterpretao. De acordo com ele, enquanto as frases individuais de nossos textosfariam parte de uma descrio verdadeira, o texto histrico uma representao,comoapintura. Assimcomoela, anarrativahistricanoapreende"opassado,mas um aspecto dele. E mesmo esse aspecto uma projeo, no ele "em si, jque a identidade do representado no a mesma coisa que o objeto de referncia.ssonoquerdizerquensnopossamosreconhecernesseaspectotraosdarealidade que imaginamos. Ohistoriador cita o caso da caricatura. Aimagemexageradadecertopolticonoelemesmo, maspossvel reconhece-lonaimagem, muitas vezes de forma melhor do que numa fotografia, por exemplo. Naspalavras do historiador:Muitas vezes at mesmo passamos de aspectos ao que eles se referemto facilmente, que tendemos a esquecer completamente que, em muitasocasies,somerosaspectosqueestamostratandoenoaquilodoqual esses aspectos soaspectos. Destaforma, estamosvivendoemummundodefantasmas muitomais doqueestamos cientes, pois12Sobre as condenaes da escrita da histria "[.] Seguramente, eles argumentaro que a verdade bem atingvel nas cincias do que na escrita histrica com suas disputas interminveis, com seusdialogues des sords(dilogos de surdos), com seus frequentes malentendidos, suas discussesabrasivas e, via de regra, mal focadas. Eles vero nessas, admitidamente, angustiantescaractersticas do debate histrico, ambos sinal e prova de como a verdade muito mais facilmenteaprendida na histria que nas cincias [...] (ANKERSMTH, 2012, p. 74).22confundir os aspectos com as coisas de que so aspectos algo queestamos literalmente fazendo o tempo todo [...] (ANKERSMTH, 2012, p.192] [grifos so meus].Diferente da fotografia, as pinturas de uma mesma pessoa podem ser muitodiferentes entre si.sso porque os critrios de anlises so diferentes assim como oque se espera que elas transmitam. Desta forma, espera-se de uma representaoque ela seja consistente, coerente, convincente, no necessariamente "verdadeira,porque no est na empiria, esta no campo da representao. Assim, acorrespondncia que existe entre o representado e a representao no temcontrapartida ou equivalncia a descrio, simplesmente porque temcritriosdiferentes. ssonosignificaquerealidadesserocriadas(comoafirmamalgunsdesconstrutivistas), mas que diferentes pontos de vistas podem ter como refernciao mesmo objeto. De acordo com Ankesmith (2012, p. 98), na narrativa histrica teramos doiscampos que caminham juntos: a descrio e a representao. A primeira parte oque ningum dvida que ocorreu, a segunda tudo o que se pode dizer a partir dosdados que se tem. Ningum dvida que a produo histrica advm da pesquisa,mas sobre ela muito se pode dizer, dependendo da formao, leituras e inclusiveviso poltica daquele que escreve.Pensar a histria como representao no significa abolir qualquer mtodo outeoriaapuradaemnossaescrita.A historiografiadevetercritriosestabelecidos,amplamente conhecidos e aceitos pela comunidade acadmica. Entretanto, a criseatual, definia por Hartog como "presentista, temsuas razes na negao daargumentaocomoformaequivalentementevlidademonstrao. Emoutraspalavras, aalegoriadacavernaesuasconsequnciastemseulugaremnossostrabalhos na medida em que ainda almejamos uma pretensa separao entre o quefazemoseolugaremquevivemos. Procurei demonstrarnesseartigoqueessacrenanotemfundamentodeser, esquadrinhar essasrazesedemonstrar asdiversas formasemqueoconhecimentopodeser formuladofoi meuprincipalobjetivo nesse trabalho. $ib%iografia uti%i&ada:23AGOSTNHO, Santo. 'onfiss(es. Traduzido por J. Oliveira Santos e A. Ambrsio dePina. So Paulo: Abril Cultural, 1973 e 1980 (2. ed). Coleo Os Pensadores, p. 263.ANKERSMT, E. R. A escrita da histria.A nature&a da representa"#o histrica.Londrina: EDUEL, 2012.ARENDT, Hannah. A Vida do Esprito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2010.ARSTTELES. Tpicos. n: Dos Argumentos )of*sticos. 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