historias exemplarmente imperfeitas

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© Fernando Hilário (2012) Histórias Exemplarmente Imperfeitas FERNANDO HILÁRIO

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contos em língua portuguesa / short stories in portuguese language

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Page 1: historias exemplarmente imperfeitas

© Fernando Hilário (2012)

Histórias

Exemplarmente

Imperfeitas

FERNANDO HILÁRIO

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© Fernando Hilário (2012)

Aborrecidas com o anonimato em que viviam há já bastante tempo, pediram-me

estas Histórias que eu lhes arranjasse um novo sítio e uma nova casa para

morar.

Aquiesci à sua vontade. E aqui estão elas, desinibidas, cosmopolitas, de porta

aberta à conversa.

Pela parte que me toca nesta empresa, eu estarei atento e recetivo às coisas que

sobre a sua condição de Histórias Exemplarmente Imperfeitas, certamente se

vão dizer.

Fernando Hilário

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© Fernando Hilário (2012)

Um cesto de pedras

Pedro acordou com a ideia de procurar pedras para com elas fazer um cesto de

fruta. Saiu de casa e seguiu por um caminho que ia dar muito perto do açude do rio da

aldeia.

Aí, nas margens do rio, havia muitas pedras, tantas que o chão era um chão de

pedras. De inverno, não. De inverno, com as águas das chuvas, o rio alagava tudo, não

se distinguia sequer o açude, nem ao certo se sabia onde ficava o sítio das pedras. Mas,

no verão, o rio corria sereno e deixava à vista o chão de pedras.

Durante toda a manhã, Pedro andou a procurar pedras para o seu cesto de fruta.

Mas não encontrou nenhuma pedra que tivesse a forma de uma maçã. Duas pareciam-

lhe laranjas; uma era uma pêra; umas tantas, miudinhas, cerejas e uvas; uma longa como

uma banana; uma era uma romã; como um figo uma e ainda uma outra enrugadinha

como uma noz.

Para o seu cesto de fruta, faltava-lhe uma maçã, mas nenhuma pedra lhe fazia

lembrar uma maçã. E porque a manhã chegava ao fim, Pedro deixou o cesto escondido

entre os salgueiros e regressou a casa para o almoço.

Comeu com as pedras na cabeça, e logo que a mãe o autorizou a sair da mesa,

disparou a caminho do açude do rio, do sítio das pedras, do chão de pedras.

Vinha a temer que o cesto das pedras que já tinha não estivesse nos salgueiros

onde o deixou; se alguém as descobrisse, poderia cobiçá-las, e teria que recomeçar tudo

de novo para juntar um cesto de pedras a que faltava apenas uma maçã. Mas não: o

cesto estava onde ele o deixara.

Agosto ia a meio, quente; e Pedro viera em passo largo, ofegante, ansioso, com o

sol a persegui-lo, o pó do caminho colado ao suor…

Sabia que não devia atirar-se ao rio; comera há pouco tempo, a mãe sempre lhe

dissera que era perigoso, podia até morrer. Mas o açude estava ali, sereno, com as águas

a brilhar como prata… era impossível que alguém pudesse morrer nelas…

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© Fernando Hilário (2012)

Despiu-se. Deixou a roupa sobre o cesto das pedras, entre os salgueiros; trepou

aos rochedos que orlavam as águas do açude, caminhou sobre eles como um deus

branco e nu que nascesse ali, até se quedar num pequeno pináculo.

Quando o seu corpo desenhou nos ares o lanço para o mergulho no espelho das

águas, fora como se num instante nelas penetrasse uma gigantesca águia branca em voo

picado.

Ele era o campeão do açude: de todos os rapazes da aldeia, aquele que mais

longe chegava, vindo a nadar como um peixe debaixo de água.

Já estava no limite, os pulmões exigiam-lhe ar, rebentariam se continuasse a

negar-lhes o ar, mas pressentia que se resistisse mais uns segundos bateria o seu

máximo, o seu recorde.

Mantinha os olhos abertos e a água começava a cegá-los de ardência.

Nadava ainda, submerso, como um fuso a quem puseram asas…

Mas já não resistia mais, os pulmões não aguentavam mais; num golpe

desesperado, libertou então a cabeça das águas, banhando os pulmões de ar. E olhou

para a margem, para o choupo e viu que estava para além dele, coisa de um passo e

meio ou mesmo dois passos.

Vencera a sua marca. Pena que não estivessem ali os outros rapazes para

verem…

Veio a deslizar para a margem, a boiar de costas, e sentou-se no chão, encostado

ao choupo, para secar ao sol, como era o costume das outras vezes… Mas logo percebeu

que estava zonzo, a cabeça solta, instável como um balão; quase não via, como se a

água tivesse penetrado nos olhos; uma náusea tomava-lhe o ventre e o peito; tinha os

pés e os braços lassos, as mãos dormentes.

Percebia que aquilo era a morte que se aproximava, a levá-lo como a uma pena

de ave; a mãe aparecia-lhe numa imagem difusa a dizer-lhe Tem cuidado com o rio,

Pedro. Tem cuidado com o rio… Tem cuidado…

Por uns instantes muito breves, sentiu que ia a caminho de qualquer coisa, que

talvez fosse mesmo a morte, serenamente. E deixou de ver, deixou de sentir, como se

adormecesse.

*

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© Fernando Hilário (2012)

Uma mulher, vestida de branco, luminosa como uma fada, apareceu-lhe e

perguntou O que me dás, se eu te arranjar uma bela maçã?

Dou-te o que me pedires, disse Pedro.

Dás mesmo? prometes? insistiu a mulher que parecia uma fada.

Dou, prometo que te dou.

A mulher trouxe então as mãos de trás das costas e deu-lhe a ver uma pedra que

era uma maçã; e disse Dá-me agora o teu cesto de fruta por troca desta maçã.

Pedro ficou aflito: por uma maçã perdia todo o seu cesto de fruta, onde só uma

maçã faltava.

Percebia que caíra num sonho, donde tinha que sair, e, aflito, acordou.

Dirigiu-se para o cesto de fruta escondido entre os salgueiros. Tirou a roupa que

o tapava e pôs-se a ver os frutos de pedra. E todos vistos, sentiu-se contente com todos

os que tinha; vendo bem, uma das laranjas até lhe parecia uma maçã.

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© Fernando Hilário (2012)

O relógio da montra daquela casa de antiguidades

Finalmente! o homem entrou na casa de antiguidades para comprar o relógio que

um dia, já nem ele sabia há quanto tempo, vira na montra.

Desde esse dia, o homem andou a namorar aquele relógio vezes sem conta. Às

vezes, a montra perdia alguns objetos; outras vezes, ganhava outros, e o desarrumo era,

por vezes, tão grande que se tornava difícil distinguir fosse que objeto fosse no

desarrumo de tantos objetos; mas olha aqui, olha ali, o homem sempre descobria o

relógio da sua admiração.

Punha-se a vê-lo, a mirá-lo… Ora, já o sabia de cor, se fechasse os olhos…

sobre pedestal de pedra branca, o corpo obelisco em pau-santo, dois palmos de altura,

torneado de flores, escaparate de lápis lazúli, com ponteiros em prata, finos como

óbelos, as horas, em letra romana, também em prata, no auge, um leão triunfante sobre

uma águia… sim, se fechasse os olhos, vê-lo-ia na memória tão nítido como ali na

montra.

Entrou, então. E o antiquário disse-lhe tratar-se de um relógio muito antigo e

valioso, mas que seria em vão tentar repará-lo: Para tão antiga máquina, não há peças e

já não há quem as fabrique!

É pena, disse o homem, mas é antigo e belo, vou levá-lo.

E o homem veio pelas ruas da cidade com o relógio embrulhado num papel azul,

listado de vermelho e amarelo, e atado com uma fita verde que o antiquário encontrou

no desarrumo de uma gaveta.

Quando chegou a casa, o homem não trazia os olhos do costume, nem eram as

suas mãos as mesmas. Entusiasmado, com as mãos a tremer do entusiasmo e com os

olhos a brilhar do entusiasmo, mostrou a preciosidade à mulher e disse-lhe,

entusiasmado, quanto custara.

A mulher, de mãos na cabeça, numa berraria tanta e tamanha, lamentava que

fosse seu homem tão tolo ao ponto de pagar fortunas por coisas sem valia nem préstimo.

Por algum tempo, deu o homem ouvidos àquela sua esposa espaventada, como era seu

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timbre, até que, esgotada a paciência, fez de conta que ali falava um asno e foi a fechar-

se na sala.

Do corredor a mulher insultava-o Que era um tonto! Que era um louco! Que era

um tolo aquele seu homem! E ameaçava-o, ameaçava-o não lhe fazer o jantar, nem

sequer isso! E mais isto e mais aquilo. Mas, findo algum tempo, emudeceu.

Instituído o silêncio, o homem colocou sobre a mesa o relógio e sentou-se diante

dele.

Agora também podia afagá-lo, cheirar-lhe o tempo, tatear-lhe a idade, presumir a

vida que fora sua, como chegara até ali, como exatamente chegara à casa de

antiguidades…

Enfim, o homem pensava coisas bonitas e interessantes sobre o relógio.

Pensava, até porque o antiquário apenas lhe dissera tratar-se dum relógio muito

antigo e valioso. E a ele também não lhe ocorrera perguntar… É: o antiquário pouco lhe

disse sobre o relógio e a ele não lhe ocorreu perguntar…

Bem, estava o homem nesta eucaristia, quando lhe pareceu ouvir um tique-

taque…

Ora, podia lá ser! o relógio não trabalhava! o próprio antiquário lhe dissera que

não havia peças para máquina tão antiga, nem quem as soubesse fabricar!

Mas, seria ilusão, fantasia sua ou não, ao homem também lhe pareceu ver o

ponteiro dos minutos a dar um pulo no lápis lazúli do mostrador, e, no tempo que durou

certamente um minuto, o relógio anunciou pim pim pim pim pim pim pim, sete horas,

festivas, pimponas.

E homem achou-se feliz, tão feliz que agradecia e chorava a Deus ter-lhe dado

aquela sua mulher, se é que Deus é tido e achado nestas coisas!

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© Fernando Hilário (2012)

O conto do homem dos gestos brutos e das coisas que estavam no armário

Uma das duas máscara que estavam no armário quis saber que recordações

guardava da vida a outra máscara.

Ora, são tantas as coisas a recordar que difícil me é recordá-las todas, disse.

Não ficou satisfeita a máscara com a resposta e disse Sim, percebo o que me dizes,

mas deve na tua vida haver alguma recordação especial, não?

A outra máscara pensou alguns segundos e pensou ainda mais alguns segundos,

pensou, pensou e disse Há, de facto, algo especial na minha vida, algo que do resto se

destaca, disse, mas, após ter dito o que disse, ficou em silêncio.

Por algum tempo, respeitou a outra máscara o silêncio da outra máscara, mas já

pesado e longo ia o silêncio, cansou-se, e perguntou se não ia ela falar dessa tal

recordação.

Coisas há que não se contam! disse a outra máscara.

Está bem, se não queres contar não contes essa coisa especial, mas conta outra, só

para falarmos um pouco, disse a outra máscara.

Está bem, disse a outra máscara, e da sua vida recordou uma passagem divertida,

tão divertida que as máscaras e todas as outras coisas que ali estavam se riram

perdidamente.

Agora é a tua vez de contares uma coisa especial da tua vida, disse a outra

máscara.

Ora, são tantas as coisas a recordar que difícil me é recordá-las todas, disse.

Não ficou satisfeita a máscara com a resposta e disse Sim, percebo o que me dizes,

mas deve na tua vida haver alguma recordação especial, não?

A outra máscara pensou alguns segundos e pensou ainda mais alguns segundos,

pensou, pensou e disse Há, de facto, algo especial na minha vida, algo que do resto se

destaca, disse, mas, após ter dito o que disse, ficou em silêncio.

Por algum tempo, respeitou a outra máscara o silêncio da outra máscara, mas já

pesado e longo ia o silêncio, cansou-se, e perguntou se não ia ela falar dessa tal

recordação.

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© Fernando Hilário (2012)

Coisas há que não se contam! disse a outra máscara. Está bem, se não queres

contar não contes essa coisa especial, mas conta outra, só para falarmos um pouco, disse a

outra máscara.

Está bem, disse a outra máscara, e da sua vida recordou uma passagem triste, tão

triste que as máscaras e todas as outras coisas que ali estavam choraram perdidamente.

Num instante inesperado, o dono da casa abriu de rompante o armário e num

rompante levou na mão um guarda-chuva e na cabeça um chapéu que há muito não usava;

era de um impermeável tecido o chapéu que o homem só em tempo de chuva usava e nem

sempre. Fechou com estrondo a porta do armário. As coisas desejaram boa sorte ao

guarda-chuva e ao chapéu, e calaram-se em um silêncio que ali era de todo pungente.

Ouviram a porta da rua a fechar-se num estrondo. E em silêncio ali se mantiveram as

coisas. Nem uma palavra nem um sopro de respiração.

Por volta das sete horas da tarde, o homem abriu a porta com estrondo e entrou em

casa. Fechou a porta com estrondo.

Escancarou o armário, lançou o chapéu para o cabide e atirou para o balde dos

guarda-chuvas o guarda-chuva. Fechou com estrondo a porta.

As coisas ficaram a ouvir os estrondos que o homem fazia pela casa; portas a abrir

e a fechar, gavetas, outros armários, utensílios, outras coisas, etc., etc, que aquele homem

era um homem muito bruto de gestos. Até que o guarda-chuva e o chapéu se puseram a

contar como fora o dia lá fora; de muita chuva, de muita agitação, de muito conflito, que

o homem era muito bruto de gestos. Mas fora, em suma, um dia de chuva igual aos dias

do homem. Nada, portanto, de diferente. Nem mesmo o facto de ter torcido e retorcido a

ponteira do guarda-chuva numa sarjeta ou do chapéu ter sido levado pelo vento e lambido

o chão molhado, constituía algo que inédito fosse. Apenas o relato confirmava como era

aquele homem um homem, já se sabia, bruto de gestos.

Não te encostes a mim que estás todo molhado! pedia o chapéu de felpo ao chapéu

de chuva.

E tu também estás um caos, olha no fundo do balde a água que de ti escorre! disse

o guarda-chuva de senhora ao recém-chegado que pingava que nem um pinto.

Também o balde se incomodava com a água em poça, Que raio de humidade esta,

mais ferrugem para a minha já ferrugenta lata!

Dizia a água que não era dela a culpa.

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De facto, podia ter-te o homem sacudido, deixar-te, pelo menos, aberto, para que

mais rapidamente secasses, dizia o guarda-chuva de senhora; é um incómodo ter-te a meu

lado!

Repetia a água que não era dela a culpa. O cabide dizia Claro que não! a culpa é

do homem, que muito bruto é de gestos.

E remeteram-se a um silêncio pungente.

Onze horas seriam da noite.

O homem passava em passos de estrondo de lá para cá e de cá para lá no corredor,

abria e fechava portas e gavetas, mexia nisto e naquilo, numa agitação, num estrondo.

De repente, abriu a porta do armário das coisas; mexe aqui, mexe ali, numa

escolha, não tanto de incerteza mas mais de atrapalhação, até que arranca o fato

impermeável, veste-o logo ali, arranca umas galochas vermelhas, calça-as logo ali, fecha

com estrondo a porta e sai para o quintal, com estrondo batendo a porta das traseiras da

casa.

Formara-se na noite uma noite de tempestade, de frio, de chuva, de vento, de

muito vento e até de trovoada.

Uma rajada de vento pelos ares levara já meia dúzia de telhas do beiral do telhado

das traseiras da casa. A rodos, a chuva entrava pelo telhado destelhado, ensopando o

gesso estuque e inundando a casa pelo teto da cozinha. Afadigava-se o homem na

tentativa de repor as telhas que haviam voado, de estancar a água, que mais parecia um

demoníaco rio, ameaçando os bens e a própria casa destruir-lhe.

As coisas do armário não sabiam exatamente o que estava a acontecer, mas

suspeitavam que algo fosse pela tempestade provocado, pois ouviam como em estrondo

soprava o vento e caía a chuva, como estoiravam em estrondo os trovões, rasgando o céu

sonoro. Em estrondo.

O homem afadigava-se. Conseguira já as telhas substitutas, já conseguira a escada

para subir até ao beiral; o tempo era de risco, a morte espreitava na luz dos raios que

riscavam os ares. As coisas faziam o maior silêncio, para perceber os estrondos que no

exterior se ouviam.

Entretanto, uma língua de água da água que já pelo corredor da casa meandrava,

chegou à porta do armário, meteu-se entre tábuas, elevou-se entre elas, galgou o rodapé e

foi tomando os fundos, silenciosamente. Tudo o que tinha pernas ou tudo o que no chão

estava lamentou a chegada fria daquela água silenciosa.

Mas nada havia a fazer.

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© Fernando Hilário (2012)

A água entrava silenciosa sem qualquer permissão, pouco a pouco ocupava o chão

do armário e ia engrossando o incómodo. Aquela língua de água era um rio demoníaco.

Encavalitado na escada, pelo vento e pela chuva fustigado, fotografado nos

relâmpagos da trovoada, o homem intentava reparar os danos da tempestade. Sabe-se que

eram seus gestos brutos e sabe-se quão difícil é repor as telhas que o vento de um beiral

de casa levanta. Sabe-se como a trovoada persegue a vida. Quem pois o homem visse

iluminado pela luz dos raios, ver-lhe-ia no rosto estampada a máscara da morte. Se, por

um desses raios, fatalmente atingido fosse, seria essa a imagem última da vida, uma

imagem de morte.

Pouco a pouco, foram os estrondos dando lugar a um absoluto silêncio. Pouco a

pouco, foi-se a água do fundo do armário escoando. Aparentemente, tudo à normalidade

das coisas regressava. E as coisas do armário aguardavam que de novo os estrondos dos

gestos brutos do homem ao interior da casa regressassem. Em silêncio, perscrutavam esse

momento.

Mas a normalidade da casa tardava: o que se ouvia era o silêncio da bonança

instalada, não os estrondos que pontificavam a vida do homem. Naquela noite, nenhum

gesto do homem fora audível às coisas do armário. E de nada lhes serviu manterem-se

silenciadas.

Só por volta das nove horas da manhã, à casa regressou um rumor de gente, passos

incertos, alguns quase mudos, vozes indistintas e soluçadas, um conjunto de gestos pouco

audíveis que às coisas pareciam carregados de tensões, de espanto, de constrangimento e

até de dor. O que teria acontecido? O que estava a acontecer?

Após uns passos pausados, quase quedos, que até ali chegaram e ali se quedaram,

um homem e uma mulher abriram a porta do armário.

Ele deixou o impermeável de linóleo amarelo no varão da roupa, as galochas

vermelhas a um canto; ela procurou um fato escuro, uma camisa branca, uma gravata e

um par de sapatos pretos. Com gestos incomuns fecharam a porta do armário. E, com

passos quase quedos, perderam-se pelo corredor fora.

O impermeável e as galochas ficaram metidos num silêncio inerte, como se

estivessem mortos, enquanto as outras coisas do armário julgavam adivinhar a sorte do

homem. Mas nenhuma delas ousou a fala sobre o que acontecera. Pela perda do homem, a

quem lhes parecia, apesar de tudo, poderem seus gestos perdoar, era o silêncio ali

pungente. Mas era sobretudo um silêncio, pungente, pelas coisas que tinham deixado o

armário.

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Durante todo o dia e toda a noite, transformara-se a casa num espaço de gestos

húmidos, quase surdos, quase imóveis. No armário, fora todo esse tempo para medir os

gestos e refletir sobre a sua verdade. Com tal empresa se comprometeram todas as coisas

do armário.

Às dez horas da manhã, com os olhos boiando em lágrimas, uma mulher abriu o

armário e levou o Cristo que alguns anos antes, uns trinta anos, talvez, o homem tirara do

tampo da cómoda do seu quarto e ali viera com gestos brutos, dir-se-ia, com estrondo,

arrecadar.

Até às cinco horas da tarde, nenhuma das coisas do armário achou jeito para falar

as coisas que tinham acontecido. Às cinco horas da tarde, após um rumor, um quase

silêncio, as coisas ouviram a porta da rua fechar-se.

Sem ao certo saber bem porquê, uma máscara contou o que até ali então achara

não dever contar. A outra máscara contou também o que, até então, achara que não devia

contar.

Depois, o armário fechou-se num silêncio, num silêncio que, com todo o

propósito, dir-se-ia, pungente. Fechou-se, até hoje, até este momento.

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© Fernando Hilário (2012)

O sonho de um pedaço de Sol

Havia um homem que tinha uma ideia fixa na cabeça. Achava esse homem que

se conseguisse um pedaço de Sol resolveria todos os problemas da sua vida. Bastava-lhe

um pequeno pedaço. Com um pequeno pedaço de Sol em sua casa, seria a vida um

sorriso eterno.

Mas como conseguir esse pequeno pedaço de Sol?!

Ora, o homem era um engenhocas, tinha um espírito empreendedor e não se

dava vencido por dá-cá-aquela-palha. Pôs-se então a fervilhar ideias.

Por norma, as ideias fervilham na cabeça. Era grande a cabeça do homem,

grande como um alguidar, e no alguidar da cabeça do homem fervilhavam ideias, ideias

de como haveria de chegar ao sol. Sim: como chegar ao Sol que, parecendo ali à mão,

tão longe estava?!

Bem, e chegando perto do Sol, como resistir à sua luz letal? ao seu calor letal? E,

depois, mesmo que conseguisse aproximar-se do Sol, como obter o pedaço da sua

alegria? como trazê-lo de volta para casa? como utilizá-lo? etc., etc.

Para resposta às ideias, o homem pôs-se a construir um foguetão, um engenho

veloz à prova do calor, programado para o vaivém da ida e da volta, e também a

construir um aparelho especial de recolha de Sol e ainda um reservatório especial para

transportar o pedaço de Sol.

Uma vez o foguetão construído, e mais o que se disse, o homem engenhocas

desenhou o fato que o haveria de levar ao contacto com o Sol e retirar-lhe o almejado

pedaço. E uma vez confecionado o fato à prova de tudo, o homem engenhocas criou o

engenho a partir do qual tiraria, então, partido do Sol, instalado na garagem da sua casa,

uma espécie de central de luz e calor para os variadíssimos fins domésticos, utilitários,

mas, também, do bel-prazer.

E uma vez a engenharia toda pronta, programou o homem engenhocas a viagem

para uma manhã de primavera, que nascesse limpa de nuvens, radiosa de Sol, sem ponta

de vento e abençoada por cânticos de aves e chilreio de passarada.

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© Fernando Hilário (2012)

Mas o bom tempo não estava com ele, os dias não nasciam como desejava, pelo

que a almejada viagem para o almejado pedaço de Sol foi-se protelando. Ainda assim,

todas as manhãs, mal o Sol punha o olhar no mundo, o homem engenhocas saltava da

cama e vinha avaliar o tempo. Mas ao tempo sempre faltava uma das condições tidas

como necessárias ao êxito da empresa do homem engenhocas: ou havia vento, ou havia

nuvens, ou o Sol era tímido, ou as aves e os pássaros não estavam dados aos cânticos e

aos chilreios... De resto, essa primavera fora uma primavera de chuva, quando não de

chuva dia-sim-dia-sim, era uma primavera de chuva dia-não-dia-sim. E só quando o

tempo já andava muito metido no verão, é que o homem engenhocas, finalmente,

encontrou uma manhã que, não sendo igual à desejada, fazia lembrar, enfim, uma

radiosa, serena, limpa e musical manhã de primavera.

E disse É hoje! disse, auscultando o estado do tempo. É hoje! disse, convicto.

E vestiu o fato especial, pôs os óculos especiais, calçou as luvas e as botas

especiais. E meteu-se no foguetão, que era especial. Deu uma vista de olhos ao tanque

especial. De repente, lembrou-se que conveniente seria também proceder a uma vistoria

à especial central de luz e calor.

Saiu do foguetão, e foi vistoriar.

Achou tudo nos conformes.

E voltou ao foguetão. Deu volta ao sistema de ignição: o foguetão excitou-se,

excitou-se ainda mais, mais e mais ainda. Excitou-se, mas parecia que não ia sair dali.

Porém, numa nuvem de fogo e fumo, disparou nos ares, direitinho ao almejado Sol.

*

Segundo os cálculos do homem engenhocas, demoraria a viagem sete dias a

chegar ao Sol, sem contar o tempo para a assolagem, recolha e armazenamento do

pedaço de Sol no tanque do foguetão. Um pouco menos, para o regresso, três dias e

meio, que para baixo todos os santos ajudam. Enfim.

O homem engenhocas subia para o Sol maravilhado, maravilhado com tudo e

com ele mesmo, com a paisagem que desfrutava, com o êxito que alcançava. Tão

maravilhado ia que pôs-se a beber uma cerveja e a rilhar umas pevides secas, salgadas e

apimentadas. Meteu um CD da sua música preferida, e lá ia ele a caminho do seu Sol.

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© Fernando Hilário (2012)

Os planetas, as estrelas, as constelações, os cometas, astros e mais astros iam

ficando para trás, pois por eles o foguetão passava que nem uma seta atirada ao Sol, e o

homem engenhocas fervilhava, fervilhava de contentamento e agitação.

Ao fim de três dias, a luz do universo era intensíssima; não fosse a tecnologia do

foguetão, o homem cegaria; o calor era intensíssimo, não fosse a tecnologia do

foguetão, o homem derreteria, dissolver-se-ia, volatilizar-se-ia. A partir desse terceiro

dia, o universo era luz, essa luz intensíssima, o universo era calor, esse calor

intensíssimo.

Mas o homem havia previsto tal universo. Por isso, ele e o seu especial foguetão,

e tudo mais que era especial, venciam a adversidade desse universo. Como uma seta

rumavam para o almejado Sol.

Num calendário cientificamente programado, o homem dormia quando supunha

chegada a noite, e vivia o quotidiano do dia, na medida do possível, como se fosse um

dia igual à vida na Terra: comia, seus excedentes fisiológicos evacuava, lavava-se, lia

alguma coisa, ouvia música, pilotava o foguetão, ou, então, entregava-o aos cuidados do

piloto automático, ocupava o alguidar da cabeça com as suas engenhocarias, etc., etc.

Quando, ao sétimo dia, o homem acordou, percebeu que o foguetão se havia

imobilizado.

Não tinha dúvidas que chegara ao Sol; olhou o painel de instrumentos, o ecrã do

computador de bordo e, lá estava, no desenho do universo, destacada intermitente a

indicação: SOL – FIM DA PARTE PRIMEIRA DA VIAGEM / PONTO 1 DO DESTINO.

A luz intensíssima era prata e o Sol era essa luz prata intensíssima que tomava

conta de tudo. Resistir-lhe-iam os óculos, o fato, tudo mais? O homem engenhocas

estava convicto que sim, e porque convicto estava, apressou-se a continuar o seu sonho

de tomar um pedaço do Sol.

Abriu a porta do foguetão, e deu um passo para a luz, e ficou suspenso na luz.

Procurou um chão firme, mas não o havia. Procurou tatear algo que sólido fosse, mas

não havia algo que sólido fosse.

O homem percebia que o sol era essa luz, onde mergulhara, que aos olhos seria

insuportável, não fossem os óculos que inventara, que ao corpo o calor seria

insuportável, não fosse o fato que inventara. Percebia que aquilo era, sem sombra de

qualquer dúvida, o desejado Sol. E, como se nadasse, esbracejando submerso em luz, o

homem engenhocas voltou a entrar no foguetão.

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© Fernando Hilário (2012)

Com tanta luz, não via as coisas que nele havia, só via a luz que o impedia de

ver. Não fossem os óculos, cegaria. A tatear, a tatear, o homem encontrou finalmente o

aparelho especial com que haveria de recolher um pedaço de Sol.

Voltou a sair do foguetão. Não sabia onde estava. Apenas sabia que estava no

Sol. A tatear ligou o aparelho de recolha de Sol. A um sinal sonoro, o aparelho indicaria

que sugara o Sol correspondente à sua capacidade. Não era muito o Sol que recolheria,

em tanto Sol que havia no Sol para recolher.

Como um uivo no universo, como se ali se reproduzisse o grito de uma dor, o

aparelho produziu o sinal sonoro.

Estranhou o homem engenhocas o sinal do sinal sonoro, pois não fora essa a

acústica engendrada… Mas o homem engenhocas, a tatear, voltou ao foguetão, e a

tatear depositou o Sol sugado no tanque especial de armazenamento. Tampou-o,

consoante as indicações de segurança, lacrou-o com um lacre especial, a tatear, sempre

a tatear. E a tatear fechou a porta do foguetão. E a tatear pôs-se aos comandos do

foguetão.

Conseguiu marcar as coordenadas para a rota do regresso. Conseguiu a ignição:

o foguetão torceu-se, retorceu-se, e, cheio de Sol, iniciou a queda para a Terra, um tanto

ou quanto desenfreada, diga-se.

Ao fim de um dia e meio, a luz dentro e fora do foguetão já deixava ver. A única

luz intensíssima do Sol e o seu calor intensíssimo estariam apenas no tanque,

especialmente vedado, onde o homem guardara o pedaço de Sol.

Novos desafios se apresentavam no horizonte do homem engenhocas: a

aterragem, a utilização do Sol para os variados fins domésticos e para as coisas do bel-

prazer. Tudo havia convenientemente fervilhado no alguidar que era a sua cabeça de

homem engenhocas, tudo iria ser como o previsto, pensava ele.

Entretanto, vertiginosamente, o foguetão vinha rasgando o universo, para trás

deixando planetas, estrelas, constelações, cometas, astros e mais astros. E o homem

engenhocas, para dar largas à sua satisfação, pôs-se a beber uma cerveja e a rilhar umas

pevides secas, salgadas e apimentadas. Meteu um CD da sua música preferida, e lá

vinha ele a caminho de casa.

Decorridos três dias, o homem avistou a Terra, pequenina como uma tangerina

de casca manchada e enrugada. Nunca tinha percebido que era assim a Terra. Também

não pensava vê-la tão cedo. Sentia que o foguetão vinha mais depressa do que os

cálculos que fizera. Ora, tanto melhor, pensava ele, quanto mais depressa chegar, mais

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depressa vou o meu sonho finalizar. E no contentamento pôs-se a beber outra cerveja.

Mas não rilhou pevides, pois já não as havia.

À medida que descia para a Terra, a velocidade do foguetão aumentava. Era uma

velocidade desenfreada. Rapidamente a terra passava de tangerina de casca manchada e

enrugada a laranja manchada e enrugada. O homem, algo apreensivo, consultava o

painel de instrumentos, o ecrã do computador de bordo do seu foguetão, que era suposto

ser especial. Mas, números, letras, palavras, gráficos, ponteiros, pisca-piscas de cores,

tudo se agitava numa agitação inimaginada pelo homem, imprevista.

Cada vez mais a velocidade aumentava, a agitação era inimaginável, o homem

engenhocas já não conseguia ver com precisão as informações do computador de bordo,

do painel de instrumentos. Entretanto, soltavam-se alguns ponteiros, as cores que

piscavam imobilizavam-se numa única cor, letras e palavras, números e gráficos

eclipsavam-se, deixando mostradores e painéis num branco de agitação; alguns

aparelhos explodiam como pequenos vulcões, projetando lâmpadas, pequenas peças,

fios, línguas de fogo, rastos de fumo pelo interior do foguetão; o homem engenhocas

perdia aflito o controlo da situação, a engenharia convertera-se numa montra de

destruição, o caos instalara-se, a crise estava à vista.

O foguetão especial era já um monte de sucata que caía desenfreado para a Terra

toranja de casca manchada e enrugada.

Era a vertigem.

Tempo para a cabeça alguidar do homem engenhocas fervilhar perguntas de

inquietação: O que falhara? O que fazer? Como impedir que o seu sonho se

esborrachasse?

Olhou o tanque especial de armazenamento do Sol.

Parecia-lhe intacto.

Mas, certamente, não resistiria ao impacto do choque. Rebentaria e perder-se-ia

o seu almejado pedaço de Sol. E esbanjar-se-ia pela Terra, sem que ninguém lhe

soubesse dar o almejado destino, pois que ele, homem engenhocas, também morreria no

impacto vertiginoso do choque contra a Terra, irremediavelmente.

O que falhara? Onde falhara? O que faltou ao sonho?

Na cabeça alguidar do homem engenhocas não despontavam as respostas para a

vertigem das perguntas. A Terra já não era uma toranja com casca manchada e

enrugada: a Terra era uma mancha de terra, um chão de terra onde iminente e breve se

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despenhariam as ideias do homem engenhocas, o foguetão especial com um pedaço de

Sol...

Mas, incompreensivelmente, ou talvez não, Quem sabe? quem o poderá dizer?, o

sistema de aterragem funcionou. Como uma pena de ave de um voo perdida, o foguetão,

suave e serenamente, poisou no quintal do homem engenhocas, diante da garagem,

exatamente como houvera sido previsto.

Tonto da vertigem, o homem engenhocas reganhou ânimo e apressou-se a deixar

o foguetão, enfim, a prosseguir no seu sonho de um pedaço de Sol.

Havia agora que ligar o tanque especial de armazenamento à especial central de

luz e calor que então traria à sua vida um sorriso eterno.

Entretanto, dava o foguetão sinais de se reduzir a cinzas, que um pó ia-se

formando à superfície, como se toda a sua engenharia sofresse de um achaque cutâneo.

Temeu o homem engenhocas que a patologia fosse extensiva ao tanque especial

onde guardara o seu pedaço de Sol.

Temeu, mas não havia que temer, estava impecável o tanque especial. Mas,

antes que o foguetão, um já monte de sucata, num monte de cinzas se transformasse,

apressou-se a retirá-lo. Retirou-o. No mesmo instante, o foguetão especial do homem

engenhocas transformou-se num monte de cinzas.

Tanto melhor, disse o homem, assim só tenho que remover as cinzas; tarefa que

deixou para mais tarde, pois no alguidar da sua cabeça fervilhava agora a ideia de ligar

o tanque de Sol à central especial de luz e calor.

Tudo fora calculado: um tubo especial, onde se instalara sofisticado sistema de

válvulas especiais, conduziria o Sol armazenado no tanque especial à especialíssima

central de calor e luz.

E procedeu com o cuidado, com a destreza e a mestria de um verdadeiro homem

engenhocas.

Tudo, enfim, estava no exacto ponto de testar o derradeiro objetivo do seu

sonho.

O momento merecia brinde. Foi buscar uma cerveja. Traria também umas

pevides, que rilharia, a ver o seu sonho a funcionar, mas não as achou.

Abertas as válvulas especiais, apenas faltava premir o botão do sistema especial

de ignição, que, claro!, também era especial.

Bebeu um gole de cerveja.

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Antes de levar o dedo ao botão especial, bebeu outro, e ainda outro, em três

golos ansiosos despachou a cerveja.

A vertigem era muita.

A sua vida de um sorriso eterno ia, ali, naquele momento especial, fruto do Sol

do seu sonho, nascer.

Encontrava-se, agora, à distância, apenas, do ato, singelo, de premir aquele botão

que, simbolicamente, escolhera de cor verde, do verde das ervas que na primavera verde

se estende pelos verdes campos…, enfim, enfim...

Sem mais aquelas, premiu o botão e, de imediato, clicou o interrutor da luz da

garagem, e, de imediato, correu para a casa de banho a abrir uma torneira de água.

Esperou algum tempo que a fria água quente se tornasse.

Mas nunca mais a água de calor dava sinais; de resto, também não se abrira em

luz a lâmpada da garagem.

Mesmo assim, correu pela casa toda a acender lâmpadas, a abrir torneiras de

água, a ligar aparelhos e mais aparelhos domésticos, a ligar a aparelhagem que lhe daria

a ouvir em CD a sua música preferida…

Mas nada acontecia como houvera sido calculado, previsto.

E no alguidar que era a sua cabeça de homem engenhocas fervilhavam as

perguntas O que falhara?! Onde falhara?! O que faltara ao sonho?

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A fascinante história do escritor que escrevia sem escrever

Havia um escritor que há muito tempo não conseguia escrever. Enfim, caíra

numa série demorada de brancas, a veia esvaziara-se-lhe, entrara em longo jejum,

chegara mesmo a convencer-se de que não voltaria a escrever. Mas, um belo dia, teve

um vislumbre de inspiração.

Correu então para a secretária, apanhou um caderno, pegou na caneta e pôs-se a

escrever.

Não propriamente; isto é, tinha o escritor à sua frente o papel, a caneta na mão,

estava sentado à secretária como se estivesse a escrever, de escrita fazia gestos, mas, em

verdade, não escrevia: o escritor fazia de conta que escrevia, mas no papel nada

aparecia.

Ora, eu, que andava por perto, a tudo assistia e no papel não via nem palavra

nem letra que se visse, perguntei ao escritor Porque fazes de conta que escreves se nada

não escreves que se veja?

Interrompeu o escritor, aparentemente, a sua escrita aparente, tampou a velha

caneta, meteu os olhos nos meus, fincou-se nos cotovelos, sempre com os olhos metidos

nos meus, e disse Ora aí é que está o fantástico da questão!

E como depois de me ter isto dito, mais não me disse, de cotovelos ficando

metidos na secretária e de olhos nos meus fincados, perguntei-lhe Qual é o fantástico da

questão?

O fantástico da questão, disse o escritor, com os olhos metidos nos meus e os

cotovelos na secretária, é escrever um livro, onde todos possam ler, sem que haja

palavras para ler; ou seja, eu escrevo o livro que tenho na ideia, mas, visivelmente, o

livro não aparece no papel, ainda que ele esteja lá e o leitor possa aí ler esse livro, ou

outro que queira.

Está bem, disse eu, e que livro estás a escrever? perguntei.

O escritor, que era magro, muito magro, pôs o tronco do corpo como uma tábua

encostado às costas da cadeira, pôs os pés juntinhos um ao lado do outro, pôs as mãos

abertas sobre as páginas do caderno, que estavam abertas como costumam estar as

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páginas de um caderno aberto, pôs os olhos a olharem para coisa nenhuma, pelo menos

aparentemente, e, com convicção que também se diria aparente, disse Um conto, um

longo conto sobre a complexidade e a singeleza.

A complexidade e a singeleza?! repeti, numa surpreendida interrogação; vá lá

saber-se porquê, assim tal e qual: A complexidade e a singeleza?!

Sim, de tudo e de nada, disse o escritor, Dar-lhe-ei o título que me ocorrer, mas,

apesar de ser um longo conto, talvez não o estruture em capítulos.

*

Vi, meses depois, o escritor a reler o seu livro, exausto. E perguntei-lhe

Acabaste?!

Acabei, respondeu ele; estou apenas a fazer umas pequenas alterações à forma, a

retocar um ou outro pormenor de estilo; a ver se ainda esta manhã o levo ao editor.

Ao editor?! perguntei eu...

*

História fascinante: escrever um livro sem escrever o livro!

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História do pintor que pintava gotas de água

Havia um pintor que queria muito pintar gotas de água. E pintava-as. Pintava-as

de azul, de rosa, de verde, de vermelho... Mas logo as gotas de água se desfaziam em

manchas de tinta. E o pintor ficava triste.

Muito triste, porque o que o pintor queria era pintar uma gota de água que se

mantivesse em gota de água. E bastava-lhe conseguir uma, uma só que fosse, para se

sentir um pintor feliz.

Para tanto, pensou que com um mais fino e mais macio pincel, talvez

conseguisse pintar uma gota de água. Teria que ser um pincel muito fino, muito

macio…

De entre os muitos pincéis que tinha, acabou por achar um que era muito, muito

delicado.

Molhou-o então na tinta e, cuidadosamente, aproximou-o de uma gota de água;

porém, logo a gota se desfez numa mancha de tinta. Sim: a gota desfez-se numa mancha

de tinta.

E o pintor ficou ainda mais triste e mais infeliz.

Mais uma vez tentou, e outra, e mais outra, muitas vezes, até que o pintor

percebeu que as gotas de água engordam com a tinta, por pouca que seja, e rebentam.

São as gotas de água tão delicadas que não se deixam pintar!

Gotas coloridas?… Só se as imaginarmos! concluía o pintor.

*

Um dia, o pintor morreu, do modo como morrem todos os pintores. E os media

noticiaram a morte, meteram a vida num resumo, mostraram o atelier e a obra do pintor.

Alguém disse que a morte do pintor representava uma perda irreparável para o

país, para o mundo, para a humanidade.

Também falou o crítico. Das coisas que disse, algumas só ele terá entendido.

Falou das pequenas formas circulares da obra do pintor, coloridas, que salpicam as

aguarelas, quase sempre azuis, muitas vezes, brancas, e de uma transparente obsessão.

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O conto do homem que regressou ao país ausente

Um homem regressou ao país ausente. Chegou à fronteira e a fronteira só tinha

um lado. Olhou em frente: o país não estava lá. Olhou em frente para mais longe e não

via o país. Olhou à direita e à esquerda, e nada; não estava o país em sítio nenhum.

Viu depois um pastor que por ali andava, nem para cá nem para lá, e perguntou-

lhe Onde está o país que era suposto estar ali?

Que país?! admirou-se o pastor, não há ali país nenhum, nunca houve!

Isso é que houve! disse o homem regressado, tanto houve que foi dele que eu

parti um dia; parti dele para este!

Não estará enganado? disse o pastor, não terá sido doutro país que o senhor

partiu?

Não, não foi; foi desse país que eu um dia parti; tenho disso a certeza, disse o

homem regressado.

Como pode ter a certeza, se esse tal país não está aqui para confirmar?! admirou-

se o pastor.

Olhe, mesmo assim, tenho a certeza, disse o homem regressado ao país ausente.

E sentou-se a olhar para onde deveria estar o seu país.

Passaram algumas horas. Nem muitas nem poucas. Algumas horas. O pastor

continuava por ali com as cabras e as ovelhas, nem para cá nem para lá. E o homem

perguntou-lhe Por que não leva o gado a pastar no outro país? assim, talvez eu pudesse

ver o meu país ausente!

Mas que país ausente?! não vê que não há outro país! disse o pastor, o país é este

onde estamos, onde eu pasto o gado e onde o senhor está sentado! concluiu o pastor

com alguma impaciência. Nem muita nem pouca. Com alguma impaciência.

O homem guardou um silêncio. Nem muito nem pouco. Apenas um silêncio. E

perguntou Quer então dizer que eu estou de costas para o Mundo, logo agora que

pensava ter chegado ao meu país?!

O pastor guardou um silêncio. Nem muito nem pouco. Apenas um silêncio. E

disse Bem, essa pode ser uma maneira de ver as coisas, pode ser!

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A estranha história escrita de um modo estranho por um estranho escritor

Naquele dia, o escritor sentia-se com veia para uma história; uma história triste,

talvez sim, talvez uma história triste; era um dia de chuva, era novembro, um dia de

chuva de novembro, e a namorada do escritor já telefonara a dizer que não ia para fim

de semana: uns assuntos a tratar e uma, ainda que fosse pequena, dor de cabeça.

O escritor tinha o hábito de preceder a escrita com uns instantes de música: não

lhe saíam as palavras sem o propedêutico musical.

Também só na cama conseguia escrever. Para tanto, havia no quarto tudo o que

necessário era àquela vida de escritor: frigorífico, fogão, micro-ondas, computador com

net, iPod, iPad, Blu-ray Disc, wc completo, etc., etc., e até televisão… com HD e 3D,

cabos Hdmi…

A secretária servia ao escritor para passar às teclas do computador os textos que

escrevia na cama; já se sabe: só escrevia na cama. Na parede em frente, uma janela

oferecia a paisagem da casa de campo; a janela era um quadro na parede do quarto.

Ainda não se disse: o escritor só escrevia na casa de campo. Não se disse, mas

era fácil de perceber.

Desdobravam-se desde a janela as serras num infindo que só se detinha no mar;

mas o mar, alongado fio de prata, só em dias de um certo clima se via, e só uma vez em

sete anos, há tantos quantos o escritor aquela casa tinha, ele viu o mar.

Fora um momento de espanto, uma tamanha alegria, um quadro belo, tão belo

que inundou os olhos do escritor e o espírito; um dia bem diferente desse em que

chovia, não vinha a sua namorada para fim de semana e achava-se ele, o escritor, com

veia para uma história, história que haveria de ser triste, sim, talvez, uma história triste.

Entretanto, o escritor ouvia música, ainda ouvia música, uma suave música,

propedêutica, melancólica, triste.

Não ouvia da cama; nunca o escritor ouvia música na cama: ouvia a música no

sofá orelhudo, colocado sobre o lado esquerdo da grande janela toda em vidro que

oferecia a paisagem que era o quadro na parede, e foi assim que, nesse dia mais distante,

viu brilhar o fio de prata alongado que era o mar.

Mas o escritor nem pensava nisso: nesse dia de novembro, preparava-se, sim,

preparava-se para escrever a sua história, que seria triste.

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Para a história, o escritor precisava de personagens; se as tivesse, arranjaria

tempo e espaço para a história, e fácil ser-lhe-ia fabricar uma intriga, mas, sem

personagens, nada feito, não haveria história.

Pensou meter porcos na história. Sabia que os porcos não são de todo inéditos

nas histórias, mas não se preocupava com isso, desde que não fosse plágio; e tinha até

uma especial simpatia por porcos; Têm os porcos um espaço muito próprio, um tempo

aberto, e é fácil pô-los em acção.

Não pretendia ser inédito, mas, mesmo assim, o melhor seria procurar outras

personagens que não fossem porcos, apesar da simpatia especial que nutria por porcos.

Veio então à memória do escritor uma antiga experiência em que eram moscas

as personagens, um dos seus primeiros romances, que um professor universitário lhe

disse ter muito de Kafka; foi ler Kafka, que nunca lera, e tinha, tinha Kafka, sim senhor.

Ficou triste e admirado, mais admirado talvez do que triste, ou não, já não se lembrava

bem; o certo é que pôs o livro na gaveta onde ficou mais de vinte anos, talvez vinte e

um anos. Findo esse tempo, o escritor meteu o livro, folha por folha, numa lareira,

riscou um fósforo e pegou-lhe fogo.

*

Bem, mas o escritor que nesse dia se sentia com veia para uma história; uma

história triste, talvez sim, talvez uma história triste, que escrevia na casa de campo, cuja

namorada não viera passar o fim de semana por causa duma, pequena que fosse, dor de

cabeça, que antes da escrita ouvia música, que gostava de porcos para personagens de

histórias, que viu um dia o mar, um fio de prata distante, etc., etc., etc, escreveu a

história que se segue.

Provavelmente iria aborrecer-se, ficaria chata, e o Ricardo não merecia. Que

ideia tê-lo convidado! e logo para um fim de semana! mas seria deselegante anular o

convite, e, ao certo, também não saberia como fazê-lo.

Recordava que fora à hora do almoço. Talvez porque ouviu os colegas a falar

dos programas de fim de semana. Talvez porque o Ricardo dissera Eu não tenho para

onde ir, o mais certo é ficar em casa. E à saída do refeitório saiu-lhe Se quiser, pode

passar o fim de semana comigo.

Mas nem agora que refletia sobre isso, conseguia justificar o convite que fez.

Recordava o ar dele: embaraçado; mas também um olhar que lhe desconhecia...

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Não, ele não entendeu isso! ou será que sim?! Não, Ricardo, eu não quero ir

consigo para a cama! convidei-o apenas por uma questão de solidariedade; somos

colegas há vinte anos; sei que é um homem solteiro, um amigo que eu admiro pela

correção com que sempre me tratou; não pense que pelo facto de estar divorciada outra

intenção tive a não ser a de estarmos juntos numa relação de amizade e de

solidariedade! que fique bem claro!

Eram três horas da tarde. Ricardo ficara de aparecer por volta das cinco.

Desceriam para um passeio pelo ar madraço da cidade ao sábado, um café, um museu,

uma exposição, talvez um filme, e regressariam a casa depois do jantar num restaurante.

Já preparara o quarto para ele. Escolhera aquele por ter quarto de banho. Mas era o

quarto mais próximo, contíguo ao seu…

Talvez fosse melhor mudar de quarto, para o do sótão, talvez; Esta proximidade

não será muito indicada, é audível qualquer ruído, um suspiro, um movimento na cama;

Não, Ricardo, está a ser indelicado; está a abusar da minha hospitalidade; como lhe

disse, convidei-o com a intenção apenas de podermos partilhar a nossa situação de

pessoas sós; você, porque é solteiro, e eu porque sou divorciada! não, não vejo razão

para querer entrar no meu quarto; peço-lhe que se retire! não insista, peço-lhe! a

admiração e o interesse de que me fala... desculpe, Ricardo, mas nunca me apercebi de

tal! você, ao contrário do que diz, nunca se sentiu atraído por mim; de resto, nem eu por

si! estar sozinho numa casa com uma mulher é que o leva a sentir isso e a achar

coragem para tomar a atitude que está a tomar; com certeza, Ricardo, com certeza que

não temos nada a perder, eu sei que somos livres, mas, fazer sexo, para mim, é mais do

que um mero capricho ou um simples apelo; se fizesse sexo consigo, teria de haver uma

atração forte, algo que justificasse o ato em si mesmo; e, apesar de o admirar, não sinto

nada que justifique fazer sexo consigo; não insista, peço-lhe! por amor de Deus! não

pode ser! o Ricardo está a ficar fora de si; nunca se apaixonou por nenhuma mulher,

porque sempre esteve apaixonado por mim?! ó Ricardo, como é que eu posso acreditar

numa coisa dessas?! isso já não se usa! o Ricardo diz isso apenas para justificar a sua

atitude de vir bater à porta do meu quarto! só por isso! mas eu compreendo; isso não

tem importância; pronto, pensou que eu também estaria interessada; aliás, a culpa, em

último caso, é minha: fui eu que o convidei a passar um fim de semana em minha casa;

mas vamos esquecer isso; vamos até à sala e tomamos um chá; gosta de chá?

Chá?!

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Não tinha chá; gastara a última porção na noite anterior; horrível, levantara-se

com insónias horríveis; uma noite de insónias, chá e cigarros.

O Ricardo não fuma!? nunca fumou!? detesta os ambientes de tabaco, o cheiro

do tabaco, o hálito das pessoas que fumam, é repelente, seria incapaz de beijar uma

mulher que fuma! que exagero! como se pode ser assim tão fundamentalista?! é um

exagero! eu faço a minha higiene, trato do meu corpo; da maneira como fala, julga-me

impregnada de tabaco, que todos os orifícios do meu corpo exalam tabaco, que da

minha vagina sai fumo de tabaco, que toda eu sou nicotina, um fedor de nicotina! como

é possível pensar assim?! julguei que lhe seria agradável passar um fim de semana

comigo, mas enganei-me: o Ricardo não se sente atraído por mulheres; só assim se

explica esta questão do tabaco; não é por eu fumar que o Ricardo não faz amor comigo,

é por se sentir inibido, julga que não vai ter prazer, que não vai ser capaz; confesse! por

amor de Deus, Ricardo! nunca ninguém o viu com uma mulher! eu sou especial?! ora,

isso são tretas! como assim? comigo é diferente?! consideração! respeito! que respeito,

Ricardo?! que consideração?! o Ricardo só tinha que declinar o convite, poupar-me

desta humilhação; mas eu é que fui parva; no fundo, nem eu sei porque fui convidá-lo!

desculpe, o Ricardo vê outro motivo que justifique a sua presença na minha casa? acha

que isto é um hotel? desculpe: ou se assume como homem, ou sai imediatamente da

minha casa! desculpe, eu abomino paneleiros; se o Ricardo é paneleiro, assuma-se como

paneleiro; se o é, nunca devia ter aceitado o meu convite! o Ricardo já olhou bem para

mim? ora olhe! quantas mulheres têm um corpo assim? olhe estes seios! veja! ora toque

e sinta como são rijos; isto não cai! olhe as minhas pernas! vê varizes? não vê, pois

não?! olhe estas coxas! vê alguma mancha na pele? quantas mulheres têm umas pernas

assim? ora passe as mãos aqui! sinta a maciez da pele! sinta! então? isto é corpo de uma

mulher de quarenta anos? claro que não é! vê banhas? pneus? celulite? claro que não vê!

veja esta barriga! parece uma tábua; venha cá! meta-se nas minhas coxas! sinta o odor

do meu corpo! sinta o calor! toque-me! acaricie-me! sinta a pele! parece veludo, não

parece? sinta agora o calor que vem das minhas entranhas, o cheiro quente do meu sexo;

vá, aproxime-se, cheire! é bom não é? é claro que é! é um corpo de desejo; é o desejo; é,

não é? sacie o desejo, Ricardo! dê mais corpo ao desejo; faça sexo comigo, Ricardo!

isso; assim Ricardo! que bom, Ricardo! que bom! estou a ter, Ricardo; venha-se

comigo, Ricardo! ah Ricardo! Ricardo!

*

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Nunca lhe perdoarei, Ricardo! aproveitar-se da minha fragilidade de mulher! eu

que por amizade, por solidariedade o convidei a passar um fim de semana em minha

casa! não devia ter confiado em si; fui ingénua; o Ricardo sempre teve essa intenção; eu

estava longe de pensar que fosse um homem desse tipo; é bem verdade que quem vê

caras não vê corações; fica-me de emenda! nunca mais me dirija a palavra! agradeço-lhe

que faça de conta que não me conhece; no escritório, só o que for estritamente

profissional; não quero acreditar que isto me possa ter acontecido; o Ricardo por quem

me toma?! pensa que eu sou da laia daquelas geringonças lá do escritório?! está muito

enganado! eu sou uma mulher de respeito; que fique bem claro! eu sou uma mulher

respeitável; não há nada que me possa ser apontado! saia! saia da minha vista! ponha-se

fora da minha casa! não há mas nem meio mas! o Ricardo aproveitou-se da situação;

claro, sou divorciada... e o Ricardo tirou partido disso; nunca mais lhe perdoo; saia da

minha casa, já! não me interessa que sejam quatro horas da manhã; o quê?! eu é que

provoquei?! olha o atrevido! é muito atrevido! tem cá uma lata! ora faça o favor de sair!

saia! saia imediatamente! desapareça! boa-noite!

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O conto do homem que lia em voz alta o jornal na esplanada

O homem de cabelos à Jesus, de barbas a roçar o peito, sobrancelhas de tapa

olhos, abriu o jornal na esplanada e atirou-se aos textos lendo-os como se quisesse que os

outros o ouvissem a ler. De imediato chamou a atenção dos que mais próximos dele

estavam, e uma criança segredou ao pai que ali estava aquele homem em voz alta a ler.

Mas porque o pai grandes ouvidos não lhe deu, a criança ganhou na cadeira a

anterior posição e na atenção ficou curiosa da leitura do homem que lia qualquer coisa

que divertida haveria de ser, pois que ria enquanto lia e lia enquanto ria e se agitavam as

suas sobrancelhas e suas barbas buliam também.

Também a criança ria e o pai e também a mãe do rir e do ler do homem queria que

vissem como lia como ria como ria como lia; mas porque o pai e a mãe grandes ouvidos

lhe não davam, ganhava ela na cadeira a anterior posição e na atenção ficava curiosa da

leitura do homem que lia e da coisa qualquer que divertida haveria de ser, pois que ria

enquanto lia e lia enquanto ria e se agitavam as suas sobrancelhas e suas barbas buliam

também.

A criança ria do homem que lia e que ria, ria das sobrancelhas que riam, ria das

barbas que também riam; queria que os pais rissem também, mas os pais da criança não

riam do homem, nem dela que também ria.

Da muita gente que na esplanada havia e que via como o homem ria e como a

criança ria, ninguém ria. Isso mesmo a criança notou, e, porque ninguém a rir a via,

levantou-se e foi sentar-se à mesa do homem cujas barbas e sobrancelhas riam, riam,

riam.

Levantou-se num repente imediato o pai da criança atrás dela e a mãe pôs-se de

pé, vai-que-não-vai, mas ficou aflita na mesa, que a filha estava à mesa daquele homem

que em voz alta lia na esplanada, pois que o homem ria enquanto lia e tudo aquilo ao pai e

à mãe estranho lhes parecia.

O pai puxou por um braço a filha; puxou, mas a filha ria e dali não bulia, enquanto

o homem lia e ria para ela que ria de ver como lia, como riam as sobrancelhas do homem,

como ria a barba, como bulia a mesa, como bulia a colher, como bulia a chávena de café,

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como bulia a luz que a criança via nos dentes entre os pelos das barbas a rir, como riam os

olhos no brilho que as sobrancelhas não escondiam.

Puxou o braço o pai outra vez, mais uma vez e outra vez; a mãe gritava para que

sua filha à mesa regressasse, que o homem era louco, não o incomodasse! mas o homem

lia e ria e a criança ria, toda ela ria, toda ela bulia, o mundo inteiro bulia. Mas a esplanada

não ria; o pai à filha puxava o braço, a mãe toda ela bulia, a criança, já se sabe, ria, o

homem, também já se sabe, ria, o mundo inteiro ria.

Mas a esplanada não ria, a esplanada apenas via o homem que o braço à filha

puxava, a mãe que gritava e bulia, enquanto o homem e a criança riam.

À aflição do pai e da mãe outros pais e outras mães acudiam, ameaçavam o

homem esmurrar, ao pontapé da esplanada corrê-lo, quebrar-lhe os dentes, pôr-lhe um

olho à Camões.

Foi então que o homem deixou de ler. E porque deixou de ler deixou de rir. E a

criança deixou de rir.

Mas nesse instante tudo ficou numa estátua. Tudo como nesse instante estava

assim ficou numa estátua. Quem veio em ameaça assim ficou. Quem não veio, ficou

também. A mãe da criança no vai-que-não-vai da aflição. A mão do pai parada a puxar o

braço da criança.

Só a luz, que nos olhos e nos dentes do homem bulia, ficou a rir, a rir à criança

que em silêncio também ria e em segredo bulia. O mundo inteiro ria, e bulia.

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© Fernando Hilário (2012)

A história do homem que não se dava com ar condicionado

Um homem foi parar ao inferno. O porteiro encaminhou-o para a Secção de

Registos; registou-se. Depois, uns cicerones da área das relações públicas levaram-no a

visitar o inferno, a conhecer a vida, como era, o que podia fazer.

O homem estava admirado, tão admirado que até perguntou se ali em vez do

inferno não era o céu. Quiseram saber por que se admirava.

Porque é tudo tão agradável! tão simpático! até parece o céu!

Mas o senhor conhece o céu? perguntaram-lhe.

Não, não conheço!

A que se deve, então, a dúvida?

O homem calou-se; enganaram-no a vida toda, sempre lhe disseram que o

inferno era o fogo ardente, onde sofreria, e, afinal, parecia a vida no inferno um sonho!

Saiba que, disse um dos cicerones, a nossa preocupação é que todos se sintam

bem no inferno!

Mas diz-se tão mal do inferno! disse o homem.

Quem diz? perguntou outro cicerone.

Toda a gente.

Quem?

A gente da Terra.

Ah, bom, isso sim, essa gente diz mal, mas como pode constatar não

corresponde à verdade.

Pelos vistos, não, concluiu o homem, e continuou: Mas porque será que dizem

mal, se o inferno não é nada do que dizem?!

É marketing, disse outro cicerone, o céu não consegue oferecer as nossas

condições, por isso, dizem mal; em contrapartida, nunca ninguém nos ouviu dizer mal

do céu; a nossa política é simples: deixamos que os outros falem por nós...

Iam andando; os cicerones mostravam o inferno, falavam dele e da vida. O

homem estava admirado. Parecia que nada faltava, tudo tinha um ar pós-moderno, nada

minimalista, nem sequer espartano, sim de shopping luxuoso; as pessoas que se

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© Fernando Hilário (2012)

cruzavam com eles nos corredores refulgiam alegria, boa disposição, contentamento; os

rostos reluziam, os olhares faiscavam…

Na zona da restauração, pararam; coisa digna de se ver, um restaurante estava a

abarrotar de gente; tinha paredes e telhados de vidro; era o Zé do Pipo. O homem pôs-se

a ler a ementa exposta à entrada em retábulo debruado com uma parreira em baixo-

relevo:

petiscos

bucho chispe orelha de porco fígado de cebolada coração frito torresmos bacalhau

frito pataniscas de bacalhau pastéis de bacalhau caracóis à lisbonense chouriço assado

na brasa favas estufadas com chouriço, os cicerones liam com ele, peixinhos da horta

enguias de barrica filetes de sardinha sardinha frita sardinha de escabeche sardinha

assada na brasa caparau frito pratinhos de moelas rissóis de vitela e de camarão

chamuças croquetes temos broa de Avintes (…)

Passou ao peixe:

peixe

cabeça de pescada cozida com bom colarinho pescada cozida com batata e feijão verde

pescada frita com batata frita e arroz seco ou malandro filetes de tamboril com arroz do

mesmo filetes de polvo com arroz do mesmo polvo à lagareiro sável frito há

mílharas!, os cicerones seguiam-no na leitura, sável de escabeche chicharro assado na

brasa com molho verde espetada de lulas com gambas bacalhau cozido com todos

bacalhau cozido com grão meia desfeita com grão-de-bico empadão de bacalhau

bacalhau à Zé do Pipo bacalhau assado no forno com grelos bacalhau com natas

bacalhau com broa bacalhau de segredo bacalhau à espanhola bacalhau à Gomes de Sá

lombinhos de bacalhau frito com arroz malandro de feijão vermelho ou de grelos arroz

de bacalhau com ovos escalfados bacalhau à demo bacalhau nunca visto cavala cozida

peixe-espada frito fanecas fritas raia cozida cherne à Durão só por encomenda robalo

ao sal linguado assado na brasa com molho de manteiga bife de atum chocos com ou

sem tinta arroz de lampreia ou à bordalesa (…)

Passou à carne:

carne

pezinhos de coentrada feijoada à transmontana tripas à moda do Porto mãozinha de

vitela com feijão branco posta mirandesa, dois cicerones desinteressaram-se da leitura e

conversavam ao lado, com batatas a murro vitela assada carne à jardineira lombo, os

restantes cicerones continuavam a segui-lo na leitura, de porco assado com castanhas

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© Fernando Hilário (2012)

espetada de porco preto língua estufada com ervilhas estufado de línguas de cabrito à

Serra das Meadas arroz de sarrabulho rojões à moda do Minho frango no forno à

moda de Baltar arroz de pica no chão arroz de pato à antiga portuguesa chanfana

leitão da Bairrada coelho à caçador coelho assado na brasa coelho recheado

entrecosto na brasa barriguinhas na brasa cabidela de miúdos de leitão (…)

Passou aos mariscos:

mariscos

percebes vieiras amêijoas à Bolhão Pato camarão da costa gamba média, os dois

cicerones regressaram à leitura, e grande lagostins tigres grelhados maionese de

lagosta lagosta suada, os restantes cicerones desinteressaram-se da leitura e puseram-se

a conversar em círculo no meio do passeio; como não viu preçário, perguntou É caro? O

quê? perguntou o cicerone que lia por cima do ombro direito dele; Se os preços do

restaurante são caros? insistiu, e o cicerone da esquerda respondeu Aqui nada se paga.

Não se paga nada?! admirou-se o homem que foi parar ao inferno. Não! respondeu um

dos cicerones que estava no círculo da conversa, e continuou Está tudo pago. Como é

possível?! queria ele ainda saber, mas um outro cicerone, de todos o que tinha o rosto

mais afogueado disse a modos de pôr termo ao assunto Sabe como é, são os apoios a

fundo perdido, subsídios vários, coisas assim, há francesinhas à Luso (…)

sobremesas

pudim abade de Periscos (…)

Iam andando.

Estava o homem cada vez mais admirado e perguntou Mas é verdade que vocês

tudo fazem para desviar as almas, isso é verdade, não é?

Desviar as almas!? que patetice! veja bem: que interesse temos nós em desviar

as almas?!

O homem pensou um pouco e concluiu, De facto, não há interesse nisso!

Claro que não, isso é conversa dos do céu; espalham essa ideia para terem

clientela, mas eles é que estão às moscas, disse outro cicerone.

Soubesse eu que era assim, ainda tinha feito mais umas asneiritas, lá na Terra!

disse o homem.

Não seria muito conveniente, disse outro cicerone, olhe que para aqui só vêm

aqueles que fizeram o que tinham a fazer; isto não é lugar para mentirosos ou falsos;

cada um é como é: quem merece o céu, tem o céu; quem merece o inferno, tem o

inferno.

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© Fernando Hilário (2012)

Não me queixo, disse o homem, ainda que haja uma pequena coisa que eu

gostaria de ver alterada.

O que é? perguntou outro cicerone.

Isto tem ar condicionado, não tem?

Tem, tem ar condicionado; todos os espaços do inferno têm ar condicionado, o

ar é todo condicionado.

Pois aí é que está o problema, disse o homem, é que eu não suporto o ar

condicionado: faz-me arder os olhos, seca-me a mucosa, irrita-me a garganta, causa-me

comichão pelo corpo todo!

Quanto a isso, não há nada a fazer, disse outro cicerone, está estabelecido assim,

não temos hipóteses de alterar seja o que for.

Mas, disse o homem, não há nenhum responsável a quem eu possa dar uma

palavrinha!?

Responsáveis há, disse o primeiro cicerone (aquele que lera a ementa por cima

do ombro do homem…), eu posso falar a um responsável, mas não vai adiantar nada!

Mesmo assim, gostava de falar com esse responsável, disse o homem.

Fizeram-lhe vir o gerente.

Já me constou que o senhor tem problemas com o ar condicionado.

É verdade, não me dou com o ar condicionado, vão ter que desligá-lo.

Não é possível, disse o gerente.

Pelo menos, o do meu quarto...

Lamento, mas isso é impossível, disse o gerente, o Departamento da Qualidade

de Vida não autoriza que se desligue o ar condicionado, já tivemos casos iguais e o

Departamento foi intransigente.

Mas, se eu falasse com alguém responsável pelo Departamento de Qualidade...,

propôs o homem.

Falar pode falar, mas não vai adiantar nada, disse o gerente.

O diretor do Departamento da Qualidade de Vida foi perentório: Não há nada a

fazer, o ar condicionado é ponto assente, ninguém no inferno pode abdicar dele!

Mas, disse o homem, veja bem: o ar condicionado para mim é um incómodo

total, não o suporto, é um inferno viver com ar condicionado!

Pois se assim é, disse o diretor, não vejo inconveniente nenhum: viva o inferno,

meu caro amigo, viva o inferno!

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© Fernando Hilário (2012)

*

O desenlace da história do homem que não se dava com ar condicionado está

bom de ver: o homem morreu. Coçou-se tanto que ficou com o corpo numa chaga e

morreu. Mas não se sabe para onde foi.

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© Fernando Hilário (2012)

O Conto do Relógio Parado

O escritor escrevera um conto para um jornal, mas o jornal não o publicou; nem

sempre os jornais publicam os contos dos escritores. Mas era um conto interessante.

Interessante é a melhor palavra para adjetivar um conto, como se sabe.

O Conto do Relógio Parado, assim o seu título, é o conto do relógio parado, não

é outra coisa, é só isso. E assim também se estranha que o jornal não o tenha publicado.

É assim o conto que o escritor escrevera:

O relógio da parede parou nas doze horas em ponto. No dia em que tal

aconteceu, ninguém da casa soube, a não ser ele, o próprio relógio.

Achava o senhor da casa que o relógio devia ter parado há uns sete anos.

A senhora sua esposa achava que não, achava que o relógio parara há vinte anos.

Parou no dia do casamento da nossa segunda filha, dizia.

Nada disso: parou no dia do casamento do nosso segundo neto; ou terá sido no

do primeiro?! questionava o senhor da casa.

A tia que vivia com eles, também tinha opinião: achava que o relógio parara há

trinta anos; Parou no dia em que morreu o meu marido.

A criada dizia que aquele relógio nunca trabalhara; Sempre esteve com os

ponteiros ali, até sempre pensei que aquele relógio só tinha um ponteiro!

E todos se foram deitar.

Passaram sete anos.

Num serão, o senhor da casa voltou a falar do mesmo assunto. Desta vez,

apontou aí para uns trinta anos ou mais o tempo em que o relógio havia parado.

A senhora sua esposa achava que o relógio parara há mais de vinte anos.

A criada sempre pensou que o relógio nunca trabalhara e que até só tinha um

ponteiro.

A tia que vivia lá em casa não se pronunciou, pelo facto de, entretanto, ter

morrido.

Também desta vez ninguém perguntou nada ao relógio. E foram deitar-se.

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No dia seguinte, por muito estranho que possa parecer, no dia seguinte, ao serão,

exatamente ao serão, o senhor da casa veio com a mesma treta: Quando terá parado este

relógio?! em que ano?!

Nada disse a senhora da casa, pelo facto de ter adormecido.

A criada também nada disse, por ter ido à terra, morrera-lhe uma tia e foi lá.

E o relógio, que pelos vistos já andava chateado com a conversa, esperou que no

sofá também adormecesse o senhor da casa e deu doze badaladas, mas ficou-se por aí.

*

Por que razão o jornal não publicou o conto?!

__________________

Nota à parte desta história, ainda que ela seja, tal como as outras que aqui se

publicam, exemplarmente imperfeita:

Um conceituado crítico literário, autenticado pela sua figura alta de tipo

esticado, analisou O Conto do Relógio Parado, das palavras à numerologia, das

personagens ao espaço e ao tempo; analisou tudo e concluiu que o jornal não teve razão,

que a razão nada tem a ver com o Conto do Relógio Parado. A razão não tem a ver…

rematou. E seguiu de olhos em frente; um andar irrepreensível, a figura alta de tipo

esticado.

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© Fernando Hilário (2012)

O horrível conto do homem que morreu afogado na chávena de café

Um homem viu-se na chávena de café.

Não queria acreditar; por certo, sonhava; mas levou a colher ao fundo, trouxe-se

para fora, olhou com atenção: era ele! Gesticulava, desesperado tentava dizer algo,

percebia-se que gritava, mas tão pequeno era que não se ouvia.

Aquele homem era ele na chávena de café!

Incrédulo, voltou a pôr aquele corpo na chávena de café.

Porém, num terrível esforço, o minúsculo homem conseguiu agarrar-se ao bordo

da chávena, e levantou uma perna… ia conseguir saltar, mas, com a colher, o homem

empurrou-lhe o pé, uma mão, a outra mão e mergulhou-o novamente no café.

Durante algum tempo, impediu-o de emergir: mantinha-lhe a cabeça submersa;

mas, num esforço titânico, o minúsculo homem esgueirou-se e agarrou-se à colher;

tentava içar-se, aproximar-se dos dedos do homem, tocá-los. Mas o homem sacudiu a

colher e fê-lo cair outra vez no café.

Não podia deixá-lo sair, descer ao pires, passear pela mesa...; alguém podia ver,

não saberia dar explicações; e até lhe parecia ter já atraído a atenção do empregado e do

casal que acabara de entrar.

Não lhe restava senão afogá-lo no café.

Tapou a chávena com o pires. Mas algum tempo depois, já o pires vibrava,

tremia; e parecia-lhe que o pequeno homem acabaria por erguê-lo, deitá-lo por terra.

Reforçou então o peso com o maço de cigarros e o isqueiro. Mas já temia que não fosse

ainda peso suficiente. Lembrou-se do molho de chaves; tirou-o do bolso e substituiu o

maço de cigarros por ele.

Não tinha outra solução. Era impossível deixá-lo viver!

Pensava agora se já estaria afogado…

Espreitou: uma mão aberta desaparecia no líquido negro; algum tempo depois, o

corpo boiava de costas.

O homem levantou-se, deixou uma moeda na mesa, e abandonou o café.

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© Fernando Hilário (2012)

A história do escritor que comia histórias

Era um escritor que comia histórias. Escrevia histórias a seu gosto; histórias de

gula, metessem lagosta ou caviar, carapaus com arroz malandro, dobrada fria ou quente

à moda do Porto, e comi-as. Qualquer história. Mesmo que algumas histórias acabassem

por ser indigestas, comia-as; comias todas; era um escritor que se alimentava de

histórias. Comia personagens, deleitava-se com os espaços, papava a intriga, o tempo…

Escusado será dizer que ninguém lia as suas histórias, pois não eram histórias

para ler, histórias sim para o próprio criador comer.

Mas desvende-se já o fim da história do escritor que comia histórias: certo dia,

escreveu uma tão pesada história que morreu.

Morreu de congestão.

Feita a autópsia ao malogrado escritor, concluiu-se que, de facto, havia muita

trama, havia muita prolepse, havia muita analepse, complexa intriga, muito hermetismo,

excessiva sugestão, rutura e vanguarda em demasia, além de um molho de que não se

descortinou noventa por centro dos constituintes, o que é muito!

Morreu.

E conforme fora seu desejo, na sua inscrição tumular jaz a seguinte máxima:

Mais vale comer histórias do que morrer de barriga vazia.

Mas… recuemos na história do escritor que comia as histórias que escrevia.

Alguém soube da existência desse tal escritor: alguém que nas fezes lhe vasculhava as

histórias; anos a fio espiou os passos do escritor, recolhia da fossa a criação, restaurava-

a em forma escrita, assenhoreando-se da obra a que deu o seu próprio nome.

Esse alguém é hoje mestre muito lido, e que venha a ser Nobel da literatura até

não admira. Vive em estado de graça, num pelo menos aparente estado de graça. Em sua

lápide tumular, cabe-lhe de certeza a máxima: Mais vale publicar histórias de merda que

morrer de congestão.

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© Fernando Hilário (2012)

O escritor da noite

O escritor da noite vem à janela para colher a vista da cidade; é assim que gosta

dela: vazia, ainda que a saiba prenhe de gente.

Pega numa família, por exemplo, e imagina naquele momento a vida: uma mãe a

sair da cama para consolar o filho que chora; ou um inesperado momento de sexo; ou

uma traição; uma indisposição; um assalto; o início de uma doença, uma morte; um

nascimento; uma insónia, um pesadelo, um sonho; de alguém que dorme, o fatídico

atropelamento pela manhã à saída para o emprego; uma mulher a acotovelar o ressonar

do marido; alguém que se levanta para urinar, que mata a sede de um jantar; uma zanga

matrimonial, a revelação de um adultério, outras confissões; o tranquilo dormir de um

pulha; a chegada de uma menstruação feminina; uma masturbação; a perpetrar-se um

crime; uma conclusão; a chegada a uma decisão; a libertação de gases intestinais; uma

velha mulher que mija na cama; um ataque de tosse, outro de asma; um paraplégico a

dormir; um ulcerado que acorda com dores; o magistral sono de um juiz que julgou mal,

de um condenado em liberdade condicional, de um médico que falhou uma mais que

elementar operação; um cancro que não se supunha vir a ser diagnosticado; aos pés da

cama um gato enroscado; um cão aflito que alça a perna e mija a perna da mesa da sala

de jantar; o sono tenso de um cego; o cheiro de um tipo porco; o dormir de um punk, de

um proxeneta, de um perneta, de um velho já morto, de um político que fez um discurso

mentiroso, de um outro que vai discursar no dia seguinte, de um escritor que ninguém

lê, de um outro que não publica, de um poeta incompreendido, de uma mãe solteira que

perderá o filho, de um locutor de rádio, de um outro de televisão, de um preto que foi

espancado; a tristeza de uma mãe que morre antes da chegada do filho à cabeceira da

cama; mas também alguém que vem à janela fumar um cigarro e, sem saber, fica frente

a frente com o escritor que na noite escreve a cidade.

As cidades nunca dormem: recolhem-se, e apenas mostram um mais sossegado

ar; as cidades são todas iguais e todas juntas fazem o mundo, conclui o escritor, que

volta à cama para descrever o que não vê do que vê na noite.

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© Fernando Hilário (2012)

A música que não tinha fim por causa daquela nota final

O músico estava intrigadíssimo: desaparecera da pauta uma nota de música, e

não era uma nota qualquer, era a última de todas as notas, a nota final, e sem ela a

música não tinha fim.

Aquela nota sempre fora uma nota difícil, esguia como uma enguia, criara

dúvidas, incertezas ao músico; esgueirava-se e, por várias vezes, ele até esteve para

desistir dela, substituí-la por outra que não fosse tão rebelde, tão desconcertante, tão

louca, mas, depois de muito refletir, de muito hesitar e de muito ponderar, decidiu-se

por ela.

Já ia alta a noite quando o músico quase exausto, quase a desfalecer, todo

despenteado, com a fralda da camisa de fora, os olhos, os ouvidos, os braços, as mãos

no limite, todo ele no limite, se deixou cair como um bêbado no sofá, catrapus. E

adormeceu dum truz.

Naturalmente que sonhou; tinha a música na cabeça, sonhou com ela; tinha a

música escrita, sonhou com ela, sonhou com as claves, sonhou com os compassos, com

as colcheias e as semicolcheias, com as breves e as que não eram…; tinha um piano na

cabeça, tocou piano; depois, pôs a música toda num violino e foi para a varanda da casa

tocar; e já ia alto o sonho, andou a tocar aquela música numa flauta, desceu o monte,

atravessou o grande vale, sentou-se na areia vizinha do mar, sentou-se, e as ondas

vinham de mansinho ouvir a música da flauta e, depois, de mansinho, levavam-na para

o mar, e a música andou nas ondas do alto mar, cruzou oceanos e veio de mansinho a

muitas outras praias, atravessou vales, subiu montanhas, ergueu-se pelos ares e

confundiu-se com os céus.

A música que sonhou tinha as cores todas do arco-íris.

Mas, quando o músico acordou, a nota não estava na pauta; como se disse,

desaparecera.

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A história do menino que queria voar

Conheço uma história de um menino que queria voar. Não sei se a conte; não sei

se fica bem entre as histórias que já contei. Não é uma história bonita, nem tem nenhum

significado especial. É apenas uma história... Desculpem, vou contá-la:

Era uma vez um menino que queria voar.

Viu um corvo num penhasco; Corvo, dá-me as tuas asas para eu voar!

Não dou, preciso delas.

Subiu ao castelo do mágico; Mágico, faz-me uma magia para umas asas, que eu

quero voar!

Não posso, ainda não consegui a poção para isso.

Encontrou o poeta; Poeta, dá-me asas para voar!

Tu mesmo terás de procurar as tuas asas e aprender a voar.

Na escola disse ao professor, Senhor professor, eu queria voar e não tenho asas!

As asas não lhe fazem falta nenhuma, o menino já anda nas nuvens!

No bosque esteve com a Fada Azul; Fada Azul, fada-me com umas asas para eu

poder voar!

A fada tocou-lhe a cabeça com a varinha: nasceram-lhe umas asas azuis.

Finalmente, tinha asas! Que alegria!

Experimentou voar; agitou as asas, agitou, mas não conseguia voar. Fada, as

asas com que me fadaste não me fazem voar; vê como não voo; estas asas não prestam!

Lamento, disse a fada, mas são as únicas que sei fadar.

Então, tira-mas, pois de nada me servem!

Lamento, disse a fada, mas não posso, terás de viver com elas.

Foi ao médico. O médico encaminhou-o para um cirurgião que lhe retirou as

asas; mas, pela manhã do dia seguinte, as asas renasceram e à tarde já estavam como a

fada as tinha fadado; à noite, foi outra vez para o terraço tentar voar.

Esforçou-se, mas não conseguiu.

O padre falou-lhe de fé, que tivesse fé, que acreditasse.

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O santo, pois que um homem havia a quem chamavam santo, disse-lhe que os

milagres só a Deus competem, que tudo está nas suas mãos.

Como Deus está em toda a parte, chamou por ele.

Deus apareceu. Quem és? o que queres?

Sou um menino e quero voar.

Que és menino, vê-se; por que queres voar?

Porque sou menino e os meninos sonham voar.

Vejo que já tens asas, como é isso possível?

Foi a Fada Azul, mas não me fazem voar.

Que queres que te faça? disse Deus.

Como és o todo poderoso, peço-te que me faças voar.

Queres que eu faça um milagre, é isso?

É, tu fazes?!

Vou pensar; amanhã, à mesma hora, neste mesmo local, dou-te uma resposta.

O menino ficou entusiasmadíssimo, tanto, que não havia maneira de adormecer;

pôs-se à janela do quarto, Se Deus me der asas para voar, voarei até à lua, voarei até

àquelas estrelas…

Às nove horas da manhã, conforme o combinado, Deus apareceu; Estive a

pensar no teu caso; eu não criei a tua raça com asas, e tu tens asas! vou ter que repor a

ordem natural das coisas: castigarei a fada que contrariou a minha vontade e tu serás

igual aos outros homens.

Mas eu sou um menino que quer voar!

Não és ave nem anjo, nem inseto, não tens que ter asas e voar! disse Deus, e

esfumou-se em fumo, numa fumarada de fumo, de fumo cinzento, escuro,

estupidamente denso e escuro.

O menino ficou então sem asas e sem esperança de voar; a fada deixou de ser

azul para ser uma fada amarela; castigo exemplar, pois, como se sabe, as fadas amarelas

não fadam nada de jeito.

*

Triste, muito triste, o menino meteu-se pela floresta, atravessou um rio, e foi dar

a uma aldeia.

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© Fernando Hilário (2012)

Mas a gente dessa aldeia era diferente: as pessoas, além de caminharem,

voavam!

Nem queria acreditar! Todos voavam, com uma facilidade incrível! Era ele o

único que não tinha asas nem voava; por isso, olhavam-no, admirados, voavam à volta

dele admirados, a olhá-lo admirados, a voar à volta dele…, admirados.

Um deles, voando à volta dele, a olhá-lo admirado disse-lhe Vai ao Garagista!

segues em frente até àquela aéreo-rotunda, vês?, contornas até à terceira aéro-pista, vais

por ela, e, coisa de vinte e cinco jardas à esquerda, vês uma garagem no ar, é aí; e foi-se

embora, a voar, claro! Foi a voar, claro que foi a voar. Mas ele, como não tinha asas, foi

pelo chão, sempre com a cabeça levantada, para não se perder.

Chegou esfalfado, e ainda teve que subir as escadas, tantas, que mais parecia que

o levavam ao céu; mas o menino tinha um sonho para alcançar…

O Garagista era uma espécie de génio do ar, o Silfo daquela aldeia, mas também

era um tipo muito ocupado, tão ocupado que voava tanto ou tão depressa que nem se via

que voava. Assim também a Terra, dizem.

O Garagista quis saber donde vinha, porque não era como os demais, e mais isto

e mais aquilo. O menino contou-lhe a sua história; o Garagista ouviu com atenção e

disse que, se assim era, pouco podia fazer.

O presidente da aldeia soube e deu-lhe uma ordem de expulsão; Não queremos

aqui gente que não voe, é um mau exemplo para a população.

Mas eu quero voar! disse o menino.

Seja como for, disse o presidente.

O Silfo ainda tentou interceder pelo desasado; Talvez com uma prótese…

Não, disse o presidente, Quem nasce torto nunca se endireita! (foi esta a versão

apresentada do adágio, omitindo ou raramente); era um déspota o raio do presidente,

como são todos os presidentes, por isso é que o são; e ordenou que dois polícias

levassem o menino a quem chamava desasado, Este desasado, para fora da aldeia.

Um dos agentes da autoridade alçou o menino pelos sovacos, que aquela gente

tinha asas e tinha mãos, e pensar que há quem não tenha uma coisa nem outra, enfim; o

outro ligou a sirena aparelhada na cabeça, tira-te-daí-tira-te-daí-tira-te…, e foi à frente a

abrir o trânsito, intenso, àquela hora do regresso a casa pelo lusco-fusco.

*

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© Fernando Hilário (2012)

Deixaram-no na outra margem do rio.

Chorava, Até os peixes voam nas águas e eu que quero voar não voo! também as

libelinhas, as aves e outros bichos voam...

Chorava, queria ser como os meninos daquela aldeia fantástica, e, quando fosse

grande, haveria de ser polícia. Chamou por Deus, que lhe explicasse aquela diferença!

chamou, mas Deus não apareceu.

Afinal, Deus não estava em toda a parte, nem tudo sabia.

Andando de terra em terra, sem voltar a ver uma aldeia como aquela, cresceu; já

não era menino, nem rapaz, seria homem. Por vezes, recordava ainda quando fora

expulso da aldeia da gente voadora, levado pelos ares, a terra vista das alturas, mas isso

acontecera há muito, muito tempo.

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© Fernando Hilário (2012)

Quem faz o tempo são as nuvens, as árvores e as palavras que plantam no céu

A história daquele escritor que escrevia e nada se via do que escrevia, lembrou-

me uma outra. Contou-ma um poeta. E porque nenhuma história deve ficar por contar,

vou contá-la.

*

Era uma vez um velho homem que gostava de ler as nuvens. Desde pequenino as

lia, e quem lhas ensinara a ler fora seu avô.

O céu é o livro onde as nuvens se escrevem e as nuvens são palavras, dizia ele a

um menino que, vendo-o a olhar o céu, lhe perguntou Porque olhas para o céu durante

tanto tempo?!

Também lhe disse o velho homem Há muitos livros para ler, mas, de todos os

livros, o céu, para mim, é o mais belo.

E tu chamas ao céu livro?! perguntou espantado o menino.

Chamo, respondeu-lhe o homem; e também chamo livro ao mar, às serras, aos

rios, às aldeias, às cidades; para mim, tudo é um livro e todos os livros se podem ler.

Não sabia! disse o menino, eu só conheço os livros da escola, não sabia que o

céu, a terra, o mar e outras coisas também eram livros! esses livros ninguém me ensinou

a ler, tu ensinas-me?

Claro que ensino! disse o homem.

E desses livros todos, qual deles me ensinas a ler? perguntou o menino.

Aquele que quiseres, e basta que te ensine a ler um que logo aprenderás a ler

todos os outros, disse-lhe o homem.

Ai é?! então, ensina-me a ler o livro céu, já que gostas tanto dele! pediu o

menino.

E tu também vais gostar, disse-lhe o homem.

Sentaram-se no chão.

Ora olha aquela nuvem que se escreve naquele pedaço azul; aquela ali, vês?

disse o homem.

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© Fernando Hilário (2012)

Sim, estou a ver, disse o menino.

O que te parece essa nuvem? perguntou o homem.

Parece-me... ora deixa-me ver! parece-me um monte, não: parece-me uma

árvore; e a ti? perguntou o menino.

A mim também me parece uma árvore, uma árvore plantada no mar, disse o

homem.

É verdade! mas... oh! já não é uma árvore! o que te parece agora? perguntou o

menino.

Diz tu! disse o homem.

Olha, parece um barco, um barco grande... um vapor! disse o menino.

Tens razão, é um vapor; e agora? perguntou o homem.

Agora é a tua vez! disse o menino.

Está bem, para mim, agora, é um foguetão! disse o homem.

Estava a pensar nisso; é, é, é um foguetão! disse o menino; que engraçado! um

foguetão que ainda agora mesmo era uma árvore…

Então, já sabes ler o livro céu? perguntou o homem.

Já; e é tão divertido!... mas… diz-me uma coisa: quando não há nuvens no céu,

não há palavras para ler! como é que se faz? perguntou o menino.

Mesmo assim, não achas que há sempre alguma coisa para ler? disse o homem.

O menino ficou a olhar o céu, por algum tempo pensativo. Depois olhou o velho

homem e disse-lhe Pois, o céu tem sempre coisas para ler!

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© Fernando Hilário (2012)

A menina da poça de água

Um pouco mais e o livro chegava ao fim sem que eu vos contasse a história da

menina que um dia se perdeu na floresta e foi dar a um sítio onde havia uma poça de

água em tudo e em nada excecionalmente invulgar.

Talvez não interesse à história contar como chegou a menina à floresta e depois

se perdeu nela. Talvez não interesse, porque os caminhos onde chegamos são iguais

àqueles por onde nos perdemos. Por isso, poupo as razões e o tempo que elas levam a

explicar.

*

A menina dorme ainda, prostrada no chão da erva muito verde, muito próxima

da poça de água. Ao seu vestido branco, de saia solta e larga, peitilho de mimosa renda,

faltam os pedaços de pano que ficaram presos nos abrolhos do caminho da floresta por

onde veio até chegar ao lugar da poça de água.

O Sol nasceu há pouco tempo. Só agora se insinua com suas mãos de manto

diáfano sobre o corpo da menina, acaricia-lhe a carne nua, os ombros, os braços, as

mãos, o rosto todo, o peito que o decote do vestido não tapa, as coxas ao léu do vestido

rasgado, as pernas, os pés descalços: é um beijo que ela vai recebendo, mais intenso nos

lábios, nas maçãs do rosto, nas pálpebras, que em breve a despertará do sono da noite

onde caiu exausta.

Acorda agora, exatamente neste momento em que abre os olhos e fica sentada no

chão; as mãos agarram a erva, o olhar descobre a paisagem.

Está atónita. Não conhece o sítio onde se encontra, que veio no breu, mas

percebe que ali já não é a floresta que lhe rasgou o vestido e feriu a carne.

Já não sangra das pernas, dos pés, dos braços, das mãos, do rosto; a noite

estancou o sangue, deixando-o tatuado no corpo como rios secos, mas as feridas ainda

lhe ardem e o sangue morto instalou-lhe um prurido na pele.

Põe-se de pé, a custo, que tem o corpo dorido do tempo narrado.

Aproxima-se da poça de água. Vai certamente servir-se dela para saciar a sede e

lavar o sangue das feridas.

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© Fernando Hilário (2012)

Já está debruçada sobre a água, mas apenas procura ver-se nela. Todavia, ao

contrário de outras poças de água onde a menina se viu como num espelho, esta não lhe

dá o rosto a ver; em vez dele, a menina vê o céu e as nuvens que há nele. Com a sua

mão ensanguentada tenta afastar o céu com nuvens que vê à superfície da poça de água.

Mas as nuvens não saem; só por instantes desaparecem desfeitas pela sua mão, e voltam

instantes depois. De repente, a menina levanta os olhos ao céu e percebe que no céu não

há nuvens. Confusa, volta a olhar a superfície da água onde não se vê e onde vê o céu

com nuvens, e olha o céu e não vê nuvens no céu.

A menina senta-se no chão. Está confusa. Ela não sabe que aquela imagem é a

memória de um tempo anterior que só desaparecerá se fechar os olhos e mergulhar nas

águas da poça. Também não sabe que o fundo da poça é no fundo dos oceanos. Não

sabe que se entrar na poça de olhos fechados, viajará três noites e três dias no mundo da

água até emergir numa praia de areia branca que será sua eternamente.

A menina não sabe, por isso ficará o dia todo debruçada sobre a poça, a tentar

afastar o céu com nuvens para ver o seu rosto na superfície das águas; ficará, assim, até

a noite chegar.

*

A menina caiu na poça de água; terá sido por descuido, ou foi a noite que a

empurrou. O certo é que é dela uma praia de areia branca. Eternamente.

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© Fernando Hilário (2012)

Sobre as histórias, mesmo quando são exemplarmente imperfeitas e interessantes, cai

sempre um silêncio.

Desejamos que seja azul esse silêncio.

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© Fernando Hilário (2012)

ÍNDICE

Pág.

Um cesto de pedras 3

O relógio da montra daquela casa de antiguidades 6

O conto do homem dos gestos brutos e das coisas que estavam no armário 8

O sonho de um pedaço de Sol 13

A fascinante história do escritor que escrevia sem escrever 20

História do pintor que pintava gotas de água 22

O conto do homem que regressou ao país ausente 23

A estranha história escrita de um modo estranho por um estranho escritor 24

O conto do homem que lia em voz alta o jornal na esplanada 29

A história do homem que não se dava com o ar condicionado 31

O Conto do Relógio Parado 36

O horrível conto do homem que morreu afogado na chávena de café 38

A história do escritor que comia histórias 39

O escritor da noite 40

A música que não tinha fim por causa daquela nota final 42

A história do menino que queria voar 43

Quem faz o tempo são as nuvens, as árvores e as palavras que plantam no céu 47

A menina da poça de água 49

Casa do Cerquido

Vilar do Monte, janeiro de 2012