história e jornalismo no séc. xx - marialva barbosa

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  • 7/25/2019 Histria e Jornalismo No Sc. XX - Marialva Barbosa

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    Revista

    FAMECOSmdia, cultura e tecnologia

    Porto Alegre, v. 19, n. 2, pp. 458-480, maio/agosto 2012

    Jornalismo

    Cenrios de transformao:Jornalismo e Histria no sculo XX1

    Transformation scenarios: Journalism and History in the twentieth century

    MARIALVACARLOSBARBOSA

    Professora do Programa de Ps-Graduao Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ.

    RESUMONeste texto apresento, inicialmente, trs cenrios constitutivosdas relaes Jornalismo e Histria e que foram denominados,respectivamente, Jornalismo e Histria, Histria no Jornalismoe Histria do Jornalismo. Esses trs movimentos constituemo cerne das trocas epistemolgicas entre o campo terico do

    jornalismo e o campo terico da histria. Ainda como parte

    do que chamamos Histria do Jornalismo, so analisadosalguns cenrios das transformaes do jornalismo brasileiro naprimeira metade do sculo XX, constituindo, dessa forma, umexerccio de natureza metodolgica para o desenvolvimentodas premissas tericas apresentadas nas duas primeiras partesdo artigo. Este texto, originalmente, foi apresentado sob a formade conferncia no concurso pblico para Professor Titular de

    Jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),realizado em dezembro de 2011, e no qual fui aprovada.P-:Jornalismo; Histria; Histria do jornalismo.

    ABSTRACTThree scenarios constitutive relations journalism and historyare presented in this text: Journalism in History, Journalismand History and History of Journalism. These three movementsare at the heart of the epistemological exchanges betweenthe theoretical eld of journalism and the theoretical eld ofhistory. As part of what we call the history of journalism some

    scenarios of change in Brazilian journalism in the rst half ofthe twentieth century are analyzed, providing thus an exercisein methodological nature to the development of theoreticalassumptions presented in the rst two parts of the article. Thistext was originally presented as a conference call for tendersfor the Chair Professor of Journalism at the Federal Universityof Rio de Janeiro (UFRJ), held in December 2011, and in whichI was approved.K:

    Journalism; History; History of journalism.

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    Apresento trs imagens do sculo XIX para iniciar este texto que tem por objetivodescortinar alguns processos jornalsticos do sculo XX no Brasil e que denomineiCenrios de Transformao.

    A primeira delas (Fig. 1) uma simples assinatura: cinco letras formando umnome que est postado num papel e que denota a possibilidade de escrever com mosrmes o nome que um prprio. A segunda (Fig. 2) reproduz uma cena ainda hojesubmetida dimenso do esquecimento por aqueles que se ocupam dos processoshistricos da imprensa no sculo XIX: um grupo de homens e mulheres que leem

    juntos, atravs de mltiplas possibilidades, um jornal. A terceira e ltima (Fig. 3) umsimples anncio publicado e que, no sculo XIX, repetia-se em jornais, das capitais edo interior, dando conta da fuga reiterada de escravos que no suportavam mais as

    agruras do cativeiro.

    Figura 1 Assinatura do escravo Romono processo que pede sua alforria Arquivo do Tribunal de Justia doRio de Janeiro (APJ), n 14.213, cx. 1505.Ao de Liberdade Juzo de rfos dacidade Valena (RJ). 11 dez. 1873.

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    O que essas trs cenas das possibilidades de comunicao dos escravos do sculoXIX tm de especco para abrir uma conferncia cujo objetivo falar dos processos

    jornalsticos do sculo XX? Por que essas remisses das prticas humanas dos escravosbrasileiros podem servir de referncias para iniciar uma fala que se dedicar a outromomento histrico e a outros grupos sociais?

    Em primeiro lugar porque esses personagens s ganharam vida na descrio dopesquisador devido ao fato de restos e rastros terem permanecido como registros

    Figura 2 Anncio publicadono jornal Provncia de So Paulo,11 jun. 1878.

    Figura 3 Revista Illustrada(1876-1898), 15 out. 1887.

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    duradouros de outros tempos em um suporte escrito que tem a caracterstica de tera materialidade durvel: foi a inscrio sob a forma de letras impressas de notciasesparsas em peridicos do sculo XIX que revelou a possibilidade letrada e leitora

    desses homens e mulheres.O anncio publicado sem destaque nos jornais mostra um intrincado mundode relaes sociais e comunicacionais desses personagens, at ento, annimos. Doanncio, caminhou-se em direo a outras inscries que transformam os peridicosem espcie de mapas simblicos das pocas. E, ao lado dos discursos daquelesque passaram histria como defensores da causa da abolio, podem se localizaraqui e ali, perdidas num emaranhado de letras impressas, imagens que revelam aspossibilidades de comunicao dos escravos, inclusive sua capacidade leitora. O grau

    de conscincia histrica, no sentido que lhe atribui Agnes Heller (1993), e que faz comque determinados conhecimentos em alguns momentos sejam coisas que ningumprecisa saber, aora assim como vestgio duradouro das pginas dos jornais. Umgrupo de escravos que realiza leituras de mltiplas naturezas aquele que l para oouvido de um outrem e aquele que escuta e repete a leitura por ouvir dizer para outrosque tambm passam a ouvir dizer uma cena do esquecimento em funo do graude conscincia histrica de determinado momento e do valor do prprio conhecimento

    histrico.Foi a partir da imagem dos escravos no eito lendo uma notcia do jornal O Paiz(1884-1930) que chegamos possibilidade escriturria de Romo. Mas o processode Romo s foi buscado como possibilidade para interpretao das prticas decomunicao porque havia, na materialidade jornal, uma cena que acionou acapacidade interpretativa do pesquisador. Romo leitor se transformou em Romoque escrevia porque um jornal do sculo XIX xou o esprito do tempo daquelapoca, na qual a multiplicidade dos modos de comunicao era uma das marcas mais

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    emblemticas. Um mundo de misturas: letras impressas que dividiam espaos com asmanuscritas e um mundo oral que se transmutava em algo audvel pela possibilidadeleitora de outros.

    Com essas reexes iniciais, estamos destacando trs aspectos fundamentais paraquem se aventura a interpretar processos jornalsticos localizados no passado, dandoou no a essas interpretaes o nome de histria da imprensa:

    1. fazer histria da imprensa ou, do jornalismo, sendo mais especcos, interpretarprticas humanas em toda a sua complexidade, tentando revelar processoshistricos nos quais sempre esto envolvidos sujeitos sociais em toda a suahumanidade;

    2. nesse sentido, essa histria deve ser sempre a de um sistema, no qual tanto as

    materialidades dos impressos como os atores envolvidos nessa construo tmimportncia. A histria da imprensa como sistema revela o circuito da comunicao,colocando em prevalncia prticas humanas. preciso responder quem escrevianessas publicaes, com que propsito, como eram essas publicaes, a quem sedirigiam esses peridicos, quem era esse sujeito que denominamos leitor, pblico,espectador, entre uma multiplicidade de substantivos, e, sobretudo, como eleentendia os sinais impressos naquelas pginas;

    3. ainda que o jornalismo no seja histria, j que o que faz aglutinar pedaosdo passado como se fosse a totalidade, possui a outorga de xar em materiaisdurveis acontecimentos para o futuro. Portanto, estamos armando que o valorsimblico do jornalismo advm tambm de ter a representncia(Ricoeur, 1997) dexar o passado para o futuro e de fazer mltiplos usos do passado2.

    Reetindo sobre essas proposies, dividi este trabalho em trs momentos, nosquais enfocarei perspectivas histricas para o jornalismo. Chamei esses momentos de

    Jornalismo e Histria, Histria no Jornalismo e Histria do Jornalismo.

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    Jornalismo e HistriaQuais as possveis aproximaes (ou distanciamentos) entre Jornalismo e Histria?Por que h, por parte dos jornalistas, a necessidade de querer igualar sua atividade

    a do historiador: historiador do instante, como qualicou Albert Camus (apudLacouture, 1993, p. 218); testemunha ocular da histria, como dizia o velho slogando Reprter Esso; ou historiador do tempo presente e historiador do cotidiano?Essas so algumas das muitas expresses com as quais os jornalistas referendam parasi o lugar de historiador.

    Samuel Wainer, fundador do jornal ltima Hora (1951-1971), ao dar um depoimentoa ABI, em 1977, sobre sua vida na imprensa comeava sua exposio com umaarmao que serve de ponto de partida para a nossa reexo: A imprensa, no Brasil,

    dizia ele, uma fonte para a histria do pas das mais importantes. Talvez no existaem outros pases, ou em poucos outros pases existir uma fonte com essa riqueza(CPDOC/ABI, 2010).

    A imprensa, nas suas palavras, se transformava, assim, em fonte privilegiada paraconstruir a prpria histria do pas. Ou seja, deveria no apenas informar e orientar,mas possibilitar o conhecimento de uma multiplicidade de tempos: o presente no qual o

    jornalista se movia; o passado (j que ao ser instrumento de cultura privilegiava em suas

    artimanhas narrativas o passado memorial do pas), acionando a memria histrica; e,sobretudo, o futuro, pois o jornalista construa narrativas na perspectiva de ser tornaremfontes histricas. Algo a ser novamente acionado para revelar dados, fatos, informaese aspectos de um mundo que permaneceria vivo graas fora documental do jornal.

    Observamos na fala de Wainer uma estratgia discursiva que remete a uma dasmltiplas possibilidades identitrias dos jornalistas na construo de um lugar superiorpara o grupo na hierarquia social. Os jornalistas que, ao longo do sculo XX, construram-se como intermedirio possvel entre o poder e o pblico ou como detentores da

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    capacidade de construir um discurso neutro e objetivo sobre o mundo edicaram parasi mesmos tambm a imagem de ser capaz de congelar o tempo, xando o presentecomo o verdadeiro passado. Portanto, ser o historiador do instante, ser aquele quefazhistriafornece capital simblico ainda mais superior do que ser apenas o que lida comfatos, informaes, acontecimentos que se caracterizam pela imperenidade absoluta.

    Evidentemente que a utilizao dos peridicos como possveis fontes para a histria,na tentativa de visualizar nos documentos certa ideia de passado, fez com que ojornalismo se armasse como espcie de ador dos tempos idos. Fixando sob a forma desuportes durveis s pocas, procurou desde sempre fazer do passado tambm lugarprivilegiado de sua narrativa. Mesmo o atual, quando aparece em seus registros, xado no para o presente, mas como possibilidade de vir a ser, no futuro, ador do

    tempo pretrito. Mas o passado fornece capital simblico, no sentido que atribui aoconceito Bourdieu (1989), indispensvel para a imprensa tambm em funo de outrasoperaes realizadas pelos jornais.

    Uma delas a monumentalizao do passado. Para isso, pode realizar umaintrincada engenharia escriturria: primeiro seleciona, entre um universo de possveis,aquilo que ser escrito em suportes duradouros; depois remete repetidas vezes a esseacontecimento, reescrevendo aquilo que gurou inicialmente como notcia submetida

    aos pressupostos da atualidade, para poder, num momento seguinte, monumentalizar oque um dia foi o acontecimento fundador. Esse processo de reinstaurar acontecimentosdo passado, monumentalizando-os, induz produo do prprio acontecimentohistrico. Portanto, atravs de uma operao prpria, apenas em semelhana prxima operao historiogrca, os meios de comunicao so tambm produtores doschamados acontecimentos histricos3.

    Nessa operao, a questo memorvel ocupa lugar central. Trazendo doesquecimento para a lembrana determinados aspectos, mas relegando outros

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    ao estatuto de lembranas encobridoras (Pollak, 1989), produzem memriasdominantes, enquanto outras cam dilaceradas pelo apagamento de rastros: asmemrias dominadas e silenciadas.

    Se na questo memorvel to ou mais importante do que a lembrana a dimensodo esquecimento (j que memria revelao), os meios de comunicao operamtambm com o passado a partir do que poderamos chamar, utilizando aqui aperspectiva de Paul Ricoeur (2007), esquecimento de reserva.

    Na complexa tipologia que estabeleceu para a problemtica do esquecimento,Ricoeur localiza a questo como a inquietante ameaa que se delineia no plano defundo da fenomenologia da memria e da epistemologia da histria, estabelecendouma leitura em que destaca a ideia de grau de profundidade do esquecimento,

    particularizando o que chama esquecimento profundo, por apagamento de rastros, eo esquecimento de reserva (Ricoeur, 2007, p. 425).

    Abandonando as digresses da problemtica cognitiva da memria (e doesquecimento) em favor de uma pragmtica do esquecimento, h que considerar apossibilidade de se poder exerc-lo, construindo tambm deliberadamente usos eabusos para o seu encobrimento. Estamos armando, portanto, que h modalidades deesquecimentos: a uma memria impedida, que atesta a indestrutibilidade do passado

    vivenciado, acrescenta-se o esquecimento na dimenso da memria manipulada e oesquecimento que pode se converter em perdo.Assim, o esquecimento de reserva utilizado pelo jornalismo a reinscrio narrativa

    de espcies de acontecimentos supra-histricos que afetaram o pblico no passado e quecolocaram nele uma marca afetiva. Esses acontecimentos que voltam periodicamenteindicando a sobrevivncia de imagens duradouras esquecimento profundo utilizadocomo esquecimento de reserva, e que capaz de reinscrever, por exemplo, imagensduradouras como smbolos da memria histrica de um povo ou de uma nao.

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    As duas imagens que apresentamos, a seguir, so exemplos dessa tipologia deesquecimento usada exausto pelos meios de comunicao (e pelo jornalismo, emparticular) no apenas para monumentalizar o passado, mas para construir seus atosnarrativos calcados na possibilidade dos usos e abusos do esquecimento, acionando o

    que estamos chamando de imagens reservas damemria.

    Figura 5 Cortejo do enterro de JK(fotograma da minissrie JK TV Globo, 2006).

    Figura 4 Cortejo do enterro de Vargas,agosto de 1954 (Foto CPDOC FGV).

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    O cortejo fnebre que ocupa a Avenida Beira Mar, no Rio de Janeiro (Fig. 4), foifotografado em que poca? Dizia respeito a que personagem histrico? A segundaimagem (Fig. 5), congelada a partir de fotograma retirado de um lme de poca e quefoi novamente acionada numa minissrie histrica, refere-se a que morte histrica?No possvel dizer se so imagens congeladas do cortejo de Getlio Vargas ou de

    Juscelino Kubitschek.Essa uma tpica imagem memorvel que aciona, pela profuso narrativa com

    que volta cena repetidas vezes, o que estamos qualicando como esquecimento dereserva. Feita esta primeira reexo em torno da relao Jornalismo e Histria, nosocuparemos agora do que denominei Histria no Jornalismo. Essa segunda digressoser mais breve, em funo de j termos abordado o que estou considerando como

    postulados fundamentais para a construo de uma histria do jornalismo (ou daimprensa). Em seguida entramos na ltima fase, em que procuramos mostrar, a partirde exemplos que particularizam alguns cenrios de transformao da imprensa nosculo XX, a possibilidade metodolgica de fazer uma histria do jornalismo a partirda narrao privilegiada das aes humanas dos atores sociais envolvidos nesseprocesso.

    Histria no JornalismoEvidentemente, h muitas formas de fazer histria. A primeira delas e a maisfrequente, inclusive por aqueles que muitas vezes se dedicam a produzir uma histriada imprensa, ter a pretenso de trazer o passado para o presente: no um passadoqualquer, mas o verdadeiro passado.

    H tambm aquelas anlises em que atribuem histria uma espcie de dvida eacham que fazer histria compreender a integralidade do passado e, a partir da,poder construir pontes entre o passado e o presente, como se os tempos idosfossem

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    espcies de iluminadores do mundo em que vivemos. A histria, neste caso, trazensinamentos para que no repitamos no presente erros passados.

    Do ponto de vista da anlise a ser realizada, pode-se considerar a ideia de processoe a perspectiva diacrnica ou, ao contrrio, adotar a perspectiva sincrnica ouesttica. No primeiro caso, a mudana e a transformao no processo histrico so ospressupostos principais. No segundo, acentua-se o fato na continuidade estrutural.

    H, portanto, muitas formas de fazer histria e contar histrias. E esse olhar quedeterminar a maneira como a pesquisa ser realizada. Se o passado for consideradocomo algo que pode ser recuperado tal como ele se deu, as fontes, os documentose os emblemas do passado que chegaram at o presente, sob a forma de rastros,sero privilegiados na interpretao. Mas se, ao contrrio, percebe-se os rastros que

    do passado chegam at o presente como vestgios memorveis, permanentementeatualizados pelas perguntas que do presente lanamos ao passado, o que se destacar a capacidade de inveno da narrativa existente em qualquer anlise histrica.

    Se essas so premissas gerais de qualquer pressuposto histrico, precisoconsiderar sempre a especicidade da prtica humana que estar sob o foco deanlise: no h histria que no seja a histria de homens que vivem (e padecem)no mundo. Dois corolrios se sobressaem em relao ao que dissemos at agora: a

    histria interpretao sobre processos realizados por homens que passaram poraqui deixando pegadas e sempre uma prtica interpretativa sobre um passadoverossmil. Assim, no caso da histria que remonta cenrios jornalsticos do passado,o que devemos privilegiar so as prticas humanas envolvidas em processos que sosempre comunicacionais.

    Por esta razo, fazer histria do jornalismo no to somente alinhar fatos, datas enomes. No apenas considerar personagens emblemticos e singulares que, por umapoltica de memria, ocupam um lugar perene. No tentar localizar a gnese dos

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    processos, preocupando-se com o quando tudo comeou. No tambm analisar osdiscursos produzidos em outros tempos, como se ao analisar esses discursos proferidosestivssemos automaticamente fazendo histria.

    Outro aspecto que gostaria de enfatizar que para fazer histria h que introduzirna anlise os postulados centrais da teoria da histria. Por uma idiossincrasia docampo, para ser reconhecido como cientco a qualquer preo, muitas vezes, considera-se que possvel fazer, por exemplo, uma histria do jornalismo usando as teorias dojornalismo (Messagi Jr., 2009). Como possvel fazer histria sem histria?

    Portanto, fazer histria do jornalismo minimamente considerar a teoria da histriae utilizar os postulados centrais das anlises histricas no nos quais tempo, espao esujeitos humanos ganham destaque.

    No convm aqui nos determos em cada uma dessas etapas, mas imprescindvelque se tenha conhecimento das maneiras como podemos acessar o passado. E se fazerhistria ter acesso ao passado, estaremos modelando sempre conectores essenciaispara a visualizao desse passado.

    O passado chega at o presente sob a forma de sinais comunicativos queperduraram. Esses sinais, rastros, restos e vestgios so aes de comunicao doshomens do passado que chegaram, por inmeras razes, at o presente. A rigor, o que

    o historiador faz reinterpretar aes de comunicao, razo pela qual armo quehistria comunicao (Barbosa, 2010). Alm do rastro, dois outros conectores sofundamentais para alcanar o passado: o tempo, que a histria transforma em tempo-calendrio, e a sequncia de geraes (Ricoeur, 2007).

    No h como fazer histria sem considerar a dimenso temporal de sua narrativa evisualizar o calendrio, a datao, a sequncia temporal como algo exterior ao tempofenomenolgico e ao tempo vivido: ao adotar como medida o calendrio, a histria criaum terceiro tempo. Esse instrumento de pensamento divide aleatoriamente o tempo,

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    tendo como princpio a referncia a um acontecimento fundador escolhido, momentoaxial a partir do qual todos os outros acontecimentos sero datados. Cria-se tambma possibilidade de percorrer esse tempo calendrio em duas direes (antes e depois),sempre em relao ao marco zero estabelecido; e, nalmente, instauram-se unidadesde medidas que se constituem em intervalos constantes (dia, ms e ano).

    Portanto, no se pode fazer histria sem fazer uso da dimenso temporal e doconceito de tempo. por esta razo que, numa histria da imprensa como histriados sistemas de comunicao, tambm dataremos o incio ou momento axial no qualcomearemos a contar aquela histria.

    Apesar dessas questes gerais que se referem a qualquer histria, qual seria ento aespecicidade possvel na construo de uma histria do jornalismo ou da imprensa?

    A mais importante diz respeito ao que estamos tentando reinterpretar: o jornalismoest inserido num processo comunicacional e este processo que deve ser interpretadoa luz das possibilidades do passado. Operando num sistema miditico a histria dojornalismo a re-narrao desses sistemas e a compreenso dos processos humanosenvolvidos nesse circuito.

    Histria do Jornalismo

    Chegamos ltima parte de nossas reexes. Nela, vamos apresentar alguns cenrioshistricos e mostrar como se pode construir a histria do jornalismo que estamosenfatizando. Portanto, embutidos na exposio esto os pressupostos metodolgicos.Trago para fechar esse momento trs outras cenas.

    A primeira (Fig. 6) revela novamente uma prtica comunicacional de atores dopassado e, mais uma vez apresento, os escravos como leitores. A segunda (Fig. 7) um pequeno extrato do livroA Hora da Estrela, de Clarice Lispector. A terceira (Fig. 8) uma foto de Marc Ferrez que mostra um trabalhador na pausa necessria da

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    leitura para a pose da mquina fotogrca. Soa partir dessas imagens que construiremos aspossibilidades interpretativas de uma histria do

    jornalismo centrada nas prticas humanas.

    Figura 6 Os escravos liam para um fazendeiroque via embatucado a cena, como diz a legendada Revista Illustrada.

    Figura 7 Extrato deA Hora da Estrela,de Clarice Lispector.

    Figura 8 O leitorabaixa o jornalpara a cmara

    (Foto Marc Ferrez).

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    Uma vez, ao apresentar num Congresso num grupo de Histria do Jornalismo umacomunicao que comeava exatamente mostrando essa imagem dos escravos ematitude de leitura, fui questionada sobre a validade de esta comunicao estar inseridanum grupo que discutia a histria do jornalismo. Como uma imagem de uma prticade leitura (ainda que o que se estivesse lendo fosse um jornal) podia se conectar coma histria do jornalismo?

    Atnita diante da indagao, percebi que a suposio dominante que se tem deuma histria do jornalismo, da imprensa e da comunicao que devemos recuperaras materialidades do jornalismo (jornais, revistas, emissoras, etc.) ou, quando muito,as aes dos jornalistas (normalmente aqueles que deixaram marcas duradourasde suas passagens, ou seja, os que ocupavam o lugar de dirigentes). Mas, no nosso

    entendimento, no estamos nessas histrias interpretando processos de comunicaonos quais as prticas humanas tm prevalncia. No h histria sem a interpretaode humanidades possveis.

    A capacidade letrada dos escravos construda em jornais dos tempos idos mostra,no mnimo, aos nossos olhos hoje que esses peridicos faziam parte de seu cotidiano eque, atravs deles, tinham conhecimento do que se passava no mundo e que o mundoque os interessava dizia respeito aos atos possveis de transformar cada um deles de

    cativos em seres livres. A imagem leitora dos escravos segurando o jornal O Paizindcio da exploso da palavra impressa no nal do sculo XIX, da importncia quedeterminados peridicos assumem no incio da cena do sculo XX, no qual algunsdeles inclusive O Paiz multiplicam suas estratgias para atingir um pblico maisvasto. Mostra um longo processo no sculo XX de construo da popularizao dosperidicos a partir de mltiplas estratgias editoriais, redacionais, administrativas,etc., que os transformam em fbricas de notcias. Mas, mostra mais: indicam aspossibilidades de apropriaes plurais do pblico, as mltiplas formas de leitura e de

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    relaes que o pblico, sempre multifacetado e plural, estabelece com o jornalismo ecom os meios de comunicao.

    O rastro signicativo da leitura chave interpretativa, portanto, para o primeirocenrio de transformao da imprensa no nal do sculo XIX e incio do sculo XX: aconstruo dos jornais, no Rio de Janeiro, num primeiro momento, e em So Paulo, jnos anos 1920, como fbricas de notcias. O primeiro processo para exploso da palavraimpressa e para a construo da modernizao do jornalismo, num longo percursoque teria outro ponto inexivo na chamada modernizao da imprensa nos anos 1950.

    O pequeno trecho do romance de Clarice Lispector mostra, pelas margens,exatamente este processo de modernizao do jornalismo brasileiro na segunda metadedo sculo XX. No livro, alm de se referir s emissoras de rdio, no caso a Rdio Relgio

    que pingava o tempo em gotas nos minutos que marcava, Lispector descreve tambm amaneira como Macaba lia os anncios publicitrios publicados nas revistas. O cremedo anncio aparecia na imagem como algo apetitoso, graas impresso perfeitapossibilitada pelo avano das tecnologias da impresso. Aquele creme Macaba queriacomer. Portanto, interessava a ela no as notcias, as informaes, os detalhes deum mundo em crise deixado a mostra pelos atos narrativos do jornalismo, mas asimagens que, de to perfeitas, saltavam das pginas para o mundo da imaginao do

    personagem de Clarice.O rastro presente no romance sobre o passado histrico do mundo da imprensaindica tambm traos de um intrincado processo de modernizao da palavra

    jornalstica em meados dos anos 1950 e que, a rigor, comeara no incio do sculoXX, transformando no apenas os modos de apropriao do pblico, mas prticasredacionais e editoriais, o mundo do trabalho, as identidades do jornalista e, talvez,o mais importante, construindo a autonomizao do jornalismo em relao ao campoliterrio e ao campo poltico.

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    Mas transformava, sobretudo, prticas humanas invadidas por palavras impressasque eram cada vez mais coisas visuais, ampliando a forma como o pblico serelacionava com os jornais, a maneira como considerava o jornalismo, retroalimentadopelas identidades construdas pelos prossionais em torno do saber e do lugar depoder da prosso.

    A ltima imagem sintetiza, talvez, o mais marcante cenrio das mudanas dosjornais brasileiros no sculo XX: a sua transformao em reveladores de um mundodesconhecido e at ento imaginado para mltiplos leitores. Em suma, a ampliaodo mundo dos peridicos preparando caminho para a exploso da massicao dosmodos eletroacsticos de comunicao, o que s se daria com mais intensidade a partirdos anos 1970.

    Assim, do ponto de vista de uma histria do jornalismo, o sculo XX foi o momentoem que se deniram os parmetros da prosso, que o jornalismo se construiucomo lugar simblico especco, que se estruturou como lugar de fala reconhecidoe autorizado, que se constituram as grandes empresas aumentando sua ingernciaem relao ao poder poltico e que houve, enm, uma autonomizao reconhecida(e, sobretudo, buscada) em relao ao campo literrio. Enm, que o sculo XX foio momento em que o campo jornalstico se constituiu como lugar de fala, disputas

    e reconhecimento e se instaurou o prossionalismo em torno do ser (e do fazer)jornalismo.Portanto, falar dos cenrios de transformao do jornalismo na primeira metade

    do sculo XX se referir a mltiplos processos que coexistiram em diversos espaose tempos sociais. Claro que essas transformaes no foram unvocas: em muitoslugares, continuou-se a praticar um jornalismo que mais tinha a ver com as prticas dosculo XIX, jornal de um homem s, aparecido ao sabor de interesses momentneos,de poucas pginas, repleto de opinies particulares e particularistas.

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    A imagem do trabalhador junto a um quiosque que abaixa a folha para xar acmera, ao lado do pequeno jornaleiro que sobraa um enorme mao de jornais,mostra ainda as possibilidades de relao desses sujeitos histricos com o mundodo jornalismo. Evidencia a ampliao do pblico, que agora podia ser tambm um

    homem que calava tamancos e, nas horas livres do dia, entre um gole de pinga e umaprosa com outros no quiosque, lia os noticirios de sensaes. Tomava conhecimentode um mundo desconhecido e entrava no universo de sonho que tambm os jornaiscontinham.

    A imagem do pblico presumido e que ganha uma face real revela, enm,a ampliao do mundo do jornalismo em direo ao mundo do pblico, a partirda adoo de prticas e processos tecnolgicos num momento governado cada

    vez mais pelas tecnologias que invadiam o cotidiano de muitos. Um mundo quese iluminara, um mundo que construiria aparatos tecnolgicos capazes de mostrarcenas em movimento, que marcava rigorosamente o tempo inclusive no mundo dotrabalho dos jornalistas. Edies extras, edies matutinas, edies vespertinas indicamuma acelerao do tempo em torno das novidades que no paravam de se fazerconstruir.

    Capitaneados pelas tecnologias que dominavam o novo sculo, nos peridicosmais importantes do Rio de Janeiro, neste momento, a modernizao se transformaem palavra de ordem. O telgrafo, que aqui chegou em 1874, tornou o mundo maisprximo na edio das publicaes. Graas sua implantao, era possvel noticiarfatos do mundo ocorridos ontem e transportar notcias at provncias longnquas. Ocinematgrafo, o fongrafo, o gramofone, os daguerretipos, a linotipo, as impressorasMarinonis so algumas das tecnologias que invadem a cena urbana e o imaginriosocial na virada do sculo XIX para o XX, introduzindo amplas transformaes nocenrio urbano e nos peridicos.

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    Os jornais implantam artefatos tecnolgicos que modicam a maneira como soproduzidos: mquinas de linotipia substituindo o trabalho de at 12 homens nasantigas composies manuais; mquinas de imprimir vomitando de 10 a 20 milexemplares por hora; mquinas de fotografar reproduzindo em imagens o que antes

    apenas podia ser descrito; mtodos fotoqumicos que permitiam a publicao declichs em cores. Os peridicos transformam gradativamente seus modos de produoe o discurso com que se referenciam. Cada vez mais so cones da modernidade, numpas que quer ser smbolo de um novo tempo.

    Os jornais, sobretudo aqueles que querem consolidar sua fora junto ao pblicoe, consequentemente, sua ingerncia poltica, deviam implantar novos artefatostecnolgicos, permitindo maior tiragem, maior qualidade e maior rapidez na impresso.

    Era preciso tambm diminuir as distncias entre o acontecimento e o pblico. Rapidezpassa a ser palavra de ordem no incio da Repblica.Constri-se tambm, paulatinamente, a imagem do jornalismo como conformador

    da realidade e da atualidade. E as tecnologias, mais uma vez, so fundamentais paraa construo do jornalismo como lugar da informao neutra e atual. Se o telgrafotorna os acontecimentos visveis, h que informar, cada vez mais, os fatos que ocorremprximos ao pblico. A opinio , assim, gradativamente separada de uma ideia deinformao isenta e, nesse processo, os novos artefatos tecnolgicos desempenham papelfundamental.

    Para conquistar mais leitores, um tipo de notcia passa a ter primazia: as denatureza policial. Com o mesmo objetivo, assiste-se difuso do folhetim. Os jornaispublicam charges dirias, escndalos sensacionais, os palpites do jogo do bicho, asnotcias dos cordes e blocos carnavalescos, dentre uma gama varivel de assuntos,com a preocupao maior de atingir um universo signicativo, vasto e heterogneode leitores.

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    Consideraes finaisProduzir uma interpretao na direo de uma histria falar num mundo quemistura modos de comunicao. Misturas nas prticas, na forma como subsistemnuma mesma poca processos diversos que fazem com que um suporte possaconter variados modos de comunicao. Mistura na forma necessariamente comoo pblico se relaciona com os meios no cotidiano: modos de ver, modos de ler, dese conectar e de caar experincias (De Certeau, 2001).

    Esse mundo de misturas obriga a que se pense, necessariamente, em umadupla relao: comunicao e pblico e comunicao e poder. Sem o pblico alhes dar respaldo real e simblico, os meios de comunicao no adquirem podersuficiente para se tornar intermedirios possveis entre o poder e o pblico

    ou para participar efetivamente do jogo de barganha do poder com que tambmconstruram sua histria no Brasil.No me deterei nessa relao, pois o propsito que tenho hoje no este. Hoje o

    que gostaria de mostrar como a partir de sinais signicantes, esparsos, presumidose sempre submetidos pluralidade interpretativa pode-se construir uma histriado jornalismo que destaque, sobretudo, as prticas dos atores sociais e humanosenvolvidos nesses cenrios.

    Nesse sentido, ainda no nal da primeira metade do sculo XX ocorreu a maisextraordinria mudana no jornalismo, o momento de prossionalizao do ofcio, ou seja,o j mtico processo de modernizao da imprensa dos anos 1950. Sobre esse momento,h que destacar dois aspectos: se por um lado h, de fato, a introduo de uma srie deprticas e processos que mudou o modo de fazer jornalismo em muitos peridicos, poroutro, h que se considerar que, por uma srie de estratgias memorveis, os atores chavesdesta modernizao construram, tambm discursivamente, esse momento como repleto deimportncia e de singularidade absoluta. tambm por um processo memorvel que este

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    momento se constitui como uma espcie de mtica do prprio jornalismo: o instante em quedestemidos e visionrios reprteres os verdadeiros reprteres mudaram radicalmentea imprensa4.

    Chegamos ao nal da dcada de 1950, com os sentidos do jornalismo renovado. Novos

    nomes e personagens guram na cena dos principais peridicos: lide,sub-lide, copy-desk,mas tambm censura e limites na liberdade de expresso. Um turbilho de prticas eprocessos que transformaram gradualmente o fazer jornalstico.

    Se modernizao uma espcie de sntese da histria do jornalismo da primeira metadedo sculo XX, o incio da dcada de 1960 remete s consequncias da censura polticaque se abate sobre a imprensa, o que foi decisivo para o distanciamento da polmica emtorno desse tema nos meios de comunicao. Esse silncio vai produzir alteraes nos

    contedos dos jornais dirios, uma vez que tero que abandonar gradativamente o papelde amplicadores e construtores desses enredos, afastando-se dos protagonistas e deixandode ser eles mesmos personagens do campo poltico.

    Nessa espcie de calidoscpio em que apresentamos cenrios das transformaesdo jornalismo na primeira metade do sculo XX, algumas caractersticas se so-bressaem. Talvez a mais expressiva seja a denio do ser e do fazer jornalismo, ou seja,a construo da prosso dentro de determinados parmetros narrativos e simblicosnos quais a sua transformao numa espcie de relator da realidade do mundo se so-

    bressai.Para isso, uma srie de estratgias e prticas de natureza poltica foi fundamental. Houve

    primeiramente que se transformar o jornalismo e os jornais em algo da modernidade,rompendo com todos os vnculos em relao a um mundo anterior, representado pelosidlios do sculo XIX. Havia que se ligar o jornalismo e os jornais, as fbricas de notcias, modernidade de uma Repblica compulsria e que se diferenciava radicalmente doImprio, identicado com o arcasmo.

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    Mas, se houve rupturas, houve, sobretudo, permanncias. Nesse sentido, as trans-formaes do sculo XX aguam, em certa medida, o caminho que tomara os jornais desdeos anos 1820 do sculo XIX, quando amplicam os debates de uma esfera pblica quetorna fundamental o jornalismo. Aguam os modos como se conguram os sistemas de

    comunicao desde os primrdios do sculo XIX, quando as notcias que corriam lguase andavam a passos largos migravam do mundo da oralidade para o mundo das letrasimpressas se metamorfoseando em tipos xados sob a forma jornal. Se as transformaesforam mltiplas e decisivas, h que se pensar tambm nas permanncias dos modos decomunicao que colocavam em dilogo fundamental o pblico com meios, que passam afazer gradativamente parte do cotidiano de leitores mltiplos e plurais.

    Talvez a transformao mais emblemtica da imprensa na primeira metade do sculo

    XX seja decorrente do mundo de misturas da comunicao: a imprensa passa a dividir acena comunicacional com o mundo sonoro do rdio e o mundo udio e visual da televiso.As letras impressas, que sempre foram mais ouvidas do que lidas, misturam-se aos sonsque se esparramam pelo ar, que se misturam aos papis impressos transformados emalto e bom som e nalmente ao mundo visual e auditivo que sai de uma caixa imagtico/sonora. A imprensa denitivamente se transforma no sculo XX impulsionada por novosartefatos tecnolgicos, mas, sobretudo, pela cultura de um pblico que urde sua relaocom os meios a partir de dilogos despedaados, plurais, transitrios e, ao mesmo tempo,complementares.l

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    NOTAS1 Conferncia realizada em 14 de dezembro de 2011 Concurso Pblico de Professor Titular de Jornalismo

    da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).2 Representncia, na denio de Ricoeur (2007, pp. 288-296), a cristalizao de expectativas da histria e

    a sua intencionalidade. O que objetivado pelo conhecimento histrico pressupe um pacto que permiteao historiador descrever situaes que existiram antes de sua prpria existncia (e de sua narrativa). A

    representnciaimplica sempre uma relao do texto com o seu referente: no caso do texto histrico, essereferente o rastro, o vestgio do passado.3 Meneses (2011) chamou essa intrincada escritura de operao midiogrca fazendo um paralelo com o

    conceito de operao historiogrca, utilizado por De Certeau (1982).4 No estamos com isso dizendo que este processo se constituiu apenas a posteriori. Como sempre nos alerta

    Ana Paula Goulart Ribeiro no momento mesmo de implantao do processo de modernizao, os atorescentrais nesse processo, entre os quais se inclui, por exemplo, Alberto Dines, os jornalistas j referendavampara si mesmos o papel de modernizadores.