historias de vida - maria helena abraão

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  • 7/25/2019 Historias de Vida - Maria Helena Abrao

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    Memria, narrativas e pesquisa autobiogrfica]Maria Helena Menna Barreto Abraho

    opresente texto trata da pesquisa autobiogrfica com destaque para as narrativas como um deseus instrumentos de coleta de informaes, bem como para a memria como elemento basilarde pesquisa desta natureza. Estabelece a tese de que a memria do narrador (reconstrutiva dasignificao de suas vivncias) e os instrumentos de anlise e interpretao do pesquisador soelementos que se imbricam e complementam para melhor compreenso de dimenses darealidade pesquisada, tanto na perspectiva pessoal/social do narrador, como na perspectivacontextual da qual essa individualidade produto/produtora.Palavras-chave: pesquisa-autobiogrfica; memria; narrativas.

    This paper deals with auto-biographical research giving prominence to narratives as one of itstools of coUection of information as weU as it detaches the memory as a fundamental elementin research of this kind. it establishes the thesis for which memory from one who teUs hishistory (reconstructive of one's experiences) and the analysis and interpretation instruments ofthe researcher are elements which interlace and complement each other for betterunderstanding of dimensions of the searched reality, as much in the individual/socialperspective of the narrator, as in the contextual perspective of which this individuality isproduct/producer.Key-words: auto-biographical research; memory; narratives.

    , Texto produzido para o livro "A Aventura Autobiogrfica - teoria e prtica", no prelo,apresentado em primeira mo em Mesa Redonda "Memria e Pesquisa Autobiogrfica",

    coordenada pela D f" Maria Helena Menna Barreto Abraho, no IX Encontro Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em Histria da Educao, que teve como tema geral Histria daEducao, literatura e memria, realizado na Pontificia Universidade Catlica do Rio Grandedo Sul - PUCRS, dias 5 e 6 de junho de 2003, com promoo da Associao Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em Histria da Educao - ASPHE e da Linha de PesquisaFundamentos, Polticas e Prticas da Educao Brasileira do Programa de Ps-Graduao emEducao da PUCRS.

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    A pesquisa autobiogrfica - Histrias de Vida, Biografias,Autobiografias, Memoriais - no obstante se utilize de diversas fontes, taiscomo narrativas, histria oral, fotos, vdeos, filmes, dirios, documentos emgeral, reconhece-se dependente da memria.2 Esta, o componenteessencial na caracterstica do (a) narrado r (a) com que o pesquisadortrabalha para poder (re) construir elementos de anlise que possam auxili-10 na compreenso de determinado objeto de estudo.

    Ao trabalhar com metodologia e fontes dessa natureza opesquisador conscientemente adota uma tradio em pesquisa quereconhece ser a realidade social multifacetria, socialmente construda porseres humanos que vivenciam a experincia de modo holstico e integrado,em que as pessoas esto em constante processo de auto-conhecimento. Por

    esta razo, sabe-se, desde o incio, trabalhando antes com emoes eintuies do que com dados exatos e acabados; com subjetividades,portanto, antes do que com o objetivo. Nesta tradio de pesquisa, opesquisador no pretende estabelecer generalizaes estatsticas, mas, sim,compreender o fenmeno em estudo, o que lhe pode at permitir umageneralizao analtica.

    Nesse sentido, nossa pesquisa com destacados educadores rio-grandenses3 permitiu diversos esforos de generalizao analtica, em

    especial no que respeita s dimenses formao, profissionalizao econstruo identitria do professor, como sujeito e como profissional(Abraho, 2002a). Essa generalizao analtica obviou, entre outras

    possibilidades, a comparao entre a vida profissional de 12 educadores que

    2 Memria ser trabalhada neste texto especialmente como memria individual, tanto donarrador, como do pesquisador, no obstante imbricada s relaes vivenciais - sociais eculturais - e por elas informada/significada/ressignificada. Outras compreenses sobre amemria, como memria coletiva e memria pblica (ver: Halbwachs, 1976).3 Pesquisa: Identidade e Profisionalizao Docente: narrativas na primeira pessoa, publicadaem livro (AbraMo, 200Ia).Grupo de Pesquisa:Coordenadora: Prof" Dr" Maria Helena Menna Barreto AbraMo.Pesquisadores Associados: Prof" Dr". Berta Weil Ferreira; Prof" Dr" Lenira Weil Ferreira;Prof. Or. Silvio Laffin.Doutorandos: Berenice Hackmann; Dulce Helena Cabral Hatzenberger; Eliana PerezGonalves de Moura; Helena Ssporleder Cortes; Joo Domelles; Jussara Freitas; MariaConceio Pillon Christfoli; Maria Waleska Cruz.Mestrandos: Alaydes Sant'Anna Bianchi; Alzira Elaine Meio Leal; Gilda Maria Silveira

    Rodrigues; Lourdes Maria Bragagnolo Frison; Luciana Martins Teixeira; Maria Tereza BliniPrates; Marilene Jacintho Mller; Mima Susana Viera Martnez; Mnica de Novais Latorre;Protsio Pletsch; Rita Tatiana Cardoso Erbs; Susana Almeida Domelles.Bolsistas IC: Rosemary Liedtke - FAPERGS (at dezembro de 1999); Rafael Preussler deAguiar - PUCRS (at dezembro de 2000); Jacqueline Machado Bastos CNPq (at agosto de2002); Glimanis Wachter - CNPq at agosto de 2005).Apoio: CNPq/F APERGSIPUCRS.

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    fizeram histria na educao do Rio Grande do Sul e os ciclos de vidaprofissional de educadores em Hubermann (1995), - Abraho, 2001b -,bem como a possibilidade de enunciar a tese de que a natureza da profissoe da prtica docente comporta e apresenta elementos e dimenses analticas

    universais (Abraho, 2002b), numa comparao com elementosapresentados por Nvoa (2001), fruto de estudo que este autor realizou comeducadores de diversos pases.

    As narrativas 4 permitem, dependendo do modo como nos sorelatadas, universalizar as experincias vividas nas trajetrias de nossosinformantes. Nessa perspectiva, Denzin (1984, p.32) nos ensina que "As

    pessoas comuns universalizam, atravs de suas vidas e de suas aes, apoca histrica em que vivem". Pela leitura transversal das trajetrias de

    vida pessoal e profissional dos destacados educadores de nossa pesquisapudemos apreender teorias e prticas de formao, de ensino, de relaesinterpessoais e institucionais, de construo identitria - do ser educador -relacionados aos diferentes momentos e cenrios scio-poltico-econmic(}-culturais de fins do sculo XIX e de todo o sculo XX (Abraho, 2001c).

    Comungamos com Moita (1995) que considera a pesquisaautobiogrfica a metodologia com potencialidades de dilogo entre oindividual e o sociocultural, pois "pe em evidncia o modo como cada

    pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, parair dando forma sua identidade, num dilogo com os seus contextos" (p.113), razo pela qual os estudos autobiogrficos podem ser entendidoscomo referentes a vidas inseridas em um sistema em que a plural idade deexpectativas e de memrias o corolrio da existncia de uma pluralidadede mundos e de uma pluralidade de tempos sociais (Bourdieu, 1987).

    Com base nesse entendimento, na pesquisa retro-mencionada,deu suporte produo de informaes a corrente que ultrapassa a viso

    positivista, em que as Histrias de Vida so entendidas como umdocumento positivo em detrimento da reconstruo do processo deproduo desse documento, desde que as Histrias de Vida so vistas comoindcio de um dado momento no tempo passado, deixando de se tematisar omomento presente da enunciao. O suporte terico da metodologiaempregada a essa produo ultrapassou, tambm, a viso interacionista,mediante a qual o que realmente importa a construo dual de situaes

    4 "Atravs da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experincia em umaseqncia, encontram possiveis implicaes para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentosque constroem a vida individual e social" (JOVCHELVITCH,s & BAUER, M. W. AEntrevista Narrativa. In : Bauer, M. W. & Gaskell, G. Pesquisa Qualitativa com texto Imagem eSom - um manual prtico. Petrpolis: Vozes, 2002, pp90-113). Sobre narrativas no cenrioeducacioual, em especial: LARROSA, Jorge et ai.(I995); MCEWAN, Hunter; EGAN, Kieran(org). (1995).

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    no processo de produo de relatos, abstraindo da reflexo o contexto dosprprios enunciados, esquecendo, portanto, de fazer emergir o contexto dasrelaes macro - scio-poltico-culturais e econmicas - que perpassa asituao de interao na qual a Histria de Vida adquire sentido. Nossa

    perspectiva comungou com uma terceira, apresentada por Santamarina eMarinas (1994, p. 268-269) como de carter dialtico, segundo a qual asHistrias de Vida so entendidas como inseridas em um sistema, de talmodo que, sem serem desvinculadas do momento da enunciao ou doenunciado, so tratadas como histrias de um sujeito (individuo ou grupo)que se constroem desde dentro dos condicionantes micro e macro-estruturais do sistema social.

    Coerente com a corrente terica adotada que sustentou o processo

    de produo de informaes para a construo das Histrias de Vida, oprocesso de interpretao utilizou procedimentos de anlise quedesconsideram os utilizados pela corrente positivista bem como aqueles deque se utiliza a corrente interacionista. No primeiro caso, uma visoestruturalista de anlise que privilegia a saturao de um modelo que operafundamentalmente com fonte documental, determinista, analisada exausto, sem interessar-se pelas peculiaridades biogrficas que umtrabalho de campo pode proporcionar. No segundo caso, uma prtica de

    anlise que utiliza uma interpretao hermenutica que supe estar um texto(no caso, o texto narrativo) dado e acabado, tratando to-somente dedescobrir, por meio de uma anlise em detalhe e profundidade, sentidosocultos nesse texto, ficando a Histria de Vida reduzida ao texto como

    produtor de sentidos. Diferentemente, no processo de interpretao dasinformaes utilizamos uma concepo em que as categorias de sujeitos soentendidas como espao de enunciao, em que os elementos peltnentesvo se desenhando na medida da relao das narrativas com seus contextos.

    A esse modo Santamarina e Marinas (op. cit. p. 270) chamam de"comprensin escnica", que traduzimos por compreenso de contexto. Estacompreenso privilegia, ao invs da estrutura amostral de uma histriasegundo o sentido originrio dos textos ou dos elementos de profundidadede seus sentidos ocultos, o entendimento de que a origem e o sentido

    profundo dos textos algo que construinIos pari passu, diuturnamente. Osautores supracitados enunciam o que denominamos de trs planos dacompreenso de contexto: o contexto vivido no passado, que comporta a

    totalidade de referenciais biogrficos e sociais dos sujeitos entrevistados; ocontexto do presente dos sujeitos, que supe as redes de relaes sociais dopresente dos sujeitos, desde as que se elaboram mediante a concretasituao de entrevista estabelecendo seu sentido para o presente; o contextoda entrevista, que supe as formas de acordo e cooperao para a efetivao

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    da propna entrevista, como a relao de escuta e transmisso emreciprocidade como condio para a reflexo. A compreenso de contextointerpreta o processo no qual os sujeitos "re-atualizam, re-elaboram osentido, as posies ideolgicas coletivas dos processos vitais" das histrias

    (op. cit. p. 272). Sem deixar de considerar tanto o momento da enunciaocomo o momento do enunciado, "trata-se de interpretar as histrias nos

    jogos e dimenses de sua tessitura (contexto o que est tecido com), mas,tambm, na dimenso da construo do sujeito ... para situar as histrias devida em seus sujeitos e processos plurais" (op. cit. p. 272). Esses autoresadvertem que o trabalho com Histrias de Vida em contexto exige "umaredefmio mais aberta das fases de todo o processo de investigao" e quenos "encontramos com histrias de pessoas e de grupos, cujo sentido

    contribumos para estabelecer" (op. cit. p. 281). Esses planos decompreenso de contexto foram analisados na pesquisa j referida tendo emvista duas dimenses complementares: a) o desenvolvimento profissional,compreendendo, na viso de Vonk e Schras (1987), a perspectiva dodesenvolvimento pessoal - que entende o desenvolvimento profissionalcomo resultado de um crescimento individual; a perspectiva daprofissionalizao - que entende o desenvolvimento profissional comoresultado de um processo de aquisio de competncias e a perspectiva da

    socializao - que entende a profissionalizao docente como centrada nainsero do professor no meio profissional em que atua e b) a construo daidentidade profissional, entendida por Lessard (1986) como a relao que oprofessor estabelece com a profisso, com seus colegas e a construosimblica que essa relao implica, tanto no campo pessoal como nointerpessoal, com base nas representaes que os professores elaboram arespeito dos aspectos da atividade docente que compreende: o capital deconhecimentos - saber fazer e saber ser - que embasam a prtica docente;

    as condies do exerccio da prtica docente, em especial de autonomia,controle e contexto de atuao; pertinncia cultural e social da prticapedaggica; estatuto profissional e prestgio social da profisso docente.

    Esta dialtica pode, igualmente, ser encontrada em Ferrarotti,quando afirma que, nos estudos autobiogrficos, fica clara a imbricao jreferida entre o eu pessoal e o eu social, permitindo "reconstruir os processosque fazem de um comportamento a sntese activa de um sistema social ainterpretar a objectividade de um fragmento da histria social a partir da

    subjectividade no iludida de uma histria individual" (1988, p. 30).O mtodo autobiogrfico se constitui, dentre outros elementos,pelo uso de narrativas produzidas por solicitao de um pesquisador,estabelecendo, pesquisador e entrevistado, "uma forma peculiar deintercmbio que constitui todo o processo de investigao" (Moita, op. cit.

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    p. 258), com a intencionalidade de construir uma memria pessoal oucoletiva procedente no tempo histrico.

    O carter temporal da experincia humana, pessoal/social,

    articulado pela narrativa, em especial quando clarifica a dualidade "tempocronolgico"J"tempo fenomenolgico". A correlao tempo e narrativa emPaul Ricoeur leva a indagar sobre a procedncia da narrao histrica deuma conscincia histrica, em que o presente, o passado e a expectativa dofuturo se imbricam numa perspectiva tri-dimensional. (Ricoeur, 1995).

    A perspectiva tri-dimensional do tempo narrado, tambm seapresenta no tempo pensado/vivenciado, com as ambigidades e, mesmo,contradies no seio dessas trs instncias, passado, presente, futuro. SousaSantos (1987) explicita, com maestria essa situao:

    "Estamos a quinze anos do final do sculo XX Vivemos num tempoatnito que ao debruar-se sobre siprprio descobre que os seus

    ps sl10 um cruzamento de sombras que vm do passado que orapensamos j nl10 sermos, ora pensamos nl10 termos deixado de ser,sombras que vm do fUlllro que ora pensamos j sermos, ora

    pensamos nunca virmos a ser." (p.5).

    Vale a pena lembrar a explicitao que o autor faz para justificaressa assertiva, embora longa:

    "Quando, ao procurarmos analisar a silllal10 presente dos cinciasno seu conjunto, olhamos para o passado, a primeira imagem talvez a de que osprogressos cientijicos dos ltimos trinta anos sl10de tal ordem dramticos que os sculos que nos precederam - desdeo sculo XVI, onde todos ns, cientistas modernos, nascemos, at ao

    prprio sculo XIX - nl10 sl10 mais que uma pr-histria longnqua.Mas, se ftcharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verijicamos comsurpresa que os grandes cientistas que estabeleceram e mapearam ocampo terico em que ainda hoje nos movemos viveram e

    trabalhoram entre o sculo XVIll e os primeiros vinte anos dosculo XX de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin, de Marxe Durkheim a Max Weber e Parelo, de Humboldt e Planck aPoincar e Einstein. E de tal modo assim que possvel dizer queem termos cientijicos vivemos aindo no sculo XIX e que o sculo

    XX ainda nl10 comeou, nem talvez comece antes de terminar. E se,em vez de no passado, centrarmos o nosso olhar no flllro, domesmo modo duas imagens contraditrias nos ocorremalternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradul10tecnolgica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no

    limiar de uma sociedade de comunical1o e interactiva libertada dascarncias e inseguranas que ainda hoje compem os dias de muitosde ns: o sculo XX! a comear antes de comear. Por outro lado,uma rej/exio cada vez mais aprojimdada sobre os limites do rigorcientijico combinada com os perigos cada vez mais verossmeis dacatstroft ecolgica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que osculo XX! termine antes de comear". C o p o cit. p . 5-6).

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    Essa unicidade do tempo narrado pode ser detectada em diversasnarrativas autobiogrficas, tanto no que respeita a reconstrues eressignificaes que o sujeito que rememora faz sobre a prpria trajetria,como no que se refere reflexo sobre matria macro, como no caso da

    citao trazida de Sousa Santos.Em Soares (1990, p. 41), por exemplo:"Conto o passado - o passado de que foi contempornea aquela

    que fui - conhecendo-lhe o futuro; portanto, na verdade, reconstruo-o emfuno desse futuro, que o meu presente de hoje".

    Tambm na pesquisa que realizamos, antes referida, essaperspectiva tri -dimensional tempo/narrativa foi detectada nas remembranasdos destacados educadores com quem trabalhamos. Como exemplo, cabe

    reproduzir:"Ento, no dia em que deixamos a Secretaria (Secretaria deEducao e Cultura do Estado do Rio grande do Sul, onde anarradora exercia a titularidade da pasta), samos procura de umacasa...onde ns comeamos a nossa escola com /15 alunos(perspectiva: passado). Hoje, so mais de 2.000 alunos(perspectiva: presente). Um dos objetivos era fundar uma escolacom a participao dos pais, professores, alunos efuncionrios, detalforma que quando se matriculava o aluno ns "matriculvamos"

    tambm os pais. Depois, compramos um terreno e construmos aescola onde hoje ela se encontra. Criamos uma escola comunitria,sem fins lucrativos (perspectiva:passado-presente-futuro). Hoje,ela umafundao mantidapelos pais, que assumiramde talformaa vida comunitria da escola, onde professor, funcionrio, alunotm vez, que eles chegaram concluso de que a escola realmentetinha que ser mantida por eles (perspectiva: presente-passado).Sempre disse que ns tnhamos quefazer uma grande escola e, nouma escola grande, mas ela teve uma enorme repercusso, foicrescendo, crescendo e dificilmente se conseguia evitar seucrescimento. Quando sa, em 1973, no havia esse nmero dealunos que h hoje (1992, mais de 2.000 alunos), mas j estavamuitogrande(perspectiva: passado-presente-passado) A meu ver,a escola cresceu muito. Precisaria parar um pouco para manter aqualidade porque no fcil, no fcil esse trabalho"(perspectiva: presente-futuro).

    Trabalhar com narrativas no simplesmente recolher objetos oucondutas diferentes, em contextos narrativos diversos, mas, sim, participarna elaborao de uma memria que quer transmitir-se a partir da demanda

    de um investigador. Por isso, o estudo autobiogrfico uma construo daqual participa o prprio investigador, razo pela qual, dada a particularidadede seu modo de produo, ", seguramente, a forma de mxima implicaoentre quem entrevista e a pessoa entrevistada" (Moita, op. cit. p. 272). Isto,caracteriza o processo de pesquisa que consiste em "fazer surgir" histrias

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    de vida, biografias, autobiografias, em planos histricos ricos designificado, em que afiorem, inclusive, aspectos subjetivos como em Fraser(1990, p. 148) que, ao relatar entrevista com pessoas que participaram daguerra civil na Espanha, afirma: "No esperava recolher de meus

    informantes novos feitos histricos ... os testemunhos podiam contar-meno s o que recordavam ter feito, mas tambm o que pensavam queestavam fazendo quela poca e o que hoje pensam que haviam feito".

    Esse ressignificar os fatos narrados nos indica que, aotrabalharmos com memria, o estamos fazendo conscientes de que tentamoscapturar o fato sabendo-o reconstruido por uma memria seletiva,intencional ou no.

    Nesse sentido, essa metodologia de pesquisa tem, segundo

    Santamarina e Marinas (op. cit.), uma dimenso tica e poltica na medidaem que "aposta na capacidade de recuperar a memria e de narr-Ia desdeos prprios atores sociais" (p. 259), rompendo com formas cristalizadas deinvestigao que valorizam mais o dado acabado e partindo para a "intenode capturar sentidos da vida social que no so facilmente detectveis .. ,(buscando) o sentido do tempo histrico e o sentido das histriassubmetidas a muitos processos de construo, de re-elaborao deidentidades individuais, de grupo, de gnero, de classe em nosso contexto

    social" (p. 259).Isto no quer dizer que a pesquisa autobiogrfica no comporte

    riscos, desde que "Ningum se diz impunemente. As tentaes da vaidadeou do niilismo perseguem os esforos para dar sentido a percursos feitospelo caminho do que somos, mas tambm pelos caminhos do que nosobrigaram a ser" (Nvoa, 2001, p. 7). No entanto,

    "... preciso reconhecer que mesmo os mais impenitentes crticos dogesto (auto)biogrfico a ele se consagraram uma ou outra vez. Tudo

    se decide na conscincia do acto. No seu equilbrio e sensatez. Naaceitao de que a (auto)leitura, mesmo partilhada, no constituiuma verdade mais certa do que as outras leituras. No se trata deuma mera descrio ou arrumao de factos, mas de um esforo deconstruo (e de reconstruo) dos itinerriOS passados. umahistria que nos contamos a ns mesmos e aos outros. O que se diz to importante como o que fica por dizer. Ocomo se diz revela umaescolha, sem inocncias, do que se quer falar e do que se quer calar(Nvoa, 2001, p.7-8).

    Essa memria reconstrutiva enunciada por Soares (op. cit. p. 40),em estudo auto-biogrfico que realizou:

    "Exatamente assim que me sinto: com as mos atadas pelo quehoje sou, condicionada pelo meu presente, que procuro narrar um

    passado que re-fao, re-construo, re-penso com as imagens e idiasde hoje.

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    A prpria seleo daquilo que incluo na narrao obedece acritrios da presente: escolho aquilo que tenha relaes com osistema de refernciasque me dirige. hoje. A (re)construode meu

    passada seletiva:fao-a a partir da presente, pois este que meaponta o que importante e o que no ; no descrevo. pois;

    interpreto".

    Catroga (2001), em artigo intitulado Memria e Histria, tambmaborda a memria como sendo uma construo seletiva do sujeito, eis que,na viso do autor, com a qual concordamos, a memria , mais que ummero registro, pois esta objetiva-se "numa narrativa coerente que, em,retrospectiva, domestica o aleatrio, o casual, os efeitos perversos do realpassado quando este foi presente, actuando como se, no caminho, noexistissem buracos negros deixados pelo esquecimento" (p. 46). Da mesmaforma Bosi (1994, p. 55), nos alerta que "na maior parte das vezes, lembrarno reviver, mas repensar, com imagens e idias de hoje, as experinciasdo passado .... A lembrana uma imagem construda pelos materiais queesto agora nossa disposio no conjunto de representaes que povoamnossa conscincia atual".

    Capturando indcios de memria reconstrutiva

    nas narrativas de sujeitos

    Na pesquisa, j tantas vezes mencionada, trabalhamos bemconscientes de que o fazamos contando com a memria reconstrutiva denossos destacados educadores e das demais pessoas-fonte que nosbrindavam com suas narrativas.

    Sob este aspecto, em especial, reputamos muito adequada a

    proposta terico metodolgica de pesquisa que adotamos, justamente aopretender construir um conhecimento privilegiando a profissionalizao doeducador, trazendo aportes das histrias contextualizadas de educadores nadimenso no s pessoal, mas tambm nas demais dimenses,

    principalmente na profissional e scio-poltica que quela se imbricam. Oseducadores rio-grandenses que privilegiamos, atuaram/atuam muitosignificativamente nessas dimenses, exercendo seus talentos, seu saber eseu empenho de forma a agir tendo em vista a transformao dos principais

    condicionantes micro e macro-estruturais embargadores de que educadorespossam ser profissionais da educao de modo pleno. As Histrias de Vidade reconhecidos educadores deixam aflorar aspectos de sua formao -formao, essa, tambm realizada nos percursos de vida desses educadores -que permitem um constrncto que aporta subsdios para a formao de

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    educadores realmente profissionalizados. Esse entendimento estriba-se nopensamento de Shulman e Colbert (1989), que consideram as narrativas dasprticas de professores como elementos catalisadores que induzem reflexo dos professores em geral sobre sua prpria profisso. Nessesentido, nosso estudo no pretendeu ser uma reflexo voltada to-somente

    para o passado, mas teve especialmente em vista a reconstruo do sentidodo trabalho de professores enquanto profissionais reflexivo-transformativosde sua prpria prtica, constantemente repensada e sopesada e de prticassociais, no limite das possibilidades concretas do trabalho de educador,identificado como tal. Entendemos, pois, as Histrias de Vida de destacadoseducadores rio-grandenses como um potencial para a construo de

    propostas significativas para a formao de professores e para aprofissionalizao docente.

    Ao detectarmos essas caractersticas, no entanto, no deixamosde ter presente que nossos destacados educadores foram/so, antes de tudo,seres humanos e, portanto, longe de se constiturem em "super-homens" e"super-mulheres". No obstante as Histrias de Vida estejam realando as

    positividades antes do que as debilidades desses educadores, o constructodas respectivas histrias no perde em consistncia, em virtude de que,embora no sendo infalveis, eles foram por ns escolhidos justamente

    porque apresentam caractersticas muito especiais que os colocaram nalembrana das pessoas com essa feio to positiva, "quase herica". E foi,naturalmente, com a memria reconstrutiva desses educadores e das demais

    pessoas-fonte que trabalhamos.No entanto, reconhecendo os riscos de se utilizar a memria que

    assumimos com reconstrutiva, por definio, como nica fonte de anlise,trabalhamos com triangulaes de fontes e com Histrias de Vida de relatoscruzados.

    O material coletado que triangulamos com as narrativas(documentos, vdeos, fotos, cruzamento de relatos de Histrias de Vida) e ametodologia de anlise empregada nos permitiram um entendimento maisorgnico, no s das individualidades em estudo como, igualmente, docontexto educacional rio-grandense do qual essas individualidadesforam/so produto/produtoras.

    Assim, a memria de nossos(as) narradores(as)5, emborarespeitada em sua racionalidade reconstrutiva, teve modos de verificao

    justamente por meio das referidas triangulaes.Pudemos, em nossa pesquisa, identificar alguns aspectos dessa

    reconstrutividade da memria.

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    Primeiramente, uma memria no intencionalmente seletiva. Istoaconteceu em situaes em que os narradores guardaram na memria fatos,

    pessoas, relaes, situaes a que tinham atribudo significao relevante nomomento em que os vivenciaram, ou, ento, com narradores com avanada

    idade. Lembravam-se de fatos de sua formao inicial e do incio da prticadocente, mas tinham enorme dificuldade de narrar fatos mais adiantados notempo ou deles simplesmente no lembravam. Mesmo quando se utilizavamtcnicas como a visualizao de fotos da poca em questo, o avivamentoda memria era incuo ou pouco expressivo. Nesse caso, a narrativa dealunos e de parentes mais jovens auxiliava sobremaneira no preenchimentode lacunas.

    Uma segunda expresso da memria seletiva ocorria quando o

    narrador intencionalmente selecionava a informao, ou para no lembrarfatos desagradveis, muitos dos quais chegavam a lhe recordar situaes deintenso sofrimento, ou para no declinar situaes que achavam nodevessem vir a pblico. Houve ocasies em que o narrado r, embora tivesseabordado o fato, dissesse "isto voc no publica". Ou, ainda, no af de nosagradar, desde que - e isso, muitas vezes ficou visvel- o narrador tinha umpressuposto daquilo que, na sua perspectiva, gostaramos de escutar.

    Uma outra expresso de reconstrutividade memorial ficava

    evidente quando o narrador realmente ressignificava o fato no momento daenunciao. Isto ficava claro pelas diversas tradues de determinado fatonos enunciados de sucessivas narrativas sobre esse fato, quer no discorrer deum mesmo discurso narrativo, quer ocorrido em narraes realizadas emdiferentes momentos.

    H ainda, o que denominamos de memria "de vida compartida".A pessoa-fonte, ao narrar a trajetria de um outro personagem, no caso, umde nossos destacados educadores, imbricava a prpria trajetria no relato.

    Esta foi, na verdade, a situao mais recorrente. No encontramos naliteratura6 esse tipo de memria. Convm, dada sua especificidade em nossoestudo, exemplificar:

    "Aos 4 anos de idade conheci minha madrinha, pela qual nutri,desde o primeiro momento, enorme simpatia e carinho. Atravs delaconheci meu padrinho Ary (um dos destacados educadores) e sua

    filha mais velha, Maria da Graa, que foi minha amiga ecompanheira durante muitos anos. Sob meu olhar de criana, todosos adultos pareciam gigantes, mas eu s saberia o quo gigantesco

    era meu padrinho, com o decorrer do tempo.

    6 Para os demais "tipos" de memria reconstrutiva encontramos explicitao terica naliteratura; podemos referenciar, dentre outros: Fraser (1990), Bosi (1994), Thompson (1998),Oliveira (2000), Catroga (2001), Jovchelovitch & Bauer (2002).

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    Na poca em que eu o conheci eu morava na Rua Joo Alfredo. 823,onde hoje fica o supermercado Nacional. Os automveis eram rarosnaquela poca. mas meu padrinho possua um Citroen preto. alis.a maioria dos automveis era preta. Ofato que. por diversasvezes, ele se dava ao trabalho de me levar de carro para uma volta

    na quadra, s para ver a minha felicidade de criana, como quemest desejosa de comer um doce. Na poca de carnaval. que ele nogostava muito, eu e a Maria da Graa nos fantasivamos e ele noslevava para ver o desfile realizado na Cidade Baixa.

    Diversas vezes ele nos levou para comer bauru (nossa paixo), aoparque de diverses do Bom Fim, ao cinema. tudo com muitapacincia e bom humor.Depois, meus pais e eu nos mudamos para Ipanema. Em seguidaeles mudaram tambm, onde eles residiram Rua Gvea, 113.

    Muitos e muitos sbados eu e minha me amos visit-Ios. Quando

    estava chovendo eu e Maria da Graa ficvamos enfadadas. elepassava a tarde inteira jogando domin para nos distrair. Nessapoca a Maria da Glria j havia nascido e deveria ter de I a 2anos. Eu ainda desconhecia a profisso do meu padrinho, masreconhecia nele muitas qualidades e o afeto a mim dedicado.

    Aos 13 anos cursando a 2" srie ginasial. decidi que cursaria aFaculdade de Matemtica e s ento fiquei sabendo que ele era

    professor de Matemtica e, no convencida. fui perguntar a ele.comunicando a minha deciso. Ele todo feliz deu um largo sorriso eexclamou: "Muito bem! Se precisar de uma mozinha. no te

    acanhes". Ao que eu respondi: "No quero nem a ponta do teudedinho, dindo". Elefez um beicinho efez "Hum!".

    "Eu conheci o Ary em 29 de setembro de 1942. num baile deprimavera realizado na SOGIP A. Eu estava com um vestido de linhaazul e ele disse: "Um cu azul sem necessidade de estrelas, porqueele j luminoso". E nunca mais deixamos de nos ver. Casamos em29 de setembro de 1943. escondido da me dele, devido ao grandeamor que a mesma nutria pelo filho. Quando a me. Izolina. sugeriu

    que ficssemos noivos. Ary comunicou que j estvamos casados.Ressalto porm. que o pai do Ary. Leopoldo. j sabia do casamento.Quando ele fez a opo pela carreira de professor, eu fiqueiencantada, pois ele estava envolvido com o ato de ensinar. s nosabia o quanto de solido que este fato me traria no futuro.Tivemos duas filhas: Maria da Graa nascida em 18 de junho de1950 e Maria da Glria nascida em 9 de julho de I962.Para as

    filhas ele no contava estrias. as inventava".

    "Eu adorava a Zilah. Era uma pessoa inteligentssima.interessantssima. muito modesta. A grande qualidade da Zilah queeu mais observava era que ela sempre estava bem em qualquersituao: ela se dava bem com todos, podia ser um mendigo, podiaser uma alta personalidade, ela sempre guardava aquelanaturalidade. ela sempre estava altura das pessoas. Estudamos

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    toda a vida, no Svign, estudamos juntas. Zil sempre ji umaaluna brilhante; s vsperas dos exames ns (um grupo de colegas)amos casa da Zlah para estudar com ela toda a matria. Haviaat fatos engraados. A irm Alexandra passava, para analisarmos,os versos de Cames, naquele tempo era obrigado Cames. A Zilah

    era um crnio. Aquelas estrojs ela analisava que era uma coisamaravilhosa! As vezes eu copiava da Zilah e a freira dava dez paraela e dois ou trs para mim. Eu no podia reclamar, pois a freirasabia que eu tinha copiado da Zilah porque eu no tinha capacidade

    parafazer o que a Zilahfazia." (Nmora, prima, amiga e colega).

    "Quando a conheci, numa reunio de diretores, ela me chamou aateno no s pela cultura em termos de educao, mas como

    personalidade; mostrava que era uma pessoa que quando queria ascoisas ela realizava e eu acho que em termos de educao ela jz omximo, e tanto, que eu sinto que ela no tenha sido indicada, hoje,

    como uma das personalidades do sculo, porque ela realmente foiuma personalidade. Quanto mais eu convivia com ela, mais aadmirava; os procedimentos dela em termos de educao seencaixavam com o pensamento dela. As palavras dela traduziam oque ela realizava" (Leda Falco de Frcitas, amiga e fWlCladora, coma Profa. Zilah, do Colgio Joo XXIII).

    "A Zilah foi uma pessoa sempre voltada educao; o ideal delaera o contato com o aluno, era a sala de aula, que era a segundacasa dela e onde se sentia bem. Ns todas somos projssoras, nsmulheres, por influncia da mame que sempre foi uma educadora,que gostava muito de ns e que nos ajudava muito. "Eu acompanheimuito a Zilah em suas atividades profissionais e nas escolas que ela.fimdou. Ela foi muito apoiada e era o orgulho, vamos dizer assim,da famlia. Ento, os pais e os irmos girvamos em torno da sua

    jigura. Sempre, todos os seus trabalhos, em tudo o que ela jzia, agente participava e estimulava. Meu pai gostava muito de escrever,colaborava com o Correio do Povo. Ento, de todas as atividadesda Zilah ele dava umas notcias, pois tinha muito orgulho. "(HelenaTotta Silveira, irm).

    "Era um fim de tarde dos anos 80. Uma sala de aula foi indicadapara que eu, aluna do curso de Pedagogia, fizesse parte do grupo.Havia me matriculado na condio de ''pra-quedista'' (alunomatriculado num curso e freqentando outro em disciplinas afins).Eu era egressa de um curso de Biologia, ingressando no dePedagogia e, como neste no havia mais vagas para a disciplina deFilosofia, poderia optar por um outro espao jIsico, outro grupo decolegas e outro curso em face de a Universidade permitir essa

    flexibilidade. Esse fato foi, para minha formao, de extremavalidade. Aproximei-me da sala de aula indicada e fui acolhida poruma figura humana, a projssora Zilah, de estatura pequena, muitosorridente e gil nos seus pensamentos. Conhecedora do serhumano, logo se deu conta que eu era um ''passarinho de outroninho" como costumava chamar os que no pertenciam ao curso deFilosofia. Tambm fazia questo de dizer que ningum poderia se"sentir dijrente naquele espao de discusso e crescimento", pois

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    "o saber no tem espao limitado e nem sujeito definido" (ZliaMaria Ferrazzo Farenzena, ex-aluna; professora da PUCRS).

    "Eu era um jovem profssor do Rosrio e lembro que ele tinha tantocuidado pelas crianas, que quando chegava, por exemplo, aPscoa, a gente recebia chocolates dos alunos e ele chegava e dizia:'- Olha, voc no podia me reservar algum doce que eu vou levar

    para as minhas crianas. E todo mundo dava, eu dava tambm, agente gostava de chocolate, mas dava para ele. E ele ia juntandoaquilo numa sacola. A mesma coisa acontecia no Natal. Ento agente j sabia, vamos cuidar disso e deixar para o Irmo Inocncioque ele vai levar isso para a crianado. Eu admirei muito o Irmo

    Inocncia, que homem desprendido, penso que no registraram

    tantas coisas significativas que praticou, tantas virtudes, dever-se-iaintroduzir a causa dele para ser beatificado, para ser santo" (IrmoJoo Batista).

    "Dona Martha adotava uma metodologia muito especial, buscandodespertar nosso gosto pelo scio-cultural, induzindo-nos a boas einteressantes leituras. Alm disso, levava a aluna a vivenciarsituaes que, provavelmente, mais tarde, teria de enfrentar,realizando visitas maternidade do Santa Casa de Caridode, ao

    Asilo das Meninas, para que compreendessem a realidode domUlldo. Ofreceu-nos no s a teoria; levou-nos a colocar em

    prtica os conhecimentos adquiridos" (Maria de Lourdes Silva, ex-alW1ll,professora aposentada).

    "Era um fim de tarde dos anos 80. Uma sala de aula foi indicadapara que eu, aluna do curso de Pedagogia, fizesse parte do grupo.Havia me matriculado na condio de "pra-quedista" (alunomatriculado num curso e freqi1entando outro em disciplinas afins).Eu era egressa de um curso de Biologia, ingressando no dePedagogia e, como neste no havia mais vagas para a disciplina deFilosofia, poderia optar por um outro espao flSico, outro grupo de

    colegas e outro curso em face de a Universidade permitir essaflexibilidade. Esse fato foi, para minha formao, de extremavalidade. Aproximei-me da sala de aula indicada e fui acolhida poruma figura humana, a profssora Zilah, de estatura pequena, muitosorridente e gil nos seus pensamentos. Conhecedora do serhumano, logo se deu conta que eu era um "passarinho de outroninho" como costumava chamar os que no pertenciam ao curso deFilosofia. Tambm fazia questo de dizer que ningum poderia se"sentir difrente naquele espao de discusso e crescimento ", pois"o saber no tem espao limitado e nem sujeito definido" (Zlia

    Maria Ferrazzo Farenzena, ex-aluna; professora da PUCRS).

    Jovchelovitch, S. & Bauer (op. cito p, 110) nos apresentamalgumas caractersticas das narrativas em relao com a realidade

    propriamente dita e a representao dessa realidade:

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    "A narrativa privilegia a realidade do que experienciado' peloscontadores de histria: a realidade de uma narrativa refere-se aoque reat para o contador de histria.

    As narrativas no copiam a realidade do mundo fora delas: elas

    propem representaeslinterpretaes particulares do mundo.

    As narrativas no esto abertas comprovao e no podem sersimplesmente julgadas como verdadeiras ou falsas: elasexpressam a verdade de um ponto de vista, de uma situaoespecfica no tempo e no espao.

    As narrativas esto sempre inseridas no contexto scio-histrico. Uma voz especfica em uma narrativa somente podeser compreendida em relao a um contexto mais amplo:

    nenhuma narrativa pode ser formulada sem tal sistema dereferentes" .

    o fato de reconhecermos e aceitarmos a reconstrutividade damemria como percepes pessoais da "realidade", que ressignificada aolongo das trajetrias de vida, em virtude de novas vivncias e, mesmo, da

    perspectiva tri-dimensional do tempo narrativo, a que j nos referimos, noelide que, na interpretao das informaes, tambm Ihes imprimamossentido, fundamentadas no todo dos elementos de que dispomos, pela

    triangulao do contedo das narrativas com o de outras fontes:documentos, narrativas de outras pessoas, etc.A interpretao do investigador no desqualifica a

    interpretao/reinterpretao do narrador, que ser respeitada em seu"estabelecimento da verdade", mas representa uma leitura do materialnarrativo, tendo em vista uma "referncia de verdade" para alm dasnarrativas, no esforo de compreender o objeto de estudo em duas

    perspectivas: na perspectiva pessoal/social do narrador - que representa as

    individualiades - na perspectiva da dimenso contextual da qual essasindividualidades so produto/produtoras.

    ABRAHo, M.H.M.B. (org.). Histria e Histrias de Vida - destacadoseducadores fazem a histria da educao rio-grandense. Porto Alegre:EDIPUCRS,2001a.

    7 Destaque dado pelos autores.8Idem

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    ____ oo Professor e o Ciclo de Vida Profissional. ln: ENRICONE, D.Ser Professor. p. 9-23. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001 b.

    ____ oElementos Histrico-sociais - um olhar transversal no contexto

    espao-tmporal das Histrias de Vida. ln: ABRAHO, M.H.M.B. (org.).Histria e Histrias de Vida - Destacados Educadores fazem a Histria daEducao Rio-grandense. p. 253-279. Porto Alegre: EDIPUCRS,200Ic.

    ____ oBrazilian Teacher Education Revealed Through the Life Storiesof Selected Great Educators, Journal of Education for Teaching - JET,England, v. 28. n. I. p. 7-16, april, 2002a.

    ____ o Educao e Destacados Educadores Rio-grandenses:

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    Maria Helena Menna Barreto Abraho Doutora em Cincias Humanas -Educao. Pesquisadora 1 CNPq. Professora Titular na PUCRS. Docente naGraduao e no Programa de Ps-Graduao dessa universidade.

    E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]