histÓria econÔmica do brasil - caio prado junior

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CAIO PRADO JNIOR HISTRIA ECONMICA DO BRASILDigitalizao: Argo www.portaldocriador.org

SUMRIOPRELIMINARES (1500-1530) 1. O meio geogrfico 2. Carter Inicial e Geral da Formao Econmica Brasileira 3. Primeiras Atividades. A Extrao do Pau-Brasil A OCUPAO EFETIVA (1530-1640) 4. Incio da Agricultura 5. Atividades Acessrias EXPANSO DA COLONIZAO (1640-1770) 6. 7. 8. 9. Novo Sistema Poltico e Administrativo na Colnia A Minerao e a Ocupao do Centro-Sul A Pecuria e o Progresso do Povoamento no Nordeste A Colonizao do Vale Amaznico e a Colheita Florestal

APOGEU DA COLNIA (1770-1808) 10. Renascimento da Agricultura ll. Incorporao do Rio Grande do Sul Estab. da Pecuria 12. Smula Geral Econmica no Fim da Era Colonial A ERA DO LIBERALISMO (1808-1850) 13. Libertao Econmica 14. Efeitos da Libertao 15. Crise do Regime Servil e Abolio do Trfico O IMPRIO ESCRAVOCRATA E A AURORA BURGUESA (1850-1889) 16. 17. 18. 19. 20. Evoluo Agrcola Novo Equilbrio Econmico A Decadncia do Trabalho Servil e Sua Abolio Imigrao e Colonizao Sntese da Evoluo Econmico do Imprio

A REPUBLICA BURGUESA (1889-1930) 21. 22. 23. 24. 25. Apogeu de um Sistema A Crise de Transio Expanso e Crise da Produo Agrria A Industrializao O Imperialismo

A CRISE DE UM SISTEMA (1930-?) 26. A Crise de um Sistema 27. A Crise em Marcha POST SCRIPTUM EM 1976 ANEXOS Moeda Brasileira Populao do Brasil em Diferentes pocas Comrcio Exterior do Brasil de 1821 a 1965 Bibliografia

PRELIMINARES 1500-1530

1 O Meio Geogrfico

EM CONJUNTO, o Brasil se apresenta em compacta massa territorial, limitada a leste por uma linha costeira extremamente regular, sem sinuosidades acentuadas nem endentaes, e por isso, em geral, desfavorvel aproximao humana e utilizao nas comunicaes martimas; e a oeste, por territrios agrestes, de penetrao e ocupao difceis (e por isso, at hoje ainda, muito pouco habitados), estendidos ao longo das fraldas da Cordilheira dos Andes, e barrando assim as ligaes com o litoral Pacfico do continente. O Brasil, embora ocupe longitudinalmente a maior parte do territrio sul-americano, volta-se inteiramente para o Atlntico. Passemos rapidamente em revista este cenrio geogrfico imenso (mais de 8 milhes de km2) onde se desenrola a histria econmica que vamos analisar. Sua primeira unidade regional, e historicamente a mais importante, constituda pela longa faixa costeira que borda o Oceano. De largura varivel, mas no excedendo nunca algumas dezenas de quilmetros de profundidade (alm dos quais o meio geogrfico j muda de feio), ela conserva aprecivel unidade de condies desde o Extremo-Norte at aproximadamente o paralelo de 26, onde a influncia da latitude mais elevada j comea a se fazer sentir no clima, e se refletir por conseguinte na vida econmica. Esta faixa, embora com variaes locais mais ou menos importantes, , em regra, formada de terras baixas, submetidas a clima nitidamente tropical, de calores fortes e regulares, e com chuvas abundantes (salvo, quanto a este ltimo elemento, em trecho relativamente curto, compreendido entre os paralelos de 230' e 6, que extremamente seco). Seus solos so frteis, e prestam-se admiravelmente, por tudo isto, agricultura tropical que efetivamente servir de base econmica no somente da sua ocupao pelos colonos europeus, mas de ponto de partida e irradiao da colonizao de todo o pas. Para trs desta faixa litornea estendem-se as demais regies brasileiras. Com uma exceo apenas, o Extremo-Norte, a bacia amaznica, elas se apartam nitidamente, do ponto de vista geogrfico, do litoral. Na salincia do Nordeste, grosseiramente entre os paralelos de 2 e 15, seguem-no para o interior extensos territrios semi-ridos, imprestveis em geral para a agricultura corrente. Tal circunstncia deteve a expanso do povoamento que se

aglomerou nos ncleos litorneos, ficando o interior quase ao abandono, e apenas ralamente ocupado por dispersas fazendas de gado. Ao sul do paralelo de 15, outra circunstncia geogrfica opor uma barreira penetrao: o relevo. Acompanhando a faixa costeira, estende-se da para o sul o desenvolvimento abrupto da Serra do Mar que forma o rebordo oriental de um elevado planalto de altitudes mdias oscilando entre 600 e mais de 1.000 metros, e que em vez de inclinar-se para o mar, volta-se para o corao do continente; o que faz com que os rios excepcionalmente se dirijam para a costa. A maior parte deles, e sobretudo os de maior volume, correm para o interior em demanda da bacia do rio Paran. As condies para a penetrao do territrio no so portanto, a, muito favorveis. E at hoje constituem srio embarao oposto s comunicaes para alm do litoral. Mas ao contrrio do interior nordestino, o planalto centro-meridional brasileiro oferece esplndidas condies naturais para o estabelecimento do homem. Alm do clima temperado pela altitude, solos frteis e bem regados por chuvas regulares e um sistema hidrogrfico normal ao contrrio do interior nordestino semi-rido, onde a maior parte dos rios de curso intermitente. Finalmente, o planalto brasileiro encerra abundantes recursos minerais. Tudo isto atraiu para ele a colonizao, que o procurar desde o incio, mas particularmente, em grandes massas humanas, a partir do sculo XVIII. Ele concentra hoje a maior parcela da populao brasileira. Compreende-se nele o territrio de vrios dos atuais Estados: a parte ocidental do Rio de Janeiro, Minas Gerais, grande parte de Gois (a outra pertence mais bacia amaznica), sul de Mato Grosso, e a maior parcela (com exceo apenas do litoral) dos quatro Estados meridionais: So Paulo, Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.1 muito varivel na sua paisagem geogrfica. Pode ser grosseiramente dividido em trs setores: um setentrional, de grande altitude (at mil metros e mais) e relevo acidentado. Compreende-se a sobretudo o Estado de Minas Gerais, cujo nome j indica sua funo econmica essencial: a minerao, do ouro e dos diamantes no passado, e hoje em dia, principalmente do ferro, alm de outros minerais. O setor meridional do planalto estende-se de So Paulo para o sul. Desaparecem a as serranias alcantiladas de Minas Gerais, substitudas por um relevo mais uniforme e unido que se reveste de uma sucesso de florestas sub-tropicais (os excessos da latitude so corrigidos pela altitude) e de campos naturais. No lugar daquelas, onde o solo mais frtil, instalou-se a agricultura, avantajada por um clima privilegiado em que se do perfeitamente, lado a lado, as mais variadas espcies vegetais, desde as dos trpicos at as das zonas temperadas. Os campos se aproveitaram para a pecuria. A parte ocidental do planalto, onde ele descamba para o rio Paraguai (que corre em altitude inferior a 300 m), forma um setor parte, composto de um conjunto de plancies herbosas e terrenos alagadios. Localizado em situao de difcil acesso, sem grandes 1

Em rigor, a parte meridional deste ltimo fica alm do planalto, cujo rebordo sul atravessa o Estado, pelo centro, de leste para oeste.

recursos naturais, este setor esperar at o sc. XIX para ser efetivamente ocupado pela colonizao; ser a pecuria sua principal e quase nica atividade econmica. Resta-nos, para completar este rpido esboo da geografia brasileira, o Extremo-Norte. Nesta altura, o interior, ao contrrio das outras partes do pas, abre-se para o mar pelo delta do Amazonas, desembocadura de um imenso sistema hidrogrfico, sem paralelo no mundo, que se estende sobre uma rea de 6.400.000 km2 (dos quais 3.800.000 em territrio brasileiro) e formado de cursos d'gua de grande volume, em boa parte perfeitamente navegveis at por embarcaes de vulto. A penetrao foi, por isso, muito fcil. a isto alis que a colonizao luso-brasileira deveu o domnio sobre o vasto interior do continente sul-americano que de direito cabia aos hispano-americanos segundo os primeiros acordos ajustados entre as duas coroas ibricas. Mas estes ltimos, vindos do Ocidente, esbarraram com o obstculo da Cordilheira dos Andes, onde os detiveram, alis, as minas de metais preciosos e a abundante mo-de-obra indgena que l encontraram. No se opuseram por isso ao avano de seus concorrentes to avantajados pela geografia. Mas se os rios amaznicos oferecem esplndida via de penetrao e trnsito, e so assim altamente favorveis ao homem, doutro lado a floresta equatorial que os envolve, densa e semi-aqutica nas enchentes as guas fluviais alagam extenses considerveis das margens. representa grande obstculo instalao e progresso humanos. Em particular ao europeu, afeioado a climas mais frios e desconcertado ante as asperezas da selva bruta. A colonizao apenas encetar muito modestamente o ataque da floresta, e estenderse- numa ocupao rala e linear pelas margens dos rios, caminho da penetrao e nica via possvel de comunicaes e transportes at os dias de hoje. So estas as condies naturais que os colonizadores europeus encontraram no territrio que formaria o Brasil. Outra circunstncia ainda pesar muito nos seus destinos econmicos: a populao indgena que o habitava. Ao contrrio do Mxico e dos pases andinos, no havia no territrio brasileiro seno ralas populaes de nvel cultural muito baixo. No seria grande, por isso, o servio que prestariam aos colonos que foram obrigados a se abastecer de mo-de-obra na frica. Os indgenas brasileiros no se submeteram com facilidade ao trabalho organizado que deles exigia a colonizao; pouco afeitos a ocupaes sedentrias (tratava-se de povos semi-nmades, vivendo quase unicamente da caa, pesca e colheita natural), resistiram ou foram dizimados em larga escala pelo desconforto de uma vida to avessa a seus hbitos. Outros se defenderam de armas na mo; foram sendo aos poucos eliminados, mas no sem antes embaraar consideravelmente o progresso da colonizao nascente que, em muitos lugares e durante longo tempo, teve de avanar lutando e defendendo-se contra uma persistente e ativa agressividade do gentio.

2 Carter Inicial e Geral da Formao Econmica Brasileira

PARA SE compreender o carter da colonizao brasileira preciso recuar no tempo para antes do seu incio, e indagar das circunstncias que a determinaram. A expanso martima dos pases da Europa, depois do sc. XV, expanso de que a descoberta e colonizao da Amrica constituem o captulo que particularmente nos interessa aqui, se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daqueles pases. Deriva do desenvolvimento do comrcio continental europeu que at o sc. XIV quase unicamente terrestre e limitado, por via martima, a uma mesquinha navegao costeira e de cabotagem. Como se sabe, a grande rota comercial do mundo europeu que sai do esfacelamento do Imprio do Ocidente, a que liga por terra o Mediterrneo ao mar do Norte, desde as repblicas italianas, atravs dos Alpes, dos cantes suos, dos grandes emprios do Reno, at o esturio do rio onde esto as cidades flamengas. No sc. XIV, merc de uma verdadeira revoluo na arte de navegar e nos meios de transporte por mar, outra rota ligar aqueles dois plos do comrcio europeu: ser a martima que contorna o continente pelo estreito de Gibraltar. Rota que subsidiria a princpio, substituir afinal a primitiva no grande lugar que ela ocupava. O primeiro reflexo desta transformao, a princpio imperceptvel, mas que se revelar profunda e revolucionar todo o equilbrio europeu, foi deslocar a primazia comercial dos territrios centrais do continente, por onde passava a antiga rota, para aqueles que formam a sua fachada ocenica, a Holanda, a Inglaterra, a Normandia, a Bretanha, a Pennsula Ibrica. Este novo equilbrio firma-se desde princpios do sc. XV. Dele derivar, no s todo um novo sistema de relaes internas do continente como, nas suas conseqncias mais afastadas, a expanso europia ultramarina. O primeiro passo estava dado, e a Europa deixar de viver recolhida sobre si mesma para enfrentar o Oceano. O papel de pioneiro nesta nova etapa caber aos portugueses, os melhores situados, geograficamente, no extremo desta pennsula que avana pelo mar. Enquanto os holandeses, ingleses, normandos e bretes se ocupam na vida comercial recm-aberta, e que bordeja e envolve pelo mar o ocidente europeu, os portugueses vo mais longe, procurando empresas em que no encontrassem concorrentes mais antigos j instalados, e para o que contavam com vantagens geogrficas apreciveis: buscaro a costa ocidental da frica, traficando a com os mouros que dominavam as populaes indgenas. Nesta avanada pelo Oceano descobriro as Ilhas (Cabo Verde, Madeira, Aores), e continuaro perlongando o continente negro para o sul. Tudo isso se passa ainda na primeira metade do sc. XV. L por meados dele, comea a se desenhar um plano mais amplo: atingir o Oriente contornando a frica. Seria abrir para seu proveito uma rota que os poria em contacto direto com as opulentas ndias das

preciosas especiarias, cujo comrcio fazia a riqueza das repblicas italianas e dos mouros, por cujas mos transitavam at o Mediterrneo. No preciso repetir aqui o que foi o priplo africano, realizado afinal depois de tenazes e sistemticos esforos de meio sculo. Atrs dos portugueses lanam-se os espanhis. Escolheram outra rota: pelo Ocidente, ao invs do Oriente. Descobriro a Amrica, seguidos de perto pelos portugueses que tambm toparo com o novo continente. Viro depois dos pases peninsulares, os franceses, ingleses, holandeses, at dinamarqueses e suecos. A grande navegao ocenica estava aberta, e todos procuravam tirar partido dela. S ficaro atrs aqueles que dominavam o antigo sistema comercial terrestre ou mediterrneo, e cujas rotas iam passando para o segundo plano: mal situados geograficamente com relao s novas rotas, e presos a um passado que ainda pesava sobre eles, sero os retardatrios da nova ordem. A Alemanha e a Itlia passaro para um plano secundrio a par dos novos astros que se levantavam no horizonte: os pases ibricos, a Inglaterra, a Frana, a Holanda. Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era a que se convencionou com razo chamar de "descobrimentos", articulam-se num conjunto que no seno um captulo da histria do comrcio europeu. Tudo que se passa so incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os pases da Europa a partir do sc. XV e que lhes alargar o horizonte pelo Oceano afora. No tm outro carter a explorao da costa africana e o descobrimento e a colonizao das Ilhas pelos portugueses, o roteiro das ndias, o descobrimento da Amrica, a explorao e ocupao de seus vrios setores. este ltimo o captulo que mais nos interessa aqui; mas no ser, em sua essncia, diferente dos outros. sempre como traficantes que os vrios povos da Europa abordaro cada uma daquelas empresas que lhes proporcionaro sua iniciativa, seus esforos, o acaso e as circunstncias do momento em que se achavam. Os portugueses traficaro na costa africana com marfim, ouro, escravos; na ndia iro buscar especiarias. Para concorrer com eles, os espanhis, seguidos de perto pelos ingleses, franceses e demais, procuraro outro caminho para o Oriente; a Amrica, com que toparam nesta pesquisa, no foi para eles, a princpio, seno um obstculo oposto realizao de seus planos e que devia ser contornado. Todos os esforos se orientam ento no sentido de encontrar uma passagem cuja existncia se admitiu a priori. Os espanhis, situados nas Antilhas desde o descobrimento de Colombo, exploram a parte central do continente: descobriro o Mxico; Balboa avistar o Pacfico; mas a passagem no ser encontrada. Procurase ento mais para o sul: as viagens de Solis, de que resultar a descoberta do Rio da Prata, no tiveram outro objetivo. Magalhes ser seu continuador, e encontrar o estreito que conservou o seu nome e que constitui afinal a famosa passagem to procurada; mas ela se revelar pouco praticvel e ser desprezada. Enquanto isto se passava no sul, as pesquisas se ativam para o norte; a iniciativa cabe aqui aos ingleses, embora tomassem para isto o servio de estrangeiros, pois no contavam ainda com pilotos bastante prticos para empresas de tamanho vulto. As primeiras pesquisas sero empreendidas pelos italianos Joo Cabto e seu filho Sebastio. Os

portugueses tambm figuraro nestas exploraes do Extremo Norte com os irmos Corte Real, que descobriro o Labrador. Os franceses encarregaro o florentino Verazzano de iguais objetivos. Outros mais se sucedem, e embora tudo isto servisse para explorar e tornar conhecido o novo mundo, firmando a sua posse pelos vrios pases da Europa, no se encontra a almejada passagem que hoje sabemos no existir2. Ainda em princpios do sc. XVII, a Virgnia Company of London inclua, entre seus principais objetivos, o descobrimento da brecha para o Pacfico que se esperava encontrar no continente. Tudo isto lana muita luz sobre o esprito com que os povos da Europa abordam a Amrica. A idia de povoar no ocorre inicialmente a nenhum. o comrcio que os interessa, e da o relativo desprezo por estes territrios primitivos e vazios que formam a Amrica; e inversamente, o prestgio do Oriente, onde no faltava objeto para atividades mercantis. A idia de ocupar, no como se fizera at ento em terras estranhas, apenas com agentes comerciais, funcionrios e militares para a defesa, organizados em simples feitorias destinadas a mercadejar com os nativos e servir de articulao entre rotas martimas e os territrios cobiados, mas ocupar com povoamento efetivo, isto s surgiu como contingncia, necessidade imposta por circunstncias novas e imprevistas. Alis, nenhum povo da Europa estava em condies naquele momento de suportar sangrias na sua populao, que no sc. XVI ainda no se refizera de todo das tremendas devastaes da peste que assolara o continente nos dois sculos precedentes. Na falta de censos precisos, as melhores probabilidades indicam que em 1500 a populao da Europa ocidental no ultrapassava a do milnio anterior. Nestas condies, "colonizar" ainda era entendido como aquilo que dantes se praticava; fala-se em colonizao, mas o que o termo envolve no mais que o estabelecimento de feitorias comerciais, como os italianos vinham de longa data praticando no Mediterrneo, a Liga Hansetica no Bltico, mais recentemente os ingleses, holandeses e outros no Extremo-Norte da Europa e no Levante, como os portugueses fizeram na frica e na ndia. Na Amrica a situao se apresenta de forma inteiramente diversa: um territrio primitivo, habitado por rala populao indgena incapaz de fornecer qualquer coisa de realmente aproveitvel. Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupao no se podia fazer como nas simples feitorias, com um reduzido pessoal incumbido apenas do negcio, sua administrao e defesa armada; era preciso ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem, e organizar a produo dos gneros que interessavam seu comrcio. A idia de povoar surge da e s da. Aqui, ainda Portugal foi um pioneiro. Seus primeiros passos neste terreno so nas ilhas do Atlntico, postos avanados, pela identidade de condies para os fins visados, do continente americano; e isto ainda no sc. XV. Era preciso povoar e organizar a produo: Portugal realizou estes objetivos brilhantemente. Repe2

Tambm se tentou, a partir de meados do sc. XVI, a passagem para o Oriente pelas regies rticas, a Europa e sia. A iniciativa cabe ao mesmo Sebastio Cabto, que j encontramos na Amrica, e mais uma vez a servio dos ingleses (1553).

ti-lo- na Amrica. Os problemas do novo sistema de colonizao, implicando a ocupao de territrios quase desertos e primitivos, tero feio variada, dependendo em cada caso das circunstncias particulares com que se apresentam. A primeira delas ser a natureza dos gneros aproveitveis que cada um daqueles territrios proporcionar. A princpio, naturalmente, ningum cogitar de outra coisa que no sejam produtos espontneos, extrativos. ainda quase o antigo sistema de feitorias puramente comerciais. Sero as madeiras de construo ou tinturarias (como o pau-brasil entre ns), na maior parte deles; tambm as peles de animais e a pesca no ExtremoNorte, como na Nova Inglaterra; a pesca ser particularmente ativa nos bancos da Terra Nova onde, desde os primeiros anos do sc. XVI, possivelmente at antes, se renem ingleses, normandos, vasconhos. Os espanhis sero os mais felizes: toparo desde logo nas reas que lhes couberam com os metais preciosos, a prata e o ouro do Mxico e do Peru. Mas os metais, incentivo e base suficiente para o sucesso de qualquer empresa colonizadora, no ocupam na formao da Amrica seno um lugar relativamente pequeno. Impulsionaro o estabelecimento e a ocupao das colnias espanholas citadas; mais tarde, j no sc. XVIII, intensificaro a colonizao portuguesa da Amrica do Sul e lev-la-o para o centro do continente. Mas s.3 Os metais, que a imaginao escaldante dos primeiros exploradores pensava encontrar em qualquer territrio novo, esperana reforada pelos prematuros descobrimentos castelhanos, no se revelaram to disseminados como se esperava. Na maior extenso da Amrica ficou-se, a princpio, exclusivamente nas madeiras, nas peles, na pesca; e a ocupao de territrios, seus progressos e flutuaes subordinam-se por muito tempo ao maior ou menor sucesso daquelas atividades. Viria depois, em substituio, uma base econmica mais estvel, mais ampla: seria a agricultura. No meu intuito entrar aqui nos pormenores e vicissitudes da colonizao europia na Amrica. Mas podemos, e isto muito interessa nosso assunto, distinguir duas reas diversas, alm daquela em que se verificou a ocorrncia de metais preciosos, em que a colonizao toma rumos inteiramente diversos. So elas as que correspondem respectivamente s zonas temperada, de um lado, tropical e subtropical, do outro. A primeira, que compreende grosseiramente o territrio americano ao norte da Baa de Delaware (a outra extremidade temperada do continente, hoje pases platinos e Chile, esperar muito tempo antes de tomar forma e significar alguma coisa), no ofereceu realmente nada de muito interessante, e permanecer, ainda por muito tempo, adstrita explorao de produtos espontneos: madeiras, peles, pesca. Na Nova Inglaterra, nos primeiros anos da colonizao, viam-se at com maus olhos quaisquer tentativas de agricultura que desviavam das feitorias de peles e pesca as atividades dos poucos colonos presentes. Se esta rea temperada se povoou, o que alis s ocorre depois do sc. XVII, foi por circunstncias muito especiais. a situao interna da Europa, em particular da Inglaterra, as suas lutas poltico-religiosas que desviam para a Amrica as atenes de populaes que no se sentem 3

Se excetuarmos, quase em nossos dias, o rush da Califrnia e do Alasca.

vontade e vo procurar ali abrigo e paz para suas convices. Isto durar muito tempo; pode-se mesmo assimilar o fato, idntico no fundo, a um processo que se prolongar, embora com intensidade varivel, at os tempos modernos, o sculo passado. Viro para a Amrica puritanos e quakers da Inglaterra, huguenotes da Frana, mais tarde morvios, schwenkjelders, inspiracionalistas e menonitas da Alemanha meridional e Sua. Durante mais de dois sculos despejar-se- na Amrica todo o resduo das lutas polticoreligiosas da Europa. certo que se espalhar por todas as colnias; at no Brasil, tanto afastado e por isso tanto mais ignorado, procuraro refugiar-se huguenotes franceses (Frana Antrtica, no Rio de Janeiro). Mas concentrar-se- quase inteiramente nas da zona temperada, de condies naturais mais afins s da Europa, e por isso preferidas para quem no buscava "fazer a Amrica", mas unicamente abrigar-se dos vendavais polticos que varriam a Europa e reconstruir um lar desfeito ou ameaado. H um fator econmico que tambm concorre na Europa para este tipo de emigrao. a transformao econmica sofrida pela Inglaterra no correr do sc. XVI, e que modifica profundamente o equilbrio interno do pas e a distribuio de sua populao. Esta deslocada em massa dos campos, que de cultivados se transformam em pastagens para carneiros cuja l iria abastecer a nascente indstria txtil inglesa. Constitui-se a uma fonte de correntes migratrias que abandonam o campo e vo encontrar na Amrica, que comea a ser conhecida, um largo centro de afluncia. Tambm estes elementos escolhero, de preferncia e por motivos similares, as colnias temperadas. Os que se dirigem mais para o sul, para as colnias includas na zona subtropical da Amrica do Norte, porque nem sempre lhes foi dado escolher seu destino com conhecimento de causa, f-lo-o apenas, no mais das vezes, provisoriamente; o maior nmero deles refluir mais tarde, e na medida do possvel, para as colnias temperadas. So assim circunstncias especiais que no tm relao direta com ambies de traficantes ou aventureiros, que promovero a ocupao intensiva e o povoamento em larga escala da zona temperada da Amrica. Circunstncias alis que surgem posteriormente ao descobrimento do novo continente, e que no se filiam ordem geral e primitiva de acontecimentos que impelem os povos da Europa para o ultramar. Da derivar tambm um novo tipo de colonizao que tomar um carter inteiramente apartado dos objetivos comerciais at ento dominantes neste gnero de empresas. O que os colonos desta categoria tm em vista construir um novo mundo, uma sociedade que lhes oferea garantias que no continente de origem j no lhes so mais dadas. Seja por motivos religiosos ou meramente econmicos (estes impulsos alis se entrelaam e sobrepem), a sua subsistncia se tornara l impossvel ou muito difcil. Procuram, ento, uma terra ao abrigo das agitaes e transformaes da Europa, de que so vtimas, para refazerem nela sua existncia comprometida. O que resultar deste povoamento, realizado com tal esprito e num meio fsico muito aproximado do da Europa, ser naturalmente uma sociedade que embora com caracteres prprios, ter semelhana pronunciada com a do continente de onde se origina. Ser pouco mais que um simples prolongamento dele.

Muito diversa a histria da rea tropical e subtropical da Amrica. Aqui a ocupao e o povoamento tomaro outro rumo. Em primeiro lugar, as condies naturais, to diferentes do habitat de origem dos povos colonizadores, repelem o colono que vem como simples povoador, da categoria daquele que procura a zona temperada. Muito se tem exagerado a inadaptabilidade do branco aos trpicos, meia verdade apenas que os fatos tm demonstrado e redemonstrado falha em um sem-nmero de casos. O que h nela de acertado uma falta de predisposio em raas formadas em climas mais frios, e por isso afeioadas a eles, em suportarem os trpicos e se comportarem similarmente neles. Mas falta de predisposio apenas, que no absoluta e se corrige, pelo menos em geraes subseqentes, por um novo processo de adaptao. Contudo, se aquela afirmao, posta em termos absolutos, falsa, no deixa de ser verdadeira no caso vertente, isto , nas circunstncias em que os primeiros povoadores vieram encontrar a Amrica. So trpicos brutos indevassados que se apresentam, uma natureza hostil e amesquinhadora do homem, semeada de obstculos imprevisveis, sem conta, para o que o colono europeu no estava preparado e contra o que no contava com defesas suficientes. Alis, a dificuldade do estabelecimento de europeus civilizados nestas terras americanas entregues ainda ao livre jogo da natureza, comum tambm zona temperada. Respondendo a teorias apressadas e muito em voga (so as contidas no livro famoso de Turner, The frontier in American History) um recente escritor norte-americano analisa este fato com grande ateno, e mostra que a colonizao inglesa na Amrica, realizandose embora numa zona temperada, s progrediu custa de um processo de seleo de que resultou um tipo de pioneiro, o caracterstico ianque, que dotado de aptido e tcnica particulares, foi marchando na vanguarda e abrindo caminho para as levas mais recentes de colonos que afluam da Europa.4 Se assim foi numa zona que afora o fato de estar indevassada, se aproxima tanto por suas condies naturais do meio europeu, que no seria dos trpicos? Para estabelecer-se a o colono tinha que encontrar estmulos diferentes e mais fortes que os que o impelem para as zonas temperadas. De fato assim aconteceu, embora em circunstncias especiais que, por isso, tambm particularizaro o tipo de colono branco dos trpicos. A diversidade de condies naturais, em comparao com a Europa, que acabamos de ver como um empecilho ao povoamento, revelar-se-ia por outro lado um forte estmulo. que tais condies proporcionaro aos pases da Europa a possibilidade da obteno de gneros que l fazem falta. E gneros de particular atrativo. Coloquemo-nos naquela Europa anterior ao sc. XVI, isolada dos trpicos, s indireta e longinquamente acessveis, e imaginemo-la, como de fato estava, privada quase inteiramente de produtos que se hoje pela sua banalidade, parecem secundrios, eram to prezados como requintes de luxo. Tome-se o caso do acar, que embora se cultivasse em pequena escala na Siclia, era artigo de grande raridade e muita procura; at nos enxovais de rainhas ele chegou a figurar como dote precioso e altamente prezado. A pimen4

Marcus Lee Hansen, The immigrant in American History veja-se o captulo Immigration and Expansin.

ta, importada do Oriente, constituiu durante sculos o principal ramo do comrcio das repblicas mercadoras italianas, e a grande e rdua rota das ndias no serviu muito tempo para outra coisa mais que para abastecer dela a Europa. O tabaco, originrio da Amrica, e por isso ignorado antes do descobrimento, no teria, depois de conhecido, menor importncia. E no ser este tambm, mais tarde, o caso do anil, do arroz, do algodo e de tantos outros gneros tropicais? Isto nos d a medida do que representariam os trpicos como atrativo para a fria Europa, situada to longe deles. A Amrica por-lhe-ia disposio, em tratos imensos, territrios que s esperavam a iniciativa e o esforo do homem. isto que estimular a ocupao dos trpicos americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono europeu no traria com ele a disposio de pr-lhe a servio, neste meio to difcil e estranho, a energia do seu trabalho fsico. Viria como dirigente da produo de gneros de grande valor comercial, como empresrio de um negcio rendoso; mas s a contragosto, como trabalhador. Outros trabalhariam para ele. Nesta base realizar-se-ia uma primeira seleo entre os colonos que se dirigem respectivamente para um e outro setor do novo mundo: o temperado e os trpicos. Para estes, o europeu s se dirige de livre e espontnea vontade quando pode ser um dirigente, quando dispe de recursos e aptides para isto; quando conta com outra gente que trabalhe para ele. Mais uma circunstncia vem reforar esta tendncia e discriminao. o carter que tomar a explorao agrria nos trpicos. Esta se realizar em larga escala, isto , em grandes unidades produtoras fazendas, engenhos, plantaes (as plantations das colnias inglesas) que renem, cada qual, um nmero relativamente avultado de trabalhadores. Em outras palavras, para cada proprietrio (fazendeiro, senhor ou plantador), haveria muitos trabalhadores subordinados e sem propriedade. Voltarei em outro captulo, com mais vagar, sobre as causas que determinaram este tipo de organizao da produo tropical. A grande maioria dos colonos estava assim, nos trpicos, condenada a uma posio dependente e de baixo nvel; ao trabalho em proveito de outros e unicamente para a subsistncia prpria de cada dia. No era para isto, evidentemente, que se emigrava da Europa para a Amrica. Assim mesmo, at que se adotasse universalmente nos trpicos americanos a mo-de-obra escrava de outras raas, indgenas do continente ou negros africanos importados, muitos colonos europeus tiveram de se sujeitar, embora a contragosto, quela condio. vidos de partir para a Amrica, ignorando muitas vezes seu destino certo, ou decididos a um sacrifcio temporrio, muitos partiram para se engajar nas plantaes tropicais como simples trabalhadores. Isto ocorreu particularmente, e em grande escala, nas colnias inglesas: Virgnia, Maryland, Carolina. Em troca do transporte, vendiam seus servios por um certo lapso de tempo. Outros partiam como deportados; tambm menores, abandonados ou vendidos pelos pais ou tutores, eram levados naquelas condies para a Amrica a fim de servirem at a maioridade. uma escravido temporria que ser substituda inteiramente, em meados do sc. XVII, pela definitiva de negros importados. Mas a maior parte daqueles colonos s esperava o momento oportuno para sair da con-

dio que lhes fora imposta; quando no conseguiam estabelecer-se como plantador e proprietrio por conta prpria o que exceo naturalmente , emigravam logo que possvel para as colnias temperadas, onde (ao menos tinham um gnero de vida mais afeioado a seus hbitos e maiores oportunidades de progresso. Situao de instabilidade do trabalho nas plantaes do Sul que durar at a adoo definitiva e geral do escravo africano. O colono europeu ficar ento a na nica posio que lhe competia: a de dirigente e grande proprietrio rural. Nas demais colnias tropicais, inclusive no Brasil, no se chegou nem a ensaiar o trabalhador branco. Isto porque nem na Espanha, nem em Portugal, a quem pertencia a maioria delas, havia, como na Inglaterra, braos disponveis e dispostos a emigrar a qualquer preo. Em Portugal, a populao era to insuficiente que a maior parte do seu territrio se achava ainda, em meados do sc. XVI, inculto e abandonado; faltavam braos por toda parte, e empregava-se em escala crescente mo-de-obra escrava, primeiro dos mouros, tanto dos que tinham sobrado da antiga dominao rabe, como dos aprisionados nas guerras que Portugal levou desde princpios do sc. XV para seus domnios do norte da frica; como depois, de negros africanos, que comeam a afluir para o reino desde meados daquele sculo. L por volta de 1550, cerca de 10% da populao de Lisboa era constituda de escravos negros. Nada havia, portanto, que provocasse no Reino um xodo da populao; e sabido como as expedies do Oriente depauperaram o pas, datando de ento, e atribuvel em grande parte a esta causa, a precoce decadncia lusitana. Alm disso, portugueses e espanhis, particularmente estes ltimos, encontram nas suas colnias indgenas que se puderam aproveitar como trabalhadores. Finalmente, os portugueses tinham sido os precursores desta feio particular do mundo moderno: a escravido de negros africanos; e dominavam os territrios que os forneciam. Adotaram-na por isso, em sua colina, quase de incio possivelmente de incio mesmo , precedendo os ingleses, sempre imitadores retardatrios, de quase um sculo.5 Como se v, as colnias tropicais tomaram um rumo inteiramente diverso do de suas irms da zona temperada. Enquanto nestas se constituiro colnias propriamente de povoamento (o nome ficou consagrado depois do trabalho clssico de Leroy-Beau-lieu, De la colonisation chez les peuples modernes) escoadouro para excessos demogrficos da Europa, que reconstituem no novo mundo uma organizao e uma sociedade semelhana do seu modelo e origem europeus; nos trpicos, pelo contrrio, surgir um tipo de sociedade inteiramente original. No ser a simples feitoria comercial que j vimos irrealizvel na Amrica. Mas conservar, no entanto, um acentuado carter mercantil; ser a empresa do colono branco que rene natureza prdiga em recursos aproveitveis para a produo de gneros de grande valor comercial, o trabalho recrutado entre 5

No se sabe ao certo quando chegaram os primeiros negros ao Brasil; h grandes probabilidades de terem vindo j na primeira expedio colonizadora em 1531. Na Amrica do Norte, a primeira leva de escravos africanos foi introduzida por traficantes holandeses em Jamestown (Virgnia) em 1619.

raas inferiores que domina: indgenas ou negros africanos importados. H um ajustamento entre os tradicionais objetivos mercantis que assinalam o incio da expanso ultramarina da Europa, e que so conservados, e as novas condies em que se realizar a empresa. Aqueles objetivos, que vemos passar para o segundo plano nas colnias temperadas, manter-se-o aqui, e marcaro profundamente a feio das colnias do nosso tipo, ditando-lhes o destino. No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonizao dos trpicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo carter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um territrio virgem em proveito do comrcio europeu. este o verdadeiro sentido da colonizao tropical, de que o Brasil uma das resultantes; e ele explicar os elementos fundamentais, tanto no social como no econmico, da formao e evoluo histrica dos trpicos americanos. Se vamos essncia da nossa formao, veremos que na realidade nos constitumos para fornecer acar, tabaco, alguns outros gneros; mais tarde, ouro e diamante; depois algodo, e em seguida caf, para o comrcio europeu. Nada mais que isto. com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do pas e sem ateno a consideraes que no fossem o interesse daquele comrcio, que se organizaro a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se dispor naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do pas. Vir o branco europeu para especular, realizar um negcio; inverter seus cabedais e recrutar a mo-de-obra de que precisa: indgenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organizao puramente produtora, mercantil, constituir-se- a colnia brasileira. Este incio, cujo carter manter-se- dominante atravs dos sculos da formao brasileira, gravar-se- profunda e totalmente nas feies e na vida do pas. Particularmente na sua estrutura econmica. E prolongar-se- at nossos dias, em que apenas comeamos a livrar-nos deste longo passado colonial. T-lo em vista compreender o essencial da evoluo econmica do Brasil, que passo agora a analisar.

3 Primeiras Atividades A Extrao do Pau-Brasil

DESDE OS ltimos anos do sc. XV as costas brasileiras comeam a ser freqentadas por navegantes portugueses e espanhis. No interessa discutir aqui prioridades, o que muitos historiadores, ocupados mais em procurar glrias nacionais que em escrever histria verdadeira, j fizeram saciedade; alis sem maiores resultados. De incio aquelas viagens eram apenas de explorao. Tratavase no momento, como foi lembrado, de resolver um problema geogrfico de grande importncia: descobrir o caminho das ndias. Os portugueses tinham procurado a soluo na rota do Oriente, contornando a frica; os espanhis, partindo da premissa de que a Terra era redonda, dirigem-se para o Ocidente. Uns e outros topariam com a Amrica: os espanhis, porque ela se encontrava em seu caminho natural; e perlongando-a em busca da passagem que os levaria s ndias, tocariam as costas brasileiras. Os portugueses, por seu turno, arrastados pelos azares da navegao, e interessados em observar o que os espanhis estavam realizando, afastar-se-o da sua rota ao longo da frica e tambm chegaro ali. Descoberto assim o territrio que haveria de constituir o Brasil, no se tardou muito em procurar aproveit-lo. As perspectivas no eram brilhantes. O famoso Amrico Vespcio, que viajou como piloto alternadamente com espanhis e portugueses, e que nos deu com suas cartas a primeira descrio do novo mundo, escrever a respeito: "Pode-se dizer que no encontramos nada de proveito". E devia ser assim para aqueles navegantes-mercadores que se tinham lanado em arriscadas empresas martimas unicamente na esperana de trazerem para o comrcio europeu as preciosas mercadorias do Oriente. Que interesse tinha para eles uma terra parcamente habitada por tribos nmades ainda na idade da pedra, e que nada de til podiam oferecer? Assim mesmo contudo, o esprito empreendedor daqueles aventureiros conseguiu encontrar algo que poderia satisfazer suas ambies. Espalhada por larga parte da costa brasileira, e com relativa densidade, observou-se uma espcie vegetal semelhante a outra j conhecida no Oriente, e de que se extraa uma matria corante empregada na tinturaria. Tratava-se do pau-brasil, mais tarde batizado cientificamente com o nome de Caesalpinia echinata. Os primeiros contactos com o territrio que hoje constitui o Brasil, devem-se quela madeira que se perpetuaria no nome do pas. So os portugueses que antes de quaisquer outros ocupar-se-o do assunto. Os espanhis, embora tivessem concorrido com eles nas primeiras viagens de explorao, abandonaro o campo em respeito ao tratado de Tordesilhas (1494) e bula papal que dividira o mundo a se descobrir por uma linha imaginria entre as coroas portuguesa e espanhola. O litoral brasileiro ficava na parte lusitana, e os espanhis respeitaram seus direitos. O mesmo no se deu

com os franceses, cujo rei (Francisco I) afirmaria desconhecer a clusula do testamento de Ado que reservara o mundo unicamente a portugueses e espanhis. Assim eles viro tambm, e a concorrncia s se resolveria pelas armas. Mas, com ou sem direitos, o certo que at quase meados do sc. XVI, encontraremos portugueses e franceses traficando ativamente na costa brasileira com o pau-brasil. Era uma explorao rudimentar que no deixou traos apreciveis, a no ser na destruio impiedosa e em larga escala das florestas nativas donde se extraa a preciosa madeira. No se criaram estabelecimentos fixos e definitivos. Os traficantes se aproximavam da costa, escolhendo um ponto abrigado e prximo das matas onde se encontrava a essncia procurada, e ali embarcavam a mercadoria que lhes era trazida pelos indgenas. graa alis presena relativamente numerosa de tribos nativas no litoral brasileiro que foi possvel dar indstria um desenvolvimento aprecivel. S as tripulaes dos navios que efetuavam o trfico no dariam conta, a no ser de forma muito limitada, da rdua tarefa de cortar rvores de grande porte como o pau-brasil, que alcana um metro de dimetro na base do tronco e 10 a 15 m de altura, transport-las at a praia e da s embarcaes. No foi difcil obter que os indgenas trabalhassem; miangas, tecidos e peas de vesturio, mais raramente canivetes, facas e outros pequenos objetos os enchiam de satisfao; e em troca desta quinquilharia, de valor nfimo para os traficantes, empregavam-se arduamente em servi-los. Para facilitar o servio e apressar o trabalho, tambm se presenteavam os ndios com ferramentas mais importantes e custosas: serras, machados. Assim mesmo, a margem de lucros era considervel, pois a madeira alcanava grandes preos na Europa. O negcio, sem comparar-se embora com os que se realizavam no Oriente, no era desprezvel, e despertou bastante interesse. Indiretamente, a explorao do pau-brasil deu origem a alguns estabelecimentos coloniais. A concorrncia de franceses e portugueses, que se resolvia sempre em luta armada quando os contendores se deparavam uns com os outros, o que acontecia freqentemente apesar da extenso da costa, levou ambas as faces a procurar fortificar certos trechos da costa mais ricos e proveitosos. Construram, para isto, pequenos fortins onde se abrigavam em caso de ataque. Serviam igualmente para armazenar o pau-brasil espera de transporte. Tambm se utilizavam para a defesa contra alguma tribo hostil de ndios. Porque de notar que embora estes a princpio recebessem amigavelmente os europeus, sem distino de nacionalidade, no tardou que as rivalidades que dividiam os brancos os contaminassem. Separam-se ento em tribos aliadas respectivamente aos portugueses e franceses, e cada parcialidade defendia contra a outra os interesses de seus amigos. Tais estabelecimentos militares, contudo, no tiveram futuro. Eram guarnecidos unicamente quando os respectivos traficantes andavam recolhendo seus produtos, o que s vezes durava meses. Depois eram abandonados. De sorte que a explorao do pau-brasil, mesmo desta forma indireta, no serviu em nada para fixar qualquer ncleo de povoamento no pas. Nem era de esper-lo. No havia interesse em localizar-se num ponto, quando a madeira procurada se

espalhava aos azares da natureza e se esgotava rapidamente pelo corte intensivo. A indstria extrativa do pau-brasil tinha necessariamente de ser nmade; no era capaz, por isso, de dar origem a um povoamento regular e estvel. No so muitos os dados que possumos sobre esta primeira forma de atividade econmica no Brasil. No que se relaciona com os portugueses, sabemos que a extrao do pau-brasil foi, desde o incio, considerada monoplio real. Para dedicar-se a ela tornava-se necessria uma concesso do soberano. Era esse alis o sistema empregado por Portugal com relao a todas as atividades comerciais ultramarinas. Assim foi com o comrcio das especiarias na ndia, do ouro, marfim ou escravos na frica, e agora com o paubrasil na Amrica. Tudo isto constitua privilgio da coroa, que cobrava direitos por sua explorao. A primeira concesso relativa ao pau-brasil data de 1501 e foi outorgada a um Fernando de Noronha (que deixou seu nome a uma ilha do Atlntico que hoje pertence ao Brasil), associado a vrios mercadores judeus. A concesso era exclusiva, e durou at 1504. Depois desta data, por motivos que no so conhecidos, no se concedeu mais a ningum, com exclusividade, a explorao da madeira que passou a ser feita por vrios traficantes. Os franceses tiveram sempre uma poltica mais liberal que os portugueses. Embora conheamos ainda menos de suas atividades, sabe-se que nunca instituram monoplios ou privilgios reais. O que se explica, porque era sem direito algum que traficavam na costa brasileira, concedida como ela estava ao Rei de Portugal pela autoridade do Papa, ento reconhecida universalmente entre povos cristos. No podia pois o soberano francs arrogar-se um direito que ningum lhe reconhecia; e as atividades de seus sditos no Brasil representavam iniciativa puramente individual que o Rei, alis, nunca endossou oficialmente. Foi rpida a decadncia da explorao do pau-brasil. Em alguns decnios esgotara-se o melhor das matas costeiras que continham a preciosa rvore, e o negcio perdeu seu interesse. Assim mesmo continuar-se- a explorar esporadicamente o produto, sempre sob o regime do monoplio real, realizando uma pequena exportao que durar at princpios do sculo passado. Mas no ter mais importncia alguma aprecivel, nem em termos absolutos, nem relativamente aos outros setores da economia brasileira. So estes, que passaremos agora a analisar, que ocuparo depois de 1530 o cenrio econmico do pas.

A OCUPAO EFETIVA 1530-16404 Incio da Agricultura

NO TERCEIRO decnio do sc. XVI o Rei de Portugal estar bem convencido que nem seu direito sobre as terras brasileiras, fundado embora na soberania do Papa, nem o sistema, at ento seguido, de simples guardas-costas volantes, era suficiente para afugentar os franceses que cada vez mais tomam p em suas possesses americanas. Cogitar ento de defend-las por processo mais amplo e seguro: a ocupao efetiva pelo povoamento e colonizao. Mas para isto ocorria uma dificuldade: ningum se interessava pelo Brasil. A no ser os traficantes de madeira e estes mesmos j comeavam a abandonar uma empresa cujos proveitos iam em declnio ningum se interessara seriamente, at ento, pelas novas terras; menos ainda para habit-las. Todas as atenes de Portugal estavam voltadas para o Oriente, cujo comrcio chegara neste momento ao apogeu. Nem o Reino contava com populao suficiente para sofrer novas sangrias; os seus parcos habitantes, que no chegavam a dois milhes, j suportavam com grande sacrifcio as expedies orientais. Nestas condies, realizar o povoamento de uma costa imensa como a do Brasil era tarefa difcil. Procurou-se compensar a dificuldade outorgando queles que se abalanassem a ir colonizar o Brasil vantagens considerveis: nada menos que poderes soberanos, de que o Rei abria mo em benefcio de seus sditos que se dispusessem a arriscar cabedais e esforos na empresa. Assim mesmo, poucos sero os pretendentes. Podemos inferi-lo da qualidade das pessoas que se apresentaram, entre as quais no figura nenhum nome da grande nobreza ou do alto comrcio do Reino. So todos (doze apenas, alis), indivduos de pequena expresso social e econmica. A maior parte deles fracassar na empresa e perder nela todas as suas posses (alguns at a vida), sem ter conseguido estabelecer no Brasil nenhum ncleo fixo de povoamento. Apenas dois tiveram sucesso; e um destes foi grandemente auxiliado pelo Rei. O plano, em suas linhas gerais, consistia no seguinte: dividiu-se a costa brasileira (o interior, por enquanto, para todos os efeitos desconhecido), em doze setores lineares com extenses que variavam entre 30 e 100 lguas.6 Estes setores chamar-se-o capitanias, e sero doadas a titulares que gozaro de grandes regalias e poderes soberanos; caber-lhes- nomear autoridades administrativas e juzes em seus respectivos territrios, receber taxas e impostos, distribuir terras, etc. O Rei conservar apenas 6

Lgua uma antiga medida portuguesa equivalente aproximadamente a 6 quilmetros.

direitos de suserania semelhantes aos que vigoravam na Europa feudal. Em compensao, os donatrios das capitanias arcariam com todas as despesas de transporte e estabelecimento de povoadores. Somas relativamente grandes foram despendidas nestas primeiras empresas colonizadoras do Brasil. Os donatrios, que em regra no dispunham de grandes recursos prprios, levantaram fundos tanto em Portugal como na Holanda, tendo contribudo em boa parte banqueiros e negociantes judeus. A perspectiva principal do negcio est na cultura da cana-de-acar. Tratava-se de um produto de grande valor comercial na Europa. Forneciam-no, mas em pequena quantidade, a Siclia, as ilhas do Atlntico ocupadas e exploradas pelos portugueses desde o sculo anterior (Madeira, Cabo Verde), e o Oriente de onde chegava por intermdio dos rabes e dos traficantes italianos do Mediterrneo. O volume deste fornecimento era contudo to reduzido que o acar se vendia em boticas, pesado aos gramas. J se conhecia o bastante do Brasil para esperar que nele a cana-de-acar dar-se-ia bem. O clima quente e mido da costa serlhe-ia altamente favorvel; e quanto mo-de-obra, contou-se a princpio com os indgenas que, como vimos, eram relativamente numerosos e pacficos no litoral. Estas perspectivas seriam amplamente confirmadas; o nico fator ainda ignorado antes da tentativa, a qualidade do solo, revelar-se-ia surpreendentemente propcio, em alguns pontos pelo menos da extensa costa. Foi o caso, particularmente do Extremo-Nordeste, na plancie litornea hoje ocupada pelo Estado de Pernambuco; e do contorno da baa de Todos os Santos (o Recncavo baiano, como seria chamado). No seriam alis os nicos: de uma forma geral, toda a costa brasileira presta-se ao cultivo da cana-de-acar. nesta base, portanto, que se iniciaro a ocupao efetiva e a colonizao do Brasil. Sem entrar nos pormenores das vicissitudes sofridas pelos primeiros colonos, seus sucessos e fracassos, examinemos como se organizar sua economia. O regime de posse da terra foi o da propriedade alodial e plena. Entre os poderes dos donatrios das capitanias estava, como vimos, o de disporem das terras, que se distriburam entre os colonos. As doaes foram em regra muito grandes, medindo-se os lotes por muitas lguas. O que compreensvel: sobravam as terras, e as ambies daqueles pioneiros recrutados a tanto custo, no se contentariam evidentemente com propriedades pequenas; no era a posio de modestos camponeses que aspiravam no novo mundo, mas de grandes senhores e latifundirios. Alm disso, e sobretudo por isso, h um fator material que determina este tipo de propriedade fundiria. A cultura da cana somente se prestava, economicamente, a grandes plantaes. J para desbravar convenientemente o terreno (tarefa custosa neste meio tropical e virgem to hostil ao homem) tornava-se necessrio o esforo reunido de muitos trabalhadores; no era empresa para pequenos proprietrios isolados. Isto feito, a plantao, a colheita e o transporte do produto at os engenhos onde se preparava o acar, s se tomava rendoso quando realizado em grandes volumes. Nestas condies, o pequeno produtor no podia subsistir. So sobretudo estas circunstncias que determinaro o tipo de explorao agrria adotada no Brasil: a grande propriedade. A mesma coisa alis se verificou em todas as colnias tropicais e sub-

tropicais da Amrica. O clima ter um papel decisivo na discriminao dos tipos agrrios. As colnias inglesas do Norte, pela contiguidade a de zonas diferentes e variedade de tentativas e experincias ensaiadas, bem como pelo fato de serem todas da mesma origem nacional, nos oferecem esplndido campo de observao. Nas de clima temperado (Nova Inglaterra, Nova Iorque, Pensilvnia, Nova Jrsei, Delaware) estabeleceu-se a pequena propriedade do tipo campons; s vezes encontramos a grande propriedade, como em Nova Iorque, mas parcelada pelo arrendamento; a pequena explorao em todo caso, realizada pelo prprio lavrador, proprietrio ou arrendatrio, auxiliado quando muito por um pequeno nmero de subordinados. Ao sul da baa de Delaware, nesta plancie litornea mida e quente, onde j nos encontramos em meio fsico de natureza subtropical, estabeleceu--se pelo contrrio a grande propriedade trabalhada por escravos, a plantation. Na mesma altura, mas para o interior, nos elevados vales da cordilheira dos Apalaches, onde a altitude corrige a latitude, reaparece novamente a colonizao por pequenas propriedades. A influncia dos fatores naturais to sensvel nesta discriminao de tipos agrrios que ela acaba se impondo mesmo quando o objetivo inicial e deliberado de seus promotores outro. Assim na Gergia e Carolina, onde nos achamos em zona nitidamente subtropical, a inteno dos organizadores da colonizao (neste caso, como em geral nas colnias inglesas, companhias ou indivduos concessionrios) foi constituir um regime de pequenas propriedades de rea proporcional capacidade de trabalho prprio de cada lavrador; com este critrio iniciou-se a colonizao e a distribuio das terras. Mas frustrou-se tal objetivo, e o plano inicial fracassou, instituindo-se em lugar dele o tipo geral das colnias tropicais. Nas ilhas de Barbados passou-se qualquer coisa de semelhante. A primeira organizao que se estabeleceu a foi de propriedades regularmente subdivididas, e no se empregou o trabalho escravo em escala aprecivel. Mas pouco depois, introduzia-se na ilha a cultura eminentemente tropical da cana-de-acar: as propriedades se congregam, transformando-se em imensas plantaes; e os escravos, em nmero de pouco mais de 6.000, em 1643, sobem, 23 anos depois, para mais de 50.000. A grande propriedade ser acompanhada no Brasil pela monocultura; os dois elementos so correlatos e derivam das mesmas causas. A agricultura tropical tem por objetivo nico a produo de certos gneros de grande valor comercial, e por isso altamente lucrativos. No com outro fim que se enceta, e no fossem tais as perspectivas, certamente no seria tentada ou logo pereceria. fatal portanto que todos os esforos sejam canalizados para aquela produo; mesmo porque o sistema da grande propriedade trabalhada por mo-de-obra inferior, como a regra nos trpicos, e ser o caso no Brasil, no pode ser empregada numa explorao diversificada e de alto nvel tcnico. Com a grande propriedade monocultural instala-se no Brasil o trabalho escravo. No somente Portugal no contava com populao bastante para abastecer sua colnia de mo-de-obra suficiente, como tambm, j o vimos, o portugus, como qualquer outro colono europeu, no emigra para os trpicos, em princpio, para se engajar

como simples trabalhador assalariado do campo. A escravido tornase assim uma necessidade: o problema e a soluo foram idnticos em todas as colnias tropicais e mesmo subtropicais da Amrica. Nas inglesas, onde se tentaram a princpio outras formas de trabalho, alis uma semi-escravido de trabalhadores brancos, os indentured servants, a substituio pelo negro no tardou muito. alis esta exigncia da colonizao dos trpicos americanos que explica o renascimento, na civilizao ocidental, da escravido em declnio desde fins do Imprio Romano, e j quase extinta de todo neste sc. XVI em que se inicia aquela colonizao. Assinalei que no Brasil se recorreu, a princpio, ao trabalho dos indgenas. Estes j se tinham iniciado na tarefa no perodo anterior da extrao do pau-brasil; prestar-se-iam agora, mais ou menos benevolentemente, a trabalharem na lavoura de cana. Mas esta situao no duraria muito. Em primeiro lugar, medida que afluam mais colonos, e portanto as solicitaes de trabalho, ia decrescendo o interesse dos ndios pelos insignificantes objetos com que eram dantes pagos pelo servio. Tornam-se aos poucos mais exigentes, e a margem de lucro do negcio ia diminuindo em proporo. Chegou-se a entregar-lhes armas, inclusive de fogo, o que foi rigorosamente proibido, por motivos que se compreendem. Alm disto, se o ndio, por natureza nmade, se dera mais ou menos bem com o trabalho espordico e livre da extrao do pau-brasil, j no acontecia o mesmo com a disciplina, o mtodo e os rigores de uma atividade organizada e sedentria como a agricultura. Aos poucos foi-se tornando necessrio for-lo ao trabalho, manter vigilncia estreita sobre ele e impedir sua fuga e abandono da tarefa em que estava ocupado. Da para a escravido pura e simples foi apenas um passo. No eram passados ainda 30 anos do incio da ocupao efetiva do Brasil e do estabelecimento da agricultura, e j a escravido dos ndios se generalizara e institura firmemente em toda parte. Isto no se fez, alis, sem lutas prolongadas. Os nativos se defenderam valentemente; eram guerreiros, e no temiam a luta. A princpio fugiam para longe dos centros coloniais; mas tiveram logo de fazer frente ao colono que ia busc-los em seus refgios. Revidaram ento altura, indo assaltar os estabelecimentos dos brancos; e quando obtinham vitria, o que graas a seu elevado nmero relativamente aos poucos colonos era freqente, no deixavam pedra sobre pedra nos ncleos coloniais, destruindo tudo e todos que lhes caam nas mos. Foi este um perodo agitado da histria brasileira. s guerras entre colonos e indgenas acrescentaram-se logo as intestinas destes ltimos, fomentadas pelos brancos e estimuladas pelo ganho que dava a venda de prisioneiros capturados na luta. De toda esta agitao eram os ndios naturalmente que levavam o pior; mas nem por isso os colonos deixaram de sofrer muito. So inmeros os casos conhecidos de destruio total dos nascentes ncleos; certos setores do litoral brasileiro sofreram tanto dos ataques indgenas que nunca chegaram a se organizar normalmente; e vegetaram na mediocridade, assistindo periodicamente destruio de suas lavouras e povoaes. Esto no caso o sul do atual Estado da Bahia e o Esprito Santo. At princpios do sculo passado ainda sofrero dura-

mente da agressividade dos ndios. Para fazer frente a este estado de coisas, a metrpole procurar legislar na matria. Data de 1570 a primeira carta rgia a respeito. Estabelece-se nela o direito da escravido dos ndios, mas limitada aos aprisionados em "guerra justa". Era entendida como tal aquela que resultasse de agresso dos indgenas, ou que fosse promovida contra tribos que recusavam submeter-se aos colonos a entrarem em entendimentos com eles. A esta lei sucederam-se, a jato contnuo, outras sucessivas que seria muito longo analisar aqui. Mas todas mantiveram em princpio a escravido dos ndios, que somente ser abolida inteiramente em meados do sc. XVIII. Manter-se-, alis, mesmo depois, embora mais ou menos disfarada. A questo indgena e os atritos dela resultantes nunca sero resolvidos no Brasil seno indiretamente pelo recurso a outras fontes de trabalho, como veremos abaixo, o que aliviar os ndios. Mesmo assim, sobretudo em regies mais pobres que no podero pagar o elevado preo dos escravos africanos, os colonos nunca abriro mo de sua pretenso de constranger os ndios ao trabalho; e no houve lei ou limitao que os detivesse. Este ser, entre outros, o caso de So Vicente (hoje So Paulo). A luta a continuar vivssima pelo sc. XVII adiante, e os paulistas iro buscar os ndios em fuga nos mais longnquos territrios. Da estas expedies conhecidas por "bandeiras", que percorrero todo o interior do continente e que alargaro consideravelmente, embora sem conscincia disto, os limites das possesses portuguesas. Entre suas vtimas estaro as misses dos Jesutas, que se tinham localizado com seus ndios domesticados numa sucesso de ncleos estendidos pelo corao do continente, desde o rio Uruguai, no Sul, at o alto Amazonas. Periodicamente, estas misses sero atacadas pelas bandeiras, que levaro os ndios encontrados em cativeiro. Em muitos casos, os padres desalojados abandonaro a partida; e o territrio, antes ocupado por eles (e includos por isso at ento, porque eles eram de origem espanhola, nos domnios castelhanos) ficar livre para a expanso da colonizao portuguesa. A caa ao ndio ser um dos principais fatores da grandeza atual do Brasil. Alm da resistncia que ofereceu ao trabalho, o ndio se mostrou mau trabalhador, de pouca resistncia fsica e eficincia mnima. Nunca teria sido capaz de dar conta de uma tarefa colonizadora levada em grande escala. Est a o exemplo da Amaznia, onde no chegou a ser substitudo em escala aprecivel por outro trabalhador e onde, em grande parte por isso, a colonizao estacionou at quase nossos dias. que, de um lado, seu nmero era relativamente pequeno; doutro, o ndio brasileiro, saindo de uma civilizao muito primitiva, no podia adaptar-se com a necessria rapidez ao sistema e padres de uma cultura to superior sua, como era aquela que lhe traziam os brancos. O Brasil, neste assunto, estava em situao radicalmente diversa do Mxico e dos pases andinos. Aqui ser o negro africano que resolver o problema do trabalho. Os portugueses estavam bem preparados para a substituio; j de longa data, desde meados do sc. XV, traficavam com pretos escravos adquiridos nas costas da frica e introduzidos no Reino europeu onde eram empregados em vrias ocupaes; servios domsticos, trabalhos urbanos pesados, e mesmo na agricultura. Tambm se

utilizavam nas ilhas (Madeira e Cabo Verde), colonizadas pelos portugueses na segunda metade daquele sculo. No se sabe ao certo quando apareceram pela primeira vez no Brasil; h quem afirme que vieram j na primeira expedio oficial de povoadores (1532). O fato que na metade do sculo eles so numerosos. O processo de substituio do ndio pelo negro prolongar-se- at o fim da era colonial. Far-se- rapidamente em algumas regies: Pernambuco, Bahia. Noutras ser muito lento, e mesmo imperceptvel em certas zonas mais pobres, como no Extremo-Norte (Amaznia), e at o sc. XIX em So Paulo. Contra o escravo negro havia um argumento muito forte: seu custo. No tanto pelo preo pago na frica; mas em conseqncia da grande mortandade a bordo dos navios que faziam o transporte. Mal alimentados, acumulados de forma a haver um mximo de aproveitamento de espao, suportando longas semanas de confinamento e as piores condies higinicas, somente uma parte dos cativos alcanavam seu destino. Calcula-se que, em mdia, apenas 50% chegavam com vida ao Brasil; e destes, muitos estropiados e inutilizados. O valor dos escravos foi assim sempre muito elevado, e somente as regies mais ricas e florescentes podiam suport-lo. Mas seja com escravos africanos, escravos ou semi-escravos indgenas, a organizao das grandes propriedades aucareiras da colnia foi sempre, desde o incio, mais ou menos a mesma. ela a da grande unidade produtora que rene num mesmo conjunto de trabalho produtivo, um nmero mais ou menos avultado de indivduos sob a direo imediata do proprietrio ou seu feitor. a explorao em larga escala, que conjugando reas extensas e numerosos trabalhadores, constitui-se como uma nica organizao coletiva do trabalho e da produo. Ope-se assim pequena explorao parcelaria realizada diretamente por proprietrios ou arrendatrios. O seu elemento central o engenho, isto , a fbrica propriamente, onde se renem as instalaes para a manipulao da cana e o preparo do acar. O nome de "engenho" estendeu-se depois da fbrica para o conjunto da propriedade com suas terras e culturas: "engenho" e "propriedade canavieira" se tornaram sinnimos. Embora o proprietrio explore, em regra, diretamente suas terras (como ficou entendido acima), h casos freqentes em que cede partes delas a lavradores que se ocupam com a cultura e produzem a cana por conta prpria, obrigando-se contudo a moerem sua produo no engenho do proprietrio. So as chamadas fazendas obrigadas; o lavrador recebe metade do acar extrado da sua cana, e ainda paga pelo aluguel das terras que utiliza urna certa porcentagem, varivel segundo o tempo e os lugares, e que vai de 5 a 20%. H tambm os lavradores livres, proprietrios das terras que ocupam, e que fazem moer a sua cana no engenho que entendem; recebem ento a meao integral. Os lavradores, embora estejam socialmente abaixo dos senhores de engenho, no so pequenos produtores, da categoria de camponeses. Trata-se de senhores de escravos, e suas lavouras, sejam em terras prprias ou arrendadas, formam como os engenhos grandes unidades. A razo por que nem todas as propriedades dispem de engenho prprio so as propores e o custo das instalaes necessrias. O engenho um estabelecimento complexo, compreendendo numerosas

construes e aparelhos mecnicos: moenda (onde a cana espremida); caldeira, que fornece o calor necessrio ao processo de purificao do caldo; casa de purgar, onde se completa esta purificao. Alm de outras, o que todas as propriedades possuem , em regra, a casa-grande, a habitao do senhor; a senzala dos escravos; e instalaes acessrias ou suntuarias: oficinas, estrebarias, etc. Suas terras, alm dos canaviais, so reservadas para outros fins: pastagens para animais de trabalho; culturas alimentares para o pessoal numeroso; matas para fornecimento de lenha e madeira de construo. A grande propriedade aucareira um verdadeiro mundo em miniatura em que se concentra e resume a vida toda de uma pequena parcela da humanidade. O nmero de trabalhadores naturalmente varivel. Nos bons engenhos, os escravos so de 80 a 100. Chegam s vezes a muito mais; h notcias, embora isto j se refira ao sculo XVIII, de engenhos com mais de 1.000 escravos. Os trabalhadores livres so raros, apenas nas funes de direo e nas especializadas: feitores, mestres, purgadores, caixeiros (so os que fazem as caixas em que o acar acondicionado), etc. So, alis, mais freqentemente, antigos escravos libertos. Alm do acar, extrai-se tambm da cana a aguardente. um subproduto de grande consumo na colnia, e que se exportava para as costas da frica, onde servia no escambo e aquisio de escravos. A par das destilarias de aguardente anexas aos engenhos, h os estabelecimentos prprios e exclusivos para este fim; so as engenhocas ou molinetes, em regra de propores mais modestas que os engenhos, pois as instalaes para o preparo da aguardente so muito mais simples e menos dispendiosas. A aguardente uma produo mais democrtica que o aristocrtico acar. H no entanto destilarias com dezenas de escravos. Durante mais de sculo e meio a produo do acar, com as caractersticas assinaladas, representar praticamente a nica base em que assenta a economia brasileira. Alis sua importncia, mesmo internacional, considervel. At meados do sc. XVII o Brasil ser o maior produtor mundial de acar, e somente ento que comearo a aparecer concorrentes srios: as colnias da Amrica Central e Antilhas. Contando com tal fator, a colonizao brasileira, superados os problemas e as dificuldades do primeiro momento, desenvolveu-se rpida e brilhantemente, estendendo-se cada vez mais para novos setores. E cada extenso corresponde efetivamente a um alargamento da rea canavieira. Os dois grandes ncleos iniciais esto, como j foi referido, na Bahia e em Pernambuco. Num segundo plano est So Vicente. De Pernambuco, a colonizao se alargou para o sul e norte, acompanhando sempre a fmbria costeira; para o interior esbarraria com a zona semi-rida do serto nordestino. Na direo setentrional interrompe-se a expanso no Rio Grande do Norte; alm, desaparecem os solos frteis, que so substitudos por extenses arenosas imprprias para qualquer forma de agricultura. Somente pequenos ncleos de importncia mnima vo surgir esparsos na costa setentrional do Brasil: no Maranho, na foz do rio Amazonas. Na Bahia o movimento mais ou menos estacionou em torno da baa de Todos os Santos; mas tomar tamanho vulto que no ser superado

por nenhum outro setor da colnia. Localiza-se a o maior centro produtor. Na costa meridional da Bahia (Porto Seguro, Ilhus) formam-se pequenos centros aucareiros; mas a hostilidade permanente dos ndios, bem como outras condies menos favorveis, como a qualidade do solo, impediram qualquer progresso aprecivel. No Esprito Santo d-se mais ou menos a mesma coisa. Para o sul, finalmente, a produo de acar concentrar-se- na vizinhana do Rio de Janeiro e em So Vicente. Tambm estes centros, devido sobretudo sua posio excntrica e afastamento dos mercados europeus onde se consumia o acar brasileiro, no gozaro nesta primeira fase da histria brasileira de grande prosperidade. At o sc. XVIII permanecero num apagado segundo plano. Alm do acar, embora em escala relativamente pequena, comear a cultivar-se tambm, desde princpios do sc. XVII, o tabaco. Trata-se, como se sabe, de uma planta indgena da Amrica, e cujo produto teve logo crescente aceitao na Europa. Mas no s com este objetivo que se cultivou no Brasil, e sim tambm para ser utilizada no trfico de escravos; o tabaco servir para adquirilos pelo escambo na costa da frica, e ser em grande parte em funo deste negcio que se desenvolver a cultura brasileira. Quando em princpios do sc. XIX comeam a se estabelecer restries ao trfico, a produo entrar paralelamente em crise. Mas at esta poca ser prspera, e embora de segundo plano e muito inferior do acar, merece algum destaque. O centro principal da produo na Bahia, e como a do acar desta regio, no contorno do Recncavo, particularmente na vila de Cachoeira. Outras zonas produtoras sero em Sergipe e Alagoas.

5 Atividades Acessrias

NUMA ECONOMIA como a brasileira particularmente em sua primeira fase preciso distinguir dois setores bem diferentes da produo. O primeiro dos grandes produtos de exportao, como o acar e o tabaco, que vimos no captulo anterior; o outro das atividades acessrias cujo fim manter em funcionamento aquela economia de exportao. So sobretudo as que se destinam a fornecer os meios de subsistncia populao empregada nesta ltima, e poderamos, em oposio outra, denomin-la economia de subsistncia. A distino muito importante, porque alm das caractersticas prprias que acompanham um e outro setor, ela serve para concluses de grande relevo na vida e na evoluo econmica da colnia. No primeiro captulo em que procurei destacar o carter geral da colonizao brasileira, j se verificou que ele o de uma colnia destinada a fornecer ao comrcio europeu alguns gneros tropicais de grande expresso econmica. para isto que se constituiu. A nossa economia subordinar-se- por isso inteiramente a tal fim, isto , se organizar e funcionar para produzir e exportar aqueles gneros. Tudo mais que nela existe, e que, alis, ser sempre de pequena monta, subsidirio e destinado unicamente a amparar e tornar possvel a realizao daquele objetivo essencial. Inclui-se a a economia de subsistncia de que trataremos agora. Ao contrrio da cana-de-acar, onde encontramos a explorao em larga escala, neste setor so outras formas e tipos de organizao que vamos observar. Eles so alis variveis. Encontramos a produo de gneros de consumo, em primeiro lugar, includa nos prprios domnios da grande lavoura, nos engenhos e nas fazendas. Estes so em regra autnomos no que diz respeito subsistncia alimentar daqueles que os habitam e neles trabalham. Praticam-se a, subsidiariamente, as culturas necessrias a este fim, ou nos mesmos terrenos dedicados cultura principal, e entremeando-a, ou em terras parte destinadas especialmente a elas. Parte realizada por conta do proprietrio, que emprega os mesmos escravos que tratam da lavoura principal e que no esto permanentemente ocupados nela; outra, por conta dos prprios escravos, aos quais se concede um dia por semana, geralmente o domingo, e at s vezes, no caso de um senhor particularmente generoso, mais outro dia qualquer, para tratarem de suas culturas. Assim, de um modo geral, pode-se dizer que a populao rural da colnia ocupada nas grandes lavouras e que constitui a quase totalidade dela, prov suficientemente a sua subsistncia com culturas alimentares a que se dedica subsidiariamente, e sem necessidade de recorrer para fora. No est nestas condies a urbana. certo que no primeiro sculo e meio da colonizao os centros urbanos so muito pequenos. Assim mesmo, incluem uma populao dedicada sobretudo administrao e ao comrcio que no tem tempo nem meios para ocupar-se de sua subsistncia, e cujo nmero suficiente para fazer sentir

o problema da sua manuteno. Em parte, abastecem-na com seus excessos os grandes domnios. Parte pequena, freqentemente nula. O acar se encontra numa fase de prosperidade ascendente; os preos so vantajosos", e os esforos se canalizam no mximo para sua produo. No sobra assim grande margem para atender s necessidades alimentares dos centros urbanos. Por este motivo constituem-se lavouras especializadas, isto , dedicadas unicamente produo de gneros de manuteno. Forma-se assim um tipo de explorao rural diferente, separado da grande lavoura, e cujo sistema de organizao muito diverso. Trata-se de pequenas unidades que se aproximam do tipo campons europeu em que o proprietrio que trabalha ele prprio, ajudado quando muito por pequeno nmero de auxiliares, sua prpria famlia em regra, e mais raramente algum escravo. A populao indgena contribuiu em grande parte para esta classe de pequenos produtores autnomos. Os primeiros colonos chegados tiveram naturalmente que apelar, de incio, para os ndios a fim de satisfazerem suas necessidades alimentares; ocupados em organizarem suas empresas, no lhes sobrava tempo para se dedicarem a outras atividades. Os ndios, que no seu estado nativo j praticavam alguma agricultura, embora muito rudimentar e seminmade, encontraram neste abastecimento dos colonos brancos um meio de obter os objetos e mercadorias que tanto prezavam. Muitos deles foram-se por isso fixando em torno dos ncleos coloniais e adotando uma vida sedentria. Mestiando-se depois aos poucos, e adotando os hbitos e costumes europeus, embora de mistura com suas tradies prprias, constituiro o que mais tarde se chamou de "caboclos", e formaro o embrio de uma classe mdia entre os grandes proprietrios e os escravos. Quanto aos produtos desta pequena agricultura de subsistncia, eles foram em grande parte procurados na cultura indgena. Assim, diferentes espcies de tubrculos, em particular a mandioca (manihot utilissima, Pohl). Este gnero ser a base da alimentao vegetal da colnia, e cultivar-se- em toda parte. Depois da mandioca vem o milho, cujo valor acrescido pelo fato de tratar-se de excelente forragem animal. O arroz e o feijo seguem nesta lista. As verduras, pelo contrrio, sempre foram pouco consumidas na colnia. A abundncia de frutas substituiu suas qualidades nutritivas; no somente a flora nativa do Brasil conta com grande nmero de frutas comestveis e saborosas, como algumas espcies exticas (a banana e a laranja, sobretudo), introduzidas desde o incio da colonizao, foram largamente disseminadas. O papel secundrio a que o sistema econmico do pas, absorvido pela grande lavoura, vota agricultura de subsistncia, determinou um problema dos mais srios que a populao colonial teve de enfrentar. Refiro-me ao abastecimento dos ncleos de povoamento mais denso, onde a insuficincia alimentar se tornou quase sempre a regra. Naturalmente a questo aparece mais seriamente no sc. XVIII, quando os centros urbanos adquirem relativa importncia; mas o problema j existe desde o princpio da colonizao, e a legislao preocupa-se muito com ele. Estabelecem-se medidas obrigando os proprietrios a plantarem mandioca e outros alimentos; gravam-se as doaes de terras com a obrigao de se cultivarem gneros alimentares desde o primeiro ano da concesso. E assim ou-

tras. Todas estas medidas eram mais ou menos frustradas na prtica. As atenes estavam fixas no acar, cuja exportao deixava grande margem de lucros, e ningum dar importncia aos gneros alimentares. Um grande senhor de engenho chegar a lanar seu formal desafio s leis que o compeliam ao plantio da mandioca; "No planto um s p de mandioca, escrever ele dirigindo-se. s autoridades, para no cair no absurdo de renunciar melhor cultura do pas pela pior que nele h..." Compreende-se alis esta atitude dos grandes proprietrios e senhores de engenho. O problema da carestia e da falta de alimentos no existia para eles, e convinhalhes muito mais plantar a cana, embora pagassem preos mais elevados pelos gneros que consumiam. E como eram eles que detinham a maior e melhor parte das terras aproveitveis, o problema da alimentao nunca se resolver convenientemente. A populao colonial, com exceo apenas das suas classes mais abastadas, viver sempre num crnico estado de subnutrio. A urbana naturalmente sofrer mais; mas a rural tambm no deixar de sentir os efeitos da ao absorvente e monopolizadora da cana-de-acar que reservara para si as melhores terras disponveis. As importantes conseqncias deste fato, que podem ser avaliadas sem necessidade de maior insistncia na matria, justifica suficientemente s por si a necessidade de distinguir na economia brasileira aqueles dois setores em que se dividem suas atividades produtivas: o da grande lavoura e o da subsistncia. Se no, no se explicaria este quadro caracterstico da vida colonial: de um lado abastana, prosperidade e grande atividade econmica; doutro, a falta de satisfao da mais elementar necessidade da grande massa da populao: a fome. Neste setor da subsistncia tambm entra a pecuria. Ela tambm se destina a satisfazer as necessidades alimentares da populao. A carne de vaca ser um dos gneros fundamentais do consumo colonial. Mas a pecuria, apesar da importncia relativa que atinge, e do grande papel que representa na colonizao e ocupao de novos territrios, assim mesmo uma atividade nitidamente secundria e acessria. Havemos de observ-lo em todos os caracteres que a acompanham: o seu lugar ser sempre de segundo plano, subordinando-se s atividades principais da grande lavoura, e sofrendolhe de perto todas as contingncias. A comear pela sua localizao. A cultura da cana no permitiu que se desenvolvesse nos frteis terrenos da beira-mar. Relegou-a para o interior mesmo quando este apresentava os maiores inconvenientes vida humana e suas atividades, como se d em particular no serto do Nordeste. Alia-se a uma baixa pluviosidade grande irregularidade das precipitaes. Estas se concentram em dois ou trs meses do ano; e isto nos casos mais felizes, porque so freqentes as secas prolongadas, de anos seguidos de falta completa de chuvas. Um tal regime determinou condies fisiogrficas particulares e muito desfavorveis. Com a exceo de uns rarssimos rios, todos os cursos d'gua desta vasta regio que abrange mais 1.000.000 km2, so intermitentes, e neles se alterna a ausncia prolongada e total de gua, com cursos torrenciais, de pequena durao, mas arrasadores na sua violncia momentnea. A vegetao compe-se de uma pobre cobertura de plantas hidrfilas em que pre-

dominam as cactcias. Unicamente nos raros perodos de chuvas nelas se desenvolve uma vegetao mais aproveitvel que logo depois das precipitaes crestada pela ardncia do sol. nesta regio ingrata que se desenvolve a pecuria que abastecer os ncleos povoados do litoral norte, do Maranho at a Bahia Pode-se avaliar como seria baixo seu nvel econmico e ndice de produtividade. Basta dizer que neste milho de quilmetros quadrados, praticamente todo ocupado, o nmero de cabeas de gado no alcanar talvez nunca 2 milhes, umas duas cabeas em mdia por quilmetro. Quanto qualidade, ela tambm nfima: as reses, em mdia, no fornecero mais de 120 kg de carne por animal; e carne de pouco valor. Apesar das condies desvantajosas em parte graas a elas porque foraram uma grande disperso , as fazendas de gado se multiplicaram rapidamente, estendendo-se, embora numa ocupao muito rala e cheia de vcuos, por grandes reas. Seu centros de irradiao so a Bahia e Pernambuco. A partir do primeiro, elas se espalham sobretudo para norte e noroeste em direo do rio So Francisco, que j alcanado em seu curso mdio no correr do sc. XVII. De Pernambuco, o movimento tambm segue uma direo norte e noroeste, indo ocupar o interior dos atuais Estados da Paraba e do Rio Grande do Norte. Um ncleo secundrio que tambm deu origem a um certo movimento expansionista de fazendas de gado o Maranho: elas se localizam a ao longo do rio Itapicuru. A rapidez com que se alastraram as fazendas no serto nordestino se explica, de uma parte, pelo consumo crescente do litoral onde se desenvolvia ativamente a produo aucareira e o povoamento; doutra, pela pequena densidade econmica e baixa produtividade da indstria. Mas tambm pela facilidade com que se estabeleciam as fazendas: levantada uma casa, coberta em geral de palha so as folhas de uma espcie de palmeira, a carnaubeira, muito abundante, que se empregam , feitos uns toscos currais e introduzido o gado (algumas centenas de cabeas), esto ocupadas trs lguas (rea mdia das fazendas) e formado um estabelecimento. Dez ou doze homens constituem o pessoal necessrio: recrutam-se entre ndios e mestios, bem como entre foragidos dos centros policiados do litoral: criminosos escapos da justia, escravos em ruga, aventureiros de toda ordem que logo abundam numa regio onde o deserto lhes d liberdade e desafogo. Uma fazenda se constitui em regra com trs lguas dispostas ao longo de um curso d'gua, por uma de largura, sendo meia para cada margem. Da alis o nome genrico de "ribeira" que se d s vrias regies do interior nordestino: a designao vem da estrutura do povoamento que se origina nas fazendas que margeiam os rios. Entre cada fazenda medeava uma lgua de terras que se conservam devolutas; nesta lgua nenhum dos confinantes pode levantar construes ou realizar quaisquer obras. Ela serve apenas de divisa, providncia necessria onde, por falta de materiais apropriados, no se usam cercas ou quaisquer outras tapagens. Evitam-se assim as incurses do gado em fazendas vizinhas e confuso dos rebanhos. O trabalho em regra livre. Nestes territrios imensos, pouco povoados e sem autoridades, difcil manter a necessria vigilncia sobre trabalhadores escravos. A fazenda dirigida por um

administrador, o vaqueiro; o proprietrio, em regra senhor de muitas fazendas, um absentista que reside ordinariamente nos grandes centros do litoral. Para o abastecimento dos ncleos coloniais do Sul (Rio de Janeiro, So Vicente), formam-se outras regies criatrias. O Rio de Janeiro se abastece, sobretudo nesta primeira fase da colonizao, nos chamados Campos dos Goitacases, que ficam a leste do atual Estado da Guanabara, margeando o baixo curso do rio Paraba. So Vicente e subsidiariamente tambm o Rio de Janeiro recebem seu gado dos Campos Gerais estendidos para o sul dos atuais Estados de So Paulo e Paran. Nestas regies as condies naturais so muito superiores s do Nordeste. A qualidade do gado por isso melhor, sua densidade mais elevada. E em conseqncia as fazendas no se dispersaram tanto como no Nordeste. Em parte tambm porque o Rio de Janeiro e So Vicente constituem, nos dois primeiros sculos, ncleos secundrios e muito menos povoados que os do Norte; as suas necessidades de carne so por isso menores.

EXPANSO DA COLONIZAO 1640-1770

6 Novo Sistema Poltico e Administrativo na Colnia

DE 1580 A 1640 a coroa portuguesa esteve reunida da Espanha. O reino de Portugal no foi englobado na monarquia espanhola; embora sob a dominao do mesmo monarca, conservou sua autonomia, sendo governado por um Vice-Rei em nome do soberano espanhol. Foi um perodo sombrio da histria portuguesa. Descuraram-se por completo seus interesses; e o reino teve de participar da desastrosa poltica guerreira dos Habsburgos na Europa, contribuindo para ela com gente e avultados recursos. Portugal sairia arruinado da dominao espanhola, a sua marinha destruda, o seu imprio colonial esfacelado. Os Pases-Baixos e a Inglaterra, com que a Espanha estivera em luta quase permanente, ocuparo, para no mais a devolver, boa parte das possesses portuguesas. Estava definitivamente perdido para Portugal o comrcio asitico; as pequenas colnias que ainda conservar no Oriente no tm expresso aprecivel. Efetivamente s lhe sobrariam do antigo imprio ultramarino o Brasil e algumas posses na frica. Estas alis s valero como fornecedores de escravos para o Brasil. Na prpria colnia americana a soberania portuguesa correr grande risco. Alm de incurses espordicas de ingleses e holandeses, estes ltimos ocuparo efetivamente durante longos anos boa parte da colnia. Em 1630 instalam-se em Pernambuco, e da estendem suas conquistas para o sul at Alagoas, e para o norte at o Maranho. somente depois de restaurada a independncia portuguesa que os holandeses sero definitivamente expulsos do Brasil (1654). Todas estas circunstncias determinaro profunda modificao da poltica de Portugal com relao colnia. A prosperidade, a prpria existncia do Reino europeu passavam a depender exclusivamente dela. Tratava-se pois de tirar-lhe o maior proveito e partido possveis. Doutro lado, o empobrecimento de Portugal, privado do comrcio asitico que durante mais de um sculo lhe fornecera o melhor de seus recursos, fora o xodo em larga escala de sua populao que procurar na colnia americana os meios de subsistncia que j no encontrava na me ptria. A emigrao para o Brasil ser, a partir de meados do sc. XVII, considervel. Ameaou por vezes despovoar regies importantes de Portugal, como o Minho; e tomaram-se em conseqncia enrgicas medidas repressoras.

As leis que cobem a emigrao se sucedem sem interrupo por um sculo; e a sua prpria freqncia nos mostra que eram ineficazes. Para o Brasil, naturalmente, este fato ter largas conseqncias. Determinar um rpido crescimento da populao e extenso da colonizao. At a primeira metade do sc. XVII esta se limitara a uma estreita faixa ao longo do litoral, ou antes, pequenos ncleos esparsos por ele; e um incio de rala ocupao do interior nordestino. Depois daquela data, no somente se avolumar rapidamente nos setores j ocupados, mas estender-se- largamente pelo territrio, invadindo importantes reas que pertenciam legitimamente Espanha. Em um sculo a contar de 1650, os portugueses tero ocupado efetivamente, embora de forma dispersa, todo o territrio que ainda hoje constitui o Brasil. Quando em 1750 e posteriormente se redigem os grandes tratados que limitariam definitivamente as possesses portuguesas e espanholas neste continente, a Espanha ser obrigada a reconhecer a soberania de Portugal sobre toda esta metade da Amrica do Sul que forma o Brasil e que de direito lhe cabia na maior parte. E isto graas apenas ocupao efetiva que, antes dos espanhis, realizara o colono e povoador portugus. A runa de Portugal significara o desenvolvimento desmesurado do nosso pas. Mas a afluncia ininterrupta de grandes levas de colonos no ter no Brasil apenas este efeito. Provocar um grande distrbio do equilbrio econmico e social da colnia. A concorrncia dos recm-vindos que procuram naturalmente desalojar os j estabelecidos de suas posies, dar origem a um conflito permanente que no raro degenerou em luta armada. Os ltimos anos do sc. XVII e primeira metade do seguinte caracterizam-se por uma sucesso de atritos mais ou menos graves entre os naturais da colnia os adventcios. O reforamento da administrao pblica e da coao metropolitana conseguiro superar a situao em meados do sc. XVIII, impedindo-a de degenerar em violncias. Mas as rivalidades continuaro a lavrar surdamente e iro explodir afinal, em princpios do sculo passado, nas lutas pela emancipao. De fato, ao mesmo tempo que progride o afluxo de novos colonos, a administrao colonial se refora. A comear pela alta direo governamental. No primeiro sculo da colonizao no havia em Portugal aparelhamento algum destinado especialmente administrao da colnia. Os assuntos relativos a ela corriam pelas reparties ordinrias da administrao portuguesa. Sob o domnio castelhano, criou-se em Portugal, imitao do que havia em Sevilha, um Conselho das ndias. Isto se fez em 1604. Mas, aos poucos voltar-se- situao anterior, dispersando-se novamente os servios administrativos da colnia. Um dos primeiros cuidados do soberano portugus restaurado em 1640 (D. Joo IV), foi restabelecer a unidade administrativa criando o Conselho Ultramarino, cujo regulamento data de 14 de julho de 1642, e que permanecer at o fim da era colonial. No que diz respeito administrao local, a centralizao e reforamento do poder real sensvel. Os antigos donatrios das capitanias sero cada vez mais subordinados a governadores nomeados pelo Rei. J em 1584, diante do fracasso da maior parte dos donatrios, criara-se um governo geral que embora respeitando os

direitos daqueles senhores feudais das capitanias, exercer sobre eles uma superviso geral e auxili-los- quando necessrio. Este governo geral foi, em pocas distintas, separado em dois, repartindo-se entre eles o territrio da colnia, e reunido novamente num s. Mas a partir dos fins do sc. XVII, os poderes e a jurisdio dos donatrios sero cada vez mais restringidos e absorvidos pelos governadores reais. Aqueles ficaro aos poucos reduzidos unicamente aos direitos pecunirios que auferiam de suas capitanias. Quem administrava efetivamente a colnia eram os delegados do Rei. Alis os donatrios desaparecero logo completamente, pois a coroa resgatar-lhes- por compra os direitos hereditrios de que gozavam. Compelindo-o muitas vezes a isto contra sua vontade. Em meados do sc. XVIII todas as capitanias tero voltado ao domnio direto da coroa, e sero governadas por funcionrios de nomeao real. Ainda mais importante que este aspecto da evoluo centralizadora da poltica e administrao metropolitanas relativas ao Brasil, a decadncia das autoridades locais. Refiro-me s Cmaras municipais. Repetindo aqui as instituies do Reino, tinhamse criado rgos eletivos para a administrao local. As Cmaras, em Portugal, j tinham perdido a maior parte de sua importncia quando se inicia a colonizao do Brasil. Mas suas congne