história de israel

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E U 6 E N £ H. M E R R I L L no Antigo Testamento

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Page 1: História de Israel

E U 6 E N £ H. M E R R I L L

no Antigo Testamento

Page 2: História de Israel

£ D ú £ N £ H. M £ í? Í M l L

0 reino

de sacerdotes

que Deus colocou

entre as nações

Tradução Romell S. Carneiro

0CB4D

Page 3: História de Israel

Todos os direitos reservados. Copyright © 2001 para a língua portuguesa da Casa Publicadora das Assembléias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina.

Título original em inglês: Kingdom o f Priests Baker Books, Grand Rapids, MI, USA.Primeira edição em inglês: 1987

Tradução: Romell S. CarneiroPreparação de originais: Alexandre Coelho e Patrícia OliveiraRevisão: Jeferson MagnoCapa: Flamir AmbrósioEditoração eletrônica: Olga Rocha dos Santos

CDD: 221 — Antigo Testamento ISBN: 85-263-0337-6

Para maiores informações sobre livros, revistas, periódicos e os últimos lançamentos da CPAD, visite nosso site: http://www.cpad.com.br

As citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Corrigida, edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em contrário.

Casa Publicadora das Assembléias de DeusCaixa Postal 33120001-970, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

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3- Edição 2002

Page 4: História de Israel

Prefácio

A história de Israel não pode ser construída seguindo-se as linhas dos estudos históricos normais, pois baseia-se em documentos (o Antigo Testamento) que não são tão-somente históricos em seu caráter. O Antigo Testamento é, acima de tudo, teológico, e não literatura meramente histó­rica. Isto significa que será necessário abordagens teológicas e não históri­cas para conduzir ao propósito fundamental da mensagem a ser discernida.

Ao contrário do que afirmam muitos estudos contemporâneos, ape­nas porque o Antigo Testamento é por definição "história sagrada", não significa que lhe falte autenticidade histórica, como alguns acreditam. Com efeito, ele é o registro da aliança de Jeová com seu povo escolhido, um registro que constantemente chama a atenção para a divina interpre­tação e até mesmo predição dos acontecimentos. Mas sempre pressupõe que estes mesmos acontecimentos ocorreram de fato no tempo e no es­paço. A mensagem teológica, em outras palavras, está alicerçada na his­tória genuína.

O propósito deste estudo não é interpretar o significado dos aconteci­mentos subjacentes - uma tarefa mais propriamente da teologia bíblica mas descobrir os dados históricos e, mediante todas as fontes à disposição (incluindo o texto bíblico, documentos extrabíblícos e arqueológicos), re­construir a história de Israel seguindo as linhas e métodos historiográficos, até onde seja possível, em razão da natureza única do material. Qualquer sucesso obtido será importante para um verdadeiro entendimento do pas­sado de Israel no Antigo Testamento, um objetivo de valor em si mesmo, e

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para a comprovação histórica do registro. A veracidade é absolutamente decisiva para tornar efetiva a mensagem religiosa e teológica. Todo o êxito que alcançarmos será em total benefício do leitor.

A concretização de um projeto que trouxe tanta satisfação pessoal ao autor requer que aqueles que o tornaram possível sejam reconhecidos. Foi durante um período de licença gentilmente concedido pelo Seminário Te­ológico de Dallas, de 1983 a 1984, que a maior parte desta obra foi elabora­da. Portanto, quero expressar minha apreciação por esta política generosa e esclarecida. Além disso, o seminário colocou à disposição suas depen­dências de informática. A digitação foi feita pelas mãos abençoadas de Marie Janeway. A editora Baker Books e, particularmente, a Allan Fisher e Ray Wiersma, eu credito minha especial gratidão por sua paciência, co­nhecimento e atenção meticulosa em cada detalhe do projeto. Finalmente, agradeço a minha querida esposa, Janet, e a minha filha Sonya por supor­tarem minha ausência, inquietação e freqüentes pedidos, e pelo constante encorajamento que delas recebi para concluir este projeto.

H is t ó r ia d e I s r a e l \o A \t;c-. 1 í :~ - v í : ‘- to

Page 6: História de Israel

SumárioPrefácio vIlustrações xiAbreviaturas xiii

Introdução: A história de Israel e a historiografia.............................................................1C onsiderações prelim inares 1Os problem as enfrentados na produção de um a história do antigo Israel nos dias atuais 2

A presente abordagem da história de Israel 4

1. Origens.................................................. :................................................................... 7Israel em M oabe 7 O propósito da Torá 8 A história dos patriarcas 11

2. O Êxodo: Nascimento de uma Nação................................................................... 49O significado do êxodo 49 A localização histórica do êxodo 50 A data do êxodo 59A data e a duração do cativeiro egípcio 69 Cronologia dos patriarcas 73 A jornada no deserto 73

3. A Conquista e a Ocupação de Canaã.................................................................... 89A terra como o cumprim ento da promessa 89 O m undo antigo do Oriente M édio 90

Os 'apiru e a conquista 99 A estratégia de Josué 106 A data da conquista de Josué 118 A cam panha contra os enaquins 120 M odelos alternativos da conquista e ocupação 121 A terra repartida entre as tribos 129 A segunda renovação da aliança em Siquém 139

4. A Era dos Juizes: A Violação da Aliança, Anarquia e aAutoridade Humana............................................................................................143

O problem a crítico-literário no livro de Juizes 143 A cronologia de Juizes 149

Page 7: História de Israel

O m undo do antigo Oriente M édio 154

Os juizes de Israel 162 A trilogia de Belém 184

Saul: A Aliança Mal CompreendidaA exigência por um reinado 197 A cronologia do século onze 200 A escolha de Saul 203 O prim eiro desafio de Saul 208 O declínio de Saul 210 Considerações teológicas 219 O surgim ento de D avi 222

Davi: O Reinado da Aliança............A falta de nacionalidade antes de Davi 235 Davi em H ebrom 240 Crônicas e história teológica 244 Jerusalém , a capital 246 O estabelecim ento do poder de Davi 249 Um a introdução à cronologia davídica 256

Davi: Os Anos de Luta..............................O Egito e a independência de Israel 264 As guerras contra os am onitas 265 O início dos problem as fam iliares de Davi 276 Jerusalém como centro do culto 277 A rebelião de Absalão 283 Os esforços de Davi para reconciliação 287

M ais problem as para Davi 289 O plano de Davi para construir um tem plo 290 A sucessão salom ônica 296 A burocracia davídica 298

Salomão: Do Pináculo ao PerigoOs problem as da transição 303 O fracasso da oposição contra Salom ão 306 O conclave em G ibeão 308 Relações internacionais 309 Os projetos de construção de Salom ão 312 Rupturas no im pério de Salom ão 316 A form a de governo de Salom ão 319 Apostasia m oral e espiritual 330 Salom ão e a natureza da sabedoria 332

A Monarquia Dividida.........................As raízes da divisão nacional 335 A ocasião im ediata da divisão nacional 339 O reino de Roboão 343 O reino de Jeroboão 345 A pressão das nações ao redor 350 Abias de Judá 351 Asa de Judá 352O novo surgim ento da Assíria 356

Page 8: História de Israel

N adabe de Israel 358

A dinastia de Baasa de Israel 358 Om ri de Israel 360 Jo sa fá d e Ju d á 362 Acabe de Israel 366 A am eaça da A ssíria 370 Os sucessores de Acabe 371 A unção de Hazael de Dam asco 375 Jeorão de Judá 375 A unção de Jeú 377

10. A Dinastia de Jeú e o Judá Contemporâneo....O reinado de Jeú em Israel 379 A tá lia d e ju d á 381 O papel das outras nações 382 Joás, rei de Judá 384 Jeoacaz, rei de Israel 388 O cenário internacional 390 Jeoás, rei de Israel 391 Am azias, rei de Judá 392 Jeroboão II, rei de Israel 395 Uzias, rei de Judá 398

O m inistério dos profetas 400

11. O Castigo de Yahweh: Assíria e o Juízo DivinoFatores responsáveis pela queda de Israel 413 O fim da dinastia de Jeú 414 A Assíria e Tiglate-Pileser III 415 M enaém de Israel 418 Os últim os dias de Israel 418 O im pacto da queda de Sam aria 422 Judá e a queda de Sam aria 425 Ezequias de Judá 433 O ponto de vista dos profetas 445

12. Esperança Desvanecente: A Desintegração de JudáO legado de Ezequias 457 M anassés de Judá 459 A m om de Judá 462O cenário internacional: Assíria e Egito 462 Josias de Judá 468 A queda de Jerusalém 473 O testem unho dos profetas 481

i

13. O Exílio e o Primeiro Retorno....................................Um a visão panorâm ica 497 A situação m undial durante o exílio 504

O povo judeu durante o exílio 510A situação m undial durante o período de restauração 516 O prim eiro retorno 521

Problem as decorrentes do retom o 524 A influência benéfica dos profetas 525

Page 9: História de Israel

H istória d e Israel no A ntigo Testamento

14. Restauração e Nova Esperança.............................................................................529A influência persa 529Outros retornos posteriores: Esdras e N eem ias 535

M alaquias, o profeta 548

Bibliografia 551índice das Escrituras 555índice de temas 563

Page 10: História de Israel

IlustraçõesTabelas cronológicas

1. A seqüência da Era do Bronze 172. Os Patriarcas 183. XII Dinastia do Egito 424. 18a e 19a Dinastia do Egito 505. A vida de Davi 2576. Os reis da monarquia dividida 3407. Os reis neo-assírios 3578. Os reis neo-babilônicos 4769. Os reis da Pérsia 507

Mapas

1. O Oriente Médio nos tempos do Pentateuco 142. Canaã nos tempos dos patriarcas 213. O êxodo 534. A chegada na Transjordânia 805. O Oriente Médio nos tempos de Josué e dos juizes6. A conquista de Canaã 1007. Os territórios das tribos 130-1318. Israel durante a era dos juizes 1469. O reino de Saul 199

10. O Oriente Médio durante a monarquia unida 20711. O reino de Davi 23612. Jerusalém nos dias de Davi e Salomão 24713. Os doze distritos do reino de Salomão 32514. A monarquia dividida 33715. O Império Assírio 38516. O Império Babilônico 46117. O Império Persa 500

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Abreviaturas

AASOR Annual of the American Schools of Oriental ResearchADAJ Annual of the Department of Antiquities ofjordanAfO Archiv für OrientforschungAJA American Journal of ArchaeologyAS Assyriological StudiesASOR American Schools of Oriental ResearchAUSS Andrews University Seminary StudiesBA Biblical ArchaeologistBAR Biblical Archaeologícal ReviewBASOR Bulletin of the American Schools of Oriental ResearchBES Bulletin of the Egyptological SeminarBib Sac Bibliotheca SacraBTB Biblical Theology BulletinBWANT Beitrãge zur Wissenschaft vom Alten und Neuen TestamentBZAW Beihefte zur Zeitschrift für die alttestamentliche WissenschaftCAD Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of ChicagoCAH Cambridge Ancient HistoryCBQ Catholic Biblical Quarterly

EQ Evangelical QuarterlyGTJ Grace Theological JournalHTR Harvard Theological ReviewHUCA Hebrew Union College Annual•pi Israel Exploration Journal'.r:rv. Interpretação'ASES Journal of the Ancient Near Eastern Society

Page 12: História de Israel

JAOS Journal o f the American Oriental SocietyJBL Journal o f Biblical LiteratureJCS Journal o f Cuneiform StudiesJEA Journal of Egyptian ArchaeologyJETS Journal of the Evangelical Theological SocietyJJS Jornal of Jewish StudiesJNES Journal ofNear Eastern StudiesJNSL Journal of Northwest Semitic LanguagesJSOT Journal for the Study of the Old TestamentJSS Journal of Semitic StudiesJTS Journal of Theological StudiesKJV King James VersionLexTQ Lexington Theological QuarterlyNEASB Near East Archaeological Society BulletinOr OrientaliaOTS Oudtestamentische StudiênPEQ Palestine Exploration QuarterlyRA Revue d'assyriologie et d'archéologie orientaleRSV Revised Standard VersionTD Theology DigestTyn Buli Tyndale BulletinUF Ugarit-ForschungenVT Vetus TestamentumWTJ Westminster Theological JournalZAW Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft

•VÍV H istória df. I srael no A ntigo T estamento

Page 13: História de Israel

IntroduçãoA História de Israel e a H istoriografia

Considerações Prelim inaresOs problem as enfrentados na produção de um a história do antigo

Israel nos dias atuaisA questão da inerrância A ausência de docum entos pré-m osaicos Seletividade histórica

A presente abordagem da história de IsraelReconhecim ento do caráter revelador do A ntigo Testamento Reconhecim ento do m étodo bíblico Reconhecim ento do propósito bíblico

Considerações Preliminares

Qualquer tarefa científica deve partir de um conjunto de afirmativas, não importando quão especulativas sejam. Isto tornará o empreendimen­to viável e racional. Este fato é especialmente verdadeiro quanto à história escrita, mais que a maioria das disciplinas, uma vez que os acontecimen­tos ecoam no passado, que sua facticidade e significado podem ser reconstruídos (mesmo que parcialmente), e que é possível integrá-los e sintetizá-los em algum tipo de construção que seja crível e bem entendida pelo leitor moderno.

Quando a história é a narrativa de um povo completamente envolto em literatura sagrada, a natureza da tarefa torna-se ainda mais complexa, e as afirmativas muito mais proféticas. A visão que o pesquisador tiver da integridade e autoridade daquela literatura influenciará a forma como ele irá trab a lh ar com tais m a teria is , sem fa lar dos p ro ced im en to s metodológicos e de suas conclusões.

Uma história de Israel depende quase inteiramente das fontes do Anti­go Testamento, uma coleção de escritos reconhecidos pelo Judaísmo e Cris­

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H is t ó r i a d e I s r a e l n o A n t ig o T e s ta m e n to

tianismo como as Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus. O nível de res­peito que os historiadores têm pelas Escrituras afetará sensivelmente a maneira como empreenderão sua tarefa. O cético contemplará as fontes como nada mais que uma coleção de mitos, fábulas, lendas, poesia e ou­tros gêneros, que possuem credibilidade relativa e serviram apenas como veículo de transmissão das tradições antigas. Os crentes, por outro lado, saberão que têm em suas mãos uma obra completamente peculiar, um livro que é a própria revelação divina. Assim, não é possível aproximar-se desta literatura da mesma forma como se faz com outros textos antigos. Referimo-nos a ela como a Palavra de Deus, aceitando sua autoridade e dignidade como fonte histórica de inigualável valor.

Considerar que o Antigo Testamento é a Palavra de Deus alterará radi­calmente a tarefa de escrever uma história de Israel, pois tal atividade estará em um nível teológico. Escrever a história de Israel e escrever a história de um outro povo envolvem perspectivas completamente dife­rentes, pois no caso de Israel, história e teologia não podem ser separadas. Por esse motivo, o cepticismo tão familiar e necessário à historiografia convencional não poderá fazer parte desta obra. Em virtude da confissão de que respeitamos a autoridade das fontes que estaremos investigando, anulamos o direito de rejeitar o que não conseguirmos entender ou o que julgamos difícil de acreditar.

Isto não significa, entretanto, que uma história do Israel antigo escrita à luz da pesquisa moderna se restrinja tão-somente a uma recapitulação do registro bíblico. O próprio fato de que o Antigo Testamento relata aconteci­mentos antigos como história sagrada, como fenômeno primariamente teo­lógico em vez de social ou político, é suficiente para justificar as repetidas tentativas de reconstruir a h istória segundo as linhas norm ais da historiografia. Este livro representa tal esforço. Nosso propósito é compre­ender a história de Israel como uma integração dos fatores políticos, sociais, econômicos e religiosos, utilizando como base não apenas as informações do Antigo Testamento como Escritura, mas também as fontes literárias e arqueológicas do antigo Oriente Médio, do qual Israel fazia parte.

Os problemas enfrentados na produção de uma história do antigo Israel nos dias atuais

A questão da inerrância

Um dos fatores de maior influência para uma grande visão do Antigo Testamento, isto é, a visão de que ele é a própria Palavra de Deus revelada

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INTRODUÇÃO 3

aos homens, é a sua inerrância. Enquanto a maioria dos estudiosos evan­gélicos conservadores admitem que esta inerrância pertence exclusivamen­te ao autographa, os textos originais, também afirmam que o Antigo Testa­mento em sua forma primitiva é completamente inerrante. Isto significa que ele não apenas é teologicamente livre de erros, mas também que trata acertadamente e com autoridade de assuntos relacionados à ciência e his­tória, sempre que seja seu propósito fazê-lo.

Honestamente, reconhecemos que esta visão do Antigo Testamento como uma testemunha inerrante da história de Israel é problemática para muitas pessoas orientadas cientificamente, pois está fundamentada em uma conjetura teológica: os mesmos textos usados como documentação histórica são de origem e natureza divinas, e têm sido sobrenaturalmente preservados.

A ausência de docum entos pré-m osaicos

Embora possa haver alguma evidência de que Moisés utilizou alguns docum entos para com por o livro de Gênesis - as cham adas to ledot ("genealogias") - a existência desses documentos é completamente sem comprovação. Conseqüentemente, isto sugere que, ou ele dependeu ex­clusivamente da infalível e inquebrável tradição oral (que cobria milhares de anos), ou recebeu as informações por revelação direta. A segunda hipó­tese obviamente é rejeitada pela maioria dos estudiosos, ao passo que a sugestão da tradição oral é relativamente aceita. O oriente próximo testifica abundantemente acerca do uso de tradições orais, embora não do mesmo nível ou com a mesma integridade implicada no caso de Gênesis.

Seletividade histórica

E inevitavelmente necessário na história escrita incluir alguns aconte­cimentos e excluir outros, geralmente com base na disponibilidade de da­dos e nos interesses do historiador. Esta seletividade é particularmente visível no relato histórico de Israel no Antigo Testamento, porque o Autor (e autores) tinha objetivos determinados em mente. O verdadeiro impulso do Antigo Testamento é teológico. Os fatos mais relevantes para os gran­des temas do propósito divino, por exemplo a redenção, são preservados enquanto outros são excluídos. Sem dúvida a história de Israel envolve mais do que as informações contidas no registro bíblico. De fato, as fre­qüentes referências a documentos não-canônicos, tais como o "Livro de Jasar" e o "Livro das Crônicas dos Reis de Israel [ou Judá]", deixam os

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4 H istória d e I sr a el no A ntig o Testamento

estudiosos alarmados com respeito ao conteúdo que esses materiais pode­riam fornecer. Entretanto, por razões não muito claras, seu conteúdo não foi adicionado ao registro histórico canônico.

O problema para o historiógrafo, então, é a natureza seletiva do Antigo Testamento. Ele não é primariamente uma história, uma crônica, no senti­do político do termo, mas uma relato descritivo, direcionado da obra de Deus na vida dos homens.

A presente abordagem da história de Israel

Reconhecim ento do caráter revelador do Antigo Testamento

Esta presente abordagem da história de Israel parte da confissão de que o Antigo Testamento é a revelação de Deus na forma escrita. Esta con­fissão obviamente pressupõe sua inspiração como Palavra de Deus e rati­fica sua inerrância em todas as áreas, incluindo a história. Isto não signifi­ca que alguém possa escrever uma história de Israel sem enfrentar dificul­dades - algumas insuperáveis - , mas que é possível fazê-lo reconhecendo plenamente que os problemas não são inerentes às fontes, mas à incapaci­dade dos historiadores humanos de ter acesso e interpretar essas fontes. O reg istro pode estar in co m p leto ; de fa to , ele freq ü en tem en te é complementado pelas informações extrabíblicas. Contudo, ele nunca está errado quando entendido completamente.

Reconhecim ento âo método bíblico

De acordo com o que foi dito acima, esta presente obra reconhece o processo de seletividade no texto canônico e, portanto, não espera que o Antigo Testamento diga mais ou menos do que aquilo que se propõe a falar com respeito à história. Esse processo de seletividade não deveria nos surpreender, pois ocorreu em vários outros registros escritos da mes­ma época. Por exemplo, alguns acontecimentos marcantes do Antigo Tes­tamento não foram registrados na história secular quando, na verdade, qualquer um poderia esperar que eles tivessem sido.

Do mesmo modo, muitos eventos cruciais no mundo também não são mencionados no Antigo Testamento. É realmente estranho que os textos egípcios (ou ainda mais surpreendente, hititas) sequer façam menção do êxodo de Israel, e também que o Antigo Testamento permaneça em abso­luto silêncio com respeito ao poderoso Hamurabi. A única explicação para tais omissões repousa na idéia de que houve grande seletividade e (se­

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IsT R O D U Ç Ã O 5

gundo os padrões modernos) e uma historiografia não-ortodoxa. O histo­riador moderno precisa admitir que esta é a situação real e tratar os fatos dessa maneira. Não é responsabilidade ou trabalho do historiador dizer o que as fontes deveriam ter incluído, mas trabalhar com elas e tentar extra­ir delas o melhor entendimento possível.

Reconhecim ento do propósito bíblico

Um compromisso assumido por todo aquele que busca escrever uma história de Israel é aceitar o Antigo Testamento em seus próprios termos. De fato, ele é um livro de história, mas ao mesmo tempo é a revelação progressiva da mente e dos propósitos do Senhor. É desta forma que ele deve ser lido e interpretado teologicamente. Embora a totalidade dos fa­tos perfaçam um corpo de informação histórica, cada fato, cada evento, cada pessoa do Antigo Testamento tem uma significação especial quando visto no contexto como um todo. O êxodo, por exemplo, é muito mais do que um episódio emocionante que lançou as bases para a nacionalidade de Israel. E um evento simbólico que tipifica a ação salvífica do Senhor com respeito a Israel e também a todo o mundo. Ver os fatos desta manei­ra não interfere na historicidade literal. Mas deixar de enxergar assim é falhar em ver o Antigo Testamento como uma obra de história que trans­cende infinitamente os limites da historiografia comum.

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Israel em M oabe O propósito da Torá

Gênesis Êxodo Levítico Números Deuteronômio

A história dos patriarcasA braão: o ancestral das nações

As origens de Abrão A viagem até Canaã O estabelecimento em Canaã A viagem para o Egito A separação entre Abrão e Ló Os reis do Oriente Abrão e sua cultura A destruição de Sodoma e Gomorra Abraão e os filisteus A busca de uma esposa para Isaque

]acó: pai de muitas nações A bênção e o exílio A volta para Canaã O casamento de Judá A descida ao Egito

A história de JoséO cenário

A atmosfera culturalDe José ao êxodo

Israel em Moabe

Ao término do século quinze antes de Cristo1, uma multidão de pesso­as conhecida como Israel - uma raça exclusiva entre todas as nações - reuniu-se nas planícies de Moabe momentos antes da invasão e conquista de Canaã, que se daria diretamente ao ocidente e através do Rio Jordão. Moisés, que foi por mais de quarenta anos o seu venerado líder, estava prestes a morrer, e já tinha transferido as rédeas de autoridade a seu jo ­vem assistente Josué. Esse foi um momento totalmente singular. O Israel

Os princípios que fundamentam a estrutura cronológica adotada nessa obra estão con­tidos nas pp. 59-73.

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8 H istória d e Israel no A ntigo T estamento

que anteriormente não passava de um povo escravizado e desorganizado foi miraculosamente libertado do domínio da mais poderosa nação da ter­ra, o Egito, e encontrou-se com Jeová, Deus do céu e da terra, no Sinai. Lá eles entraram numa aliança com Ele e foram feitos seus servos e povo de propriedade exclusiva. Agora, após um intervalo de quarenta anos, eles chegaram a leste de Jericó, estando prestes a entrar na sua terra e futuro lar, a Canaã que o Deus da aliança lhes prometera.

Mas existe uma multidão de perguntas que exigem respostas. Não há dúvida de que Moisés e muitos de seus antepassados tinham aprendido sobre os propósitos de Deus, seja por revelação direta ou por tradição oral, e que eles passaram as intenções de Deus para seus contemporâne­os de várias formas diferentes. Apesar disso, até o presente momento não há qualquer sistematização que nos leve a compreender quais foram os "blocos form adores" da história e teologia que resultaram na estrutu­ra de um povo unido em aliança com Deus, possuidor de uma tremenda responsabilidade e privilégio de agir como seu povo, segundo o seu pla­no redentor.

Quem, de fato, era esse povo? Qual era a significação de Israel? Como Israel veio à existência? Qual é, especificamente, o propósito que essa na­ção tem de realizar na condição de mais um membro dentre todos os de­mais povos e nações? Além de todas essas coisas, qual foi a razão da cria­ção dos céus, da terra, e de toda a humanidade? O que o Criador tinha em mente para a sua criação? E se Israel foi eleito para lhe servir, como seria realizada essa servidão de forma que contribuísse para a implementação dos grandes propósitos salvíficos de Deus?

O propósito da Torá

As tradições universais judaica e cristã ensinam inequivocamente que Moisés agiu como mediador e porta-voz de Jeová para seu povo. No pro­pósito de providenciar respostas para as perguntas anteriores, dedicou a última parte de sua longa e produtiva vida a esse ministério.2 A forma como as respostas vieram a se constituir chama-se para os judeus de Torá,

2 O surgimento da chamada Alta Crítica, de cunho cético, no período então chamado de Iluminismo, ocorreu no décimo oitavo século. Seus partidários tentaram negar a auto­ria mosaica do Pentateuco, e consideravam-no um apanhado de vários documentos que foram escritos muitos anos depois das datas tradicionalmente atribuídas a Moisés. Para uma descrição da história desse movimento e uma resposta contra seus argumen­tos, ver em Roland K. Harrisson, Introduction to the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1969), pp. 3-82.

Page 20: História de Israel

O r ig e ss 9

e para os cristãos de Pentateuco, ou seja, os livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Embora comumente sejam descritos como "L ei", na verdade são mais história, porém escrita de forma muito mais elevada.3

Gênesis

O propósito do Gênesis é documentar o fato de que o Deus de Israel é o Criador de todas as coisas e, inclusive, traçar a história da raça humana desde a criação até o tempo em que Israel se desenvolveu como uma na­ção especial. O livro descreve as intenções cósmicas de Deus, a recusa da humanidade em se conformar com os propósitos divinos, e mostra os mecanismos e as promessas contidas na aliança, por meio dos quais Deus iria por fim alcançar todos os seus objetivos, apesar da desobediência dos homens. Isso envolve a chamada e a separação de Abraão que, através de sua inumerável descendência, se tornaria o canal de bênçãos para todo o mundo.4

Êxodo

O Êxodo relata a história dos descendentes de Abraão desde a sua li­bertação da escravidão e opressão egípcia até a sua constituição como povo de Deus no deserto do Sinai. Mostra que Israel não era digno dessa graça, mas que, por razões conhecidas apenas por Deus, foi separado para entrar num concerto com Ele a fim de servir tanto como um repositório das ver­dades salvíficas quanto como um veículo através do qual essas verdades seriam comunicadas e, por fim, culminariam na encarnação de Jesus Cris­to. Os principais temas do livro giram em torno dessa aliança. O ponto mais alto do êxodo histórico foi a dádiva da aliança, o texto inteiro que consta em Êxodo 20-23. Lá encontram-se descritas as prescrições de culto com respeito ao modo pelo qual os servos deveriam se aproximar da ma­jestosa pessoa do Deus Soberano (sacrifício e ritual), e o local onde tal aproximação teria lugar (o tabernáculo).

’ Ver pp. 4,54 Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary, trad. John H. Marks (London: SCM;

Philadelphia: Westminster, 1961), pp. 154-56. O propósito das histórias patriarcais está bem descrito e por John Goldingway, "The Patriarchs in Scripture and History", em Essays on the Patriarchal Narratives, ed. A R. Millard e D. J. Wiseman (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), pp. 1-34.

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1 0 H istória d e I sr a el no A ntigo Testamento

Levltico

A terceira seção da Torá providencia os padrões de santidade que de­veriam fazer parte da vida daqueles que estariam incumbidos de estabe­lecer e manter o acesso ao santo e infinito Senhor da aliança. Esses pa­drões não eram apenas para o povo de modo geral, mas caíam particular­mente sobre os sacerdotes, que deveriam servir como intercessores na es­trutura do culto público.

Números

O livro de Números descreve a m igração de Israel do Egito até as planícies de M oabe, uma viagem repleta de uma sucessão de rebeliões contra o Senhor e contra os adm inistradores de sua teocracia, que cul­m inou na m orte de todos os adultos da geração do êxodo. Houve, por conseguinte, a necessidade de se fazer pelo menos uma legislação adi­cional para os que faziam parte da nova geração, enfatizando nova­mente as bases que regem a aliança antes que eles se estabelecessem em Canaã. Logo, muita coisa que temos em Números, da mesma forma que em Êxodo e Levítico, é prescritiva em sua natureza, e não narrativa técnica da história. Mas de forma geral, o livro de Números cita os even­tos históricos significantes do período que vai da aliança do Sinai até a chegada de Israel às planícies de M oabe, um período de aproxim ada­mente trinta e oito anos. O livro é assim qualificado como histórico e é de contribuição fundam ental para a com preensão do Israel antes da conquista.

Deuteronômio

Dentre os livros do Pentateuco, Deuteronômio é sem dúvida o menos histórico, uma vez que em sua inteireza apresenta um longo discurso de Moisés para a comunidade da aliança que estava às vésperas da con­quista. Do ponto de vista literário, esse discurso deve ser visto como um texto exaustivo de uma aliança, e seus elementos encontram paralelos em outros documentos da mesma característica que pertenciam ao anti­go Oriente M édio.5 O propósito do livro é repetir, com algumas emen­das e clareza, a mensagem básica de Êxodo 20-23 - uma repetição neces­

5 Meredith G. Kline, The Structure o f Biblical Authority (Grand Rapids: Eerdmans, 1972), pp. 9-14.

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O rigens I I

sária em face das circunstâncias históricas que transpiravam já por qua­se quarenta anos desde a revelação no Sinai. A geração que presenciou e entrou em aliança no Sinai já havia morrido ou estava morrendo. Nesse caso, a nova geração também precisava ouvir e, por ela mesma, respon­der às exigências que o pacto com Jeová lhes impunha. Em outras pala­vras, precisava haver uma reafirmação daquela aliança, como era de cos­tume por todo mundo ao leste do Mediterrâneo, quando se findava uma geração de um povo vassalo.6 Além disso, o pacto do Sinai - assim como suas prefigurações em Números - foi particularmente preparado para atender às necessidades de uma sociedade nômade que se dirigia para um vida permanentemente sedentária em Canaã. Finalmente, as tribos haviam chegado à entrada da terra prometida e, logo, uma alteração no pacto se tornava necessária como prevenção para as grandes mudanças que Israel iria encontrar. Deuteronômio é o discurso de despedida de Moisés, no qual ele alerta e lembra o povo acerca de quem eles são, de onde foram tirados e qual deve ser a sua missão daquele dia em diante, à medida que eles reivindicam a terra da promessa e trabalham como mediadores entre as nações.

A história dos patriarcas

A história de Israel não começa com M oisés, com os acontecim entos do êxodo ou com a aliança. Porém, a com preensão e sistem atização dos relatos com respeito às origens de Israel, seu trabalho e destino foram, sem dúvida, preparadas por M oisés nas planícies de Moabe, onde o profeta também m anifestou seus dotes e habilidades de histori­ador. Na criação da Torá, sua obra-prim a, M oisés serviu tanto como testem unha ocular quanto como organizador e colecionador de todo o m aterial necessário para documentar o passado. Sem dúvida que esta­mos diante de um livro histórico, mas podem os dizer que na verdade é muito mais do que isso - estamos diante de um tratado de teologia cujo propósito é m ostrar que o Deus Criador, por meio da nação esco­lhida Israel, soberanam ente realizará seu propósito redentor para toda a hum anidade.7

6 Peter C. Craigie, The Book o f Deuteronomy, New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1976), pp. 28,30-32.

~ Para um apanhado historiográfico um pouco diferenciado sobre as histórias dos patriar­cas, ver inter alia, John T. Luke, "Abraham and the Iron Age: Reflections on the New Patriarchal Studies", JSOT 4 (1977): 35-47, esp. p. 47.

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Abraão: o ancestral das nações

A s origens de Abrão

A história de Israel tem início com a chamada de Abrão para ser o pai da nação escolhida. No final da lista genealógica que começa com Sem, filho de Noé (Gn 11.10-26), aparece o nome de Terá, pai de Abrão, Naor e Arã. Terá viveu em Ur dos Caldeus (v. 28), a famosa cidade sumeriana localizada às margens do Rio Eufrates, cerca de 241 quilômetros a nordes­te da costa atual do Golfo Pérsico.8 A mais satisfatória reconstrução da cronologia bíblica localiza o nascimento de Abrão em 2166 a.C.,9 uma época em que a cidade de Ur caiu nas mãos de um povo bárbaro e montanhês conhecido por Guti.10

Conforme já foi constatado, Ur era uma cidade da Suméria - a mais importante dentre um complexo de cidades-estados - povoada pela civili­zação altamente culta dos sumérios pelo menos desde a metade do quarto milênio. A Ur de Terá e Abrão era, por assim dizer, uma cidade altamente cosmopolita, já que não-sumérios como o próprio Abrão e seus antepassa­dos - de origem semítica - lá viveram e fundiram seus conhecimentos intelectuais e sua cultura com o lastro cultural dos sumérios.11

Visto que por aqueles tempos Sargão (2371-2316)12 estabeleceu em Agade o Império Acadiano, de dominação semita, aproximadamente 321 quilômetros a noroeste de Ur, é quase certo que Abrão era bilíngüe, domi­

8 Acerca de dados relativos às escavações em Ur, ver em C. Leonard Wooley, Ur o f the Chaldees (New York: Norton, 1965).

9 Essa cronologia será melhor elaborada nas pp. 59-73. Que a era patriarcal se enquadra aproximadamente nos períodos I-II do Bronze Médio (aprox. 2000-1800) foi demonstra­do por John J. Bimson, "Archaeological Data and the Dating of the Patriarchs", em Essays on the Patriarchal Narratives, editado por A.R. Millard e D. J. Wiseman (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), pp. 53-89; ver John Bright, A History o f Israel, 3a ed. (Philadelphia: Westminster, 1981), p. 85.

10 C.J. Gadd, "The Dynasty of Agade and the Gutian Invasion", em Cambridge Ancient History (CAH), 3ed.., editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1971), vol. 1, parte 2, pp. 454-61. O domínio dos Guti extendeu-se de aproximada­mente 2240 até 2115.

11 Dietz Otto Edzard, "The Early Dynastic Period", em The Near East: The Early Civilization, editado por Jean Bottéro et al. (New York: Delacorte, 1967), pp. 86-87; Thorkild Jacobsen, "The Assumed Conflict Between Sumerians and Semites in Early Mesopotamian History", JAOS 59 (1939): 485-95.

12 As datas extrabíblicas para esse capítulo são as mesmas obtidas no Cambridge Ancient History, 3ed.

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nando tanto a língua sumeriana quanto a acadiana. O local de onde os descendentes de Abrão se originaram e como eles se estabeleceram em Ur não está registrado no relato histórico. A miscigenação entre os elementos étnicos sumerianos e semíticos no terceiro milênio está bem atestada na Mesopotâmia inferior; por esta razão, não há necessidade de se buscar por uma outra Ur além da que tem sido tradicionalmente associada a Abrão.13

A principal deidade adorada em Ur era o deus lua sumeriano Nannar, conhecido em acadiano como Sin. Não há dúvida de que Abrão e sua fa­mília eram devotos fiéis a Sin e às divindades a ele associadas, pois em Josué 24.2 vemos o registro de que eles adoraram e serviram a outros deu­ses além do rio (o Eufrates). Além disso, alguns estudiosos identificam o nome Terá como sendo uma forma da palavra hebraica yareah ("lua"), o que pode sugerir que o seu nome revelava qual era sua orientação religio­sa.14 Quando Terá e sua família deixaram a cidade de Ur, restabeleceram- se em Arã, um outro importante centro de adoração ao deus Sin. r O assunto que trata acerca do nascimento de Abrão no paganismo em

contraste com sua descendência direta da linha escolhida de Sem é de gran­de interesse, embora não possa ser considerado aqui em detalhes. Contu­do, está claro que a genealogia que liga Sem a Abrão não deve ser vista como completa, mas apenas como seletiva. Ou seja, os nomes que apare-

13 Cyrus H. Gordon lançou a teoria que Abrão não tinha ligações com a Ur dos Caldeus mas com uma Ura' na Síria, um local muitíssimo mais próximo de Arã e, segundo seu ponto de vista, muito mais compatível com as narrativas de Isaque e Jacó, cujas esposas procederam da parentela de Abrão em Arã ou da parte mais alta da Síria. Ver detalhes em "Abraham of Ur", em Hebrew and Semitic Studies, editado por D. Winton Thomas e W.D. McHardy (Oxford: Clarendon, 1963), pp. 77-84. Mais recentemente foi ventilada a confirmação de uma outra Ur mais ao norte, que está registrada nos textos de Ebla. Mas, conforme Paul C. Maloney, os sinais cuneiformes usados por aquela Ur são dife­rentes dos utilizados para soletrar o mesmo nome da Ur dos Sumérios ("The Raw Mate­rial", BAR 6.3 [1980]: 59). Para uma veemente defesa do ponto de vista que a Ur dos Caldeus deve ser entendida como aquela cidade localizada no sul, ver H.W.F. Saggs, "Ur of the Chaldees", Iraq 22 (1960): 200-9. A frase identificadora "dos Caldeus" é sem dúvida uma glosa explicativa surgida tempos depois, já que os caldeus e os kaldu-(i.e. caldea) não eram conhecidos até o século nove a.C. O propósito, é claro, era distinguir a Ur que se localizava no sul daquelas outras cidades que tinham o mesmo nome.

14 William G. Dever e W. Malcolm Clark, "The Patriarchal Tradition", em lsraelite and Judaean History, editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1977), p. 127. O nome mais provavelmente deve ser buscado no acadiano tarhu ("ibex"). Ver Claus Westermann, Genesis 1-11: A Commentary, traduzido por John J. Scullion (Minneapolis: Augsburg, 1984), p. 564.

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cem são talvez os representantes de muitos outros que, por motivos a nós desconhecidos e que não podem ser determinados, não foram inseridos no registro.15 Caso Sem e Abrão tenham sido contemporâneos, conforme uma interpretação estrita da genealogia nos forçaria a reconhecer, então torna-se extremamente difícil entender como os ancestrais mais imediatos de Abrão tornaram-se pagãos e, mais ainda, por que Abrão teria sido cha­mado exclusivamente para essa sagrada missão, já que havia crentes dis­poníveis para cumprir o propósito que Deus tinha em vista.16 E mais: caso Sem e Abrão tenham sido contemporâneos, torna-se difícil conciliar o fato de Abrão haver morrido aos 175 anos, "... em ditosa velhice, avançado em anos..." (Gn 25.8), pois o registro bíblico diz que Sem morreu aos 600 anos, uma idade consideravelmente mais jovem do que seu pai Noé (950 anos). Claramente, podemos ver que Sem precedeu Abrão por muito mais anos do que uma estrita leitura do texto permite enxergar. Portanto, houve tempo suficiente para permitir o fato de Jeová ter desaparecido da linhagem de Sem, tornando-se necessária a sua revelação ao pagão Abrão.

A viagem até Canaã

Não há como definirmos com precisão quando foi que Abrão partiu de Ur para Arã. Ele já era velho o suficiente para estar casado e ainda jovem o suficiente para continuar debaixo da autoridade patriarcal de seu pai. A despeito do fato de seu nome ser mencionado em primeiro lugar na genealogia, ele era o mais jovem dentre os três filhos de Terá.17 Arã mor­reu em Ur; logo, apenas Naor, Abrão, e o filho de Arã chamado Ló, parti­

15 Para estudar as formas e funções das genealogias no Antigo Testamento e no antigo oriente médio, ver em Robert R. Wilson, Genealogy and History in the Biblical World (New Haven: Yale University Press, 1977); Jack M. Sasson, "A Genealogical 'Convention' in Biblical Cronology", ZAW 90 (1978): 171-85; Gerhard F. Hasel, "The Meaning of Chronogenealogies of Genesis 5 and 11", Origins 7 (1981): 53-70.Uma interpretação estrita, ou seja, uma interpretação que afirma que as listas genealógicas não omitem nenhuma geração, requereria que Noé tivesse morrido em 2168, apenas 2 anos antes do nascimento de Abrão, e que Sem morrera em 2016, antece­dendo a Abrão em apenas 25 anos! Ver em Gênesis 9.28; 11.10,11; 25.7. (Nós assumimos nessa obra que Terá estava com 130 anos quando Abrão nasceu. Ver a nota 17).Isso está bastante evidente pelo fato de Abrão ter 75 anos quando partiu de Arã (Gn 12.4). Essa saída ocorreu somente após a morte de Terá (At 7.4), que faleceu aos 205 anos (Gn 11.32). Portanto, Abrão não nasceu antes dos 130 anos de Terá. O fato registrado em Gn 11.26 que Terá estava com 70 anos quando ele teve Abrão, Naor e Terá quer dizer que ele estava com essa idade quando nasceu o seu primeiro filho. Abrão é listado em primeiro lugar devido a sua importância na narrativa que se segue.

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ram com suas esposas seguindo Terá em direção à grande cidade de Arã, cerca de 965 quilômetros a noroeste de Ur. Por que Terá e sua família dei­xaram a cidade de Ur é algo que não pode ser determinado, embora pos­samos supor que os levantes políticos e culturais que estavam acontecen­do na Suméria, em razão das conquistas impostas pelos Guti, devam ter contribuído diretamente para tal decisão. Terá não tinha como descobrir que os bárbaros Guti seriam expulsos em 2115, e que a gloriosa 3a Dinastia de Ur seria estabelecida sob Ur-Nammu. Nessa ocasião, Terá e sua família já estavam vivendo em Arã, e dentro de vinte e cinco anos Abrão estaria partindo dali para Canaã (Gn 12.4; cf. At 7.4).

Nos anos de sua estada em Arã - que na época era um centro comercial e de negócios habitado principalmente por uma raça conhecida pelos sumerianos por MAR.TU e pelos acadianos por Amurru (os amoritas bí­blicos) - , Abrão sem dúvida tornou-se fluente no dialeto semítico amorita que lá era falado e adquiriu um estilo de vida nômade, com o qual ele viria mais tarde a se familiarizar em Canaã.18 Os amoritas nesse tempo não apenas ocupavam as principais cidades a noroeste da Mesopotâmia, mas também, por necessidade de expansão comercial, atingiram o sudes­te e o sudoeste.19

Por fim, pelo fato de haver população suficiente na Mesopotâmia cen­tral, surgiram as cidades-estados amoritas, tais como Isin, Larsa, e a mais importante de todas: Babilônia. O próprio Hamurabi (1792-1750), o mais

Ninguém deve a priori rejeitar o grande número de anos que os patriarcas viveram simplesmente por não encontrarem paralelos nos dias de hoje. Uma análise objetiva dos únicos dados que temos disponíveis exigem que esses números sejam tomados do jeito que nos foram apresentados, a não ser que exista evidência histórica que nos prove o contrário. Será útil observar que é dito que Sargão de Acade reinou por cinqüenta e cinco anos, Rim-Sin de Larsa durante sessenta, Ramsés II do Egito por sessenta e seis anos e, Phiops II do Egito por noventa e quatro anos! Para mais informações, ver em William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near East (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971), p. 55; CAH 1.2, p. 64; 2.2, p. 232; 1.2, p. 195. Todos esses, com exceção de Ramsés, foram contemporâneos com o período dos patriarcas. Além disso, mesmo sendo grandemente exagerada, a lista dos reis sumérios fala de reis muito anti­gos que reinaram por séculos e até mesmo por milênios. Sem dúvida que essa longevidade deve estar baseada nalguma fonte genuinamente histórica. Ver em Thorkild Jacobsen, The Sumerian King List, Assyriological Studies 11 (Chicago: University of Chi­cago Press, 1939).

18 Para informações sobre MAR.TU ou amurru, da Alta Mesopotâmia no início do segun­do milênio, ver em Jean Bottéro, "Syria During the Third Dynasty of Ur", em CAH 1.2, pp. 562-64.

19 Ignace J. Gelb, "Na Old Babylonian List of Amorites", JAOS 88 (1968): 39-46.

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ilustre dentre todos os reis da Antiga Babilônia, era um descendente dos amoritas. O deslocamento em sentido sudeste que vemos no povo amorita torna-se de importância fundamental para a história bíblica, pois envolve a penetração e ocupação desta raça tanto na Síria quanto em Canaã, esten­dendo-se inclusive até as fronteiras do Egito. Esses amoritas, que foram equivocadamente caracterizados em certa ocasião como sendo de origem puramente nômade, eram na verdade seminômades em sua maioria, e geralmente urbanizados.20 As pesquisas arqueológicas realizadas em nu­merosos sítios na Síria e em Canaã têm revelado, segundo o ponto de vista de alguns estudiosos, que as populações indígenas dessas regiões foram dominadas na última parte da Baixa Era do Bronze (2200-2000) por povos geralmente descritos como amoritas.21

Tabela 1 A seqüência da Era do Bronze

Baixo Bronze 3000-2000Baixo Bronze I 3000-2800Baixo Bronze II 2800-2500Baixo Bronze III 2500-2200Baixo Bronze IV 2200-2000

Médio BronzeMédio Bronze I 2000-1900Médio Bronze II 1900-1550

Alto BronzeAlto Bronze I 1550-1450Alto Bronze II 1400-1200

20 Para um apanhado do estilo de vida "dimórfico" dos amoritas, ver Michael B. Rowton, "Urban Autonomy in a Nomadic Environment", JNES 32 (1973): 201-15; M. Liverani, "The Amorites", em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), p. 114.

21 A assim chamada hipótese amorita foi popularizada e encontrou um maior defensor no trabalho de Kathlen Kenyon, Amorites and Cananítes (London: Oxford University Press, 1966), esp. pp. 76,77. Mais tarde surgiu forte oposição contra esta teoria, representada especialmente por C.H.J. de Geus, "the amorites in the Archaeology of Palestine", UF 3 (1971): 41-60. É seguro afirmar que muitos estudiosos ainda acreditam a hipótese e que ela é a que supre-nos com a melhor explicação sobre a liberdade que os patriarcas ti­nham de seu movimentar em Canaã nesse período, além de ser a melhor forma de se elucidar o padrão dos assentamentos descritos no Antigo Testamento. Maiores infor­mações, ver Eugene H. Merril, "Ebla and Biblical Historical Inerrancy", Bib Sac 140 (1983): 302-21, esp. pp. 306-8; Benjamim Mazar, "Canaan in the Patriarchal Age", em World History o f the Jewish People, vol. 2. Patriarchs, editado por Benjamim Mazar (Tel Aviv: Massada, 1970), pp. 169-87, 276-78.

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O historiador bíblico relata que Jeová disse a Abrão para deixar seu país (na ocasião era Arã), indo para um lugar que Ele progressivamente lhe revelaria. E tentador supormos que Abrão não tenha se movido da­quele local sozinho, mas que tivesse participado das grandes migrações de amoritas que estavam em voga naqueles dias.22 E verdade que Abrão

Tabela 2 Os Patriarcas

O nascimento de Terá 2296O nascimento de Abrão 2166A partida de Abrão de Arã 2091Hagar é dada por mulher a Abrão 2081O nascimento de Ismael 2080A reafirmação da aliança 2067A destruição de Sodoma e Gomorra 2067O nascimento de Isaque 2066A morte de Sara 2029O casamento de Isaque 2026O nascimento de Jacó e Esaú 2006A morte de Abraão 1991O casamento de Esaú 1966A morte de Ismael 1943A viagem de Jacó a Arã 1930Os casamentos de Jacó 19230 nascimento de Judá 1919Final dos catorze anos de trabalho pelos

quais Jacó obteve suas duas esposas 1916O nascimento de José 1916O final da estada de Jacó com Labão 1910A chegada de Jacó a Siquém 1910Diná é deflorada 1902O casamento de Judá 1900José é vendido 1899José é preso 1889José é libertado 1886Morte de Isaque 1886O início da fome 1879Primeira visita dos irmãos de José ao Egito 1878Judá comete incesto com Tamar 1877Segunda visita dos irmãos de José ao Egito 1877Descida de Jacó ao Egito 1876Morte de Jacó 1859Morte de José 1806

22 J. Kaplan, "Mesopotamiam Elements in the Middle Bonze II Culture of Palestine", JNES30 (1971): 293-307, esp. 305-6. A hipótese amorita não é indispensável em nenhum as­pecto à historicidade das narrativas patriarcais, pois Abrão poderia ter se movimentado independentemente da alta Mesopotâmia para Canaã.

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nunca é mencionado na Bíblia como sendo de origem amorita, embora a designação "Abrão, o Hebreu" possa indicar que ele era tido como al­guém que estava associado a certos povos migradores.23

O estabelecim ento em Canaã

Quando Abrão chegou em Canaã, achava-se num a terra que in ­dubitavelmente tinha passado por algumas modificações culturais devi­do às novas condições descritas anteriormente. Por um período de mais de mil anos o elemento étnico predominante na terra tinha sido o cananita.24 Quem eram os cananeus na época de Abrão continua obscuro, embora o Antigo Testamento ligue Canaã originalmente a Cão, filho de Noé. Se eles eram ou não semíticos em sua etnia, o fato é que falavam uma língua semítica que se comparava substancialmente à que Abrão deve ter apren­dido em Arã.25 As escavações feitas recentemente em Tel Mardikh (a anti­ga Ebla), situada a menos que 240 quilômetros a sudoeste de Arã, têm revelado diversas tabuinhas escritas numa linguagem tão parecida com o cananeu, que muitos estudiosos a têm classificado de protocananéia.26 O

3 William F. Albright defende a idéia que Abrão não deva ser visto como um pastor de rebanhos que levava o estilo nômade de vida, mas como um mercador ou caravaneiro, ou seja, substancialmente um semi-nômade. ("From the Patriarchs to Moses: I. From Abrahan to Joseph", BA 36 [1973]: 11-15). Quanto à definição de hebreu, ver pp. 100-2.

:4 Embora não fosse possível até bem pouco tempo encontrar referências aos termos Canaã ou cananeus nos textos literários extrabíblicos mais antigos do que a metade do segun­do milênio (ver Sidney Smith, The Statue o f Idri-Mi [London: British Institute of Archaeology in Ankara, 1949], p. 15; Michael C. Astour, "the Origins of the Terms 'Canaan', 'Phoenician' and 'Purple'," JNES 24 [1965]: 346-47), não existe razão para du­vidar de que as populações nativas da Palestina nos primórdios da Idade do Bronze tivessem sido cananéias. Conforme diz Roland de Vaux, "Visto que não houve alteração da raça ou da cultura no decurso do terceiro milênio, os 'cananeus' bem podem ser considerados os fundadores da primitiva Idade do Bronze." ("Palestine in the Early Bronze Age," em CAH 1.2, p. 234). Além disso, existe uma informação contida num texto de Ebla, e que antecede em mil anos à referência de Idri-Mi (Alalakh), citando um tal "senhor de Canaã" (be ka-na-na-im). Ver Giovanni Pettinato, The Archives o f Ebla (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1981), p. 253.

:= Sabatino Moscati, Na Introduction to the Comparative Grammar o f the Semitic Language (Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1984), pp. 3-8; William L. Moran, "The Hebrew Language in Its Northwest Semitic Background", em The Bible and the Ancient Near East, editado por G. Ernest Wright (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), pp. 59-64.Pettinato, Archives, p. 56; quanto as escavações e dados arqueológicos, ver em Paolo Mathiae, Ebla: An Empire Rediscovered, traduzido por Christopher Holme (Garden city, X.Y.: Doubleday, 1981).

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que é mais significativo ainda é o fato de tais tabuinhas datarem de 2500 a.C. Sendo assim, ainda antes da época de Abrão havia uma profunda afinidade entre as línguas faladas no noroeste da Mesopotâmia e Síria (e presumivelmente em Canaã).27 Já que Abrão era fluente no idioma amorita, a assimilação do novo idioma cananita, sua nova terra natal, seria uma tarefa muitíssimo fácil.

Um dos efeitos da ocupação de Canaã pelos amoritas foi que eles restringiram o acesso dos cananeus à planície costeira do M editerrâ­neo, o vale de Jezreel, bem como o vale do Jordão (Nm 13.29). Os amoritas se estabeleceram na porção central das grandes regiões m on­tanhosas, e desenvolveram um estilo de vida baseado na pecuária e na agricultura.28 Semelhantemente, Abrão se estabeleceu nas regiões mon­tanhosas e lim itou-se nessa área até ao sul na fronteira do deserto do Negueve.

O primeiro local onde o patriarca levantou suas tendas foi Siquém (Gn 12.6), um nome que surgiu somente anos após seu estabelecimento, uma vez que nos dias de Abrão não havia cidade alguma naquele lo­cal.29 Lá ele edificou um altar e também fixou sua residência, aparente­mente sem qualquer oposição contrária. A terra se abriu diante dele e era dele para a possuir. As referências enigmáticas a respeito dos cananeus que habitavam a região (Gn 12.6; 13.7) não contradizem o quadro geral da época, e podem ter sido apenas anotações feitas por Moisés para mostrar que, mesmo sendo uma civilização urbanizada em sua época

27 Para uma posição cautelosa e ao mesmo tempo bem informativa quanto à relevância dos textos de Ebla com respeito a história, vida social, religião e linguagem da antiga Síria, ver em Lorenzo Vigano e Dennis Pardee, "Literary Sources fo the History of Palestine and Syria: The Ebla Tablets," BA 47 (1984): 6-16.

2S Kenyon, Amorites, pp. 76-77; William F. Albright, "The Jordan Valley in the Bronze Age", AASOR 6 (1926): 68; Norman K. Gottwald, The Tribes ofYahweh (Mary-knoll, N.Y.: Orbis, 1979), p. 452. O que não significa necessariamente nomadismo ou vida em cabanas, conforme D. J. Wiseman nos mostra com respeito aos patriarcas ("They Lived in Tents", em Biblical and Near Eastern Studies, editado por Gary A. Tuttle [Grand Rapids: Eerdmans,1978], pp. 195-200).

29 William G. Dever, "Palestine in the Second Millenium BCE: The Archaeological Picture," em Hayes e Miller, History, p. 99; Joe D. Seger, "The Middle Bronze II C Date of the East Gate of Shechem," Levant 6 (1974): 117. Em 1900 Siquém desenvolveu-se num centro urbano, quase duzentos anos após a chegada de Abrão em Canaã (aprox. 2100). Na narrativa não existe sequer uma pista que nos indique que ali existiu uma cidade nos dias de Abrão. Pelo contrário, parece que ele construiu um altar num local desocupado,o qual mais tarde se tornou a cidade de Siquém.

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(ou seja, viviam em cidades-estados), nos dias de Abrão, eles tinham sido desapossados e estavam "na terra" no sentido de serem forçados a uma forma de vida mais agrária.30

Mudando-se para uma outra colina entre Betei e Ai, cidades que rece­beram esses nomes tempos depois,31 Abrão e seu clã novamente não en­contraram nenhuma resistência. Esse padrão foi mantido por todo um percurso na direção sul, através de toda a extensão da região montanhosa. Com os cananeus efetivam ente habitando nas planícies e vales, e os amoritas (entre os quais Abrão viveu) levando um estilo nômade de vida, este patriarca moveu-se e se estabeleceu conforme sua vontade e livre esco­lha, sem qualquer impedimento ou ameaça por parte daqueles que forma­vam a população nativa da região.

A viagem -para o Egito

Pouco depois da chegada de Abrão ao Negueve, a terra foi afligida por uma severa seca, forçando-o a partir com sua fam ília para o Egito a procura de alívio. Devido a infalível cheia do rio Nilo que, como conse­qüência, irrigava continuam ente as ricas fazendas da região, o Egito desde os tempos mais rem otos sempre foi considerado o celeiro do mundo M editerrâneo oriental. Não foi nada difícil chegar ao Egito, já que seus habitantes, com muita regularidade, vinham demonstrando aberta hospitalidade para com os povos sem itas.32 Havia, é claro, certa resistência e alerta com relação àqueles estrangeiros barbados, mas mesmo assim costum ava-se estender o tapete de boas-vindas especial­

30 Esse particularmente parece ser o caso de Gênesis 13.7, que fala de uma tensão entre Abrão e Ló por causa de pastos para seus rebanhos. Justamente porque os cananeus estavam "na terra", o espaço para Abrão e Ló era pequeno.

31 Confira em Gênesis 28.19 e Josué 8.28 (visto que o nome Ai significa "ruína", subenten­de-se que esta cidade passou a se chamar assim somente após a conquista israelita do local). O nome anterior para o sítio de Betei, que chamava-se Luz, continua sem com­provação, embora esteja claro que tal local se estabeleceu tão cedo quanto a primitiva Idade do Bronze. Ver em J.L. Kelso, The Excavation ofBethel 1934-1960, AASOR 39 (1968). Não há como localizar a cidade de Ai com precisão hoje em dia. Para termos uma visão completa do assunto, ver em John J. Bimson, Reáating the Exodus and Conquest (Sheffield: JSOT, 1978), pp. 215-25.

32 Cyril Aldred, The Egyptians (New York: Praeger, 1961), pp. 103-4. Este estado de coisas continuou por todo o Primeiro Reino Intermediário e Reino Médio, conforme nos é demonstrado por O. Tufnell e W. A. Ward, "Relations Between Byblos, Egypt and Mesopotamis at the End of the Thrid Millennium B.C., Syria 43 (1966): 165-241, especial­mente páginas 221-23.

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mente se os semitas fossem daqueles cuja inclinação voltava-se para o com ércio.33

A visita de Abrão ao Egito aconteceu próximo ao final do Primeiro Pe­ríodo Intermediário, provavelmente durante a 10a ou 11a Dinastia. Quan­do ele chegou ao Egito e contemplou as grandes pirâmides próximas a Mênfis, sabemos que esses grandes monumentos do Reino Antigo já esta­vam ali por mais de quatro séculos. Mas aquela era gloriosa tinha chegado ao fim com a 5a Dinastia e, por três séculos, o Egito entrou em profundo declínio, primariamente devido a ascensão do poder dos nomarcas ou governantes dos distritos locais. Visto que Abrão chegou em Canaã por volta de 2091 a.C., e que provavelmente entrou no Egito não muito depois dessa data, concluímos que o rei para quem ele mentiu com respeito a ser Sara sua esposa foi, ao que tudo indica, Wahkare Achthoes III (aprox. 2120- 2070) da 10a Dinastia, e que provavelmente foi o compositor da famosa "Instrução para o Rei M eri-ka-Re".34 Esses conselhos coligidos para seu filho, que tratam da deslealdade dos asiáticos, bem podem estar relacio­nados de uma forma ou de outra com a duplicidade apresentada por Abrão.

A separação entre Abrão e Ló

Apesar da deslealdade praticada por Abrão no Egito, ainda assim o Senhor decidiu abençoá-lo naquele lugar; por fim, o patriarca retornou para o Negueve e de lá moveu-se para a vizinhança de Betei e Ai, levando consigo grandes riquezas. A multiplicação dos rebanhos de Abrão e Ló foi tão significativa que eles chegaram à conclusão de que era impossível a coexistência nas mesmas terras de pastagens. Além disso, é claro, há toda uma possibilidade de haver existido naquele local o elemento cananeu não-sedentário também competindo pelos espaços abertos. No intuito de aliviar a tensão que estava se desenvolvendo em conseqüência do aglo­merado de rebanhos, Abrão propôs a seu sobrinho Ló que se afastassem um do outro. Mais uma vez temos a nítida impressão de que a terra estava completamente disponível para eles, ou seja, não havia latifundiários de quem as terras devessem ser compradas, ou para quem fosse necessário pedir permissão para fixar residência. Todas essas informações condizem

Ver o texto interessante "The Instruction for King Meri-ka-Re," em James B. Prithcard, Ancient Near Eastern to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 414-18, esp. 11.91ff: "Vede o maldito asiático... ele não consegue viver num único lugar, (mas) suas pernas foram feitas para perambular".

’ William C. Hayes, "The Middle Kingdom in Egypt," em CAH 1.2, pp. 466-68. Ver tam­bém nota 33.

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exatamente com os padrões de fixação de residência conhecidos em Canaã nesse período.

Olhando cobiçosamente para o oriente, Ló decide procurar sua fortuna nos pastos verdejantes das planícies do Jordão, provavelmente na parte baixa daquele vale, do leste de Betei para o mar Morto.35 A história da cultura daquela região nos diz que o local já havia sido ocupado por po­vos cananeus que tam bém tinham sofrido as m esm as devastações provocadas pelos amoritas, as mesmas experiências pelas quais os habi­tantes irmãos da região montanhosa haviam passado.36 Alguns estudio­sos sugerem que as cidades impenitentes da planície, inclusive Sodoma, devem ser situadas nessa região ao norte do mar Morto.37 Porém, é mais provável ainda que tais cidades estivessem fixadas a sudeste do mar, con­forme a tradição de longos anos tem acreditado e as recentes escavações têm confirmado.38 Caso tenha sido assim, conclui-se que Ló deve ter en­trado a princípio no vale do Jordão, depois continuou seguindo em dire­ção sul até chegar aos arredores de Sodoma (Gn 13.12).

Quanto a Abrão, as partes mais altas de Betei lhe proporcionavam uma vista panorâmica privilegiada de toda a região que Deus havia prometido dar a ele e a seus descendentes. A ordem de Deus "...percorre essa terra no seu comprimento e na sua largura..." (Gn 13.17) implica em afirmar a pos­sessão e a dominação que Abrão tinha de toda aquela área.39 Como resul­tado, Abrão deu seus primeiros passos, viajando com sua família e reba­nhos para um acampamento próximo a Manre, que tinha sido assim cha­

35 Yohanan Aharoni, The Land ofthe Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), pp. 133-4.36 Jericó, a principal cidade da área, segundo a opinião de Kenyon (Amorites p. 9), tinha

sido destruída por volta de 2300 e reconstruída por uma "população numerosa, embora fossem nômades" (p. 33). Esses primitivos anos do Médio Bronze sobreviveram até cer­ca de 1900 (p. 35). A natureza não-urbana da área explicaria o porquê de Ló (cerca de 2090 a.C.) ter decidido escolher a "planície do Jordão" como sua porção.

37 Willem C. Van Hatten, "Once Again: Sodom and Gomorrah", BA 44 (1981): 87.38 Ver particularmente a obra em andamento de Walter Rast e Thomas Schaub, "Survey of

the Southeastern Plain of the Dead Sea," ADAJ 19 (1974): 5-53; "Bab edh-Dhra' 1975," AASOR 43 (1978): 1-60; "Preliminary Report of the 1979 Expedition Bab edh-Dhra' and Numeira: May 24-July 10,1981," ASOR Newsletter 4 (1982): 4-12.

39 A divina promessa da terra e as outras bênçãos (Gn 12.1-3; 15.18-21; 17.1-8) estão registradas numa forma de aliança tecnicamente conhecida nos estudos do antigo Ori­ente Médio como sendo um "concerto da graça". E uma iniciativa que parte daquele que concede o favor, e quase sempre sem que para isso exista quaisquer prerequisitos ou qualificações. Ver em Moshe Weinfeld, "The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East", JAOS 90 (1970): 184-203: Samuel E. Loewenstamm, "The Divine Grants of Land to the Patriarchs," JAOS 91 (1971): 509-10.

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mada em homenagem ao seu líder amorreu (Gn 14.13), e que seria um dia a cidade de Hebrom (Gn 13.18). Sabemos que a referência a Hebrom, por parte de Moisés, não passa de anotações explicativas feitas por ele, já que, de acordo com Números 13.22, a cidade não havia sido ainda construída até sete anos antes da construção de Zoan, a cidade mais importante construída pelos hicsos bem ao oriente do Delta do Egito. Esses dados colocariam a fundação da cidade de Hebrom a cerca de 1727, ou seja, tre­zentos anos depois de Abrão.40

Os reis do Oriente

A essa altura, a narrativa patriarcal envereda por um caminho comple­tamente diferente. Até agora tudo tem girado em torno de uma atmosfera estritamente pessoal, com caráter muito mais biográfico do que qualquer outra coisa, o que resulta numa dificuldade quase intransponível quando tentamos associar essas narrativas ao contexto histórico internacional mais abrangente.41 Por outro lado, vemos em Gênesis 14 que Abrão se encon­trou com reis e líderes de algumas tribos da região, cujos nomes não ape­nas são mencionados, mas também seus territórios e alianças militares são descritos em detalhes. Praticamente todos os estudiosos admitem a natu­reza historiográfica da narrativa, embora reconheçam a grande dificulda­de existente em identificar os protagonistas e encaixá-los numa série de acontecimentos conhecidos nas fontes extrabíblicas.42

40 Zoan é identificada com Avaris ou (mais provavelmente) com a Tanis dos hicsos, situa­da a cerca de 32 quilômetros de Avaris. Alguns estudiosos identificam Zoan e Tanis com a Per-Ramesse. Ver Jacquetta Hawkes, The First Great Civilizations (New York: Knopf,1973), p. 315. Se Zoan é Avaris ou Tanis, em nada irá afetar a cronologia em questão, já que os sítios onde os hicsos viveram foram construídos por volta do mesmo período (ca. 1720). Ver William C. Hayes, "Egypt: From the Death of Ammenemes III to SeqenenreII," em CAH 2.1, pp. 57-58.

41 Não queremos com isso sugerir que as narrativas patriarcais, apenas por serem relatos biográficos, não devam ser consideradas históricas em seu gênero literário. Cada vez mais se tem reconhecido que o estilo literário em forma de biografia é uma forma extre­mamente positiva e produtiva de se contar uma história. Ver em Luke, "Abraham and the Iron Age," JSO T4 (1977): 37; Lawrence Stone, "The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History," Past and Present 85 (1979): 3-24; " 'Disilusioned' with Numbers and Counting, Historians Are Telling Stories Again," The Chronicle o f Higher Education,13 June 1984, pp. 5-6.

4: Da mesma forma, por exemplo, Ephraim A. Speiser, Genesis, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), pp. 108-9; Niels-Erik A. Andreason, "Genesis 14 in Its Near Eastern Context,", em Scrípture in Context, editado por Carl D. Evans et al. (Pittisburgh: Pickwick, 1980), pp. 60,62-65.

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O resultado dessa dificuldade tem produzido duas ações em si negati­vas: ou cria-se uma atitude de completo cepticismo acerca desse aconteci­mento, produzindo a teoria de que tudo não passou de fábula histórica ou, por outro lado, desenvolve-se o desejo de identificar cada um desses personagens com indivíduos bastante conhecidos do antigo Oriente M é­dio. Por exemplo, durante muito tempo o rei de Sinar, Anrafel, foi identi­ficado como o grande Hamurabi da Babilônia. Não há como negar que Sinear é uma palavra bíblica para descrever a Mesopotâmia (ver Gn 10.10;11.2), mas Hamurabi (1792-1750) viveu cerca de trezentos anos depois de Abrão, segundo a melhor cronologia. Além disso, Anrafel, de modo filológico, não pode ser equivalente a Hamurabi. Da mesma forma, todas as tentativas de associar Arioque rei de Elasar a Arriyuk ou Arrwuk de Mari, Quedorlaomer a Kudur-lagamar de Elão, ou Tidal a Tudhaliyas I de Hati, falharam em conseqüência das razões lingüísticas e cronológicas. É muito mais prudente dizer hoje que apesar do relato possuir cada marca de credibilidade histórica, não há como fazer a identificação desses reis do Oriente.43

Quanto aos líderes das cidades que faziam parte da planície, é possível um pouco mais de exatidão. Alguns estudiosos que tiveram acesso a algu­mas das tabuinhas de Ebla sugeriram que as cidades da planície e os no­mes dos reis que ali estão contidos se encaixam perfeitamente com aque­les outros descritos na narrativa bíblica.44 Até que esses textos sejam pu­blicados e assim tornem-se acessíveis para o público em geral, tais reivin­

43 Ver a discussão bastante elucidativa de Keneth A. Kitchen, Ancient Orient and Old Testament (London: Tyndale; Chicago: Inter-Varsity, 1966), pp. 43-44. Kitchen dá a en­tender que embora as pessoas listadas em Gênesis 14 não possam por enquanto ser ligadas a indivíduos em histórias extrabíblicas, os nomes são por outro lado muito fa­miliares no período do Bronze Médio. S.Yeivin vai até mais além: datando o período patriarcal como tendo existido do décimo oitavo ao décimo sexto séculos - trezentos anos mais tarde do que a nossa cronologia - ele identifica os reis com alguns governantes bem conhecidos ("The Patriarchs in the Land of Canaan," em World History ofthe Jewish People, vol. 2, pp. 215-17).

44 David Noel Freedman, "The Real Story of the Ebla Tablets," BA 41 (1978): 143-64. Giovanni Pettinato, que foi o primeiro a fazer tal afirmativa, tempos depois recuou de sua posição por motivos até agora inteiramente desconhecidos. Ver em seu Archives, p. 387, para se achar evidências pelo menos acerca das cidades de Sodoma e Gomorra nos textos de Ebla. Precisamos, porém, adotar uma posição bastante cautelosa a fim de não atribuirmos tanta importância aos achados em Ebla, e não darmos ao Antigo Testamen­to uma importância quase nula. Ver alguns avisos importantes em Robert Biggs, "The Ebla Tablets: An ínterim Perspective," BA 43 (1980): 82-83,85.

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dicações não poderão ser confirmadas. Mas não há absolutamente nada no relato bíblico que tenha sido reprovado pelas novas descobertas literá­rias, e nem existe qualquer incongruência com o ambiente histórico onde tais narrativas tiveram lugar. A invasão de Canaã por quatro (presumivel­mente) das maiores potências não deve nos conduzir necessariamente a idéia de que toda força militar foi usada por tais reis nessa campanha. E quase certo que tal campanha tivesse um caráter mais exploratório, cul­minando nos resultados inesperados que produziram a conquista de al­gumas cidades da planície (Gn 14.4).

Depois de doze anos, as cidades se rebelaram. Como conseqüência, os reis do Oriente voltaram e deram fim à rebelião, levando consigo os prisi­oneiros e despojos. Quando descobriu que seu sobrinho Ló estava conta­do entre os prisioneiros, Abrão e seus confederados Manre, Escol e Aner perseguiram os inimigos e os subjugaram em Hobá, situada ao norte de Damasco. Não é difícil de acreditar que, com apenas "318 homens treina­dos", Abrão tenha sido capaz de resgatar Ló e todos os seus bens, uma vez que os vizinhos amoritas também levaram suas tropas, o que no final deve ter somado milhares, sem falar que não há nenhum registro de que Quedorlaomer e seus aliados tenham vindo a Canaã com um considerá­vel contingente militar.

Abrão e sua cultura

As referências a Abrão como "o hebreu" (Gn 14.13) são de especial in­teresse, tanto porque é a primeira vez que as vemos em todo o Antigo Testamento, quanto porque tal palavra surge nos lábios de alguém não- israelita. Em raras ocasiões, o povo escolhido intitulou-se de hebreu, espe­cialmente nos dias antigos. A razão para isso, sem dúvida, está no fato de que embora a designação étnica hebreu deva achar sua origem em Eber, o ancestral de Abrão (Gn 10.21,25), um nome similar conhecido por 'apiru (ou habiru) levou os contemporâneos de Abrão e as gerações subseqüentes a confundirem os dois.45 Ou seja, apesar de os hebreus fazerem clara dis­tinção entre eles e os demais povos conhecidos por ‘apiru, outros não tive­ram o mesmo cuidado para entender ou reconhecer essa distinção, já que eles passaram a se referir pejorativamente a Abrão e seus descendentes

45 Uma discussão mais aprofundada acerca dos 'apiru e seu relacionamento com os israe­litas terá que esperar até que tratemos da questão da conquista de Canaã (pp. 100-8). Por enquanto, sugerimos pesquisar em Moshe Greenberg, The Hab/piru (New Haven: American Oriental Society, 1955); Michael B. Rowton, "Dimorphic Structure and the Problem of the 'Apiru-'Ibrim," Jnes 35 (1976): 17-20.

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como hebreus. Em contrapartida, essa atitude levou os hebreus a se utili­zarem de um outro termo com o qual se identificariam, que se tornaria comum pelo menos em tempos posteriores, ou seja, passariam a se cha­mar "israelitas".

Algumas atitudes características de Abrão e sua mulher em Gênesis 15 e 16 requerem um pouco mais de nossa atenção, em relação a alguns hábitos e leis do antigo Oriente Médio, especialmente algumas práticas hurianas que estão registradas nas tabuinhas de Nuzi. Esses documen­tos, que foram escavados e publicados há mais de cinqüenta anos, con­sistem primariamente de registros de importantes famílias hurianas que viveram por volta de 1500 a.C., tendo habitado em Nuzi (a moderna Yorghan Tepe), aproxim adam ente oitenta quilômetros a sudoeste de Assur, na Assíria.46 Os documentos se referem a assuntos tais como he­rança familiar e direitos de propriedade, escravidão, adoção e coisas se­melhantes. Já foi notado por estudiosos mais antigos que os documentos de Nuzi tratam acerca de assuntos sociais e familiares como reminiscên- cias das histórias patriarcais. Eles foram então utilizados para explicar alguns costumes bíblicos que até o momento não tinham praticamente nenhuma significação para nós.

Um dos problemas em que a evidência dos documentos de Nuzi foi aplicada diz respeito à objeção feita por Abrão, que considerava a promes­sa divina de uma inumerável multidão impossível, já que ele não possuía herdeiro algum, exceto Eliezer de Damasco, a quem ele descreveu como sendo "um servo nascido em minha casa" (Gn 15.3). O que está afirmado aqui é que Eliezer era um filho adotivo, algo também confirmado por Jeová, que assegurou não ser Eliezer o herdeiro de Abrão, mas "aquele que será gerado de ti, será o teu herdeiro" (v. 4).

As tabuinhas de Nuzi parecem se referir a essa mesma situação: um escravo poderia se tornar o herdeiro de um casal que não tivesse filhos caso fosse por eles adotado. Outro caso interessante refere-se à esterilida­de de Sara e às providências que ela mesma tomou para garantir sua des­cendência mesmo em face dessas circunstâncias (Gn 16.1-6). Ela simples­mente ofereceu sua escrava particular chamada Hagar para Abrão como uma espécie de mãe de aluguel, mas o filho dessa união, Ismael, seria considerado como o filho de Abrão e Sara. Esse costume também é encon­

46 Para informações que descrevem como foram as escavações e publicaçao dos textos, ver em Ephraim A. Speiser, New Kírkbuk Documents Relating to Family Laws, AASOR10 (1928- 1929): 1-73.

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trado nos documentos de Nuzi, que descrevem a mesma estratégia em situações semelhantes.47

Estudiosos mais modernos têm chamado a atenção para a facilidade com que o conteúdo de Nuzi tem sido usado para iluminar detalhes sobre os costum es da época p atriarca l, chegando m esm o a "p ro v a r" a historicidade desse período.48 Os patriarcas têm sido classificados pela cronologia bíblica tradicional anteriores aos textos de Nuzi em aproxima­damente quatrocentos ou quinhentos anos. Esse problema foi tão sério que levou estudiosos tais como Cyrus Gordon a regredir a era patriarcal para a Era do Bronze Superior (aprox. 1550-1200), de forma que os docu­mentos de Nuzi pudessem ser nela encaixados.49 Isso é a pior espécie de subjetivismo. Aposição mais racional é assumir que as tabuinhas de Nuzi refletem na realidade costumes que não tiveram início nesta época, mas que já vinham sendo praticados por séculos. De fato, muitos costumes semelhantes aos vistos nos documentos de Nuzi foram comprovados em muitos sítios arqueológicos, os mais antigos, e ainda continuam sendo de utilidade indispensável na compreensão do estilo de vida patriarcal.50 De qualquer forma, não existe nada nos dois incidentes mencionados que necessitem de uma data posterior ao que tem sido requerido pela perspec­tiva bíblica, nem devemos imaginar que esses incidentes aparecem como relatos isolados, sem qualquer analogia contemporânea.

A destruição de Sodoma e Gomorra

A história das cidades das planícies não termina com o final dramático do resgate efetuado por Abrão e seus companheiros. Algum tempo depois

47 Para esse e outros paralelos, ver em Cyrus H. Gordon, "Biblical Customs and the Nuzi Tablets," BA 3 (1940): 1-12; Speiser, Genesis, esp. pp. Xl-xliii; Samuel Greengus, "Sisterhood Adoption at Nuzi and the 'Wife-Sister' in Genesis," HUCA 46 (1975): 5-31.

48 Thomas L. Thompson, The Historicity o f the Patriarehal Narratives (Berlin: de Gruyter,1974); John Van Seters, Abraham in History and Tradition (New Haven: Yale University Press, 1975); Thomas L. Thompson, "The Background of the Patriarchs: A Reply to William Dever and Malcolm Clark,"JSOT 9 (1978): 2-43.

49 Cyrus H. Gordon, "Hebrew Origins in the Light of Recent Discovery,"em Biblical and Other Studies, editado por Alexander Altmann (Cambridge: Harvard University Press, 1963), pp. 5-6.

Ver em M.J. Selman, "Comparative Customs and the Patriarehal Age," em Essays on the Patriarehal Narratives, editado por A.R. Millard e D.J. Wiseman (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), pp. 91-139; Tikva Frymer-Kensky, "Patriarehal Family Relationships and Near Eastern Law,"BA 44 (1981): 209-14.

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desse incidente, o Senhor aparece a Abrão (agora Abraão - Gn 17.5)51 e lhe anuncia sua decisão de destruir as cidades por causa de sua renitente ini­qüidade. Embora Abraão tenha intercedido em seu favor, ele não tinha condições de reter a ira de Deus; com exceção de Ló e suas duas filhas, todas as cinco cidades e seus habitantes pereceriam. Em decorrência do juízo divino, algum tipo de erupção vulcânica ou explosão petrolífera lan­çou para os céus uma grande quantidade de material magmático que cho­veu em seguida sobre a terra.52

Visto que a narrativa está posta entre a promessa feita a Abraão e Sara de que eles teriam um filho dentro de um ano (Gn 18.14) e o nascimento de Isaque (Gn 21.2), um fato que ocorreu em 2066 a.C.,53 concluímos que o julgamento e destruição dessas cidades só pode ter ocorrido por volta de 2067 a.C. Já mencionamos anteriormente que as inscrições em Ebla com certeza mencionam pelo menos as cidades de Sodoma e Gomorra. Uma vez que tais documentos não podem ser mais antigos que 2500 a.C., não é difícil deduzir que estas cidades não puderam ser destruídas antes dessa data. Por outro lado, escavações arqueológicas recentes têm de­monstrado em Bab edh-Dhra' e noutros locais na península de el-Lisan e suas imediações, na extremidade a sudeste do mar Morto, a existência de restos de entulhos de antigos complexos urbanos aparentemente an­teriores a 2000 a.C.54

Não há como não ser tentado a acreditar que algum desses locais - ou todos eles - compõe as cidades bíblicas da planície, já que tanto sua loca­lização quanto as datas são compatíveis com o testemunho do Antigo Tes­tamento. Sabemos que não há como ser dogmático nessa matéria por falta de confirmação literária extrabíblica acerca dessas cidades; mesmo assim, fica claro que as histórias patriarcais ganham maior corroboração do que jamais tiveram anteriormente.55

51 Abrão = "pai exaltado" e Abraão = "pai de multidões". Para saber sobre a proveniência e significação teológicas desses nomes, ver em D. J. Wiseman, "Abraham Reassessed," em Essays on the Patriarehal Narratives, pp. 158-60.

52 Os escavadores da região atribuem a destruição dos sítios urbanos a um terremoto. Ver em Michael D. Coogan, "Numeira 1981," BASOR 255 (1984): 81.

53 Para uma linha de argumento que apoia essas datas, ver Eugene H. Merrill, "Fixed Dates in Patriarehal Chronology," Bíb Sac 137 (1980): 242-43.

54 Rast e Schaub, "Bab adh-Dhra' 1975," AASOR 43 (1978): 2; van Hatten, "Sodom and Gomorrah," BA 44 (1981): 89.

55 Albright, "Jordan Valley," AASOR 6 (1926): 62, chega mesmo a dizer que "É muito difí­cil separar o abandono de Bab ed-Dra' da destruição das Cidades da Planície."

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A braão e osfilisteu s

Pouco depois da destruição das cidades da planície, Abraão viajou para o sul e oeste de Manre até uma região entre Cades-Barnéia e Sur, em al­gum ponto bem ao norte da península do Sinai. Lá ele habitou por algum tempo com um homem chamado Abimeleque, rei de Gerar. Nesse local, Abraão disse à sua esposa que fingisse ser sua irmã, uma tática que ele já tinha empregado anteriormente no Egito. Esse subterfúgio tem levado al­guns estudiosos a acreditar que estamos diante de um relato duplicado do m esmo acontecim ento.56 Da mesma forma, a mentira de Isaque para Abimeleque acerca de sua mulher Rebeca, chamando-a de sua irmã, tem sido colocado como uma duplicata da história de Abraão com Abimeleque, ou talvez uma tríade com o relato de Abraão e Faraó.57 Mas, além dos três relatos divergirem em detalhes e terem em comum apenas a mentira a respeito da esposa, não existe razão por que Abraão não poderia repetir o mesmo recurso que havia funcionado razoavelmente bem antes, e sem dúvida Isaque deve ter aprendido esse truque com seu pai.58

De maior importância histórica e também maior dificuldade é a identi­ficação de Abimeleque como sendo um filisteu (Gn 21.32,34; ver 26.1). Geralmente, admite-se que essa identificação é anacrônica na melhor das hipóteses, já que os filisteus, como parte da migração feita pelos povos do mar, não entraram e possuíram a parte da costa inferior de Canaã até 1200 a.C. ou depois dessa data.59 Além disso, o nome Abimeleque é semítico e não filisteu.60

O segundo desses dois problemas será tratado em primeiro lugar. O nome A bim eleque significa "meu pai é o rei" e poderia, na verdade, ser mais um título do que necessariamente um nome próprio.61 O fato de que Isaque tratou com um rei filisteu do mesmo nome muitos anos depois poderia até dar suporte a tal proposta. Muitos anos depois, Josué derro­

56 John Skinner, A Criticai and Exegetical Commentary on Genesis (New York: Scribner, 1910) p. 315.

57 Ibid., pp. 364-65.58 Gleason L. Archer, Jr., A Survey ofO ld Testament Introduction (Chicago: Moody, 1964), pp.

120 - 2 1 .

59 Van Seters, Abraham, p. 52.Roland de Vaux, The Early History o f Israel, traduzido por David Smith (Philadelphia: Westminster, 1978), pp. 503-4.Kitchen, Ancient Orient, p. 81; idem, "The Philistines," em Peoples ofO ld Testament Times, editado por D.J. Wiseman, pp. 56-57; D.J. Wiseman, "Abraham in History and Tradition. II: Abraham the Prince," Bib Sac 134 (1977): 232-33.

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tou a Jabim, de Hazor, um rei cananeu; e muitos anos depois disso Débora e Baraque subjugaram um rei de Hazor também conhecido por Jabim. Embora aqui tenhamos um nome próprio, podemos ver que esses são exem­plos que nos mostram que diferentes reis ou governantes de um mesmo local podem ter nomes semelhantes.

Mais relevante talvez seja o uso de títulos como Faraó ou Czar, usados de maneira que se tornaram praticamente nomes próprios em vez de pu­ramente títulos. Sendo assim, não há como alguém determinar o caráter étnico do nome de Abimeleque, ou seja, se ele, mesmo sendo filisteu, pôde ter se utilizado de um título semítico ou se, por ter assimilado profunda­mente a cultura semítica, adotou para si um nome semítico.

O problema da presença de filisteus em Canaã quase um milênio antes da chegada dos povos do mar é mais complicado, embora não insolúvel. Uma série de textos oriundos de Mari, Ras Shamra e de outras partes, refere-se aos povos de Caftara, cujo local de origem pode ter sido a ilha de Creta ou um outro local em alguma região do mundo Egeu.62 E a Bíblia associa os primitivos filisteus aos caftorim, cujo lar era em Caftor ou Creta (Dt 2.23; Jr 47.4; Am 9.7; ver Gn 10.14). Os caftara ou caftorim eram clara­mente o mesmo povo, e suas extensas viagens, conforme está registrado em documentos extrabíblicos, poderiam bem explicar sua existência em Canaã durante a era do Bronze Médio.63

A chegada dos povos do mar tempos depois teria apenas aumentado o número dos filisteus presentes na região. Essa hipótese, além de dar base à historicidade dos encontros dos patriarcas com os primitivos filisteus, tam­bém explicaria a decisão de Israel quanto a não seguir o caminho do mar em direção reta do Egito para Canaã, "embora fosse mais curto" (Ex 13.17), pois isto significaria destruição certa por parte dos filisteus. Uma das mais fortes evidências em favor de uma data mais recente para o êxodo (aprox. 1250) e uma outra correspondente para a conquista da terra (após 1200) é justa­mente a referência aos filisteus. Porém, se os filisteus já estavam habitando na terra desde os tempos patriarcais, então deduz-se que a data tradicional para o êxodo (1446) pode muito bem ser mantida em vigor.

Seguindo a data de 2066 para o nascim ento de Isaque, Abraão e Abimeleque viram-se às voltas com problemas relativos aos pastos e di­

62 de Vaux, Early History, p. 504.63 Caso um texto assírio posterior, que trata sobre o império de Sargão de Acade, possa de

fato ser confiável, então as referências a Caftara podem mesmo estender-se para bem antes de seu tempo (ca. 2350 a.C.). Ver em Gadd, "Dynasti of Agade", em CAH 1.2, pp. 429-30.

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reitos à água potável; daí concluíram que deveriam entrar num acordo pelo qual passariam a respeitar os limites e poços. Um contrato de igual teor foi feito entre Isaque e um outro Abimeleque (Gn 26.26-33). Em ambas as situações, o local do tratado foi em Berseba, que deriva seu nome ("poço do juram ento") do pacto que ali outrora foi realizado.

As evidências arqueológicas nos dizem que Berseba não fora encontra­da até bem depois do período Médio Bronze, sendo bem provável que Abraão e sua família não tivessem ocupado a área de forma permanente, mas apenas como um local para peregrinação religiosa ou como uma es­pécie de acampamento para as migrações sazonais.64 De fato, não há nada nas narrativas bíblicas que explicitamente relacionem Berseba com um centro urbano até a época da conquista (Gn 21.14,31-33; 22.19; 26.23,33; 28.10; 46.1; cf. Js 15.28). Este local foi uma importante estalagem para os patriarcas, mas não era desenvolvido a ponto de produzir restos que pu­dessem ser arqueologicamente reconhecíveis.

A busca de uma esposa para Isaque

Sara morreu em Hebrom em 2029 a.C. (Gn 23.1,2; cf. 17.17). Dentro de um espaço de três anos após seu sepultamento numa capela adquirida de Efrom, o hitita, Abraão tomou providências para obter uma esposa para seu filho Isaque, que na ocasião já estava beirando os quarenta anos (ver Gn 25.20). Ansioso para que seu filho se casasse com alguém que fosse membro de seu clã, Abraão enviou seu servo de volta até Arã-Naharaim (alta Mesopotâmia - Gn 24.10), de onde o próprio Abraão tinha vindo em direção a C anaã.65 Seu irmão, Naor, já tinha muitos filhos, incluindo "Quemuel (o pai de Arã)" (Gn 22.21) e Betuel, o pai de Rebeca e Labão (Gn 22.23; 24.29). Portanto, o Antigo Testamento indica que tanto os arameus quanto os israelitas podem ser remontados genealogicamente a Terá, pai de Abraão.66 (Embora em Gn 10.22 Aram seja descrito como um filho de Sem, sabemos que isso é verdade apenas no sentido de ser descendente.)

O servo de Abraão viajou até a cidade de Naor (Gn 24.10). Esta prova­velmente é apenas uma forma de identificar a residência de Naor, irmão de Abraão, embora houvesse uma cidade chamada por aquele nome, con­forme nos indica as referências acadianas a Nahur(u). Visto que tais refe-

Yohanan Aharoni, "Excavations at Tel Beer-Sheba," BA 35 (1972): 111-27; "Excavations at Tel Beer-Sheba," Tel Avivi 2 (1975): 146-68.

■'.Terry J. Prewitt, "Kinship Structures and the Genesis Genealogies," JNES 40 (1981): 92. Para uma defesa dessa tradição, ver em Merril F. Unger, Israel and the Aramaeans of Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980 reprint), pp.8-10.

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rências fazem parte de uma época bem posterior à vida de Naor, deduz-se que tal cidade provavelm ente não foi aquela visitada pelo servo de Abraão.67 De qualquer maneira, Betuel e Labão concordaram que a moça Rebeca fosse entregue para Isaque, de forma que, após serem acertadas as obrigações costumeiras da época, ela voltou com o servo de Isaque para sua casa no Negueve cananeu.

Abraão casa-se novamente e, através de sua esposa Quetura, torna-se o ancestral dos clãs de Joscan, Midiã e Dedã (Gn 25.2-4; 1 Cr 1.32,33). Os midianitas participariam de forma especial na história subseqüente do povo de Israel. Da mesma forma que os demais povos, eles também assumiram um estilo de vida nômade e, por fim, alcançaram toda a vasta penínsTila sírio-árabe. Abraão morreu na idade de 175 anos (1991 a.C.), deixando seus dois principais filhos, Isaque e Ismael, como seus herdeiros. A des­cendência de Ismael se estabeleceu nos desertos a leste e ao sul de Edom e, seguindo os mesmos passos de Israel, desenvolveu-se numa federação de doze tribos. O relacionamento deles com os midianitas é incerto, embora os termos ismaelitas e midianitas pareçam por muitas vezes intercambiáveis (Gn 37.25,27-28,36).

Jacó: pai de muitas nações

A bênção e o exílio

Isaque, é claro, era o filho da aliança de Abraão, aquele através do qual Deus mediou as promessas redentoras concernentes à nação e à terra (Gn 12.1-3; 15; 17.1-14; 25.21-24). Embora Isaque tivesse quarenta anos quando se casou, seus filhos gêmeos nascidos de Rebeca somente vieram ao mundo vinte anos após seu enlace, em cumprimento da pro­messa (Gn 25.20,26). Abraão estava então com 160 anos, e dentro de quin­ze anos seus olhos já não mais poderiam contemplar a fidelidade de D eus.68 Esaú, o herdeiro aguardado da aliança, perdeu seu direito de primogenitura e os demais privilégios da aliança, e assim teve de se con­formar em tornar-se o pai das tribos edomitas. Embora Jacó tenha se

67 William F. Albright, From the Stone Age to Christianity (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1957), pp. 236-37. Nahur(u) não parece ser confirmado antes de 1750 a.C., ao passo que Naor, irmão de Abraão, teria se estabelecido em sua cidade por volta de 2100 ou algo semelhante. E claro que é possível que o nome da cidade por fim tenha refletido o de seu fundador.

68 Acerca de informações relativas a essas estimativas, ver Merrill, "Fixed Dates," Bib Sac 137 (1980): 243-44.

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utilizado da manipulação pessoal e do auxílio de sua mãe, ainda pôde experimentar em sua vida o favor do Senhor de se tornar o pai da nação escolhida.

O resultado das maquinações de Jacó foi o afastamento de seu irmão Esaú e a fuga para Padã-Arã69 (noroeste da Mesopotâmia), ambos para escapar de seu irmão e conseguir uma esposa dentre sua própria parente- la. Nessa ocasião, Jacó já estava com 76 anos de idade (cerca de 1930 a.C.), e tudo indicava que permaneceria sem descendentes.70 No caminho em direção à família de sua mãe, ele foi reanimado e encorajado pelo encon­tro com o Senhor em Betei, um local conhecido anteriormente como Luz, mas que agora ganhava um novo nome, pois Jacó considerou aquele local como a "casa de Deus". Foi lá que Deus renovou a aliança anteriormente feita com Abraão e Isaque (Gn 28.13-15).

Finalmente Jacó chegou à casa de Labão. Após muita discussão, ficou decidido que ele se casaria com Raquel, mas somente depois de servir a Labão, pai da moça, por um período de sete anos. Pode ser que esse tipo de serviço envolvesse aquilo que conhecemos ser comum nos contratos coligidos para criadores de gado da antiga Babilônia, através do qual es­ses criadores se tornavam empregados por um determinado espaço de tempo, com vistas a receber em troca uma parte dos lucros. Não seria difí­cil para um astuto criador de gado usar esse tipo de contrato para tomar proveito ao máximo das propriedades do seu senhor. Ao que tudo indica, foi essa a exata situação entre Labão e Jacó, pois na continuação da narra­tiva vemos que os filhos de Labão já olhavam Jacó como uma ameaça aos seus direitos como herdeiros.71 O fato de Raquel ter roubado os ídolos domésticos pode ser visto como uma amável e zelosa esposa tentando

69 O termo deriva do acadiano paddanu ("estrada") + Aram, ou seja, "a estrada de Aram". Visto que este local é identificado com o Arã-Naharaim ("Aram dos dois rios") em Gênesis 24.10 (cf. 28.2) e, mais tarde, com o Aram em 27.43 e 28.10, pode até ser que o nome signifique nada mais que Aram. E interessante observar que o termo acadiano harrãnu também significa "estrada". Ver em CAD,H, pp. 107-13.

70 Essa estimativa é deduzida dos fatos que tomam por base que o nascimento de José ocorreu 14 anos após a chegada de Jacó em Padã-Arã e que, quando Jacó desceu ao Egito, ele tinha cerca de 130 anos e seu filho José apenas 40.

71 O ponto de vista que propõe a teoria que o acordo feito entre Jacó e Labão é puro reflexo de práticas hurrianas de pseudo-adoções é corretamente rejeitada pela maioria dos es­tudiosos hoje em dia. Os paralelos percebidos com os contratos firmados com criadores de gado da antiga Babilônia já foram claramente demonstrados. Ver, por exemplo, Martha A. Morrison, "The Jacob and Laban Narrative in Light of Near Eastern Sources," BA 46 (1983): 156-60.

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3 6 H istória d e I sr a el no A ntig o Testamento

possuir, para si mesma e para seu marido, o direito legal à sua parte na propriedade de seu pai (Gn 31.19).72

Seja como for, o fato é que infelizmente Jacó descobriu que Labão era muito mais astuto do que ele. Após sete longos e penosos anos de traba­lho, ele recebeu como esposa a filha mais velha Léía, e não Raquel. Para que ele pudesse ter esta última como esposa, teria de se comprometer a trabalhar para Labão por mais sete anos. Ao final dos catorze anos, Labão insistiu com Jacó que este permanecesse por mais seis anos, perfazendo um total de 20 anos (aprox. 1930-1910 a.C.), pois era bem evidente que a presença de Jacó trazia benefícios econômicos para Labão.

No decorrer desses anos, Jacó teve onze filhos e pelo menos uma filha de suas duas mulheres e de suas duas concubinas. Esses filhos, juntamen­te com Benjamim, que nasceu em Canaã, foram os ancestrais das doze tribos de Israel. Segundo a maioria dos críticos (incrédulos) da tradição, a história de Jacó e seus filhos foi uma lenda que servia apenas para firmar uma origem comum e um conjunto de tradições para as doze tribos que perfaziam o contingente e a confederação daqueles que haviam conquis­tado a terra, conhecidos agora por Israel.73 Contudo, uma leitura respon­sável da narrativa não ocasiona problemas históricos insuperáveis. Há milagres descritos na história que nos mostram a intervenção do Senhor em favor de Jacó e suas esposas. A integridade do relato só poderá ser rejeitada mediante uma leitura da história com olhos positivistas. Ora, se Deus tem de estar ausente dessa história, então não há como ver sua mão em outra parte, e o Antigo Testamento se torna uma mera obra de ficção, não importando o quão piedoso seja o seu intento.

O nascimento de onze filhos em apenas sete anos já não mais é visto como um problema tão sério, como antes costumava se considerar. Os quatro primeiros, nascidos de Léia, podem ter vindo nos primeiros quatro anos (Gn 29.31-35). Nesse ínterim, Raquel, movida de intensa inveja para com sua irmã, instou veementemente com Jacó para que possuísse sua serva Bila, semelhante ao que Sara havia feito anteriormente com Abraão para obter o filho Ismael da escrava Hagar. Os dois primeiros filhos de Bila, Dã e Naftali, podem ter nascido também nos primeiros quatro anos (Gn 30.1-8).

Após o nascimento dos dois filhos de Bila, Léia, crendo que já não mais poderia ter filhos, insiste com Jacó para que possua sua serva Zilpa em

72 Ibid., pp. 161-62.73 Martin Noth, The History o f Israel, 2a edição (New York: Harper and Row, 1960), pp. 121-

27.

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seu lugar. Zilpa tem dois filhos no quinto e sexto ano (Gn 30.9-13). Léia mais uma vez engravida, provavelmente no quinto ano, e dá à luz dois filhos chamados Issacar e Zebulom, no sexto e sétimo ano (Gn 30.17-20). ■ Por fim, Raquel tem seu próprio filho, chamado José, no sétimo ano (Gn 30.22-24). Mesmo sendo todo esse cálculo hipotético, não é impossível que as coisas tenham acontecido assim, o que nos mostra inclusive como os problemas bíblicos podem ser resolvidos, desde que tenhamos a mente aberta para as soluções.

A volta para Canaã

Depois de vinte anos vivendo em Padã-Arã, Jacó voltou para Canaã. Durante o regresso, fez acordo de paz com seu sogro Labão (Gn 31.43-55) e com seu irmão Esaú (Gn 33.1-17); finalmente, chegou a Siquém. Muitos estudiosos concordam que Siquém foi fundada nessa mesma época (1910 a.C.),74 mas é duvidoso que esta cidade tenha ganho este nome ainda nos dias de Jacó. Sem dúvida, o seu nome foi dado em homenagem ao filho de Hamor (Gn 33.19), o maioral do clã que vivia naquela região, mas esse nome, com certeza, não poderia ter sido dado enquanto Siquém vivia. Além disso, é possível que a frase "E chegou Jacó salvo à cidade de Siquém..." (v. 18)75 deva ser entendida como "Jacó chegou a Salém, ou seja, à cidade de Siquém", significando que nos dias de Jacó a cidade chamava-se Salém, mas que em dias posteriores, em homenagem ao jovem personagem da história bíblica, teve seu nome mudado para Siquém.

Em Siquém Jacó comprou uma propriedade onde decidiu cavar um poço, estabelecendo-se ali por vários anos. A princípio, tudo ia muito bem entre Hamor e Jacó, mas um dia Siquém, filho de Hamor, agarrou Diná, filha de Jacó, e a violou. Levi e Simeão vingaram a humilhação de

74 Esta aparece nos textos de execração egípcios como Skmimi por volta de 1850 a.C. Ver em Walter Harrelson, "Sechem in Extra-biblical References", BA 20 (1957): 2. O historia­dor Dever argumenta que a ocupação de Siquém ocorreu no início do período do Bron­ze Médio II A, que data de 2000-1800. Uma data a meio caminho em 1900 se encaixa bem com a cronologia bíblica ("The Patriarehal Traditions," em Israelite and Judaean History, p. 99; cf. pág 84).

75 Isso também já foi sugerido pela Septuaginta, pelas versões siríacas, Eusébio e Jerônimo. Citado por Franz Delitzch, A New Commentary on Genesis (Minneapolis: Klock and Klock, 1978 reedição), vol. 2,p p. 215. O hebraico sálém no texto massorético pode ser um adje­tivo significando "seguro" (Francis Brown, S.R. Driver e Charles A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon ofthe Old Testament [Oxford: Clarendom, 1962], p. 1024), mas a forma natural de se traduzir essa idéia seria besalom.

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sua irmã, ferindo todos os homens da cidade, matando-os, inclusive o próprio Hamor e Siquém. Temendo a má repercussão do acontecimento entre os vizinhos cananeus, Jacó decidiu deixar a região e viajou em di­reção ao sul até Betei. Lá ele experimentou a presença de Jeová numa teofania e, por mais uma vez, ouviu as promessas de Jeová a respeito da terra e de sua descendência. Novamente Jacó chamou aquele lugar de Betei, a casa de Deus, pois ali ele tinha visto a presença de Deus de uma maneira grandiosa.

Enquanto Jacó e sua fam ília avançavam ainda mais para o sul, em direção a Efrata (ou Belém), Raquel morreu ao conceber seu segundo filho, Benjamim. Após erigir um memorial de pedras sobre sua sepul­tura, Jacó se deslocou até Hebrom, terra natal de seu pai. Isaque ainda era vivo, e m orreria quinze anos mais tarde, numa boa velhice de 180 anos. Durante um ou dois anos nesse lugar, Jacó ordenou a seus filhos que voltassem a Siquém em busca das pastagens sazonais para seus rebanhos. Procurando saber melhores inform ações acerca de seus fi­lhos, das pastagens e dos rebanhos, Jacó enviou José, seu filho predile­to, para obter essas inform ações. Não os achando em Siquém, José in­dagou dos habitantes locais o paradeiro de seus irmãos e descobriu que eles haviam partido em direção a Dotã, que ficava cerca de 24 qui­lôm etros a noroeste de Siquém. Vendo-o se aproximar, os irmãos de José, a princípio, cogitaram m atá-lo, mas depois decidiram vendê-lo a uma caravana de ism aelitas que estava a caminho do Egito. E assim José se viu como escravo no Egito ainda em sua tenra m ocidade - aos 17 anos (em 1899 a.C.).

O casam ento de judá

O quarto filho de Léia, chamado Judá, casou-se com uma cananéia que lhe deu três filhos. Essa união com pessoas que não pertenciam ao clã, especialmente com uma cananéia, era vista muito negativamente pelos patriarcas e considerada repreensível, pois vemos nos relatos que tanto Abraão quanto Isaque foram bem esforçados na tarefa de assegu­rar que seus filhos se casassem com mulheres da mesma parentela (Gn 24.3; 27.46). Vemos esse mesmo princípio quando Diná, mesmo tendo sido violada por Siquém, foi radicalmente proibida por Jacó e seus ir­mãos de se casar com ele (Gn 34.14). Havia uma tendência em andamen­to que conduziria os filhos de Jacó a uma assimilação da cultura e reli­gião cananéias, um processo que seria consideravelmente acelerado pela união matrimonial. Tudo isso deve ter alarmado o espírito de Jacó, parti­cularmente porque um pouco do estilo de vida cananeu já tinha se apo­

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derado de seu filho mais velho, Rúben, que violou um dos mais severos tabus patriarcais - o incesto - coabitando com Bila, a concubina de seu pai (Gn 35.22).76

Mas a preocupação de Jacó nem podia se comparar à de Jeová, que tinha chamado o patriarca e seus pais para serem um povo separado de todas as demais nações. Essa exclusividade de Israel agora estava sendo ameaçada pelas tendências sincretistas em voga, através do casamento de Judá. Fica claro, então, que José não foi enviado ao Egito por causa de alguma punição, mas primordialmente para ser o canal da bênção da pro­vidência divina, pois Jeová o estaria usando a fim de preparar o caminho para um período de incubação, no qual o povo de Israel iria crescer e ama­durecer no Egito, tornando-se então uma nação apropriada (Gn 50.19-21). Logo, a venda de José como escravo poderia ser vista como uma reação divina ao casamento de Judá.77

A descida ao Egito

A essa altura torna-se oportuno discutir um pouco acerca da cronolo­gia referente à venda de José como escravo, o casamento de Judá, e a des­cida de Jacó e sua família ao Egito, examinando os detalhes na ótica da história egípcia, cuja parte principal pode pelo menos ser reconstruída de forma razoavelmente correta. Baseando-nos na data de 1876 a.C. como o início da peregrinação no Egito, deduzimos que o nascimento de José ocor­reu em 1916 a.C.78 José foi vendido aos egípcios quando tinha 17 anos (Gn37.2), chegando ao Egito em 1899 a.C. Judá, o quarto filho de Léia, que não poderia ser muito mais velho que José, no máximo três anos (veja as pp. 36,37), não deve ter se casado muito antes de 1900, quando estaria com 19 anos. Caso esse casamento tenha de fato causado o ímpeto de Jeová em permitir que José fosse vendido ao Egito, como parece bem plausível, en­tão esse casamento pode ser datado por volta de 1901 ou 1900, ou seja, pouco depois de Jacó e sua família terem se mudado de Siquém para Hebrom.

Stanley Gevirtz diz que Rúben usurpou os direitos de concubinato do pai ("The Reprimand of Reuben", JNES 30 [1971]: 98). A atitude de Rúben foi típica do estilo de vida dos cananeus, e especialmente do estilo de vida dos supostos deuses da região. Ver em Charles R Pfeiffer, Ras Shamra and the Bible (Grand Rapids: Baker, 1962); pp. 31-32.

- Para outras razões sobre a localização desse capítulo 38 de Gênesis, ver Judah Goldin, 'The Youngest Son or Where Does Genesis 38 Belong?" JBL 96 (1977): 27-44.Para uma discussão mais detalhada sobre essas datas e o devido apoio a elas, veja em Merrill, "Fixed Dates", Bib Sac 137 (1980): 241-51.

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Em 1876, quando Jacó estava com 130 anos de idade (Gn 47.9), José já vivia no Egito há 23 anos. Ele havia trabalhado cerca de dez anos na casa de Potifar e depois, provavelmente por mais três anos, sofreu na prisão de Faraó, vítima de acusações forjadas acerca de um possível assédio à esposa de seu senhor (Gn 40.1,4; 41.1). Por fim, aos 30 anos (1886 a.C.), ele foi libertado e passou a servir como o Ministro da Agricultura de Faraó ou alguma coisa semelhante (Gn 41.46). Foi nessa época que os sete anos de fartura principiaram (1886-1879), seguidos por tristes sete anos de fome (1879-1872). A primeira visita dos filhos de Jacó ao Egito para comprar grãos pode ter ocorrido no segundo ano da fome (1878). A segunda visita deve ter acontecido em 1877 (Gn 43.1; 45.6,11). Partiu Jacó e toda a sua família para o Egito em 1876, bem na metade do período da fome (Gn 46.6). José estava então com 40 anos de idade, e seu irmão Judá, com 43.

Entre os que acompanharam Jacó ao Egito estavam Perez e Zerá, os filhos de Judá, frutos de sua união ilícita com a nora Tamar, e também seus netos Hezrom e Hamul (Gn 46.12). Os gêmeos Perez e Zerá nasce­ram somente depois que o terceiro filho de Judá, chamado Selá, já estava completamente crescido (Gn 38.14). Devido à tenra idade na qual os va­rões se casavam no antigo Israel, é totalmente possível que Judá tenha se casado aos dezoito anos, que seus dois primeiros filhos tenham nascido nos dois primeiros anos de seu casamento, e que Selá tenha vindo ao mundo dois ou três anos mais tarde. Isto fixaria o casamento de Judá em 1901, o nascimento de Er em 1900, e o de Onã em 1899. Talvez Selá tenha nascido não muito depois de 1896. Ao perceber que não poderia ter Selá como seu marido, Tamar se disfarçou de prostituta e engravidou, em uma data que não passa de 1880 (ou provavelmente mais tarde), e deu à luz Perez e Zerá nove meses depois. Mesmo espremendo as datas, ve­mos que é impossível que Perez pudesse ter levado consigo descenden­tes ao Egito em 1876, ou seja, dois ou três anos depois. Talvez a intenção da lista de Gênesis 46 seja simplesmente catalogar aqueles que entraram no Egito, inclusive aqueles como Hezron e Hamul que assim o fizeram p o ten c ia lm en te .79 A inclusão do nome dos filhos de José, M anassés e Efraim, na lista das 70 pessoas que entraram no Egito, mesmo tendo eles nascido nesse país, nos mostra que essa lista não deve ser encarada lite­ralmente ao extremo.

79 Delitzsch, Genesis, vol. 2, p. 340.

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A história de José

O cenário

A história de José tem sido interpretada como uma composição de sa­bedoria com pouca ou nenhuma base histórica.80 Entretanto, o Antigo Tes­tamento apresenta sua carreira e os eventos que cercaram sua vida como história genuína. Podemos notar, entre aqueles que aceitam a historicidade das narrativas acerca de José, a existência de uma divisão profunda a res­peito dos detalhes e do ambiente nela contidos. Alguns, baseados na teo­ria de uma peregrinação no Egito de no máximo 215 anos, insistem que José serviu na corte dos reis hicsos que estavam no poder no período de aproximadamente 1661 a 1570.81 Os proponentes desse ponto de vista apon­tam para o fato de que era muito mais provável que um rei hicso (em vez de um egípcio nativo) estabelecesse em seu governo um homem de ori­gem semita, como foi o caso de José. Contra tal possibilidade precisamos levar em conta o fato de que não há qualquer chance de se provar uma peregrinação de 215 anos (ver pp. 69-73). Além disso, toda a narrativa sugere que o rei seja um governante egípcio, e não um hicso.

Segundo a cronologia adotada nesta obra, José nasceu no ano 1916, entrou no Egito em 1899, subiu ao poder em 1886, e morreu em 1806 (Gn 50.22) na idade de 110 anos. Toda a duração de sua vida foi contemporâ­nea à magnífica e deslumbrante 12a Dinastia do Médio Império Egípcio, uma dinastia que teve seu início em 1991 e findou-se em 1786. Embora saibamos que seja muitíssimo difícil a reconstrução da cronologia desse período, é certo também que as datas citadas pelo Cambridge Ancient History não podem estar muito distantes. Seguindo esse sistema de datação, apren­demos que José foi vendido ao Egito já no final dos anos do reinado de Ammenemes II (1929-1895).82 Seu reinado foi conhecido como um gover­no pacífico, caracterizado pelo alto desenvolvimento da agricultura e da situação econômica do país, e pelo incremento das relações internacionais que o aproximaram do ocidente da Ásia. Nesse caso, José não seria mal recebido nessa corte, por causa de seus ancestrais étnicos. Ao que tudo

' Gerhard von Rad, "The Joseph Narrative and Ancient Wisdom", em The Problem o f the Hexateuch and Other Essays (Edinburgh: Oliver and Boyd; New York: McGraw-Hill, 1966), pp. 292-300.

'■ G. Ernest Wright, Biblical Archaeology, edição abreviada (Philadelphia: Westminster, 1960), pp. 35-37; Pierre Montet, Egypt and the Bible (Philadelphia: Fortress, 1968), pp. 7-15. Quanto à sua vida e época, ver em G. Posener, "The Middle Kingdom in Egypt," em CAH 1.2, pp. 502-4.

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indica, foi durante o reinado de Sesostris II (1897-1878) que ele ficou apri­sionado, cerca de dez anos após a sua chegada ao Egito (i.e., em 1889). Foram os sonhos de Sesostris que ele interpretou e sob quem ele serviu como um alto oficial do governo.

Tabela 3 XII Dinastia do Egito

Ammenem.es I 1991 - 1962Sesostris I 1971 - 1928Ammenemes II 1929 - 1895Sesostris II 1897-1878Sesostris III 1878 - 1843Ammenemes III 1842 - 1797Ammenemes IV 1798- 1790Sobkneferu 1789 - 1786

É bastante significativo que, durante o governo de Sesostris II, o nomarca de Beni Hasan tenha recebido Abisha com alegria em sua cidade, um líder tribal de origem semítica, um fato bastante comemorado e registrado nos murais de Beni Hasan. Sesostris também importou e empregou um gran­de número de escravos asiáticos e não pouco mercenários, uma política que nos mostra que não havia qualquer espécie de anti-semitismo ou sen­timento parecido.83 Mais marcante dentre todas as informações é que aque­la foi uma época de grandes projetos do governo para o assentamento de colonos e para controle das inundações. O detalhe principal de tudo isso foi a construção de um canal cavado para ligar a bacia de Fayyum ao rio Nilo, um canal cujas ruínas permanecem até hoje, e que foi chamado de Bahr Y u sef(“Rio de José").84 Será que a sobrevivência desse nome não sig­nifica um testemunho da contribuição que José deu ao rei Sesostris II nes­ses seus projetos públicos? O texto bíblico nos diz que os sete anos de fome preditos por José foram precedidos por sete anos de abundância nas colheitas. Obviamente esse período teve seu início imediatamente após a libertação de José da prisão, e continuou pelos sete anos seguintes (1886- 1879). Embora não possamos nos lançar em especulações devido à inexa­tidão da cronologia egípcia, fica quase impossível não notar que, segundo

83 Ibid., pp. 541-42. Posener ainda observa: "A história bíblica de José faz-nos lembrar o comércio escravagista" (p. 542). Ver também Posener, "Les Asiatiques en Egypte sous les xií et xiíí dynastíes,"Syria 34 (1975): 145-63.

84 Posener, "Middle Kingdom", em CAH 1.2, pp. 505, 510-11.

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4 3

o sistema adotado pelo Cam bridge Ancient H istory , o rei Sesostris II morreu exatamente no final dos anos preditos de abundância e que seu sucessor, Sesostris III (1878-1843) inaugurou seu reinado coincidentemente com o período descrito de fome.

Sesostris III, uma das maiores figuras do Médio Império, deve ter sido o rei que convidou Jacó e seus filhos a se estabelecerem no leste do Delta, que era visto como o jardim do Egito antigo. Dentre seus problemas mais antigos, temos as ameaças de rebelião feita pelos nomarcas locais, um fato que pode ser explicado, talvez, devido ao desespero da população por causa da fome, e à falta de confiança no governo central para providenciar uma solução. Esses tumultos foram todos reprimidos, e Sesostris, talvez com a ajuda de José, dividiu a terra em três partes ou "departamentos", cada qual dirigida por um oficial conhecido como "relator". Os relatores, por outro lado, estavam sob as ordens do vizir que, para todos os efeitos, era um primeiro ministro,85

Alguma coisa dessa política está refletida em Gênesis 47. Na época da fome, José vendia os grãos que tinham sido armazenados durante os anos de fartura. Muito tempo antes, ele já tinha acumulado todo o di­nheiro da terra nos cofres públicos (vv. 14,15). Ele aceitou o gado como pagamento pelos grãos, e quando não mais havia rebanhos para que o pagamento fosse efetuado, tomou então as terras e seus habitantes, com exceção das propriedades pertencentes aos sacerdotes (vv. 19-23). De­pois, passou a dar aos agricultores a semente necessária para o plantio e exigiu em troca 20 por cento da colheita para os cofres de Faraó, como forma de imposto, e o restante eles podiam guardar para si. Dessa for­ma, José possibilitou que o rei controlasse seu povo e suas terras de uma maneira jam ais vista antes. O resultado positivo dessa sábia administra­ção foi que também houve um crescimento da classe média, e foi preci­samente na época de Sesostris III que irrompeu um significativo cresci­mento de comerciantes e artesãos.

Entretanto, o rei Sesostris III não se ocupava exclusivamente com ne­gócios domésticos em seu governo. Na verdade, ele fortaleceu o domínio do Egito sobre a Núbia, ao sul, e também empreendeu pelo menos uma campanha à Palestina, onde ele diz ter chegado a Sekmem (provavelmen­te Siquém). Mais importante de tudo, os textos de execração que foram produzidos nessa época mostram interesse e compreensão incomuns da

Ibid., pp. 505-6; para uma indicação adicional de que Sesostris III é o faraó em vista, ver em James R. Battenfield, "A Consideration of the Identity of the Pharaoh of Genesis 47," JETS 15 (1972): 77-85.

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4 4 H istória d e I sr a el no A ntig o T estamento

Palestina e da Síria. Entre os nomes contidos nos textos estão numerosas cidades e vilarejos mencionados, inclusive no Antigo Testamento.86

José faleceu no ano 1806, bem próximo ao final do reinado do último grande rei da 12a Dinastia, Ammenemes III (1842-1797).87 Nada se conhe­ce acerca de José nesse período, mas Ammenemes estava totalmente en­volvido na exploração das minas de turquesa no Sinai, no contínuo assen­tam ento na região do Fayyum , e em alguns am biciosos p ro jetos arquitetônicos. Ele gozava de vastíssima influência, mas, com sua morte, o poderio do Médio Império entraria em seus últimos dias.

A atm osfera cultural

Está bastante evidente que o fundo histórico e cronológico da vida de José encontra-se totalmente enquadrado no período do Médio Império egípcio. O que falta ainda ser demonstrado é que o arcabouço cultural visto em Gênesis 37-50 se adapta melhor a um governo de origem egípcia do que com uma dominação de reis hicsos.88 Caso tal afirmativa possa ser comprovada, todos os argumentos em favor de uma peregrinação de ape­nas 215 anos perderão praticamente toda sua força.

Qualquer um perceberá logo de início que todos os nomes próprios descritos em Gênesis são de origem egípcia, e não de hicsos.89 Precisamos, é claro, reconhecer que, embora poucas inscrições do período hicso te­nham sobrevivido, está comprovado nesses registros um número consi­derável de nomes próprios. Baseados nos dados obtidos através desses nomes próprios, alguns estudiosos, tais como John Van Seters, identifi­cam os hicsos como semitas, especificamente os amoritas.90 Manetho su­geriu que o termo hicso em si significa "reis pastores", porém estudos mais recentes indicam que seu significado quer dizer "dominadores de terras estrangeiras" ou algo parecido.91 De qualquer forma, os hicsos certamen­te não eram egípcios, e suas tradições, costumes e estilo de vida eram tão diferentes dos egípcios quanto o eram seus nomes.

86 Ver em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 328-29.87 Posener, "Middle Kingdom", em CAH 1.2, pp. 509-12.88 Os hicsos eram um povo de origem semítica que penetraram no Egito à nível do Delta

por volta do século dezoito, e que eventualmente obtiveram o controle político da mai­or parte do Baixo Egito por 150 anos. (1720-1570). Ver em Donald B. Redford, "The Hycsos Invasion in History and Tradition,", Or, n.s. 39 (1970): 1-51.

89 Montet, Egypt, pp. 14-15.* John Van Seters, The Hycsos (New Haven: Yale University Press, 1966), pp. 194-95.91 Ibid., p. 187.

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O rig ens 4 5

O primeiro nome estrangeiro que aparece dentro das narrativas da vida de José é o de Potifar, supervisor da guarda de elite de Faraó e senhor de José. Além de ser descrito especificamente em Gn 39.1 como um egípcio, seu nome também é totalmente egípcio (P'-dy-p'R', "aquele a quem Rá deu").92 O próprio José casou-se com Asenate, filha de Potífera, o sacerdo­te do deus On (ou Heliópolis). O nome dela significa "que pertence a Neith" (uma deusa egípcia), enquanto o nome de seu pai era apenas uma varian­te de Potifar. O nome de José foi mudado logo após seu casamento para Zafenate-Panéia, o que possivelmente significava "o que fornece o alimento da vida". Ora, podemos até admitir que José tenha servido a um nobre egípcio mesmo durante os anos de dominação dos hicsos, mas é simples­mente inadmissível que seu nome semítico tenha sido alterado para um outro de origem semítica, ainda que debaixo da dominação estrangeira dos hicsos. Não obstante, é difícil entender como ele teria se casado com a f i lh a d e u m s a c e r d o t e e g íp c i o q u e s e r v ia n u m c e n t r o r e l ig io s o e m Heliópolis, bem ao sul do centro de controle político dos hicsos no Egito.

Vários costumes e preconceitos confirmam um fundo histórico egíp­cio. Quando José, pela primeira vez, compareceu perante o rei Sesostris II, logo após sua libertação da prisão, ele se barbeou para que o rei não se sentisse ofendido. Foi exatamente isso que um exilado egípcio chamado Sinuhe fez quando retornou ao Egito após ter vivido por anos entre os semitas da Síria.93 José teria cometido um grande insulto a um rei hicso, cujo costume era usar barba, caso tivesse comparecido diante dele com o rosto liso. Quando os irmãos de José vieram a ele a procura de grãos, não sabendo ainda qual era sua verdadeira identidade, ele os separou no ho­rário do jantar porque os "egípcios não podiam comer com os hebreus" (Gn 43.32). Caso José tivesse se apresentando como um oficial de origem semítica a serviço do rei hicso, seria muito estranho o fato de ele mesmo afastar-se de elementos da mesma raça. O fato de ele estar agindo segun­do uma tradição já existente por muitos anos prova que a história nada tem a ver com os hicsos.

Outro detalhe que confirma ainda mais os preconceitos egípcios da narrativa é a declaração feita por José, que dizia serem os pastores uma abominação para os egípcios (Gn 46.34). Ora, uma coisa que os hicsos não

Para uma boa e produtiva discussão sobre esses nomes, ver em Montet, Egypt, pp. 14-15.Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 18-22. De acoído com Alan Gardner, Egypt o f the Pharaohs (London: Oxford University Press, 1961), p. 130, este conto deve ser enqua­drado durante os dias do rei Sesostris I (1971-1928).

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poderiam deixar de ser era pastores. Eles nunca desprezariam os hebreus pelo fato de serem estes também pastores como eles o eram. E, finalmente, o embalsamamento e a lamentação pela morte de Jacó se adapta melhor às práticas egípcias (Gn 50.2,3).94 Embora os rituais funerários dos hicsos não estejam ainda bem compreendidos hoje, é certo que diferiam radicalmen­te dos que eram feitos pelos egípcios - os únicos dentre todas as nações do mundo antigo que possuíam os procedimentos funerários semelhantes aos descritos em Gênesis.

Por último, temos a questão da língua. Em sua primeira viagem ao Egito, os irmãos de José, acreditando que ele era um egípcio, começaram a falar uns com os outros em hebraico (Gn 42.23). Q uerendo não decepcioná-los em sua apreensão, José fez sua parte e conversou com eles exclusivamente no idioma egípcio. Com certeza, se eles tivessem suposto por um momento que José fosse um hicso, não teriam conversa­do em hebraico, na tentativa de evitar que José os entendesse, uma vez que, independente do estoque étnico de onde os povos hicsos derivaram sua língua, eles com certeza falavam os dialetos semíticos e iriam acabar entendendo o hebraico.

Concluindo, é completamente evidente que José viveu no Egito e que serviu como um alto oficial da administração desse país durante os anos de dominação egípcia, e não na época dos hicsos. Esses dados evitam uma peregrinação de 215 anos de duração, e firmam a data do êxodo no tradi­cional ano de 1446, embora uma data mais recente para esse acontecimen­to (1260), associada com a peregrinação de 215 anos, nos permitiria locali­zar José num período pós-hicso da dinastia egípcia.

De José ao êxodo

A dominação dos hicsos no Egito ocorreu entre a morte de José e o nascimento de Moisés, um período em que o Antigo Testamento se mos­tra completamente silencioso. E bem razoável admitir que o relacionamento existente entre os hicsos e os hebreus tenha sido o mais amigável possível, uma dedução que tem ganhado apoio cada vez maior, caso os inimigos descritos em Êxodo 1.10 tenham sido os hicsos. De outra forma, tudo o que é necessário observar é que os hicsos mantiveram efetivo controle do Baixo Egito (o Delta) por cerca de 150 anos (1720-1570). Eles tomaram e reconstruíram a cidade de Avaris por volta de 1720, o que está confirmado

94 John Ruffle, The Egyptians (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1977), pp. 197-210;Van Seters, Hycsos, pp. 45-48.

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4 7

na esteia que foi encontrada por August Mariette em 1863 e conhecida por "esteia dos quatrocentos anos".95 Esse monumento foi construído em 1320 a.C. por Seti, vizir do rei egípcio Horemheb, para marcar o quadrigentésimo aniversário da (re)construção da cidade, um fato cuja autenticidade não tem porquê de ser questionado. A dominação dos hicsos teve início du­rante a 13a Dinastia egípcia que, devido à pressão exercida por esses inva­sores, retirou-se para o sul e se estabeleceu em Mênfis. Quando por fim essa cidade caiu sob o poder dos hicsos, a dinastia moveu-se ainda mais para o sul, e finalmente chegou ao fim por volta de 1633.96

Enquanto isso, a 14a Dinastia egípcia permaneceu no controle da re­gião oeste do Delta até cerca de 1603. Centralizados em seu Sais (Xois), essa linhagem de reis resistiu aos hicsos quase até o fim. As dinastias 15a e 16a foram representadas por reis hicsos; seu início ocorreu com a toma­da de Mênfis (1674) e continuou até sua expulsão do Egito em 1567.97 Mesmo sendo culturalmente inferiores, os hicsos aprenderam e adota­ram as artes egípcias e sua ciência.98 Eles também identificaram suas di­vindades com as dos egípcios, igualando-as especialmente com Baal, Resheph ou Teshub.99 Um aspecto ainda mais positivo dessa dominação estrangeira foi a introdução e a popularização no Egito dos cavalos, car­roças e carruagens,100 bem como do arco feito por diversos m ateriais.101 Alguns dos mais proeminentes reis hicsos da 15a Dinastia foram Salitis (Sharek); Khyan, que se auto-intitulava "filho de R e" (Ram eses?); e Apophis I, cuja filha casou-se com um príncipe de Tebas que também se intitulava "filho de R e".102 Foi ele o primeiro a sofrer a maior resistência por parte dos egípcios de Tebas, e que por fim foi expulso do Alto Egito de volta para o Delta. Esse avivamento egípcio aconteceu durante a lide­rança de Seqenenre II da 17a Dinastia (1650-1567), cujo filho Kamose deu início à expulsão dos odiados hicsos não apenas do Alto Egito, mas tam­bém do próprio Delta.

Ver p. 36, n. 40.Hayes, "From the Death of Ammenemes III," em CAH 2.1, pp. 44-54.Ibid., pp. 54-64.Ronald J. Williams, "The Egyptians", em Peoples ofO ld Testament Times, editado por D.J.Wiseman, p. 87.

~9 Van Seters, Hycsos, pp. 171-80.::-"'Jack Finegan, Archaeological History o f the Ancient M iidle East (Boulder, Col.: Westview,

1979), pp. 254-55.Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, p. 243.

: A semelhança do elemento Re (ou Ra) na formação dos nomes dos reis hicsos é de espe­cial significação para uma data mais anterior para o êxodo. Ver p. 70.

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4 8 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t ig o T e s ta m e n to

Em seu terceiro ano (1575), Kamose lançou-se num ataque contra Apophis, rei dos hicsos, mas morreu antes mesmo de terminar sua mis­são. Seu objetivo foi alcançado por seu irmão Amosis (1570-1546), funda­dor da 18a Dinastia (1567-1320), que, através de seu general Ahmose, re­conquistou a cidade de Mênfis e, logo em seguida, Avaris. Ahmose não se contentou apenas em expulsar os hicsos para fora do Egito, mas os perse­guiu até Sharuhen (aprox. 1563), e assim se assegurou de que eles nunca mais voltariam a trazer problemas para o Egito.103

As dinastias 18a e 19a (1567 - aprox. 1200) perfazem o substancial da terceira e última parte da grande civilização egípcia que existiu no antigo Oriente Médio, o chamado Novo Império (1 5 6 7 - aprox. 1100). Visto que o êxodo, a conquista, e muito do que temos acerca dos juizes se enquadra nesse período, torna-se vital que seja feita uma boa descrição de seu curso, especialmente naquilo que toca a narrativa do Antigo Testamento.

iiBpara um estudo acerca de todo esse período, ver em T. G. H. James, "Egypt: From the Expulsion of the Hycsos to Amenophis I," em CAH 2.1, pp. 289-96.

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0 E X 0 D 0: N A S C I M E N T O S É D £ U M A N A Ç Ã O

O significado do êxodo A localização histórica do êxodo

O novo reino egípcio O Faraó do êxodo As dez pragas A rota do êxodo

A data do êxodoEvidência bíblica internaAs evidências a fa v o r de uma data recente

Ausência de acampamentos sedentários na Transjordânia Os israelitas e a construção da cidade de Ramsés Evidências da conquista ocorrida no século XIII

A data e a duração do cativeiro egípcio O problemaA revelação dada a Abraão Evidências a favor de um longo cativeiro no Egito Evidências a favor de uma curta peregrinação no Egito

Cronologia dos patriarcas A jornada no deserto

Do mar de Juncos até o Sinai A aliança do Sinai Do Sinai até Cades-Barnéia De Cades-Barnéia às planícies de M oabe

O encontro com Edom O encontro com os amoritas O encontro com Moabe

O significado do êxodo

O êxodo é o evento teológico e histórico mais expressivo do Antigo Testamento, porque mostra a magnificente ação de Deus em favor de seu povo, uma ação que os conduziu da escravidão à liberdade, da fragmen­tação à unidade, de um povo com uma promessa - os hebreus - à uma nação estabelecida - Israel. No livro de Gênesis encontram-se a introdu­ção e o propósito, seguindo-se então todas as revelações subseqüentes do .Antigo Testamento. Um registro que é ao mesmo tempo um comentário inspirado e uma exposição detalhada. Em última análise, o êxodo serve

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como um tipo do êxodo promovido por Jesus Cristo, de forma que ele se torna um evento significativo tanto para a Igreja quanto para Israel.1

A localização histórica do êxodo

O novo reino egípcio

Segundo 1 Reis 6.1, o êxodo aconteceu cerca de 480 anos antes da fun­dação do templo de Salomão. De fato, Salomão deu início à construção em seu quarto ano, ou seja, em 966 a.C., de forma que, de acordo com uma hermenêutica normal e uma aproximação séria dos dados cronológicos bíblicos, o êxodo ocorreu em 1446 a.C. Antes de apresentarmos argumen­tos detalhados em favor de tal data, vamos por enquanto nos deter na décima oitava dinastia do Egito que, de acordo com a data tradicional, forma o quadro da época em que o êxodo aconteceu.

Como apontado no capítulo 1, a décima oitava dinastia foi fundada por Amósis, o responsável pela expulsão dos hicsos. E bem provável ter sido ele o que está descrito em Êxodo como o novo rei que não conhecia

Tabela 4 18a e 19a Dinastia do Egito

18a DinastiaAmósisAmenotepe ITutmose ITutmose IIHatchepsuteTutmose IIIAmenotepe IITutmose IVAmenotepe IIIAmenotepe IV (Akhenaten)SemencaTutankamonAiHorembeb

1570-15461546-15261526-15121512-15041503-14831504-1450 1450-1425 1425-1417 1417-1379 1379-1362 1364-1361 1361-1352 1352-1348 1348-1320

19a DinastiaRamsés I Setos I

1320-13181318-13041304-12361236-1223

Ramsés II Merneptá

1 Ver, e.g., Claus Westermann, Elements o f Old Testament Theology (Atlanta: John Knox, 1982), pp. 217 a 218; Elmer Martens, God's Design (Grand Rapids: Baker, 1981), p. 256.

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j : ■ j Dü : N ascim ento d e uma N ação 51

José (Êx 1.8).2 Isto não sugere que ele não tenha conhecido José pessoal­mente, mas apenas que sua benevolência não mais se estendia aos descen­dentes de José - os hebreus. Ele havia, afinal, expulsado os hicsos, um povo bastante aparentado aos hebreus, e pode ter ficado receoso de que a rápida multiplicação destes pudesse se constituir numa séria ameaça ao seu recente governo e autoridade.

Ele ou seu sucessor, Amenotepe I (1546 - 1526), foi o responsável pela política repressiva que se seguiu naqueles dias. Isto incluía a redução dos hebreus à escravidão com trabalhos forçados em projetos de construções públicas (Êx 1.11-14),3 um plano que foi igualmente implementado por Amósis. Quando tal projeto fracassou, seguiu-se um decreto promulgan­do o genocídio de todos os machos hebreus que nascessem (Êx 1.15,16). Esse decreto pode ter sido emitido por Amenotepe ou, o que é mais prová­vel, por Tutmose I, de acordo com a reconstrução histórica promovida neste trabalho.

Admitindo a data de 1446 a.C. para o êxodo, podemos determ inar a data do nascim ento de M oisés, um fato de elevada im portância nesta conjuntura. O Antigo Testamento informa que M oisés tinha a idade de 80 anos pouco antes do êxodo (Êx 7.7), e 120 anos na sua morte (Dt 34.7).4 Visto que sua morte ocorreu bem no fim do período do deserto, podemos datá-la em 1406. Um simples cálculo então fornece o ano 1526

- William F. Albright, "From the Patriarchs to Moses: II Moses Out of Egypt", BA 36 (1973): 54.- Embora Kenneth A. Kitchen aceite a data mais recente para o êxodo, ele cita evidência

abundante sobre trabalhos forçados como escravos, incluindo semitas, na manufatura de tijolos no período da 18° Dinastia. Veja seu livro: "From the Brickfields of Egypt", Tyn Buli 27 (1976): 139-140.

4 A divisão da vida de Moisés em períodos de 40 anos - com 40 anos matou um egípcio, aos 80 retornou do exílio entre os midianitas, e aos 120 morreu - sugere para alguns estudiosos uma certa artificialidade. Argumenta-se que 40 anos é a representação de uma geração ideal, de forma que Moisés deve ter tido uma vida três vezes mais longa que uma geração normal. Veja, por exemplo, a obra de J. Alberto Soggin, A History o f Anciente Israel (Filadélfia: Westminster, 1984), p. 383. Essa mesma idéia também se apli­caria aos reinados de 40 anos de Saul, Davi e Salomão; aos 40 (ou ocasionalmente 20) anos de governo e períodos de descanso na época dos juizes; e a muitas outras utiliza­ções deste número. É possível que esses períodos devam ser tomados em sentido literal, e que não reflitam qualquer artificialidade ou coincidências, mas sejam uma deliberada organização da história de acordo com o padrão estabelecido pelo próprio Deus. O nú­mero 40, em outras palavras, também pode ter um significado teológico e tipológico em si mesmo, e o próprio Deus pode ter distribuído os acontecimentos dessa forma. Ver Tohn J. Davis, Biblical Numerology (Grand Rapids: Baker, 1968), pp. 52-54. Davi, porém, vê apenas o número sete com valor simbólico (p. 124).

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52 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e st a m e n t o

para o seu nascimento. Por conseguinte, M oisés nasceu no mesmo ano da morte do faraó Am enotepe. E preciso enfatizar que não se pode es­perar uma absoluta precisão, mas nossas datas para a cronologia do Novo Reinado, assim como todas as datas que usam os, são as mesmas utilizadas pelo C am bridge A ncien t H istory , uma publicação lançada por estudiosos im parciais, reconhecidos academ icamente como autorida­des da mais alta confiabilidade.5 Quaisquer ajustes nas datas que au­mentem ou diminuam alguns anos em nada afetarão as conclusões aqui propostas.

Amenotepe foi sucedido por Tutmose I (1526-1512), um plebeu que ti­nha se casado com a irmã do rei. Provavelmente foi ele o autor do decreto que ordenou o infanticídio, pois enquanto Moisés estava em iminente pe­rigo de morrer, Arão, que havia nascido três anos antes (Êx 7.7), parece ter estado isento. Não seria difícil admitir que o faraó que promulgou essa política deve ter subido ao trono após o nascimento de Arão e antes do nascimento de Moisés. Nesse caso, a evidência bíblica aponta diretamente para Tutmose I.

Tutmose II (1512-1504) casou-se com Hatchepsute, sua meia-irmã mais velha. Ele morreu jovem sob circunstâncias bastante misteriosas. Sentin­do que se aproximava da morte, ordenou a nomeação de Tutmose III (1504- 1550) como seu co-regente e herdeiro. Esse governante que, sem dúvida, foi o mais ilustre e poderoso dentre os que viveram no Novo Reino, distin- guiu-se de várias maneiras. Seus primeiros anos não foram muito promis­sores - era filho de uma concubina e tinha se casado com sua meia-irmã, filha de Hatchepsute e Tutmose II - mas por fim veio a obter notáveis vitórias nas terras ao seu redor, que incluíram nada menos que 16 campa­nhas à Palestina. Porém, os primeiros 20 anos de seu reino foram domina­dos por sua poderosa madrasta, Hatchepsute. Embora proibida pela cul­tura de se tornar faraó, ela de fato agia como tal e, em todos os critérios, pode ser considerada a pessoa de maior fascínio e influência da história

5 Com respeito às datas para o rei Amenotepe (Amenophis)I, ver T.G.H. James, "Egypt: From the Expulsion of the Hyksos to Amenophis I", no Cambridge Ancient History, 3. ed. por I.E.S. Edwards e associados (Cambridge: Cambridge University Press, 1973), v. 2, parte 1, p. 308. Acerca de Tutmose (Tuthmosis)I, Tutmose II, Hatchepsute, Tutmose III e Amenotepe II, ver William C. Hayes, "Egypt: Internai Affairs from Thutmosis I to the Death of Amenophis III", em CAH 2.1, pp. 315-21. Para datas alternativas da 18a Dinas­tia (cerca de 1533-1303) ver William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near East (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971), pp. 330-301. As datas do CAH (1546- 1319) foram adotadas por George Steindorff e Keith C. Seele em When Egypt Ruled the East (Chicago University Press, 1957), pp. 274-275.

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5 4 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a m e n t o

egípcia.6 Sem dúvida, nos primeiros anos de Tutmose III, foi Hatchepsute quem ditou as resoluções, um relacionamento que decerto ele detestava, mas encontrava-se impotente para se opor. Somente após a morte da ma­drasta, Tutmose III demonstrou toda repugnância que sentia por ela, man­dando extinguir toda e quaisquer inscrições ou monumentos em sua ho­menagem.

O quadro geral de Hatchepsute leva-nos a identificá-la como a ousada filha do Faraó que resgatou Moisés. Somente ela dentre todas as demais mulheres de sua época seria capaz de ir contra uma ordem do Faraó, bem diante dele. Embora a data de seu nascimento seja desconhecida, ela pro­vavelmente era vários anos mais velha do que seu marido, Tutmose II, que morrera em 1504, bem próximo de seus 30 anos.7 Ela devia estar no início de sua adolescência, por volta de 1526, data do nascimento de Moisés e, portanto, com condições de agir em favor de sua libertação.

Tutmose III era menor de idade quando assumiu o poder em 1504 e m ais novo que M oisés.8 Se, de fato, M oisés foi filho de criação de Hatchepsute, há probabilidade de haver ele sido uma forte ameaça ao jovem Tutmose III, visto que Hatchepsute não tinha filhos naturais. Isso significa que Moisés era um candidato a ser faraó, tendo apenas como obstáculo sua origem semítica. Parece-nos que houve uma real animosi­dade entre Moisés e o faraó. Isto fica claro em virtude de Moisés, após matar um egípcio, ter sido forçado a fugir para salvar a vida. O fato de ter o próprio faraó considerado a questão - que, em outra situação, seria pouco relevante - sugere que este faraó especificamente tinha interesses pessoais em se livrar de Moisés. O exílio auto-imposto por Moisés ocor­reu em 1486, quando ele tinha 40 anos de idade (At 7.23). Tutmose III já estava no poder havia 18 anos; e a idosa Hatchepsute, que faleceria três anos mais tarde, não tinha mais condições de interditar a vontade de seu enteado/sobrinho.9

Durante longos quarenta anos, Moisés permaneceu fugitivo do Egito, tendo se abrigado entre os midianitàs do Sinai e da Arábia. Uma das ra-

6 Uma visão fascinante e um pouco imaginativa acerca de sua vida e reinado pode servista na obra de Evelyn Wells, Hatshepsut (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1969).

7 Steidorff e Seele, When Egypt Ruled the East, pp. 39-40.8 Tutmose III foi designado vice-regente na última parte do reinado de Tutmose II, provavel­

mente não menos que em 1508. Ver Hayes, "Internai Affairs," do CAH 2.1, pp. 316-317.9 Tutmose III sucedeu Hatchepsute em 1483. Para tentar apagar a memória dela dentre os

egípcios, ele não apenas mandou destruir todos os monumentos construídos em sua homenagem, como também matou em público todos os oficiais que a serviram. Ver Hayes, "Internai Affairs," no CAH 2.1, p. 319.

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zões para tão longo exílio foi justamente o fato de continuar a viver e rei­nar o Faraó de quem Moisés havia escapado. Somente após sua morte, Moisés sentiu-se livre para retornar ao Egito (Êx 2.23; 4.19). Tutmose I I I ' morreu em 1450 e foi sucedido por seu filho Amenotepe II (1450-1425). Segundo os padrões cronológicos aceitáveis nesta discussão, era este Amenotepe quem reinava na ocasião do êxodo.

Antes de deixarmos Tutmose III, é essencial notarmos que o relato bíbli­co requer um reinado de quase 40 anos para o Faraó que perseguiu a vida de Moisés, porquanto o rei que morreu no fim dos anos do exílio de Moisés em Midiã era claramente o mesmo que o havia ameaçado quase 40 anos antes. Dentre todos os reis da 18a Dinastia, somente Tutmose III teve um reino tão longo. De fato, ele é o único governante que, em todo período durante o qual o êxodo poderia ter ocorrido, reinou tanto tempo - com ex­ceção de Ramsés II (1304-1236). Mas Ramsés, o faraó preferido pela maioria dos estudiosos, é geralmente associado ao faraó do êxodo, não ao faraó cuja morte possibilitou o retorno de Moisés ao Egito. Caso a morte de Ramsés houvesse trazido Moisés de volta ao Egito, o êxodo deveria ter ocorrido após 1236, uma data muito tarde para ser satisfatória.10

O Faraó do êxodo

Quando finalmente Moisés retornou ao Egito, ele e seu irmão Arão co­meçaram a negociar com o novo rei, Amenotepe II, a respeito de uma per­missão para Israel deixar o Egito com o propósito de adorar a Jeová e, enfim, deixar o país definitivamente. Este poderoso rei conduziu uma cam­panha em Canaã em seu terceiro ano (aprox. 1450) e uma outra em seu sétimo ano, provavelmente em 1446,11 coincidindo com a tradicional data do êxodo. Não é difícil imaginar que a dizimação do exército de Faraó no mar de Juncos pode ter ocorrido após essa sétima campanha e que, após

10 As implicações dessa linha de raciocínio são devastadoras para a teoria de uma data mais recente para o êxodo; ver pp. 68-69.

11 Alan Gardiner, Egypt o f the Pharaohs (London: Oxford University Press, 1961), pp. 200- 202. Muitos historiadores defendem a idéia de uma co-regência entre Tutmose III e Amenotepe II, de cerca de três a seis anos. Seguindo a opinião de que sua morte ocorreu em 1450, seu filho deve ter governado com ele de 1453 (ou 1456) até 1450. Esta interpre­tação se encaixa melhor quando se pensa em uma primeira campanha em parceria com uma segunda, onde ele já assumia o governo sozinho, portanto, em 1450 e 1446 respec­tivamente. Veja Donald B. Redford, "The Coregency of Thutmosis III and Amenophis II, JEA 51 (1965): 107-22; William J. Murnane, "Once Again the Dates for Tuthmosis III and Amenothep ll,"}ANES 3 (1970-1971); 5.

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tamanha desmoralização, um total desinteresse por uma aventura imedi­ata se abateu sobre o reino, especialmente para o norte.12

Nossa identificação de Amenotepe II como o faraó do êxodo está basea­da em duas outras considerações. Em primeiro lugar, embora a maioria dos reis da 18a Dinastia tenha estabelecido sua principal residência em Tebas, bem ao sul dos israelitas no Delta, Amenotepe morava em Mênfis e, aparen­temente, reinou daquele local por um bom tempo.13 Isto o colocava em gran­de proximidade com a terra de Gósen, fazendo-o bastante acessível a Moisés e Arão. Em segundo lugar, evidências sugerem que o governo de Amenotepe não passou para seu filho mais velho, mas para o caçula Tutmose IV. Esta é uma informação subentendida na chamada "esteia do sonho", que foi en­contrada na base da Grande Esfinge perto de Mênfis.14

O texto, que registra um sonho no qual Tutmose IV recebeu a promessa de que um dia viria a ser rei, sugere, como diz um historiador, que o seu reino sucedeu "mediante uma imprevista mudança no destino, como a morte prematura do irmão mais velho".15 E claro que isto é praticamente impossível de se provar, mas também não há como deixar de especular se tal morte prematura não tenha ocorrido por intermédio do juízo de Jeová que, na décima praga, matou todos os primogênitos do Egito que estavam sem a proteção do sangue da Páscoa, "...desde o primogênito de Faraó, que se sentava em seu trono, até o primogênito do cativo que estava no cárcere..." (Êx 12.29).

A s dez pragas

Antes de continuarmos a integração entre a história da 18a Dinastia e a narrativa do êxodo, é preciso atentar para o relato do retorno de Moisés ao Egito, das dez pragas, e do evento do êxodo propriamente dito. Moisés havia fugido do Egito na idade de 40 anos (1486), e encontrou um santuá­rio na terra de Midiã (Êx 2.15). Os midianitas, descendentes de Abraão

12 Gardiner, Egypt, p. 202, descreve uma campanha no nono ano (aprox. 1444) que foi "em menor escala" do que a ocorrida no ano sétimo. É tentador ver esta redução como um efeito colateral da experiência do êxodo.

13 Hayes, "Internai Affairs,", em CAH 2.1, pp. 333-34. Era comum aos reis da 18a Dinastia entregar o governo da cidade de Mênfis ao príncipe coroado. Veja Donald B. Redford, "A Gate Inscription from Karnak and Egyptian Involvemente in Western Asia During the Early 18th Dynasty," JAOS 99 (1979); 277.

1-1 Quanto ao texto, procurar James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 449.

15 Hayes, "Internai Affairs", em CAH 2.1, p. 321.

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através de Quetura (Gn 25.2), moravam na península arábica, provavel­mente ao leste da península do Sinai, passando pelo Golfo de Acaba.16 Moisés conheceu um sacerdote midianita chamado Jetro (ou Reuel), que claramente se tornou adorador de Jeová (Êx 18.11).17 Moisés então se ca­sou com uma das filhas de Jetro, Zípora, com quem teve dois filhos, Ger­son e Eliezer (Êx 18.3,4). Próximo ao quadragésimo ano em que Moisés habitava na terra de Midiã, Jeová lhe apareceu no monte Sinai em uma sarça ardente, identificando-se como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Ele disse a Moisés que havia chegado o tempo em que o povo de Israel parti­ria da terra da escravidão e possuiria Canaã, a terra da promessa. A Moisés coube o privilégio e a responsabilidade de conduzi-los para fora do Egito.

Provavelmente poucos meses após esta revelação, Moisés e Arão se encontraram com faraó que, ao que tudo indica, era Amenotepe II. A prin­cípio, eles solicitaram permissão para conduzir o povo ao deserto a fim de adorar a Jeová; este pedido não apenas foi negado, como também produ­ziu uma intensificação dos trabalhos forçados sobre Israel. Nesta situação, os israelitas imediatamente passaram a questionar a autoridade de Moisés, o qual tornou a Jeová para uma confirmação de sua chamada. Mais uma vez, Jeová garantiu resgatar o seu povo (Êx 6.6), para torná-lo, mediante uma aliança, o seu povo especial (v. 7), fazendo-o chegar em segurança à terra uma vez prometida a seus pais (v. 8). Seguiu-se então uma seqüência de entrevistas com Faraó, e todas falharam em obter permissão para ado­rar no deserto.

Certamente o faraó sabia que a intenção não era simplesmente fazer uma romaria ao deserto para adoração, mas sim partir totalmente do Egito, para nunca mais lá voltar. Para provar a sua autoridade, Moisés operou sinais e maravilhas na presença de Faraó. O primeiro sinal envolveu a vara de Arão, que se tornou em uma serpente e, em seguida, devorou as serpentes produ­zidas pelos mágicos do Egito. As dez pragas que se seguiram foram todas de caráter judicial - abatiam-se sobre o Egito após cada recusa do Faraó em permitir a partida de Israel. A última dessas pragas foi a morte dos primo­gênitos, que atingiu até mesmo a própria família do Faraó.

!6 Para uma discussão adicional acerca da identidade e localização dos midianitas, veja Roland de Vaux, The Early History o f Israel (Philadelphia: Westminster, 1978), pp. 330-338. Mesmo que o relato (Êx 18.1-12) não apresente Jetro como um homem completamente convertido a Jeová, não há dúvida de que ele o reconheceu como o Deus supremo entre os deuses. Veja Umberto Cassuto, A Commentary on the Book o f Exodus (Jerusalém: Magnes, 1967), pp. 216-217. Para uma análise tradicional e histórica das supostas fontes acerca do casamento e do comissionamento de Moisés em Midiã, ver George W. Coats, "Moses in Midian", JBL 92 (1973); 3-10.

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É impossível compreender exatamente o que ocorreu por ocasião de cada praga, visto que as fontes egípcias - naturalmente - não atestam nada a res­peito. Contudo, é evidente que cada uma das pragas causou uma aberração na natureza, uma anomalia que afetou o tempo, os animais, as águas, ou algo similar. Além disso, elas pareciam conter um polêmico desígnio. Cada praga era uma afirmação da superioridade de Jeová sobre a divindade (ou deuses) responsável pela área da natureza que estava sendo particularmente atingi­da. Os céticos consideram as pragas como um relato bastante exagerado de fenômenos naturais perfeitamente compreensíveis, ainda que incomuns.18 Porém, uma séria avaliação da narrativa não permite tão arrogante descaso com as dimensões catastróficas das pragas. É preciso entender o que elas eram- autênticos derramamentos da ira de um soberano Deus que desejou mos­trar, para todo o Egito e também para o seu povo, que Ele é o Senhor de toda terra e céu, o único perfeitamente capaz de resgatar o seu povo da penosa escravidão no Egito, fazendo com eles uma aliança, tomando-os seus servos.

Quando sobreveio a últim a praga, havendo Jeová destruído toda autoconfiança humana, Faraó rendeu-se e permitiu que Moisés e seu povo partissem (Êx 12.31,32). Porém, quando os hebreus realmente saíram, Faraó voltou atrás e se encarregou de persegui-los. Abateu-se sobre o rei o pesar de ter deixado sair do Egito sua maior força de trabalho, aquela com a qual ele poderia realizar seus ambiciosos projetos públicos. Aquela altura, entretanto, os quase dois milhões19 de israelitas já haviam deixado a cidade de Ramsés (i.e., Gósen; Gn 47.6,11) e chegado a Sucote,20 bem a oeste do lago Timsa. Seguiram de lá em direção norte, tentando evidentemente penetrar em Canaã através da grande via costeira ao mar Mediterrâneo. Eles sabiam por certo que encontrariam os filisteus caso continuassem naquela rota, de sorte que Jeová os guiou para o sul, após terem cruzado, é claro, o mar de Juncos.

A rota do êxodo

O ponto exato onde Israel cruzou o mar de Juncos não pode ser deter­minado, mas certamente não era o mar Vermelho, o que chamamos hoje

18 Para uma história de interpretação das pragas, ver Brevard S. Childs, The Book ofExodus (Philadelphia: Westminster, 1974), pp. 164-168. Para um estudo que considera as pragas do Egito como apenas "fenômenos naturais" e eventos históricos, veja Greta Hort, "The Plagues of Egypt", ZAW 69 (1957); 84-103; 70 (1958); 48-59, especialmente pp. 58-59.

19 As informações a respeito do enorme contingente que saiu no êxodo serão consideradas nas pp. 72-73.

20 Talvez t-k-w (ou seja, Tel el-Maskhütah), bem ao ocidente dos Lagos Amargos. Veja Yohanan Aharoni, The Land o f the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 196.

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de Golfo de Suez. Este local estava muito ao sul para se encaixar no iti­nerário bíblico. Além disso, o termo hebraico para descrever a passagem pelas águas, yam süp ("m ar de juncos"), é totalmente impróprio para o mar Vermelho. A tradução da palavra "m ar Vermelho", vista em muitas versões inglesas, está baseada na Septuaginta, que por certo assumiu ser o mar de Juncos um nome antigo para mar Vermelho.21 O registro de Moisés declara que Israel estava em um local próximo a Pi-Hairote (lo­calização desconhecida), entre Migdol (também desconhecido) e o mar. Mais especificamente, Israel encontrava-se "diante de Baal-Zefom " (Êx 14.2), local hoje identificado como Tel Dafanneh, ao ocidente do Lago Menzalé, uma bacia a sudeste do mar M editerrâneo.22 As evidências hoje sugerem que esse é o mar de Juncos pelo qual Israel passou.

Embora saibamos que o local tenha sofrido muitas dragagens para a construção e m anutenção do Canal de Suez, o lago M enzalé sempre foi fundo o suficiente para impedir a passagem a pé sob quaisquer cir­cunstâncias. A passagem de Israel pelo mar, que antecedeu o afoga- mento dos exércitos e carruagens egípcias, não pode ser explicada como uma "travessia de um pântano". Foi preciso a poderosa ação de Deus, uma ação tão expressiva em sua extensão e significado que, a partir daquele m om ento, na história de Israel, ela seria para sempre um paradigma por meio do qual os atos salvíficos e redentores de Deus seriam evocados. Se não existiu um milagre real nas proporções aqui descritas, todas as demais referências ao êxodo como o arquétipo do poder soberano e salvífico da graça de Deus tornam -se vazias e sem significação real.23

A data do êxodo

Antes de narrarmos a viagem de Israel pelo deserto, é necessário exa­minarmos uma questão crucial: a data do êxodo. A questão é fundamen­

21 Para um ponto de vista que sugere que yam süp significa "mar distante" ou "mar da extinção", mesmo referindo-se ao mar Vermelho de uma forma mito-poética, veja Bernard F. Batto, "The Reed Sea: Requiescat in Face" JBL 102 (1983): 27-35.

22 Tel Dafanneh pode ser o mesmo local conhecido por Tahpanhes (Jr 2.16; 43.7,8; 44.1). Ver também Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 2a edição (London: Oxford University Press, 1974), p. 58. Porém, na terceira edição de 1984, já não se identifica Baal Zefon como Tel Dafanneh.

- Como um exemplo de uma aproximação que visa manter a integridade histórica do acontecimento, ainda que negue os detalhes registrados na Bíblia, ver Brevard S. Childs, "A Traditio-Historical Study of the Reed Sea Tradition", VT 20 (1970); 406-18.

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tal não apenas porque o êxodo é em si um evento central histórico e teológico, mas também porque nossa interpretação da história antece­dente e subseqüente a este acontecimento será sensivelmente afetada pela data fixada.

Evidência bíblica interna

O ano de 1446 já foi proposto como a data do êxodo. Sobre esta base cronológica desenvolvemos nossa discussão a respeito dos reis hicsos, do Novo Império, e das narrativas de José. Visto que a integridade de nossa posição depende exclusivamente de uma data mais anterior, em vez de uma outra mais recente que tem sido defendida pela maioria dos estudio­sos, torna-se então vital que apresentemos uma defesa contundente em favor da data mais antiga.

Há duas datas bíblicas principais que tocam diretamente a questão do êxodo. A primeira delas se encontra em 1 Reis 6.1, onde está escrito que o êxodo precedeu a fundação do Templo de Salomão em 480 anos. Levando em consideração por enquanto que Salomão deu início à construção do templo em 966,24 podemos concluir que o êxodo aconteceu em 1446. Mas, por uma série de razões, essa data é quase universalmente rejeitada em favor de uma data mais recente, mais ou menos por volta do século XIII (1260).25 Para conciliar o fato a uma data mais recente, a cifra 480 não deve ser considerada literalmente, mas deve ser vista como uma forma misteri­osa de descrever 12 gerações (sendo quarenta anos, como dizem, uma ge­ração ideal). Entretanto, visto que uma geração na verdade está mais per­to dos 25 anos, o período entre o êxodo e as obras iniciais do templo é estimado em 300 (25 X 12) anos, o que sugere aproximadamente o ano 126626 para o êxodo. Se fosse possível comprovar que a antiga cronologia israelita (ou qualquer outra) assim fazia os cálculos, e que 1 Reis 6.1 é um exemplo da aplicação de tal método, o caso pareceria estar solucionado.27 Infelizmente não há provas. A inevitável conclusão é que uma redução de

24 Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers ofthe Hebrew Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), p. 28; ver também pp. 22,55. Nós aqui aceitamos como ponto de partida a reco­nhecida e autorizada reconstrução da cronologia da monarquia dividida feita por Thiele.

25 John Bright, A History o f Israel, 3a edição. (Philadelphia: Westminster, 1970), pp. 123-24.26 Ibid., p. 123; John Gray, I & II Kings (Philadelphia: Westminster, 1970), pp. 159-60.27 Kenneth A. Kitchen compara a cifra de 480 anos como um hábito dos escribas do Orien­

te Médio de chegar a determinados números, após extraí-los de números inteiros. Os 480 anos, então, seriam um total que na verdade deveria representar apenas cerca de 300 anos. Infelizmente, Kitchen não fornece evidências sólidas que provem que tais

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480 para 300 anos, a fim de satisfazer algumas conclusões subjetivas, tor­na-se um exemplo de apelação indigno de qualquer historiador ou estudi­oso da Bíblia. Certamente o ônus da prova recairá sobre os críticos que preferirem considerar os dados dos historiadores bíblicos de forma não literal.

A segunda prova em defesa do ano 1446 aparece em uma mensagem do juiz Jefté aos seus inimigos amonitas. Jefté afirmou não ter eles razão para qualquer hostilidade contra Israel, uma vez que durante os 300 anos após a vitória de Israel sobre Seom, os amonitas nunca haviam contestado os direitos de Israel sobre a Transjordânia. Uma simples leitura desse lon­go memorando (Jz 11.15-27) deixa claro que Jefté se referia ao período da história de Israel pouco antes da conquista, que ocorreu cerca de 40 anos após o êxodo. A vitória de Israel sobre os amonitas ocorreu por volta de 1100 a.C., uma data largamente reconhecida. Neste caso, Jefté se referia a acontecimentos que haviam ocorrido perto de 1400 a.C.

Está claro que o número 300 não pode representar gerações ideais, com resultados satisfatórios (i.e., 300 não é divisível por 40). Logo, os propo­nentes de uma data mais recente para o êxodo são forçados a utilizar no­vos métodos de cálculo. Tipicamente eles postulam a conquista em duas etapas, afirmando que Jefté não se referia à conquista israelita como uma confederação das 12 tribos, mas a uma anterior, uma ocupação "pré-êxodo" da Transjordânia por uma tribo, ou tribos, que somente mais tarde asso­ciou-se àquelas poucas tribos de Israel que possuíam a tradição do êxodo.28 A conquista da Transjordânia, segundo esta recriação da história do Anti­go Testamento, precedeu a conquista de Canaã por mais ou menos um século. Além disso, Jefté inequivocamente referia-se aos conquistadores de Seom como os israelitas que tinham saído do Egito (Jz 11.13,16). Por­tanto, a menos que se desconsidere a própria evidência interna, a data de 1446 para o êxodo permanece de pé.

Além dos dados cronológicos bastante específicos, o Antigo Testa­mento fornece uma descrição suficiente do êxodo e seu período antece­dente, confirm ando uma data mais antiga para o evento. Já foi exposto que a história de M oisés m elhor se adapta às datas e circunstâncias da 18a Dinastia do Egito. Se aceitarmos a data mais recente para o êxodo, a qual sempre está associada a Ramsés II, será preciso desconsiderar todo o testem unho bíblico. M oisés não voltou ao Egito até que aquele faraó

costumes estavam em vigor em 1 Rs 6.1 (Ancient Orient and Old Testament [London:Tvndale, 1966], pp. 74-75).T.J. Meek, Hebrew Origins (New York: Harper and Row, 1960), pp. 30-31, 34-35

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- que antes tentou tirar-lhe a vida - estivesse morto. O retorno de Moisés da terra de M idiã foi postergado por aproxim adam ente 40 anos; logo, o rei em questão deve ser alguém que reinou, no mínimo, por este perí­odo de tempo. Na 19a Dinastia, som ente Ramsés II - que reinou de 1304 a 1236 - satisfaz este requisito, porém ele não pode ser o faraó do êxodo, porque este foi sucessor de um outro que havia tido um reinado de longa duração.

A data mais recente exige que M erneptah (1236 - 1223) tenha sido o rei durante a hum ilhação no êxodo. Porém, ainda que tal evento tives­se ocorrido em seu primeiro ano como faraó, a jornada de 40 anos no deserto dataria o início da conquista em 1196. Os juizes de Israel de­vem então ser reunidos no período desde o início de sua adm inistração (cerca de 40 anos após do início da conquista - 1156) até a m orte de Sansão, o últim o juiz (com exceção de Samuel, que viveu também sob a monarquia), por volta de 1084. Nenhuma m anipulação das evidências consegue espremer os longos anos do governo dos juizes em 70 ou 100 anos. Além disso, o próprio M erneptah liderou uma cam panha em Canaã no seu quinto ano (1231), durante a qual ele afirmou ter encon­trado e vencido Israel.29 Obviamente é impossível que Israel, num es­paço de apenas cinco anos, tivesse escapado do Egito, parado no m on­te Sinai, peregrinado no deserto, conquistado Seom e Ogue, entrado em Canaã e, finalm ente, por lá ter se estabelecido. Os que advogam uma data m ais recente p recisam d esconsid erar todo m étodo his- toriográfico, e reinterpretar o único documento genuíno - o Antigo Tes­tam ento.30

As evidências a fav or de uma data recente

Ausência de acam pam entos sedentários na Transjordânia

Há três argumentos principais desenvolvidos para apoiar uma data mais recente para o êxodo; dois destes são substanciais, e o terceiro é du­vidoso até mesmo para os defensores de tal ponto de vista. Este será con­siderado primeiro. Por muitos anos, o eminente arqueólogo e explorador

29 Para obter maiores informações sobre o texto da chamada "esteia de Israel", consulte Pritchard Ancient Near Eastern Texts, pp. 376-78.

30 Isso é exatamente o que os críticos estudiosos fazem. Para uma aproximação mais deta­lhada desse caso, ver H.H.Rowley, From Joseph to Joshua (London: Oxford University Press, 1950), esp. pp. 129-44.

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Xelson Glueck afirmava - baseado nos objetos de cerâmica encontrados na superfície e nas encostas dos morros por toda a Transjordânia e pelo Xegueve - que não havia quaisquer registros acerca de populações seden­tárias que ali tenham residido entre os anos 1900 e 1300 a.C.31 Praticamen­te todas as autoridades em Antigo Testamento aceitaram esta opinião e, portanto, concluíram que as referências aos povos estabelecidos em Canaã encontrados por Moisés e Josué precisariam de uma data após 1300 para a jornada no deserto. Segue-se que o êxodo também não poderia ter ocorrido muitos anos antes dessa data. Mais tarde, os sítios arqueológicos outrora escavados por Glueck - que até então eram considerados como evidência para uma data recente do êxodo - foram novamente pesquisados por ou­tros cientistas, que concluíram exatamente o oposto, afirmando inclusive que muitos dos achados remontavam à Era do Bronze Recente, ou eram até mesmo mais antigos.32 Muitos locais relacionados às histórias de Moisés e Josué vindicaram de forma convincente a data de 1400.

Os israelitas e a construção da cidade de Ramsés

Um segundo argumento para a data mais recente é visto no próprio tex­to bíblico. Êxodo 1.11 assinala que os israelitas, quando submetidos à escra­vidão, construíram algumas cidades para Faraó, incluindo Piton e Ramsés. As cidades, à princípio, chamavam-se Pi-Atum e Per-Ramesse, e ambas não foram construídas, mas reconstruídas pelos israelitas.33 A insistência na re­levância desse versículo como um indicador da data do êxodo fundamenta- se, exclusivamente, na pressuposição de que a cidade de Ramsés foi assim chamada por causa de Ramsés II, o famoso rei dá 19a Dinastia. Pode-se con­siderar que ele construiu ou reconstruiu a cidade usando seu nome (Per- Ramesse), e que para isso tenha se valido da mão-de-obra escrava do povo 'apiru (embora isto não possa ser comprovado nos papiros freqüentemente utilizados).34 Todavia, é inseguro tentar provar que a cidade de Êxodo 1.11

?1 Nelson Glueck, "Explorations in Eastern Palestine and the Negev", BASOR 55 (1934): 3- 21; BASOR 86 (1942): 14-24.John J. Bimson, Redating the Exodus and Conquest (Shefield: JSOT, 1978), pp.67-74; James R. Kautz, "Tracking the Ancient Moabites", BA 44 (1981): 27-35; Gerald L. Mattingly, "The Exodus-conquest and the Archaeology of Transjordan: New Light on an Old Problem,", GTJ 4 (1983): 245-62.Veja E.P. Uphill, "Pithom and Raamses: Their Location and Significance", JNES 27 (1968): 291-316; JNES 28 (1969): 15-39.

" Para ver o texto (Leiden 348), consulte Moshe Greenberg, The Hab/piru (New Haven: American Oriental Society, 1955), p. 56, número 162.

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é a mesma Per-Ramesse de Ramsés II, e que o povo 'apiru eram os israelitas. William Albright demonstrou há muitos anos que os Ramessidas não têm origem na 19a Dinastia, mas remontam ao período dos hicsos.35 Não pode­ria ser verdade que os israelitas reconstruíram uma cidade chamada Ramsés bem antes do reinado de Ramsés II?

Tem sido recentemente proposto por alguns estudiosos conservadores que a passagem de Êxodo 1.11 é um anacronismo. Ou seja, os israelitas reconstruíram na época uma cidade conhecida por Tanis e, anos mais tar­de, um editor inspirado modificou o nome no texto para Ramsés, visto que o nome original não mais era usado, tornando-se sem sentido para os leitores. Embora seja uma distinta possibilidade (outros exemplos tam­bém podem ser citados), parece-nos desnecessário, caso o nome Ramsés possa ser associado (e pode) a um período na história egípcia que antece­da ao êxodo.

Um outro fator que tem sido desprezado é o longo período entre a cons­trução das cidades e o êxodo. A passagem diz que os israelitas eram força­dos a trabalhar no projeto e que, quanto mais eram maltratados pelos egíp­cios, mais se multiplicavam e enchiam a terra. É bem nítida a impressão de uma geração sucedendo a outra. Além disso, após falhar em seu desígnio, faraó promulgou o infanticídio, um evento que precisa ser datado na época do nascimento de Moisés. Amenos que alguém descarte a informação bíbli­ca referente à idade de Moisés na época do êxodo, outros 80 anos haviam se passado antes deste acontecimento. Ora, se Ramsés II foi o faraó do êxodo e a cidade de Ramsés foi batizada em sua homenagem, então seu reino in­cluiu os anos da construção, os anos entre a construção das cidades e o de­creto do infanticídio, e os primeiros 80 anos de Moisés. Um total que bem pode ultrapassar 100 anos. Ainda que Moisés tivesse apenas 40 anos na época do êxodo, um reinado de 60 anos para Ramsés seria inadequado. E nenhuma tradição bíblica permite que Moisés tenha sido tão jovem naquele momento. Logo, se o testemunho do Antigo Testamento possui alguma credibilidade, a cidade de Ramsés, antes do êxodo, não foi batizada com

35 William F. Albright, From the Stone Age to Christianity (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1957), pp. 223-24. Gleason L. Archer Jr. faz uma citação acerca de uma pintura numa parede que data da época de Amenotepe III (1417-1379), na qual aparece o nome de um famoso vizir conhecido por Ramose. Conforme Archer tem procurado indicar, isso signi­fica que nomes como o de Rameses têm datas anteriores a 19a Dinastia e que, por conse­guinte, o nome da cidade de Êxodo 1.11 não necessariamente precisa ser datada tão recente quanto a época de Rameses II ("An eighteenth-Dynasty Rameses," JETS 17 [1974]: 49-50). Mas Archer está errado ao dizer que a pintura jamais foi citada na literatura, já que a mesma está registrada em Hayes, "Internai Affairs", em CAH 2.1, pp. 342,405.

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esse nome por causa de Ramsés II. (Sobre o nome Ramsés, Charles Ailing tem outras informações.)36

Evidências da conquista ocorrida no século XIII

O terceiro e mais utilizado argumento em defesa da data mais recente é a evidência arqueológica de uma devastação maciça de cidades e vilarejos da parte central de Canaã durante esse período. Uma vez que essas evi­dências são incontestáveis, e o único evento histórico em qualquer perío­do que poderia ser responsável por isto seria a invasão dos israelitas, con­clui-se que a conquista de Canaã foi a causa de tais destruições, tendo o êxodo ocorrido poucos anos antes.37

Entretanto, há alguns sérios problem as com esta interpretação dos dados arqueológicos. Em primeiro lugar, não há qualquer evidência extrabíblica encontrada nos sítios arqueológicos em Canaã, na metade do século XIII, que indique a origem de tais invasões. As supostas evi­dências de transição cultural são, até hoje, m otivo de discussão, de for­ma que não podem indicar quaisquer m udanças à influência dos israe­litas no local.38 E preciso observar que os únicos documentos existen­tes que descrevem levantes e conflitos m ilitares, mesmo que rem ota­mente similares ao relato bíblico da conquista, são as cartas de Tel el- Amarna. Estas foram escritas por uma testem unha ocular dos fatos; descrevem os conflitos entre as cidades cananéias e repetidam ente mencionam os 'apiru, que tomam posições diferentes em m omentos diferentes.39 O momento histórico descrito nessas cartas endereçadas

* Para mais exemplos, ver Charles F. Ailing, "The Biblical City of Ramsés," JETS 25 (1982): 136-37. Contudo, o próprio Ailing demonstra que o nome Ramsés, ou uma de suas vari­antes, já foi comprovado e achado em épocas tão remotas quanto a 12a Dinastia (p. 133). Sendo assim, assumir que o nome da cidade descrita em Êxodo 1.11 deve conduzir a Ramsés II é totalmente sem fundamento, embora a cidade deva sem dúvida ter sido assim chamada em homenagem a alguma personalidade dentre a realeza da época. Tentar achar nessa referência qualquer anacronismo também forçará na mesma direção em Gênesis 47.11, onde o texto mostra a fixação de Jacó e sua família na "terra de Ramsés" como seu novo lar. Qualquer teoria que conduza a uma dupla datação deve ser tida como fraca.

37 Esta é a visão tanto de estudiosos liberais quanto de conservadores. Maiores informa­ções, ver Harry T. Frank, Bible, Archaeology, anã Faith (Nashville: Abingdon, 1971), p. 95; Kitchen, Ancient Orient, pp. 61-69; Roland K. Harrison, Old Testament Times (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), pp. 175-76.Kathleen Kenyon, Archaeology in the Holy Land (New York: Praeger, 1960), pp. 208-10. Para consulta das principais cartas, ver Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 483-90.

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aos faraós Am enotepe III e Am enotepe IV (Akhenaten) está entre 1380 e 1358, precisam ente a data tradicional da conquista! Embora não se deva identificar autom aticam ente os "ap iru " como os hebreus, alguns estudiosos mais m otivados e defensores da data recente para o êxodo sugeriram que as cartas de Amarna refletem , na realidade, uma con­qu ista an terior por algum as tribos de Israel, tais com o Efraim e M anassés, aproxim adam ente em 1375, e que as demais tribos conquis­taram Canaã quase um século depois.40 Esta posição exige que Josué preceda M oisés por 100 anos ou mais, uma visão que desconsidera toda a evidência bíblica tradicional. Esta reconstrução falha ao produzir pro­vas convincentes enquanto tenta acomodar os dados arqueológicos e inscrições extrabíblicas ao registro bíblico.

Pode-se levantar a questão acerca do significado de camadas de entulho arqueológico do século XIII (que revelam algum tipo de destruição), e da falta desta evidência no início do século XIV.41 Vamos iniciar por esta últi­ma. Primeiro, embora todos os estudiosos concordem que as cartas de Amarna refletem as condições reais e tumultuosas de Canaã no início do século XIV, reconhecem que as guerras civis e maus tratos provocados pelos 'apiru e outros povos quase não deixaram sinais de invasão ou conquista perceptíveis à pesquisa arqueológica.42 Portanto, também não seria possí­

40 Meek, Hebrew Origins, pp. 23-25. Meek estabelece a data do êxodo e da conquista de Canaã bem próximo de 1200 a.C.

41 Para uma discussão mais abrangente, ver Eugene H. Merril, "Palestinian Archaeology and the Date of the Conquest: Do Tells Tell Tales?" GTJ 3 (1982): 107-21.

42 Kenyon, Archaeology, pp. 209-12; George E. Mendenhall, "The Hebrew Conquest of Palestine", BA 25 (1962): 72-73. Shemuel Ahituv cita alguns casos de destruição causa­das pelos egípcios, mas não apresenta nenhum exemplo oriundo do interior de Canaã que possa ser datado depois de Tutmose III (1504-1450) e antes de Seti I (1318-1304). Além disso, nenhuma cidade ou vilarejo conquistado por Josué foi citado por Ahituv como tendo sido conseqüência de conflitos internos com os 'apiru ou devido a qualquer campanha egípcia na região. Sendo assim, as regiões montanhosas de Canaã permane­ceram virtualmente ilesas durante o período de Amarna, o mesmo período da conquis­ta descrita na Bíblia. ("Economic Factors in the Egyptian Conquest of Canaan", IEJ 28 [1978]: 93-96,104-5). Thutmose IV, que foi o faraó que reinou durante os anos da pere­grinação no deserto (1425-1417), fez apenas uma campanha em Canaã, na qual conquis­tou Gezer. Nem mesmo Amenotepe III (1417-1379) ou Amenotepe IV (1379-1362) - os governantes que reinaram durante os anos da conquista - se lançaram em qualquer ataque a Canaã. Ver James M. Weinstein, "The Egyptian Empire in Palestine: A Reassessment," BASOR 241 (1981): 13-16. Michael W. Several vai muito mais além, de­monstrando que o período de Amarna foi caracterizado como uma era de paz jamais vista antes ou depois, uma condição que ele associa diretamente ao sólido controle egípcio

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vel que a conquista israelita não deixasse vestígios arqueológicos? Em se­gundo lugar, e ainda mais importante, não existe evidência arqueológica da conquista no início do século XIV, especialmente porque as cidades e vilarejos ' cananeus, com poucas exceções, foram poupados da destruição material, como uma questão política iniciada por Moisés e implementada por Josué.

Em outras palavras, sinais de uma grande devastação no período de 1400 a 1375 tornam-se um grande problema para a visão tradicional, já que o testemunho bíblico indica claramente que a Israel foi ordenado aniquilar a população cananéia, mas poupar as cidades e vilarejos nos quais eles vivi­am. E o registro bíblico afirma que o mandato foi fielmente observado. As grandes exceções foram Jericó, Ai e Hazor. A cidade de Jericó tem sofrido tanto a degeneração causada pelo tempo e as escavações feitas sem a dire­ção científica apropriada, que os especialistas estão completamente dividi­dos em relação à cronologia, um fato que leva muitos a desconsiderarem o local como importante para a pesquisa em geral.43

A localização de Ai ainda está em debate e, enquanto não for definida, a data de sua destruição continuará sendo um ponto questionável.44 Quanto a Hazor, Ygael Yadin, escavador e principal autoridade no local, sugeriu a princípio que ela sofrerá um terrível incêndio por volta de 1400 - uma cala­midade por ele associada à conquista porém, mais tarde, ele modificou a data para o século XIII.45 Sem considerar o que o levou a reavaliar sua teo­ria, muitos estudiosos ainda estão convencidos de que sua data original deve ser aceita.46

A razão da falta de comprovação arqueológica para as conquistas do século XIV é que não há nada para se confirmar, por assim dizer. M oisés disse que o Senhor daria a Israel cidades que eles não haviam construído, casas cheias de bens que eles não haviam ajuntado, cister­nas que eles não haviam cavado, e vinhas e olivais que eles não haviam plantado (Dt 6.10,11). E Josué, após a conquista, pôde confirm ar o cum-

sobre a região ("Reconsidering the Egyptian empire in Palestine During the Amarna Period," PEQ 104 [1972]: 128-129). As Cartas de Amarna falam de várias coisas, menos de paz.

43 Roger Moorey, Excavation in Palestine (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), pp. 116-17.44 Bimson, Redating, pp. 215-25.45 Yigael Yadin, "The Raise and Fali of Hazor", em Archaeological Diseoveries in the Holy

Land, Archaeological Institute of America (New York: Crowell, 1967), pp. 62-63; "Excavations at Hazor, 1955-1958", em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, p. 224; "The Fifth Season of Excavations at Hazor, 1968-69," BA 32 (1969): 55.

46 Bimson, Redating, p. 194.

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primento destas promessas (Js 24.13). Logo, as hipóteses de muitas au­toridades que defendem uma conquista violenta da terra sim plesm en­te desaparecem diante da tradição bíblica. O silêncio da arqueologia com respeito à conquista do século XIV é, em si mesmo, um poderoso apoio a tal data.

O que podemos fazer então com as evidências óbvias de uma destrui­ção das cidades cananéias no século XIII? Em primeiro lugar, é impor­tante notar que se a conquista israelita ocorreu no início do século XIV, então essas cidades eram de Israel havia muito tempo, e não dos cananeus. Atualmente, não há como fazer distinção entre os fenômenos culturais Idade do Bronze Recente Cananita e Idade do Bronze Recente Israelita. Em segundo lugar, deve ter havido outros fatores, além de Israel, que também agiram e contribuíram para a destruição. O livro de Juizes es­clarece que Israel foi constantemente ameaçado e atacado por povos ini­migos que estavam dentro e fora de Canaã.

Nenhum momento da história foi tão devastador para Israel como o século XIII, ou seja, precisamente o tempo em que os defensores da data mais recente para o êxodo estabelecem a conquista. A cronologia tradici­onal localiza o governo de Débora durante este período, e o de Gideão um pouco depois. Embora não seja descrita a extensão dos prejuízos cau­sados pelos inimigos (os cananeus e os midianitas), o fato de que Jabim de Hazor "oprim ia os filhos de Israel violentam ente" por vinte anos (Jz 4.3), e que muitas das tribos foram unificadas sob o governo de Débora e Baraque na intenção de barrar a força dos adversários (Jz 5.12-18), suge­re uma vasta operação militar que pode ter infligido graves danos mate­riais às cidades de Israel.47 A opressão midianita parece não ter afetado Israel com a mesma intensidade, consistindo principalmente em destrui­ção de plantações, mas com muita dificuldade a guerra pôde ser evitada durante o período de opressão midianita. Além disso, o conflito que se­guiu a expulsão dos midianitas por Gideão envolveu destruição materi­al: O filho de Gideão, Abimeleque, que se autoproclamou rei, reduziu a cidade de Siquém a escombros (Jz 9.45) antes de ser assassinado em um cerco malsucedido em Tebez.48

Não há nada que determine o agente da destruição nos sítios urbanos da Palestina do século XIII, exceto o que está registrado no Antigo Testamento. Somente este registro possui completa precisão. Uma construção cuidadosa

47 Bright, History, p. 176; Kenyon, Archaeology, p. 238.48 Edward F. Campbell, Jr., and James F. Ross, "The Excavation of Shechem and the Biblical

Tradition," BA 26 (1963): 16-17.

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da cronologia baseada em uma hermenêutica não distorcida requer uma outra explicação para tais destruições que não seja a conquista. A melhor alternativa seria a opressão de Israel causada pelos cananeus e midianitas, e o restabelecimento da paz mediante a ação heróica dos juizes.

Torna-se claro que os argumentos comumente produzidos em favor de uma data mais recente para o êxodo e para a conquista de Canaã não são convincentes e, de fato, pelejam contra qualquer análise objetiva do relato bíblico. O Antigo Testamento sustenta a data de 1446 a.C. Qualquer nega­ção desse fato é simplesmente um apelo sem evidência sólida.

A data e a duração do cativeiro egípcio

O problema

O estabelecimento de 1446 como a data do êxodo permite a reconstru­ção das cronologias mais antigas. Consideraremos primeiro a duração do cativeiro no Egito e, em seguida, as principais datas da história patriarcal. Conforme sugerimos no Capítulo 1, a duração da peregrinação no Egito possui ramificações cruciais para um melhor entendimento das narrati­vas patriarcais e de José. Uma peregrinação de 215 anos, por exemplo, situa José no contexto hicso, ao passo que uma duração de 430 anos apre­senta José vivendo em uma típica dinastia egípcia. As implicações são sig­nificativas. Semelhantemente, uma peregrinação de 215 anos posiciona Abraão e seus sucessores imediatos 215 anos mais tarde do que a data tradicional, requerendo assim uma reconsideração dos eventos contem­porâneos, por exemplo, a destruição das cidades da planície.

A revelação dada a A braão

O ponto de partida de nossa discussão centra-se na revelação dada por Jeová a Abraão de que seus descendentes seriam peregrinos em uma terra estranha por quatrocentos anos, e que nesse período sofreriam grande afli­ção (Gn 15.13). Porém, na quarta geração, eles seriam libertados desse jugo pelo Senhor e seriam reintroduzidos em Canaã (Gn 15.16). A justaposição de "quatrocentos anos" e "quatro gerações" sugere firmemente que gera­ção aqui deve ser entendida como um século.49 Uma grande dificuldade

4° William F. Albright defende a idéia de que a palavra hebraica dôr ("geração") significa "duração da vida" no hebraico primitivo, de sorte que a passagem de Gn 15.16 está se referindo a quatro "durações da vida", de cem anos cada (The Biblical Periodfrom Abraham

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surge quando quase toda a peregrinação é caracterizada como um perío­do de agonia, enquanto somente a última parte - após o surgimento do novo rei "que não conhecera a José" - foi de fato aflitiva.50 Sem dúvida, para as gerações subseqüentes de israelitas que refletiram sobre aqueles dias, essa peregrinação não poderia ser lembrada como um momento de crescimento, mas como dias de opressão e escravidão. O êxodo de fato foi visto como um escape de grande tormento.

Evidências a fav or de um longo cativeiro no Egito

Em defesa de uma longa perm anência no Egito temos a declaração explícita de M oisés: "O tempo que os filhos de Israel habitaram no Egi­to foi de quatrocentos e trinta anos. E aconteceu que, passados os qua­trocentos e trinta anos, naquele mesmo dia, todos os exércitos do Se­nhor saíram da terra do Egito" (Êx 12.40,41). Isto situa a descida de Jacó e seus filhos ao Egito em 1876 (o êxodo em 1446 + 430 anos de peregrinação), uma data que estaria bem fundam entada no registro bíblico. Um problema parece surgir, entretanto, no relato da Septuaginta de Êxodo 12.40,41 e nas palavras de Paulo sobre esta passagem em Gálatas 3.17. A Septuaginta inform a que a duração de tempo em que os israelitas viveram "no Egito e C anaã" foi de 430 anos; Paulo parece apoiar esta afirmação quando diz que a Lei de M oisés foi entregue 430 anos após a prom essa feita a Abraão a respeito de sua descendência. De fato é verdade que o período desde a chamada de Abraão para dei­xar Arã até a descida de Jacó ao Egito é de 215 anos. Assim sobrariam apenas 215 anos para a peregrinação, se Paulo (e a Septuaginta) pre­tendia dizer que os 430 anos referiam -se a todo o período desde a cha­mada de Abraão até o Êxodo.

Todavia, é difícil sustentar a cronologia da Septuaginta. Além da cla­ra afirmativa de uma peregrinação de 430 anos, há obviamente o contex­to histórico egípcio (melhor do que o contexto hicso) nas histórias de

to Ezra [ New York: Harper, 1963], p. 9). O acadiano cognato é dãru e também significa "duração da vida". Maiores informações em Harold Hoehner, "The Duration of the Egyptian Bondage," Bib Sac 126 (1969): 306-16.

50 Aí está a razão de Leon J. Wood afirmar que o "novo rei, que não conhecia a José" sem dúvida era um hicso, e não um governador egípcio. A subida dos hicsos ao poder por volta de 1720 deixaria um período de aproximadamente 280 anos de opressão até o momento do êxodo, em 1446 (A Survey o f Israel's History [Grand Rapids: Zondervan, 1970], p. 37). Contudo, duzentos e oitenta anos não é o mesmo que quatrocentos anos. Logo, o problema dos quatrocentos anos não está ainda solucionado.

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José (pp. 41-46). Além disso, a referência de Paulo ao período entre a promessa abraâmica e o pacto com Moisés não aponta necessariamente para a primeira vez em que a promessa foi feita. Esta foi afirmada e rea­firmada por várias vezes a Abraão, Isaque e Jacó, sendo a última ocasião precisamente na véspera da partida de Jacó para o Egito (Gn 46.3,4). Paulo poderia estar se referindo não exatam ente a A braão, mas ao Pacto Abraâmico, que foi feito pela última vez com Jacó, precisamente 430 anos antes do êxodo.

Evidências a favor de uma curta peregrinação no Egito

A teoria de uma peregrinação de apenas 215 anos tem atraído muitos estudiosos porque acomoda mais facilmente as "quatro gerações" descri­tas em Gênesis 15.16 e as quatro gerações de Levi até Moisés (Êx 6.16-20). É possível entender como a distância entre Levi e Moisés poderia ser de 215 anos, mas como apenas quatro gerações preencheriam 430 anos?51 O significado da expressão "quarta geração" em Gênesis 15.16 já foi discuti­do anteriormente - geração é sinônimo de século. A resposta para a genealogia torna-se um pouco mais complexa.

Levi tinha aproximadamente 44 anos de idade quando desceu ao Egito com seu pai Jacó.52 Êxodo 6.16 registra que ele tinha 137 anos quando morreu; portanto, Levi viveu no Egito por aproximadamente 93 anos. Seu filho Coate viveu toda sua vida (ou quase toda) no Egito e morreu aos 133 anos. Anrão, que passou todos os seus dias no Egito, morreu aos 137 anos. Moisés, seu filho, deixou o Egito na idade de 80 anos. O tempo total destes quatro anos no Egito (incluindo os anos de Moisés em Midiã) resulta em 433 anos, o que não excede muito a 430. As quatro gerações - Levi, Coate, Anrão e Moisés - representam assim um total artificial de aproximada­mente 430 anos. Dizemos artificial porque a sobreposição de gerações não foi levada em conta. Este método de cálculo é bem diferente do estabeleci­do pelas modernas noções de cronologia, mas não se pode negar que o seu uso possa ser utilizado para propósitos literários.53

Rowley, From Joseph to Joshua, pp. 70-73.Ver Eugene H. Merrill, "Fixed Dates in Patriarehal Chronology," Bib Sac 137 (1980): 244.

B Um exemplo bem conhecido dè uma cronologia que aparenta ser diacrônica, mas que na realidade é sincrônica, é aquela vista na Lista dos Reis Sumerianos. As dinastias ali contidas parecem estar em ordem sucessiva, mas os registros mais recentes mostram que estavam freqüentemente em paralelo. Ver Thorkild Jacobsen, The Sumerian King List, Assyriological Studies 11 (Chicago: University of Chicago Press, 1939), pp. 161-64.O mesmo método parece estar envolvido na cronologia dos juizes (ver pp. 150-51). Tal-

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Além disso, Kenneth Kitchen sugeriu que a estrutura de Êxodo 6.16-20 não reflete gerações imediatamente sucessivas, mas tribo (Levi), clã (Coate), fam ília (Anrão) e indivíduo (M oisés).54 Uma estrutura parale­la é vista em Josué 7.16-18, onde tribo (Judá), clã (Zerá), fam ília (Zimri) e indivíduo (Acã) aparecem. Este Acã, embora membro da fam ília de Zim ri, é especificam ente identificado como filho de Carmi. M oisés, portanto, pode não ter sido filho direto de Anrão, como aparece suge­rido em Êxodo 6.20.

Como apoio à idéia de que a genealogia de Êxodo 6.16-20 é seletiva - sendo a peregrinação, portanto, de longa duração - existem algumas con­siderações. Bezalel, um dos artífices que supervisionaram a construção do tabernáculo (Êx 31.2-5), era contemporâneo de Moisés e também a sétima geração desde Jacó (1 Cr 2.1,4,5,9, 18-20), enquanto Moisés era apenas a quarta. Elisa ma, o líder da tribo de Efraim na ocasião da jornada de Israel pelo Sinai (Nm 1.10), era a nona geração desde Jacó (1 Cr 7.22-26). E ainda mais notável: Josué, assistente de Moisés, era a décima primeira geração desde Jacó (1 Cr 7.27).

Embora essas onze gerações possam ser enquadradas perfeitam en­te nos limites necessários para uma peregrinação de 215 anos, o fato é que não se pode usar as quatro gerações da genealogia de Levi a M oisés como um argumento para uma curta peregrinação, uma vez que é pra­ticam ente certo que a genealogia de Levi a M oisés seja representativa, e não completa.

Uma última objeção à teoria de um curto período no Egito está baseada na dificuldade de se entender como as setenta (ou setenta e cinco) pessoas da família de Jacó, na ocasião da descida ao Egito, multiplicaram-se em apenas 215 anos para seiscentos mil homens, sem contar as mulheres e as crianças (Êx 12.37). Mesmo os 430 anos se mostram curtos em circunstân­cias naturais. O registro bíblico, no entanto, declara que o notável cresci­mento ocorreu como resultado da bênção e providência de Deus. Pode-se demonstrar matematicamente como, após dez ou doze gerações, 430 anos seriam suficientes para todo esse crescimento da população, mas 215 anos é algo realmente difícil de aceitar.55

vez então as quatro gerações de Levi a Moisés foram selecionadas porque o total de anos nelas envolvido aproximava-se de 430 anos.

54 Kitchen, Ancient Orient, pp. 54.5.55 Quanto a uma evidência matemática, ver Carl F. Keil e Franz Delitzsch, Biblical

Commentary on the Old Testament, vol. 2, The Pentateuch (Grand Rapids: Eerdmans, 1951), pp. 28-29.

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Concluímos que a idéia de uma peregrinação mais longa deve ser pre­ferida, pois melhor acomoda os requisitos da cronologia bíblica, e ajusta- se à história egípcia de uma maneira bem mais satisfatória.

Cronologia dos patriarcas

O estabelecimento das datas para o êxodo e para a permanência no Egito torna possível precisar as datas do período patriarcal.

E essas datas somente serão admissíveis se o estudante estiver disposto a aceitar a facticidade da informação contida em Gênesis. Caso alguém ar­gumente, baseado em qualquer informação, que a longa vida dos patriarcas é impossível ou que as narrativas registram acontecimentos não históricos, episódios legendários, tal pessoa não poderá dizer nada significativo a res­peito de cronologia ou história. Rejeitar os únicos dados disponíveis signifi­ca desprezar qualquer chance de reconstruir a história primitiva dos hebreus.

De acordo com Gênesis 47.9 Jacó estava com 130 anos quando pela pri­meira vez chegou ao Egito e apresentou-se perante o rei. A data deste acon­tecimento, como já demonstrado, foi em 1876. Logo, Jacó nasceu em 2006. Seu pai Isaque tinha 60 anos na ocasião, uma indicação de que seu nasci­mento ocorrera em 2066 (Gn 25.26). Abraão, é claro, gerou Isaque quando tinha 100 anos (Gn 21.5); portanto, ele nasceu em 2166. Embora haja defe­sa para estes números, aumenta a aceitação de que as histórias dos patri­arcas acomodam-se melhor no princípio da Idade Média do Bronze do antigo oriente. É impossível fazer com que todos aceitem os patriarcas como pessoas de carne e sangue, mas tem-se tornado cada vez mais difícil permanecer cético diante da profunda compatibilidade entre o relato de Gênesis e as descobertas sobre as épocas e os locais em que a Bíblia situa os patriarcas.

A jornada no deserto

Do mar de Juncos até o Sinai

Com este amplo quadro histórico em vista, examinemos os passos de Moisés e Israel desde a partida do Egito. Após terem atravessado o mar de Juncos, quase em uma disposição militar (Êx 12.51), os hebreus viajaram por três dias através do deserto de Sur e chegaram a Mara, onde as águas amargas foram feitas doces. De lá caminharam até Elim e entraram no deserto de Sin - mais ou menos quarenta e cinco dias após terem deixado o Egito (Êx 16.1) - onde pela primeira vez foram supridos com o maná.

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Movendo-se em direção a Refidim,56 foram atacados pelos amalequi­tas (Êx 17.8-16). Estes eram uma tribo de nômades guerreiros cuja ori­gem não pode ser identificada, embora Amaleque, nascido de Timna, concubina de Elifaz (filho de Esaú), possa ser o pai dessa tribo (Gn 36.12,16). Se assim o for, o ataque a Israel é ainda mais repreensível, uma vez que envolvia irmão contra irmão. Não é de estranhar que Amaleque tenha sido incluído no herem de Deus (Êx 17.14).57 Israel os encontrou novamente quando estava para penetrar em Canaã pelo sul (Nm 14.39- 45). Mais tarde, os mesmos amalequitas uniram-se aos moabitas (Jz 3.13) e midianitas (Jz 6.3) nas campanhas militares contra Israel no período dos juizes. Saul falhou em aniquilá-los como lhe havia sido ordenado (1 Sm 15.1-9), mas Davi atacou e destruiu muitos deles em suas expedições através do deserto (1 Sm 27.8; 30). Finalmente desapareceram, e a última referência bíblica a seu respeito provém dos tempos de Ezequias (cerca de 700 a.C.; 1 Cr 4.41-43).

Sob o comando de Josué, o povo de Israel derrotou os amalequitas e por fim chegou à montanha sagrada do deserto do Sinai, no terceiro mês após o êxodo (Êx 19.1). Embora os tradicionais situem essa montanha na parte sudeste da península do Sinai, estudiosos mais modernos têm su­gerido uma localização ao nordeste ou mais situada ao centro da penín­sula. Visto que a maioria (se não todos) dos locais que fizeram parte daquele itinerário já não mais pode ser identificada, é praticamente im­possível assegurar alguma informação. Mas isto é de menor importân­cia. O principal é que neste local Israel encontrou-se com Jeová, e lá am­bos fizeram um pacto.58

56 Os nomes desses cinco primeiros locais - Shur, Marah, Elim, Sin e Refidim - são exclu­sivamente mencionados no Antigo Testamento, não havendo como associá-los aos mo­dernos sítios arqueológicos. Sur era um deserto que se estendia por todo o ocidente central do Negueve (Gn 16.7; 20.1;25.18; ISm 15.7; 27.8). Mara é mencionada apenas nos acontecimentos ocorridos no itinerário do deserto (Êx 15.23; Nm 33.8,9), da mesma for­ma que Elim (Êx 15.27; 16.1; Nm 33.9,10). Sin é o deserto que fica situado entre Elim e Refidim (Êx 16.1; 17.1; Nm 33.11,12). Refidim situa-se entre Alush (Nm 33.14) e o monte Sinai (Êx 17.1,8; 19.2). Para as possíveis localizações desses sítios, ver o mapa da p. 53.

57 O termo hebraico herem refere-se ao ato de consagrar alguém ou alguma coisa para o serviço exclusivo de Deus. Pode ser que (conforme nesse ocorrido) haja a possibilidade do objeto consagrado vir a ser aniquilado. Ver Leon J. Wood, herem, em R. Laird Harris, Gleason L. Archer, Jr., e Bruce K. Waltke, editores de Theological Wordbook o f the Olá Testament (Chicago: Moody, 1980) vol. 1, pp. 324-25.

58 Para um apanhado sobre os vários pontos de vista, ver Siegfried Hermann, A History o f Israel in Old Testament Times, traduzido por John Bowden (Philadelphia: Fortress, 1975), pp. 71-73.

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A aliança do Sinai

Não serão tratadas aqui as questões teológicas que envolvem o cha­mado pacto mosaico ou sinaítico. Basta mencionar que através desta ali­ança o Senhor Jeová confirm ou a redenção que efetuara - livrou os hebreus da suserania egípcia, tornando-os seus próprios servos, "...um reino sacerdotal e o povo santo" (Êx 19.6). O papel deste povo a partir daquele instante seria mediar ou interceder como sacerdote entre o Deus santo e as nações rebeldes do mundo, tendo em vista não somente pro­clamar a salvação, mas também providenciar o canal humano através do qual esta seria efetuada.59

Pode-se afirmar historicamente que as doze tribos de Israel estavam presentes no Sinai para participar da aliança com Jeová. Esta afirmação é rejeitada por Martin Noth e outros estudiosos, que afirmam ter sido a tra­dição sinaítica originalmente propriedade de uma ou duas tribos, que en­tão compartilharam seu entendimento acerca do passado com as demais tribos, até que a herança de cada uma tornou-se a herança de todas.60 Nota- se claramente que uma das intenções da narrativa do êxodo e da aliança é provar que todo o Israel tomou parte no êxodo e encontrou-se com Jeová no Sinai. Somente uma avaliação céptica do texto fundada em hipóteses críticas improváveis pode afirmar algo que não seja a participação das doze tribos de Israel nesse momento crucial e sagrado de sua história.

Um outro fato importante é que a forma literária em que a aliança do Sinai aparece (Êx 20-23) é profundamente semelhante aos tratados de suserania e vassalagem do antigo Oriente Médio, especialmente os hititas, que foram feitos no mesmo período.61 A semelhança torna-se ainda maior no livro de Deuteronômio, que efetivamente é uma aliança extensa e apro­priada à geração de israelitas que estava para entrar em Canaã.62 De acor­do com George Mendenhall, Meredith Kline, Kenneth Kitchen e outros estudiosos, Êxodo 20-23 e Deuteronômio seguem a mesma estrutura e

Walther Eichrodt, Theology ofthe Old Testament (Philadelphia: Westminster, 1961), vol. 1, pp. 36-45,481-85.

' Martin Noth, History o f Pentateuchal Traditions, traduzido por Bernhard W. Anderson (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1972).George E. Mendenhall, "Covenant Forms in Israelit Tradition", em Biblical Archaeology Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Nowl Freedman (Garden City, X.Y.: Doubleday, 1970), vol. 3, pp. 38-42; Klaus Baltzer, The Covenant Formulary in Olá Testament, Jewish, anã Early Christian Writings (Philadelphia: Fortress, 1970).T.A. Thompson, Deuteronomy: An Introduction and Commentary (Leicester: Inter-Varsity, 1974), pp. 14-21.

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contêm os elementos essenciais dos clássicos tratados entre suserano e vassalo, que foram descobertos em grande abundância nos arquivos dos hititas em Boghazkeui, Turquia (antiga Hatusas). Visto que a maior parte desses textos existe desde a Idade do Bronze Recente, conclui-se que os textos bíblicos semelhantes são deste período, ou seja, o período que tem sido tradicionalmente relacionado à época de Moisés. Porém, na intenção de defender uma data bem mais recente para o livro de Deuteronômio, muitos estudiosos preferem associar sua forma e conteúdo aos documen­tos neo-assírios do sétimo século.63

Mas uma minuciosa comparação entre esses tratados e os textos bíblicos revela problemas insuperáveis de interpretação. Por exemplo, as fórmulas de bênçãos fazem parte integral tanto da literatura do Bronze Recente quanto dos textos bíblicos, embora sejam completamente estranhos aos documen­tos assírios.64 Pela lógica, fica claro que Moisés adotou a forma e o estilo de tratados que já eram bem conhecidos no décimo quinto e décimo quarto séculos, compondo os textos bíblicos baseado nesses modelos.65

O motivo de Moisés ter adotado esta forma é perfeitamente compreen­sível. Ele poderia com certeza ter criado um novo estilo literário, com seus próprios elementos peculiares; mas, visto que sua intenção era ser mais instrutivo do que criativo, ele utilizou um veículo com o qual o povo já estava bastante familiarizado. Em outras palavras, como um bom profes­sor Moisés estava ciente do princípio pedagógico segundo o qual o aluno aprende melhor quando o ensinamento parte do conhecido para o desco­nhecido. Moisés se utilizou desta forma de comunicação a fim de que a aliança entre Jeová e Israel pudesse ser revestida na forma dos tratados internacionais, intentando preservar as verdades teológicas profundas que a ela estão associadas.

Do Sinai até Cades-Barnéia

Desde a entrega da Lei - seguindo-se as cerimônias de confirmação, a instituição do sacerdócio e outros elementos essenciais - até a recém-for-

63 Moshe Weinfeld, Deuteronomy and the Deuteronomic School (Oxford: Clarendon, 1972), pp. 59-157; R. Frankena, "The Vassal Treaties of Esarhaddon and the Dating of Deuteronomy,", OTS 14 (1965): 122-54.

64 Moshe Weinfeld, "The Loyalty Oath in the Ancient Near East," UF 8 (1976): 397.65 Kenneth A. Kitchen, "Ancient Orient, 'Deuteronism,' and the Old Testament," em

New Perspectives on the Old Testament, editado por }. Barton Payne (Waco: Word, 1970), pp. 1-24.

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mada comunidade teocrática, passaram-se praticamente nove meses (Êx 19.1; 40.17). Por volta do primeiro mês no ano seguinte após o êxodo (aprox. 1445) foi construído o Tabernáculo e, exatamente um mês depois, inicia- ram-se os preparativos para que as tribos partissem do Sinai em direção a Canaã (Nm 1.1). A viagem teve início precisamente no vigésimo dia do segundo mês do segundo ano (Nm 10.11,12), o que significa que Israel esteve acampado no Sinai por quase um ano inteiro. É impossível saber acerca do cotidiano desse período, exceto que o povo era nômade e pasto­ril. Existem oásis e terras de pastagem a sudeste do Sinai, mas estes não poderiam prover água e alimentação para um contingente de homens e animais tão grande.

O relato bíblico sugere que todo o processo - desde a saída do Egito até Canaã - foi uma série de atos miraculosos de Deus por meio dos quais Ele redimiu, libertou e sustentou o seu povo. Leitores modernistas podem ler o texto da maneira que acharem melhor. Podem, inclusive, rejeitar catego­ricamente o registro bíblico afirmando que as palavras não passam de um embelezamento exagerado produzidas por trovadores que glonficavam indevidamente seu modesto passado; ou podem aceitá-lo como uma reci­tação de uma sóbria historiografia, não obstante a inabilidade de compre­ender seus diversos mistérios. Tais julgamentos situam-se no campo da fé religiosa, e não nos estudos científicos das hipóteses históricas.

Finalmente, Israel moveu-se em direção norte, ainda que com muita dificuldade. A maioria dos locais mencionados no itinerário de Números e Deuteronômio não mais pode ser localizada, de forma que o caminho exato não pode ser definido.66 O primeiro acampamento foi em Tabera (Quibrote-Hataavá - Nm 11.3,34), um local que distava três dias de via­gem do monte Sinai (Nm 10.33), mas também não pode ser identificado. Do mesmo modo, Hazerote (Nm 11.35) é desconhecida hoje; mas o princi­pal acampamento dos israelitas durante os quarenta anos - Cades-Barnéia- certamente é identificado como Tel el-Qudeirat, localizado no deserto de Zim, aproximadamente oitenta quilômetros a sudoeste de Berseba (Nm 20.1).67 De Cades os doze espias penetraram em Canaã, viajando pelo nor-

" Não será por isso que devemos considerar o relato como não-histórico, conforme muitos têm pensado, tais como G.I. Davies, que identifica os tinerários de Deuteronômio como um embelezamento dos instantes de mudanças nas aitigas fontes narrativas e em P (a suposta fonte sacerdotal da legislação contida no Pentateuco), fazendo-as oarecer como verdadeiras, o que serviria apenas para trazer esperança à comunidade do exílio ("The Wilderness Itineraries and the Composition of the Pentateuch", VT 33 [1983]: 12-13). Para uma visão que identifica o sítio tão antigo quanio a Era do Bronze Médio I, ver

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te até Reobe, provavelmente a mesma Bete-Reobe que fica a oeste de Dã e a quarenta quilômetros ao norte do mar da Galiléia. Caso a "entrada de H am ate" (Nm 13.21) seja entendida como Lebo-Hamate (a moderna Lebweh), o reconhecimento feito pelos doze pode tê-los levado tanto para o norte que chegaram mesmo a alcançar a nascente do rio Orontes, 160 quilômetros ao norte do mar da Galiléia.68

No decorrer da viagem , os espias também visitaram a cidade de Hebrom, habitade naqueles dias pelos enaquins (uma raça de gigantes), e colheram enormás cachos de uvas em Escol ("cacho"), assim chamada em conseqüência do evento. Naqueles dias Hebrom já existia por aproxima­damente trezentos anos (Nm 13.22; ver pp. 24,25), embora tenha sido an­tes conhecida pelos patriarcas com o nome de Manre ou Quiriate-Arba (Gn 13.18; 23.2; Js 14.15).

Quando retornaram a Cades-Barnéia, a maioria dos espias disse ao povo que Canaã era habitada por gigantes que viviam em cidades com mura­lhas intransponíveis. Apesar de Josué e Calebe afirmarem exatamente o oposto, o povo deu crédito ao relato desanimador e decidiu rejeitar a lide­rança de Moisés. Em conseqüência, Jeová condenou aquela geração de adultos a uma peregrinação sem fim nos desertos do alto Sinai. E foi assim por trinta e oito anos até que, por fim, morreu aquela geração, exceto Josué e Calebe. A conquista de Canaã, que poderia ter tido seu início dois anos após o êxodo, ocorreu na verdade quarenta anos mais tarde, em 1406 a.C.

Neste ínterim o povo decidiu amenizar a sentença pronunciada por Jeová contra eles; lançaram-se em um ataque contra os amalequitas e cananeus que habitavam nas montanhas ao sul de Canaã. Moisés foi con­tra essa tentativa doentia de vitória, não permitindo que a arca da alian­ça - a evidência tangível e simbólica da presença de Jeová - os acompa­nhasse. Conforme as palavras de Moisés, os israelitas foram duramente derrotados e humilhados, fugindo de seus adversários até o sul de Horma (a m oderna Tel el-M ishash),69 cerca de doze quilôm etros a leste de

RudolphCohen, "The Excavatiors at Kadesh-barnea (1976-78)/' BA 44 (1981): 104. Cohen lança a novíssima teoria de que i destruição dos sítios arqueológicos do Bronze MédioI no Negueve e em outros locais, as quais têm sido atribuídas pelos estudiosos aos amoritas devem, na realidade, sjr creditadas às tribos israelitas que, à medida que saí­am do Egito pelo norte, devastaram a região. Isso colocaria o êxodo numa data muitís­simo remota, aproximadamente 2000 a.C. ("The Mysterious MB I People," BAR 9 [1983]: 16-29)! Tudo o que se liga às atividades patriarcais na tradição deve ser associado à conquista israelita.

68 Yohanan Aharoni, The Land o f the Bible (Philadephia: Westminster, 1979), pp. 72-73.69 Ibid., p. 201

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Berseba. Esta lição parece ter sido suficiente, pois não houve mais qual­quer outra tentativa de entrar em Canaã prematuramente.

De Cades-Barnéia às planícies de M oabe

O encontro com Edom

No quadragésimo ano, Moisés traçou planos para retomar a marcha até Canaã. Desta vez a estratégia determinada era tentar uma penetração pelo leste, atravessando o rio Jordão em direção ao caminho próximo a Jericó. Para a concretização desse plano, Moisés sabia que teria de atraves­sar os territórios edomita e moabita, já que a rota mais acessível ao norte de Cades-Barnéia passava bem no centro das duas nações. E além disso esta rota, a chamada Estrada Real, era muito bem defendida, especialmente nos locais onde havia estreitamentos entre montanhas. Logo, viajar por esse caminho obrigatoriamente exigia a permissão daqueles que controla­vam os pontos principais.

Primeiro M oisés enviou m ensageiros a Edom e lem brou-lhe o pas­sado histórico comum às duas nações, e como eles estavam ligados por laços fam iliares.70 Os edomitas eram primariamente descendentes de Esaú, que ocupou essa terra desde quando separou-se de Jacó (Gn 32.3). A tradição bíblica indica que os habitantes originais de Edom, conheci­da anteriorm ente como Seir, eram os horitas, associados seguram ente aos hurrians dos textos do antigo O riente M édio. Eles foram expulsos por Esaú tanto por sua força quanto pela graciosa ação de Jeová (Dt 2.12,22; Gn 36).

Os apelos de Moisés com respeito a uma mesma origem foram despre­zados, bem como o discurso sobre o grande livramento dado por Jeová a Israel, quando os retirou do Egito, e a proposta de permanecerem estrita­mente na estrada, abstendo-se da água ou comida de Edom. Frustrado, Moisés mesmo assim partiu de Cades e acampou-se nas regiões monta­nhosas de Hor, onde morreu Arão (Nm 20.28,29). Essa região ainda não identificada provavelmente ficava a nordeste de Cades, "ao longo da es­trada para Atarim ".71 Entretanto, o rei da cidade-estado cananéia Arade soube que Israel se aproximava e lançou um ataque contra os israelitas. É muito difícil saber qual é essa Arade, embora seja provavelmente Tel el-

Para uma visão panorâmica da identidade e história dos edomitas e moabitas, ver John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples ofO ld Testament Times, editado por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), pp. 229-58.Aharoni, Land ofthe Bible, pp. 201-2.

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M ilh em vez de Tel Arade, já que esta não existia em tem pos pré- salom ônicos.72 Tel el-Milh situa-se cerca de 19 quilômetros a oeste de Berseba e 96 quilômetros a nordeste de Cades. O rei de Arade estava temeroso porque os exércitos de Israel aproximavam-se de sua cidade "ao longo da estrada para A tarin", um vale que ligava Arade a Cades. Isso parece sugerir que Moisés, apesar de forçado a abandonar os planos de passar pela Estrada dos Reis, estava uma vez mais determinado a penetrar em Canaã pelo sul. Em todo o caso, Jeová concedeu a vitória sobre Arade em Hormá, o mesmo local onde Israel havia sofrido terrível derrota trinta e oito anos antes.

O encontro com os amoritas

A resistência cananéia, contudo, desencorajou Moisés, que retornou ao sul com a intenção de passar a Edom pelo leste. Isso custaria uma viagem de mais de 160 quilômetros até Elate, no mar Vermelho (Golfo de Acaba), e 321 quilômetros de volta para o norte até as planícies de Moabe. É muito difícil reconstruir toda a trajetória de Israel, porque os detalhes são esparsos e muitos locais não mais podem ser identificados. Porém, juntando partes da narrativa de Números 21 com a lista de acampamentos em Números 33, pode-se traçar uma rota geral.73

Após partirem de Hor, os israelitas seguiram em direção leste até Zalmona (es-Salmaneh?), dentro dos limites de Edom (Nm 33.41). De lá foram cerca de 28 quilômetros em direção sudeste até Punom (Feinan), um local de minas de cobre e talvez o local do episódio da serpente de bronze.74 Obote, o próximo local mencionado em ambas as listas (21.10; 33.43), não pode ser localizado com precisão, mas, ao contrário do que pensa a maioria dos estudiosos, provavelmente deve ser localizado ao les-

"2 Ibid., pp. 215-16.Para consultar algumas rotas sugeridas, ver Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan, 1968), no mapa 52. A unidade e integrida­de essencial das várias listas de itinerários são enfatizadas por Albright, "Moses Out of Egypt," BA 36, pp. 58-59. Z. Kallai, por outro lado, partindo da hipótese da crítica de tradição, advoga a idéia de que o relato de Números 33 é um resumo estilizado que se baseou em um conjunto de tradições que circulavam na época, e que cobre desde Êxodo até Números 21. Finalmente, Deuteronômio 1-2 seria uma "versão refinada do conceito que modelou a adaptação de Números 20-21" ("The Wandering-Traditions from Kadesh- Barnea to Canaan: A Study in Biblical Historiography," JJS 33 [1982]: 183-84). O proble­ma com essa hipótese é que ela se apóia sobre uma aceitação indiscriminada das supo­sições da crítica da tradição.

’’ .Aharoni, Land o f the Bible, p. 204.

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te de Edom.75 Caso seja assim, uma viagem de Punon ao sul em direção ao mar Vermelho e outra em direção a Obote não foram mencionadas em momento algum de Números. Porém, Deuteronômio 2.1-8 revela que Is­rael partiu de Hor seguindo a estrada que dá no mar Vermelho; depois voltou-se para o norte, não pela estrada de Arabá ou pela Estrada dos Reis, mas "pela estrada no deserto de M oabe", contornando ao leste a maioria dos centros populacionais de Edom. Depois de Obote veio Iye- Abarim, na fronteira moabita, formado na ocasião pelo Vadi Zered, um riacho permanente que corria dos planaltos ao oriente para dentro do mar Morto, ao sudeste.76 E dali partiu Israel em direção norte, passando pelo rio Arnon (Nm 21.13), e acampou-se no território amorita em Dibom-Gade (Dhiban), a pouco menos de 64 quilômetros do Jordão.

Israel passou pela fronteira oriental de Edom e pelo centro de Moabe sem qualquer incidente. Embora os moabitas não tivessem condições de resistir a Israel, ainda que tentassem, Jeová instruiu Moisés a não lhes fa­zer nenhum mal, pois Ele havia dado aquela terra a Moabe (Dt 2.9). Os moabitas surgiram de uma relação incestuosa entre Ló e sua filha mais velha (Gn 19.37); eram, portanto, parentes próximos dos israelitas. Eles substituíram a população nativa dos planaltos mais altos da região orien­tal, e construíram um reino cuja fronteira ao sul chegava até o rio Zerede. Sua fronteira ao norte variava de Arnon a uma linha que seguia direto para o oriente, e que partia da margem superior do mar Morto. Os habi­tantes mais antigos eram chamados de Emim, um subgrupo, tal qual os enaquins, de uma raça chamada refain. Estes eram aparentemente um povo gigante, cujo nome significa "os terríveis", mas cuja origem é completa­mente desconhecida.77

Ao chegar a Dibom, Israel deparou-se com os terríveis amorreus que, naqueles dias, controlavam toda a Transjordânia entre o Arnon e o Jaboque, com exceção das fortalezas amonitas do oriente. Esses amorreus descen­diam provavelmente de uma antiga migração do povo amurru em dire­ção a Canaã, da qual Abraão deve ter feito parte (ver pp. 16,17). Desde os tempos mais antigos, eles vinham forçando os cananeus nativos a deixa­rem as montanhas, estabelecendo-se naquele local e iniciando uma forma de vida seminômade que, mais tarde, tornou-se urbanizada. Esse quadro

75 Martin Noth, Numbers: A Commentary, tradução de James D. Martin (Philac.iphia: Westminster, 1968), p. 245.

76 Já por inúmeras vezes, Iye Abarin tem sido identificada com el-Medeiyineh, 32 quilô­metros a sudoeste do mar Morto (Aharoni, Land ofthe Bible, p. 202).

77 Conrad L'Heureux, "The Ugaritic and Biblical Rephain," HTR 67 (1974): 265-74.

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permaneceu até os dias de Moisés, como deixa claro o relato dos doze espias (Nm 13.29). Mesmo os mais distantes planaltos haviam sucumbido aos amorreus, e, como resultado, os moabitas e amonitas tiveram de entrincheirar-se e satisfazer-se com uma considerável redução de seus ter­ritórios (Nm 21.26-30).78 Mesmo percebendo o iminente conflito, Moisés decidiu seguir a rota pelas terras amoritas até Beer (localização desconhe­cida), Matana (desconhecida), Naaliel (desconhecida), Bamote (desconhe­cida), e finalmente até Pisga, situada na margem de um alto planalto que possibilita a visão do mar Morto. Essa estrada passava bem próximo à capital dos amorreus, chamada Hesbon, o que sem dúvida provocaria a sua intervenção.

Logo, Moisés solicitou a Siom, rei dos amorreus, permissão para conti­nuar naquele caminho. Esse pedido - feito enquanto Israel achava-se no deserto de Quedemote (Dt 2.26) - foi negado; e Siom lançou-se para atacar Israel em Jaaz (Khirbet el-Medeiyineh?), situada cerca de 32 quilômetros ao sul de Hesbon. Israel prevaleceu e, em pouco tempo, tomou a cidade de Hesbon, matou a Siom, e ocupou todas as terras dos amorreus - desde Arnom até Jazer, a nordeste de Jericó.

A ordem dos acontecimentos e o caminho percorrido são bastante obs­curos, já que os diferentes relatos alistam diferentes lugares.79 A narrativa fundamental - Números 21.13-32 - parece descrever o itinerário de ma­neira resumida (vv. 16-20), registrando a comunicação com Siom, sua per-

Embora equivocado quanto a capacidade de exatidão dos textos históricos referentes aos amoritas da Transjordânia, M. Liverani reconhece que, na tradição de Israel, os amoritas constituíram-se num povo pré-conquistado da região. Sua falha reside em não reconhecer que sua teoria não se fundamenta em bases históricas seguras ("The Amorites," em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman, pp. 125-26).

riJ Veja Eugene H. Merrill, "Numbers", em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F. Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, pp. 239-40. John Van Seters faz a tentativa de harmonizar os relatos de Números 21.21-35, Deuteronômio 2.26-37 e Juizes 11.19-26, utilizando fontes deuteronomistas, sobre as quais a versão de Números foi baseada. O "escritor-redator" de Números inseriu na narrativa um motejo em forma de cântico contra Moabe (Nm 21.27-30), um outro relato "críptico e artificial" a respeito da conquista de Jazer e, por último, a história acerca da guerra contra Ogue, um aconteci­mento que ele extraiu de Deuteronômio 3.1-7 ("The Conquest of Sihon's Kingdom: A Literary Examination,"JBL 91 [1972]: 195). Uma variante disso - que Números 21.21-25 é a fonte de outras duas narrativas acerca da campanha contra Seom - é sugerida por John R. Bartlett, "The Conquest of Sihon's Kingdom: A Literary Re-examination," JBL 97 (1978): 347-51. Esses fatos apenas corroboram mais a verdade da tradição bíblica, embora até mesmo Bartlett, que nega a autoria mosaica de Números e Deuteronômio, falhe em admi­tir que o mesmo autor possa ter contado o mesmo acontecimento com ênfases diferentes.

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tinácia e sua derrota em Jaaz e em outros lugares (vv. 21-32). O local de onde foi feita a primeira solicitação de passagem, o deserto de Quedemote, não se encontra em Números, mas consta no discurso pronunciado por Moisés sobre a conquista da Transjordânia, registrado em Deuteronômio 2.26. Talvez tenha sido esse o primeiro acampamento após Dibon-Gade e o anterior a Beer. A lista dos acampamentos registrados em Números 33 não menciona nenhum dos lugares descritos em Números 21.13-20, mas acrescenta Dibon-Gade, a primeira parada ao norte de Arnom (21.13); Almom Diblataim (Khirbet Dleilat esh-Sherqiyeh), dezenove quilômetros ao norte de Dibom-Gade; e os "montes de Abarim, defronte de Nebo" (33.47). Essas montanhas são, ao que tudo indica, uma cordilheira da qual Pisga (21.20) e Nebo (Dt 32.49) constituem os pontos mais altos. Foi prova­velmente desses locais que Israel partiu a fim de capturar Hesbon, Jazer, Aroer e todas as demais cidades controladas pelos amorreus.

Ao norte do reino de Siom estava um outro rei amorreu, Og de Basã. Sua jurisdição estendia-se de Jazer até o extremo norte do rio Iarmuque, e entre o Jordão e o oeste, tendo o reino amonita ao oriente. Tecnicamente, Basã situava-se ao norte do Iarmuque, mas parece que na época da con­quista de Israel, Og também já controlava a região sul do Iarmuque, co­nhecida por Gileade. Tanto Basã quanto Gileade eram constituídas de pla­naltos bem irrigados com florestas verdejantes, pastagens e terrenos culti- váveis. O local foi tão bem-visto pelos israelitas que Rúben, Gade e a me­tade da tribo de Manassés decidiram ali se estabelecer em vez de cruza­rem o Jordão.

A marcha de Israel em direção a Basan foi tão rápida que Og não pôde interceptá-los até que chegassem a Edrei, sua cidade capital, aproximada­mente 48 quilômetros a sudeste do mar da Galiléia. Neste local o rei gi­gante foi derrotado e destruído (Nm 21.35), e as sessenta cidades foram tomadas (Dt 3.4). Israel controlou assim toda a Transjordânia das terras dos amorreus, desde o vale do Arnon, ao sul, até o monte Hermon, ao norte, uma distância de aproximadamente 241 quilômetros.

O encontro com M oabe

Quando ficou claro para Balaque, rei de Moabe, que Israel ficara no controle de todo o norte da Transjordânia, parte inclusive de seu reino, temeu que o seu território fosse o próximo a sucumbir. Por outro lado, a vitória sobre Siom havia finalmente removido os amorreus das terras do norte de Arnon, um território que Moabe vinha exigindo havia bastante tempo. Tentando afastar a ameaça do povo israelita e retomar os territóri­os agora desocupados na região oriental do mar Morto (inclusive as planí­

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cies de Moabe), Balaque alugou os serviços de Balaão, um renomado adi­vinho de Petor. Esta cidade era provavelmente a Pitru mencionada nos textos acadianos,80 cuja localização ficava em algum ponto próximo ao rio Eufrates, mais precisamente na alta Mesopotâmia (ver Dt 23.4). Escritos cuneiformes oriundos da importante cidade-estado de Mari revelam a existência de uma corporação de profetas que se especializavam em vári­as habilidades, inclusive na previsão do futuro.81 Os documentos datam de aproximadamente 1700 a.C., embora tais profetas e suas técnicas para prever o futuro tenham sido detectados no oriente do Mediterrâneo há centenas de anos antes de 1700 a.C. Portanto, o papel vivido por Balaão no contexto histórico de Moabe enquadra-se perfeitamente com as informa­ções de fontes extrabíblicas.

A tarefa solicitada por Balaque foi basicamente impetrar maldições con­tra Israel em nome do próprio Jeová, Deus de Israel. Imagina-se que a técnica usada por Balaão consistia em usar o poder da palavra proferida unida à capacidade de adivinhar o futuro, trazendo à existência o que estava sendo solicitado. Assim, Balaão diferenciava-se do nabi ou rõ'eh do Antigo Testamento, que eram apenas mensageiros que proclamavam a vontade de Deus, mas a manipulavam. Balaão agiu, ao menos, como um bãrü ou mahhú - um profeta que se utilizava de vários meios para discernir e interpretar os presságios. Ele também era visto como um manipulador, ou seja, alguém que possuía a capacidade de persuadir os deuses.82 Uma vez que Jeová era o Deus de Israel, era evidente que Balaão passasse a agir em nome de Jeová a fim de alcançar a solicitação do rei Balaque. Porém tal

50 William F. Albright, Yahiueh and the Gods ofCanaan (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1969), p. 15, n. 38.Herbert B. Huffmon, "Prophecy in the Mari Letters," BA 31 (1968): 101-24; John F. Craghan, "The ARM X 'Prophetic' Texts: Their Media, Style and Structure," JANES 6 (1974): 39-58.

52 Para um maior conhecimento do profetismo e adivinhação na Mesopotâmia, ver A. Leo Oppenheim, Ancient Mesopotamia (Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. 206-27. Balaão praticava uma forma de encantamento em que combinava algumas palavras ritualísticas com ações, o que supostamente ocasionava uma mudança no curso dos eventos divinos. Ver H.W.F. Saggs, The Greatness That Was Babylon (New York: New American Library, 1968), pp. 311-14; Frederick L. Moriarty, "Word as Power in the Ancient Near East," em A Light unto My Path, editado por Howard N. Bream, Ralph D. Heim e Carey A. Moore (Philadelphia: Temple University Press, 1974), pp. 345-62. Para uma confirmação sobre as funções de advinhador e amaldiçoador de Balaão, ver Jacob Hoftijzer, "The Prophet Balaam in a 6th Century Aramaic Inscription," BA 39 (1976): 12-13.

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não sucedeu, e as maldições que Balaão intentava pronunciar tornaram-se bênçãos em seus lábios; e ele voltou em desgraça para Petor. Parece que ele retornou a Moabe tempos depois, e foi um dos responsáveis por enco­rajar Israel a adorar Baal em Petor, um centro de culto situado a poucos quilômetros do Jordão (Nm 25; 31.8,16; 2 Pe 2.15; Jd 11; Ap 2.14). Os midianitas sofreram as conseqüências por participarem nesta sedução de Israel (Nm 25.6,16-18), e muitos deles pereceram juntamente com Balaão (Nm 31.1-12). E irônico que o mesmo povo que serviu de refúgio para Moisés, e de quem este tomou para si uma mulher como esposa, se tornas­se um dos principais causadores da mais séria e importante apostasia de Israel após o monte Sinai. \

Terminada essa crise, Moisés passou a dar atenção à conquista de Canaã. Ele mesmo não participaria da campanha por sua intemperança ao ferir a rocha, em vez de falar-lhe. Mas como mediador da aliança, ainda possuía a responsabilidade de providenciar a aquisição da terra e a acomodação do povo no local. Antecipando-se às decisões de Moisés, os líderes das tribos de Rúben e Gade (e mais tarde a tribo de Manassés) solicitaram permissão para continuar na Transjordânia, tendo sua porção repartida naquela região. O pedido baseava-se especialmente no fato de ser aquela região bastante apropriada para a pecuária. Visto que eles eram criadores de gado, não haveria razão para buscarem uma herança em outro local. Moisés assentiu e tomou providências para repartir-lhes a terra, mas exi­giu que se comprometessem a ajudar as demais tribos nas campanhas de conquista de Canaã.

A Rúben e Gade coube todo o território entre Arnon ao sul e Jazer ao norte, isto é, toda a região que anteriormente era governada por Siom, rei de Hesbon. Em virtude de as cidades herdadas por Rúben e Gade serem espalhadas e misturadas umas com as outras (Nm 32.34-38), as duas tri­bos foram progressivamente perdendo suas identidades independentes. M ais tarde, Josué procurou corrig ir o problem a procedendo uma redistribuição (Js 13.8-33). O território oriental de Manassés, dividido en­tre os clãs de Maquir e Jair, era substancialmente idêntico ao antigo reino de Ogue. Os maquiritas tomaram posse da parte sul, ou seja, de Gileade até as fronteiras de Rúben e Gade. Os jairitas receberam como herança a região ao norte de Gileade, definida mais precisamente como a cidade de Argob, pertencente ao reino de Ogue. Seus limites eram o monte Hermon ao norte e os pequenos reinos de Maaca e Gesur ao sul, bem acima do Iarmuque (Dt 3.13,14). Um terceiro elemento, conhecido por Nobá - que aparentemente não tinha ligação alguma com Manassés - apoderou-se de Quenate e das vilas ao seu redor (Nm 32.42). Quenate situava-se cerca de

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O Ê xodo : N a scim ento d e uma N ação 8 7

96 quilômetros ao oriente do mar da Galiléia, penetrando bastante o de­serto Haurã.

Enfim, chegou o momento da morte de Moisés. Após ter resolvido so­bre a tática de conquista, as cidades de refúgio, e a justa alocação para as tribos ocidentais, Moisés recapitulou todas as instruções em seu discurso final à nação de Israel, registrado solenemente no livro de Deuteronômio. Embora para alguns este livro não tenha sido escrito por Moisés, mas por um historiador anônimo da linha "deuteronomista" que viveu no sétimo século, tornando-se corolários essenciais para tais críticos, o fato é que não há nada no livro que necessariamente conduza a tais conclusões, tanto na forma quanto no conteúdo em si. Os detalhes e o estilo do livro estão de acordo com o que é conhecido da Era do Bronze Recente de Canaã; é con­sistente com o restante do Pentateuco; e provê uma conclusão literária satisfatória para os escritos de Moisés. A geração mais antiga já havia morrido, e a nova precisava de uma expressão mais recente da aliança com Jeová. Deuteronômio é uma iniciativa em favor da aliança à qual a nação de Israel, às vésperas da conquista, poderia e deveria responder.83 Para documentar a fidelidade de Deus a respeito de seu pacto, e o signifi­cado de Israel na História, Moisés escreveu o livro de Gênesis e o restante da Torá nesse período.

' Peter C. Craigie, The Book o f Deuteronomy, New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1976), pp. 30-32.

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A C O N Q U I S T A E A O C U P A Ç Ã O D E C A N A A

A terra como o cum prim ento da prom essa O m undo antigo do O riente Médio

Mesopotâmia.M itani Os hititas 0$ estados sírios Egito Os 'apiru

Os 'apiru e a conquista A estratégia de Josué

A campanha de Jericó A campanha central Siquém e a renovação da aliança A campanha em direção sul A campanha em direção norte

A data da conquista de Josué A cam panha contra os enaquins M odelos alternativos da conquista e ocupação

O modelo histórico-tradicional O modelo sociológico

A terra repartida entre as tribos A distribuição em larga escala A distribuição da terra para cada tribo As cidades de refúgio As cidades dos levitas

A segunda renovação da aliança em Siquém

A terra como o cumprimento da promessa

Um elemento central e indispensável da promessa feita por Jeová aos patriarcas era a ocupação perpétua da terra de Canaã. Para lá foi que Ele conduziu Abraão desde Arã; abençoou-o com uma aliança e descendên­cia, dizendo-lhe que embora seus descendentes viessem a sofrer sob o jugo de escravidão estrangeira por quatrocentos anos, um dia eles volta­riam para Canaã. Após muitos anos, o próprio Jeová apareceu a Moisés e o comissionou para conduzir seu povo Israel para fora do Egito, levan- do-o para a terra da promessa. Israel era tido por Jeová como seu filho. Mas seu filho havia se tornado escravo de um outro senhor, duro e exi­

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gente, que não admitia reconhecer os direitos de Jeová sobre o seu pró­prio povo. Por conseguinte, em uma demonstração de poder e amor, Jeová sacudiu o jugo de seu povo, derrotando o opressor e libertando os hebreus através da passagem pelo mar de Juncos, até que chegaram ao local de­terminado para a aliança - o Sinai. Foi lá que Ele afirmou sua soberania sobre os descendentes de Abraão, e ofereceu-lhes o grande privilégio de se tornarem seus servos na grandiosa missão de reconciliar a humanida­de consigo mesmo. A aceitação por parte de Israel gerou uma aliança, um contrato mediante o qual Israel e Jeová ligavam-se e obrigavam-se mutuamente, e era garantido a Israel a apropriação de todas as promes­sas feitas aos patriarcas. Os hebreus haviam se tornado uma nação, e como tal passaram a ter um rei, o próprio Jeová, e uma constituição, o livro da aliança ou concerto (Êx 20-23), e, mais tarde, o Deuteronômio. Tudo o que eles precisavam agora era de uma terra onde pudessem go­zar tanto a nacionalidade quanto a estabilidade. Até mesmo a terra ain­da era uma promessa a ser cumprida. O que Israel precisava fazer era tomar posse da ordem divina e partir para a ocupação da terra.

Israel permaneceu nas planícies de Moabe bem às vésperas da ocupa­ção e conquista da terra. Moisés era morto e o manto de mediador da ali­ança agora repousava sobre os ombros de Josué. Animado e encorajado pela promessa de Jeová de que estaria sempre com ele - como havia esta­do com Moisés - , Josué começa a planejar a estratégia que resultaria na conquista e ocupação da terra da promessa.

O mundo antigo do Oriente Médio

Antes de dar continuidade ao relato bíblico, é im portante notar com atenção o universo geopolítico em que tais fatos aconteceram. Isto é necessário não somente porque a história bíblica é parte de um vasto horizonte histórico, mas também por ser possível integrar a história de Israel com as de outros povos e eventos contemporâneos. Um proble­ma encontrado é que a data tradicional estabelecida para a conquista (aprox. 1406-1399; ver p. 149), de modo sim ilar ao evento do êxodo, tem sido o alvo de severa crítica por parte de alguns estudiosos moder­nos, que preferem adotar o ano 1250 ou até outra data mais recente. É evidente que a narrativa da conquista deve refletir de certa forma o antigo mundo do Oriente Médio. Por outro lado, e igualm ente im por­tante, uma cuidadosa observação do ambiente em que se encontra o livro de Josué aumenta a compreensão de detalhes desta parte do A nti­go Testamento.

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M esopotâm ia

Embora a Mesopotâmia tenha apenas uma importância secundária para Canaã na Era do Bronze Recente, algumas observações podem ser de ex­trema valia. Logo após o saque da Babilônia efetuado pelos hititas sob Mursilis, em 1595, o vácuo criado na Mesopotâmia central foi rapidamen­te preenchido por um povo montanhês do oriente chamado cassitas, que dominou o local até cerca de 1150 a.C.1 Embora os cassitas não fossem tão bárbaros quanto às vezes são descritos, a maior parte de suas leis é com­pletamente obscura. São particularmente interessantes algumas correspon­dências enviadas pelo rei cassita Burnaburias II ao rei Amenotepe III, do Egito. Essa carta, que foi descoberta nos arquivos de El-Amarna, é um protesto contra a aliança estabelecida entre o Egito e a Assíria, o principal inimigo de Burnaburias, situado ao norte.2 Ele escreveu uma outra carta a Amenotepe IV, na qual reclamava o fato de seus mensageiros - que na ocasião viajavam por toda a terra de Canaã, na época uma província egíp­cia ostensivamente vigiada - terem sido tratados com grande descaso.3 Essa carta, que deve ser datada perto de 1370, reflete as condições do final do período da conquista que, segundo a cronologia bíblica tradicional, foi uma fase descrita pelo próprio Antigo Testamento como um período peri­goso e de desordem legal.

Ao norte da Babilônia, a Assíria com eçava a despertar da longa dormência provocada pela política e supremacia cultural dos hurrianos. Um grande avivamento veio por intermédio de Assur-uballit (1365-1330), que deu início a uma campanha de expansão contra o reino hurriano de Mitani, ao ocidente, e contra o reino cassita de Babilônia, ao sul. Ele escre­veu pelo menos duas cartas ao rei Amenotepe IV, pedindo-lhe não apenas ouro, mas também outros presentes, e por fim (mesmo relutante) entre­gou a própria filha para ser esposa do monarca egípcio.4 Sem dúvida o casamento foi realizado com o objetivo de obter o apoio egípcio em suas

1 Para uma descrição dessa era tão obscura da história da Babilônia, ver em C.J. Gadd, "Hammurabi and the End of His Dynasty," no Cambridge Ancient History, 3a Edição, editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: University Press, 1973), vol. 2, parte 1, pp. 224-27; Margareth S. Drower, "Syria c. 1550 - 1500 B.C.," CAH 2.1, pp. 437-44; D. J. Wiseman, "Assyria and Babylonia c. 1200-1000 B.C.," no CAH 2.1, pp. 443-47.

2 Jorgen Alexander Knudtzon, Die El-Amarna Tafeln, 2 vols. (Aalen: Otto Zeller, 1964 reedição),# 9.

3 Ibid., # 84 Ibid., # 16; Albert Kirk Grayson, Assyrian Royal Inscriptions: (W iesbaden: Otto

Harrassowitz, 1972), vol. 1, pp. 47-49, # 10-11.

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campanhas militares contra os hum anos e os cassitas. Contudo, não há registro de que tenha existido qualquer envolvimento de Assur-uballit em Canaã, nem que a Assíria tenha querido efetuar qualquer campanha mili­tar naquela direção senão nos anos do reinado de Tiglate-Pileser I (1115- 1077), próximo ao fim do período dos juizes de Israel.

M itani

Mitani, o reino dos povos hurrianos, situava-se como um reino tampão entre a Assíria ao leste e os hititas ao oeste. Estando ao longo dos rios Habor e Balik, ambos tributários do Eufrates superior, Mitani alcançou seu apogeu e grande influência durante o período da Era de Amarna (aprox. 1400-1350), ou seja, precisamente na época da conquista de Israel.5 Por estar localizado em uma região praticamente indefensável, o reino de Mitani era constantemente varrido pela primeira potência que o atacasse. E improvável que este reino tenha representado alguma ameaça para Canaã.

Os hititas

Anatólia, agora a porção central da Turquia, era o lar dos hititas. Esse povo indo-europeu de origem ainda incerta, tendo assumido o controle de Hatti, a população original, já havia criado um reino de estabilidade e alto poder político-cultural em cerca de 1800 a.C.6 Após muitos anos de declínio, o Médio Reinado Hitita surgiu e não só reafirmou o poder hitita em Anatólia, como também iniciou um programa imperialístico de ex­pansão territorial em várias direções. De grande importância para a histó­ria de Israel foi o movimento em direção sul e sudeste promovido por Tudalias II que, por volta de 1440, atacou e capturou Halab (Aleppo), de Mitani, como também a maior parte da Síria dominada por Amenotepe II, rei do Egito.7 Porém, esse domínio foi de curta duração, uma vez que os monarcas egípcios e de Mitani fecharam acordos militares para reaverem as terras ocupadas. Além disso, os vários levantes e inquietações internas

5 J.R. Kupper, "Northern Mesopotamia and Syria," em CAH 2.1, pp. 36-41; Drower, "Syria," em CAH 2.1, pp. 417-36; A. Goetze, "The Sruggle for the Domination of Syria (1400-1300 B.C.)", em CAH 2.2, pp. 1-8.

- O.R. Gurney, The Hitites (Baltimore: Penguin, 1964); Seton Lloyd, Early Highland Peoples o f Anatólia (New York: McGraw-Hill, 1967).O. R. Gurney, "Anatólia c. 1600-1380 B. C.," em CAH 2.1, p. 676.

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na região forçaram Tudalias e seus sucessores a abrir mão de suas guarni­ções na Síria.

Por fim, essas perdas foram restabelecidas por um rei hitita, comumente apontado como o fundador do Império hitita, Suppiluliumas (1380-1346).8 Foi ele quem conduziu os hititas a uma posição de preeminência no extre­mo oriente do mundo mediterrâneo, precisamente no mesmo tempo em que Josué conquistava e se estabelecia em Canaã. Essa supremacia foi al­cançada por meio de ações militares e por tratados internacionais que re­giam a situação entre suseranos e vassalos. Aproximadamente em seu pri­meiro ano, Suppiluliumas lançou-se em uma campanha militar experi­mental na Síria, que na época era dominada teoricamente pelo rei de Mitani, Tusratta. Mas segundo uma carta escrita por Tusratta para Amenotepe III, rei do Egito, os hititas foram forçados a retirar-se.9 Os egípcios e os hititas, nesse interregno, desenvolveram relações bastante amigáveis. Suppiluliu­mas, por exemplo, escreveu uma carta congratulando Amenotepe IV por sua ascensão ao trono egípcio;10 e este, apesar de ligado por casamento ao rei Tusratta, não interferiu nos problemas entre os hititas e Mitani.

Finalmente, para não mais ser restringido, o ambicioso monarca hitita lançou uma invasão de grandes proporções na Síria (aprox. 1365) e apode- rou-se de toda a região entre o Mediterrâneo e o Eufrates, dominando ao sul até o Líbano. Isto causou um alarme considerável em Gubla (Biblos), como pode ser visto na desesperada correspondência entre Rib-Adda de G ubla e A m enotepe IV.11 A fim de não antagonizar-se com o Egito, Suppiluliumas resolveu não mais estender sua campanha para o sul. Vis­to que Amenotepe estava nessa época extremamente envolvido em ques­tões religiosas e filosóficas, os hititas nada tinham a temer. Essa situação provocou uma espécie de vácuo em Canaã, ou seja, não havia ali forte dominação de superpotências, o que permitiria o livre percurso de Israel para estabelecer-se ali como reino.

Os estados sírios

Os estados sírios achavam-se pressionados entre os hititas e o povo de Mitani. Halab, juntamente com Alalaque e Tunip, tornou-se vassalo dos

8 Goetze, "Domination of Syria", em CAH 2.2, pp. 5-20.9 Knudtzon, El-Amarna, # 17.10 Ibid., #41.11 Ibid., # 68-96; Ronald F. Youngblood, "The Correspondence of Rib-Haddi, Prince of

Byblos", dissertação para obtenção de Ph.D., Dropsie College, 1961.

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hititas. A princípio, Ugarite permaneceu independente dos hititas e dos egíp­cios, mas por fim aliou-se a eles. O estado de Amurru, entretanto, tirou van­tagem desse momento em que as grandes potências não se pronunciavam para expandir sua influência desde o Médio Orontes até o Mediterrâneo. Seu rei, 'Abdi-Asirta, tornou-se uma grande ameaça a Rib-Adda, e seu filho Aziru finalmente tomou Gubla. Aziru, então, fez um tratado com Niqmaddu de Ugarite, no qual ambos decidiram participar da mesma sorte dos hititas; isto disparou uma resposta dos mitanitas que, por sua vez, provocou uma retaliação por parte dos hititas. Suppilulium as fez um tratado com Niqmaddu e então atacou a capital de Mitani, Wassugani, mas o rei Tusratta conseguiu escapar. Então Suppiluliumas manteve a Síria sob forte domina­ção hitita e até poderia ter avançado por Canaã em direção ao Egito, o que não ocorreu devido à crescente ameaça dos assírios, fator que desviou sua atenção de marchar para o oriente até a sua morte.12

Egito

Os egípcios também desempenharam função significativa durante o período da conquista. E estranho que a história egípcia não relate em nenhum lugar o êxodo ou a conquista, mas dado que os egípcios tendi­am a registrar somente as vitórias e não as derrotas, não há porquê es- pantar-se da omissão. Amenotepe II (1450-1425), o faraó do êxodo, não tinha mais qualquer interesse em empreender uma campanha na Pales­tina após seu quinto ano de reinado - o ano do êxodo. Seu filho Tutmose IV (1425-1417) aparentemente lançou-se em uma campanha no extremo norte - em Arã-Naharaim. Isso pode ter acontecido enquanto Israel ain­da estava no deserto do Sinai, não ocasionando qualquer efeito na con­quista. Amenotepe III (1417-1379) reinava durante o período em que Is­rael invadiu e ocupou Canaã. Porém sua atenção não se voltava para defender seus interesses em Canaã, mas para as artes e para a caça. Qual­quer que tenha sido a atividade militar na ocasião, esta foi dirigida con­tra a Núbia ao sul. Isto se tornou providencial para Israel, pois, confor­me já vimos anteriormente, tanto os mitanitas quanto os hititas - e, mais tarde, os assírios - estavam em sua maior parte discordando uns dos outros, tornando-se incapazes de ocupar o espaço em Canaã produzido pelo desinteresse do Egito. Apenas os cananeus, completamente desor­ganizados entre si, estavam no caminho.

12 Quanto ao reino de Suppiluliumas e seu relacionamento com a Síria, ver em Kenneth A. Kitchen, Suppilulinma and Amarna Pharaohs (Liverpool: University of Liverpool, 1962).

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O destino dos egípcios em nada mudou com a ascensão de Amenotepe IV (1379-1362).13 Filho de Amenotepe III e de uma rainha mitanita chama­da Tiy, ele tornou-se a figura mais intrigante da história do antigo Oriente Médio. Sua maior contribuição não foi no campo político, militar ou cul­tural, mas no desenvolvimento de um quase monoteísmo ao redor do deus Re-Harakhte, uma divindade representada por Aton ou por um disco so­lar. Ele centralizou o culto em uma cidade construída especificamente para esse fim, chamada Akhetaton (el-Amarna) e mudou seu próprio nome para Akhenaten, para se adequar melhor à significação de seu compromisso. Tamanho era seu interesse pela religião que se tornou indiferente aos ne­gócios externos.

Muitas das cartas de Amarna, encontradas em seus arquivos reais em Akhetaton, são oriundas de príncipes cananeus que, reconhecendo sua soberania formal sobre eles, apelavam a Akhenaten para sair em seu auxí­lio e livrá-los de toda sorte de perigos. Tais apelos, também enviados a seu pai, ficaram sem resposta justamente porque os faraós estavam mais pre­ocupados com seus respectivos lazeres. E importante notar que as datas relativas a Amenotepe III e Akhenaten coincidem com a tradicional data da conquista. O outro lado da moeda da indiferença egípcia pelos negóci­os em Canaã revela, sem dúvida, a mão de Jeová, que providenciou as circunstâncias apropriadas para que seu povo pudesse possuir a terra que Ele lhes havia prometido.

Os 'apiru

Nossa perspectiva do mundo do Oriente Médio antes e durante a con­quista não pode ser concluída sem a observação de alguns eventos na própria Canaã. Isso envolve primeiramente uma consideração dos 'apiru ou habiru - um povo cuja presença destruidora e maciça em Canaã é gritante nas cartas de Amarna. Eles são descritos como mercenários sem destino, que algumas vezes se tornavam uma ameaça para todos os esta­dos cananeus, e outras vezes lutavam em lados opostos nas guerras en­tre cidades.

Quando a existência dos 'apiru foi pela primeira vez descoberta nos textos de Amarna, muitos estudiosos da Bíblia imediatamente concluíram que, após uma longa espera, uma evidência extrabíblica havia sido encon­

13 Para um relato envolvente da história, cultura e contribuição de Amenotepe IV (Akhenaten), ver John A. Wilson, The Culture o f Ancient Egypt (Chicago: University of Chicago Press, 1951), pp. 213-31.

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.4 C onquista e a O cupação d e C anaã 9 7

trada para confirmar a conquista de Canaã por Israel.14 Isto se baseava na coincidência da data das cartas com a cronologia tradicional da conquista e na admirável similaridade lingüística entre 'apiru (ou Habiru) e 'ibri ("hebreu"). Contudo, muito tempo antes, referências aos 'apiru já haviam sido confirmadas, oriundas do antigo mundo do Oriente Médio, tão anti­gas quanto o antigo Período Acadiano (cerca de 2360-2180). Em muitas partes dos textos o nome aparece na forma logográfica SA.GAZ, a forma preferida nas cartas de Amarna, com exceção das que vinham de Abdi- Hepa, rei de Jerusalém.15 Etimologicamente SA.GAZ está ligado a um verbo sumeriano que significa "assassinar; matar"; um LUSA.GAZ era um assas­sino. No acadiano essa forma aparece como habbatu, "ladrão", ou talvez "pessoa despejada".16 A forma silábica habiru/hapiru/ápiru é cronológica e geograficamente espalhada. A etimologia acadiana não é clara, embora William Albright tenha associado o termo a epem ("poeira"; cf. H eb .'apar) e sugerido que os 'apiru fossem caravaneiros, ou "homens do p ó".17 Essa sugestão não tem achado apoio universal.

Está claro que nenhum dos termos usados para descrever os 'apiru têm qualquer significação étnica. Os 'apiru não eram uma nacionalidade, mas provavelmente uma classe social. Eles são geralmente olhados com desprezo, como viandantes sem raízes, mercenários que vendiam seus serviços a quem mais lhes oferecesse. Este é o quadro que emerge muito claramente dos textos de Amarna.18

A questão do relacionamento dos 'apiru com os hebreus é de particular importância. É óbvio que os termos destes povos não são idênticos, visto que 'apiru aparece na história bem antes de qualquer data plausível para Abraão e existe em números muito além do que qualquer população de hebreus concebível, pelo menos até o tempo da conquista. Além disso, dificilmente os hábitos e costumes dos 'apiru se enquadrariam com o re­trato bíblico dos hebreus. Finalmente, os termos 'apiru e 'ibri, embora

14 Para um relato que procura relacionar a história de Israel como sendo a dos 'apiru, ver Moshe Greenberg, The Hab/píru (New Haven: American Oriental Society, 1955), pp. 3-12.

15 Para explicar a exceção, William L. Moran propõe a idéia que o escriba era de origem síria, da mesma forma que seu senhor ("The Syrian Scribe of the Jerusalem Amarna Letters," em Unity and Diversity, editado por Hans Goedicke e J.J.M. Roberts [Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1975], p. 156).

16 Assyrian Dictionary, editado por Ignace J. Gelb et al. (Chicago: Oriental Institute, 1956), vol. H, pp. 13-14.

17 William F. Albright, "Abraham the Hebrew," BASOR 163 (1961): 36-54.18 Greenberg, Hab/píru, pp. 70-76.

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fonética e lingüisticamente semelhantes, não parecem ter uma etimologia comum. Como já sugerido, a etimologia de 'apiru é desconhecida,19 mas 'ibri parece voltar ao ancestral de Abraão, Eber ('eber). Um hebreu, então, era um heberita. Isso parece ser quase certo à luz de Gênesis 10.21, que diz ter sido Sem "o pai de todos os filhos de Eber". A genealogia semita de Gênesis 11.10-26 começa com Sem e termina com Abraão, mas próximo ao meio dá ênfase a Eber (vv. 14-17). Parece que o genealogista quis informar ser Abraão um semita cuja ancestralidade derivava de Eber, tornando-o um eberita, ou seja, hebreu.20

Em virtude da semelhança entre 'apiru e 'ibri, é bem provável que este tenha sido ocasionalm ente confundido com aquele.21 O estilo de vida patriarcal pode ter levado alguns observadores a concluir que Abraão, o hebreu, foi na verdade Abraão, o 'apiru. Talvez isso explique por que no Antigo Testamento os israelitas raram ente se referiam a si mesmos como hebreus, pois se tratava de um epíteto usado norm al­mente pelos estrangeiros, na maioria das vezes com sentido pejorativo. Por exem plo, quando a esposa de Potifar, movida de frustração, acu­sou José de tê-la assed iado, ela o descreveu com o "h eb reu " (Gn39.14,17). Da mesma m aneira a filha de Faraó referiu-se a M oisés (Êx 2.6), e os filisteus a Israel (1 Sm 4.6,9).

Apesar de os estranhos não haverem distinguido de m aneira bem clara os 'apiru dos hebreus, os israelitas eram bem conscientes de tal diferença. Percebe-se isto, conforme já proposto, em sua relutância em chamarem a si próprios de hebreus, como se vê em uma ou duas passa­gens em que os israelitas falam acerca dos hebreus (mais corretam ente, 'apiru), descrevendo um povo que não eles próprios. Em 1 Samuel 13, Saul manda tocar a trombeta de guerra e diz: "Ouçam isso os hebreus" (v. 3). Que a passagem não é uma referência aos israelitas é confirmada pela subseqüente d iferenciação entre "o s hom ens de Israe l" e os "hebreus" (vv. 6,7). Toda a passagem indica que Saul, já nesse seu iní­cio de carreira e em face da ameaça dos filisteus, alugou em seu favor tropas de m ercenários para lutar ao lado de sua m ilícia israelita. Esses mercenários bem poderiam ter sido os 'apiru, em vez de os hebreus. A natureza instável dos 'apiru, uma peculiaridade atestada, parece refle- tir-se em um encontro com os filisteus: "...e também estes se ajuntaram com os israelitas que estavam com Saul e Jônatas" (1 Sm 14.21). Sem

19 Ibid., pp. 90-91.20 Ibid., pp. 92-93.21 Ibid., pp. 93-94, n. 44.

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dúvida israelitas e hebreus, nessas passagens, não podem ser vistos como um mesmo povo.22

Os 'apiru e a conquista

Enquanto os israelitas faziam clara distinção entre si e os 'apiru, os escribas que compuseram a correspondência de Amarna a tinham muito mal definida. Visto que tal correspondência se refere às condições caóticas encontradas em Canaã na primeira metade do século XIV - condições atri­buídas na maior parte aos ataques violentos feitos pelos 'apiru - , e que a data tradicional da conquista e ocupação de Canaã por Israel corresponde exatamente a esse período, é quase impossível não associar o tumulto que se passou em Canaã aos israelitas e 'apiru, ainda que ambos não sejam identificados separadamente nos textos de Amarna. Em outras palavras, para os cananeus, os 'apiru eram os hebreus e os hebreus eram os 'apiru.

Esse ponto de vista é tão forte que alguns defensores da data mais re­cente para o êxodo, conforme visto anteriormente (p. 66), afirmam que a conquista feita por Josué precede o êxodo de Moisés.23 Além de reivindi­carem uma reinterpretação radical da tradição bíblica - que afirma terem sido ambos contemporâneos - essa tese exige necessariamente a rejeição das doze tribos no êxodo, da aliança feita no Sinai e da peregrinação no deserto, em favor de uma hipótese em que apenas algumas tribos teriam participado do êxodo, e as restantes teriam sido as que contribuíram para a conquista bem no início. Porém, seria muito mais satisfatório abandonar a hipótese de um êxodo mais recente e ver nos documentos de Amarna uma evidência extrabíblica para a participação das doze tribos na con­quista de Canaã desde seus primórdios.

Contudo, esta posição também não está isenta de problemas, uma vez que o livro de Josué parece não se referir aos 'apiru; nem o comportamen­to destes, conforme claramente descrito nos textos de Amarna, pode en­quadrar-se com a narrativa bíblica dos israelitas. A falta de referência aos 'apiru não é uma grande dificuldade, desde que a maior parte do período da conquista antecede a era de Amarna por cerca de vinte e cinco anos,

22 Essa posição tem sido não apenas exposta, mas forçosamente defendida por Norman K. Gottwald, The Tribes ofYahweh (Mary-knoll, N.Y.: Orbis, 1979), pp. 417-25. Para uma excelente discussão acerca da evolução dos termos que se referem aos hebreus, ver em Nadav Na'aman, "Habiru and Hebrews: The Transfer of a Social Term to the Literary Sphere," JNES 45 (1986): 271-88.

23 Por exemplo, T.J. Meek, Hebrew Origins (New York: Harper and Row, 1960), pp. 21-23.

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precedendo, portanto, as referências mais antigas aos 'apiru em Canaã.24 Além disso, é característico da historiografia bíblica ser extremamente se­letiva quanto a detalhes. Caso a presença dos 'apiru tenha sido considera­da pelo historiador bíblico como pouco relevante para o propósito reden­tor da conquista, então eles seriam completamente esquecidos. Algumas grandes potências como os cassitas, os mitanitas e os egípcios estavam no mínimo envolvidos indiretamente nos negócios em Canaã no início do décim o qu arto sécu lo , e m esm o assim nem um sequ er d esses envolvimentos foi mencionado no livro de Josué. Também não é possível argumentar que a razão para tais omissões é que a conquista ocorreu de fato em uma data mais recente, no séc XIII, porque as grandes potências envolvidas da época - Assíria e Egito - também não são mencionadas. Tudo o que pode ser dito é que as preferências particulares do historiador foram o fator determinante para a escolha de quem iria ou não ser incluí­do em seu relato. Além disso, pode ser que o historiador tenha agrupado os 'apiru (como ele também o faz com outros povos) juntamente com os cananeus, hititas, amoritas ou outros.

Com respeito à descrição dos 'apiru feita pelos textos de Amarna e suas diferenças do que está registrado na Bíblia acerca dos israelitas, é necessá­rio dizer que esta diferença apenas confirma nosso argumento de que os 'apiru e os hebreus, apesar de terem muito em comum, eram povos essen­cialmente distintos. Parece que os 'apiru estiveram em Canaã antes da era de Am arna e se punham freqüentem ente ao lado de reis cananeus opositores. Os israelitas entraram em Canaã em bloco, de uma só vez, e foram considerados hostis aos cananeus. Não se pode conhecer hoje como os israelitas e os 'apiru relacionavam-se durante e após a conquista, mas é provável que os ápiru, percebendo o grande sucesso dos israelitas em Canaã, tenham se mudado para outras áreas, seguindo o tradicional estilo de vida nômade. Ou, como já foi proposto, permaneceram (pelo menos até algum ponto) e foram assimilados por Israel ou passaram a servi-los como mercenários.

É importante notar que a atividade dos 'apiru é comprovada nos mate­riais de Amarna oriundos de duas regiões do litoral leste do Mediterrâneo- Síria e Palestina. Visto que a conquista não se estendeu para além da Palestina, as cartas sírias não possuem relevância imediata. Quanto a al­

24 Greenberg (Habi/piru, p. 74, n. 62) data as cartas da Palestina como que pertencendo aos primórdios do reinado de Amenotepe IV. Edward F. Campbell, Jr., diz que todas as cartas datam do trigésimo ano de Amenotepe III até o final do reinado de Akhenaten ("The Amarna Letters and the Amarna Period," BA 23 [1960]: 10).

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guns textos de origem palestina, existem apenas dezesseis deles que men­cionam os 'apiru:25

1. EA 243. Biridiya de Megido nota que "a hostilidade dos SA.GAZ na terra é muito forte".

2. EA 246. Biridiya faz uma reclamação dizendo que os dois filhos de Lab'ayu de Siquém subornaram SA.GAZ para fazer guerra contra ele.

3. EA 254. Lab'ayu de Siquém diz que ele não sabia que seus dois filhos tinham feito negociações com os SA.GAZ.

4. AO 7096. Shuwardata, da região montanhosa mais ao sul, diz que a despeito do fato de todos os seus amigos, com exceção de ER-Heba, terem-no abandonado, ele havia aniquilado o homem SA.GAZ que surgiu (ou se levantou) na terra.

5. EA 271. Milkilu de Gezer suplica ajuda contra os SA.GAZ, que pa­reciam ser seus próprios servos.

6. EA 273. BaTat-UR.MAH MES de Sapuna, percebendo que "a terra do rei" tinha desertado diante de SA.GAZ, insiste com ele para que envie ajuda.

7. EA 274. Ba'lat-UR.MAHMES apela por socorro para que Sapuna não seja destruída.

8. EA 286. ER-Heba de Jerusalém diz que toda a terra já tinha caído nas mãos dos 'apiru. Além disso, todos os governadores já tinham desertado.

9. EA 287. ER-Heba diz que Gezer, Ascalom e Laquis supriram o ini­migo com comida, óleo e outras necessidades. O "inim igo" aqui aparentemente é Milkilu de Gezer, e os filhos de Lab'ayu de Siquém, que são os colaboradores dos 'apiru.

10. EA 288. ER-Heba faz uma reclamação dizendo que o rei foi omisso mesmo em face das mortes de Turbazu de Zilu, Zimrida de Laquis e Yapth-Addu de Zilu, que morreram nas mãos dos 'apiru.

25 Os textos estão publicados por Knudtzon, El-Amarna (EA). William F. Albright identifi­ca o autor de AO 7096 como sendo Shuwardata (ver em James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. 2a edição [Princeton: Princeton University Press, 1955], p. 486, n. 13). E claro que existem muitos outros textos que, da mesma forma, são oriundos da Palestina e que jamais mencionam os SA.GAZ / 'apiru. O qua­dro que surge desses relatos em nada é diferente. São mencionadas as mesmas escara­muças entre as cidades, as mesmas mesquinharias e a mesma subserviência aos reis egípcios, além de registrarem o mesmo ambiente chafurdado num caos e ilegalidade que foram o resultado das invasões promovidas por inimigos externos. Ver esta descri­ção em Campbell, "Amarna Letters," BA (1960): 2-22.

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11. EA 289. ER-Heba indica que Milkilu tomara Rubutu para si mes­mo, que o povo de Gath-Carmelo tinha estabelecido uma guarni­ção em Beth Shan e que Lab'ayu tinha entregado Siquém para os 'apiru.

12. EA 290. Er-Heba reclama que Milkilu e Shuwardata se apoderaram de Rubutu e que uma cidade próxima a Jerusalém tinha caído nas mãos do povo de Queila - portanto a terra do rei estava agora no controle dos 'apiru.

13. EA 298. Yapahi de Gezer diz que seu irmão rendeu-se aos SA.GAZ em Muhhazi.

14. EA 299. Yapahi diz que os SA.GAZ eram fortes contra ele.15. EA 305. Shubandu das regiões ao sul da Palestina observa que os

SA.GAZ eram fortes contra ele.16. EA 318. Dagantakala das regiões ao sul da Palestina descreve a se­

vera imposição que sofrerá nas mãos dos SA.GAZ/habbati.

As pessoas mais importantes alistadas nesses textos são Lab'ayu, de Siquém, e Milkilu, de Gezer. Os filhos de Lab'ayu pagaram aos mercenári­os 'apiru para atacarem Megido, e eles próprios tornaram-se aliados dos 'apiru quando estes atacaram Jerusalém. E muito interessante o fato de Siquém não estar alistada como uma das cidades conquistadas por Josué, mas ter sido o local para a renovação da aliança, que aconteceu próximo à morte de Josué. Isso daria tempo de sobra para que Lab'ayu e seus filhos tivessem se rendido completamente aos 'apiru (israelitas), um processo que teve início no período de Amarna (EA 287, 289).26

Quanto a Megido, seu rei é mencionado como um dentre os trinta e um reis que foram derrotados por Josué (Js 12.21), porém não há qualquer narrativa explicando como tal fato sucedeu. É muito provável que o rei de Megido estivesse descrevendo um ataque israelita no momento em que falava dos filhos de Lab'ayu assalariando os SA.GAZ (EA 246).27

Milkilu de Gezer aparece em um momento (EA 271) sob o ataque dos SA.GAZ e, em outro (EA 287), como seu aliado. Segundo Josué 10.33, Horão

26 Edward E Campbell, Jr. E James F. Ross, "The Excavation of Shechem and the Biblical Tradition," BA 26 (1963): 9-11. Campbell e Ross afirmam que a cidade de Siquém foi conquistada por Israel "sem o uso de qualquer armamento" e também da "pacífica simbiose refletida nas narrativas de Jacó". A última observação chega ser estranha por­que a estória de Jacó e Siquém (Gn 33.18-34.31) pode refletir qualquer coisa, menos uma relação pacífica. Um forte contraste é visto nos textos de Amarna que, sem sombra de dúvida, apontam para uma assimilação pacífica de Siquém.

27 H.H. Rowley, From Joseph to Joshua (London: Oxford University Press, 1950), pp. 110-11.

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de Gezer perdeu sua vida e seu exército28 quando se lançou num ataque surpresa contra Israel, pois vinha em auxílio de Laquis. Horão muito pro­vavelmente foi o predecessor de Milkilu, quem primeiro se mostrou hostil aos SA.GAZ, mas acabou unindo-se a eles. Um fato muito interessante é Josué 16.10, onde está escrito que os israelitas não expulsaram os cananeus de Gezer, mas que seus habitantes tornaram-se escravos dos efraimitas. Isto está perfeitamente de acordo com a reclamação de ER-Heba contra Milkilu, a qual diz ter este "dado a terra ao rei dos 'apiru" (EA 287).

Ba'lat-UR.MAHMES de Sapuna, um local por outro lado desconhecido,29 fala acerca do perigo iminente vindo dos SA.GAZ, como fazem Shubandu e Dagan-takala, igualmente de locais desconhecidos. Yapahi30 de Gezer diz que seu irmão caiu diante dos SA.GAZ em Muhhazi (Tel Mahoz, a oeste de Gezer).31 Já que este local não é mencionado na narrativa da con­quista, torna-se pouco relevante para nós.

As cartas provenientes de Jerusalém, entretanto, são de valor inestimá­vel. O remetente, um homem chamado ER-Heba (Abdi-Hepa), descreve uma deserção completa diante dos 'apiru. Ele mostra-se particularmente perturbado diante da grande deslealdade de Gezer, Ascalom e Laquis. Sob o domínio de Milkilu, a cidade de Gezer, conforme vimos, aparentemente rendeu-se a Josué sem necessidade de haver uma batalha. Ascalom não aparece em Josué, mas está presente em Juizes 1.18 como a cidade tomada pelos filhos de Judá como parte de sua herança. Visto que Ascalom é asso­ciada a Gezer nos textos de Amarna, e Gezer foi a princípio hostil aos israelitas antes de submeter-se ao domínio de Josué, não está fora de ques­tão a hipótese de que Ascalom, como Gezer, após uma hostilidade inicial, tenha se tornado aliado de Israel (EA 287).

Laquis aparece em Josué 10 como uma das confederadas de Jerusalém na oposição entre amoritas e israelitas. Depois de Josué haver matado o

28 Rowley (ibid., p. 100) engana-se quando afirma que existe uma inconsistência entre Josué 10.33 e 16.10, já que a última referência indica que Gezer tinha sido aniquilado e a primeira diz que ele estava sob a dominação dos Israelitas. Josué 10.33 diz que Horam, rei de Gezer, morreu em batalha juntamente com os demais reis que se uniram a ele em guerra contra Josué em Laquis. Isso em hipótese alguma quer dizer que a cidade de Gezer foi destruída.

29 Campbell, "Amarna Letters," BA 23 (1960): 20, identifica esse Sapuna com Zafon da região inferior do vale do Jordão, um ponto de vista que não tem sido geralmente acei­to.

30 Ou Yapa'u segundo Shlomo Izre'el, "Two Notes on the Gezer-Amarna Tablets," Tel Aviv 4 (1977): 163. Izre'el oferece aqui um novo estudo de EA 299.

31 Yohanan Aharoni, The Land ofthe Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 440.

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rei de Laquis (v. 26), tomou para si a cidade (vv. 31,32), mesmo tendo o rei de Gezer corrido para auxiliá-la (v. 33).32 Não há razão por que Laquis não ter se tornado, conforme Gezer, uma colaboradora dos israelitas, como mencionou ER-Heba (EA 287). Zimrida de Laquis (EA 288) claramente deve ser distinguido de Jáfia, rei de Laquis (Js 10.3). Contudo, pode ser que Zimrida tenha sucedido Jáfia após a morte deste em Maquedá.

Em outra carta (EA 289), o rei de Jerusalém diz que Milkilu de Gezer tomou para si Rubutu (Rabá, próximo à moderna Latrun).33 Josué nada fala acerca desta captura; assim é possível que Milkilu tenha salvado Isra­el desse problema. A mesma carta descreve uma guarnição que o rei de Gate (Shuwardata?) estabelecera em Bete-Seã, bem ao norte. Gate perma­neceu intocada por Josué (Js 11.22), e Manassés não foi capaz de expulsar os cananeus de Bete-Seã (Js 17.16; Jz 1.27).

Os textos de Amarna deixam a impressão de que os SA.GAZ/'apiru lutaram primeiramente contra cidades e povoados que estavam fora da área de conquista israelita, conforme descrito nas fontes bíblicas. Essas cartas, que também mencionam locais relacionados com a conquista, não estão de forma alguma em desacordo com o relato bíblico. De fato, elas o complementam de forma bastante significativa. É possível distinguir os SA.GAZ/'apiru que operavam fora da região central da Palestina da­queles que agiam na parte interior, provavelmente os israelitas. Yohanan Aharoni ficou perplexo ao perceber que apenas quatro das cidades que existiam naquela região montanhosa, durante a era de Amarna, são men­cionadas nos documentos de Amarna. Ele atribui isto à completa domi­nação daquela região pelos habitantes de Siquém e de Jerusalém.34 Não seria mais sensato admitir que a razão para este silêncio seria o fato de que todo o interior de Canaã estava nas mãos dos israelitas durante esse período, com exceção de Siquém e Jerusalém, exatamente segundo a descrição bíblica?35

52 E verdade que o relato bíblico descreve a população da cidade de Laquis sendo total­mente destruída. Mas isso em nada impediria que a cidade viesse novamente a ser ha­bitada, se tornando amigável para com os 'apiru (Israel), conforme está sugerido em EA 287, para que mais tarde viesse novamente a cair em desgraça, como diz em EA 288. Deve-se dedicar especial atenção ao fato que o texto não diz absolutamente nada com res­peito à destruição das estruturas físicas da cidade. Ver Eugene H. Merril, "Palestinian Archaeology and the Date of the Conquest: Do Tels Tel Tales?" GTJ 3 (1982): 114. Aharoni, Land ofthe Bible, p. 174.

14 Ibid., p. 175.'r E importante que se saiba que, ao expressarmos nossa própria reconstrução do ambien­

te histórico que permeou os anos da conquista, não descartamos absolutamente os proble-

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Por fim, não existe absolutam ente nada nas correspondências de Amarna ou no Antigo Testamento que conteste uma data nos primórdios do décimo quarto século para a conquista. Na verdade, há muitos pontos a favor. Deve-se reconhecer que a totalidade histórica daquele período forma o ambiente em que podemos vislumbrar a conquista. Todas as po­tências internacionais estavam "barradas" quanto aos interesses em Canaã, deixando assim um vácuo que Israel, pela providência de Jeová, poderia preencher.

A estratégia de Josué

A campanha de Jericó

Josué, o sucessor de Moisés como mediador da aliança, já havia se desta­cado como um homem de sabedoria e um líder militar de coragem. En­quanto se posicionava no lado oriental do rio Jordão, antecipando-se à conquista da terra, sua mente já possuía toda uma estratégia militar pre­parada. Ele percebeu de forma correta que a terra de Canaã dividia-se em duas grandes áreas que representavam dois elementos étnicos distintos. Para o sul e na região montanhosa estavam as cidades controladas pelos amoritas; para o norte, especialmente na planície de Jezreel, estavam as grandes concentrações de cananeus. Procedendo de acordo com a experi­mentada estratégia de guerra, Josué sabia que a melhor chance para o su­cesso baseava-se no princípio "dividir para conquistar".

Para alcançar este propósito ele sentiu necessidade de penetrar em Canaã pelo norte do mar Morto, seguindo a rota que conduzia ao interior e que passava por Jericó. Precisamente nesse ponto Josué contemplou seu maior problema: Jericó estava fortemente armada e preparada para de- fender-se e impedir a penetração inimiga no interior de Canaã. Além dis­so, o próprio rio, que nessa época do ano (primavera) estava cheio, consti­tuía aparentemente uma barreira intransponível contra qualquer avanço imediato.

Jeová ordenou a Josué que efetuasse a conquista imediatamente (Js 1.2,11), de forma que Josué enviou exploradores para além do rio, a fim de

mas que nosso ponto de vista precisa enfrentar, especialmente no que diz respeito a falta de correspondência entre os nomes próprios vistos nos textos de Amarna e aqueles registrados nos livros de Josué e Juizes. Porém, quando nos lembramos de que a con­quista de Josué já estava há muito tempo terminada na época em que os documentos de Amarna descrevem o tumulto causado pelos 'apiru, então fica até fácil de se entender por que alguns nomes são diferentes.

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fazer um levantamento da terra, e especialmente para sondar as possíveis fraquezas nas defesas de Jericó. Eles descobriram que as notícias acerca das intenções de Israel já os tinha precedido, e que o povo da terra de Canaã estava aterrorizado em razão das vitórias dos israelitas no Sinai e na Transjordânia. Isso produziu um clima extremamente favorável para a conquista, mas o momento propício estaria perdido caso não encontras­sem uma maneira de atravessar o Jordão.

Neste instante, Jeová revelou que Ele, o Divino Guerreiro, pelejaria por Israel da mesma forma que fizera no Egito. Assim como Ele partiu as águas do mar de Juncos, como um sinal de seu poder cósmico e redentor, agiria ordenando que as águas do rio parassem de correr. Ele, como o Grande Rei, iniciaria a conquista começando pelo rio que sempre havia protegido a terra. Assim o povo compreenderia que a batalha era de Jeová, e que eles alcançariam vitória sobre vitória reconhecendo que eram parte dos exérci­tos do Todo-Poderoso.36

E aconteceu que quando a Arca da Aliança - o símbolo da presença de Jeová - entrou no rio, as águas pararam, submissas a Ele e a Israel, permi­tindo ao povo passar em terra seca. Como um sinal da natureza redentora deste feito, Jeová determinou que Josué fizesse a circuncisão de todos os machos que haviam nascido no deserto, revelando assim a sua identidade como o povo da aliança; também lhe ordenou que celebrasse a festa da Páscoa, que havia sido estabelecida pouco antes do êxodo, comemorando a redenção do povo realizada por Jeová. Por último, Ele apareceu a Josué, como havia feito com Moisés, confirmando-o como o mediador do con­certo. Toda esta seqüência - circuncisão, Páscoa e teofania - declarava en­faticamente que o Israel da conquista era o mesmo do êxodo. O Deus que tinha salvado seu povo do Egito agora iria salvá-los em Canaã.

Depois de os israelitas terem erigido um altar memorial de pedras para celebrar sua passagem pelo rio Jordão, os homens de guerra marcharam em direção sul desde Gilgal (Khirbet el-Mafjar), seu primeiro acampamento em Canaã, até Jericó (Tel es-Sultan), à distância de apenas três quilômetros. A cidade é descrita no Antigo Testamento situada em um monte imponente, que se erguia bastante íngreme desde o riacho adjacente, ao longo do qual passava "a estrada que subia até Bete-Horon" (Js 10.10), a rota mais impor­tante para o interior. Relativamente pequena para os padrões da Alta Idade do Bronze (cerca de dez acres), Jericó era facilmente defensável e pratica­mente inexpugnável. Josué estava desejoso de conquistar esta cidade não

^ Frank M. Cross, Cancuinite Myth and Hebrew Epic (Cambridge: Harvard University Press, 1973), pp. 103-5.

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apenas porque ela guardava a rota que ele intentava tomar, mas também porque se ele a deixasse intacta, ela se transformaria num bastião da resis­tência cananéia contra Israel, o que se tornaria uma fonte de problemas ou mesmo perigo para os exércitos de retaguarda do povo de Deus. Além disso e por razões não muito bem nítidas, Jeová havia escolhido especialmente aquela cidade para manifestar o seu julgamento. Quando isso acontecia a um local ou a um povo, eles eram designados como "consagrados para Jeová", ou seja, seriam levados ao extermínio. O verbo técnico em hebraico é haram ("consagrar para destruição"). Objetos debaixo da maldição deveri­am ser aniquilados (caso estivessem vivos) ou dados a Jeová para seu pró­prio uso. Em hipótese alguma tal coisa poderia ser guardada sem que para isso houvesse a expressa permissão de Jeová.37

O primeiro exemplo dessa política foi a destruição dos cananeus e de suas cidades próximas a Horma (Nm 21.3). De fato, o nome Hormá reflete a raiz subjacente herem. Essa política foi aplicada de forma semelhante após a derrota de Seom e dos amoritas na Transjordânia (Dt 3.6). Moisés também tinha exortado Israel a colocar algumas das cidades cananéias sob herem, explicando que isso significava que eles não poderiam fazer acordo nem se unirem em casamento com eles (Dt 7.1-3). Pelo contrário, Israel deveria destruir seus altares, pedras sagradas, os postes de Aserá e as imagens (v. 5). A razão era que Israel, mesmo sendo um povo separado por Deus, poderia retornar ao paganism o através da influência dos cananeus (Dt 20.17,18).

É óbvio que herem às vezes limitava-se à destruição completa do povo, não se aplicando às cidades propriamente ditas. E exatamente este o sig­nificado.das palavras de Moisés quando disse que Jeová entregaria a Isra­el cidades que eles não haviam edificado, casas cheias de bens e cisternas que eles não haviam construído (Dt 6.10,11; 19.1). Quando por fim concre­tizou-se a vitória, Josué relembrou ao povo que Jeová fizera conforme ha­via prometido - Ele lhes dera cidades que eles não haviam edificado, e vinhas e olivais que não haviam plantado (Js 24.13).

Um estudo mais cuidadoso revela que durante a conquista, apenas três cidades cananéias, na realidade, sofreram a totalidade do herem, ou seja, fo­ram fisicamente destruídas justamente com suas populações. Estas foram Jericó, Ai e Hazor. Quanto às outras, é dito apenas que foram "tomadas" (lakad) por Israel e seus habitantes passados ao fio da espada. Por enquanto, pode-se apenas especular o porquê de Jericó haver sido selecionada para estar sob a totalidade do herem. É provável que, por ser a primeira cidade cananéia situ­

37 Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, pp. 260-63.

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ada ao ocidente do Jordão, seu destino servisse como um alerta para todas as demais cidades, para que levassem em conta que a santidade e o poder de Jeová é que trabalhavam em favor de seu povo conquistador.

O vilarejo de Jericó vinha sendo ocupado possivelmente desde 7500 a.C.38 Infelizmente a ação deletéria do tempo e das condições climáticas, combinadas ao trabalho amador e às escavações profissionais, somaram- se para praticamente impedir a utilização arqueológica e histórica da ci­dade de Jericó. Baseado em alguns escaravelhos de Amenotepe III, o ar­queólogo britânico John Garstang datou o nível D em aproximadamente 1400 a.C., e postulou que esta era a cidade destruída por Josué.39 Sendo assim, Garstand sustentou a data de 1400 para a conquista, e uma mais antiga correspondente para o êxodo. Suas conclusões foram ainda mais confirmadas com a descoberta de muralhas que, ao contrário do resultado normal de um cerco, caíram para o lado de fora, morro abaixo. A isto ele associou a referência bíblica que descreve a ruína das muralhas de Jericó como caindo "sob a cidade" (taheta), ou seja, caindo morro abaixo (Js 6.20).40

Contudo, mais recentemente Kathleen Kenyon, outra respeitada arque­óloga britânica, passou várias estações em Jericó e concluiu, entre outras coisas, que Garstand havia interpretado as evidências erroneamente, e que os escaravelhos de Amenotepe pertenciam a um depósito posterior. Seu nível D, então, tinha de ser remarcado próximo a 1300.41 Se tal reavaliação já tem trazido problemas para as datas mais primitivas propostas para o êxodo e a conquista, torna-se ainda pior para uma data mais recente, uma vez que a conquista de Jericó em 1300 fixaria o êxodo em 1340. Sem dúvi­da esta reavaliação não beneficia a nenhuma posição. O melhor que se pode dizer, então, é que a evidência de Jericó é inconclusiva e que, neste ponto, é de pouco ou nenhum valor para se estabelecer um esboço históri­co ou cronológico em que se possa visualizar a conquista.

A campanha central

Após Jericó cair e ser destruída - um evento descrito do início ao fim como um milagre de Deus - Josué enviou espias de Jericó através de uma

:’s Kathleen Kenyon, Archaeology in the Holy Land (New York: Praeger, 1960), p. 42.39 John Garstang e J.B.E. Garstang, The Story o f Jericho (London: Marshall, Morgan and

Scott, 1940), p. 120.40 Ibid., p. 136.41 Kathleen Kenyon, Digging Up Jericho (New York: Praeger, 1957), p. 260; idem, "Palestine

in the Time of the Einghteenth Dynasty", em CAH 2.1, p. 545.

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estrada sinuosa até a próxima fortificação cananéia em Ai. Visto que a cida­de já não mais existia (seu próprio nome significa "ruína"), foi necessário ao historiador localizá-la como a cidade "que está junto a Bete-Aven, ao orien­te de Betei" (Js 7.2). Embora Ai seja identificada por muitos estudiosos com um sítio conhecido simplesmente por et-Tel ("monte de pedras"),42 a me­nos de quatro quilômetros a leste de Betei (Beitin), esta visão não mais des­fruta de consenso. De fato, há muitos argumentos convincentes contra ela, conforme David Livingston e outros estudiosos têm demonstrado.43 E irô­nico que o segundo dentre os três locais que sofreram o herem seja, como no caso de Jericó, de valor insignificante para a data da conquista. É preciso reconhecer que a própria natureza violenta do herem pode ser a própria ra­zão para que nem Jericó nem a cidade de Ai tivessem condições de produzir quaisquer evidências arqueológicas significativas.

Depois de uma derrota inicial em sua tentativa de tomar a cidade de Ai (Js 7.4,5), Josué compreendeu que os termos do herem haviam sido violados na destruição de Jericó. Um cidadão particular, Acã, tinha se apoderado de objetos que pertenciam exclusivamente a Jeová; Acã e sua família foram destruídos como resultado da desobediência (Js 7.22-26). Somente assim Josué pôde, com um contingente de trinta mil homens, atacar e destruir a cidade de Ai, por meio de uma estratégia que incluíam emboscadas e arma­dilhas. Os habitantes de Betei uniram-se aos de Ai na peleja, mas ambos foram clamorosamente derrotados. Josué então mandou matar os homens e mulheres da cidade - doze mil ao todo - até que não houve mais nem um sobrevivente. A própria cidade foi queimada até que tudo se consumiu, permanecendo apenas uma coluna de fumaça, uma ruína ('ay) no exato sen­tido da palavra. Somente o gado e alguns tesouros da cidade foram poupa­dos, e isso segundo as ordens específicas de Jeová (Js 8.27). Ai representa o exemplo de um herem com especificações bem claras.

Nada mais é dito acerca do encontro de Israel com Betei. A evidência arqueológica é ambígua, embora pareça ter existido alguns sinais de acam­pam entos tribais durante o século catorze.44 Pode-se concluir que os

42 Ver especialmente Joseph A. Callaway, "The 1964 'Ai (Et-Tel) Excavations," BASOR 178 (1965): 13-40; "New Evidence on the Conquest of Ai," JBL (1968): 312-20; "The 19688-69 'Ai (Et-Tel) Excavations," BASOR 198 (1970): 7-31.

43 David Livingston, "The Location of Biblical Bethel and Ai Reconsidered," WTJ 33 (1970): 20-44. Livingston faz a opção por el-Bireh como o sítio de Betei (p. 40) e localiza a cidade de Ai num pequeno tel localizado nas imediações.

44 Aharoni, Land o f the Bible, p. 210. Há sinais de habitações na cidade de Beitin no século catorze mas, conforme a sugestão de Livingston, se Beitin não é a cidade de Betei, esses sinais são irrelevantes para nossa discussão.

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A C ü X Q U lS T A E A O C U P A Ç Ã O DE CANAÃ 111

betelitas foram destruídos, mas que a sua cidade, como a maioria das ci­dades cananéias, foi poupada a fim de prover residência para Israel. Em­bora o livro dos Juizes indique que os efraimitas de fato tomaram Betei, isto parece ter ocorrido após a morte de Josué.45

Siquém e a renovação da aliança

Havendo atravessado a região montanhosa após a destruição de Ai, Josué voltou-se para o norte e tomou seu caminho, aparentemente sem qualquer oposição até a cidade de Siquém (Tel Balatah), cerca de 40 quilô­metros ao norte de Betei.46 Nesse local tão sagrado devido à associação com os patriarcas, Josué conduziu o povo numa cerimônia de reafirmação da aliança, conforme Moisés lhe ordenara (Js 8.30-35; Dt 27.2-8). Anos mais tarde, bem próximo de sua morte, Josué reuniu novamente o povo de Is­rael em Siquém para que a nova geração também pudesse comprometer- se a ser fiel a Jeová (23.1-24.28).47 O fato de Israel ter livre acesso aos mon­tes Ebal e Gerizim, entre os quais Siquém estava localizada, implica que

45 A passagem de Juizes 1.22-26 é o único relato acerca de uma guerra contra a cidade de Betei. Um betelita permitiu a entrada de Israel dentro da cidade, resultando com isso que toda sua população, com exceção desse colaborador, foi destruída. A cidade, contu­do, foi poupada. Quanto a expressão técnica, "passaram a cidade ao fio da espada", ver em Merrill, "Palestinian Archaeology", GTJ 3 (1982): 113-14.

46 Esse fato ocorreu logo no início da conquista, ou cerca de 1406 a.C. A segunda convoca­ção em Siquém ocorreu quarenta anos depois (ver pp. 139-140)'. O acesso irrestrito até Siquém conduz-nos, imediatamente, a duas conclusões: ou os habitantes de Siquém deram as boas-vindas a Josué, ou já não havia habitantes naquela cidade. Parece que a primeira hipótese é a mais segura, pois os cananeus de Siquém cooperaram espontane­amente com os 'apiru dos textos de Amarna (ver p. 102). Mesmo que a assembléia de Josué 8 tenha ocorrido em cerca de trinta anos antes da mais antiga carta de Amarna, é totalmente possível que a cordialidade dos siquemitas em relação aos 'apiru / israelitas tenha sido apenas o resultado de uma política de anos de existência.

47 Muitos estudiosos, é claro, vêem Josué 8 e 24 como sendo tradições variantes de um mesmo acontecimento. Para uma recente e, ao mesmo tempo, profunda apresentação dessa posição, ver em J. Alberto Soggin, Joshua: A Commentary (Philadelphia: Westminster, 1972), pp. 220-44. O que essa posição falha em não observar é que havia a necessidade de que todas as gerações viessem a afirmar seu compromisso com Yahweh. Era mais apropriado que a assembléia se reunisse no início da conquista e que, de forma seme­lhante, voltasse a se reunir por mais uma vez na véspera da morte de Josué. Ver em Marten H. Woudstra, The Book o f Joshua, New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1981), pp. 148-49; Meredith G. Kline, The Structure o f Biblical Authority (Grand Rapids: Eerdmans, 172), pp. 54-56.

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esta cidade ou estava abandonada nesse tempo ou havia se rendido sem que acontecesse uma batalha.48 O criticismo tradicional mantém, entre­tanto, que Siquém sucumbiu depois dos ataques impiedosos promovidos pelas tribos de Simeão e Levi. A base para essa posição é a crença de que o relato do estupro de Diná, filha de Jacó, cometido por Siquém, filho de Hamor (Gn 34), é um relato etiológico, cujo propósito é explicar como Is­rael veio a dominar Siquém.49

Os problemas dessa posição são muito numerosos para ser considerado aqui, mas algumas observações precisam ser feitas. Primeiro, a história de Diná indica que apesar de os siquemitas haverem sido dizimados pelos fi­lhos de Jacó, este ficou tão temeroso de uma retaliação que decidiu partir imediatamente para Betei. A narrativa da conquista relata o inverso. Israel já estava em Betei e partiu em direção a Siquém. Segundo, por que estariam as tribos de Simeão e Levi envolvidas na conquista de Siquém, uma vez que a porção de Simeão caíra-lhe na região do Negueve, e Levi era, na época de Josué, uma tribo religiosa isenta do serviço militar? Terceira e mais fatal observação contra a interpretação etiológica: não há qualquer sinal de con­flito em Siquém ou a ela relacionado na narrativa da conquista de Canaã. Por que Gênesis 34 tem sido utilizado para explicar uma batalha que o livro de Josué, por seu silêncio, deixa claro nunca haver existido? Apelar para as cartas de Amama, que mostram o rei de Siquém em sérios apuros, nas mãos de outros reis cananeus, não traz nenhuma vantagem, pois está fora de ques­tão que os eventos descritos nos documentos ocorreram entre as duas situ­ações em Siquém (ou seja, entre 1406 e cerca de 1366).

A campanha em direção sul

A o ficar claro que Josué havia ferido o norte de Canaã a partir do sul, e que efetivamente instalara a nação de Israel na região montanhosa cen­tral, os cananeus e outras populações decidiram pôr de lado as diferenças e formar uma só defesa contra Israel. Os heveus (horitas ou hurrianos?) de Gibeão (el-Jib),50 situados apenas a onze quilômetros ao sul de Betei, fica­

48 Ver nota 46.49 Robert G. Boling, Joshua, Anchòr Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1982), pp. 251-54;

Meek, Hebrew Origins, pp. 124-28.50 H.A. Hoffner, "The Hitites and Hurrians," em Peoples ofO ld Testament Times, editado por

D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), p. 225. Para saber mais acerca da escavação, história e significação do sítio, ver em James B. Pritchard, Gibeom, Where the Sun Stood Still (Princeton: Princeton University Press, 1962), especialmente as páginas 24-34.

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C o '-(JL L S T A E A O C U P A Ç Ã O D E CANAÃ 1 1 3

ram tão apavorados em face do que acontecera a Jericó e a Ai que tenta­ram uma ação diplomática ao invés de militar. Disfarçados de viajantes que vinham de muito longe, uma delegação de Gibeão foi a Gilgal - agora acampamento de Israel - e persuadiu Josué a assinar um pacto de não- agressão contra eles. Visto que as instruções de Moisés permitiam tais acor­dos com terras distantes (Dt 20.10-15), Josué não hesitou em assinar o tra­tado. O acordo requeria que o povo servisse a Israel como escravos, (Dt 20.11; Js 9.15,21,27), uma condição que embora indesejável, era definitiva­mente melhor do que a morte.51 E claro que os gibeonitas eram alvo do herem , juntam ente com os demais cananeus, e por isso deveriam ser destruídos (Dt 20.16,17; Js 9.24). Em vez disso, despercebido como estava Josué, o pacto teve de vigorar, e os gibeonitas com seus amigos heveus de Quefira (Tel Kefireh), Beerote (Nebi Samwil?) e Quiriate-Jearim (Qiryat Ye'arim) conseguiram sobreviver, e todas as vilas que ficavam nas oito quilômetros de Gibeão foram permitidas viver.

Este tratado de não-agressão entre Israel e os heveus foi rapidamente posto à prova, pois Israel, a parte mais forte do pacto, teve a responsabilida­de de defender seu novo vassalo contra a ameaça inimiga. A ameaça surgiu em forma de uma coalisão de reis amorreus que decidiram punir Gibeão por sua deserção para o lado de Israel (Js 10.1-5). O líder desta coalizão cham ava-se A doni-Zedeque52 de Jerusalém , então uma fortaleza dos jebuseus. Sem dúvida os jebuseus eram considerados amorreus, pois Adoni- Zedeque é contado entre os reis amorreus (Js 10.5). Quanto tempo a cidade de Jerusalém esteve sob o domínio dos amorreus não pode ser definido, mas supõe-se que tenha sido desde a sua migração para Canaã, no período do Bronze Antigo IV (cerca de 2200). Com apenas alguns poucos interlúdios, a cidade permaneceu sob o domínio dos jebuseus até o tempo em que Davi a conquistou (1004 a.C.), estabelecendo SQbre ela o seu domínio e transfor- mando-a em sua capital. Confederados com Adoni-Zedeque estavam Horã,

=1 O ser ou não um tratado entre suserano e vassalo é questionado por F. Charles Fensham, "The Treaty Between Israel and the Gibeonites", BA 27 (1964): 96-100. Jehoshua M. Grintz, por outro lado, mantém a posição que estamos diante de um tratado de "proteção". A diferença encontra-se no nível de servidão, já que o "protégé" tinha muito mais inde­pendência do que um vassalo comum ("The Treaty of Joshua with the Gibeonites", JAOS 86 [1966]: 114-16,124-26).

:: O fato desse nome não constar das cartas de Amarna como sendo rei de Jerusalém não deveria em nada nos surpreender, já que esse Adoni-Zedeque teria precedido em cerca de trinta anos a mais antiga dessas cartas. Portanto, a observação feita por Rowley, que afirma estarem os nomes pessoais registrados nas duas fontes em total desacordo, é imprópria para o momento, pelo menos nessa situação (From Joseph to Joshua, pp. 4,42).

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de Hebrom, Pirã, de Jarmute (Khirbet Yarmuk, cerca de 28 quilômetros a oeste e a sudoeste de Jerusalém), Jafia, de Laquis (Tel ed-Duweir, cerca de 48 quilômetros a sudoeste de Jerusalém) e Debir, de Eglom (Tel el-Hesi, cerca de 56 quilômetros a sudoeste de Jerusalém). Essas cinco cidades - cujas lo­calizações formavam uma espécie de triângulo que ocupava toda a porção ao norte de Judá - eram aparentemente os mais importantes focos de resis­tência dos amorreus naquele tempo. A sua derrota, portanto, representaria a abertura de toda a região para a ocupação Israelita.

Quando os cinco reis cercaram Gibeão, a notícia foi logo levada a Josué em Gilgal dizendo que a cidade estava sob ataque e precisava da ajuda prometida. Depois de uma noite inteira de marcha Josué chegou a Gibeão, cerca de 32 quilômetros a oeste de Gilgal. Após uma batalha renhida, os amorreus bateram em retirada e Israel os perseguiu incansavelmente. Cru­zando a montanha de Bete-Horom, que passava a oeste de Gibeão, os amorreus voltaram-se para o sul, rodeando a fronteira oeste de Sefelá, chegando então até Azeca e Maquedá, aproximadamente a 32 quilôme­tros de Gibeão. Durante todo o percurso eles sofreram a ira de Jeová, o Deus guerreiro de Israel, que enviou contra eles uma chuva de grandes pedras de granizo.53 Os reis conseguiram escapar e acharam refúgio em uma caverna em Maquedá. Logo que Josué descobriu-lhes o paradeiro, selou-os dentro da caverna provisoriamente e partiu para liquidar os amorreus que haviam sobrevivido à chuva de pedras de granizo.

Sua instrução dada aos soldados é deveras interessante: eles não pode­riam permitir que os amorreus novamente entrassem nas cidades, pois Josué as queria completamente intactas (Js 10.19). Como já dito, então, o herem não inclui as estruturas físicas, mas apenas o povo. Portanto, não se deve tomar a devastação das cidades como prova da conquista e de sua data, pois a política de Josué, como repetidamente enfatizamos, visava a poupar as cidades para o próprio uso de Israel. Depois de Josué haver liquidado completamente os exércitos dos amorreus, voltou até aquela caverna e retirou os reis ali aprisionados, eliminando-os sumariamente.

53 A erudição crítica nega que haja qualquer historicidade rio milagre descrito nessa estó­ria, é claro, embora a maioria dos intérpretes concedam, pelo menos, um substrato de verdade histórica envolvendo tal situação, que foi construída através de uma lingua­gem poética relatando uma guerra santa. Ver, por exemplo, Trent C. Butler, Joshua, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1983), pp. 113,115-17. John S. Holladay, Jr., defende a idéia que a referência à momentânea parada do sol e a lua deve ser relacionada a uma espécie de consulta astrológica à procura de "bons sinais" vindos dos céus, de forma que por meio deles Josué teria mais confiança em sua vitória ("The Day(s) the Moon Stood Still", JBL 87 [1968]: 170,176).

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.A COSQUISTA E A OCUPAÇÃO DE CANAÃ 1 1 5

Em seguida vê-se o relato da captura de várias cidades dos amorreus e a matança de seus habitantes. Uma observação cuidadosa dos detalhes causará a nítida impressão de que as cidades (estrutura física), com talvez uma exceção, foram poupadas da destruição, ao passo que a população em cada caso era dizimada. A primeira cidade a sofrer essa destruição foi Maquedá (Khirbet el-Kheisun?).54 O historiador declara que Josué "tomou- a" (lakad), um verbo que sempre se refere à captura, e não a uma demoli­ção.55 Onde subseqüente destruição está envolvida, existem declarações explícitas a respeito. Outro aspecto a considerar é que Josué "feriu a Maquedá ao fio da espada". Essa metáfora, aqui traduzida literalmente, refere-se exclusivamente ao ato de tirar a vida.56 A demolição de mura­lhas e construções dificilmente são descritas pela expressão "fio da espa­da". E melhor, então, assumir que o aniquilam ento dos cidadãos de Maquedá é o que está em foco, especialmente porque o autor segue infor­mando que o estrago causado pela espada incluiu o rei, que com os de­mais habitantes foi destruído (heherim ). Em resumo, Josué tomou Maquedá, passou os seus habitantes ("a cidade") e o rei ao fio da espada, destruindo-os totalmente.

Então Josué passou a Libna (possivelmente Tel es-Sâfi, cerca de doze quilômetros a sudoeste de Maquedá), que sofreu a mesma calamidade vista em Maquedá. Nessa ocasião Jeová "deu" (nãtan) a cidade e seu rei a Israel, e Josué passou ela e seus habitantes ao fio da espada, não deixando qualquer sobrevivente. Laquis foi a próxima a ser atacada. Situada cerca de dezesseis quilômetros ao sul de Libna, também ela foi entregue nas mãos de Josué, e aconteceu-lhe o mesmo que o ocorrido a Maquedá e a Libna. Mesmo a in­terferência de Horão, rei de Gezer, que vivia a mais de 32 quilômetros ao norte de Laquis, não pôde poupar a cidade e seu povo. A outra cidade, Eglom, ficava a apenas doze quilômetros a sudoeste de Laquis. Seguindo ao mesmo estilo monótono de narração, o historiador descreve a queda de Eglom como ele havia feito com as outras cidades. Hebrom vem a seguir e parece ser uma exceção à política de preservação da estrutura física da cida­de. Essa diferença tem sua explicação no fato de Josué haver posto tanto a cidade quanto seus habitantes sob condenação. Contudo, também aqui a palavra "cidade" (ou "ela", v. 37) pode significar a população (como aconte­

54 Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford University Press, 1984), p. 134.Merril, "Palestinian Archaeology," GTJ 3 (1982): 113.Francis Brown, S.R. Driver and Charles A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon ofthe Old Testament (Oxford: Clarendon, 1962), pp. 352-53.

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ce regularmente)57, e a frase seguinte pode ser explicativa - "destruíram a cidade por completo, ou seja, a todos os que nela habitavam".58 Nesse caso até a cidade de Hebrom e as vilas que rodeavam-na foram poupadas mate­rialmente. Seu repovoamento dentro de cinco anos (ver Js 14.6-15)59 certa­mente sustentaria a idéia de que as muralhas e construções da cidade per­maneceram, e foram reocupadas pelos israelitas. A última cidade na lista foi Debir (Tel Beit Mirsim), 24 quilômetros a sudoeste de Hebrom. Seu julga­mento foi exatamente igual ao das outras cidades já descritas.

O relato da chamada campanha em direção sul está sumariada em Josué 10.40-43. O narrador declara que "feriu Josué toda aquela terra, a região montanhosa, o Neguebe, as campinas, e as descidas das águas, e a todos os seus reis; destruiu a tudo o que tinha fôlego, sem deixar nem sequer um, como ordenara o Senhor Deus de Israel". Note que não houve men­ção de destruição material das cidades e vilarejos. O estudante objetivo concluirá então que a razão para tal referência ser omitida no sumário - o local onde mais se esperaria encontrá-la - é que as estruturas urbanas fo­ram preservadas intactas, conforme já Moisés havia prescrito.60

57 Num estudo revelador, Rivka Gonen nos diz que a maioria das cidades da Era do Bron­ze Recente eram cidades não-fortificadas - não havia muralhas para defendê-las e criar uma barreira contra os que tentassem tomá-las. Ao mesmo tempo houve um rápido crescimento no número de acampamentos nos séculos décimo quarto e décimo terceiro. Essas estatísticas batem com o montante da população durante os anos da conquista ("Urban Canaan in the Late Bronze Period", BASOR 253 [1984]: 61-73).

58 Wilhelm Gesenius, GeseniusHebrew Grammar, editado por E. Kautzch e A.E. Cowley (Oxford: Clarendon, 1957), 154a.

59 A vitória contra a liga dos amorreus certamente não ocorreu antes de 1405 e Calebe, segundo seu próprio testemunho, estava com oitenta e cinco anos quando tomou a ci­dade de Hebrom como sendo sua herança (Js 14.10, 13,14). Já que ele estava com qua­renta anos depois que se passaram dois anos do êxodo (v.7), a data da sua aquisição da cidade de Hebrom deve ter sido por volta de 1399.

60 Até mesmo Manfred Weippert, que interpreta a ocupação de Canaã por Israel como tendo sido uma espécie de penetração gradual das tribos e que seguiu de perto um padrão estabelecido de fixação na terra, não acontecendo como que através de uma operação militar, deve reconhecer que a evidência arqueológica é totalmente silenciosa a esse respeito {The Settlement ofthe Israelite Tribes in Palestine, traduzido por James Martin [Naperville, 111.: Allenson, 1971], pp. 128,129). J. Maxwell Miller, que interpreta a ocupa­ção como tendo sido uma violenta operação militar, deve reconhecer que "os dados arqueológicos disponíveis simplesmente não se enquadram muito bem com o relato bíblico da conquista, apesar das datas propostas por algumas pessoas" ("Archaeology and the Israelite Conquest of Canaan: Some Methodological Observations," PEQ 109 [1977]: 88). E claro que não devemos esperar que as evidências concordem entre si quando a interpretação dada à conquista é defeituosa.

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4 C O SQ U IS T A E A O C U P A Ç Ã O D E CANAÃ 1 1 7

A campanha em direção norte

Com o grande sucesso da campanha militar ao sul, Josué voltou a Gilgal, a base de Israel durante os primórdios da conquista.61 Mas muito rapida­mente deu início à fase final de seu plano - a invasão das terras cananéias no vale de Jezreel e na Galiléia ao norte. Os cananeus por essa época já estavam cientes de tudo o que havia se passado nas regiões sul e central da Palestina, e imediatamente formaram uma aliança para resistir o que sabiam ser um conflito certo com Israel.

O fundador e líder da aliança era Jabim, rei de Hazor (Tel ed-Quedah)- a maior das cidades do norte e possivelmente de toda a Canaã. Essa metrópole, cobrindo mais de 110 acres e abrigando talvez mais de quaren­ta mil habitantes, situava-se estrategicamente sobre uma alta colina, cerca de 32 quilômetros ao norte do mar da Galiléia, e menos de oito quilôme­tros a sudoeste do lago Hulé (as águas de Merom).62 Era tradicionalmente reconhecida por sua liderança na região (Js 11.10), de forma que não foi difícil para Jabim alistar as demais cidades para apoiá-lo nessa causa. In­cluía-se na lista Joabe, rei de Madom (Qarn Hattin), cerca de oito quilôme­tros ao ocidente de Tiberíades, os reis de Simrom (Tel Semuniyeh) e Acsafe (Tel Keisan).

Simrom situava-se na fronteira norte da planície de Jezreel, perto de 24 quilômetros do Mediterrâneo, e Acsafe cerca de nove quilômetros a sudo­este de Aco. Portanto, a influência imediata da cidade de Hazor estendia- se como em um semicírculo que voltava-se para o sul e o oeste, com um raio de aproximadamente 65 quilômetros. Outros reis que foram alista­dos, mas não tiveram seus nomes mencionados, reinavam sobre territóri­os ao norte da Galiléia no vale do Jordão, ao sul de Quinerete (o mar da Galiléia), nas planícies (a planície de Jezreel) e nas alturas de Dor, prova­velmente nas encostas-sul da cadeia montanhosa do Carmelo, paralelo ao Mediterrâneo. Além disso, Jabim solicitou o apoio dos reis cananeus, amorreus, hititas, ferezeus, jebuseus e heveus de ambos os lados do rio Jordão e do Hermom, ao norte da região montanhosa de Efraim. Com um numeroso contingente de infantaria e carros de combate, essas forças com­binadas esperavam pela vinda de Israel às águas de Merom, um campo de batalha preparado pela natureza.

61 Quanto a Gilgal ser considerado como um centro logístico e estratégico, ver em AbrahamMalamat, "How Inferior Israelite Forces Conquered Fortified Canaanite Cities," BAR 8(1982): 31.Quanto a escavação e história desse sítio, ver em Avraham Negev, ed., ArchaeologicalEncyclopedia o fthe Holy Land (Englewood, N.J.: SBS, 1980), pp. 138-41.

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Com um ataque relâmpago Josué caiu sobre os cananeus, abatendo-os completamente. Os que puderam escaparam e fugiram para o mais longe possível, chegando a Sidom, que ficava a mais de 64 quilômetros para o norte; também foram para Misrefote Maim (Khirbet el-Musheirefeh), que ficava na costa entre o Carmelo e Tiro. Fugiram ainda para o vale de Mispa (M arpAyyum?),63 próximo ao sul do monte Hermom. Então Josué atacou a cidade de Hazor e a tomou (lãkad), matando o seu rei e ferindo grande­mente a população. Então, no que claramente foi uma exceção à política que vinha seguindo até o momento, ele incendiou a cidade e a demoliu por completo. Se ainda há necessidade de provar que tomar uma cidade e passá-la ao fio da espada não é o mesmo que destruí-la materialmente, note a forma através da qual o historiador descreve o que aconteceu às cidades que restaram. Israel, ele diz, tomou as cidades que estavam aliançadas com Hazor, feriu-as ao fio da espada, destruiu-as completa­mente, mas não queim aram a nenhuma delas com exceção de H azor (Js 11.12,13). Tomar uma cidade e passá-la ao fio da espada, mesmo reconhecendo-a sob a maldição, não é necessariamente reduzi-la a cinzas. Quando é este o caso, de que Hazor é um exemplo, segue uma afirmação explícita de que tal cidade foi queimada.

A data da conquista de Josué

A razão por que tem-se enfatizado, e até certo ponto trazido cansaço ao leitor, que a maioria das cidades cananéias não foram destruídas material­mente por Josué é que, dentre todos os argumentos utilizados em favor de uma data apropriada para a'conquista, aquele argumento arqueológico que atesta uma violenta conflagração das cidades cananéias tem sido vis­to como o mais importante.64 De fato, sem o argumento arqueológico, pouca

a base resta para uma data mais recente (décimo terceiro século). A destrui­ção maciça ocorrida no século XIII documentada pela pesquisa arqueoló-

63 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 239.64 Yigael Yadin, por exemplo, argumenta que a "arqueologia traz uma imensa confirma­

ção que no final da Era do Bronze Recente, alguns israelitas de estilo de vida semi- nômade destruíram as principais cidades de Canaã; então, gradualmente, construíram seu novo estilo de vida sedentário sobre as ruínas dessas cidades."("Is the Biblical Account of the Israelite Conquest of Canaan Historically Reliable?" BAR 8 [1982]: 23). É surpreendente como Yadim distorce o relato bíblico da conquista e falha em se abrir para a possibilidade da destruição ocorrida na Era do Bronze Recente ter acontecido durante a era dos juizes', e não durante a conquista.

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gica é atribuída por muitos estudiosos à conquista israelita. Devido à for­ça deste argumento, a data tradicional para a conquista (princípio do sé­culo catorze) passou a ser rejeitada. Conseqüentemente, a data mais anti­ga para o êxodo (1446) também teve de ser ajustada.x Além de resultar em uma rejeição aviltante e não crítica do claro teste­

munho bíblico, esta visão baseada na arqueologia é apenas uma sugestão, podendo ser até considerada uma propostãmuito mal fundamentada. Em

‘■'primeiro lugar, não há qualquer documento do décimo terceiro século que forneça testemunho escrito identificando ou os habitantes das cidades des­truídas ou seus destruidores. Manter, baseado em artefatos não-literários, que as cidades destruídas no décimo terceiro século em Canaã eram povoa­das por cananeus e que foram destruídas por israelitas é presunção. Há tão pouca diferença entre os sítios arqueológicos cananeus e israelitas, que não se pode distinguir, baseados em princípios culturais, uns dos outros.65

A devastação de várias cidades por toda a Canaã (ou Israel) no décimo terceiro século, uma tragédia cuja realidade e quadro geral não podem ser negados, pode ser explicada como as batalhas de ocupação das cidades e vilarejos israelitas por seus inimigos, durante o período dos juizes, como também pode significar a ocupação das cidades cananéias e seus vilarejos pelos exércitos israelitas durante a conquista. Além disso, a cronologia do Antigo Testamento requer que o sofrimento de Israel durante, por exem­plo, o tempo de Débora (ver p. 184) enquadre-se naquele período ligado à conquista - no décimo terceiro século.L. A segunda, e a mais veemente razão para se rejeitar a data da conquista

no décimo terceiro século é, ironicamente, a confirmação arqueológica de um grande número de ruínas naquela época. Se a tese aqui adotada - de que Josué deliberadamente manteve uma política de preservação das es­truturas urbanas - está correta, e o registro bíblico consistentemente de­monstra isto, conclui-se que a evidência de uma destruição ocorrida no princípio do décimo quarto século se tornaria uma contradição embaraço­sa com o testemunho bíblico. Assim, os esforços de alguns conservadores para encontrar nos artefatos arqueológicos uma evidência de uma data mais antiga devem ser descartados.

Conforme demonstrado anteriormente, apenas três cidades - Jericó, Ai e Hazor - foram postas sob a condenação do herem e totalmente destruí­das. Jericó e Ai, por razões já mencionadas, não auxiliam no estabeleci­mento de uma cronologia. Resta apenas Hazor, sobre a qual infelizmente ainda existe muita controvérsia. Em sua publicação inicial acerca da cida­

65 Kenyon, Archaeology, p. 209.

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de de Hazor, o escavador Yigael Yadin argumentou que a cidade sofrerá várias conflagrações por volta de 1400, exatamente a data sugerida pela cronologia tradicional.66 Porém, mais tarde, Yadin reviu sua data e dimi­nuiu 150 anos, de forma que esta encaixou-se no décimo terceiro século, uma data aceita pela maioria dos estudiosos. Esta revisão, por sua vez, não permaneceu sem ser desafiada. John Bimson, por exemplo, em uma meticulosa análise dos dados arqueológicos oriundos de Hazor e das re­dondezas, concluiu que o ajuste feito por Yadin não apenas foi desne­cessário como também completamente injustificado. A data inicialmente proposta por Yadin (1400) está de fato correta. Logo, o único local que pode ser utilizado nesta discussão - Hazor - apóia inegavelmente uma data mais antiga para a conquista.67

O resumo das três fases da conquista (Js 11.16-20) confirma a interpre­tação que vem sendo proposta nesta obra sobre a sua natureza e extensão. O narrador informa que Josué tomou toda a terra, desde o monte Halaque (Jebel Halaq), nas profundezas do Neguebe, até Baal-Gade, no vale de Beca, a oeste do Hermom. Ele capturou e aniquilou todos os reis daquela área, destruindo totalmente as populações, com exceção dos gibeonitas que, por meio de uma trapaça, conseguiram que Josué fizesse com eles uma alian­ça. Nenhuma palavra é mencionada acerca de destruição material, embo­ra fosse esperada essa informação, uma vez que tal passagem faz uma recapitulação do procedimento e política então adotados.

A campanha contra os enaquins

Quase um adendo ao relato principal da conquista, o historiador agora refere-se a uma especial campanha de Josué que visava a tratar o proble­ma dos enaquins (Js 11.21-23). Israel havia encontrado essa raça de gigan­tes anteriormente, na ocasião em que espionava a terra de Canaã (Nm 13.21-33). O Antigo Testamento atribui sua origem a um certo Enaque (Nm 13.22), um descendente de Arba (Js 15.13), de quem originou o nome da cidade de Quiriate Arba, conhecida mais tarde como Hebrom (Js 14.15). No tempo de Josué os enaquins dividiam-se em três principais clãs - os filhos de Aimã, Sesai e Talmai (Nm 13.22; Js 15.14), a maioria dos quais vivia nas regiões montanhosas de Judá. O historiador provavelmente des­taca esta particular operação porque foram estes enaquins que haviam

66 Yigael Yadim, "Further Light on Biblical Hazor," BA 20 (1957)-. 44; "The Third Season of Excavation at Hazor, 1957", BA 21 (1958); 30-47.

67 Bimson, Redating, pp. 185-200.

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aterrorizado os espias de Israel - exceto Josué e Calebe e que indireta­mente tinham sido a causa do longo atraso na conquista da terra. Cabia perfeitamente ao próprio Josué voltar à fortaleza dos gigantes para de­monstrar a superioridade de Yahweh.

E difícil datar a expedição contra os enaquins, embora a frase "naquele tempo" (Js 11.21) estabeleça, sem dúvida, uma ligação entre este aconteci­mento e o relato anterior. Além disso, somos informados de que Calebe foi agraciado com as cidades de Hebrom e Debir como herança, mas para adquiri-las seria preciso expulsar os enaquins (Js 15.13-15). Não há dúvi­da de que a ira de Josué contra os enaquins era a mesma de Calebe - os dois trabalhavam juntos, com Josué no comando. Essa campanha, obvia­mente, provinha dos apelos de Calebe para possuir sua herança, um pedi­do feito quando este estava com oitenta e cinco anos (cerca de 1399 a.C. - ver em Js 14.7,10). O pedido foi feito especificamente para obter a cidade de Hebrom, nas regiões montanhosas, para o qual Josué consentiu alegre­mente. Quanto tempo levou entre o consentimento e a operação militar que realmente colocou a cidade sob seu controle não pode ser determina­do, embora, como já mencionado, "naquele tem po" sugere apenas um pequeno interlúdio.

Os enaquins sobreviventes estavam agora confinados a Gaza, Gate e Asdode, três dentre as cinco cidades dos filisteus. Talvez Golias e os ou­tros gigantescos filisteus não fossem de fato verdadeiros filisteus. Eles podem ter descendido de Enaque, que viveu entre os filisteus e por essa razão foram assim identificados.

Modelos alternativos da conquista e ocupação

Josué 12-19 relata essencialmente as alocações das tribos. Uma vez que a conquista inicial estava completa, uma tarefa que levou aproximada­mente sete anos (cerca de 1406 a 1399), era necessário iniciar o processo de ocupação, pois as cidades abandonadas seriam repovoadas rapidamente pelos habitantes da terra, caso Israel permanecesse por muito tempo fora delas. Pode-se deduzir que já alguma ocupação estava em andamento durante aquele tempo, mas está claro que a maioria de Israel ainda se achava concentrada em Gilgal e sua periferia. De fato, antes que a distri­buição da terra conquistada fosse feita em lotes e possessões, nenhuma residência oficial ou permanente poderia ser fixada. Antes de o padrão de distribuição adotado ser descrito, é importante considerar brevemente duas formas alternativas de ver a conquista e o estabelecimento de Israel: ã vi­são da tradição crítica e a sociológica. Visto que as duas visões produzi­

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ram uma variedade de modelos, apenas o mais conhecido ou mais popu­lar de cada uma será analisado aqui.

O modelo histórico-tradicional

A hipótese documentária e desenvolvimentista da crítica do Antigo Tes­tamento, que vem dominando a erudição bíblica há dois séculos, produziu uma abordagem particular sobre a questão das origens e da natureza de Israel que tem desafiado a pura descrição contida no Antigo Testamento. A tese dessa obra é que o registro do Antigo Testamento acerca da história de Israel, incluindo suas origens, deve ser aceito e acatado como um documen­to prima facie, cuja historiografia é de total confiabilidade, a não ser que haja fortes razões, internas ou externas, para pensar de maneira diferente. Den­tre os problemas internos que são levantados, e que levam alguns a questi­onar a fidedignidade do testemunho bíblico, está o fato de haver supostas contradições em seu registro, tais como duplicações (registros duplicados sobre o mesmo relato) e coisa semelhante. As considerações externas con­sistem em dados arqueológicos e históricos que parecem contradizer o pon­to de vista bíblico. Mas, se for possível demonstrar que todos os problemas internos e externos, apontados como motivos para se rejeitar o testemunho bíblico, são prontamente resolvidos dentro da própria estrutura bíblica tra­dicional, não mais haverá razão para duvidar do registro do Antigo Testa­mento. Embora essa tarefa não satisfaça todas as pessoas - pois os pontos de vista teológicos, filosóficos, e várias outras posições submetem-se a to­das as disciplinas, inclusive a historiografia - o estudante sem preconceitos reconhecerá que a construção bíblica da história de Israel possui reivindica­ções tão fortes quanto qualquer outra. E em nenhum outro lugar essa confiabilidade pode ser melhor demonstrada do que no caso da conquista e do estabelecimento de Israel em Canaã.

Nenhum estudioso atual domina tanto o tema das origens e desenvol­vimento de Israel quanto Martin Noth. Sua análise do assunto irá, portan­to, servir como representação da principal corrente histórico-tradicional.68

“ M artin Noth, Das system der zivõlf Stãmme Israels (Darm stadt: W issenchaftliche Buchgesellschaft, 1966): History o f Pentateuchal Traditions, traduzido por Bernhard W. Anderson (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1972); The History o f Israel 2a edição (New York: Harper and Row, 1960), especialmente as pp. 53-163. Para uma apresenta­ção e crítica ao trabalho de Noth, bem como uma reconstrução alternativa, ver em J. Liver, "The Israelite Tribes", em World History ofthe Jeioish People, vol. 3, Jitdges, editado por Benjamim Mazar (Tel Aviv: Massada, 1971), pp. 193-208.

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Virtualmente, todos os proponentes dessa escola concordam que houve uma confederação de doze tribos chamada Israel perto de 1200 a.C. Isto baseia-se na existência de composições poéticas muito antigas, tais como o "Cântico de Débora" (Jz 5), que confirma a existência da confederação. O fato, então, exige uma explicação. Quais fortes razões podem ter criado a unificação de agrupamentos tribais que, obviamente, em algum tempo viveram independentes? Aqui há diferença de opiniões. Noth sugere que é impossível conhecer o motivo da unificação, mas, uma vez concretiza­da, foi criada uma fé religiosa comum .69 John Bright, por outro lado, man­tém que o processo foi exatamente o contrário do que normalmente ocor­reria, ou seja, a fé comum foi o que aproximou as tribos para a unifica­ção.70 Ambos, porém, concordam que a mistura das tribos produziu a jun­ção de tradições religiosas e históricas, repassadas para a confederação pelas próprias tribos, resultando em que cada tradição tornou-se patrimô­nio comum de todo o Israel. Isto implica em que as tribos, de fato, não tiveram uma origem comum - certamente não eram descendentes dos doze filhos de um único pai; ou melhor, o relato do Antigo Testamento a respei­to de uma origem comum simplesmente reflete o produto final de uma mistura de tradições.

A confederação é melhor explicada com base nas exigências políticas e geográficas. As tribos israelitas, conforme defendido, eram primariamen­te (se não totalmente) não-cananéias, e se uniram em face das ameaças e pressões dos cananeus e filisteus, a fim de preservar interesses comuns, evitando assim a destruição ou assimilação. Além disso, muitas das tribos devem ter compartilhado experiências e tradições históricas semelhantes. Por exemplo, elas podem ter vivido uma vida de nômades, ou sofrido debaixo de escravidão opressora, ou podem ter abraçado as mesmas di­vindades por alguma razão. Esses fatores podem tê-las conduzido a uma amalgamação, visto que se encontravam na mesma terra.

Pode-se entender como este processo veio a existir através de uma típi­ca reconstrução. Algumas tribos, ou quem sabe todas, eram descendentes de imigrantes amorreus que chegaram a Canaã por volta de 2200-2000a.C., oriundos das regiões mais altas do Eufrates-Balik-Habor. Algumas delas (Aser, Naftali, Zebulom, Gade e Issacar) foram bem-sucedidas em sua tentativa de estabelecer-se. Outras, não logrando o mesmo êxito, es­palharam-se por várias direções. Rúben ficou restrita ao oriente do mar

69 Noth, History o f Israel, pp. 193-208.John Bright, A History o f Israel, 3a edição (Philadelphia: Westminster, 1981), pp. 148-50,164,165.

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Morto e começou a desaparecer. Simeão e Levi tentaram tomar Siquém, mas foram repelidas. Como conseqüência, Simeão passou a diminuir sen­sivelmente, sendo por fim absorvida pela tribo de Judá. Levi ou foi força­da a partir para o Egito ou espalhou-se por Canaã; nunca mais voltou a existir como uma entidade política. José (Efraim e Manassés) partiu e esta­beleceu-se no Egito. Uma perspectiva alternativa é que Efraim e Manassés originaram-se no deserto ao oriente de Jericó, entrando em Canaã durante o período de Amarna, talvez como os detestáveis 'apiru das cartas de Amarna. Judá residia desde tempos muito antigos no Negueve, provavel­mente nas imediações de Cades-Barnéia. Dã, a princípio, ficou restrita a uma minúscula área próxima a planície de Saron e, tempos depois, sob pressão (filisteus?), foi forçada a restabelecer-se ao norte, em Lais. Por fim, Benjamim, originalmente ao oeste junto das tribos josefitas, estabeleceu- se em uma pequena região central em Canaã (próximo a Jericó).

Portanto, o êxodo não envolvera todas as tribos em hipótese alguma, mas apenas Levi e as tribos de José no máximo, ou talvez somente Levi. Uma forte e persistente tradição bíblica liga Moisés à tribo de Levi; visto que Moisés estava no Egito, a tribo de Levi também deve ter estado lá. Caso haja realmente uma relação histórica entre Josué e Moisés, então Efraim também deve ser incluída no êxodo, pois Josué era descendente dessa tribo. É impossível negar a relação de irmãos entre Efraim e Manassés, logo, Manassés também deve ter se estabelecido no Egito. Esses fatos são um verdadeiro problema para muitos estudiosos, pois enquanto susten­tam uma data mais recente para o êxodo, querem identificar os 'apiru como as tribos de Efraim e Manassés. Em conseqüência, precisam deslocar as atividades das tribos de José em Canaã para mais de um século antes da data do êxodo. Isto significa que Josué precedera Moisés cronologicamen­te, e que se Josué participou de um êxodo, este não pode ter sido o de Moisés. Talvez, então, as tribos de José estiveram no Egito com Levi, mas de lá partiram mais de um século antes, sob a liderança de Josué. A lide­rança de Moisés em seu relacionamento com Josué não reflete necessaria­mente um fato histórico, mas consolidou-se como uma forte tradição que caracterizou Moisés como o libertador e o legislador.

Então, alega-se que Moisés conduziu pelo menos a tribo de Levi ao Sinai, onde foi introduzido ao Jeovismo pelo sacerdote midianita Jetro. Já conhecedor dos "deuses dos pais" (Elohim, El Shaddai, etc.), por meio de suas próprias tradições tribais, Moisés fez assim sua maior e mais signifi­cativa contribuição, ao identificar o Deus Jeová midianita das montanhas e do deserto como o Deus responsável pela libertação através do êxodo, e como o Deus de seus ancestrais, o Deus que sempre havia estado com

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eles, mas que até então não era conhecido por esse nome. Moisés, portan­to, tornou-se um missionário de Jeová, e quando ele e sua tribo Levi en­contraram-se com Judá em Cades-Barnéia, esta então converteu-se ao Jeovismo. Movendo-se para o norte de Canaã, Judá fez o mesmo a Simeão, e passou a ser o centro de culto a Jeová. O documento J, a suposta fonte do pentateuco que enfatiza o nome de Yahweh (Jahve em alemão), por fim foi criado em Judá e disseminado para todo o Israel, provavelmente nos dias de Salomão. Quando Moisés chegou a Transjordânia, encontrou-se com Rúben e Gade. Estas preferiram lá permanecer, mas as duas abraçaram a fé jeovista e, ao mesmo tempo, passaram para Moisés suas próprias tradi­ções, que vieram a se transformar na tradição de todo Israel. Então Moisés morreu. Segundo a opinião de que as tribos de José participaram do êxodo de Moisés, estas e Levi foram conduzidas por Josué através do Jordão por volta de 1250. Lá ele estabeleceu suas tribos Efraim e Manassés na região montanhosa que havia entre as tribos do sul (Judá e Benjamim) e do norte (Aser, Naftali, Zebulom, Gade e Issacar). Portanto, toda a terra desde Dã até Berseba veio a ser ocupada por tribos não-cananéias que, por fim, con- sideravam-se possuidores de uma origem e história comuns.71

A teoria então continua a explicar como ocorreu a fusão das tradi­ções. E provável que as tribos desde cedo reconhecessem (se com segu­rança ou não) uma origem araméia comum, bem como divindades e ancestrais epônimos comuns. M oisés introduziu o Jeovism o em Levi, José, Judá, Rúben e Gade. Josué, então, o encorajou entre as tribos indí­genas, e o resultado foi que os costumes tradicionais que distinguiam as tribos subm ergiram -se nos interesses de uma comum fé e história pan-israelita. A criação formal desta ligação pode ser vista na convoca­ção de Siquém em Josué 24. Entretanto, a questão se foi a "conversão" que produziu unidade política ou a unidade política que trouxe a con­versão ainda permanece.* Voltando a Martin Noth e sua construção de uma liga anfictiônica,72

observamos que ele e muitos críticos da tradição insistem que a confede­ração baseava-se em uma aceitação comum de várias tradições originais e independentes:

_1 Para uma apreciação diferente desse cenário, ver a obra de Benjamim Mazar "The Exodus and the Conquest", em World History ofthe Jewish People, vol. 3, pp. 79-93.Uma definição de "anfictiônico" e um forte protesto contra essa visão de que a união entre as tribos de Israel era de tal natureza pode ser vista em N. P. Lemche, "The Greek 'Amphictyony' - Could It Be a Prototype for the Israelite Society in the Period of the Judges?" /SOT4 (1977): 48-59.

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1. As promessas feitas aos pais. Algumas tribos entenderam sua exis­tência em Canaã e seus direitos a esta terra como o cumprimento das promessas feitas por Deus aos seus ancestrais.

2. Uma libertação miraculosa. O resgate da escravidão foi vivenciado por algumas tribos, embora Noth não tenha certeza de quais. De for­ma surpreendente, ele desassocia Moisés do acontecimento original.

3. Uma manifestação de Deus por meio da aliança. Algumas tribos, mais uma vez não identificadas, contudo provavelmente incluindo Levi, experimentaram algo profundamente significativo no Sinai, que para eles ficou claro ter sido uma revelação de Jeová.

4. Uma peregrinação no deserto. Visto que o tema de uma peregrina­ção no deserto é tão dominante na tradição, algumas tribos devem ter tido semelhante experiência.

5. Uma conquista ou herança da terra. Uma vez que a conquista tam­bém é um tema de bastante evidência, pelo menos algumas tribos devem ter adquirido alguns territórios à força.

Estas cinco principais tradições, distribuídas de alguma forma entre as doze tribos, foram reformuladas e refinadas, tornando-se assim um estoque comum para toda a confederação. Sendo assim, a história do pentateuco (ou hexateuco), conforme encontra-se registrada no Antigo Testamento canônico, é uma mistura e editoração desses e talvez de outros blocos origi­nalmente independentes. A redação foi feita de forma tão bem elaborada que se torna difícil perceber onde se encontram as emendas que caracteri­zam o arranjo. O leitor leigo, conforme a teoria sugere, não pode sequer imaginar que, por trás do que à primeira vista é um maravilhoso e consis­tente relato da história de Israel, existe um intricado complexo de coleção, edição e montagem de materiais, cujo valor histórico é altamente duvidoso. Não há como saber absolutamente nada sobre como de fato a história acon­teceu. Pode-se apenas saber como os redatores perceberam o que seria aquela história, à medida que apropriaram-se das tradições para seus próprios fins teológicos, políticos e apologéticos.73

O modelo sociológico

Se o modelo histórico-tradicional é uma reconstrução insatisfatória, o que dizer acerca de recentes tentativas de considerar a conquista e o esta-

73 Para uma clara apresentação da filosofia e da metodologia subjacente à referida reda­ção, ver em J. Maxwell, The Olá Testament and the Historian (Philadelphia: Fortress, 1976), especialmente as pp. 49-69.

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belecimento em Canaã seguindo certa abordagem sociológica, especial­mente como uma espécie de revolta de camponeses?74 Essa abordagem encontra seu mais poderoso e mais bem esclarecido intérprete na exausti­va obra de Norman Gottwald, The Tribes o f Yahweh (As Tribos de Javé). Baseada nas obras de George M endenhall,75 Robertson Smith76 e Max Weber,77 a tese de Gottwald expõe que a confederação dos israelitas veio a existir como resultado de uma revolta organizada de camponeses que de­safiara o estado de Canaã. Embora sem negar a origem e identificação não-cananéia das tribos, Gottwald minimiza aquele ponto, concentrando- se na existência de facto de Israel em Canaã e em seus esforços para lá estabelecer uma nova ordem social.78

O movimento começou, segundo informa Gottwald, com os 'apiru da era de Amarna, que serviram de modelo para os camponeses. O próximo passo foi a unificação dos que eram anteriormente grupos separados por interesses sociais, políticos, militares e de culto. Gottwald os classifica como Israel Eloístico. Finalmente, surgiu uma coalizão entre os 'apiru, eloístas e pastores transumantes de Canaã e do Egito, uma associação que se cha­mou Israel e que agora adorava Yahw eh .79 Em suma, a hipótese de Gottwald, de qualquer modo, não está relacionada com a noção de con­quista, mas tem a ver com uma luta de classes entre os camponeses (Isra­el) e a nobreza de Canaã. O resultado final foi a confederação das tribos e, como conseqüência, a monarquia.

Não é possível e nem há necessidade de desafiar esse modelo neste momento. Em primeiro lugar, a tese tem encontrado vigorosas críticas por parte de estudiosos de várias origens, conforme a referência às revisões de

74 Uma revisão excelente das posições sociológicas mais recentes com respeito a história de Israel e sua literatura encontra-se em Walter Brueggemann, "Trajectories in O.T. Literature and the Sociology of Ancient Israel," JBL 98 (1979): 161-85.

75 George E. Mendenhall, The Tenth Generation: The Origins ofthe Biblical Tradition (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973).

76 W. Robertson Smith, Lectures on the Religion ofthe Semites (Edinburgh: Adam and Charles Black, 1889); Kinship and Marriage in Early Arabia (London: Adam and Charles Black, 1903).

77 Max Weber, The Sociology o f Religion, traduzido por Ephraim Fischoff (Boston: Beacon, 1963).

78 Gottwald, Tribes o f Yahweh, pp. 210-19.79 Ibid., p. 497. Essa hipótese pressupõe uma conversão religiosa maciça, um fato que

não pode em nada ser comprovado por não haver evidências. Ver Jacob Milgrom, Religious Conversion and the Revolt Model for the Formation of Israel," JBL 101 (1982): 169,175-76.

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The Tribes o f Yahweh poderá demonstrar.80 Em segundo lugar, conforme J. Maxwell Miller sugere, essa é mais uma "reconstrução moderna que se impõe à tradição bíblica".81 E, na verdade, uma hipótese (revolta de cam­poneses) construída sobre uma hipótese (crítica da tradição ao estilo de Noth e outros), uma abordagem que, na maioria das disciplinas acadêmi­cas, submeteria seus proponentes ao escárnio e à rejeição como um inves­tigador científico.

Voltando ao relato do historiador bíblico, impressiona não existir no texto qualquer tentativa de salvar a sua credibilidade ou mesmo de expli­car os meios pelos quais a conquista e a ocupação foram concretizadas. Não há nada improvável no relato de que centenas de milhares de pessoas estabeleceram-se temporariamente em Gilgal, enquanto seus homens de guerra empreenderam campanhas militares contra as cidades e vilarejos por toda a extensão de Canaã. As regiões ao redor de Gilgal, Jericó, e a parte mais baixa do vale do Jordão são perfeitamente capazes de sustentar uma população dessa grandeza numérica, seja na questão do espaço físico ou das terras disponíveis para pastagem, campos cultiváveis ou água. Não há qualquer indicação no registro acerca de uma ocupação da região em larga escala, espalhando-se talvez para além das encostas ocidentais do vale. Também não é de surpreender que Josué e Israel tivessem sido tão eminentemente bem-sucedidos em suas campanhas militares.

Os cananeus e seus aliados já estavam completamente desmoralizados devido às notícias das vitórias passadas de Israel e da ameaça de invasão. Além disso, eles viviam em constantes guerras entre as cidades, ficando assim totalmente despreparados para efetuar qualquer resistência. Parece também que Israel os ultrapassava em número de homens de guerra, com exceção da campanha feita ao norte contra Hazor. Por último, porém não de menor importância, o próprio Yahweh pelejou por Israel. Essa era uma guerra santa, e através da intervenção divina muitos feitos foram realizados que, de outra sorte, não poderiam jamais ter ocorrido. Argumentar que a con­quista da terra, de acordo com o relato bíblico, não deve ser aceita porque requer ou pressupõe o sobrenatural é pelejar contra o cerne da fé bíblica:

80 Marvin L. Chaney, JBL 103 (1984): 89-93; Walter R. Wifall, "The Tribes of Yahweh: A Synchronic Study with a Diachronic Title," ZAW 95 (1983): 197-209; Eugene H. Merril, Bib Sac 138 (1981): 81-82; Frederic R. Brandfon, "Norman Gottwald on the Tribes of Yahweh", JSOT 21 (1981): 101-10.

81 J. Maxwell Miller, "The Israelite Occupation of Canaan," em Israelite and Judaean History , editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1977), p. 279.

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.4 C O SQ V IST A E A O C U P A Ç Ã O D E CANAÃ 1 2 9

Deus pôde e verdadeiramente revelou o seu poderoso braço para capacitar o seu povo a obter vitória contra o impossível. Isto não pode ser desafiado por meio de argumentos históricos, mas apenas teológicos.

A terra repartida entre as tribos

A divisão da terra conquistada e a sua ocupação também não são in­concebíveis. O processo, é preciso admitir, foi bastante complexo, e alguns dos relatos parecem contraditórios. Apesar disso, não é impossível imagi­nar o fato de Josué haver lançado sortes, supervisionado pessoalmente todos os esforços para a fixação das tribos, e vivido o suficiente para ver seus objetivos alcançados. Com efeito, todos os estudiosos concordam que houve um período em Canaã em que não havia israelitas, e que conse­qüentemente a composição da população ocorreu de modo que toda a terra foi chamada de Israel.82 A visão crítica da tradição dispõe apenas 200 anos para o acontecimento desta metamorfose, ao passo que a visão tradi­cional faculta 350 anos, um período sem dúvida bem mais provável para a complexa e difícil transição do cananeu para o israelita subentendido no Antigo Testamento e requerido inclusive por hipóteses alternativas.

A distribuição em larga escala

A distribuição da terra feita por Josué é introduzida mediante uma des­crição geral dos limites que compunham os territórios da Transjordânia (Js 12.1-6), assim como uma lista das principais cidades que foram toma­das em Canaã (vv. 7-24). Rúben, Gade e metade da tribo de Manassés pe­diram e receberam os antigos reinos de Siom e Ogue, reis dos amorreus, de Hesbom e de Basã respectivamente. Esta posse incluía tudo o que ha­via entre o rio Arnom, ao sul, e o monte Hermon, no norte; e desde o mar de Quinerete, o vale do Jordão e o ocidente do mar Morto até os desertos e o reino de Amom ao oriente. A herança das tribos restantes consistia nas trinta e uma cidades listadas e, sem dúvida, em muitas outras de menor importância. A ordem da lista sugere a ordem da conquista, embora um bom número de cidades não seja mencionado nas narrativas da conquista.

A despeito da aparente grandeza da conquista, houve áreas adjacentes e mesmo alguns pontos na própria região que não foram tomados por

52 Para uma visão moderadamente crítica e que leva seriamente em conta o relato bíblico, ver Yohanan Aharoni, "The Settlement of Canaan", em World History ofthe Jewish People, editado por Benjamim Mazar, vol. 3, pp. 94-128.

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Josué na ocasião (Js 13.1-7). Isto incluía todo o território dos filisteus, des­de o vadi el-Arish, ao sul, até o Ecrom, ao norte, ou seja, toda a planície

* costeira da Sefelá. Os filisteus viviam sobretudo em suas cinco principais cidades, mas outros povos como os gesuritas83 e avvim habitavam entre eles, particularmente nas regiões desérticas ao sul (Js 13.1-4). No norte de Canaã as regiões não conquistadas estendiam-se desde Mearah (localiza­ção desconhecida), uma dependência dos sidônios, até o Afeque situado na fronteira com os amorreus. Este é provavelmente Afeca, um pouco a sudeste de Biblos, na Fenícia.84 Os "amorreus" aqui não se referem àque­les de Canaã, mas ao reino de Amurru, que controlava a região central da Síria. Esta era aparentemente a fronteira do norte da Terra Prometida.85 A fronteira oriental dos territórios ao norte, ainda fora do controle de Israel, estendia-se desde Baal-Gade, um pouco ao ocidente do monte Hermon, até Lebo-Hamate (ou "a entrada de Hamate"), no Beca, pouco ao oriente de Gebal (Biblos). Naquela época, a fronteira ao noroeste da terra se esten­dia desde Misrefote-Maim, na costa do Mediterrâneo, cerca de 28 quilô­metros ao sul de Tiro, até Baal-Gade86. A área envolvida nesses limites incluía os reinos de Tiro, Sidom e provavelmente parte de Gebal. Geogra­ficamente, ela cobria toda a cadeia montanhosa do Líbano, desde o vale do rio Orontes até o sul das montanhas da Galiléia, e tudo desde o Medi­terrâneo até o vale de Beca. Os acontecimentos subseqüentes mostrarão que essa fronteira ao norte praticamente nunca esteve sob o domínio dos israelitas.

A distribuição da terra para cada tribo

A terra que estava de fato sob o poder dos israelitas foi repartida da seguinte maneira: Rúben recebeu a área ao leste do mar Morto, entre o rio Arnon, ao sul, e uma linha de aproximadamente 24 quilômetros ao norte do mar Morto, em algum ponto bem ao sul de Jazer. Gade reivindicou

83 Esses gesuritas, que viviam num local ainda não definido, próximo ao Neguebe, não deve ser confundido com aqueles do reino de Gesur, situado a leste do mar da Galiléia. Ver em Soggin, Joshua, p. 132.

84 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 238.85 M. Liverani, "The Amorites," em Peoples ofOld Testament Times, editado por D.J. Wiseman,

pp. 123-26.86 Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan,

1968), mapa 62, que equipara Misrefote-Maim ao rio Litani, que não é mencionado no Antigo Testamento.

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toda a região ao norte de Jazer, beirando ao Jordão, até o mar de Quinerete. Sua fronteira oriental beirava desde alguns quilômetros a oeste de Rabá, uma cidade amonita, até o noroeste de Manaim, no rio Jaboque, e d a li ' subia o Jordão até Quinerete. O território oriental de Manassés incluía a terra entre os amonitas (no oriente) até Gade (no ocidente). A porção sul mais distante situava-se em Maanaim, e estendia-se para o norte pelo Iarmuque. Dessa forma, Gade ocupou aproximadamente o sul e o oeste da Transjordânia, e Manassés o norte e as regiões orientais. A distribuição que se encontra registrada em Josué 13 parece de alguma forma contradi­zer o relato em Números 32. Entretanto, há razão para crer que as duas passagens, ao invés de serem contraditórias, como sugerem muitos estu­diosos,87 refletem na realidade a distribuição original feita por Moisés e outra feita por Josué anos mais tarde. A antiga distribuição entremeava as tribos de Rúben e Gade, dando ensejo a futuras anim osidades entre ambas.88 Josué então pode ter redefinido os territórios de uma e outra para evitar tal possibilidade.

Josué e o sacerdote Eleazar voltaram-se para a tarefa de delimitar os territórios designados às demais tribos (Js 14.1-5). Primeiro vieram os lí­deres de Judá, representados pelo ancião Calebe. Josué foi lembrado das promessas que Moisés fizera a Calebe de que este receberia uma parte da terra em que havia estado como espia do povo. Isto, informou Calebe, havia acontecido quarenta e cinco anos antes, quando ele estava com qua­renta anos. A missão de espionar a terra tinha se dado no segundo ano após o êxodo (1445 a.C.); logo, o lembrete de Calebe a Josué deve ser data­do por volta de 1399, ou seja, sete anos após o início da conquista. Quando os espias retornaram, Calebe e Josué encorajaram o povo de Israel a entrar em Canaã, não obstante a presença dos enaquins nas regiões montanho­sas do sul. Agora, Calebe usava a mesma força contra os mesmos gigan­tes, e foram-lhe dadas a cidade de Hebrom e outras cidades dos enaquins. A conquista de Hebrom deve ter sucedido essa requisição (Js 11.21,22; 15.13- 19; Jz 1.9-15).

Depois de expulsar os enaquins de Hebrom, Calebe também tomou Debir, situada cerca de 24 quilômetros ao sudoeste. Isto ele conseguiu ofe­recendo sua filha como esposa para qualquer herói que pudesse tomar a cidade, um feito realizado por seu próprio sobrinho Otniel. Aparentemente Otniel, mais tarde o primeiro juiz de Israel, estabeleceu-se em Debir - uma

s: Butler, joshua, pp. 157-63.ss Eugene H. Merril, "Numbers", em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F.

Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, p. 252.

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inferência extraída da solicitação de sua esposa por um dote que incluísse algumas fontes de águas próximas a essa cidade. Tende-se a concluir que essa conquista de Hebrom e Debir é a mesma descrita em Josué 11.21-23, já que ambas as cidades são mencionadas também ali. A ligação entre as duas cidades evidencia-se por terem sido habitadas pelos enaquins, um povo particularmente detestável para Calebe.

O restante da herança de Judá consistiu em uma vasta área cercada por uma linha ao sul que corria desde o sudoeste do mar Morto até Cades- Barnéia, movendo-se daquela região em sentido noroeste até a entrada do Vadi el-Arish. A fronteira ao oriente era o mar Morto, e ao ocidente, pelo menos em teoria, o Mediterrâneo. A fronteira ao norte iniciava pouco aci­ma do desaguamento do Jordão no mar Morto, e estendia-se para o oci­dente, através de Bete-Hogla ('Ain Hajlah) até as águas de En-Semes ('A.in el-Hod) e En-Rogel, na junção dos vales de Cedrom e Hinom, em Jerusa­lém. Sua extensão até o Hinom significa que Jerusalém situava-se ao norte de Judá, no território de Benjamim. De Jerusalém, o território de Judá con­tinuava a oeste para Quiriate-Jearim (a morderna Tel el-Azar) e Bete-Semes (Tel er-Rumeileh). Por fim, passava por dentro de Siquerom (Tel el-Fül), pouco ao norte de Ecrom, e para o Mediterrâneo próximo de Jabneel (Yebna). A lista das cidades que percorrem a delineação da fronteira inclui somente aquelas que foram conquistadas durante a invasão de Canaã e as que pertenciam a Judá por promessa. A referência a Jerusalém (Js 15.63) não implica em que tal cidade houvesse sido destinada à tribo de Judá, mas apenas que Judá havia feito uma tentativa sem sucesso de expulsar os jebuseus permanentemente (Jz 1.8).

A herança de Efraim (Js 16.5-10) foi fixada por limites que começavam em Atarote-Adar (Kefr 'Aqab),89 cerca de 13 quilômetros ao norte de Jeru­salém. A fronteira ao sul subia até o alto Bete-Horom (Beit 'Ur el-Foqa) e presumivelmente ao sudoeste para então unir-se com a fronteira de Judá em algum ponto próxim o a Siquerom . Ao norte o ponto inicial era Micmetate (Khirbet Makhneh el-Foca), menos de 8 quilômetros ao sul de Siquém. De Micmetate a fronteira corria para o oriente até Tanate-Silo (Khirbet Ta'na el-Foca) e Janoa (Khirbet Yanum), ao sul, sentido Jericó, e ao leste para o Jordão. A fronteira mais distante ao sul deve ter começado no Jordão, dirigindo-se ao oeste, passando por Jericó até chegar a Atarote- Adar. Novamente, desde Micmetate, a fronteira norte seguia ao oeste para Tapua (Sheikh Abu Zarad), até o vadi Kanah, seguindo seu curso até o Mediterrâneo, unindo-se a esse mar na moderna Tel Aviv. Além disso,

89 Oxford Bible Atlas, p. 123.

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Efraim herdou certas cidades que pertenciam ao território de Manassés (Js 16.9). Outras cidades permaneceram em poder dos cananeus, notavel­mente Gezer. E um grande número de cananeus viveu entre os efraimitas como escravo.

Os clãs de Manassés que não permaneceram na Transjordânia ocuparam a área próxima ao norte de Efraim, em direção ao vale do Jordão, ao norte. A fronteira ao sul, então, era o limite norte de Efraim. A cidade de Tapua, que geograficamente era uma parte da região de Tapua, foi dada por alguma razão a Efraim (Js 17.8). Por outro lado, Manassés tomou algumas cidades que geograficamente poderiam ter sido mais apropriadas a Aser e Issacar. Estas eram Bete-Seã (Tel el-Husn ou Beisan), Ibleã (Khirbet Bel'ameh), Dor (Khirbert el-Burj), En-dor (Khirbet Safsâfeh), Tanaque (Tel Ti'innik) e Megido (Tel el-Mutesellim). Devido à grande resistência armada pelos cananeus na região norte, Manassés não pôde possuir suas cidades de uma só vez, mas apenas gradualmente subjugou os cananeus, tornando-os seus escravos. Tanto Efraim quanto Manassés sentiram-se constrangidos com os elemen­tos cananeus que habitavam nos vales e planícies fronteiriços a seus territó­rios, de forma que solicitaram a Josué que lhes desse mais terra. Josué repli­cou que eles deveriam expulsar os cananeus que ainda viviam na subida de seus bosques; assim, progressivamente se tornariam fortes o suficiente para removerem os cananeus de Jezreel (Js 17.14-18).

Ainda restavam sete tribos entre as quais seria repartido o restante da terra. Josué, portanto, reuniu os líderes em Siló (Khirbet Seilun), o novo centro de culto e política,90 e aconselhou-os a enviar alguns espias às regi­ões que ainda seriam alocadas. Os espias retornaram com um relatório que descrevia a terra e indicava a melhor maneira pela qual esta poderia ser repartida.

Seguindo o relato, Josué resumiu o processo de distribuição. Primeiro, Benjamim recebeu uma pequena porção entre Judá e Efraim, incluindo as importantes cidades de Jericó, Betei, Gibeá, Gibeão e Jerusalém. Simeão, talvez dizimada pelo julgamento de Jeová em Peor, tinha uma população insuficiente para garantir um distrito para si mesma, tornando-se então um clã dentro de Judá. Algumas de suas principais cidades foram Berseba, Hormá e Ziclague, mais tarde muito famosa por seu relacionamento com o rei Davi.

50 Embora Siló "tenha sido muito desabitada durante a Era do Bronze Recente" (Boling, Joshua, p . 422), houve ocasiões em que esse fator não era o caso, o que abre a perspectiva para que ela tenha servido como uma espécie de centro cultural de Israel desde o déci­mo quarto século em diante.

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Ao norte do vale de Jezreel coube a herança de Zebulom. Desde Saride (Tel Shadud), menos de 16 quilômetros ao norte de Megido, passando pela planície de Jezreel; a fronteira sul de Zebulom corria sentido oeste até al­cançar a Jocneã (Tel Qeimun). Para o oriente de Saride, a fronteira se es­tendia em direção a Jafia (Yafa), e dali movia-se para o norte até Gate- Hefer (Khirbet ez-Zurra') e Rimom (Rumaneh). Pouco acima de Rimom, a fronteira voltava-se para oeste, passando pelo vale de Ipta El (Vadi el- Malik).

A segunda tribo a receber herança na região da Galiléia foi Issacar. Sua fronteira ao oeste alinhava-se desde Jezreel (Zer'in) indo para o norte, atra­vés de Suném (Sôlem), até Quesulote (Chisloth-tabor). Do oriente de Jezreel a fronteira seguia para Remete (Jarmute),91 quase a 5 quilômetros do Jordão e 12 quilômetros ao norte de Bete-Seã. Deste ponto seguia em direção nor­te ao longo do Jordão e para oeste até o monte Tabor. Issacar então herdou uma porção de terra muito pequena, cuja grande parte era controlada por cananeus nos primórdios da história.

Aser estabeleceu-se na costa do M editerrâneo, ao norte do monte Carmelo. De Helcate (Tel el-Qassis), no Quisom, sua fronteira seguia em direção norte até Acsafe e provavelmente até Aczibe (ez-Zib). No sul a fronteira começava na costa do Mediterrâneo e tocava o monte Carmelo e Shihor-Libnath (Vadi Zerqa),92 voltava-se a noroeste, ao longo da frontei­ra de Zebulom e do vale Ipta El. De lá estendia-se até o norte para Bete- Emeque (Tel Mimâs), passando por Neiel (Khirbet Ya'nim) e Cabul (Kã- bül), estendendo-se muito longe para o norte, até Ebrom (Abdon?), Caná (Qânã) e Hosa (Usu?) no Mediterrâneo, apenas 6 ou 8 quilômetros ao sul de Tiro. A fronteira, é claro, seguia a costa sul do Mediterrâneo até Aczibe.

Surgem muitos problemas quando se empreende uma tentativa de reconstruir as fronteiras de Aser, dos quais o principal é a aparente per­da do monte Carmelo e a costa do Mediterrâneo de lá até Aczibe. A pri­meira fronteira mencionada, desde Helcate até Acsafe (e Aczibe?), pare­ce ser a ocidental, ao passo que a oriental corria desde o vale Ipta El até a cidade de Tiro. E bem possível que uma população cananéia controlas­se o Carmelo e a costa ao norte durante a fase inicial. Um segundo pro­blema é a aparente localização de Dor dentro de Aser, quando já havia sido anteriormente designada a Manassés. A solução evidentemente é o fato de que, por razões inespecíficas, Manassés possuiu algumas cida-

51 Oxford Bible Atlas, p. 138.92 Oxford Bible Atlas, p. 49. Aharoni, Land o f the Bible, p. 258, identifica a Shihor-Libnath

com a Kishon, portanto localizando especificamente o Carmelo fora de Aser.

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des, inclusive Dor, que na verdade estavam dentro das fronteiras de Aser (Js 17.11).93

A sexta herança distribuída em Siló foi para Naftali. A fronteira ao sul, começando em Helefe (Khirbet Trbâdeh?), seguia em direção a Jabneel (Tel en-Na'am) terminando no Jordão. De Helefe, estendia-se para o oeste e para o norte, passando através de Hukkok (Yakuk), próximo à curva nordeste de Quinerete. Embora o restante da fronteira a oeste e ao norte não seja especificada, a soma de toda a extensão das possessões de Naftali- até Zebulom ao sul, Aser a oeste e o Jordão ao oriente - pressupõe que esta tribo estendeu seus limites para o norte o máximo que pôde, chegan­do até Tiro, ao ocidente, e ao Jordão, a oriente. Esse fato é confirmado pela lista das cidades fortificadas dessa tribo: En-Hazor (Hazzur), Cades (Tel Qades) e Hazor (Tel el-Qedah), todas elas situadas no norte da Galiléia.

A herança da tribo de Dã caiu para o oeste de Benjamim, entre as tribos de Judá e Efraim. Mas em conseqüência de Dã ter-se mostrado inapto para ocupar as terras ao oeste, no Sefelá, e nas planícies costeiras, a tribo imi- grou para o norte e apoderou-se do pequeno reino de Lessem (Lais), que ficava ao norte do lago Hulé. Juizes 18 fornece detalhes a respeito dessa mudança.

A última distribuição de terra coube ao próprio Josué (Js 19.49,50). Como Calebe, ele havia afirmado a soberania de Jeová sobre a terra da promessa, e agora herdava a sua possessão. A cidade que ele havia solicitado e rece­beu chamava-se Timnate-Heres (Khirbet Tibnah), na região montanhosa ao oeste de Efraim.

As cidades de refúgio

Antes de sua morte, Moisés determinou que seis cidades de refúgio fossem nomeadas em Canaã, três ao leste e outras três ao oeste do Jordão (Nm 35.6-34; Dt 4.41; 19.2). O propósito era providenciar um santuário para alguém culpado de homicídio até que houvesse oportunidade deste ser imparcialmente julgado. Uma pessoa culpada de homicídio deveria ser executada, mas alguém que tivesse matado acidentalmente poderia permanecer na cidade de refúgio, até a morte do sumo sacerdote então em ofício. As cidades escolhidas foram Cades (Tel Qades), em Naftali, que distava apenas oito quilômetros do lago Hulé; Siquém (Tel Balâtah), em Efraim; Hebron, em Judá; Bezer (Umm el-'Amad), em Rúben, a oito quilô-

Outra solução possível é sugerida na nota 92: se Shihor Libnath deve ser identificada com a Quisom, então Dor deve ser localizada fora de Aser.

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metros de distância de Hesbom; Ramote (Tel Rãmíth), em Gade; e Golan (Sahm el-Jõlân), em Manassés, cerca de 32 quilômetros a leste do mar de Quinerete. Portanto, de qualquer parte da terra, não seria tão distante en­contrar um santuário.

As cidades dos levitas

As seis cidades de refúgio estavam entre as quarenta e oito que haviam sido dadas aos levitas como herança (Nm 35.1-8). Como uma tribo separa­da para Jeová em lugar de todos os primogênitos de Israel (Nm 3.41), e servindo ao Senhor no que diz respeito ao serviço sagrado, os levitas, di­ferentemente das outras tribos, não possuíam um território próprio. Em vez disso, cidades com terras para pastagens em redor lhes foram garanti­das, onde poderiam viver entre o povo, ministrando-lhes. Embora proibi­dos de empregar-se em funções seculares, fora-lhes permitido cultivar pequenas plantações e criar pouca quantidade de gado. Como exatamen­te eles exerciam as funções em suas cidades não está claro, embora presu- ma-se que supervisionavam qualquer atividade religiosa que fosse per­mitida fora do santuário central. E também, é claro, serviam no tabernáculo e no templo, de acordo com a escala prescrita.94

Os coatitas receberam algumas cidades em Judá, Simeão, Benjamim, Efraim, Dã e Manassés ocidental. Os sacerdotes (dos quais todos descen­diam de Arão, assim eram coatitas) foram restritos a Judá, Simeão e Benjamim. Portanto, as cidades levitas dessas tribos, que ao todo soma­vam treze, eram totalmente habitadas por sacerdotes. O motivo para tal alocação é desconhecido, especialmente nesse período primitivo; porém, quando Jerusalém tomou-se a capital e o centro de adoração, a sabedoria em ter os sacerdotes habitando nas proximidades de Jerusalém tornou-se óbvia. As mais famosas cidades dos sacerdotes eram Hebrom, Debir, Bete- Semes - estas em Judá e Simeão - e Gibeão e Anatote, em Benjamim. Hebrom e Debir foram dadas a Calebe, um não-levita, mas agora está cla­ro que a sua reivindicação estendia-se apenas às imediações da cidade, e que estas verdadeiramente eram habitadas por sacerdotes. Bete-Semes foi por pouco tempo (e apropriadamente, em vista de ser uma comunidade sacerdotal) o lar da Arca da Aliança (1 Sm 6), Gibeão era o local do Tabernáculo de Moisés nos dias de Davi (2 Cr 1.3), e Anatote, o lar do sacerdote e profeta Jeremias. A ocupação de Gibeão pelos sacerdotes pres­supõe, obviamente, a expulsão final dos heveus que lá habitavam. Os

94 Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 2, pp. 358-71.

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coatitas que não eram sacerdotes habitavam em dez cidades, incluindo Siquém, Gezer, e Bete-Horom, em Efraim; Aijalom em Dã; e Tanaque no lado ocidental de Manassés.

O clã gersonita de Levi recebeu treze cidades em Issacar, Aser, Naftali e a Manassés oriental. As mais importantes eram Golã, uma cidade de refú­gio; Jarmute e Cades, outra cidade de refúgio. Os meraritas estabelece­ram-se em doze cidades em Rúben, Gade e Zebulom, incluindo Bezer e Ramote, duas cidades de refúgio, e Hesbom. Novamente, a distribuição sábia das cidades levitas garantia pronto acesso para todo israelita que delas precisasse. ^

Assim que o processo de alocação das tribos chegou ao fim, Josué de­terminou que todos os homens de guerra das tribos de Rúben, Gade e Manassés oriental retornassem a seus lares na Transjordânia. Eles haviam cumprido com a palavra dada a Moisés, segundo a qual ajudariam a seus irmãos na conquista de Canaã, em troca de permanecerem nas terras ao leste do Jordão. No caminho de casa, porém, eles erigiram um altar próxi­mo ao Jordão, cujo propósito, informaram eles, era servir como um monu­mento comemorativo, um símbolo da unidade perpétua e de fé comum entre as tribos do oriente e as do ocidente. Antes que o assunto fosse escla­recido, Josué preparou-se para guerrear, pois entendera que a construção era um altar em competição com o santuário central em Siló.

A preocupação de Josué refletia a sua compreensão de Deuteronômio 12, que especificava que a adoração comunitária de Israel deveria ser cen­tralizada. De fato, os altares locais construídos para sacrifícios particula­res eram permitidos; mas, para todo o Israel, o povo da aliança com Jeová, somente um local para a adoração era lícito. Josué, portanto, enviou uma delegação de líderes até as tribos da Transjordânia para informar-se acer­ca do que significava o altar. Satisfeito por não se tratar de um centro de culto alternativo, Finéias, o chefe da delegação, voltou a Siló e apresentou o seu relatório, acalmando assim os ânimos de Israel.

A segunda renovação da aliança em Siquém

Muitos anos após este episódio, Josué, ciente de que a sua morte estava próxima, reuniu em Siquém os líderes das tribos para admoestá-los a serem fiéis à aliança, conduzindo-os em uma cerimônia de reafirmação do pacto. Em obediência às ordens expressas de Moisés, Josué havia conduzido tal cerimônia na época em que Israel entrou na terra (Dt 27.1-8; Js 8.30-35). Agora, ele repetia a ocasião a fim de prevenir qualquer tipo de abandono da alian­ça, conforme a sua suspeita sobre o altar erguido pelas tribos orientais pró­

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ximo ao Jordão. Além disso, ele agora dirigia-se a uma nova geração de israelitas, uma geração que, em sua maioria, não havia participado pessoal­mente da renovação da aliança. Portanto, depois de um período de mais de trinta anos, a comunidade reafirmou o seu compromisso.95

Josué primeiramente relatou todos os poderosos feitos de Deus em fa­vor de Israel (Js 23). Ele havia pelejado por eles e lhes dera uma herança na terra. Ainda que no momento não tivessem possuído toda a terra, Ele as­segurava o sucesso final. Porém, isto dependeria da obediência do povo e de uma firme adesão aos princípios da aliança. Qualquer falha a esse res­peito ocasionaria o juízo de Yahweh, que os removeria da terra.

Assim, em Josué 24 aparece a descrição da renovação da aliança. Era comum no antigo Oriente Médio que cada nova geração de vassalos ou­visse e respondesse aos termos da aliança que fora inicialmente firmada entre seus antepassados e o suserano. Moisés havia inicialmente recebido a revelação da aliança com Yahweh no Sinai, escrevendo ele mesmo o tex­to da aliança (essencialmente Êx 20-23) e o contexto histórico no qual ela foi oferecida (Êx 19) e aceita (Êx 24). Aproximadamente quarenta anos depois, ele reiterou os termos da aliança nas planícies de Moabe, desta vez com adornos e emendas apropriados para a nova geração, que estava para sair do deserto e lançar-se à conquista e à vida sedentária. Josué reafirma­ra a aliança no início da conquista (Js 8.30-35); agora, vendo que uma nova geração havia nascido e enfrentado condições completamente novas, mais uma vez ele reunia o povo para uma renovação da aliança.

O cerimonial de renovação seguiu o procedimento padrão .96 Josué reu­niu o povo diante de Yahweh (Js 24.1); então passou a descrever os feitos

95 O cálculo para essa datação reside no fato de Josué, que morreu aos 110 anos de idade (Js 24.29), haver pronunciado esse discurso bem no fim de sua vida (Js 23.1,2,14). Visto que ele, sem dúvida alguma, tinha cerca da mesma idade de Calebe (ou talvez um pou­co mais novo que ele), que estava com oitenta e cinco anos em 1399 a.C. (Js 14.6-12), sua morte deve ter ocorrido no mínimo por volta de 1375 ou então trinta anos depois da renovação da aliança descrita em Josué 8. Ver p. 149 para uma argumentação que defen­de a idéia de que Josué, na verdade, morreu aproximadamente em 1366.

96 Para um comentário de Josué 24 como um texto específico da aliança e registro da ceri­mônia de renovação, ver Delbert R. Hillers, Covenant: The History o f a Biblical íâea (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1969), pp. 58-66. Hillers com muita precisão indica o fato de que essa passagem não contém o texto da aliança propriamente dito, mas uma descrição de como tal aliança foi cumprida (p. 61). Não havia razão para termos ãqui um texto volumoso da aliança, já que é bem provável que Josué estivesse chamando a atenção do povo para os aspectos essenciais da aliança, conforme vemos delineados em Deuteronômio.

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de Deus para com Israel, repetindo toda a história sagrada até aquele momento (vv. 2-13), e os exortou a repudiarem todos os monarcas adver­sários (outros deuses), sendo fiéis somente a Yahweh (vv. 14,15). O povo concordou com a interpretação de Josué sobre a história e prometeu total obediência (vv. 16-18). Josué lembrou-lhes que a guarda da aliança seria difícil, e que a falha dispararia a ira de um Deus santo (vv. 19,20). Eles, por sua vez, prometeram servi-lo, rejeitando outros deuses (vv. 21-24).

Após a cerimônia ter-se realizado, deu-se um ritual que incluía o regis­tro do compromisso e o levantamento de uma esteia comemorativa, que para sempre serviria de testemunha das promessas feitas (vv. 25-28). Foi muito apropriado que a cerimônia tivesse ocorrido em Siquém, pois lá o próprio Abraão, pai de Israel, chamado para uma aliança com Yahweh, ergueu um altar em celebração da presença teofânica de Deus. O Deus dos pais era o mesmo Deus de Josué e de sua geração.

Logo em seguida, Josué morreu e foi sepultado em sua cidade, Timnate- Heres. E assim, como sugerindo o final de uma era - a era patriarcal atra­vés do cumprimento da promessa patriarcal da terra - o historiador regis­tra que os ossos de José, miraculosamente preservados por mais de qua­trocentos anos, foram trazidos e enterrados em Siquém. Assim como essa região de Siquém (atualmente a cidade de Dotã) marcou o ponto da desci­da de José ao Egito, em preparação para a salvação do povo de Israel, agora rrfãrcava o ponto de sua subida em celebração do livramento dado por Yahweh e o cumprimento de sua promessa. Por último, Eleazar mor­reu e foi da mesma forma enterrado em Efraim. Era muito evidente que Israel estava para penetrar em uma nova era de sua experiência histórica.

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A E R A D O S J U I Z E S : A V I O L A Ç A O D A A L I A N Ç A , A N A R Q U I A E A A U T O R I D A D E H U M A N A

O problem a crítico-literário no livro de Juizes A cronologia de Juizes

A duração do período A data inicial A data de encerramento

Com primindo a cronologia O m undo do antigo Oriente M édio

O silêncio do A ntigo Testamento M esopotâm ia Os hititas EgitoOs estados siro-cananeus

Os juizes de IsraelO padrão cíclico que caracteriza o períodoA natureza da idolatria em CanaãOtnielEúdeSangarDéboraGideãoO reinado m alogrado de Abim eleque Ju izes menores Jefté Sansão Samuel

A trilogia de Belém M ica e o levita O levita e sua concubina A história de Rute: ligações patriarcais

Judá e TamarOs patriarcas e a monarquia O papel da donzela moabita

O problema crítico-literário no livro de Juizes

A maioria dos estudiosos do Antigo Testamento está ciente dos problemas históricos e literários presentes na transição do livro de Josué para o livro de Juizes. No centro das dificuldades estão as referências à morte de Josué em Juizes 1.1 e 2.8, seguidas respectivamente por relatos da conquista e apostasia.

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0 procedimento comum dos críticos tem sido, pelo menos, comparar tradi­ções diferentes que não conseguiram alcançar uma redação satisfatória.1

A solução m ais sa tisfa tória para esta aparente contrad ição ou sobreposição de fontes é entender Juizes 1.1-2.9 como uma ponte literária que conecta o final do relato de Josué ao início das narrativas dos Juizes. O livro de Josué registra que "Josué, filho de Num, o servo do Senhor, fale­ceu, sendo da idade de cento e dez anos" (Js 24.29). Exatamente com as mesmas palavras o autor de Juizes registra a morte de Josué. Para evitar que o livro iniciasse com a apostasia de Israel e mostrar que esta apostasia não seguia imediatamente a morte de Josué, o historiador começa com o relato da campanha de Judá e Simeão contra os cananeus que esporadica­mente ainda permaneciam na região montanhosa ao sul. E importante notar que os inimigos não mais são os amorreus, como foi o caso na campanha inicial liderada por Josué, pois imagina-se que os amorreus tenham sido expulsos de Judá de uma só vez.2 O rei cananeu especificamente é Adoni- Bezeque, rei de Bezeque (Khirbet Bezqa), cerca de cinco quilômetros a nordeste de Gezer.3 Tomando-o como prisioneiro, os homens de Judá le­varam-no até Jerusalém, onde veio a morrer.

1 Otto Eissfeldt, The Old Testament: An lntroduction, traduzido por Peter R. Ackroyd (New York: Harper and Row, 1965), pp. 253-55, 257-58; J. Alberto Soggin, lntroduction to the Old Testament, traduzido por John Bowden (Philadelphia: Westminster, 1980), pp. 166- 70. Uma atitude de cepticismo típica com respeito à historicidade do livro é a que se vê em Sean Warner: "Parece ser opinião comum entre os historiadores que os dados conti­dos na primeira parte do livro são historicamente problemáticos, que a estrutura redacional da segunda parte, a principal deste livro, é definitivamente secundária e de fato traz pouca ligação entre as histórias contidas no livro, e que a terceira parte tam­bém é problemática, tornando-se difícil, se não impossível, decidir a favor da autentici­dade de seus dados" (The Dating ofthe Period ofthe Judges, VT 28 [1978]: 455-56). Devido a tais suposições infundadas, não é de admirar que o livro-de Juizes tenha se constituí­do em um problema para a erudição crítica.

2 A campanha na região montanhosa em Judá, sob a liderança de Josué, envolveu os amorreus (Js 10.6) e, é claro, não estava restrita às tribos de Judá e Simeão. Portanto, esta não deve ser a batalha em questão. Além disso, Josué estava morto nessa ocasião (Jz1.1), Judá e Simeão já tinham recebido seus territórios em comum (Jz 15.1; 19.1), e existe especialmente uma distância entre esse acontecimento e qualquer outro descrito no li­vro de Josué. Conforme as palavras de Robert G. Boling, Juizes 1 "á uma retrospectiva do desempenho da geração que sobreviveu a Josué." (Judges, Anchor Bible [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1975], p. 66).

3 Não há qualquer base, textual ou não, para assumir que Adoni-Bezeque seja uma cor­rupção do nome Adoni-Zedeque (Js 10.1), como sugerido, por exemplo, por George F. Moore, A Criticai and Exgetical Commentary on Judges (New York: Scribner, 1895), p. 16.

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A £>.a d o s J u i 7 .E s : A V io l a ç ã o d a A l ia n ç a , A n a r q u ia e a A u t o r id a d e H um ana 1 4 5

A esta altura, o leitor cuidadoso pode perguntar como foi possível aos homens de Judá obter acesso a Jerusalém, visto que a cidade permaneceu sob o domínio dos jebuseus até o período de Davi. Antecedendo à ques­tão, o historiador continua relatando como Jerusalém, pelo menos tempo­rariamente, veio a ser dominada por Israel. Para isto, o autor utiliza o re­curso literário deflash back , voltando ao período remoto em que Josué ain­da era vivo. Portanto, em Juizes 1.8 está contida a descrição da queda de Jerusalém, um acontecimento explicitamente não relatado em Josué, em­bora sugerido sem dúvida pela morte do rei de Jerusalém durante a cam­panha de Josué para o sul (Js 10.22-27). Naqueles dias Jerusalém havia sido capturada e queimada pelos homens de Judá, mas a população não foi destruída. De fato, pouco tempo depois, os jebuseus retomaram o con­trole, e nem Judá (Js 15.63) nem Benjamim (Jz 1.21) puderam desalojá-los novamente.

O resumo retrospectivo continua com a conquista realizada por Judá da região montanhosa, o Negueve e a Sefelá, focalizando a tomada de Hebrom. Provavelmente isto se refere a uma expedição particular contra Hebrom, em atenção ao pedido de Calebe por sua herança (Js 11.21-23; 14.13-15; 15.13-19), em vez de uma derrota anterior dos reis amorreus conseguida por Josué e todo o Israel (Js 10.36,37).4 Semelhantemente, a captura de Debir (Jz 1.11-15; cf. Js 10.38,39) enquadra-se na história da campanha de Calebe, e não na conquista israelita do sul. E especialmente apropriado que o historiador repita a história de Calebe e Otniel, uma vez que Otniel será introduzido como o primeiro dos juizes. Então, vê-se aqui outra ponte literária e histórica entre os livros de Josué e Juizes.

Essa retrospectiva parentética até o tempo de Josué aparentemente ter­mina repetindo o relato da entrega de Hebrom e Debir a Calebe. Agora, o autor retorna à narrativa dos versos 1-7, que diz respeito à conquista efe­tuada por Judá e Simeão. O autor fala primeiro acerca da assimilação dos quenitas5 por Judá, e os ataques combinados contra a fortaleza cananéia

4 É mais uma vez importante notar que os inimigos nas campanhas remotas (Js 10) foram os amorreus, enquanto que na conquista da cidade de Hebrom, com a participação dire­ta de Calebe, os inimigos foram os enaquins (Js 11) e os cananeus (Jz 1). Parece claro que os enaquins eram um povo cananeu, e não os amorreus, embora ambos possam ter coexistido (Nm 13.22; Js 15.13,14).O Antigo Testamento identifica os quenitas como midianitas (Jz 1.16), e diz que seu ancestral foi Hobabe, cunhado de Moisés, que acompanhou o povo de Israel, pelo menos em parte, do Sinai até Canaã (Nm 10.29-32). Para estudar sobre tal ligação, ver em H. H. Rowley, From Joseph to Joshua (London: Oxford University Press, 1950), pp. 152-55.

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A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A u toridade H umana 1 4 7

de Zeftá, um local antigamente conhecido por Hormá (Jz 1.17).6 Então eles conseguiram tomar três cidades dos filisteus: Gaza, Ascalom e Ecrom. Finalmente, o historiador relata que Judá e Simeão tomaram todas as ci­dades montanhosas do sul, incluindo Hebrom, apesar de não ter sido pos­sível ocupar as planícies porque os seus moradores possuíam carruagens de ferro.7

Em sintonia com o modelo de conquista descrito no livro de Josué, o historiador agora volta a atenção para o norte, para a conquista de Betei pelos homens da tribo de José (Jz 1.22-26). Através de suborno e ameaças a cidade foi conquistada. Betei tinha sofrido uma considerável perda de habitantes quando Josué conquistou Ai, mas nada além de uma breve menção em Josué 12.16 é dito acerca da captura da própria cidade naquele tempo. O acontecimento em Juízes, então, deve referir-se a um episódio posterior no qual a tribo de Efraim empreendeu esforços para ocupar o território herdado (Js 16.1,2). De modo similar, a tribo de Manassés oci­dental tentou sem êxito reivindicar a sua herança. Com palavras que alta­mente recordam o relato em Josué, (Jz 1.27,28; cf. Js 17.12), o narrador diz que Manasses não pôde repelir os cananeus de certas cidades, especial­mente da planície de Jezreel (Bete-Seã, Tanaque, Ibleam e Megido) e da planície costeira (Dor). Estas cinco cidades foram por fim habitadas por Manassés, ainda que tecnicamente pertencessem a Issacar e a Aser (Js 17.11). A razão é que, em cada caso, elas estavam geograficamente contíguas a Manassés, e sofriam a intervenção dos cananeus que reivindicavam seus direitos originais sobre elas.

Ao norte da planície de Jezreel a situação ainda era a mesma. Zebulom não expulsou os cananeus de Quitron e Naaol; Aser foi frustrado em

6 Israel destruiu certas cidades cananéias quando estava a caminho de Canaã, sendo tais cidades chamadas coletivamente de Hormá (de herem, "banido; proibido"), em conse­qüência da sua punição (Nm 21.1-3). Zefate deve ter sido uma cidade reconstruída so­bre essas ruínas. Ver Yohanan Aharoni, The Land ofthe Bible (Philadelphia: Westminster,1979), p. 216.

7 Visto que a Idade do Ferro na Palestina deve ter-se iniciado por volta de 1200 a.C., o uso do ferro pelos cananeus constituiria um problema para a cronologia adotada neste vo­lume, que fixaria as campanhas de Judá e Simeão descritas em Juízes 1 em cerca de 1350. Contudo, pelo menos os hititas já dominavam essa tecnologia e usavam o ferro aproximadamente em 1400; logo, não há razão por que Canaã não poderia ter importa­do ferragens por volta do século XIV. Ver em Jacquetta Hawkes, The First Great Civilizations (New York: Knopf, 1973), p. 113; Leonard Cottrell, The Anvil o f Civilization (New York: New American Library, 1957), p. 157; V. Gordon Childe, New Light on the Most Ancient East (New York: Norton, 1969), p. 157.

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1 4 8 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e st a m e n t o

Ac o, Sidon, Aczibe, e em muitos outros lugares; e Naftali foi forçado a coexistir com os cananeus em Bete-Sem es e Bete-Anate. Quanto aos danitas, no sul, foram duramente resistidos pelos amorreus, que aparen­temente estabeleceram-se nos vales após a conquista, particularmente em Aijalom e Shaalbim (Selbit), no vale de Aijalon.8 Os efraimitas saí­ram em auxílio à tribo de Dã, e puseram os amorreus para além de uma linha que ia desde a Passagem do Escorpião (a "subida de Acrabim ") em direção norte. Provavelmente isto se refere a uma demarcação entre a própria região montanhosa e a Sefelá, ou planícies ocidentais. Assim, os amorreus e os primitivos filisteus provavelmente ocuparam a mesma área pelo menos até a invasão de uma segunda leva de filisteus, os Po­vos do Mar, em cerca de 1200.

Talvez em resposta ao compreensível sentimento de frustração que Josué e Israel devem ter sentido pela incapacidade de conquistar a terra rapida­mente, o Anjo do Senhor apareceu a Israel em Boquim (localização desco­nhecida) e lhes disse que a inaptidão para possuir completamente a terra procedia da violação da aliança feita com Yahweh. Eles haviam feito alian­ça com alguns nativos (os gibeonitas) e falharam em destruir os seus alta­res. Como havia ameaçado fazer em caso de tal desobediência, Yahweh permitiu que os cananeus e seus deuses permanecessem na terra como instrumentos de disciplina.

Parece que o narrador novamente interrompe seu relato da ocupa­ção pós-conquista, desta vez para retornar à segunda renovação da ali­ança feita em Siquém. Isto pode ser lido em Juizes 2.6: "E havendo Josué despedido o povo... cada um à sua herdade", e Josué 24.28: "Então Josué despediu o povo, cada um para a sua herdade". Juizes 2.6,7 - "foram - se os filhos de Israel... para possuírem a terra" - é uma recapitulação de 1.1-2.5 (com exceção de 1.8-15), um resumo de todos os esforços subseqüentes durante o estabelecim ento na terra. Em seguida a ceri­m ônia em Siquém, o povo assumiu a tarefa de ocupar a terra como vassalos do soberano Deus. E assim o fizeram fielmente durante os dias da geração de anciãos que viveram após a m orte de Josué. Somente

s A movimentação de Dã para localizar-se mais ao norte (Lais) deve ter ocorrido no perí­odo remoto dos juizes. Não poderia ter acontecido antes do esforço para estabelecer-se na terra, descrito em Juizes 1.34-36, visto que foi exatamente a pressão dos amorreus que iniciara a relocação. Também claramente precedeu a chegada dos Povos do Mar/ filisteus, aproximadamente em 1200 a.C. Conforme indica Roland de Vaux, este é o úni­co texto em que os amorreus se encontram nas planícies, um fato que poderia confirmar a opinião de que a conquista da região montanhosa, sob a liderança de Josué, foi wmfait accompli (The Early History o f Israel [Philadelphia: Westminster, 1978], p. 133, n. 28).

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4 E r a d o s J u í z e s : A V io l a ç ã o d a A lia n ç a , A n a r q u ia e a A u t o r id a d e H um ana 1 4 9

depois disso passaram a adorar Baal e chafurdar a nação no abismo da apostasia e da anarquia, que constituem a grande marca do livro de Ju ízes .9

A cronologia de Juízes

A duração do período

A data inicial

Antes de iniciar o tópico acerca da apostasia de Israel, é necessário que uma base cronológica e hj^tórica seja instituída para toda a era dos juízes. Nossa proposta será printelro considerar a evidência bíblica interna, e em seguida, pelo menos resumidamente, o mundo do antigo Oriente Médio naquela época.

Ao determinar a estrutura cronológica do período^ps juízes, o passo inicial será o estabelecimento de tcrmini a quo e ad qu em .^ O segundo baseia- se em dados precisos que serão considerados mais à frente, mas o primeiro requer uma reconstrução fundamentada em princípios mais subjetivos.'Em primeiro lugar, está claro que jo^ué morreu na idade de 110 anos, alguns anos após o início da conquista1' A data da conquista fixa-se aproximada­mente entre 1406 e 1399, já que iniciou-se exatamente quarenta anos depois do êxodo em 1446 (Dt 1.3),% terminou sete anos mais tarde. Isto conforme o testemunho de Calebe, que informou estar com quarenta anos no momento em que ele e Josué espiaram a terra, e com oitenta e cinco ao término da conquista (Js 14.7-10). Os espias foram enviados dois anos após o êxodo; nessa época Calebe estava com quarenta anos em 1444, e oitenta e cinco em 1399. Pode-se concluir que Josué era da mesma idade. Ele foi um excelente guerreiro contra os amalequitas em 1446 (Ex 17.10), e foi chamado de "jo­vem" pouco tempo depois (Ex 33.11). Embora seja um risco especular, uma idade de trinta anos para Josué na época do êxodo certamente não é exorbitante^Desta forma, a data de seu nascimento seria por volta de 1476, e a data de sua morte, 1366. Otniel, o primeiro juiz, iniciou o seu governo após esta data.

" O período dos juízes foi um tempo em que quase não houve autoridade central, e tam­bém se caracterizou como um período em que não havia qualquer senso de patriotismo ou coesão religiosa, um ponto bem discutido por Alan J. Hauser, Unihj and Diversity in Early Israel Befor Samuel, JETS 22 (1979): 289-303.

; Para uma pesquisa sobre as várias abordagens, ver J.H. John Peet, "The Chronology of the Judges - Some Thoughts", Journal o f Christian Reconstruction 9 (1982-1983): 161-81.

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■ í ) A segunda consideração é ainda mais notável. Tanto Josué 24.31 quan­to Juizes 2.7 enfatizam que Israel serviu a Yahweh fielmente não apenas nos dias de Josué, mas também durante os anos dos anciãos que lhe suce-

[deranm sto não pode se referir aos anciãos contemporâneos de Josué na . época do êxodo e da p ereg rin ação no d eserto , v isto que estes presumivelmente foram incluídos na geração rebelde de Israel, e que fora sen ten ciad a à m orte no d eserto (Nm 1 4 .2 6 -3 5 ).ÍS o m e n te uma desconsideração total do texto permitirá crer que houve um número sig­nificativo de homens acima de vinte anos que sobreviveram ao deserto. Mas, ainda que tenha existido um pequeno número, houve anciãos desig­nados posteriormente ao julgamento em Cades-Barnéia, e todos deviam estar com menos de vinte anos na ocasião. Alguns, sem dúvida, deviam ser consideravelmente jovens. Mesmo na visão mais conservadora, um ancião elegível para entrar em Canaã não poderia ter nascido antes de 1464, vinte anos antes da rebelião em Cades-Barnéia. Se ele viveu para ser tão velho quanto Josué, teria vivido até 1354. Se, porém, ele tivesse nasci­do pouco antes da rebelião, poderia ter vivido até cerca de 1340. A data de 1340 não é improvável para o início da adoração a Baal. De fato, pode até ser um pouco antes, visto que Juizes 2.10 indica que toda geração de anciãos havia morrido, e outra geração, que não conhecia nada sobre Yahweh e seus atos salvíficos, tinha se estabelecido. E, é claro, Otniel, o primeiro juiz, não exerceu seu ofício até oito anos após o início do julgamento de Yahweh (Jz 3.8,9).

Contra essas datas mais recentes, porém, temos a propria introdução feita por Otniel. Depois que Calebe conquistou' as> cidades de Hebrom e Debir, seu sobrinho Otniel tomou-lhe a filha, chamada Acsa, para ser sua esposa. Caso isto tenha ocorrido em 1399 ou pouco tempo depois, então por volta de 1340 Otniel devia estar em idade bastante avançada, mesmo que na época de seu casamento estivesse ainda muito jovem. Isto é intei­ramente possível, embora improvável, pois parece que ele morreu qua­renta anos após ter libertado o povo de Israel (Jz 3.11). Também pode-se argumentar que os anciãos da idade de Josué tiveram permissão para en­trar em Canaã; Eleazar, filho de Arão, claramente tinha mais de vinte anos na época em que a antiga geração foi proibida de entrar em Canaã (Êx 6.23,25). Pode ser que a apostasia e a subseqüente era dos juizes tenha vindo após a morte desses anciãos.11 Parece que 1360-1350 é uma data razoável para a transição entre Josué e os juizes.

11 Warner, de fato, está disposto a admitir o ano de 1373 a.C. para o início da era dos juizes (Period ofthe Judges, VT 28 [1978]: 463).

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\ E pa dos J uízes : A V iolação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 151

A data de encerram ento

Como indicado anteriormente, as datas para o final do período dos juízes podem ser mais precisamente definidas. O argumento, contudo, é extremamente complexp, e a cada ponto assume a exatidão e a integrida­de do texto bíblico. Em prim eiro lugar, a data de Juízes 11.26 é de impor­tância crucial. O juiz Jefté está informando ao rei hostil de Amom que sua reclamação de que Israel está ilegalmente em território dos amonitas é inválida: Israel já estava lá por trezentos anos e, na verdade, a terra no tempo da conquista da Transjordânia não pertencia de forma alguma a Amom, mas sim aos amorreus. Se, diz Jefté, Amom tem algum legítimo direito, por que esperaram os amonitas trezentos anos para fazer a recla­mação?^ O ponto que precisa ser enfatizado aqui é o fato de que Jefté comunicou- se com os amonitas trezentos anos depois da conquista de Siom, um episó­dio ocorrido em 1406, e dezoito anos após a opressão amonita haver inicia­do (Jz 10.8). Essa opressão então Começou em 1124 e terminou somente quan­do Jefté derrotou Amom em 1106, o mesmo ano de sua comunicação com o rei (Jz 11.33). Deve ser ligada a essas datas a história do governo de Sansão. Uma leitura cuidadosa de Juízes 10.7,8 mostrará que a opressão amonita iniciada em 1124 coincidiu com o começo da opressão dos filisteus.12 Po­rém, o historiador traça apenas um curso de acontecimentos por vez; pri­meiro escreve sobre a ameaça amonita e seu desfecho (Jz 10.8b - 12.7), e então trata da opressão dos filisteus e sua resolução (Jz 13.1 - 16.31).

Os filisteus atormentaram Israel por quarenta anos (Jz 13.1), ou desde 1124 até 1084. Sansão nasceu logo no início deste período e julgou Israel "nos dias dos filisteus, vinte anos" (Jz 15.20). Ou seja, os anos de seu go­verno caíram exatamente dentro dos quarenta anos de duração da opres­são dos filisteus (Jz 14.4), mas aparentemente não ultrapassou este tempo, porque os filisteus parecem ter sido uma ameaça por pouco tempo após Sansão ter destruído o templo de Dagon (Samuel os subjugou em Mispa). Muito provavelmente os feitos heróicos de Sansão tenham se iniciado na metade do período da opressão, quando ele estava com cerca de vinte anos de idade, e morreu após vinte anos de governo, pouco antes do fim da opressão.

Procedendo por um outro ângulo, é interessante notar que o golpe fi­nal contra a opressão filistéia aconteceu sob a liderança de Samuel em

Moore, Judges, p. 277; Abraham Malamat, "The Period of the Judges," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, Judges, editado por Benjamim Mazar (Tel Aviv: Massada, 1971), p. 157.

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Mispa (1 Sm 7.11,13), vinte anos após a arca da aliança ter sido levada pelos filisteus (v. 2).13 O fim da opressão, conforme observado acima, ocor­reu em 1084, e essa data marca também a batalha de Mispa. A batalha de Afeque, que resultou na captura da arca, deve ter ocorrido em 1104, ou seja, na metade do período de quarenta anos de opressão filistéia. Tende- se a especular que o ataque dos filisteus possa ter sido uma espécie de retaliação aos feitos heróicos de Sansão contra os adversários. Seja como for, a cronologia proposta neste trabalho encaixa-se em tudo o que é co­nhecido acerca da vida e carreira de Samuel, como também de Sansão. Sem dúvida, o grande profeta ainda era muito jovem na época da batalha de Afeque, mas "velho" quando Israel exigiu um rei, e ele ungiu Saul (1 Sm 8.1,5; 10.1). Admita-se que "velho" é um termo extremamente subjeti­vo, mas é a mesma palavra usada para descrever Davi em seus setenta anos (1 Rs 1.1,15; cf. 2 Sm 5.4).

Saul foi ungido em 1051 a.C., uma data que será defendida no devido momento (p. 200); logo, se Samuel estava com setenta anos, seu nascimen­to deve ter sido em 1121. Isto faria concluir que ele estava com dezessete anos de idade em 1104, quando a arca foi capturada. Sabemos que Samuel viveu no mínimo vinte e cinco anos após a ascensão de Saul, porque o juiz-profeta ungiu Davi como rei quando este tinha provavelmente doze anos. Davi nasceu em 1041, então uma data por volta do ano 1020 para a sua unção não pode estar distante da realidade. Samuel viveu até Davi fugir de Saul para o deserto de Parã (1 Sm 25.1), provavelmente no fim dos anos 20. O profeta então estava próximo dos cem anos, caso tenha nascido em 1121. É claro que, se a data parece extremamente avançada (mas compare com Eli, que morrera aos noventa e oito anos), pode-se mudar em alguns anos a data do nascimento de Samuel. Se, por exemplo, ele nasceu em 1116, então tinha apenas doze anos quando a arca foi captu­rada, e cerca de noventa e cinco anos quando veio a falecer.

Comprimindo a cronologia

O propósito desta exaustiva discussão da cronologia da era dos juizes é mostrar a consistência dos dados bíblicos e responder às perguntas rela­cionadas a todo o período entre o êxodo e Salomão. Baseando-se em datas mais recentes que muitos estudiosos assumem para o êxodo e para a con- - quista (cerca de 1275 -1250), há somente 300 anos para acomodar os juizes, Saul, Davi e os quatro primeiros anos de Salomão, que começou a cons-

13 Ralph W. Klein, 1 Samuel, World Biblical Commentary (Waco: Word, 1983). Pp. 65,66.

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4 E fa dos J uízes: A Violação da A i.iança, A narquia e ,4 A utoridade H umana 153

truir o templo em 966, o quarto ano de seu reinado. Dificilmente se ques­tiona os quarenta anos de Davi, e quanto a Saul, deve-se creditar pelo menos vinte anos. Isto faz restar apenas 235 anos para todos os aconteci­mentos do livro de Juízes. A solução comum é ignorar os números registrados no livro ou postular uma considerável justaposição dos perío­dos de opressão e liberdade. Alguma justaposição, conforme será demons­trado, é necessária em qualquer posição viável.

Mesmo a remota data proposta para o êxodo (1446) apresenta sérios problemas, considerando que dos 480 anos existentes entre o êxodo e o quarto ano do rei Salomão (1 Rs 6.1), 4 são necessários para Salomão, 40 para Davi, 40 para Saul, pelo menos 45 para a conquista e a ocupação, e 40 para a peregrinação no deserto. Sobram apenas 311 anos para o período dos juízes. Mas ao acrescentar os anos registrados em Juízes, que especifi­cam a duração das opressões, dos juízes, e dos períodos intermediários de paz, obtém-se um total de 407 anos. Este resultado é claramente incompa­tível com 1 Reis 6.1 e até mesmo com a data remota proposta para o êxodo, a menos que se aceite que os números registrados no livro dos Juízes se sobrepõem.

Outro problema que parece surgir encontra-se em Atos 13.19,20, onde o apóstolo Paulo, em discurso feito na sinagoga de Antioquia da Psídia, indica que houve um período de 450 anos entre o final da conquista e a vinda do profeta Samuel (segundo a King James Version). Embora não seja possível saber o que Paulo quis dizer em sua referência a Samuel, parece melhor entendê-la como uma alusão ao início do ministério públi­co de Samuel como profeta. Ora, Samuel assumiu o lugar de Eli, que mor­rera ao receber a triste notícia da captura da arca da aliança pelos filisteus, na batalha de Afeque. Este fato, conforme mencionado acima, deve ser datado em cerca de 1104. Seguindo Paulo, é necessário uma data em 1554 para o início do governo de Otniel, algo obviamente impossível. De fato, o número 450 anos não pode encaixar-se em qualquer cronologia que consi­dere seriamente 1 Reis 6.1. Este é o motivo por que muitos estudiosos op­tam por uma leitura alternativa do texto de Atos 13.19,20, uma leitura que sugere que os 450 anos referem-se à permanência no Egito (400 anos), à peregrinação no deserto (40 anos), e a conquista (7 anos), um total que se aproxima de 450 anos. Não importando as objeções, o fato é que esta leitu­ra contradiz explicitamente a passagem de Êxodo 12.40, que declara que a estadia de Israel no Egito durou 430 anos, e não apenas 400.

Uma solução melhor é a concepção de que Paulo acrescentou alguns anos aos períodos de opressão, dos juízes e de paz descritos no livro dos Juízes, que, como já visto, totalizam 407 anos. Os 40 anos de Eli (1 Sm

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4.18), o juiz que precedeu Samuel, deve também ser incluído, perfazendo um total de 450 anos.14 Embora este método de reconstrução cronológica possa não satisfazer ao moderno homem ocidental, Paulo bem pode tê-lo usado. Ele não era um especialista em cálculos, mas alguém que se baseou nos dados dos livros de Juizes e de Samuel, organizando-os de forma a satisfazer melhor as necessidades. O fato de Paulo incorporar sua inter­pretação desses dados em um discurso público significa que seus ouvin­tes entenderam e compartilharam com ele seu modo peculiar de compu­tar a cronologia.

Não há motivo para rejeitar os dados bíblicos referentes à cronologia dos juizes pois, conforme já visto, os números são capazes de trazer solu­ção, uma vez que se veja com seriedade os dados cronológicos fornecidos pelo Antigo Testamento. E somente quando os estudiosos sentem necessi­dade, sobre bases puramente subjetivas, de rejeitar ou reinterpretar as in­formações contidas no texto canônico que surgem dificuldades pratica­mente insuperáveis, requerendo soluções muito mais criativas (e talvez até mesmo niilistas).

O mundo do antigo Oriente Médio

O silêncio do A ntigo Testamento

Voltando à história da nação de Israel durante o governo dos juizes, surpreende inicialmente a descoberta de que não existe sequer uma refe­rência aos desenvolvimentos cruciais que envolviam as nações de maior importância daqueles dias, nem mesmo as atividades no Egito. Um turbi­lhão de assuntos de política internacional e várias campanhas militares parecem ter sido completamente desviados de Israel. É como se a história de Israel tivesse se tornado numa espécie de cul-de-sac, totalmente remo­vida do cenário e dos acontecimentos que tumultuaram aqueles dias.

A razão para esse silêncio é dupla. Em primeiro lugar, o silêncio por si mesmo é uma declaração em alto e bom som de que, devido às superpo­tências da época estarem envolvidas com outros assuntos, não havia tem­po ou energia para se gastar com um pequenino estado bastante isolado das principais rotas de intercâmbio internacional.15 Em segundo lugar, fi-

14 Ver em Eugene H. Merril, "Paul's Use of 'About 450 Years' in Acts 13.20," Bib Sac 138 (1981): 246-57.

15 Abraham Malamat, "The Egyptian Decline in Canaan and the Sea Peoples," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 23.

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éis ao estilo e ao método de historiografia bíblica, os historiadores sim­plesmente não tinham qualquer interesse no vasto mundo daquela época. Seu interesse era a história sagrada, no melhor sentido do termo, coinci­dindo com os interesses de Yahweh, o Senhor da história, que desejava contar a história de seu povo como um agente redentor no mundo. So­mente quando a Babilônia, Assíria ou Egito constituem-se em dados im­portantes para essa história da salvação é que são incluídas na narrativa bíblica. Na verdade, até chegar à fase da monarquia, época em que Israel tomou-se um reino significativo, procura-se em vão por alguma pista acerca do mundo exterior.

M esopotâm ia

Para entender como a Palestina existiu em um vácuo por trezentos anos, é necessário falar pelo menos resumidamente sobre a história extrabíblica. Geograficamente é apropriado iniciar com Mesopotâmia. Conforme indi­cado anteriormente (p. 92), o Antigo Império Babilônico abriu caminho para os cassitas por volta de 1595 a.C., que continuaram a dominar a parte central e mais baixa da Mesopotâmia até cerca de 1150. Esse foi um perío­do de relativa regressão e inatividade para toda a região, o que resultou em pouca ou nenhuma ameaça em direção ao oeste naquele tempo. Para o norte, porém, os assírios tinham se tornado substancialmente fortes, e ti­nham dado início à sua política imperialista pela qual tornaram-se famo­sos. Foi graças a Assur-uballit (1365-1330) que os assírios libertaram-se da antiga dominação imposta pelos hurrianos. Era ele quem se assentava no trono dos assírios quando Josué finalmente encerrava a fase de conquista, e também quando a era dos juízes teve seu início. Seus problemas com os cassitas ao sul e com os hurrianos de Mitani ao ocidente, entretanto, dei­xaram-no com pouco tempo e sem qualquer interesse por uma campanha militar em Canaã.

As atividades anti-cassitas ocuparam os assírios por cerca de quarenta anos, até que Adade-Nirari I (1307-1275) lançou uma série de ataques e invasões ao reino de Hanigalbat, que era um estado vassalo situado na porção superior dos vales do Habor e Balik.16 Obviamente essa atitude ia contra os hititas que a princípio não tiveram condições para tomar qual­quer medida punitiva contra os opositores, pois temiam consideravelmente

16 J.M. Munn-Rankin, "Assyrian Military Power 1300 - 1200 a.C.," em Cambridge Ancient History, 3a edição, editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1975), vol. 2, parte 2, pp. 276-79.

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o Egito. Por fim, Hattusilis, rei dos hititas, fez um acordo com Ramsés II do Egito (em 1284) e, com seu moral restabelecido, tomou novamente Habigalbat das mãos dos assírios.

Tukulti-Ninurta I (1244-1208), mesmo conseguindo resultados sur­preendentes ao norte, oriente e sul através de suas campanhas militares, falhou terrivelmente no ocidente quando tentou subjugar os hititas.17 Esse fracasso abalou tão sensivelmente os assírios que acabaram tornan- do-se fracos e incapazes de controlar até mesmo os cassitas da Babilônia. De fato, Assur-nirari III (1203 - 1198), neto de Tukulti-Ninurta, tornou- se subserviente a Adad-suma-usur, rei de Babilônia (que agora não era cassita). Essas ocorrências persistiram até o reinado de Assur-resi-isi I (1133 -1116), que derrotou a Babilônia, na ocasião governada pelo ilustre N abucodonosor I (1124 - 1103).18 O fato deu início a um período de ressurgência temporária dos assírios, abrilhantado fundamentalmente por Tiglate-pileser I (1115-1077).19 Rapidamente ele voltou-se para o oes­te e derrotou Musri, Tadmor e outros territórios arameus, alcançando finalmente o M editerrâneo, onde exigiria e receberia as devidas deferên­cias do Egito, Fenícia e também dos hititas (que agora situavam-se ao norte da Síria). Contudo, ele não intentou marchar para o sul, em dire­ção ao próprio Israel. Note que o final de seu reinado deve ser calculado por volta de sete anos depois de 1084 que, conforme proposto, seria o término da era dos juizes.

Os hititas

Nossa atenção agora volta-se para a segunda grande potência daquela época - os hititas. Esse reino, que havia perm anecido em estado de dormência por algum tempo, ergueu-se até atingir uma posição de pree- minência sob o governo de Suppiluliumas (1380 - 1346). Mais ou menos na época da morte de Josué, este Suppiluliumas tinha invadido a Síria, e sentiu-se no direito de exigir qualquer coisa que estivesse nos territórios até Gubla (Biblos).20 Ele não se esforçou para penetrar o sul de Canaã por­que ainda sentia-se inseguro quanto ao poderio militar egípcio. Além dis­so, ele via-se constantemente atacado e ameaçado em seus flancos pelos

17 Ibid., pp. 284-94.18 D.J. Wiseman, "Assyria and Babylonia c. 1200-1000 em CAH 2.2, pp. 453,54.19 Ibid., pp. 457-64.20 Anthony J. Spalinger, "Egyptian-Hitite Relations at the Close of the Amarna Period and

Some Notes on Hitites Military Strategy in North Syria," BES 1 (1979): 55.

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homens de Mitani e pelos assírios, preferindo assim permanecer no norte de Canaã, não se estendendo demais nessas campanhas.

O controle hitita da Síria continuou até o reinado de Muwatallis (1320 - 1294), que começou a resistir o imperialismo do Egito (19a Dinastia).21 Em 1300, Ramsés II do Egito atacou os hititas em Cades, no Orontes, mas en­controu resistência e, por fim, teve de retirar-se. Os hititas não puderam manter uma política de guerra contra os egípcios por causa da constante ameaça dos assírios. Na verdade, Hattusilis dos hititas (1286-1265) foi for­çado a assinar um tratado de paz com Ramsés II, em 1284, em que um não invadiria o território do outro.22

Depois da morte de Hattusilis, os hititas continuaram a enfraquecer-se, e certamente nunca fizeram qualquer tentativa de ataque contra a nação de Israel. Porém, eram eles que tinham o controle da maior parte da Síria até o tempo em que o império caiu diante de uma súbita e violenta inva­são dos Povos do Mar, por volta de 1200.23 Sendo assim, os hititas não se constituíram em qualquer aspecto negativo durante os anos dos juízes.

Egito

Durante o período dos juízes, o Egito foi governado pela 18a, 19a e 20a Dinastia. A era de Amarna (cerca de 1379-1350), período em que a con­quista chegou ao fim, já foi examinada em parte (pp. 95-106). Está claro que, embora Canaã fosse tecnicamente uma província egípcia, os reis do Egito não dispensavam qualquer interesse na região, mesmo em face dos constantes apelos enviados pelos reis vassalos de Canaã.

Porém, somente nos anos do reinado de Seti I (1318-1304), membro da 19a Dinastia, realizou-se uma expedição (muito bem comprovada) até Canaã.24 Ele descreve em uma esteia em Bete-Seã uma campanha a Jezreel,

21 A. Goetze, "The Hitites and Syria (1300 -1 2 0 0 B.C.)," em CAH 2.2, pp. 252-56.22 Ibid., pp. 258,5923 Para um relato sobre os últimos e desesperadores anos da independência dos hititas,

ver em Itamar Singer, "Western Anatólia in the Thirteenth Century B.C. According to the Hitite Sources," AS 33 (1983): 205-17, especialmente 216,17.

24 R.O. Faulkner, "Egypt: From the Inception of the Nineteenth Dynasty to the Death of Ramesses III," em CAH 2.2, pp. 218-21. Há alguma possibilidade de que Horemheb, um comandante que servia sob as ordens de Tutankhamon, tenha conduzido uma campa­nha em alguma parte de Canaã no princípio do reino desse monarca (aprox. 1360). Ver em Cyril Aldred, "Egypt: The Amarna Period and the End of the Eighteenth Dynasty," em CAH 2.2, p. 72. Caso seja verdadeiro, não produziu qualquer mudança significativa no curso dos acontecimentos no interior de Canaã.

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mencionando a tomada de Rafia (Rapha) e Gaza, ambas cidades costeiras ao mar Mediterrâneo, assim como Bete-Seã, Acco, Tiro e outras situadas mais ao norte. Em Bete-Seã, ele encontrou-se com os 'apiru, uma referên­cia bastante provável a Israel, visto ser um registro ligado a uma data mais avançada.25 E praticamente impossível não notar que Seti evitou pruden­temente entrar em contato com qualquer parte de Canaã, exceto as planí­cies costeiras e o vale de Jezreel, ambos fora da área de ocupação israelita.26 Em sua segunda campanha militar, ele exerceu pressão pelo norte até Cades e Amurru, e na quarta campanha perdeu o controle sobre Cades, fazendo um tratado com o hitita Muwatallis.27 Em todas as ocasiões, ele evitou o interior de Canaã.

Não há necessidade de se falar mais sobre Ramsés II (1304 0 1236).28 Embora desqualificado para obter o título de faraó do êxodo, ele perma­nece contemporâneo por quase sete décadas da história de Israel, durante a fase central do período dos juizes. Apesar disso, em nenhuma ocasião seu nome é mencionado no livro dos Juizes, nem ele também faz qualquer referência a Israel em seus anais.29 A conclusão é que não houve interesse de ambas as partes.

A primeira campanha realmente significativa de Ramsés foi contra os hititas em Nahr el-Kalb, no Líbano, durante seu quarto ano de reinado. No ano seguinte (1300), ele se encontrou com os hititas em Cades, próxi­mo ao rio Orontes e, como já visto, sofreu uma humilhante derrota. Isto deve ter encorajado a rebelião entre os vassalos em Canaã, pois por mui­tos anos Ramsés teve de atender esses pequenos estados, mas em ne­nhuma vez ele interveio no interior de Canaã, a região dominada pelos

25 Benjamim Mazar, "The Historical Development," em World History ofthe jewish People, vol. 3, p. 15, descreve essas tribos semíticas como "etnicamente próximas aos israeli­tas". Na verdade, é muito provável que eles realmente fossem os israelitas.

26 Yohanan Aharoni, "The Settlement of Canaan," em World History o f the Jewish People, vol. 3, pp. 94,95.

27 A perda de Cades é explicada pelo fato de Ramsés II ter empreendido grande esforço para reconquistá-la em seu quarto ano de reinado. Ver em Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, p. 221. Quanto ao texto do tratado, ver em James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 476-79.

28 Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, pp. 225-32; AnthonyJ. Spalinger, "Traces of the Early Career of Rameses II," JNES 38 (1979): 271-86.

29 Uma exceção é a referência feita aos "Asar", um povo costeiro que tem sido identificado pelos estudiosos como a tribo de Aser. Essa menção situaria a tribo no norte de Canaã, pelo menos nos primórdios do décimo terceiro século. Ver em Mazar, "Historical Development", p. 19.

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israelitas. Em 1284 fez um tratado de paridade com Hattusilis, e em 1270 casou-se com a filha do rei hitita, um fato que ele atribuiu à sua própria superioridade sobre Hattusilis. Todos os demais contatos no norte que ele deixou registrado são classificados como de pouca importância: em Moabe, Edom e no Negueve, e nenhum desses envolveu confrontos com Israel por razões óbvias - Israel não fizera nenhuma reivindicação sobre aquelas áreas.

Por outro lado, Merneptá (1236-1223) não apenas empreendeu uma campanha na Palestina (em seu quinto ano, 1231), mas menciona uma derrota que infligiu aos israelitas.30 Esse ataque surpresa parece ter ficado restrito à região de Jezreel.31 Já foi visto (p. 62) que essa referência a Israel é uma prova contra uma data mais recente para o êxodo e para a conquis­ta, pois é muito difícil imaginar como Israel poderia ter sido o maior ini­migo de guerra de Merneptá em Canaã, caso o êxodo tenha ocorrido no início de seu reinado, conforme a evidência em favor de uma data mais recente parece sugerir.32

O reinado de M erneptá tam bém representou o fim de qualquer envolvimento significativo do Egito na região Siro-Palestinense, e essa condição durou até o reinado de Shoshenq (945 - 924) da 22a Dinastia. Até mesmo Ramsés III (1198 -1166), que teve condições de derrotar e também repelir os líbios e os Povos do Mar, empreendeu apenas uma expedição à Palestina, sendo tal campanha limitada devido à oposição dos edom itas .33 Depois que ele morreu, as províncias da região Siro- Palestinense foram todas perdidas. Quanto aos demais membros da 20a

30 Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, pp. 232-35.31 Malamat, "Egyptian Decline," em World History o f the jewish People, vol. 3, p. 24.

Malamat sugere que Gezer naquele tempo estava sob o controle egípcio, um fato que está em sintonia com o registro bíblico, que afirma que a conquista israelita deixou Gezer sob o comando dos cananeus (Js 16.10).

32 O determinador que tem sido usado para descrever Israel como um "povo" não pode conduzir à idéia de um corpo desorganizado; pelo contrário, estava tão organizado que chegou a ocupar totalmente o interior das regiões montanhosas. Essa é a conclusão pro­duzida pela análise literária-estrutural da esteia de Merneptá, feita por G. W. Ahlstrõm e D. E. Edelman, "Merneptah's Israel," JNES 44 (1985): 59-61.

33 Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, p. 244. Pierre Grandet recentemente pro­pôs que Ramsés construiu fortificações em Bete-Seã, uma teoria que, caso esteja correta, não modifica o fato de que o Egito não se envolveu absolutamente na região central de Canaã ("Deux Etablissements de Ramsés III en Nubie et en Palestine," JEA 69 [1983]: 109-14; da mesma forma Malamat em, "Egyptian Decline," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 35).

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Dinastia (até cerca de 1085), sabe-se que o Egito não teve participação alguma nos negócios de Israel.34

Os estados siro-cananeus

Finalmente, a situação da Síria e Palestina durante o período dos juizes deve receber ao menos uma breve atenção.35 Aproximadamente no início do governo do juiz Otniel, os hititas começaram dominar toda a Síria, en­tre o Mediterrâneo e o Eufrates, estendendo essa dominação o máximo para o sul até o Líbano. O pavor que isso causou nos estados cananeus pode ser percebido, por exemplo, em uma carta escrita por Rib-Adda de Gubla (Biblos) para seu superior egípcio. Outros reinos na Síria tiveram rapidamente de escolher ficar do lado dos hititas ou de Mitani. Halab (Aleppo), Alalakh e Tunip tornaram-se vassalos dos hititas. Ugarite, com seu característico estilo de independência, optou por permanecer fiel ao Egito. Amurru, entretanto, viu neste conflito entre superpotências uma chance para expandir sua própria influência. Seu rei, 'Abdi-Asirta, amea­çou Gubla, e seu filho e sucessor, Aziru, por fim conseguiu anexar aquela importante cidade da Fenícia. Na ocasião ele firmou um acordo com Niqmaddu, de Ugarite, que serviu apenas para colocar ambos sob o con­trole dos hititas. Foi durante aqueles dias que Suppiluliumas, rei dos hititas, acabou com o controle dos mitanitas sobre a Síria e criou seu próprio siste­ma de estados vassalos, que incluía Ugarite e Amurru.

Com a penetração de Seti I da 19a Dinastia egípcia no interior da Síria, os habitantes de Amurru quebraram seu pacto de submissão aos hititas, mas foram novamente postos sob controle depois que os exércitos de Ramsés II foram clamorosamente destruídos em Cades (1300).36 Próximo ao fim do Império hitita, os estados da Síria começaram a afirmar sua in­dependência, mas sabe-se que até a época em que os Povos do Mar vie­ram e destruíram esse império, a maioria dos estados da Síria permaneceu sob controle.

34 James M. Weinstein tenta defender a idéia de que, durante os séculos 12 e 13, percebeu- se um envolvimento egípcio sem precedentes em Canaã. Porém, dentre todos os luga­res por ele citados como fortalezas dominadas pelos egípcios, nenhum estava situado nas regiões montanhosas do interior de Canaã, precisamente onde Israel dominava ("The Egyptian Empire in Palestine: A Reassessment," BASOR 241 [1981]: 17,18).

35 A. Goetze, "The Strugle for the Domination of Syria (1400 - 1300 B.C.)," em CAH 2.2, pp. 2-16; para uma discussão quanto a maneira como Ugarit via estas coisas, ver em Anson F. Rainey, "The Kingdom of Ugarit," BA 28 (1965): 107-12.

36 Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, pp. 220-21.

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Os Povos do Mar eram uma confederação de vários grupos étnicos e nacionalistas originada primariamente na área do mar Egeu, embora al­guns possam ter vindo das longínquas regiões ao oeste da Sicília e da Itá­lia.37 E possível que tenham auxiliado o rei Muwatallis em sua vitória con­tra o faraó Ramsés em Cades. Alguns desses nomes são conhecidos: Dardani, Masa, Pitassa, Arawanna, Karkisa e Lukka. Eles penetraram pela primeira vez na Palestina (aprox. 1230) por terra, através da Cilícia, e apa­rentemente marcharam até chegar ao Egito. O faraó Merneptá diz ter rechaçado alguns Povos do Mar que, passando pela Líbia, invadiram o Egito.38 E possível que os seiscentos filisteus feridos por Shamgar (Jz 3.31) fossem Povos do Mar penetrando através do norte.39

Uma segunda invasão, inclusive registrada nos textos de Ras Shamra e em outros lugares, foi responsável pela destruição completa da cidade de Hattusas (Boghazkeui), capital dos hititas, assim como de Tarso, Carquemis, Sidom, Quitom40 e Ugarite. Nessa época, os Povos do Mar estabeleceram residência permanente na baixa região da costa do Mediterrâneo, onde vieram a ser conhecidos pelos israelitas como filisteus. Esses filisteus não devem ser identificados com aqueles diretamente associados aos patriar­cas e ao êxodo, embora representem de fato uma segunda leva de mesma raça daqueles filisteus primitivos.41

Relacionada aos Povos do Mar, está uma invasão feita pelos egípcios, que tentou estabelecer uma cabeça-de-ponte naquela região. Ramsés III descreve em alguns relevos em parede descobertos em Medinet Habu, que essa invasão, ocorrida em seu oitavo ano de reinado (aprox. 1190), incluía os seguintes componentes: Peleset, Tjekker, Sheklesh, Sherden, Weshesh e Denyen. Estes, ele informa, já haviam conquistado os hititas e os amurru anteriormente. Os peleset e os Tjekker buscaram estabelecer- se em Canaã; estes habitavam na alta região costeira, próximo a Dor, e aqueles, conhecidos como os filisteus da Bíblia, habitavam na baixa re­

37 Para ganhar mais base sobre esse assunto, consultar em Trude Dothan, The Philistines and Their Material Culture (New Haven: Yale University Press, 1982), pp. 1-23.

38 Trude Dothan, "What We Know About the Philistines," BAR 8.4 (1982): 25.39 Ver em Benjamim Mazar, "The Philistines and Their Wars with Israel," em World History

ofthe Jewish People, vol. 3, pp. 172,324-25, n. 16.40 Quiton situa-se na ilha de Chipre, que já produziu abundante material que comprova a

conquista dos Povos do Mar. Ver em Vassos Karageorghis, "Exploring Phiistine Origin on the Island of Cyprus," BAR 10 (1984): 16-28.

41 Para se consultar uma boa e plausível hipótese que afirma terem os filisteus se origina­do em Canaã, migrado para o Egeu e, mais tarde, voltado como parte dos Povos do Mar, ver em T.D. Proffit, "Philistines: Aegeanized Semites," NEASB 12 (1978): 5-30.

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gião .42 Os filisteus provaram ser inim igos inveterados de Israel, e 1 Samuel é o livro que trata deste assunto.

Ao concluir essa história panorâm ica dos vizinhos de Israel no perí­odo de 1360 a 1085, deveria estar claro que Israel perm aneceu pratica­m ente intocado diante da agitação internacional. Somente a chegada dos filisteus apresentou um problem a maior, fato que está abundante­mente registrado na Bíblia. Por outro lado, o Antigo Testamento silen­cia sobre o vasto mundo e seus conflitos, porque eram considerados irrelevantes para a história de Israel. Vemos a providencial mão de Deus em ação para incubar seu povo durante esse período crítico de seu de­senvolvim ento.

Os juizes de Israel

O padrão cíclico que caracteriza o período

A seção retrospectiva de Juizes termina com a referência à morte de Josué em 2.6-9. Então, de 2.10 até 3.6, o autor introduz o padrão cíclico que caracterizou a história de Israel por mais de trezentos anos. Após a gera­ção de Josué haver passado, o povo esqueceu-se de Yahweh, trocando-o pelos deuses de Canaã. Isto provocou a ira de Yahweh, de forma que Ele enviou inimigos a Israel a fim de puni-lo e despertar-lhe o interesse em retornar para os caminhos de Deus. Quando Israel se arrependia, Yahweh levantava juizes que livravam a nação, e assim experimentavam um perí­odo de paz e de justo governo. Novamente Israel dava as costas para o Senhor e caía em apostasia, então uma série de eventos desabavam sobre a nação, reiniciando o ciclo punitivo. Uma importante razão por que os israelitas não puderam expulsar todos os inimigos cananeus foi, de fato, que estes poderiam permanecer na terra como instrumentos sempre que Yahweh precisasse disciplinar seu povo. Também estes inimigos poderi­am servir como um teste de lealdade a Yahweh, e treinar a nova geração de israelitas na arte de fazer guerra. Os inimigos que permaneceram na terra - os filisteus, cananeus, sidônios e heveus - habitavam na planície costeira ou na região mais baixa do vale de Baca, ao norte da Galiléia. Além disso, havia vários outros povos (amorreus, hititas e jebuseus) com os quais Israel se envolveu por meio de casamentos mistos e adoração religiosa sincretista.

42 Malamat, "Egyptian Decline," World Historyof the jewish Peolple, vol 3, p. 34.

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A natureza da idolatria em Canaã

A religião cananéia estava para penetrar em todos os níveis da vida dos israelitas desde o período dos juízes até pelo menos o tempo do cati­veiro da Babilônia. Graças aos textos cananeus épicos e relativos ao culto encontrados em Ugarite (Ras Shamra), como também o Antigo Testamen­to, é possível reconstruir pelo menos as linhas principais do pensamento e da prática religiosa em Canaã.43^ E ssen cialm ente, a religião em Canaã baseava-se no princípio de que as forças da natureza eram a expressão da presença e atividade divina, e que o único meio pelo qual alguém poderia sobreviver e prosperar seria iden­tificar os deuses responsáveis por cada fenômeno e, mediante ritual pró­prio, encorajá-los a exercer os poderes em seu favor. Isto é a introdução da mitologia na realidade. Os rituais sempre envolvem a participação huma­na, particularmente os sacerdotes que são intimamente ligados ao culto, e as atividades dos deuses conforme descritas nos m itos.44

Não é possível recriar a totalidade do mito cananeu em detalhes, visto que os textos são incompletos, e falta em todos os casos um harmonioso e sistemático ponto de vista. Mas o quadro geral parece ser o seguinte: El é o cabeça do panteão dos deuses. Como seu próprio nome indica, ele é quase impessoal, um senhor transcendente, poderoso, uma figura paterna com ar de benevolência, mas com pouco ou nenhum interesse nos negócios dos homens. Há momentos em que parece estar à beira da senilidade, e por muitas vezes vê-se vítima da sedução e dos interesses dos deuses mais jo­vens. Ele se assenta em um local elevado e sublime situado nas montanhas do norte, na nascente dos rios, onde possui sua corte e entretém os outros deuses. Sua esposa é Asherah, a deusa mãe, por cuja fertilidade toda a terra

43 Ver em Johannes C. de Moor, "The Semitic Pantheon of Ugarit," UF 2 (1970): 187-228; Cyrus H. Gordon, "Canaanite Mythology," em Mitologies o f the Ancient World, editado por Samuel N. Kramer (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1961), pp. 183-218; Arvid S. Kapelrud, Baal in the Ras Shamra Texts (Copenhagen: G.E.C. Gad, 1952); P.D. Miller, "Ugarit and the History of Religions," ]NSL 9 (1981): 119-28; Julian Obermann, Ugaritic Mithology (New Haven: Yale University Press, 1948); Ulf Oldenburg, The Conflict Between El and Ba'al in Canaanite Religion (Teiden: E.J. Brill, 1969); Helmer Ringgren, Religions o f the Ancient Near East (Philadelphia: Westminster, 1973), pp. 124-76.

44 Para um importante estudo acerca do mito, especialmente quando ele se refere ao Anti­go Testamento, ver em J. W. Rogerson, Myth in Old Testament Interpretation, BZAW 134 (Berlin: Walter de Gruyter, 1974). O mito de uma forma geral está muito bem elucidado nos trabalhos de Mircea Eliade, particularmente em seu Cosmos and History: The Myth of the Eternal Return (New York: Harper, 1959).

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é vivificada. Na Bíblia é referida como "asherim" ou "arbusto". O símbolo de sua presença e poder era representado pelas plantas sempre verdes. Por fim, até um tronco de árvore poderia representar essa deusa, servindo como um santuário onde pudesse ser realizado um ritual.

Porém, a divindade mais importante era Baal, o "senhor" da terra. De acordo com muitos estudiosos, Baal era um epíteto do deus Hadad, filho de Dagan (Dagon), freqüentemente mencionado nos textos de Mari e em ou­tras fontes da alta Mesopotâmia.45 Esses estudiosos propõem que juntamente a migração dos amorreus para Canaã, ocorrida em 2200 a.C., entrou na terra o seu panteão de deuses, inclusive o deus Hadad*A introdução de novos deuses em Canaã conduziria ou a uma rejeição dos deuses nativos ou, mais provavelmente, a uma assimilação dos deuses novos. Assim, o que era Hadad em Mari tornou-se Baal em Ugarite. Como apoio a esta interpretação tem-se o próprio mito de Baal, que apresenta esse deus em contenda com várias outras divindades, incluindo o próprio El. Em geral o processo é o desapa­recimento de El e a ascendência gradual de Baal.

Hadad era o deus da tempestade dos amorreus, que se manifestava na chuva, trovão e raios. Baal exercia essa função em Canaã e, visto que a agricultura cananéia dependia totalmente da chuva, sua importância era óbvia. Mas Baal precisou lutar para obter reconhecimento e preeminência. Ele não apenas ameaçou o deus El, considerado até então como a fonte de toda a virilidade, mas também confrontou-se com outros deuses inimigos tais como Yammu (o Mar), Naharu (o Rio), e até mesmo Motu (a Morte). Todos estes, zelosos de suas posições no ciclo da natureza - semeadura, colheita, umidade e seca, vida e morte - opuseram-se vigorosamente a Baal, na esperança de impedi-lo de construir um palácio, um puro sinal de soberania, ou de conduzi-lo à morte.

Baal frustou todos estes intentos. Ele tomou a esposa de El como sua consorte na ocasião. Também incitou um combate com Yammu e Naharu e castigou-os sem piedade, provando a superioridade da chuva sobre o mar e a terra. Mesmo quando assassinado por Motu, voltou à vida com o auxílio de sua irmã Anat, e finalmente extinguiu ele mesmo a morte. De­pois de um grande intervalo, alcançou a supremacia e dominou tanto o panteão quanto o culto./ O ritual envolvia a dramatização do mito conforme descrito. Centrava- se na atividade sexual, uma vez que a chuva atribuída a Baal era tida como o seu próprio sêmen derramado sobre a terra para a fertilizar, impregnan­do-a com vida, assim como impregnava Aserá (a deusa da fertilidade) no

45 Detalhes acerca do assunto, ver especialmente em Oldenburg, Conflict, pp. 46-163.

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mito. A religião cananéia era então grosseiramente sensual e perversa, porque requeria no culto os serviços de homens e mulheres prostitutos como atores principais no drama.

Diferentemente de Israel, não havia um santuário central. Baal poderia ser adorado onde houvesse um lugar especialmente visitado pela nume­rosa presença dos deuses. Esses locais eram originalmente nas colinas (por isso, "nos altos"), mas tempos depois podiam ser encontrados nos vales ou até mesmo nas cidades ou vilarejos. Cada local deveria ser marcado por um poste (áserâ), um pilar (massebâ), ou algum outro símbolo de culto. Visto que Baal não era onipresente em sentido estrito, cada centro de culto deveria ter o seu próprio Baal. Assim poderia ser Baal-Peor, Baal-Berite, Baal-Zebube e outros. Isto também explica por que os deuses de Canaã eram chamados de Baalim ("os Baals") no Antigo Testamento. Teorica­mente, havia apenas um Baal, embora fosse senhor de muitos lugares.

Esta descrição bastante simplificada e sintetizada dos mitos e rituais cananeus agora é suficiente para uma introdução à natureza da apostasia da de Israel - a sua rejeição de Yahweh, a verdadeira fonte de prosperida­de e fertilidade, para a adoração do produto da imaginação depravada que confundia o resultado da bênção divina com sua causa. Foi uma ver­gonhosa quebra da aliança e uma deslealdade, melhor descrita na frase "se prostituíram após outros deuses" (Jz 2.17).

Otniel

O primeiro surto de apostasia em larga escala ocorreu após a morte de Josué, e resultou na invasão de Israel por Cusan-Risatain, de Aram Naaraim. O escritor revela a atitude que será freqüentemente repetida: "se esqueceram do Senhor seu Deus; e serviram [adoraram] aos baalins e a Aserote." (Jz 3.7). Isto implica não apenas um interesse casual na mitolo­gia, mas também uma participação ativa no ritual, precisamente como foi no caso em que Israel adorou a Baal-Peor (Nm 25). Cusan-Risatain não pode ser identificado, mas a segunda parte de seu nome, "Risatain", é sem dúvida mais um epíteto dado por seus inimigos do que um nome, pois significa "dupla iniqüidade". Aram Naaraim, literalmente "Aram dos dois rios", refere-se a uma região elevada do Eufrates ou ao norte da Síria, que talvez possa ser identificado com o "Kushan-rôm" dos anais de Ramsés II ou a região "Nhr(y)n" das outras fontes egípcias.46 Nada há em qual­

* Merril F. Unger, Israel and the Aramaeans ofDamascus (Grand Rapids: Baker, reedição de1980), pp. 40,41,134 e 135.

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quer parte do nome que rejeite uma data próxim a a 1340, visto que "Naharin" e "Nahrima", pelo menos, consta nos textos egípcios e acadianos do século quinze.47 É verdade que alguns estudiosos negam o elemento- prova "Aram ", mas Merril Unger tem demonstrado sua existência conti­da num texto de Naram-Sin, que remonta aos primórdios de 2300 a.C.48

Conforme argumentado (p. 150), o mandato de Otniel deve ser datado por volta de 1350, que situa a invasão de Cusan-Risatain em 1358, oito anos antes. Isto é muito possível, visto que naqueles dias Assur-uballit, o podero­so rei da Assíria, vinha sendo incessantemente atacado por uma tribo araméia conhecida por Sutu. O rei hitita Suppiluliumas encontrou-se em apuros com os homens de Mitani e com os assírios; e embora tivesse obtido o controle do norte da Síria por volta de 1360, os estados-vassalos, incluindo Naharema (Arã-Naharaim), gozavam de muita liberdade, podendo sem dúvida ter empreendido conquistas militares independentes, ou simplesmente segui­do as ordens do próprio rei hitita.49 O Egito naquela época encontrava-se sem qualquer condição de interferir nesses negócios.

Não é possível saber que tipo de prejuízo Cusan-Risatain causou a Is­rael, mas certamente os oito anos de ocupação não foram impostos sem resistência. A expulsão dos arameus pelo juiz Otniel também deve ter cau­sado algum tipo de destruição, cuja evidência pode ser constatada por diversas investigações arqueológicas.50 Especular além deste ponto não é aconselhável.

O que é de mais interessante e importante é a natureza e a função de um juiz. Está claro que esses indivíduos foram escolhidos e dotados de poder por Yahweh, a fim de atender a certas emergências, e que este ofício não era hereditário. Também é aparente que o termo ju iz não sugere uma função jurídica, já que esta responsabilidade recaía sobre os anciãos, mas significa um ofício de um líder militar e protetor.01 Alguns paralelos nos textos de Ebla têm sido recentemente apresentados, em que juizes (di-ku),

47 Abraham Malamat, "The Aramaeans," em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), p. 140.

48 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 39.49 Goetze, "Domination of Syria," em CAH 2.2, p. 16.50 William F. Albright diz que a Palestina no décimo quarto século encontrava-se com

baixo número de habitantes, uma conclusão mantida com base no pequeno número de cidades fortificadas durante aquele período ("The Amarna Letters From Palestine," em CAH 2.2, p. 108). Essa evidência de poucos centros urbanos poderia refletir a des­truição causada pelos arameus e outros povos predadores durante os dias dos primei­ros juizes.

51 Malamat, "Period of the Judges," em World History o f the Jewish People, vol. 3, p. 131.

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coexistentes com reis e anciãos, também parecem não ter tido nenhuma função ju ríd ica .52 Em Israel, no período entre os grandes mediadores (Moisés e Josué) e os reis, os juizes serviram como uma espécie de gover­nadores ad hoc e generais encarregados de libertar o povo das mãos de seus inimigos.

Eúde

Após Otniel ter conseguido repelir os arameus, Israel descansou du­rante quarenta arios. Visto que a opressão de Cusan-Risatain parece ter afetado toda a nação, pode-se deduzir que nenhuma outra opressão es­trangeira paralela atingiu Israel, e que apenas Otniel foi juiz nos anos de­correntes. O período de paz existiu em toda a terra. Baseando-se na data de 1358 a 1350 para os anos de opressão, o fim do governo de Otniel dá-se por volta dé 1310. Então este juiz morreu, dando início ao ciclo.

V ; A opressão que surgiu em seguida parece ter afligido apenas uma área restrita, próxima a Jericó - "cidade das palmeiras" (Jz 3.13). O inimigo era Eglon, rei de Moabe, cuja existência, apesar de não mencionada em qual­quer documento extracanônico, dificilmente pode ser questionada.'Alia­do aos amonitas e aos amalequitas, ele atacou Israel e exerceu uma sobe­rania local por, no mínimo, dezoito anos. Não há como datar este período, precisamente porque deve ter havido algum espaço de tempo entre a morte de Otniel e a nova apostasia de Israel. Uma data no primeiro quartel do'A \século XIII (1300-1275) não é de qualquer modo ilegítima.53 'Em resposta ao clamor de seu povo, Yahweh levantou Eúde de Benjamim que, sob o pretexto de oferecer tributos ao rei,54 assassinou Eglon.’ Eúde então esca­pou para as regiões montanhosas de Efraim, onde arregimentou as milíci­as de Israel para segui-lo até as margens do rio Jordão. Quando os moabitas tentaram retroceder para sua terra, acharam o caminho bloqueado e fo­ram destruídos completamente. Os oitenta anos de descanso que se segui­ram devem referir-se à região centro-leste de Israel, sobre a qual Moabe tinha exercido controle. Passou no mínimo esse tempo antes que a região novamente sofresse em mãos inimigas.

Giovanni Pettinato, "Ebla and the Bible - Observations of the New Epigrapher's Analysis," BAR 6 (1980): 40.

53 Numa disputa contra Norman Glueck, o estudioso Sean Warner diz que os moabitas, edomitas e amonitas ocuparam a Transjordânia entre 1400 e 1375, e que já estavam no local na época de Eúde ("Period of the Judges," VT 28 [1978]: 459).

=4 Malamat, "Period of the Judges," em World Histoty ofthe Jewish People, vol/3, p. 155.

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Sangar

O terceiro juiz, Sangar, libertou Israel do poder dos filisteus pouco tempo após a m orte de Eúde. Este acontecim ento, presum ivelm ente um único incidente, pode estar ligado à chegada dos Povos do Mar, em cerca de 1230.

Débora

Depois da morte de Eúde - um acontecimento que não pode ser data­do, mas que não necessariamente ocorreu logo no início dos oitenta anos de paz - , Israel mais uma vez voltou para os caminhos da perversidade. Nessa ocasião, o julgamento do Senhor concentrou-se no norte, no vale de Jezreel e acima deste, envolvendo Jabim, rei de Hazor, e seu general Sísera, de Harosete (Tel el-'Amr), uma cidade situada no ribeiro d e Q u isom a o leste do monte Carmelo. Por vinte longos anos as tribos do norte sofreram sob a opressão cananéia, e nada podiam fazer em razão da superioridade militar do adversário. As referências a carruagens de ferro (Jz 4.3) não apenas enfatizavam esta vantagem estratégica, como também auxiliam a datar o evento, visto que o ferro não tinha se tornado comum em Canaã até por volta de 1200. Fixar uma data entre 1240 e 1220 para essa opressão cananéia não estaria distante da inform ação b íblica ou dos dados extrabíblicos adquiridos nas escavações arqueológicas.55

O agente da salvação nessa ocasião foi Débora de Efraim, que estabele­ceu o local de sua administração entre a cidade de Ramá e Betei. Visto que a área sob ataque estava bem distante deste local, respondeu Débora aos urgentes apelos encorajando Baraque, de Cades em Naftali, a menos de 16 quilômetros ao norte de Hazor, a assumir ele mesmo o confronto com Jabim no monte Tabor. Yahweh conduziria Sísera até o ribeiro de Quisom. Baraque e as tropas de Naftali e Zebulom poderiam assim descer pelo Tabor e avan­çar sobre o inimigo quando este estivesse no rio. Baraque recusou-se a

55 Ygael Yadin sugere 1230 ("Excavations at Hazor, 1955-58," em Biblícal Archaeologíst Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman [Garden City, N.Y.: Doubleday,1964], vol. 2, p. 223). Estudiosos que insistem em uma data mais recente para a conquista têm dificuldades aqui, pois não conseguem explicar a existência de Hazor no final do décimo terceiro século, já que tal cidade havia sido destruída por Josué. Se, porém, Hazor só foi destruída por volta de 1400, haveria tempo suficiente para ser reedificada e então mais tarde ser novamente destruída por Débora em 1230. Ver em Malamat, "Period of the Judges," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 135 que, contrariando a Yadin, data a queda de Hazor entre 1150 e 1125.

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prosseguir sem Débora, porque entendia que a juíza ungida de Israel sim­bolizava a própria presença de Deus.56 Débora, portanto, juntou-se a ele no monte Tabor, e Baraque, encorajado por tê-la ali, investiu contra as car­ruagens de Sísera, que aparentemente ficou imobilizado por uma rápida e inesperada cheia do Quisom (Jz 5.21).57

Sísera conseguiu escapar para Zaananin, uma cidade próxima de Cades, na região de Issacar,58 refugiando-se na tenda de Heber, o quenita. Os quenitas eram aparentados com os midianitas, conforme se deduz pelo fato de ser o sogro de Moisés chamado de midianita e de quenita (Ex 18.1; Jz 1.16). Esses nomes refletem uma raiz hebraica com significado de "que trabalha com m etais", indicando que o fato de habitarem em tendas pode não significar um estilo de vida pastoral e nômade, mas um grupo de pes­soas que, à medida que empreende suas viagens, muda de trabalho cons­tantemente.59 A mudança de Heber para o norte e sua afiliação com Jabim podem de fato ter relação direta com o desenvolvimento da indústria do ferro pelos filisteus e cananeus. De qualquer modo, a mulher de Heber (Jael) permitiu que seu senso de lealdade aos israelitas sobrepujasse a hos­pitalidade dos semitas, pois ela mesma matou Sísera dentro de sua tenda.

A derrota de Sísera e o término da opressão de Jabim (Jz 4.24) foram celebrados no cântico de Débora e Baraque.60 Com uma referência especi­al ao encontro decisivo no Quisom, eles recitaram os feitos de Yahweh desde a conquista da Transjordânia até aquele momento (Jz 5.1-5; cf. Dt 33.2,3; SI 68.7-9; Hc 3.3). Nos dias de Sangar e Jael, ocorridos pouco antes, as estradas eram inseguras para viagem, pois havia muitos bandidos e

56 A respeito da profetisa Débora como o agente de Yahweh no chamado de Baraque, ver em James S. Ackerman, "Prophecy and Warfare in Early Israel: A Study of the Deborah/ Bark Story," BASOR 220 (1975): 5-14.

r Visto que esse ataque no Quisom não está registrado em Juízes 4, G. W. Ahlstrõm escre­veu uma obra afirmando ser a referência ao ribeiro no capítulo 5 puramente mito-poé- tica, não possuindo qualquer valor histórico. Como "prova" então cita o papel do mar de Juncos na história do êxodo ("Judges 5.20f. and History," JNES 36 [1977]: 287-88). Esta opinião, que nega a possibilidade da poesia bíblica ser historiográfica, não possui qualquer base.

s Veja o mapa 16 em Aharoni, Land ofthe Bible, p. 222.^ De Vaux, Early History, pp. 537-38.' Para análise literária e histórico-tradicional deste importante poema, ver David Noel

Freedman, "Early Israelite History in the Light of Early Israelite Poetry," em Unity and Diversity, editado por Hans Goedicke e J.J. Roberts (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1975), pp. 3-35; Richard D. Patterson, "The Song of Deborah," em Tradition and Testament: Essays in Honor o f Charles Lee Feinberg, editado por John S. Feinberg e Paul D. Feinberg (Chicago: Moody, 1981), pp. 123-60.

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salteadores. Essas condições caóticas existiam porque Israel tinha adota­do novos deuses e estava, portanto, experimentando o juízo divino. Então Deus levantou Débora, que arregimentou homens dentre todas as tribos e alcançou uma poderosa vitória no Quisom e em Zaananin.

Mas o poema também revela alguns aspectos da natureza provincial da opressão e a falta de unidade entre as tribos. Débora parece ter sido juíza de todo o Israel, mas não conseguiu comandar uma frente unida contra os cananeus no norte. Ela m enciona a participação de certos efraimitas "amalequitas", Benjamim, Maquir, Zebulom, Issacar e Naftali. Rúben apenas deliberou a participação; Gileade (Gade) nem mesmo fez isto; Dã "se deteve em navios", que pode ser uma forma proverbial de descrever a covardia, e Aser permaneceu em sua terra. E notável a ausên­cia de Judá e Simeão na lista. Isto não significa, contrariando muitos críti­cos da tradição,61 que as duas tribos não tenham se envolvido na confede­ração israelita, mas apenas que os fatores distância e rivalidade regional já começavam a minar a nação.62 Naquela época Judá já estava sentindo seu isolamento, e as tribos do leste sem dúvida começavam a tomar seu pró­prio caminho.

Gideão

Após o triunfo de Débora, a terra descansou por quarenta anos. Isto precisa incluir pelo menos a região central de Israel, pois a próxima opres­são está concentrada nesta área. Os quarenta anos seriam os anos de 1230 a 1190, caso a proposta de Yigael Yadin, segundo a qual a destruição de Hazor deu-se no ano 1230, seja aceita. A servidão sob os midianitas apa­rentemente ocorreu no período de 1190 a 1180, e foi particularmente vio­lenta, conforme registra a história. Casas e cidades foram totalmente de­vastadas, de modo que covas e cavernas foram necessárias para abrigar os filhos de Israel (Jz 6.2). Todos os rebanhos e plantações eram destruídos, e a terra experimentou grande destruição.

A extensão do massacre foi grave, alcançando desde o vale do Jordão até o sudoeste em Gaza, mas a narrativa não indica que tenha atingido

61 Por exemplo, A.D.H. Mayes, "The Period of the Judges and the Rise of the Monarchy," em Israelite and Judaean History, editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1977), p. 310; Freedman, "Early Israelite History/' em Unity and Diversity, p. 15.

62 Aharoni, "Settlement of Canaan," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 109; ver também em Carol L. Meyers, "Of Seasons and Soldiers: A Topological Apprisal of the Premonarchic Tribes of Galilee," BASOR 252 (1983): 56,57.

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todo o território.63 É importante notar isso, porque freqüentemente argu­mentam que os midianitas não poderiam ser populosos ou poderosos o suficiente para devastar todo o Israel. Além de o próprio registro não afir­mar que Midiã assolou toda a nação, é impossível afirmar qualquer coisa acerca do tamanho ou da força de Midiã, visto que o Antigo Testamento não traz informação a esse respeito. O historiador, na verdade, enfatiza que os midianitas estavam acompanhados pelos amalequitas e por outras hordas do oriente, e "vinham como gafanhotos, em tanta multidão que não se podiam contar" (Jz 6.5). Mesmo considerando a descrição como uma hipérbole, está bem claro que os midianitas eram inimigos bastante numerosos (cf. Jz 8.10), especialmente se observados à luz da falta de união entre as tribos de Israel e da falta de força política e liderança militar.

Com infinita paciência, Yahweh levantou um campeão para livrar seu povo, quando este clamou por seu nome (Jz 6.7). Agora era Gideão, filho de Joás, o abiesrita, que morava na cidade de Ofra, em Manassés (talvez a moderna 'Affuleh na planície de Jezreel).64 A existência de assentamentos israelitas em territórios anteriormente dominados pelos cananeus atesta a eficácia da con­quista sob a liderança da juíza Débora quarenta anos antes. Como havia feito aos outros, Yahweh manifestou-se como o Anjo do Senhor. Inicialmente, Gideão resistiu ao chamado de Yahweh, argumentando que Ele havia aban­donado seu povo nas mãos dos midianitas, e que ele, Gideão, dificilmente estava qualificado para conduzir o povo, pois vinha de família humilde.

Entretanto, seu protesto foi silenciado quando Yahweh miraculosamente enviou fogo do céu e consumiu totalmente o sacrifício que Gideão havia preparado. Naquela mesma noite Gideão desmantelou o altar de Baal e o poste de Aserá que seu pai havia erguido, construindo no local um altar em honra a Yahweh. Esta atitude ocasionou a fúria de toda aquela comu­nidade apóstata e, não fosse a intercessão de seu pai, teria ele morrido nas mãos dos desobedientes. Se Baal realmente é deus, disse Joás, ele mesmo se defenda contra o sacrilégio de Gideão.

Os midianitas e seus aliados reuniram-se por uma grande extensão, e acamparam-se na planície de Jezreel para confrontar Israel. Depois de con­seguir o apoio de seu próprio clã, Gideão convocou todas as famílias da tribo de Manassés, Aser, Zebulom e Naftali, preparando-os para a bata­lha. Essa lista confirma a tese de que os inimigos de Israel naquele período atacavam apenas em áreas limitadas - nesse caso, em Jezreel e na Galiléia- e também os juizes eram líderes apenas nestas áreas.

Malamat, "Period of the Judges," em World History o f the Jewish People, vol. 3, p. 143.~4 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 263.

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Gideão, após certificar-se de que a presença de Deus o acompanhava (por meio de sinais envolvendo um velo de lã em um terreno), estabeleceu sua posição na fonte de Harode, situada ao sul do monte Moré, no acam­pamento dos midianitas. Lá Yahweh ordenou a Gideão que reduzisse o seu exército; assim, quando a batalha estivesse ganha, seria evidente para todos que Yahweh, não Israel, era o vencedor. Naquela noite, mediante uma estratégia que surpreenderia o inimigo - várias trombetas tocadas e diversos jarros quebrados - Gideão obteve grande vitória sobre seus ini­migos com apenas trezentos soldados. Em total pânico e desespero, midianitas lançaram-se uns sobres os outros; depois de muitos serem mor­tos nesse tumulto, outros fugiram para o leste em direção aos desertos. Gideão perseguiu-os até chegarem a Beth Shittah (um local até hoje desco­nhecido), no caminho para Zererah (Zaretã, a moderna Tel Umm Hamad),65 que se situa no Jaboque oriental do Jordão. A localização aproximada de Beth Shittah pode ser determinada pela sua associação com Abel-Meolá (Khirbet Tel el-Hilu), situada pouco ao oeste do Jordão, do outro lado de Tabate (Ras Abu Tabat), e a noroeste de Zaretã.66

Para evitar a fuga de dois líderes midianitas, Orebe e Zeebe, através do Jordão, Gideão mandou um recado aos efraimitas para que guardassem a todos os vaus do Jordão ao sul, até Bete Barah, possivelmente próxima à entrada do Vadi Far'a, passando pelo Jordão através do Jaboque. Portan­to, os efraimitas se envolveram no conflito porque as rotas de escape dos midianitas passavam dentro de seu território. A estratégia foi bem-sucedi- da, e os efraimitas deram a Gideão as cabeças dos dois comandantes como prova. Aproveitaram, entretanto, para reclamar o motivo de não haverem sido incluídos no exército, mas Gideão aplacou-lhes a ira convencendo-os de que a glória maior da guerra ficara com eles, pois haviam matado os líderes dos midianitas.

O próprio Gideão cruzou o Jordão em busca de dois outros líderes midianitas: Zeba e Zalmuna. A princípio, chegou a Sucote (Tel Deir 'AUa) na parte mais baixa do vale do Jordão, a menos de oito quilômetros ao leste do Jordão. Lá ele pediu alimento para sua tropa faminta, mas o povo de Sucote negou-lhe, baseando-se em que Gideão ainda não havia derrotado o inimigo e por isso não merecia apoio. Mais tarde reconhece­riam a liderança de Gideão quando este voltasse com a cabeça dos che­fes midianitas. Os residentes de Peniel (Tulul adh-Dhahab),67 a 11 quilô-

65 Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford University Press, 1984), p. 143.

66 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 284, n. 222.67 Oxford Bible Atlas, p. 137.

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metros acima do Jaboque, fizeram-lhe o mesmo. Em razão disso Gideão ameaçou ambas as cidades com punições quando ele retornasse de sua perseguição.

O que é notável na narrativa dos ataques contra a Transjordânia é o profundo sentimento de regionalismo desenvolvido em Israel, em quase 150 anos; um espírito que refletia um rompimento da irmandade ou da coesão entre as tribos. Os homens de SuXQte e Peniel eram afinal israelitas, particularmente da tribo de Gade. A resistência contra Gideão serve pára ilustrar, mais claramente, a preocupação outrora manifestada por Moisés e Josué a respeito das tribos estabelecidas ao leste do Jordão (Nm 32.6- 15,20-27; Js 22.13-20). O rio não apenas era uma fronteira física, mas tam­bém criara uma barreira psicológica e filosófica. As sementes da desinte­gração israelita começavam a germinar, e não demoraria muito até que as tribos da Transjordânia se afastassem definitivamente do restante da con­federação.

Gideão passou adiante dos midianitas em Carcor (Qarqar), entrando pelo deserto siro-arábico, a mais de 96 quilômetros ao leste do mar Morto. A despeito do grande número de soldados que compunha o exército ad­versário (quinze mil midianitas contra trezentos israelitas) Gideão preva­leceu, espalhando os midianitas e capturarando Zeba e Zalmuna. Retornou triunfantemente a Peniel, quebrou sua cidadela e"feriu de morte todos os seus habitantes. Então executou os dois reis midianitas como vingança pelos anos de terror e morticínio infligidos sobre o povo de Manassés.

Quando por fim Gideão chegou à sua cidade natal, Ofra, o povo já o queria constituir rei, sendo este o primeiro registro de tal sentimento. Tor­nara-se claro que somente um governo central poderia garantir segurança e estabilidade. Contudo, Gideão rejeitou a proposta, pois isto violava a essência do governo teocrático - a eleição divina pela liderança não here­ditária. Então ele permitiu que uma estola de ouro fosse feita e a pôs em Ofra, talvez um tipo de paládio ou "manto sagrado",68 mas isto se tornou em um objeto de adoração que contaminaria o que Gideão havia alcança­do em favor de Jeová.

O reinado m alogrado de A bim eleque

A derrota dos midianitas introduziu quarenta anos de paz, estenden- do-se de 1180 a 1140. Então, após a morte de Gideão, Israel afastou-se de Yahweh. A região central da nação passou a adorar no mínimo a divinda-

' Boling, Judges, p. 161.

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1 7 4 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e st a m e n t o

de pagã de Siquém , Baal-Berite. Sem dúvida isto aconteceu porque Abimeleque (filho de Gideão com uma concubina siquemita) atraiu al­guns partidários oriundos de Siquém, conseguindo integrar o culto pagão que lá se desenvolvia com seus próprios interesses monárquicos.

Havia muito tempo que Siquém estava distante da presença de Yahweh. Neste lugar Abraão construiu o seu primeiro altar, Jacó adquiriu uma pro­priedade e cavou um poço, José foi enterrado, e Josué conduziu a nação a uma renovação da aliança. Entretanto, o santuário central fora estabelecido em Siló, e parece que Siquém foi tomada por elementos anti-javistas, que se apegaram ao seus velhos deuses estabelecendo um centro de culto a Baal.69 O verdadeiro nome de Baal naquele lugar, Baal-Berite ("Senhor da Alian­ça"), provavelmente remonta às antigas tradições da aliança feita com Abraão, continuando até Josué. De acordo com a prática comum, o ato de fazer aliança com Yahweh foi simplesmente transferido a Baal, até que este, não Yahweh, foi visto como aquele que fez de Siquém um lugar santo.70

Abimeleque tomou vantagem dessa anti-teocracia e, como filho do he­rói popular Gideão e a concubina siquemita, atraiu o povo de Siquém para sua causa política. Afinal, o povo já havia pedido que Gideão fosse o seu rei. Ele havia declinado a proposta, mas talvez aceitasse seu filho como seu soberano. Os únicos obstáculos eram os outros filhos de Gideão, então Abimeleque alugou assassinos para, juntamente com ele, ir à cidade de Ofra matar seus irmãos. Assim, em Siquém, Abimeleque foi feito rei.

Todavia um dos filhos de Gideão conseguiu escapar àquela chacina. Jotão predisse que o reinado de Abimeleque não duraria muito tempo, e de fato dentro de três anos o povo de Siquém voltou-se contra ele. Depois de uma série de conspirações, Abimeleque achou por bem atacar e destruir a cidade de Siquém.71 Ele então foi a Tebez (Tubas), cerca de 14 quilômetros ao norte de Siquém, mas quando tentava incendiar a cidadela, foi morto por uma

69 Ronald E. Clements, "Baal-Berith of Shechem," JSS 13 (1968): 31-32.70 Essa interpretação opõe-se àquela apresentada pela maioria dos estudiosos, que crêem

que o local foi originalmente dedicado ao culto cananeu, e que mais tarde foi anexado pelos israelitas e dedicado à adoração de Yahweh. Ver em Martin Noth, The Histoty of Israel, 2a edição (New York: Harper and Row, 1960), pp. 98-99; G. Ernest Wright, "Deuteronomy," em Interpreter's Bible, editado por George A. Buttrick (New York: Abingdon, 1953), vol. 2, p. 326.

71 Bernhard W. Anderson data a destruição de Siquém em 1100 a.C., não divergindo da cronologia aqui apresentada, a qual determina o período de paz depois da derrota dos midianitas em 1180 - 1140. Parece que Gideão morreu alguns anos após esse período pacífico chegar ao fim (Jz 8.28,32,33), talvez em 1120 ("The Place of Shechem in the Bible," BA 20 [1975]: 16).

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£>--* dos J uizes: A Vio la çã o da A liança , A narquia e a A u toridade H umana 1 7 5

mulher que lançou do telhado uma pedra de moinho sobre sua cabeça. Por­tanto, a mais remota experiência monárquica de Israel foi abortada.

A lista de lugares na história de Abimeleque deixa claro que seu reina­do foi limitado não somente nos anos, mas também na extensão geográfi­ca. Toda sua atividade esteve confinada à região de Manassés; não há qual­quer sinal de que ele tenha atraído a atenção das demais tribos. Precisa­mente, Israel como um todo não estava preparado para a monarquia, ou pelo menos não a que Abimeleque estava disposto a oferecer.

Juizes menores

O reinado de Abimeleque pode ter sido a ocasião para o governo de Tola, um descendente da tribo de Issacar, a tribo irmã de Manassés, que situava-se bem ao norte. E fácil imaginar a turbulência criada pelas idéias mal concebidas de Abimeleque em Manassés. O governo de Tola não en­volvia um inimigo estrangeiro, mas foi designado para restaurar a paz dentro de Manassés. Ele vivia em Samir (Samaria?)72 e governou por cerca de vinte anos. Com base no período de 1180 a 1140 para o período de paz ocorrido após a derrota dos midianitas (segundo a nossa cronologia), Gideão pode ter morrido em 1120. Nesse caso Abimeleque reinou de 1120 a 1117, e Tola julgou Israel de 1117 a 1094. Embora não seja possível uma precisão, como tem sido repetido, as datas apresentadas de forma alguma são incompatíveis com o que se conhece acerca desse período.

Provavelmente paralelo ou um pouco depois do governo de Tola, le­vantou-se Jair de Gileade. Esse cidadão abastado de Camon (Qamm), si­tuada cerca de 19 quilômetros a sudeste do mar de Quinerete, julgou a Israel (i.e., Gileade) por vinte e dois anos. Admitindo que seu governo teve início logo que Tola começou a julgar Israel, pode-se datá-lo perto de 1115 - 1093. Mas se for entendido que o governo de Jair iniciou após a morte de Tola, a data deve avançar para 1094 - 1072. Em qualquer caso é possível harmonizar o governo de Jair com o governo de Jefté, pois embo­ra as datas de Jefté sejam quase certo 1106 - 1100, sua administração apa­rentemente centrou-se em Mispa (JaTad),73 no mínimo 64 quilômetros ao sul de Camon. Jair limitou-se às cidades de Havote Jair, um distrito mais ao sul e ao oriente do mar de Quinerete.

~ Oxford Bible Atlas, p. 140.Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmilan, 1968), p. 181; ver também o mapa 78. Martin Noth, contudo, localiza a cidade de Mispa em el-Mishrefe, dois quilômetros ao norte de Jal'ad; ver Malamat, "Period of the Judges," em World Hístori/ o fthe Jewísh People, vol. 3, p. 322, n. 78.

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1 7 6 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e st a m e n t o

Após a am eaça dos m idianitas e a curta m onarquia im posta por Abimeleque, Israel mais uma vez deu as costas para Yahweh, e desta vez foi uma apostasia em larga escala. Começaram a adorar os Baalins e Astarotes como já faziam de costume, mas agora juntaram os deuses de Arã, Sidom, Moabe, Amom e Filístia. Conseqüentemente, Yahweh "ven­deu-os em mão dos filisteus, e em mão dos filhos de Amom... e oprimiram e vexaram aos filhos de Israel" (Jz 10.7,8). Essa declaração significa que filisteus e amonitas oprimiram o povo simultaneamente (ver pp. 151,152). O historiador procede narrando a opressão dos amonitas (Jz 10.8b - 12.7), e em seguida a dos filisteus (13.1 - 16.31). Este fato é muito importante para a reconstrução da cronologia desse período.

Jefté

O s amonitas referidos em Juizes 10.8b oprim iram os israelitas da Transjordânia por dezoito anos. Tentaram inclusive atravessar o Jordão para também devastarem as tribos de Judá, Benjamim e Efraim. Finalmente, os israelitas juntaram-se em Mispa e iniciaram uma busca frenética por um líder capaz de livrá-los. Jefté, filho de Gileade, havia sido forçado ao exílio em Tobe (et-Taiyibeh), no interior do deserto de Hauran, onde rapi­damente ajuntou um grupo marginal. A opressão amonita teve início al­guns dias depois de seu exílio. Os anciãos de Gileade, que conheciam a sua força e as suas virtudes de liderança, buscaram-no e o instituíram como seu comandante. A primeira ação de Jefté foi tentar um entendimento di­plomático com os amonitas. O inimigo reclamava que as tribos orientais de Israel estavam ocupando ilegalmente seu território por cerca de trezen­tos anos. Jefté enviou uma delegação ao rei amonita e lembrou-lhe que Israel não tinha se apoderado de nenhuma terra dos amonitas na época da conquista. De fato, o que Amom agora reivindicava como seu território pertencia naquela época a Siom, rei dos amorreus. Foi a ele que Israel desapossou, e não aos amonitas. Caso eles realmente tivessem o direito a alguma reivindicação, esta não poderia ser legalmente aceita naquele momento nem no anterior.74 Além disso, Jefté perguntou por que motivo Amom reclamava os territórios naquele momento, após três séculos da derrota de Siom (Jz 11.26).

74 Parece que, de fato, a reivindicação dos amonitas era verdadeira e que eles já tinham sido senhores daquela terra antes do tempo de Seon (Nm 21.26). Ver em Eugene H. Merrill, "Numbers," em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F. Walvoord e R oy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. I, pp. 240-41.

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A E r a d o s J u í z e s : A V io l a ç ã o d a A lia n ç a , A n a r q u ia e .4 A u t o r id a d e H um ana 1 7 7

Conforme mencionado anteriormente (pp. 151,152), o número trezen­tos é importante para a definição não somente das datas do êxodo e da conquista, mas também dos anos de opressão causados pelos filisteus e amonitas. A conquista da Transjordânia ocorreu em 1406, exatamente qua­renta anos depois do êxodo. Portanto, a comunicação entre Jefté e os amonitas deve ser datada perto de 1106. Não há de fato razão para enten­der os trezentos anos de outra maneira que não literal. É certo que a vitó­ria de Jefté sobre os amonitas (que ocorreu logo após Amom não ter dado ouvidos a Jefté) constituiu o fim de suas ameaças. Uma vez que essa opres­são durara dezoito anos, seu início pode fixar-se em 1124. Nesse tempo, as terras em ambos os lados do Jordão desfrutavam um período de paz gra­ças à eficiente expulsão dos midianitas promovida por Gideão, fato ocor­rido décadas antes. É possível que as reivindicações dos filhos de Amom tenham surgido imediatamente após a morte de Gideão, já que não havia mais motivo para temer a nação de Israel.

Após os amonitas rejeitarem os termos de paz propostos por Jefté, este os atacou em uma frente desde Aroer (localização desconhecida), situada em algum ponto ao leste de Rabá (a moderna Amman) até Minnith (loca­lização desconhecida), também situada em algum lugar ao lesté do Jaboque, chegando a Abel-Keramin (Na'ür?),75 poucos quilômetros a noroeste de Hesbom. Voltou Jefté para Mispa, onde cumpriu os votos que havia feito anteriormente solicitando o favor divino.~ Evidências acerca da desunião contínua e latente hostilidade entre as tribos podem ser vistas na reação dos efraimitas ao sucesso de Jefté-^Eles vinham sofrendo nas mãos dos amonitas e agora cruzavam o Jordão para encontrar-se com Jefté, a fim de repreendê-lo por não terem sido convoca­dos para a batalha. Sem pensar nas conseqüências e mantendo o espírito anarquista da época, os efraimitas ameaçaram incendiar a casa de Jefté. Então Jefté protestou dizendo que na verdade os havia convocado, mas não fora atendido (Jz 12.2). Os efraimitas só puderam dizer que os gileaditas eram renegados por Efraim e Manassés, e assim desleais com Israel.76 Tudo isto, é claro, refletia problemas originados pela solicitação da Transjordânia feita pelas tribos de Rúben, Gade e meia-tribo de Manassés oriental. Mais

~ Aharoni, Land ofthe Bible, p. 429.Aharoni, "Settlement in Canaan," em World History o f the jewish People, vol. 3, pp. 123- 24. Existe uma forte indicação de que Efraim havia reivindicado uma parte bastante considerável da Transjordânia, pois há referências acerca da floresta de Efraim (2 Sm 18.6; cf. 17.24). Ver em Malamat, "Period of the Judges," em World History o f the jewish People, vol. 3, p. 159.

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evidências da alienação das tribos ocidentais e orientais podem ser vistas na atitude de Jefté de proibir que os efraimitas retornassem ao lado oci­dental do Jordão depois de pelejarem contra os gileaditas. Ele, inclusive, posicionou seus homens nos vaus, e qualquer sobrevivente que tentasse atravessar para o oeste do Jordão, era obrigado a pronunciar "Chibolete" (,sibbõlet). Caso dissesse "Sibolete", uma peculiaridade fonética do oeste, automaticamente era identificado como um efraimita, o que culminava em sua morte.77 Aqui está uma prova de que a distinção lingüística já co­meçava a marcar a divisão da nação.78

Jefté viveu por mais sessenta anos após a expulsão dos amonitas (1106 - 1100), e foi sucedido três juizes locais. Ibsã, de Belém (provavelmente em Judá) serviu por sete anos (cerca de 1100 - 1093); Elom, de Aijalom em Zebulom, julgou por dez anos (cerca de 1093 -1083); e, por último, Abdom, de Piraton (Far'ata) em Efraim, julgou por oito anos (cerca de 1083 - 1075). Estes governos podem ter sido simultâneos, totalmente ou em parte, mas em todo caso não cobriram as áreas afligidas pelos amonitas e pelos filisteus.

Sansão

A opressão causada pelos filisteus iniciou no mesmo ano em que Israel foi oprimido pelos amonitas (1124), mas é descrita em detalhes somente após a conclusão do relato de Jefté e os amonitas (p. 151). Este aspecto não é invalidado pela versão tradicional de Juizes 13.1a - "tornaram a fazer o que parecia mal aos olhos do Senhor" - pois a palavra "tornaram " não aparece desta forma no texto hebraico original. Literalmente, o original quer dizer: "E os israelitas acrescentaram mais à sua maldade," uma ex­pressão que pode significar "fazer novamente", mas não necessariamen­te. O verbo yãsap aqui decerto significa "continuar a fazer", mas apenas acompanhado da partícula ‘ôd significaria "fazer novamente" (Jz 11.14).79 Assim, Israel continuou a fazer males, conforme o narrador registrou em Juizes 10.6, quando pela primeira vez introduziu a opressão dos filisteus. Juizes 13.1a serve como uma ponte literária que conduz à primeira refe­rência, e não pretende sugerir uma seqüência Jefté-Sansão.

77 Ver Ephraim A. Speiser, "The Shibboleth Incident," BASOR 85 (1942): 10-13. Eduard Y. Kutscher, A History o f the Hebreiu Language (Jerusalem: Magnes, 1982), pp. 14-15.

78 Para outras evidências a respeito dessa divisão, ver Malamat, "Period of the Judges," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, pp. 160-61, onde o autor declara que Efraim sempre foi o principal instigador. Ver também Daniel I. Block, "The Role of Language in Ancient Israelite Perceptions of National Identity," JBL 103 (1984): 339, n. 75.

79 Boling, Judges, p. 85.

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A E m d o s J uízf.s : A Vio l a ç ã o da A l ia n ç a , A n a r q u ia f. a A u t o r id a d e H um ana 1 7 9

A ameaça dos filisteus afetou a tribo de Dã em particular, embora Efraim, Benjamim e Judá também tenham sentido seu impacto. Por lon­gos quarenta anos Israel penou sob a incansável e brutal pressão dos filisteus até que Yahweh levantou Sansão e mais tarde Samuel para livrá- los do jugo inimigo. A opressão iniciou em 1124 e continuou até 1084. O governo de Sansão coincidiu com a opressão (Jz 15.20) mas não a ultra­passou (1 Sm 7.13,14). Visto que sua liderança se estendeu por vinte anos (Jz 16.31), ele deve ter iniciado o ministério mais ou menos na metade dos quarenta anos, em 1104. Não devia ter mais de vinte anos de idade na ocasião, pois seu nascimento ocorrera logo após o início da opressão filistéia (Jz 13.5). Para resumir, a opressão durou de 1124 até 1084, Sansão nasceu por volta de 1123, iniciou seu governo em 1104, e morreu no má­ximo em 1084.

Nascido de pais piedosos, naturais da tribo de Dã em Zorá (Sar'ah), situada no vale de Soreque, Sansão foi desde seu nascimento um nazireu poderosamente revestido pelo Espírito de Deus.80 Que isto não implica necessariamente em espiritualidade pessoal está claro pelo curso da vida deste jovem. Ele serve como um testemunho eloqüente da natureza dos juizes. Não era um ofício para o qual alguém se classificava por meio de dons naturais, integridade pessoal ou herança, mas apenas pela soberana atuação de Deus. Os vários romances de Sansão com mulheres filistéias são suficientes para mostrar que seu sucesso em favor de Israel não era devido ao seu próprio caráter, mas ao de Deus, que vinha sobre ele e o fortalecia para ser o salvador de seu povo.5 ) Sansão apaixonou-se por uma mulher filistéia natural de Timná (Tel Batash), uma cidade situada na fronteira entre Israel e os filisteus. Na festa de casamento, Sansão apostou trinta mudas de vestidos que seus compa­nheiros não seriam capazes de decifrar um enigma. Após descobrir que fora enganado, partiu para a cidade filistéia de Ascalom, matou trinta ho­mens e retirou deles as vestes festivas para pagar sua aposta. Isto marcou seu primeiro ataque contra os filisteus. Em seguida ele foi embora. Quan­do Sansão retornou a Timná, descobriu que sua mulher havia sido dada a outro homem. Irado, pegou trezentas raposas e as amarrou umas às ou­tras pela cauda e, após atear-lhes fogo, enviou os animais direto às searas dos filisteus, queimando totalmente suas colheitas. Quando, em retalia­ção, os filisteus mataram sua mulher e seu sogro, Sansão matou um gran­de número de filisteus, dando-lhes o troco. Então os filisteus armaram-se

Para discussão acerca da natureza e função dos nazireus, ver Roland de Vaux, AncientIsrael (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 2 pp. 466-67.

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contra Judá, cujos habitantes ficaram aterrorizados, visto que por seu pró­prio consentimento viviam sob a dominação dos filisteus (Jz 15.11). Entre­garam, portanto, Sansão aos filisteus, mas lá, em Ramate-Leí (local desco­nhecido), Sansão feriu mil de seus inimigos.J A segunda mulher na vida de Sansão foi uma prostituta de Gaza. En­quanto a visitava, Sansão foi descoberto por alguns filisteus que decidi­ram vigiá-lo toda a noite, armando-lhe uma emboscada ao amanhecer. Porém, à meia-noite, ele levantou-se, tomou o portão da cidade, e o carre­gou até Hebrom, a quarenta milhas de distância.

Finalmente, Sansão cedeu aos encantos de Dalila, que o traiu revelan­do aos filisteus que a força de Sansão residia nos cabelos não cortados. Ironicamente, ele foi levado a Gaza e forçado a mover um grande moinho. A cidade de onde ele, em toda a sua força, retirara o portão, agora havia se constituído em sua própria prisão. No devido tempo Sansão foi trazido ao templo de Dagom, a principal divindade dos filisteus. Seus cabelos - a marca de seu nazireado e o poder de Deus sobre sua vida - já haviam crescido novamente e, em uma última tentativa poderosa, derrubou o tem­plo de Dagon sobre si e os filisteus, matando em sua morte mais inimigos do que havia matado em vida.

Os críticos recusam-se a ver a narrativa de Sansão como história real em virtude dos feitos sobrenaturais do herói. Preferem descrevê-las como lenda ou saga, cujo propósito era enfatizar a idéia de que Yahweh vence­ra seus inimigos através de um homem revestido de seu Espírito, e não mediante o uso de um exército de soldados.81 O problema com esse cepticismo é que ele interpreta erroneamente a natureza das sagas como um gênero literário82 e, além disso, baseia-se em uma afirmação não crí­tica de que tais feitos heróicos por si só não poderiam acontecer, e que de fato não ocorreram. Mas esse tipo de apelação não encontra lugar de importância na história escrita. Se alguém admite não existir nada afora o registro bíblico que o contradiga, e que a história bíblica é sui generis, ou seja, uma história especial e única, então não há um bom motivo para se rejeitar as histórias de Sansão. Uniformitarismo histórico não deve pôr uma camisa de força nos fatos ou predeterminar o que aconteceu no passado.

81 Para conhecer mais este ponto de vista, ver James L. Crenshaw, Samson (Atlanta: John Knox, 1978), pp. 19-26.

82 Para uma excelente discussão a respeito de saga, especialmente da imprecisão do termo como uma tradução do alemão Sage, ver John J. Scullion, "Marchen, Sage, Legende: Towards a Clarification of Some Literary Terms Used by Old Testament Scholars," VT 34 (1984): 324-31.

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A E ra dos J u ízes: A Violação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 1 8 1

Samuel

Os últim os cinco capítulos de Juízes form am , juntam ente com o li\ rro de Rute, o que poderia ser cham ado de trilogia belem ita de h is­tórias, cujo cenário é a era dos juízes. Antes deste fator ser exam ina­do, é preciso atentar para a narrativa da opressão dos filisteus e todo o período dos juízes. Isto requer uma atenção aos prim eiros capítulos de 1 Samuel.

Esse livro inicia com a história do nascimento de Samuel, em resposta à oração de Ana, em Ramatain-Zofim (Rentis), localizada em Efraim, a ape­nas oito quilômetros a noroeste de Timná Sera - local onde sepultaram o corpo de Josué, e aproximadamente 29 quilômetros a oeste do tabernáculo em Siló. Samuel foi dedicado por seus pais para ser um nazireu e servir ao Senhor em Siló. Embora não fosse um sacerdote de linhagem, era um levi- ta (1 Cr 6.22-28), um descendente de Coate, e assim poderia ministrar no tabernáculo e em outros altares locais.

Enquanto Samuel era jovem em Siló, o sumo sacerdote era Eli, um des­cendente de Itamar, como sugerido pelo fato de mais tarde o sacerdócio da linhagem de Eli ter sido tomado e entregue a Zadoque, um descenden­te de Eleazar (1 Rs 2.35; cf. Nm 3.4; 1 Cr 6.8). Embora não haja indícios de apostasia na vida de Eli, seus filhos efetivamente transformaram a casa de Yahweh em Siló num santuário cananeu, com toda a corrupção e imorali­dade associadas ao culto a Baal (1 Sm 2.12-17, 22-25). Foi nesse ambiente que o jovem Samuel foi chamado por Yahweh e designado para ser profe­ta e juiz. Também em razão dessas circunstâncias o Senhor trouxe os filisteus para servirem como instrumento de sua correção.

A presença dos filisteus nos prim eiros anos do juizado de Samuel deve ser a^spciada aos quarenta anos de opressão m encionadas em Juízes 13.T. Este fato é evidente porque nenhum a cronologia perm ite que Sam uel tenha sido jovem antes de 1124 (ver pp. 152,153) - o início da única opressão filistéia conhecida no décimo segundo século - e também porque está claram ente registrado que foi o próprio Sam uel quem finalm ente liquidou os filisteus e perm itiu que Israel obtivesse novam ente seus antigos territórios (1 Sm 7.13,14). Esta tarefa realiza­da por Sam uel deve ser datada por volta de 1084, pois a opressão dos filisteus durou quarenta anos, de 1124 a 1084. A arca da aliança havia perm anecido em Q uiriate-Jearim por vinte anos na época em que Sam uel derrotou os filisteus (1 Sm 7.2). Uma vez que a arca esteve nessa cidade desde a queda de Siló, com exceção dos sete m eses que

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passou na Filístia (1 Sm 6.1), conclui-se que a data da destruição de Siló seja por volta de 1104.83

Vejamos mais detalhadamente os eventos ocorridos em 1104. Õ histori­ador relata que os filisteus tinham se reunido em Afeque, obviamente com a intenção de batalhar contra os israelitas que estavam acampados em Ebenézer. 'Esta Afeque é Râs el-'Ain, situada cerca de 40 quilômetros a oeste de Siló. Ebenézer (Tzbet Sartah?)84 achava-se a apenas três quilôme­tros a sudeste de Afeque.85 Quando a batalha travou-se, Israel sofreu uma terrível derrota. Supersticiosamente, atribuíram o fracasso à ausência da arca da aliança na batalha. A presença de Yahweh como o Guerreiro de Israel que conduzia seu exército na guerra santa era simbolizada pela arca. Mas a guerra santa era sancionada por Yahweh - a mera presença da arca não era garantia de sua bênção. Apesar disso, a arca foi trazida desde Siló e, embora tenha aterrorizado os filisteus, que também viam-na como uma função automática, estes batalharam contra Israel e alcançaram um mag­nífico triunfo. Os filhos de Eli, Hofni e Finéias, que estavam incumbidos de guardar a arca, foram mortos e a arca foi levada como um troféu de guerra. Quando a notícia do desastre chegou a Siló, Eli caiu para trás e morreu, e a mulher de Finéias deu à luz um filho prematuramente, que foi chamado de Icabô ("foi-se a glória do Senhor"), uma eloqüente descrição da perda da arca.

O ataque sobre Israel em Afeque bem pode ter sido uma reação aos antigos ataques de Sansão contra os filisteus, que começaram mais ou menos nessa época (1104). Visto que Sansão foi fortalecido miraculosa- mente pelo Deus de Israel, o que poderia ser melhor do que atacar o centro religioso israelita em Siló? Entretanto, os filisteus logo aprende­ram que Yahweh não poderia ser contido dentro de uma caixa, nem seus poderes eram diminuídos por estar a arca transitando temporariamente

83 Essa data é aproximadamente cinqüenta anos mais antiga do que a usualmente aceita para a destruição da cidade de Siló; ver, por exemplo, o que diz John Bright em A History o f Israel, 3a edição (Philadelphia: Westminster, 1981), pp. 185-86. Note que o relato bíbli­co não diz expressamente que Siló fora destruída na época em que a arca foi levada pelos filisteus. A destruição pode ter ocorrido cinqüenta anos depois de a cidade ter deixado de ser um centro religioso para Israel. O Salmo 78.60 fala que Jeová abandonou Siló, um fato confirmado em 1 Samuel 4.11, ao passo que o profeta Jeremias refere-se a esta destruição (7.12,14; cf. 26.6,9) como conseqüência de sua rejeição como um centro de adoração a Deus.

84 Oxford Bible Atlas, p. 127.85 Para um excelente gráfico da batalha, ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillian Bible Atlas,

mapa 83, p. 58.

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na Filístia. Como um virtual prisioneiro de guerra no templo de Dagom em Asdode, Yahweh permaneceu em abjeta humilhação (assim pensa­vam os filisteus) aos pés da divindade filistéia. Mas, pela manhã, Dagom estava prostrado diante da arca. Seus assistentes levantaram-no, mas a cena repetiu-se, e desta vez tinha a cabeça e braços arrancados do lugar. Em termos bem apropriados, a inigualável invencibilidade de Yahweh estava sendo afirmada.

Dagom não estava sozinho em sua humilhação, pois uma praga de ^hem orróidas veio sobre todo o povo de Asdode. Ao perceberem que es-

tavam sob o juízo de Yahweh, os líderes decidiram enviar a arca de volta a uma cidade coirmã chamada Gate. Mas a praga também lá se espa­lhou; então a arca foi enviada para Ecrom, onde o mesmo aconteceu. Intensamente frustrados, os príncipes dos filisteus decidiram devolver a arca para Israel e ofereceram os devidos sacrifícios a Yahweh, a fim de aplacar-lhe a ira e induzi-lo a interromper a terrível praga. Conduzidos pelo Senhor, a junta de bois que levava a arca sobre o carro chegou até Bete-Semes, onde um certo Josué dela tomou conta temporariamente. Lá os levitas ofereceram a Yahweh um sacrifício de animais. Mas alguns do povo de Bete-Semes olharam para dentro da arca, um ato que violava a sua santidade, e por isso muitos morreram. Apavorados, os sobreviven­tes suplicaram aos moradores de Quiriate-Jearim, distante uns 16 quilô­metros a nordeste, que guardassem a arca. O porquê dos moradores de Bete-Semes terem sido mortos por desrespeitarem a arca, enquanto os filisteus puderam fazer o mesmo com relativa impunidade é bem claro: as expectativas de Yahweh quanto ao seu povo santo não são as mesmas para os que não são seus. Ou seja, a arca era santa apenas para o povo santo.

Durante vinte anos a arca permaneceu em Quiriate-Jearim, na casa de Abinadabe. Somente após este tempo Samuel exortou o povo a desfazer- se dos ídolos pagãos, a servir a Yahweh, e preparar-se para expulsar os filisteus de uma vez por todas. Esse repentino impulso de liderança em Samuel sugere que ele agora era um homem maduro, e não havia outros líderes preparados para tal tarefa. Sansão já devia estar morto. Ele morre­ra enquanto destruía o templo de Dagom em Gaza, no final dos seus vinte anos de juizado, isto por volta de 1084. Então, vinte anos após os filisteus terem capturado a arca (em 1104), Samuel assumiu a liderança como juiz e profeta para pôr fim ao problema causado pelos filisteus. Ajuntou o povo em Mispa (Tel el-Nasbeh), entre Gibeão e Betei, e ofereceu sacrifícios a Yahweh, encorajando Israel a enfrentar os filisteus, que já estavam a cami­nho da batalha. Com a ajuda de Yahweh, Israel derrotou poderosamente o

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inimigo, expulsando-o de volta a Bete-Car. Este local não pode ser identi­ficado, mas visto que está associado a Sem (Jeshanah ou el-Burj)86, situada logo ao sul de Siló, devia localizar-se para o norte. Em todo caso, a batalha pôs fim ã ocupação filistéia em Israel. A opressão de quarenta anos havia finalmente chegado ao fim. A referência à paz com os amorreus (1 Sm7.14) significa que a vitória de Samuel sobre os filisteus ocasionou um período de paz e tranqüilidade entre as populações nativas da região mon­tanhosa.87

Este feito de Samuel o marcou como juiz, o últim o de uma longa sucessão de líderes carism áticos que com eçara com Otniel. Porém, mesmo a jurisdição de Samuel era limitada, pois seu circuito ia de Betei a Gilgal, e desta para M ispa, uma área que não ultrapassava 32 quilô­metros de extensão. Agora ele estava em constante m ovim ento, mas periodicam ente voltava a Ramá (i.e, Ram ataim Zofim ), local de sua re­sidência. A era dos juízes estava abrindo caminho para a monarquia; dentro de trinta e cinco anos Samuel presidiria a coroação do primeiro rei em Israel.

A trilogia de Belém

Antes de exam inar a m onarquia de Israel, é preciso atentar para a chamada trilogia de Belém - as três narrativas cujo cenário descreve o período dos juízes. São assim designadas porque a cidade de Belém figura proem inentem ente em cada uma delas. De fato, as narrativas contêm outros temas e motivos em com um .88 Estaremos submetendo as três histórias a uma análisej detalhada porque representam m elhor a narrativa da história escrita^Élas dizem respeito a indivíduos em con­texto mais ou menos particular, cujas identidades e atividades são ape­sar de tudo inseparáveis, e cLç-çisivas para a compreensão da m onar­quia davídica que os seguiuV^Relatos de eventos ocorridos na época dos juízes, foram eles incluídos no registro sagrado com o propósito de traçar as origens da dinastia davídica e justificar sua existência em opo­sição à linhagem de Saul.

86 O texto massorético de 1 Samuel 7.12 diz hassen, mas a leitura preferida, baseada na Septuaginta, é haysanâ, Jeshanah.

87 P. Kyle McCarter, Jr., I Samuel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1980), p. 147.

88 Ver Eugene H. Merrill, "The Book of Ruth: Narration and Shared Themes," Bib Sac 142 (1985): 130-41.

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M ica e o levita

A primeira narrativa descreve a história de Mica e o levita (Jz 17 -1 8 ) .89 Parece que um abastado homem de Efraim, chamado Mica construiu uma casa de ídolos, instituindo seu próprio filho como sacerdote desse santuá­rio pagão. Isto, segundo descreve o historiador, era característica daque­les dias, quando "não havia rei em Israel" e "cada qual fazia o que parecia direito aos seus olhos" (Jz 17.6). Quando um levita de Belém passou pelo lugar à procura de emprego, Mica o persuadiu a servir como sacerdote em lugar de seu filho, que não era levita.

Enquanto isso, a tribo de Dã, que não conseguia ocupar todo o territó­rio herdado, enviou uma comitiva ao norte em busca de outro território. Pelo caminho, a delegação encontrou-se com o levita, solicitando-lhe in­clusive um conselho a respeito de seu empreendimento. Satisfeitos, parti­ram para Lais (Tel el-Qadi), cerca de 19 quilômetros ao norte do lago Hulé, e perceberam que os habitantes locais viviam vida pacata e desprotegida. O relatório da delegação encorajou os danitas a partir em massa para Lais.

A caminho de Lais, seiscentos homens de Dã, incumbidos de vencer aquele povoado pacato, pararam para visitar Mica e insistiram para que o levita os acompanhasse, juntando-se a eles na condição de sacerdote de um novo centro religioso que construiriam em Lais. Chegando ao local, destruíram completamente a cidade e reedificaram-na com o nome de Dã. Somente neste ponto da narrativa o nome do levita é revelado - não era outro senão Jônatas, filho de Gérson, neto do próprio Moisés!90 Esta infor­mação permite que o ambiente histórico seja mais precisamente definido. Gérson, filho de Moisés, deve ter morrido antes da conquista, como parte da geração rebelde. Jônatas tinha de estar com vinte anos ou menos em 1444 para que pudesse entrar na terra. Assim é bem provável que estives­se com cinqüenta e oito anos no início da conquista, sendo portanto cha­mado de "jovem " em Juízes 17.7. Apesar de ser este um termo impreciso, sem dúvida não pode ser aplicado a alguém acima de cinqüenta anos. E mais certo que ele fosse bem mais novo.91 De grande importância também

“ Frank Anthony Spina, "The Dan Story Historically Reconsidered," JSOT 4 (1977): 60-71. O nun suspensum do Texto Massorético de Juízes 18.30 reflete apenas considerações apologéticas, e não pode derrubar a forte evidência de manuscritos que lêem "Moisés" em vez de "Manassés". Ver Moore, Judges, pp. 401-2.Que Jônatas era muito mais novo é sugerido pela evidência de que Gérson nascera de Moisés e Zípora depois que estes tinham muitos anos de casados: ele fora circuncidado por sua mãe quando estavam a caminho do Egito, antes do êxodo (Ex 4.24-26). Não seria impróprio datar o seu nascimento em 1450. Neste caso, ele estaria entre aqueles

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é a referência em Juizes 18.1 ao fato de Dã ainda não haver tomado posse de sua herança. Por falta de paciência, a tribo decidiu seguir seu próprio caminho. Deve-se lembrar que o processo de alocação das tribos já havia terminado dentro de sete anos após o início da conquista (i.e., em 1399 - ver p. 132). Ajornada de Dã até Lais não pode ter acontecido muito tempo depois disso.

Os estudiosos geralmente entendem que a migração de Dã foi conse­qüência de pressões exercidas pelos nativos da região, conforme sugerido em Juizes 1.34-36. É preciso observar a passagem de Josué 19.47, que rela­ta que Dã tomou a cidade de Lais (Lesém), após ter sido o seu termo pe­queno; Dã estava com dificuldades para ocupar seu território herdado. Em Juizes 18.8-13 esclarece que a tomada de Lais precedeu a ocupação do território original. A seqüência, então, mostra que uma parte da tribo, im­paciente por não poder conquistar seu território, moveu-se para o norte (Lais) por conta própria; os danitas remanescentes ocuparam as cidades mencionadas em Josué 19.40-46. Destes danitas surgiu Sansão trezentos anos mais tarde.

O levita e sua concubina

A segunda história da trilogia é acerca de um levita de Efraim que to­mara como concubina uma donzela natural de Belém (Jz 19-21).92 A cone­xão Belém-Efraim é novamente posta em evidência; há obviamente uma deliberada intenção do autor em ambos os episódios. O levita obteve sua mulher em Belém (para onde ela havia fugido por razão desconhecida) e retornou a Efraim via Gibeá (Tel el-Füll), de Benjamim, onde encontrou abrigo e segurança na casa de um ancião. Infelizmente, a mulher foi vista por homens malignos de Gibeá, que a violentaram por toda uma noite, deixando-a morta à porta do homem que os hospedara tão gentilmente. O

que obtiveram a graça de entrar em Canaã, já que devia ter menos de vinte anos (1444). Além disso, em 1399 ele estaria com cerca de cinqüenta anos, e seu filho Jônatas poderia ser facilmente descrito como um homem jovem. Embora o hebraico na'ar ("homem jo­vem") possa também referir-se a um assistente ou ministro, em ambos os casos nunca dá o sentido de um velho ou ancião. Ver Aharoni, "Settlement of Canaan", em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 308, n. 15.

92 A historicidade desse relato é defendido por Malamat, "Period of the Judges," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 161, que situa o ocorrido entre o juizado de Jefté e o ataque amonita contra Jabes-Gileade (1 Sm 11). Mesmo que essa data tão recente seja impossível (ver n. 95), Malamat corretamente chama a atenção para a ligação existente entre Benjamim e Jabes-Gileade.

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levita então expôs sua triste experiência aos anciãos de todo o Israel, pois haviam se reunido em Mispa. Então foram à cidade de Betei (Jz 20.18)93, onde buscaram a direção divina para agir.94

Visto que a concubina era oriunda de Belém, estabeleceu-se que os ho­mens de Judá seriam os primeiros a atacar Benjamim. Depois de dois dias de atraso, os israelitas decidiram retirar-se para buscar o favor e a bênção de Deus através do sumo sacerdote Finéias, neto de Arão.95 No terceiro dia Israel prevaleceu sobre Benjamim, que quase foi aniquilada. Israel reu­niu-se outra vez para discutir acerca da quase extinção da tribo. A resolu­ção foi trazer muitas donzelas de Siló e Jabes Gileade, para servirem como esposas para cerca de seiscentos benjamitas sobreviventes, preservando assim a tribo.

A referência a Jabes-Gileade não é sem propósito por parte do historia­dor. A cidade era de certo modo o lar ancestral de Saul. Também está claro na narrativa que a mulher do benjamita sobrevivente, ancestral de Saul, veio ou de Siló ou de Jabes-Gileade. O interesse expressado por Saul na cidade de Jabes-Gileade parece demonstrar que suas origens remontam àquele lugar. Saul somente tornou-se rei depois que Jabes-Gileade foi cer­cada pelos amonitas, e não a destruíram justamente por causa de sua in­tervenção (1 Sm l l . l - l l ) . 96 Além disso, após a morte de Saul e a vergonha

Tem sido sugerido que bêt-el aqui significa "local de Deus" (i.e., Mispa), e não aquela cidade com esse nome. Essa sugestão põe em evidência a necessidade de explicar o surgimento de Betei como um centro de culto, coisa que não tem comprovação neste período de Israel, exceto nessa narrativa. Portanto, as referências a Betei (Jz 20.18,26; 21.2) devem ser entendidas não como o nome de um lugar, mas como um "lugar santo", isto é, Mispa (ver Boling, Judges, p. 285). Embora Siló tenha sido o local escolhido para guardar o tabernáculo e a arca da aliança desde tempos antigos (Js 18.1), já não devia mais desfrutar do mesmo status pelo tempo da rebelião da tribo de Benjamim, um fato que está bastante claro tanto pela presença da arca em Mispa (Jz 20.18,23,26-28; 21.1-7) quanto pelo fato de que, aparentemente, a cidade de Siló já tinha caído em desfavor por essa época (Jz 21.12,19-23). Porém, alguns anos mais tarde, Siló readquiriu seu status de honra como o centro de culto da nação, conforme 1 Samuel 3-4.

°4 Para um estudo que discorre acerca da função dessas reuniões, ver Hanoch Reviv, "The Pattern of the Pan-Tribal Assembly in the Old Testament," JNSL 8 (1980): 85-94.

J5 Os eventos dessa narrativa, como aqueles da primeira, devem ser posicionados bem nos primórdios da era dos juízes. O neto de Moisés e um neto de Arão seriam contem-

' porâneos de uma geração depois da conquista.* A dissecação dos bois feita por Saul é uma reminiscência do tratamento dado à concubina

do levita, que fora brutalmente estuprada até a morte. Esse relato claramente liga o início do reinado de Saul com suas origens em Jabes-Gileade, e o acontecimento históri­co referente à situação.

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diante dos habitantes de Bete-Seã, os homens de Jabes Gileade pegaram seu corpo e sepultaram-no em sua cidade (1 Sm 31.11-13), de onde Davi mais tarde o trouxe para sepultá-lo em Zela, cidade de Benjamim (2 Sm 21.12-14).

A motivação para se incluir essa segunda narrativa da trilogia belemita é evidente. Reflete um mal aspecto dos benjamitas e, indiretamente, dos ancestrais que constituíram a dinastia de Saul. O sentimento pró-davídico parece cristalino para o historiador sagrado.

A história de Rute: ligações patriarcais

A terceira história, a de Rute,97 tem como personagem principal uma donzela moabita, embora a bênção (Rt 4.11-15) e a genealogia (Rt 4.17- 22) no final mostrem claramente que o principal propósito do novelis­ta98 foi traçar uma ancestralidade ligando o rei Davi à tribo de Judá e à cidade de Belém. Como nas duas histórias anteriores, houve um homem que partiu de Belém de Judá (Rt 1.1; cf. Jz 17.7,8; 19.1-10); mas enquanto os outros dois mancharam a reputação da cidade pelo comportamento, Elimeleque e sua família levantaram a sua moral. No livro de Rute vê-se que a cidade de Belém começa a se constituir no local ideal para o nasci­m ento do rei Davi. Na segunda história, os ancestrais de Saul, os benjamitas, tinham humilhado e desgraçado uma belemita, o que signi-

97 A antiga tradição canônica entre os judeus tradicionalmente tem incluído e considera­do o livro de Rute como livro dos Juizes, e tal raciocínio tem base nas fortes conside­rações literárias e históricas. Seu autor coloca os acontecimentos no tempo "quando os juizes governavam" (Rt 1.1), e o cenário ainda está envolto nas duas últimas narra­tivas do livro dos Juizes. (Enquanto as outras histórias são do princípio daquela era, Rute deve ser localizada no final do período, pois esta heroína está separada de Davi por apenas três gerações). Além disso, a acusação que comumente servia como um refrão por todo o livro dos Juizes - "Naqueles dias não havia rei em Israel: cada qual fazia o que achava mais reto" (jz 17.6; 18.1; 19.1; 21.25) - e que lançava toda aquela era em uma espécie de caos moral e apostasia da Lei, está sem dúvida refletida nas pala­vras de abertura do livro de Rute - "Nos dias em que julgavam os juizes," ou seja, quando não havia um rei.

98 Críticos da forma desde a época de Herman Gunkel têm usado esse termo, que é sinôni­mo de "história curta", para descrever o livro de Rute. Para defesa do termo, ver Edward F. Campbell, Jr., Ruth, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1975), pp. 3-6,21. Jack M. Sasson, contudo, prefere a classificação de "folclore" (Ruth: A New Translation with a Philological Commentary and a Formalist-Folklorist Interpretation [Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1979], p. 215), sendo o mesmo procedimento seguido por Oswald Loretz ("The Theme of the Ruth Story," CBQ 22 [1960]: 391-99).

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ficou para eles muita agonia e sofrimento futuros. Contudo, a cidade de Belém não apenas sobreviveu a essas crises, mas por fim produziu aque­le que seria o sucessor de Saul, um homem segundo o coração de Deus. O papel da cidade de Belém nessas histórias jamais deve ser visto como de pouca importância.

E bastante significativo que o livro de Rute não trace uma genealogia do rei Davi até os dias dos juízes. A seção genealógica, na verdade, inicia com Perez, filho de Judá (Rt 4.18); e a bênção de Boaz pelo povo de Belém explicitam ente liga esta cidade (e, portanto, Davi) a Perez e Judá:

O Senhor faça a esta m ulher, que entra na tua casa, com o a R aquel e com o a Léia, que am bas edificaram a casa de Israel; e h á-te já valorosam ente em Efrata, e faze-te nom e afam ado em Belém . E seja a tua casa com o a casa de Perez (que Tamá teve de Ju d á), da sem ente que o Senhor te der desta m oça (Rt 4.11b-12).

Obviamente o uso dos sinônimos Efrata e Belém nessa passagem diz respeito a uma reminiscência da primeira justaposição dos dois nomes, que é vista na morte de Raquel e no nascimento de Benjamim (Gn 35.16- 19). E possível que aquele incidente, em que Benjamim torna-se o moti­vo da morte da mulher favorita de Jacó (Israel), em Belém, estivesse já antecipando o futuro conflito entre Saul e Davi, onde o benjamita (Saul) viria a se constituir no antagonista daquele que estaria ligado a Belém (Davi)? Seja como for, há outros antecedentes patriarcais para a narrati­va Rute-Davi, que indubitavelmente trarão mais proveito e substância a este tema.

Judá e Tamar

Uma parte da bênção proferida a Boaz e a Rute era que esta família seria como "a casa de Perez (que Tamar teve de Judá)" (Rt 4.12). Deve-se lembrar que Tamar, como Rute, era uma estrangeira que havia se casado com alguém do povo da aliança (Gn 38.6). Quando seu marido Er (irmão mais velho de Judá) morreu, a lei do levirato passava a ser válida, e de fato o foi, e ela casou-se com o segundo filho, Onã. Mas esta alternativa legal não produziu qualquer fruto verdadeiramente útil. O resultado, é claro, foi a relação incestuosa entre Judá e Tamar, que culminou no nascimento dos gêmeos Perez e Zerá (Gn 38.24-30). A lei do levirato também está des­crita na história de Rute (Rt 4.5), mas desta vez houve resultados bastante produtivos - Boaz suscitou descendência ao nome do falecido marido de

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Rute." As circunstâncias que produziram tais relacionamentos foram sur­preendentemente parecidas. Sob um disfarce, Tamar seduziu seu sogro (Gn 38.14-16). Rute aproximou-se de Boaz escondida na escuridão da noite (Rt 3.6-14). Depois de saberem todos que Tamar estava grávida, Judá despediu-a diante do tribunal local, a fim de acusá-la formalmente de prostituição, para que também a conduzissem à morte. Mas, ao invés disto, ele mesmo foi envergonhado e condenado (Gn 38.24-26). Seme­lhantemente, Boaz e Rute compareceram perante os anciãos para anun­ciarem a redenção desta mulher e seu casamento imediato. Porém, na ocasião, o casal foi não só foi elogiado como também abençoado (Rt 4.1- 12). Em cada um dos casos, o homem já era avançado em idade, mas ainda assim estava fértil o suficiente para ser pai de muitos outros filhos, embora as perspectivas para isto fossem definitivamente negativas. O que é mais significativo, é claro, é o fato de tanto Tamar quanto Rute terem filhos que constam da linhagem messiânica e davídica. Esse é o elo mais forte entre as duas histórias.

A razão por que a Bíblia esforça-se para traçar uma linhagem da des­cendência de Davi até Judá é encontrada em Gênesis 49.10, quando Jacó, no leito de morte, proferiu a seguinte bênção:

O cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de entre seus pés,

até que venha Siló; e a ele obedecerão os povos.

Fica bem claro, através de muitas passagens, que esta promessa foi re­alizada em Davi, mas não é tão preciso quanto na história de Rute, parti­cularmente na questão da genealogia. Seu primeiro nome é Perez, o filho ilegítimo de Judá e Tamar que afirmou seus direitos reais criando um ca­minho (peres) para si mesmo (Gn 38.29). Ou seja, contrário a todas as ex-

99 Instrutivos paralelos (e diferenças) entre as duas situações, ver em A. A. Anderson, "The Marriage of Ruth," JSS 23 (1978): 171-83. A problemática se a relação entre Rute e Boaz baseava-se na lei do levirato e/ou era uma espécie de casamento tipo go'el, não pode ser tratada aqui nesse momento. Ver especialmente a monografia de Donald A. Leggett, The Levirate and Goel Institutions in the Old Testament zvith Special Attention to the Book o f Ruth (Cherry Hill, N.J.: Mack, 1974). Leggett defende persuasivamente a idéia de que o casamento de Rute era tanto do tipo go'el quanto levirato (ver esp. pp. 209-53). Mas isso não significa que go'el e levirato precisam sempre estar juntos; pelo menos é o que Jack M. Sasson procura defender em, "The Issue of Ge'ullah in Ruth," JSOT 5 (1978): 60-63.

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pectativas humanas, ele decidiu tomar a iniciativa de estabelecer-se na linhagem messiânica da promessa.100

Esse método de desviar-se da norma ou tradição comum é, na realida­de, a maior característica dessa breve genealogia. O processo é repetido nas circunstâncias que permitiram a inserção de Boaz, visto que ele, con­forme Mateus, era filho de Salmom com Raabe, a prostituta cananéia (Mt 1.5). Certamente o procedimento não apenas demonstrou ousadia, mas também provou ser completamente imprevisível, uma mudança no curso dos eventos. Judá tinha tido um filho de uma mulher, conhecida como uma prostituta em Canaã; seu descendente, Salmom, fez o mesmo com uma outra prostituta cananéia que havia abraçado a fé javista. Pode-se dizer que até a escolha de Davi foi contrária à convenção, pois ele não era o filho mais velho de Jessé, senão o mais novo. Além dos limites da pró­pria genealogia, é significativo o fato de o próprio filho de Davi, Salomão, filho de Bate-Seba, ter nascido de uma mulher que veio a ser a rainha sob circunstâncias bastante impróprias. Também ele não era o filho mais ve­lho de Davi, não aquele que teria se tornado seu herdeiro de acordo com os padrões convencionais. Além disso, ele era filho de uma estrangeira, uma hitita.

É evidente que o principal objetivo do escritor bíblico foi fazer uma conexão entre Judá e Tamar, por um lado, e Boaz e Rute, por outro. Essas ligações seriam o cumprimento da promessa feita a Judá na dinastia de Davi. Esses fatos não se cumpriram apenas para demonstrar afinidades entre as histórias de Tamar e Rute, mas também para que os contrastes mais fortes pudessem ser demonstrados.

Os patriarcas e a monarquia

O segundo propósito da história de Rute é servir de elo entre as eras patriarcais e a monarquia. O uso das genealogias no Antigo Testamento tem sido cuidadosamente estudado, e muitos resultados importantes têm brotado dessas pesquisas.101 Não menos significativo é o reconhecimento de que os patriarcas, representados por Perez, estão diretamente relacio­nados com a verdadeira dinastia real de Israel, dinastia representada por

100 A imagem é a de uma interdição violenta de seu irmão. Ver em John Skinner, A Criticai and Exegetical Commentary on Genesis (New York: Scribner,1910), pp. 455-56.

101Robert R. wilson, “The Old Testament Genealogies in Recent Research," JBL 94 (1975): 169-89; idem, Genealogy and History in the Biblical World (New Haven: Yale University Press, 1977); Marshal D. Johnson, The Purpose o f Biblical Genealogies (Cambridge: Cambridge University Press, 1969).

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seu cabeça e protótipo messiânico, ou seja, Davi. Nesse contexto, chega a ser surpreendente o fato de Moisés nem sequer ser mencionado, o que leva a concluir que esta omissão era intencional porque o principal objeti- vo era criar uma rápida ponte que ligasse os patriarcas à monarquia, sem tocar na linha divisória da completa experiência história e teológica de Israel: o êxodo e a aliança do Sinai.

Ainda que este tema da aliança esteja um pouco fora de nosso alvo principal, é preciso observar pelo menos que a aliança feita através de Moisés era diferente das demais alianças descritas na Bíblia, com respei­to aos aspectos da formalidade e funcionamento.102 Também é aceito que existem ligações e correspondências im portantes entre as alianças abraâmica e davídica, que são bem percebidas no livro de Rute. À medi­da em que escreve, o narrador procura deixar claro que a dinastia de Davi não surgiu da aliança mosaica, mas, ao contrário, tem suas origens nas promessas feitas aos patriarcas. Israel, como servo de Yahweh, po­deria cair ou se levantar, ser abençoado ou amaldiçoado, mas a dinastia de Davi permaneceria intacta para sempre, pois o próprio Deus decidira produzir através de Abraão uma linhagem de reis que se encaixariam na história de Israel, embora sua ramificação se estenderia além das fron­teiras israelitas. Os reis (plural) prometidos a Abraão (Gn 17.6,16) fundi­ram-se, mais especificamente, em uma só pessoa, por meio da qual o cetro real viria a brotar (Gn 49.10). O que brotaria de Judá exerceria além disso domínio sobre Moabe e Edom (Nm 24.17-19). Quando Samuel foi enviado a Belém para ungir o sucessor de Saul, foi-lhe dito que Yahweh já tinha se provido de um outro rei de entre os filhos de Jessé (1 Sm 16.1). A unção de Davi com óleo, acompanhada com a descida do Espírito San­to sobre ele, confirmou não apenas a sua escolha dentre os filhos de Jessé, mas também o cumprimento de uma promessa feita aos patriarcas mui­tos anos antes.

A justaposição de unção e reinado é marcante em muitas passagens do Antigo Testamento, não apenas no Salmo 2. Embora este salmo seja anôni­mo, há boas razões para vê-lo como uma das composições de Davi que confirmavam ser seu reinado de caráter messiânico, e também para mos-

102 A literatura nessa área é vasta, porém, quanto a esse assunto sugerimos especialmente Moshe Weinfeld, "The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East," JAOS 90 (1970): 184-203; Delbert R. Hillers, Covenant: The History o f a Biblical ldea (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1969); e George E. Mendenhall, "Covenant Forms in Israelite Tradition," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell Jr. e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1970), vol. 3, pp. 25-53.

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trar sua posição como filho de Deus.103 O salmo 110 igualmente fala do reinado de Davi de maneira que transcende o mero ofício político, embora não seja a sua filiação o fator de maior ênfase aqui, mas seu sacerdócio.104 Digno de nota é sua ligação com Melquisedeque, um contemporâneo dos patriarcas que, mais uma vez, passa por cima de toda a instituição de cul­to contida na aliança de Moisés. Davi funciona como rei e sacerdote, não em razão de qualquer relação com a nação israelita ou por virtude pró­pria, mas porque ele permanece como um elo entre a promessa feita a Abraão e seu cumprimento.

A ligação com os patriarcas é claramente vista na iniciação da aliança davídica (1 Cr 15-17). Depois de Davi preparar todas as estruturas para a acomodação da arca, e designar o pessoal especializado para cuidar do culto e de seu serviço como ministros, ele mesmo vestiu um éfode sacer­dotal e trouxe a arca para seu novo local (lC r 15.25-28). Ele oficiou uma cerimônia de sacrifício (1 Cr 16.1-3), uma atitude que, da perspectiva aarônica^ constituía-se numa verdadeira agressão, uma vez que o sacer­dócio era vetado à tribo de Judá.105 Então, em meio à celebração do estabe­lecimento da arca e trono, Davi canta um cântico de ações de graças (1 Cr 16.8-36), no qual faz uma referência direta à aliança abraâmica (vv. 15-17), mas com sabedoria evitou qualquer menção à aliança mosaica. Mesmo no relato da revelação da aliança com a dinastia de Davi e sua contrita res­posta ao propósito, não há qualquer declaração explícita acerca da aliança mosaica, embora o tema de Israel como "o povo de Deus" e "a nação de Davi" permaneça em posição de destaque (1 Cr 17.7,9,22,24).

Outra fato que chama a atenção é a associação que o evangelista, no Novo Testamento, faz entre os patriarcas e Davi, em que existe a dimen­são extra do cumprimento da dinastia davídica na pessoa de Jesus Cristo. Mateus começa sua genealogia dizendo o seguinte: "Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão" (1.1). O objetivo é afirmar

103 Ver Artur Weiser, The Psalms: A Commentary (Philadelphia: Westminster, 1962), pp. 110- 14.

104J.W. Bowker, "Psalm CX," VT 17 (1967): 36.105 Essa mesma questão é tratada pelo autor da epístola aos Hebreus, mostrando que o

sacerdócio de Cristo é não-arônico (e, portanto, sem qualquer relação com a aliança mosaica), visto que Ele veio da tribo de Judá, embora seja assim mesmo superior aos sacerdotes da linhagem de Arão, já que seu sacerdócio provém da ordem de Melquise­deque (Hb 7.11-17). Quanto ao sacerdócio Davi-Melquisedeque, ver Aubrey Johnson, Sacral Kíngship in Ancient Israel (Cardiff: University of Wales Press, 1955), pp. 27-46., que sem dúvida é uma apresentação bastante equilibrada e sadia, com exceção do que diz respeito aos aspectos de causas e origens.

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que o Messias tem suas raízes históricas em Abraão, e que veio como um rei da dinastia de Davi em resposta às promessas feitas aos patriarcas. Que essa era a esperança messiânica de Israel fica fácil provar, pois as multidões aclamaram a Jesus como seu Messias, quando este entrou triun­fante em Jerusalém: "Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor!" (Mt 21.9). O próprio Jesus confirmou este sentimento quando, em resposta direta aos fariseus ali presentes, afirmou que ao iden­tificar o Messias como o Filho de Davi, as multidões também confirma­vam a anterioridade deste em relação ao próprio Davi, um ponto clara­mente registrado no Salmo 110 (Mt 22.41-46). O mesmo salmo messiânico descreve o rei como um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. O autor de Hebreus trata bastante deste ponto e, embora em parte alguma mencione o rei Davi nessa conexão, fala do Senhor Jesus Cristo como sen­do este sacerdote, exatamente como faz o salmo com respeito a Davi. Davi e Jesus Cristo, como sacerdotes da ordem de Melquisedeque, funciona­vam fora da ordem estabelecida no sacerdócio mosaico, além de terem o escopo de seus sacerdócios numa perspectiva universal e muito mais abrangente, visto que em Hebreus 7.9,10 é dito que até mesmo Levi, que na ocasião ainda estava "nos lombos" de Abraão, pagou o dízimo a Mel­quisedeque. Logo, a cadeia que liga Melquisedeque-Davi-Cristo não é de forma alguma interrompida pelo sacerdócio mosaico, assim como a ca­deia real Abraão-Davi-Cristo também não é quebrada. O principal propó­sito de Rute é estabelecer essa mesma continuidade, pelo menos entre Abraão e Davi.

O papel da donzela moabita

A terceira função do livro de Rute centraliza-se na própria Rute que, do ponto de vista da revelação e transmissão das verdades divinas, não po­dia ser considerada um veículo apropriado para manifestar a realeza e sacerdócio messiânicos. Quando alguém procura entender o papel de Rute no processo, é fundamental não deixar de lado a questão da nacionalida­de. Ela era moabita, filha de uma nação descendente de Moabe, filho de Ló com sua filha mais velha (Gn 19.37). Harold Fisch demonstrou recente­mente que Ló havia se separado de Abraão, quebrando assim os laços familiares (Gn 13.11); do mesmo modo, Judá apartou-se de seus irmãos (Gn 38.1), e Elimeleque deixou a cidade de Belém e seu clã para empreen­der uma viagem a Moabe (Rt 1.1).106 O desastre ocorreu em cada caso: a morte deixou ambas as mulheres viúvas. Em ambas as situações, além

106Harold Fisch, "Ruth and the Structure of Covenant History," VT 32 (1982): 429-32.

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A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e .4 A utoridade H umana 1 9 5

disso, o problema de perpetuação da família foi resolvido por meio de um pai, ou a figura deste, embora tenha sido a mulher que dera início ao en­contro, sempre de forma sutil. A m ais notável conexão entre as histórias é o fato irônico de um descendente do teimoso Ló - a pura e nobre mulher chamada Rute - efetuar uma reunificação com o clã de Abraão, do qual anteriormente havia se separado. Ela foi então não apenas um elo vital na cadeia messiânica de Abraão a Davi (e finalmente Cristo), mas também um instrum ento para unir o abismo entre Judá e M oabe, um típico paradigma da reconciliação que Deus deseja realizar entre as nações, re­conciliação que irá cumprir as bênçãos patriarcais.

Ao examinar a lista genealógica em Mateus 1, surpreende o fato de somente quatro mulheres terem sido ali mencionadas, sendo Rute uma delas.107 Dessas quatro, duas (Tamar e Raabe) eram cananéias, uma era moabita (Rute), e a outra, Bate-Seba, presumivelmente hitita. Sem dúvida elas exemplificam o princípio da soberana graça de Deus, que não apenas pode usar os estrangeiros (até mesmo o que não possui boa reputação) para realizar os seus propósitos eternos, como também se deleita em fazê- lo. E ninguém ilustra tão bem este fato quanto a gentil e fiel Rute. No cumprimento da bênção profética, ela tornou-se "como a Raquel e como a Léia, que ambas edificaram a casa de Israel" (Rt 4.11).

ltl7Devemos prestar bastante atenção ao fato de as mulheres terem desempenhado um papel bastante significativo no ministério de Jesus, particularmente na ocasião de sua paixão e ressurreição (ver, e.g., Mt 26.6-13; 27.55,56; 28.1-8).

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S A U L : A A L I A N Ç A M A L C O M P R E E N D I D A

A exigência por um reinado A cronologia do século onze A escolha de Saul

O prim eiro encontro de Saul com Samuel O profetism o prim itivo em Israel A unção de Saul

O prim eiro desafio de Saul O declínio de Saul

Desobediência em Gilgal A ira contra Jônatas Os inimigos de Saul

Os estados arameus Os filisteus Os amalequitas

C onsiderações teológicasA intenção divina para com um reinado humanoFalta de entendim ento de Saul para com a aliança: violação das prerrogativas sacerdotais

O surgim ento de Davi A unção de Davi D avi na corte de Saul Davi e Golias Davi e Jônatas A fu g a de Davi

A conspiração de Saul Davi, o fora-da-lei

O exílio de Davi na Filístia A morte de Saul

A exigência por um reinado

O refrão do livro dos Juízes: "Naqueles dias não havia rei em Israel" (17.6; 18.1; 19.1; 21.25) foi finalmente traduzido pelo povo israelita em um forte clamor a Samuel: "...constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações" (1 Sm 8.5). Embora a reação esboçada por Samuel tenha sido negativa (v. 6), o problema não estava no desejo de possuir um rei, mas sim no espírito antiteocrático com que o pedido foi feito, e em sua prematuridade.

Um reinado, longe de ser considerado antiético para o propósito de Deus para Israel)^ra fundam ental para se cum prir o plano da salva­

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1 9 8 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e st a m e n t o

ção.1 O homem foi criado segundo a imagem de Deus para que tivesse domínio "sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra". (Gn 1.26-28). Com este fim, o homem foi introduzido no jardim do Éden para exercer a autoridade sobre a criação e sobre todas as ou­tras coisas. Abraão e Sara foram inform ados de que deles surgiriam reis (Gn 17.6,16), sendo a mesma prom essa e aliança reafirmada a Jacó (Gn 35.11). No m omento da bênção patriarcal, Jacó anunciou: "O cetro não se arredará de Judá, / nem o legislador dentre seus pés, / até que venha Siló; / e a ele se congregarão os povos" (Gn 49.10). Finalm ente, em Deuteronômio 17.14-20 estão lançadas as regras para a monarquia que seria instaurada em Israel no tempo de Deus, seguindo os critérios divinos-.'t) rei devia ser um homem escolhido por Yahweh (v. 15), e deveria governar o povo de acordo com os princípios contidos na Torá (vv. 18-20).

Então, a aparente tensão entre a atitude negativa de Samuel (1 Sm 8; 10.17-27) e seu apoio a Saul na época de sua escolha (1 Sm 9.1-10.16) não tem fundamento histórico.2 De fato, a contenda de Samuel não é por ad­mitir um reinado em Israel, mas, como já dito, pelo caráter e espírito que norteavam a decisão do povo - "como o têm as nações" - e pela recusa em esperar que o próprio Deus fizesse a escolha.'' A razão para a insistência do povo em possuir um rei é bastante óbvia.

Samuel naquele tempo já era um homem velho, e seus dois filhos, a quem ele havia designado como juizes para sucedê-lo, eram venais e corruptos. Além disso, surgiam muitos perigos externos, vindos particularmente das

1 Walter C. Kaiser, Jr. Towarã nn Old Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1978), pp. 144-49; Claus Westermann, Elements o f Old Testament Theology (Atlanta: John Knox, 1982), pp. 108-9; Shemaryahu Talmon, "The Biblical Idea of Statehood," em The Bible World, editado por Gary Rendsburg et al. (New York: Ktav, 1980), p. 239.

2 Muitos críticos afirmam que a suposta tensão é resultado de narrativas paralelas conflitantes; ver, por exemplo, Siegfried Herrmann, A History o f Israel in Old Testament Times, traduzido por John Bowden (Philadelphia: Fortress, 1975), pp. 131-37. Para ler um tratamento que rebate de forma convincente esses ataques que dizem haver tradi­ções conflitantes no texto, ver J. Robert Vannoy, Covenant Renewal at Gilgal (Cherry Hill. N.J.: Mack, 1978), especialm ente as páginas 197-239; também em Lyle Eslinger, "Viewpoints and Point of View in 1 Samuel 8-12," JSOT 26 (1983): 61-76. Um ponto de vista moderado, segundo o qual o "deuteronomista" integrou e harmonizou as tradi­ções primitivas com o intuito de prover uma justificação para que a monarquia fosse introduzida em Israel, é proposto por Dennis J. McCarthy, "The Inauguration of Monarchy in Israel: A Form-critical Study of 1 Sam. 8-12," Interp. TI (1973): 401-22.

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bandas dos arameus ao norte e dos amonitas ao oriente. Aquela época cla­mava por um líder forte, que não fosse apenas um líder local, mas nacional, uma função que somente um rei poderia exercer. Por isso, Yahweh atendeu o pedido do povo; porém afirmou a Samuel que tal pedido era, na verdade, uma rejeição ao governo teocrático ideal, e que não era Samuel a pessoa que estava sendo desprezada. Uma vez que desejavam um rei como o tinham as demais nações, e não podiam mais esperar pelo escolhido de Yahweh, o pedido seria concedido para futuros sofrimentos.3 O rei escolhido criaria uma estrutura de autoridade que exigiria que seus jovens fossem alistados no exército à força, além de sobrecarregar o povo com um excessivo núme­ro de impostos que os levariam a chorar e protestar em vão (1 Sm 8.11-18). Não obstante os alertas, o povo confirmou seu pedido, e iniciou toda a mo­vimentação para o estabelecimento de Saul como rei.

A cronologia do século onze

Antes de considerarmos o reinado de Saul, é importante definir a cro­nologia do século onze. A parte o período dos juizes, talvez não tenha havido uma outra era em Israel que tenha sido mais complexa a esse res­peito do que o século onze.

O ponto de partida será os reinados de Salomão e Davi, cujas datas fun­damentam-se em dados precisos. Edwin Thiele definiu em sua magistral obra que a divisão do reino teve lugar em 931 a.C. Esta dada coincidiu com a morte de Salomão, que reinou por quarenta anos (1 Rs 11.42) e, portanto, deve ter sucedido Davi em 971. Davi, por sua vez, reinou por quarenta anos e meio (2 Sm 2.11; 5.5), tendo chegado ao poder em cerca de 1011.4

O maior problema diz respeito a duração do reino de Saul. Está claro que sua morte ocorreu no ano em que Davi começou a reinar em Hebrom (2 Sm 1.1; 2.1-4), ou seja, em 1011, embora o ano da ascensão de Saul seja desconhecido. O apóstolo Paulo, em discurso na sinagoga de Antioquia da Psídia, declarou que Saul reinara por quarenta anos (At 13.21). Isto dataria seu reinado no período de 1051 a 1011. A maioria dos estudiosos

3 Quanto a vontade permissiva de Deus, ver J. Barton Payne, "Saul and the Changing Will of God," Bib Sac 129 (1972): 321-25.

4 Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers ofthe Hebrew Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), pp. 51-52. O conflito entre marcar a coroação de Salomão no ano 971 e seu traba­lho inicial no templo, o qual se sabe ter ocorrido em seu quarto ano, até 966, é mais aparente do que real. O assunto é muito complicado e fora de nosso objetivo para ser tratado aqui nesta obra. Basta dizer que existem vários métodos de registrar os anos de um reinado, e nem todos estão baseados estritamente no ano da ascensão.

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S * . í l : A A l ia n ç a M a l C o m p r e e n d id a 201

rejeita esses números, e utilizam-se geralmente de argumentos em nada melhores que os comumente usados.5 Um exame acurado dos dados bí­blicos levará a concluir que o número quarenta não foi uma criação de Paulo, nem uma tradição historicamente sem valor a que ele tenha re­corrido. Na verdade, esse número é parte essencial do texto.

Infelizmente, onde se poderia encontrar a fórmula comum que caracte­rizava a duração do reinado de um rei - 1 Samuel 13.1 - existe uma cor­rupção textual: "Saul tinha... |iws de idade quando se tornou rei, e reinou sobre Israel dois anos" (NIV)1: Além da óbvia lacuna envolvendo sua ida­de, é praticamente impossível encaixar todos os acontecimentos do reina­do de Saul em um período curto de dois anos. Nesse caso, duas soluções têm sido comumente oferecidas ao estudante: (1) "Saul era da idade de trinta anos quando começou a reinar, e reinou quarenta e dois anos sobre Israel"; (2) "Saul era da idade de trinta anos quando se tornou rei. Quando estava no segundo ano de seu reinado..." A primeira alternativa tem a seu favor que seguia a fórmula comum da época (cf. 2 Sm 5.4) e concorda em essência com os quarenta anos citados por Paulo.^ Entretanto, contra essa argumentação está o fato de que os números "trinta" e "quarenta e dois" foram preenchidos, o primeiro por alguns manuscritos da Septuaginta, e o segundo, por pura conjectura. O número "trinta" parece estar incorreto, visto que Jônatas, filho de Saul, era o líder de alguns homens no início do reinado de seu pai (1 Sm 13.2,3), o que seria impossível caso realmente tivesse sido filho de um homem de trinta anos. Os "quarenta e dois", segundo tem-se defendido, é necessário a fim de justificar a data fornecida por Paulo e para se explicar o plural pouco co­mum em vez da fórmula dualista do número "dois" no texto hebraico. Contudo, a informação de Paulo poderia ser o resultado de um processo dedutivo, e a forma plural de "dois" possui forte apoio gramatical em outros lugares.6 Logo, a melhor leitura do texto seria: "Saul estava com quarenta anos de idade quando começou a reinar. Quando já tinha reina­do por dois anos..." O "quarenta" é uma sugestão bastante razoável, já que nessa ocasião ele tinha um filho adulto.7

5 Isso é sugerido por J. Alberto Soggin, A History ofAncient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 50.

’ Wilhelm Gesenius, Gesenius' Hebrew Grammar, editado por E. Kautzsch e A.E. Cowley (Oxford: Clarendon, 1957), parág. 134e.

~ Para um argumento adicional em apoio a essa tradução, ver Eugene H. Merrill, "Paul's Use of 'About 450 Years' em Acts 13.20," Bib Sac 138 (1981): 256, n.19. Uma sugestão interessante, que não envolve qualquer emenda é a que Robert Althann propôs, basea­do na preposição ugarítica b(n), que na tradução de: "Saul já reinava a mais de um ano"

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Em apoio à afirmação de Paulo de que Saul reinara por quarenta anos, vê-se o fato de Is-bosete, filho de Saul, que o sucedeu como rei, estar com quarenta anos quando começou a reinar (2 Sm 2.10); dessa forma, ainda não era nascido até que Saul ascendeu ao trono de Israel. Tais conclusões provam ser verdadeiras quando se faz uma comparação da lista dos filhos de Saul no início de seu reinado (1 Sm 14.47-51) com uma outra que inclua todos os seus filhos (1 Cr 8.33; 9.39). A primeira menciona Jônatas, Isvi e Malquisua, ao passo que a segunda diz Jônatas, Malquisua, Abinadabe e Esh-Baal. O nom e Esh-Baal é idêntico a Is-bosete, e A binadabe é presumivelmente um outro nome para Isvi (ver 1 Cr 10.2). Quando Saul foi morto pelos filisteus, m orreram tam bém os seus filhos Jônatas, Abinadabe e Malquisua (1 Sm 31.2). Sendo Is-Bosete o único sobreviven­te, obviamente não era Abinadabe8, a quem alguns estudiosos insistem associar.9

Outro aspecto importante é o aparente intervalo ocorrido entre Saul e Is-bosete, em que se vê o controle exercido por Abner (2 Sm 2.8-11). Por razões não explicadas, Is-bosete não sucedeu a seu pai de imediato, con­forme é evidente pelo fato de haver ele reinado apenas dois anos antes de ter sido assassinado. No ano da morte de Is-bosete, Davi assumiu o con­trole do reino de Saul, embora já estivesse reinando por mais de sete anos em Hebrom (2 Sm 1.1; 2.4; 5.1-5). Isto significa que Abner reteve o poder do norte durante cinco anos antes de Is-bosete ser recebido como o novo rei. Is-bosete estava com quarenta anos naquela ocasião, e conclui-se que nascera trinta e cinco anos antes da morte de Saul, ou cerca de 1046. Esses dados esclarecem melhor o motivo de seu nome não constar da lista dos filhos de Saul durante os primeiros anos de seu reinado.

De qualquer forma, se Is-bosete estava com trinta e cinco anos no tem­po da morte de Saul e ainda não havia nascido até o início do reinado de seu pai, subentende-se que Saul deve ter reinado por mais de trinta e cin­co anos, um cálculo inteiramente compatível com o número quarenta for­necido por Paulo. Uma data de 1051 a 1011 é, portanto, bem próxima do correto.

Diante destas evidências, deve ter havido um espaço de trinta e três anos entre a batalha de Mispa, quando Samuel findou a opressão filistéia

diz assim: "já por dois anos ele estava reinando sobre Israel..". Não diz nada acerca da idade de Saul, mas talvez a passagem nunca tenha tido a intenção de dizer ("1 Sam. 13.1: APoetic Couplet," Biblica 62 [1981]: 241-46).

8 Eugene H. Merrill, "1 Samuel," em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F. Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, p. 446.

9 E.g., Hans W. Hertzberg, I & II Samuel (Philadelphia: Westminster, 1964), p. 120.

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(ver pp. 151,184), e seu encontro com os anciãos de Israel, quando estes lhe rogaram por um rei. O profeta já estava velho, conforme a própria narrativa atesta (1 Sm 8.1,5), talvez com a idade de setenta anos. Não é de admirar que o povo estivesse preocupado acerca da iminente crise de li­derança.

A escolha de Saul

O prim eiro encontro de Saul com Samuel

Conforme muitos estudiosos já observaram, a escolha de Saul foi mais baseada em dons carismáticos, bem mais ao estilo dos juizes, do que na linhagem dinástica normal, caracterizada pela entronização e sucessão.10

Ele não^pertencia a qualquer linhagem especial - veio de uma pequena tribo, a tribo de Benjamim, e era filho de Quis que, embora sendo "ho­mem de aparência", certamente não possuía nem podia reivindicar qual­quer grau de nobreza.^Torém , Saul possuía uma aparência física que impressionava (1 Sm 9.1,2) è uma modéstia que cativava, quase uma auto- abnegação.

O encontro inicial com Samuel ocorreu no dia em que Saul estava à procura de algumas jumentas perdidas, uma busca infrutífera que o le­vou a procurar um famoso vidente em Ramá, na terra de Zufe (i.e., Ramatain Zofim). O papel de Samuel como vidente (ro'eh) enfatiza o as­pecto receptivo de seu ministério profético. Ou seja, um profeta era co­nhecido como vidente quando conseguia entender a mente de Jeová por meio de sonhos, visões ou alguma outra forma semelhante. Quando ele proclamava aquela mensagem como porta-voz de Yahweh, particular­mente em público, cumpria o papel de nãbi ou profeta. Está claro que, no caso de Samuel, assim como nos outros profetas, uma pessoa podia ser vidente e profeta ao mesmo tempo, estando a diferença apenas na ênfase ou função. E apropriado fazer uma digressão nesse ponto para falar acerca

10 Talmon, "Biblical Idea," em Bible World, pp. 244-45.11 Bruce C. Birch, seguindo Hugo Gressmann e outros estudiosos, desconsidera o texto de

1 Samuel 9.1-13, reputando-o como um conto folclórico revestido de pouca ou nenhu­ma base histórica ("The Development of the Tradition of the Anointing of Saul in 1 Sam. 9.1-10.16," JBL 90 [1971]: 58). Somente quando alguém, a priori, tenciona desmentir a historicidade de alguns acontecimentos, é que poderão as características ditas por Birch ser usadas para provar que a perícope em questão não passa de folclore. Ele falha ao deixar de reconhecer que fatos históricos podem ser descritos numa linguagem folclóri­ca, sem que para isso tenha sua historicidade sacrificada.

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2 0 4 H istória d e I sr a el no A ntig o Testamento

do profetismo, já que seu início é normalmente associado ao profeta Samuel.12

O profetism o prim itivo em Israel

O fenômeno do profetismo foi universal no mundo antigo do Oriente Médio, pois sempre que as pessoas tentavam discernir os propósitos e intenções dos deuses, inevitavelmente surgiam os praticantes da arte da adivinhação. A prática do profetismo na Mesopotâmia está abundante­mente documentada em um vasto corpo de textos de adivinhação que estão chegando ao nosso conhecimento.13 De forma semelhante, os infor­mes colhidos em Mari, Alalaque, Ugarite e Fenícia têm permitido a re­construção do quadro completo da arte de interpretar agouros e pressági­os.14 Embora haja uma relação superficial entre o que é conhecido do profetismo pagão e o que é relatado na Bíblia, referente ao Israel antigo, deve-se admitir que a origem divina e não-estática da profecia hebraica é exclusivam ente ímpar no mundo antigo. Não havia m anipulação de Yahweh sobre seu profeta - em contraste com a manipulação feita pelos deuses sobre seus emissários - , pois o profeta ou vidente de Deus, mesmo em p o sição co m p letam en te p assiv a , era âinda um in stru m ento autoconsciente, que se apresentava como um receptor e anunciador da revelação divina, conforme o Espírito de Yahweh o dirigia.

Houve um desenvolvimento do ofício profético no Antigo Testamento, conforme registrado em 1 Samuel 9.9, de forma bastante clara: "(Antiga­mente em Israel, indo alguém consultar a Deus, dizia assim: Vinde, e va­mos ao vidente; porque ao profeta de hoje antigamente se chamava viden­te)". Mais uma vez, isto é uma questão mais relacionada à mudança de

12 Para um tratamento mais apurado acerca do profetismo no Antigo Testamento como uma instituição e ofício, ver a obra de Willis J. Beecher, ainda hoje considerada de gran­de autoridade, The Prophets and the Promise (Grand Rapids: Baker, 1963 reedição), pp. 3- 172. Outra obra bastante útil, embora tida como popular, é a de Hobart E. Freeman, An Introduction to the Old Testament Prophets (Chicago: Moody, 1968).

13 A. Leo Oppenheim, Ancient Mesopotamia (Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. 207-27.

14 Herbert B. Huffmon, "Prophecy in the Ancient Near East," em Interpreter 's Dictionary of the Bible, suplement, editado por Keith Crim et al. (Nashville: Abington, 1976), pp. 697- 700; idem, "Prophecy in the Mari Letters," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr. e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1970), vol. 3, pp. 119-224; Virgil W. Rabe, "The Origins of Prophecy," BASOR 221 (1976): 125-28.

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S ‘.l l : A A liança M a l C om preendida 2 0 5

ênfase do que a qualquer outra coisa. Até mesmo Abraão foi chamado de profeta (nãbi - Gn 20.7), como também o foram Arão (Êx 7.1) e Moisés (Dt 34.10). De fato, Moisés foi chamado o maior dentre todos os profetas. Po­rém, a função mais importante no ministério desses profetas da fase re­mota do profetismo em Israel não era a de constituir-se num pregador. Eles profetizavam por ter algo a dizer, e não por terem em sua vida essa mensagem em primeiro lugar.

O desenvolvimento mais significativo que se pode perceber no Antigo Testamento é visto na vida de Samuel, que foi o primeiro profeta profissi­onal de tempo integral, digamos assim (1 Sm 3.20). O significado dessa situação está descrito da seguinte maneira: "E continuou o Senhor a apa­recer em Siló, porquanto o Senhor se manifestava a Samuel, em Siló, pela palavra do Senhor. E veio a palavra de Samuel a todo o Israel" (1 Sm 3.21 — 4.1a). Além disso, Samuel fundou uma escola de profetas que ele mesmo treinava em todos os aspectos do profetismo, os quais poderiam ser repar­tidos pelos homens. Obviamente ninguém poderia ser ensinado sobre como ser um veículo da revelação divina, senão mediante o recebimento desse dom de Deus. Já nos dias de Elias e Eliseu, existiam companhias organiza­das de profetas (2 Rs 2.3). No entanto, pode-se verificar a existência de videntes e profetas que apareciam esporadicamente, até que se origina­ram os grandes profetas do nono século, homens que estiveram direta­mente envolvidos com o processo de escrita dos livros sagrados. Com os grandes profetas, declinava cada vez mais o profetismo organizado que, com a formação do cânon israelita do Antigo Testamento, chegou ao com­pleto desaparecimento.

A unção de Saul

Voltando a narrativa, quando Saul e seu servo chegaram a Ramá, toma­ram ciência de que Samuel oficiaria uma cerimônia em um dos altos, não muito distante de onde estavam. Então, juntaram-se a Samuel na caravana que ia ao cerimonial e à festa, não sabendo que Yahweh já havia revelado a Samuel que Saul chegaria naquele dia, e se tornaria o líder (nãgidy5 de Isra­

15 Já que Davi, Salomão e outros reis também são chamados de nãgid, e Saul por sua vez é chamado de melek ("rei") em uma ocasião, deve-se evitar a maximização do fato de Saul ter como seu principal epíteto o termo nãgid. Este termo significa apenas "alguém pro­eminente" ou "o chefe". Ver Francis Brown, S.R. Driver e Charles A. Briggs, A Hebrew and Englísh Lexicon ofthe Old Testament (Oxford: Clarendon, 1962), pp. 617-18. Albrecht Alt propõe que o termo nãgid foi aplicado a Saul significando que ele era o escolhido de Yahweh, e que a nação é que foi a responsável por chamá-lo de melek ("The Formation

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el, o homem escolhido que iria deter a nova ameaça trazida pelos filisteus. Ao chegar no lugar alto, Samuel agradou a Saul oferecendo-lhe um farto banquete. No outro dia Samuel revelou-lhe que ele seria ungido príncipe de IsraeJLDe acordo com Samuel, a confirmação viria a seguir mediante três sinaiSfPrimeiro, Saul encontraria dois homens próximos ao sepulcro de Ra­quel, em Zelzá (localização desconhecida, embora esteja provavelmente entre Jerusalém e Belém), assegurando-lhe que suas jumentas perdidas haviam sido encontradas.16 Em seguida encontraria três homens no carvalho de Tabor (localização desconhecida, mas certamente não era a montanha em Jezreel). Estes estariam a caminho de Betei para adorarem, e repartiriam com ele dois pedaços de pão.^ Finalmente, ele viria para Gibeá-Eloim (Gibeão; i.e., el-Jib),17 local de uma fortaleza dos filisteus, onde se juntaria a uma caravana de profetas em pro­cissão. Surpreendentemente, participaria de canções sem nunca tê-las apren­dido antes. Isso seria um sinal da bênção do Espírito de Deus que estaria transformando Saul, o homem comum, no príncipe de seu povo. Mais tar­de, Samuel afirmou que Saul o encontraria em Gilgal. Como um teste de obediência, teria de pacientemente esperar por Samuel, que viria para ofici­ar a cerimônia e oferecer o sacrifício.

Quando os três sinais preditos se cumpriram, Samuel juntou todo o Israel em Mispa para uma cerimônia pública de coroação e investidura (1 Sm 10.17-27). Sem qualquer pretensão ao cargo, Saul tratou de esconder- se naquele momento; somente após ser encontrado permitiu que fosse apresentado à assembléia do povo. Logo, Samuel deu início à cerimônia tratando dos aspectos formais (v. 24). Depois seguiu-se a aceitação do povo e a aclamação de "Vida longa ao Rei!". Por fim, Saul aceitou os protocolos do cargo; ele e Israel ouviram o que Samuel explicara a respeito das regras da monarquia, que provavelmente refletiam as convenções de Moisés, em

of the Israelite State/' em Essays oh Old Testament History and Religion [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1968], p. 254). Ver também as observações de Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, pp. 70, 94. J.J. Glück resolve a tensão existente entre melek/nãgid ao sugerir que nãgíd é o equivalente de nõcjed ("pastor") e, portanto, significa o título de realeza ao invés de um sinônimo de rei ("Nagid-Shepherd," VT 13 [1963]: 144-50).

16 Para uma interpretação proposta para o circuito, ver em Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan, 1968), mapa 86.

17 Assim é o pensamento de Aaron Demsky, "Geba, Gibeah, and Gibeon - An Historico- Geographic Riddle," BASOR 212 (1973): 27. Demsky defende a idéia de que Gibeom era a cidade natal de Saul e que Gibeá (Tel el-Fül) foi a cidade que ele escolheu mais tarde como sua capital (p. 28).

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Deuteronômio 17.14-20. Assim, perante Yahweh e a congregação, uma ali­ança foi feita constrangendo Saul, o pastor ungido do povo, ao curso da ação.

O primeiro desafio de Saul

A pompa da cerimônia não foi capaz de eclipsar os acontecimentos sub­seqüentes. Embora Saul tivesse sido levado até sua insignificante capital em Gibeá por alguns partidários, o fato é que outros zombaram dele, tendo- o como um candidato pouco provável de ser um bom rei. Ã origem humilde de sua descendência e seu desdém pelas aparições em público explica as reações contrárias. Mesmo após ter-se estabelecido em Gibeá, em um "palá­cio" que a arqueologia provou ter sido de pouca importância e beleza,18 Saul sempre mostrou pouca desenvoltura na realeza. De fato, quando es­tourou a primeira crise nacional, e seus oficiais o procuraram para que pro­videnciasse o socorro, encontraram-no arando o campo com seus bois. Tudo isso estava em sintonia com a transição natural da época dos juizes para a monarquia, pois, além de não expressar qualquer ambição política em si mesmo, Saul tinha sido constituído rei sobre um povo cujo interesse mais urgente não era a formação de um imperialismo esplendoroso e elegante, mas uma expressão tangível de solidariedade para com os interesses co­muns da nação. Já por muito tempo a nação vinha se dividindo entre leste e oeste, norte e sul, permitindo que suas fronteiras fossem alvo de agressão exterior e de desintegração interior. Ora, mesmo sem considerar o aspecto primitivo do reinado de Saul, é preciso compreender que ele representava a esperança de sobrevivência para Israel.

Essa esperança foi colocada à prova quase imediatamente, na forma de um cerco à cidade de Jabes Gileade, por Naás, rei de Amom. Desde que os amonitas haviam sido esmagados por Jefté, mais de cinqüenta anos antes, vinham esperando uma oportunidade para vingar-se de Israel. A drástica mudança política em Israel e a escolha de um candidato pouco promissor para a nação constituíram, sem dúvida, um momento oportuno para os amonitas fazerem o primeiro movimento. A escolha de Jabes-Gileade tam-

18 Gibeá foi escavada por William F. Albright que, baseado nos escombros culturais da cidade capital de Saul, descreve-o como um "líder de espírito rústico" (From the Stone Age to Christianity [Garden City, N.Y., 1957], p. 292). O sítio está tão descaracterizado que outro estudioso, Joseph Blenkinsopp, defende a idéia de que a capital do reino de Saul, na maior parte de seu governo, não foi Gibeá mas Gibeon ("Did Saul Make Gibeon His Capital?" VT 24 [1974]: 1-7).

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bém foi cuidadosamente estudada, pois, além de situar-se distante de Gibeá, dificultava uma mudança na estratégia logística do exército de Is­rael, e era provavelmente o local dos ancestrais não-benjamitas de Saul (ver p. 187).

É evidente que Jabes-Gileade tanto era um alvo militarmente vulnerável quanto psicologicamente apropriado para os amonitas. Dessa forma, cerca­ram a cidade e ameaçaram destruí-la totalmente, a menos que seus habitan­tes decidissem fazer um pacto de submissão e, além disso, deixassem que seu olho direito fosse retirado.19 Essa exigência sub-humana tinha como propósito provar a todos a superioridade do rei Naás e a incapacidade do rei Saul de oferecer proteção ao povo. Era tanta a confiança dos amonitas que permitiram alguns mensageiros de Jabes-Gileade partir por todo Israel à procura de socorro. Isto a fim de mostrar que, mesmo ajuntando todas as suas forças, Israel não seria capaz de resgatar Jabes-Gileade.20

Mas o desafio não ressoou sem uma resposta. Como nos tempos dos juízes, o Espírito do Senhor apoderou-se de Saul. Ele tomou uma junta de

Frank M. Cross, baseado em seus estudos do texto 4Q Sama de Qunram diz que os rubenitas e gaditas, que estavam sujeitos a Naás, e que tinha sido da mesma forma mutilados por sua traição ao rei amonita, conseguiram escapar de Amom, encontrando refúgio em Jabes-Gileade. Como os que se rebelaram contra o rei mereceram punição, da mesma forma os que os acolheram também seriam punidos. Então, como Cross ob­servou, o fragmento de Qumram clarificou o que, de outra forma, continuaria obscuro caso dependêssemos apenas do Textus Recepticus de Samuel. Ver Cross, "Original Biblical Text Reconstructed from Newly Found Fragments," Bible Review 1 (1985): 26-33; idem, "The Ammonite Oppression of the Tribes of Gad and Reuben: Missing Verses from 1 Samuel 11 Found in 4Q Samuel," em History, Historiography anã Interpretation, editado por Hayin Tadmor e Moshe Weinfeld (Jerusalem: Magnes, 1984), pp. 148-58; Terry L. Eves, "One Ammonite Invasion or Two? 1 Sam. 10:27-11:2 in the Light of 4Q Sama," WTJ 44 (1982): 308-26.

:o Com base em 2 Samuel 2.4b-7, Diana Edelman afirmou felizmente que Jabes-Gileade não era parte constituinte de Israel, mas um estado vassalo ("SauTs Rescue of Jabesh- Gilead [1 Sam. 11:1 - 11]: Sorting Story from History," ZAW 96 [1984]: 195-209). Mas chegou à conclusão errada de que o resgate feito por Samuel daquela cidade não pode­ria ser considerado um teste para o seu reinado recentemente estabelecido (embora 1 Sm 11.12-14 claramente sugira isto), uma vez que este estado vassalo não poderia existir e não poderia esperar ajuda, porque Saul ainda não havia se tornado o monarca de um Reino da Cisjordânia de enormes proporções. O erro de Edelman consiste em passar por cima da possibilidade de Jabes-Gileade ter-se tornado um estado vassalo devido ao fato de Saul ter derrotado os amonitas, e, por último, em não aceitar a historicidade da ligação ancestral entre Saul e Jabes-Gileade, uma ligação que certamente explicaria o intenso e grande interesse deste pelo local, além da própria convicção que os habitantes de Jabes-Gileade possuíam de que ele viria em seu socorro.

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bois, cortou-os em pedaços e enviou a todos os territórios de Israel. Esse comportamento bizarro, uma reminiscência da atitude do levita envol­vendo sua concubina assassinada21, foi na verdade uma atitude para alertar a nação da gravidade do problema, e para persuadi-los a unir-se como um só corpo em defesa daquela cidade. Em uma manifestação de grande po­derio militar, que não se via desde os dias de Josué, trezentos mil israelitas e trinta mil homens de Judá juntaram-se em Beseque (Khirbet Ibziq), cerca de 24 quilômetros a oeste de Jabes-Gileade. No outro dia atacaram os amonitas, destruindo-os completamente. Esta vitória pôs definitivamente uma pedra em cima de qualquer murmuração quanto à liderança de Saul, e aos seus direitos reais em Israel.

O declínio de Saul

Desobediência em Gilgal

Diante de tão incontestável prova de que Saul havia realmente sido ungido por Yahweh, Samuel reuniu todo o povo, desta vez em Gilgal, a fim de que a nação - agora unida em apoio a Saul - entrasse em aliança com Yahweh e o seu rei.22 Como agente mediador do concerto, Samuel aproveitou a oportunidade para verificar sua própria credibilidade entre o povo (1 Sm 12.1-5), e então passar a fazer uma espécie de retrospectiva dos atos poderosos cie Deus em favor de seu povo, desde o êxodo até aquele momento (w . 6-13)' Israel exigira um rei, e Yahweh concedeu-lhes Saul. Ora, se Saul e Israel permanecessem fiéis aos termos estabelecidos na ali­ança, os protocolos definidos em Deuteronômio 17, tudo culminaria em bênçãos. Caso contrário, experimentariam o desfavor de Yahweh. Então, como uma amostra de sua autoridade baseada na autoridade de Yahweh, Samuel invocou raios e trovões vindos dos céus como testemunhas, o que imediatamente trouxe pânico e terror sobre toda a congregação, visto que o milagre ocorrera na época da colheita do trigo, no meio da estação seca. O Deus de Israel era soberano sobre toda a natureza e sobre toda a histó­

21 Para uma atitude semelhante em Mari, ver Archives royales de Mari, editado por Charles- F. Jean (Paris: Geuthner, 1950), vol. 2, #48,citada por J. Maxwell Miller, "Saul's Rise to Power: Some Observations Concerning 1 Sam. 9:1-10:16; 10:26-11:15 and 13:2114:4b," CBQ 36 (1974): 168.

22 Para um estudo detalhado acerca da assembléia feita em Gilgal como uma espécie de convocação para a aliança, ver Vannoy, Covenant Renewal at Gilgal, especialmente as páginas 132-91.

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ria. A mensagem era bem clara: Israel, mesmo debaixo da monarquia, ti­nha de submeter-se a Yahweh.

Encorajado pela campanha defensiva contra os amonitas e pelo espíri­to de solidariedade e aliança expressado pelos israelitas em Gilgal, Saul deu início ao processo de ofensas contra seu próprio mandato. Os filisteus já haviam sido expulsos de Israel havia mais de trinta anos por Samuel, mas continuaram a ameaçar as fronteiras israelitas, chegando mesmo a penetrá-la consideravelmente em uma ocasião.23 Saul sentiu que havia necessidade de dar um basta nessas atividades de uma vez por todas. Seu primeiro assalto às guarnições dos filisteus foi em Geba (Jeba),24 situada a menos de oito quilômetros da capital (1 Sm 13.3). Jônatas, filho de Saul, estava no comando de mil homens em Gibeá enquanto Saul tinha dois mil em Micmás (Mukhmâs), três quilômetros além de Geba. Jônatas deu iní­cio ao ataque a Geba dos filisteus, mas isso provocou uma forte reação. Com um vasto número de homens, os filisteus chegaram a Micmás, for­çando os habitantes da região a evacuar a cidade, enquanto as tropas isra­elitas fugiam para o oriente, cerca de 19 quilômetros, chegando mesmo a cruzar o Jordão em direção a Gileade.

Enquanto estava em Gilgal, Saul lembrou-se das palavras de Samuel, dois anos antes, segundo as quais chegaria um momento em que teria de esperar pela chegada do profeta, neste mesmo local, por sete dias.25 Teme­

23 Benjamim Mazar, "The Philistines and Their Wars with Israel," em World History o f the Jeivísh People, vol. 3, Judges, editado por Benjamim Mazar (Tel Aviv: Massada, 1971), pp. 175-76.

;4 Porém Demsky sugere em "Geba, Gibeah and Gibeon," BASOR 212 (1973): 29-30, que Geba foi nomeada depois da Geba original (i.e. Gibeá de Benjamim [Jz 20], conhecida depois como Gibeá de Saul), e não era outra senão a Gibeão (el-Jib). A "Geba de Benjamim" na maioria dos manuscritos hebraicos de 1 Samuel 13.16 é a mesma Gibeá de Benjamim.

L- Muitos estudiosos (e.g. P. Kyle McCarter, Jr., I Samuel, Anchor Bible [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1980), p. 228) assumem uma reconstrução desesperadamente confusa quanto a estes acontecimentos (1 Sm 13.7b-8). Crêem que o historiador bíblico (ou redator) está sugerindo em 1 Samuel 10.8 que Saul apareceu em Gilgal uma semana antes de sua eleição como rei quando, de fato, deveria ter comparecido dois anos depois (ver 1 Sm13.1). Mas, como Carl F. Keil e Franz Delitzsch mostraram há mais de um século, não existe nenhuma confusão, uma vez que o estudante admita a natureza da sintaxe hebraica de 1 Samuel 10.8. O que o profeta está dizendo é que se Saul tivesse de ir a Gilgal, Samuel precisaria fazer o mesmo. Sempre que isto ocorresse, Saul teria de esperar pelo menos sete dias até que Samuel chegasse. É secundário o fato de Saul não ter ido a Gilgal até que se passassem dois anos. Ver Keil e Delitzsch, Biblical Commentary on the Books o f Samuel (Grand Rapids: Eerdmans, 1960 reedição), pp. 101-2.

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roso do ataque iminente que poderia ser desferido pelos filisteus, o pró­prio Saul ofereceu sacrifícios a Yahweh, violando, dessa forma, não ape­nas as expressas ordens dadas por Samuel, mas também todas as prescri­ções que envolviam o próprio ritual do culto. Quando Samuel chegou ao local, repreendeu o rei e o informou de que sua dinastia, que poderia sub­sistir para sempre (1 Sm 13.13), estava com seus dias contados. Também foi o rei informado de que Deus entregaria o governo a um homem segun­do o seu coração.

A ira contra Jônatas

Após deixar Gilgal, Saul refugiou-se em Gibeá com apenas seiscentos homens. Os filisteus estavam acampados próximo a Micmás, mas envia­ram patrulhas de sua base, algumas para Ofra de Benjamim (et-Tai-yibeh), pouco ao nordeste de Betei; outras patrulhas foram enviadas a Bete- Horom, a oeste de Micmás; e ainda outras para Zeboim, a noroeste, em direção a fronteira dos filisteus.26 A liberdade com que se moviam no interior da terra testificava o perigo que enfrentava a nação comandada por Saul. Segundo um historiador (1 Sm 13.19-22), essa liberdade pode ter ocorrido parcialmente em conseqüência da falta de tecnologia do fer­ro em Israel, uma vantagem estratégica disponível para os exércitos dos filisteus.27

Aproximando-se mais de Micmás, Saul tomou conta de uma estância defensiva em Migrom (Tel Miriam), entre Micmás e Geba.28 Jônatas, por sua vez, sem que ninguém percebesse, partiu para atacar um destaca­mento filisteu próximo a Micmás, apenas ele e seu armeiro, matando na ocasião cerca de vinte homens. Essa investida, juntamente com um ter­remoto, causou um pânico tão violento entre os filisteus que Saul e seus homens foram imediatamente avisados de que algo estranho acontecia com os inimigos. Perceberam então que Jônatas e seu armeiro não dor­miam no arraial, de forma que Saul convocou Aías, o sumo sacerdote,

26 Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa da página 171.27 Embora a palavra "ferro" (Heb. Barzel) não apareça nessa passagem, fica claro pelas

fontes consultadas que os filisteus foram os dominadores da metalurgia e exploraram tal domínio o máximo que puderam. Ver também Trude Dothan, The Philistínes and Their Material Culture (New Haven: Yale University Press, 1982), p. 20; James D. Muhly, "How Iron Technology Changed the Ancient World and Gave the Philistines a Military Edge," BAR 8 (1982): 52-54.

28 Assim diz o Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford University Press, 1984), pp. 73,135.

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para que trouxesse a arca,29 provavelmente para assegurar a proteção di\ *ina e sua direção. Mas os filisteus estavam em tal alvoroço que aban­donaram sua posição em Micmás e fugiram para salvar suas vidas. Como resultado, os m ercenários 'ap iru ,30 que tinham sido alugados pelos filisteus, sentiram-se encorajados a abandonar os fugitivos e unir-se aos israelitas. Estes mercenários juntaram-se aos israelitas que estavam es­condidos e àqueles que estavam com Saul para perseguirem os filisteus em direção nordeste até Bete-Aven (i.e., Betei), e de lá para Aijalom, pró­ximo à fronteira dos filisteus.

Saul ordenou ao exército que, sob juramento, ninguém comesse abso­lutamente nada até que Deus desse vitória a Israel. Tal atitude fez com que seus homens desfalecessem de fome (1 Sm 14.24). Quando os filisteus fugiram, os israelitas mataram os animais deixados para trás, comendo-os sem retirarem devidamente o sangue. A quebra do juramento e da lei ceri­monial de Moisés trouxe um forte pavor sobre Saul, de sorte que resolveu edificar um altar a fim de oferecer um sacrifício apropriado. Então buscou ele orientação de Yahweh se deveria ou não insistir na perseguição aos filisteus, mas nenhuma resposta foi-lhe dada. Saul compreendeu então que alguém havia cometido alguma falta que desagradara ao Senhor no juramento por eles feito. Após lançar sortes, soube que seu filho Jônatas era o culpado, pois, não sabendo do juramento estabelecido para os solda­dos, havia comido mel no caminho. Somente os apelos do povo impediu Saul de matar seu próprio filho. Aqui se vê o início da irracionalidade e loucura de Saul.

29 Assim está registrado no texto massorético de 1 Samuel 14.18. Contudo, parece melhor, segundo o registro da Septuaginta e outras testemunhas, ler "éfode" em vez de "arca", pois a arca aparentemente estava ainda em Quireate-Jearim por todo o reinado de Saul. Além do mais, o contexto técnico indica atividade puramente sacerdotal, pois a narrati­va sugere que está se recorrendo a um éfode e não à arca (v. 19; cf. vv. 40-42; 23.9; 30.7). Ver Ralph W. Klein, 1 Samuel, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1983), p. 132, n.18. G.W. Ahlstrõm, mesmo preferindo adotar o texto massorético nessa passagem, informa que o éfode aparece nas narrativas de Samuel por todo o período em que a arca esteve localizada, segundo a tradição, em Quireate-Jearim ("The Traveis of the Ark: A Religio-Political Composition," JNES 43 [1984]: 145; da mesma forma Antony F. Campbell, "Yahweh and the Ark: A Case Study in Narrative," JBL 98 [1979]: 42-43, n. 32).

30 A visão mais antiga, ou seja, que estes eram os hebreus, é difícil de conciliar com a mudança de coligação, isto é, com o fato de deixarem os filisteus para aliar-se aos isra­elitas. É melhor identificá-los, como o faz Norman K. Gottwald, com os 'apiru docu­mentados nas correspondências de Amarna (The Tribes o f Yahweh [Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1979), pp. 422-25; ver também o que foi dito acima nas pp. 101-2).

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Pondo temporariamente de lado a ameaça dos filisteus, o narrador vol­ta a atenção para um resumo de todas as campanhas militares promovi­das por Saul. Ele havia se envolvido em embates com os amonitas em Jabes-Gileade, e talvez em outras ocasiões. Também se engajou em cam­panhas contra os moabitas, edomitas, e contra o reino arameu de Zobá, nenhum citado pelo escritor detalhadamente. Apesar disso, à luz desses episódios, é importante que alguma coisa seja dita acerca do mundo ao redor de Saul, a fim de poder apreciar melhor as tensões externas que contribuíram para a deterioração de seu governo.

Os estados arameus

Virtualmente nada é conhecido acerca de Moabe e Edom do século onze, tanto no Antigo Testamento quanto na literatura extrabíblica, de modo que é infrutífero especular qualquer coisa que não seja a civilização material.31 Quan­to aos estados arameus, o quadro torna-se substancialmente mais claro gra­ças ao volumoso material cuneiforme, oriundo primariamente da Assíria. O nome dado aos arameus, considerado o mais antigo, era Ahlamú.32 Não foi senão depois de 1100 que o termo 'armaya (Arameus) surgiu, quando no caso era usado para descrever as populações seminômades que, por aqueles anos, haviam ocupado toda a Síria superior e o noroeste da Mesopotâmia. Tiglate- Pileser I (1115-1077) cita-os como um dos inimigos da Assíria, que ele tentava controlar. Mas eles não apenas resistiram às pressões dos assírios, como tam­bém começaram a ocupar e controlar vastas áreas centrais e baixas da Meso­potâmia. Durante os anos de Saul, eles dominaram todo o norte de Damasco, atingindo o Eufrates, chegando mesmo a ir além desse rio.33

31 John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples ofO ld Testament Times, edita­do por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), pp. 229-34; B. Oded, "Neighbors on the East," em World History o f the jewish People, vol. 4, parte I, The Age o f the Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalem: Massada, 1979), pp. 252-61. N Dennis Pardee alistou todas as poucas inscrições que restaram de Moabe, Amom e Edom conhecidas atualmente, nenhuma delas com data inferior a 850 a.C. (a inscrição de Mesha) ("Literary Sources for the History of Palestine and Syria II: Hebrew, Moabite, Ammonite, and Edomite Inscriptions," AUSS 17 [1979]: 65-69).

32 Albert Kirk Grayson, Assyrian Royal Inscriptions (Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1976), vol. 2, p. 13 # 1.

33 Merril F. Unger, Israel and the Aramaeans ofDamascus (Grand Rapids: Baker, 1980 reedição), pp. 38-44. Abraham Malãmat, mesmo negando que os Ahlamü fossem os arameus, con­corda com o julgamento de Unger com respeito ao domínio dos arameus na Síria e nas

Os inimigos de Saul

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O principal reino dos arameus, durante esse período, foi o de Zoba, governado pela dinastia de Bete Reobe. Esta nação situava-se bem ao nor­te do vale de Baca, e efetivamente controlava todas as rotas comerciais desde a Anatólia e sul da Mesopotâmia até o Egito.34 A decadência interna e militar do império assírio, depois do reinado de Tiglate-Pileser I, e o contínuo declínio do Egito em seu Terceiro Período Intermediário, permi­tiram que Zoba se deslocasse praticamente para todas as direções para assim expandir sua influência e poder. A expansão também incluía a na­ção de Israel, o que resultou em medidas de retaliação por parte de Saul contra Zoba. O reino continuou sendo um obstáculo para Israel até a épo­ca de Davi e Salomão, e mesmo depois deles.

Os filisteus

Era com a Filístia, entretanto, que Saul estava constantemente envolvi­do, do início ao fim de seu reinado. Esses sobreviventes dos Povos do Mar, de origem não-semítica, vieram para Canaã como parte de uma mi­gração maciça de povos que se dirigiam para a Anatólia, Egito, Síria e outras áreas ocidentais do Mediterrâneo. Eles destruíram o Império Hitita, inclusive a destruição de cidades sírias como Ugarite. Após uma tentativa frustrada de conquistar também o Egito, alguns desses Povos do Mar, par­ticularmente os Peleset e os Tjekker, estabeleceram-se ao longo da porção central e mais baixa da costa mediterrânea de Canaã. Os Peleset são os conhecidos filisteus, tão familiares ao leitor da Bíblia (ver p. 161).

Embora tenha havido filisteus em Canaã por muitos anos antes da che­gada dos patriarcas (ver p. 31), esse grupo também tinha sido "semitizado" ou, em outra hipótese, absorvido pela nova leva de invasores. Os "novos" filisteus estabeleceram uma cabeça-de-ponte no sudoeste de Canaã em cerca de 1200, estabelecendo-se nas principais cidades da região (ou pró­ximo a elas): Gaza (Ghazzeh), Ascalom ('Askalon) e Asdode (Esdüd), ao longo da costa; Ecrom (Khirbet el-Muqanna') e Gate (provavelmente Tel es-Sâfi), no Sefelá.

Tem sido muito comum descrever a forma de governo dos filisteus como um tipo de pentápole, em que cada governante (Heb. Serem, "senhor")

partes mais altas da Mesopotâmia na época do rei Saul. ("The Aramaeans," em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman, pp. 135-38; ver também em Yutaka Ikeda, "Assyrian Kings and the Mediterranean Sea: The Twelfth to Ninth Centuries B.C.," Abr-Nahrain 23 [1984-1985]: 29, n.10).

34 Benjamim Mazar, "The Aramaean Empire and Its Relations with Israel/' em Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman (Garden City,N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, pp. 131-32.

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aparentemente possuía o mesmo nível de autoridade dos demais. Nenhum empreendimento que envolvesse toda a confederação deveria ser aprova­do sem o voto da maioria (e talvez unânime). Não se pode saber mais que isso, pois falta a evidência dos textos filisteus.35

A falta de conhecim ento com respeito ao vocabulário dos filisteus limita qualquer tentativa de definir com precisão o idiom a do povo, embora muitos estudiosos acreditem que se originara na região do mar Egeu, nas ilhas (e.g., Creta) ou na Ásia Menor (Lídia). Até os textos nativos serem encontrados, as questões filológicas perm aneceram sem respostas.36

Sem elhantem ente, é im possível saber qualquer coisa relativa à reli­gião pré-cananéia dos filisteus, porque todas as divindades por eles adoradas eram de origem semítica. E bem provável que os filisteus te­nham absorvido os deuses cananeus, inserindo-os em seu sistem a reli­gioso, identificando seus antigos deuses com as novas divindades re­centem ente encontradas. Seu deus principal era Dagon, conhecido no norte da M esopotâm ia e Síria como Dagan, pai de Hadade ou Baal. Sua forma metade homem e metade peixe, conforme sugerido em 1 Samuel 5.4,37 pode mesmo estar refletindo o sincretismo religioso mencionado pouco acima, no qual os filisteus, sendo um povo do mar, provavel­mente retiveram as características m arinhas de seu deus, adaptando-o ao novo estilo de vida agrícola em Canaã. Portanto, Dagon era uma divindade relacionada à agricultura, im posta sobre o deus peixe origi­nal. Outros deuses dos filisteus eram Baal-Zebube e Astarote, uma deusa do panteão cananeu, que sem dúvida era adorada pelos filisteus em Bete-Seã (pelo menos ali [1 Sm 31.8-13]). Os detalhes relativos ao culto também são bastante incertos, embora existam as referências no Anti­go Testamento quanto à existência de sacerdotes filisteus (1 Sm 5.5; 6.2),

35 Dothan, Philistines, pp. 18-19. Ver também Hanna E. Kassis, "Gath and the Structure of the 'Philistine' Society," JBL 84 (1965): 259-71. Kassis é de opinião que a cultura dos filisteus, conforme descrita no Antigo Testamento, era profundamente misturada com elementos cananeus, especialmente em Gate.

36 Kenneth A. Kitchen, "The Philistines," em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman, pp. 67-68; Mazar, "The Philistines and Their Wars with Israel," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, pp. 165-66.

37 O hebraico diz: "Somente seu Dagon (dãgôn) foi deixado," uma frase que os estudiosos desde os dias de Julius Wellhausen têm compreendido como: "Somente sua parte de peixe (dãg) foi deixada". Para um apanhado abrangente sobre o assunto, consultar Lewis Spence, Myths and Legends ofBabylonia and Assyria (London: Harrap, 1916), pp. 151-52; Ulf Oldenburg, The Conflict Between El and B aal in Canaaníte Religion (Leiden: E.J. Brill, 1969), pp. 56-57; McCarter, I Samuel, pp. 119-20.

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práticas pagãs de adivinhação (1 Sm 6.2) e saltos no pátio de um tem ­plo (1 Sm 5.5).38

Os conflitos entre Israel e os filisteus são tão antigos quanto o governo de Sangar, o terceiro juiz, que aparentemente resistiu às incursões do adversá­rio até cerca de 1230 (ver p. 168). Mas foi Sansão quem primeiro empreen­deu medidas ostensivas de defesa contra os filisteus, pois já vinham ocor­rendo fortíssimos choques desde 1124. Pode ser que sessenta ou setenta anos tenham sido suficientes para eles se reorganizarem, atingindo uma população forte para empreender uma penetração nos territórios altos de Israel. Por quarenta anos eles perturbaram Israel, a despeito dos feitos he­róicos de Sansão, até que por volta de 1084 foram finalmente forçados a render-se e devolver as cidades israelitas que haviam capturado, retirando- se assim para o oeste do Sefelá. Contudo, daquela região, continuaram a se aventurar em campanhas para o interior de Israel, principalmente para as planícies e vales, onde poderiam utilizar suas carruagens largamente. A cons­tante pressão filistéia também serviu como fator contribuinte para o levan­tamento de um rei, uma exigência que tornou-se cada vez maior quando Samuel já estava idoso e sem condições para libertá-los.

Esta era a situação diante de Saul, quando começou o seu reinado. Não apenas os filisteus estavam fortemente instalados em áreas como Bete- Seã, na planície de Jezreel, mas também se empenharam na construção e ocupação de várias fortalezas situadas no meio da terra de Israel, não muito distantes de Gibeá, a própria capital do reino de Saul (1 Sm 10.5). Confor­me já dito, Saul esforçou-se em várias campanhas naquela área na inten­ção de repelir os filisteus, afastando-os e forçando-os de volta ao seu terri­tório (1 Sm 14.46), mas não há qualquer evidência de que foram sequer expulsos de Jezreel. Somente nos dias de Davi, depois de 1000 a.C., os filisteus viram-se forçados a permanecer em seu território original, em sua pentápole. Mas deve-se reconhecer a tenacidade desse povo, pois, com exceção de breves períodos em que foram forçados a pagar tributos a Isra­el, nunca perderam a independência até quando Samaria foi destruída pelos assírios, em 722 e Judá ficou submissa a essa potência internacional.

Os am alequitas

Outro inimigo de Saul com características e em circunstâncias total­mente diferentes eram os amalequitas. Esses nômades do deserto esta­vam sempre surgindo na história de Israel, quase sempre no papel de

55 Dothan, Philistines, pp. 20-21; Kitchen, "The Philistines", em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman, p. 68.

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adversário. No deserto do Sinai, atacaram Israel pelas costas, em uma vergonhosa amostra de covardia (Êx 17.8-16; Dt 25.17-19). Por causa disso, Yahweh os separou para um julgam ento especial. Foram eles que se juntaram aos cananeus numa campanha contra os israelitas, na oca­sião em que os hebreus tentaram uma invasão prem atura em Canaã pelo sul (Nm 14.45). M esmo depois desses acontecim entos, o rei Eglon dos m oabitas, ao descrever sua conquista da porção centro-leste de Israel, registra os am alequitas como um dos seus associados na guer­ra (Jz 3.13). Não há dúvida de que os contingentes am alequitas per­m aneceram nas regiões m ontanhosas de Efraim depois da m orte de Eglon, pois Débora fala acerca deles, dessa vez favoravelm ente, como seus aliados contra Jabim e Sísera (Jz 5.14; cf. 12.15). No princípio do décimo segundo século, quando os m idianitas foram levantados por Yahweh para disciplinar seu povo, trouxeram os am alequitas como aliados (Jz 6.3,33).

O quadro que emerge desses dados é que os amalequitas eram adver­sários inveterados de Israel, que juntavam-se a qualquer um que se dispu­sesse a atacar e fazer mal aos israelitas. Não há como afirmar as origens desta aversão a Israel, embora Amaleque, o patriarca dessas tribos, seja identificado em Gênesis 36.12 como neto de Esaú. Pode ser que a ira de Esaú contra Jacó relacionada à herança e direito de primogenitura tenha achado expressão histórica no anti-semitismo manifestado por Amaleque contra os hebreus.

Com a investidura do primeiro rei de Israel, o tempo havia chegado segundo o propósito de Deus para que o antigo problema "am alequitas" fosse de uma vez por todas resolvido (1 Sm 15.1-3). Ironicamente, a des­truição dos amalequitas também contribuiria para a destruição e ruína de Saul. Samuel veio a Saul e revelou-lhe as intenções de Yahweh de pôr os amalequitas sob o herem , o que significaria riscar tanto o povo quanto suas posses de sobre a face da terra. Sendo assim, Saul ajuntou suas tro­pas, marchou para o sul em direção ao deserto, e destruiu os amalequi­tas até as fronteiras do E gito .39 Antes disso, ele mandou avisar aos quenitas que viviam entre eles que fugissem, pois eram aparentados com Moisés e não tinham nada a ver com as maldades de Amaleque (Jz 1.16; 4.11). Saul errou por não ter destruído todos os amalequitas, e também por não ter eliminado todos os animais. Além disso, trouxe Agague, rei dos amalequitas, vivo para Gilgal, juntamente com um rebanho escolhi­

39 Yohanan Aharoni, "The Negeb and the Southern Borders," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 292-93.

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do por ele. Foi lá que Samuel condenou severamente sua atitude de de­sobediência. Mesmo os argumentos de Saul quanto aos animais, que ti­nham sido trazidos a Gilgal para serem sacrificados a Yahweh, não fo­ram suficientes para evitar as censuras do profeta, que naquele momen­to aproveitou para informar ao rei que seu trono tinha sido rejeitado, pois já havia um outro homem melhor do que ele preparado para assu­mira a posição.

Considerações teológicas

A intenção divina para com um reinado humano

A falha e a desqualificação de Saul como rei de Israel não apresenta um problem a histórico, já que os registros concernentes aos reis e às dinastias mostram que tanto o sucesso quanto as falhas, a ascensão e a queda fizeram parte tradicionalm ente de seu contexto. Mas o final trá­gico da vida de Saul possui algumas im plicações teológicas mais pro­fundas do que seu papel histórico em Israel. O reinado era parte e uma parcela fundam ental no desenvolvim ento do programa de Deus em de­monstrar sua soberania sobre todas as demais nações e sobre toda a criação.40 De fato, por todo o antigo Oriente Médio, os povos já refleti­am sobre o reinado como uma form a de trazer para a terra o poder e a soberania dos deuses que habitavam no céu, de forma que seus propó­sitos pudessem aqui se cumprir.41 Esta é a razão por que os reis eram vistos pelo povo de duas maneiras, como um ser considerado divino (como no Egito), ou, pelo menos, chamado diretam ente pelos deuses, sendo por eles autorizados a exercer o governo. Em algumas socieda­des havia um acúmulo de funções que tornavam os monarcas hom ens- deuses, trazendo a idéia de uma relação filial entre o homem e os deu­ses, no mínimo pela adoção.42

40 O rei, considerado como o mentor e o mantenedor da ordem debaixo da vontade de Deus, é um motivo não apenas para a Torá, mas também para os Salmos e literatura de sabedoria. Ver Helen Ann Kenik, "Code of Conduct for a King: Psalm 101," JBL 95 (1976): 402-3.

41 Ver especialmente Sidney Smith, "The Practice of Kingship in Early Semitic Kingdoms," em Mith, Ritual and Kingship, editado por Samuel H.Hooke (Oxford: Clarendon, 1958), pp. 22-73; Henri Frankfort, Kingship and the Gods (Chicago: University of Chicago Press, 1948), pp. 343-44.

42 Ivan Engnell, Studies in Divine Kingship in the Ancient Near East (Uppsala: Almqvist and Wiksells, 1943), pp. 4.11, 80-81.

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Esta noção é a mesma do Antigo Testamento, embora a divindade ob­viamente nunca fosse atribuída ao rei humano.43 Não se deve assumir, entretanto, como muitos estudiosos fazem, que o reinado em Israel teve suas bases no pensamento comum das civilizações que o cercavam.44 Pelo contrário, o que se deve ver no reinado do Oriente Médio é um reflexo do propósito original de Deus que, infelizmente, foi corrompido no decorrer dos milênios através de sociedade politeístas, onde, entre outros erros, havia indivíduos poderosos que usavam a noção de reinado com autori­zação divina como uma justificação para um despotismo impiedoso.

O reinado em Israel, conforme se tem demonstrado (p. 198), foi expressa­mente previsto e promulgado por Moisés e pelos patriarcas, muito tempo antes da instituição entrar verdadeiramente em vigor. Mas até que os hebreus passassem pela mudança que os transformaria de um agrupamento de indi­víduos em uma nação (uma transição que ocorreu somente depois da saída no êxodo e das experiências no Sinai), não estavam propriamente constituí­dos para formar um importante reinado. Foi somente pela providência de Deus, mediante a escolha de Davi, o "homem segundo o coração de Deus", que o cenário foi armado para a iniciação do reinado humano em Israel, em sua maior expressão de grandeza. Nesse caso, Davi não foi apenas um rei, mas, em sintonia com os propósitos reais e salvíficos de Deus, foi visto como o filho de Deus. Ou seja, ele foi adotado por Deus para representá-lo na terra, para que estabelecesse uma dinastia humana pela qual o próprio Filho de Deus (que também era Filho de Davi), o próprio Jesus Cristo, viesse a reinar. Somente Davi, portanto, podia servir adequadamente como um protótipo do Rei Messias. E, do mesmo modo que o Messias seria um profeta e sacerdote, além de rei, assim Davi exerceria estas funções entre os hebreus, e de uma forma que operaria fora dos limites normais daqueles ofícios.45

43 Edmond Jacob, Theology o f the Old Testament (New York: Harper and Row, 1958), pp. 234-39; Frankfort, Kingship and the Gods, p. 339. Em nossa opinião, Frankfort foi longe demais em sua tentativa de negar a centralidade do reinado na ideologia israelita (ver em seu trabalho nas pp. 337-44).

44 Assim pensa, por exemplo, Engnell, em Studies in Divine Kingship, pp. 174-77, na seção em que ele antevê seu próximo trabalho acerca da monarquia no Antigo Testamento. Esse é o ponto de vista da chamada escola do Mito e Ritual, que floresceu uma geração atrás, e quem tem suas idéias expressadas em algumas publicações, como a que foi editada por Hooke, intitulada Myth, Ritual and Kingship.

45 Dennis J. McCarthy, "Compact and Kingship: Stimuli for Hebrew Covenant Thinking," em Studies in the Period ofDavid and Solomon and Other Essays, editado por Tomoo Ishida (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), p. 82; Talmon, "The Biblical Idea of Statehood," em The Bible World, editado por Gary Rendsburg, pp. 247-48.

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Falta de entendim ento de Saul para com a aliança: violação das prerrogativas sacerdotais.

Saul, apesar de tudo, ainda permanece um enigma, pois não apenas recebeu a permissão de Deus para reinar,46 ainda que por uma espécie de concessão ao pedido do povo, como também Yahweh o informou de que, se ele não falhasse em relação aos aspectos do culto, fundaria uma dinas­tia que reinaria sobre Israel para sempre (1 Sm 13.13). Essa declaração deve ser tomada literalmente, mas visto que está claro que o reinado messiânico estava reservado a Davi, deve-se então concluir que a divisão do reino foi um resultado previsto, e que os sucessores de Saul, sendo este obediente, reinariam sobre um reino, talvez Israel, ao norte, enquanto os sucessores de Davi reinariam, conforme de fato aconteceu, sobre Judá, ao sul.47 A rejeição de Saul em Gilgal e sua conexão com o oferecimento do sacrifício não é sem significação no aspecto de sua remoção e do anúncio do surgimento de Davi.

Na primeira vez, Saul falhou em não esperar pela chegada de Samuel em Gilgal, e com suas próprias mãos ofereceu ofertas queimadas - uma função proibida para um não-levita, a não ser por uma dispensação espe­cial de Deus. Mas isto não está sugerido em nenhum ponto da narrativa. Na segunda ocasião, Saul achou que podia violar o herem ao poupar al­guns animais dos amalequitas, que tencionava sacrificar ao Senhor. E plau­sível que Saul planejasse oferecer os sacrifícios pessoalmente. A reprimenda de Samuel parece favorecer esta interpretação, pois ele disse a Saul que "obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender melhor é do que a gordura de carneiros" (1 Sm 15.22). Tal desobediência, disse Samuel, é rebelião, um pecado tão pernicioso quanto a adivinhação ou idolatria.

O erro de Saul, então, foi apropriar-se das prerrogativas sacerdotais, um ato possivelmente associado aos reinos pagãos; mas, sem uma sanção divina específica, era totalmente impróprio para Saul ou qualquer outro rei de Israel. O papel dos reis nos cultos era, de fato, quase universal, en­

46 Para uma resolução quanto às supostas contradições nas tradições "deuteronomistas", ou seja, se o reinado de Saul tinha ou não a sanção divina, ver em A.D.H. Mayes, "The Rise of the Israelite Monarchy," ZAW 90 (1978): 9-10.

47 Visto que a promessa messiânica de realeza fora especificamente conferida a Judá, como vemos claramente declarada em Gênesis 49.10, os propósitos salvíficos de Deus podem ter sido restritos (como de fato o foram) dentro dos limites do reino do sul até que chegassem os tempos escatológicos quando os reinos de Israel e Judá seriam novamen­te unificados.

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tão Saul, imitando o procedimento, poderia ser escusado se não estivesse contrário ao que está escrito na Lei de Deus. O mandamento era explícito - os negócios sacerdotais e do culto são exclusividade dos levitas e dos sacerdotes.

Davi, pelo contrário, operou também nos assuntos do culto, pois, como rei messiânico, transcendeu e foi isento das restrições contidas na lei a respeito das ofertas (ver pp. 282,283). Como filho de Deus, foi sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque, se também não o fora da or­dem de Arão. Conforme o autor de Hebreus cuidadosamente mostra (Hb5.1-10; 6.13-7.28), o sacerdócio de Melquisedeque foi superior ao de Arão, visto que Arão e Levi submeteram-se a Melquisedeque enquanto ainda estavam nos lombos de Abraão, seu pai. Davi, então, como herdeiro espi­ritual de Melquisedeque (SI 110.4), podia oferecer sacrifícios, e assim o fez, ainda que não fosse da tribo de Levi, da mesma forma que Jesus Cris­to da tribo de Judá serve neste momento como o Grande Sumo Sacerdote nos céus, infinitamente superior aos sacerdotes aarônicos.

Saul, embora escolhido para ser rei de Israel, nunca foi chamado de "fi­lho de Deus", e em nenhum momento recebeu qualquer privilégio sacerdo­tal em virtude daquele relacionamento. Aqui está o centro de sua desobedi­ência e rejeição: de forma arrogante e consciente, Saul penetrou além das fronteiras estabelecidas, em um espaço de seu reinado que teológica e histo­ricamente estava reservado para Davi e a sua dinastia somente.

O surgimento de Davi

A unção de Davi

O declínio de Saul coincide com o aparecimento e a ascensão de Davi. Samuel - embora tenha se lamentado quanto à tragédia que se abatera sobre a vida de Saul - foi até Belém, em obediência a Deus e ao seu chama­do, onde encontrou entre os filhos de Jessé o rei que Deus tinha provido (1 Sm 16.1). O próprio Yahweh indicou claramente a sua escolha (1 Sm 16.3). Após o final de um processo seletivo, Davi finalmente compareceu à pre­sença de Samuel que, por ser profeta antigo, conheceu imediatamente que ali estava aquele que tinha sido divinamente escolhido, um fato confirma­do pela visitação do Espírito de Deus sobre ele.48

4S E bastante propício o momento para se falar a respeito da cronologia, especialmente nesse período transitório da história de Israel. Davi, que subiu ao trono de Judá em 1011 na idade de trinta anos (2 Sm 5.4), nascera em 1041, ou seja, alguns anos depois que Saul

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Davi na corte de Saul

Depois que o Espírito de Yahweh veio sobre Davi, foi permitido que um espírito demoníaco atormentasse Saul até o dia de sua morte (1 Sm 16.14). Para amenizar seus ímpetos de mau humor e fúria, seus servos decidiram buscar um músico, cujas melodias pudessem ser um bálsamo sobre o rei. Providencialmente, Davi foi selecionado, um fato que não ape­nas beneficiou Saul, mas também permitiu que Davi se familiarizasse com a vida na corte, preparando-o para o papel público que viria a exercer mais tarde. Saul gostou muito do jovem e logo fez dele seu armeiro e mú­sico. Por um breve espaço de tempo esteve Davi com Saul, embora no próximo acontecimento ele já esteja em Belém.49

Davi e Golias

Poucos anos após o desastroso episódio com os amalequitas, Saul mais uma vez enfrentava o problema dos filisteus. Embora estes esperassem reconquistar alguns territórios nas regiões centrais de Israel, o melhor que conseguiram foi chegar a um impasse contra as forças de Saul em Ephes Dammin, um local não identificado, mas que o narrador diz situar-se en­tre Sucote (Khirbet 'Abbâd) e Azeca (Tel Zakari-yeh),50 no vále de Elá, cerca de 32 quilômetros a sudoeste de Jerusalém. Ambos os lados con­cordaram que o confronto seria decidido por um duelo, em vez de um combate aberto, de forma que cada um teve de escolher um guerreiro que representasse seu povo.51 Os filisteus escolheram Golias de Gate, um gi­gante com cerca de 3 metros que, provavelmente, descendia dos enaquins,

começou a reinar. Certamente era muito jovem quando recebeu a unção de rei, mas não tão jovem ao ponto de não ser capaz de olhar e cuidar do rebanho de seu pai sozinho. Não seria absurdo afirmar que ele tinha doze anos na ocasião. Isto fixa uma data no princípio dos anos 1020 para o tempo em que Saul foi rejeitado e Davi foi ungido comoo novo rei, uma data que se encaixa bem com a idade de Samuel, que nessa ocasião já estava com cerca de noventa anos.

49 Aperícope da unção de Davi (1 Sm 16.1-13), freqüentemente considerada tardia e histo­ricamente não confiável, recebe brilhante defesa e análise por Martin Kessler, que a vê como parte integral da narrativa ("Narrative Technique in 1 Sm 16.1-13," CBQ 32 [1970]: 552-53).

50 Para uma identificação destes sítios, ver Yohanan Aharoni, The Land o f the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), pp. 442,431.

51 Sobre os lutadores guerreiros, ver Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw- Hill, 1965), vol. 1, p. 218.

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já que estes fixaram residência nas cidades dos filisteus após serem expul­sos de Hebrom por Josué (Js 11.21,22). Israel, contudo, não achava alguém que representasse a nação e também Yahweh.

Finalmente Davi entrou em cena. Havia estado em Belém para ajudar o pai idoso e servir-lhe de emissário em tempos oportunos (1 Sm 17.15). Não é necessário concluir, como muitos estudiosos o fazem, que a presen­te história e aquela sobre a seleção de Davi como músico da corte são rela­tos conflitantes, somente por Saul não ter reconhecido Davi na ocasião.52 Primeiro, é impossível saber quanto tempo transcorreu desde que Davi esteve com Saul. E bem conhecido o fato de os adolescentes sofrerem rápi­das mudanças no aspecto físico dentro de um ou dois anos, sendo perfei­tamente possível que Davi (aqui ainda muito jovem) tivesse amadurecido consideravelmente desde que servira a Saul pela última vez. Além disso, o estado de saúde mental e emocional de Saul, freqüentemente irregular, certamente agravou-se durante esse forte período de estresse, talvez a ponto de sequer reconhecer um velho amigo.

Embora Davi tenha sido enviado para a frente de batalha a fim de levar suprimento aos seus irmãos, ficou tão ofendido com as maldições proferi­das pelo filisteu que ele mesmo fez-se voluntário para duelar com Golias. Tomou consigo uma funda e feriu o gigante em nome e pela honra de Yahweh (1 Sm 17.45-50). Davi, portanto, mostrou desde o início que seu zelo era santo, como devia ser o zelo do ungido do Senhor. Ele era o rei- guerreiro que se juntou a Deus contra todos que desafiassem a soberania de Yahweh.

Davi e Jônatas

O ato de heroísmo impressionou Saul de tal maneira que determinou a permanência de Davi em sua corte, e procedeu cumprindo sua palavra de recompensar o herói que ferisse o filisteu (1 Sm 17.25). Isto incluía a isen­ção das taxas e impostos para sua família (o motivo por que Saul procurou saber acerca do pai de Davi em 1 Sm 17.56), o casamento com a filha do rei e muitas riquezas, isto é, uma ascensão súbita e inesperada, mas já previs­ta para aquele que se tornaria o genro do rei e comandante do seu exérci­to. Mas dentre todas as coisas, o mais valioso para Davi foi a profunda amizade de Jônatas, filho de Saul. Este foi um relacionamento notável. Jônatas era consideravelmente mais velho do que Davi; então é preciso

52 Ver Otto Eissfeldt em The Old Testament: An Introduction, traduzido por Peter R. Ackroyd (New York: Harper and Row, 1965), p. 274.

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considerar a amizade como de pai para filho, em vez de apenas uma ami­zade comum. A diferença na idade é claramente provada pelo fato de Davi, como já estudado, ter nascido não antes de 1041, enquanto Jônatas já era líder de vários homens no princípio do reinado de seu pai, por volta de 1050. Talvez Jônatas fosse uns trinta anos mais velho que Davi. Somente por especulação pode-se dizer que Jônatas não tinha filhos quando conhe­ceu Davi, ou que ficara tão persuadido acerca da eleição de Davi como rei, que o abraçou como o ungido de Yahweh, mesmo antes de Davi ter assu­mido a função de governante.

Em apoio à última hipótese está a própria renúncia de Jônatas. Ele era o filho mais velho de Saul e certamente sucederia ao pai no reino. Por isso Saul advertiu ao filho que enquanto Davi estivesse vivo, Jônatas não teria como assentar-se no trono, dando continuidade à dinastia de Saul (1 Sm 20.31). Mas Jônatas sabia no íntimo o que na verdade seu pai tentava ne­gar - Davi era um homem segundo o coração de Deus.53 Sendo assim, ele se despojou de toda ambição política e ascensão social e juntou-se a Davi, formando um laço de amizade e lealdade indissolúvel. Os dados esclare­cem melhor a natureza da aliança estabelecida entre Davi e Jônatas. Men­cionada pela primeira vez em 1 Samuel 18.1-3, a aliança expressava muito mais do que amizade. Era um contrato formal pelo qual Jônatas não ape­nas demonstrava amor humano em mais alto nível, mas também pleitea­va para si mesmo o favor de Davi como seu senhor e ungido de Yahweh.54

Há várias outras indicações de que Jônatas acatou a escolha de Davi por Yahweh. Primeiro, a aliança foi feita mutuamente, mas foi uma iniciativa de Jônatas, e não vice-versa (1 Sm 18.1, 3b; 20.8,16,17). Segundo, Jônatas sub- meteu-se às mais altas reivindicações de um reinado davídico quando ves­tiu Davi com seu próprio manto (1 Sm 18.4). Depois, reconheceu que Davi viveria mais do que ele e, como rei, estaria em posição de mostrar favor aos seus descendentes (1 Sm 20.14,15,42). Também afirmou de maneira clara que Davi seria o rei, e Jônatas, seu servo (1 Sm 23.17,18). Terceiro, a aliança foi feita não apenas com Davi pessoalmente, mas também com toda a di­

53 David Jobling defende a idéia de que a seleção de Jônatas como sucessor de Saul já estava determinada no relato da batalha, em 1 Samuel 14.1-46, onde ele diz que a narra­tiva é pró-Jônatas, identificando este como o homem segundo o coração de Deus ("Saul's Fali and Jonathan's Rise: Tradition and Redaction in 1 Sam. 14-1-46," JBL 95 [1976]: 371). Essa idéia pode ser sustentada somente se for descartada a evidência em 1 Samuel 13.13, onde está registrado que toda a dinastia de Saul (incluindo Jônatas) seria substituída por outra.

34 Ver Tryggve N.D. Mettinger, King and Messiah: The Cível and Sacral Legitimation o f the Israelite Kings (Lund: C.W.K. Gleerup, 1976), p. 39.

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nastia davídica (1 Sm 20.16). Jônatas decerto conhecia que a eleição de Davi era mais que uma escolha ad hoc. Era, na verdade, a inauguração de uma nova dinastia de reis instaurada pelo próprio Yahweh, que não apenas subs­tituiria a dinastia de Saul, mas também teria ramificações no plano da re­denção muito difíceis de entender naquele momento.

A fu g a de Davi

A conspiração de Saul

A ascensão de Davi ao poder promovida por Saul foi uma atitude polí­tica astuta, embora provasse mais a fragilidade psicológica do rei contur­bado. Com grande coragem temperada pela circunspeção e humildade, Davi saía às guerras, e voltava tão bem-sucedido que não demorou para a multidão passar a cantar a respeito de seus feitos, quase de forma lendá­ria. O rei Saul achou-se eclipsado e, a partir daquele momento, traçou al­gumas estratégias para livrar-se de seu rival.

Em primeiro lugar, sob influência demoníaca, Saul tentou encravar Davi com uma lança na parede, pelo menos por duas vezes (1 Sm 18.11; 19.10), mas Yahweh o livrou de suas mãos. Bastante frustrado, Saul dispensou Davi da corte, deixando-o apenas dedicado ao serviço militar. Depois, o rei maquinou um plano pelo qual se veria livre de Davi: obrigou-o a pagar o preço (m õhar) de cem filisteus mortos, em troca da mão de sua filha Mical. Isto seria o equivalente a uma alta quantia em prata e ouro (1 Sm 18.25). Davi não se intimidou e buscou a ocasião, ferindo duzentos filisteus. Quan­do Saul recebeu os relatórios constatando que a tarefa havia sido cumpri­da, tratou imediatamente de fazer os preparativos para o casamento. Saul passou a ter como genro o inimigo que tentava destruir.

A partir de então Saul passou a manifestar abertamente a intenção de destruir Davi, fazendo com que o próprio Jônatas soubesse de seus pla­nos. Este, consciente sobre a eleição divina de Davi, buscou fazer seu pai entender que seria tolice derramar sangue inocente (1 Sm 19.4,5). Tais pa­lavras até ocasionaram uma reconciliação momentânea, mas Saul logo estava à procura de Davi para o matar; desta vez, enviou alguns assassi­nos para o atacar enquanto estivesse dormindo. Porém Mical, ao tomar conhecimento do plano, avisou o marido, dando-lhe tempo para escapar e refugiar-se em Ramá junto ao profeta Samuel (1 Sm 19.18).

Permanecendo lá por pouco tempo, Davi procurou Jônatas mais uma vez, e juntos planejaram um meio de Davi saber se teria ou não um futuro na corte de Saul. Na ocasião, a intercessão de Jônatas por Davi era total­mente em vão, porque Saul havia posto no coração que Davi precisava ser

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eliminado. Saul percebeu que Jônatas havia reconhecido a legitimação do reino de Davi, e que expressava lealdade ao homem que era segundo o coração de Deus (1 Sm 20.30,31). Então, não havia outro caminho para Davi senão fugir, tornar-se um exilado de seu país e de sua família, caso ainda esperasse sobreviver para reivindicar seu lugar ao trono.

Davi, o fora-da-lei

Davi foi primeiramente para Nobe,55 uma vila no monte das Oliveiras, onde o sumo sacerdote presidia sobre o tabernáculo. Visto que Aimeleque (em outra passagem conhecido como Aías; cf. 1 Sm 14.3; 22.9) era bisneto de Eli, é razoável adm itir que ele ou seu pai Aitube rem overam o tabernáculo de Siló e o instalaram em Nobe. Alguns até hoje questionam o porquê de tal lugar haver sido escolhido. A arca, é claro, ainda estava em Quireate-Jearim, sob a custódia da família de Abinadabe.

Tendo escapado de Saul apenas com as roupas do corpo, Davi e seus com panheiros estavam fam intos e pediram alim ento ao sacerdote. Aimeleque não sabia acerca do desentendimento entre Saul e Davi, de sorte que lhes providenciou o único alimento disponível: os pães da pro­posição do tabernáculo. Tomando a espada de Golias - que tinha sido guardada debaixo do éfode, talvez como símbolo da superioridade de Yahweh sobre os filisteus - Davi partiu em direção a Gate, a terra natal de Golias.56 Este ato de loucura, acentuado pelas representações teatrais de Davi, acabou convencendo Áquis, rei de Gate, de que Davi estava de fato insano. Os profetas extáticos do mundo pagão agiam da mesma ma­neira e, tidos como homens santos, eram isentos de punição, como foi Davi. O herói hebreu que ferira de morte Golias, obteve o direito de aguar­dar em Gate.57 De fato, Davi procurava um refúgio em Gate, mas o rei Áquis, por alguma razão, não achou por bem que Davi permanecesse em seu meio.

Pelos próximos dez anos, Davi viveu uma vida de fugitivo, movendo- se de um lado para outro, sem nenhuma ajuda visível. Encontrou refúgio

?5 Nobe deve ser identificada com a el-Tsãwiyeh (Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, p. 181). Entretanto, Denis Baly a identifica com a et-Tor (The Geography ofthe Bible [New York: Harper, 1957], p. 162).

56 Mazar, "The Philistines and Their Wars with Israel," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 178, sugere que Gate tenha se tornado um importante centro político dos filisteus, já que as guerras com os israelitas forçaram os filisteus a proteger muito mais as frontei­ras orientais com Benjamim.

57 Hertzberg, I & II Samuel, p. 183.

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na caverna de Adulão, uma cidade situada na Sefelá de Judá, cerca de 24 quilômetros a sudoeste de Belém. Na ocasião, sua família tomou ciência da situação, e juntou-se a outros sob o comando de Davi. Isto sugere que emergia um consenso a respeito de que Davi, tendo recebido a unção como rei, estava prestes a liderar um movimento que resultaria em uma grande revolução e na deposição de Saul. Até mesmo os filisteus perceberam isto (1 Sm 21.11). É provável que tivessem poupado Davi em Gate precisamen­te porque poderiam usá-lo para minar o governo de Saul.

Davi, entretanto, preocupava-se mais com sua sobrevivência, embora fi­que claro que no curso do exílio estivesse cultivando boas relações com seu clã judaico, a fim de ganhar apoio quando chegasse o tempo de sua monar­quia. Estrategicamente, fez uma viagem a Mispa em Moabe (local desco­nhecido), onde requisitou e recebeu permissão para deixar a família ali, vi­sando protegê-la. E clara a razão de Davi ter escolhido esse local, visto que sua bisavó Rute era moabita. Também pode ter havido a intenção de conse­guir o favor de Moabe, pois Davi sabia bem que viria o tempo em que dis­putaria com Saul o apoio dos reinos vizinhos. Israel já havia guerreado com Moabe sob o governo de Saul (1 Sm 14.47), então há razão para supor que o rei de Moabe, como os filisteus, aproveitasse o conflito entre Saul e Davi para adquirir vantagens. Qualquer acordo que Davi tenha feito com a Filístia ou Moabe não durou muito tempo, pois já no início de seu reinado ele redu­ziu ambas as nações a estados tributários de Israel (2 Sm 8.1,2).

Nesse período, o profeta Gade juntou-se a Davi, e o aconselhou duran­te o restante de seu exílio. Gade recomendou-lhe que deixasse Adulão, e se deslocasse para a floresta de Erete (localização desconhecida). Enquan­to isso, Saul, dom inado por sua paranóia, acusou os com panheiros benjamitas de deslealdade por não terem confessado que Jônatas, seu fi­lho, havia desertado e manifestado solidariedade para com Davi. Para apaziguar Saul, Doegue, que havia observado como o sacerdote Aimeleque favorecera Davi em Nobe, decidiu contar ao rei tudo o que lá tinha ocorri­do. Furioso, Saul reuniu os sacerdotes de Nobe e, acusando-os de traição, matou sumariamente a todos. Ele mesmo colocou a cidade de Nobe sob herem , apagando-a definitivam ente da terra. Porém, Abiatar, filho de Aimeleque, conseguiu escapar para junto de Davi, e o serviu durante to­dos os anos que este esteve no deserto. Mais tarde, tornou-se o sumo sa­cerdote de Israel juntamente com Zadoque, mantendo esta posição até que Davi veio a falecer, quando então conspirou com Adonias, filho de Davi, para que Salomão não se tornasse rei. Tal atitude removeu Abitar do ofício de sumo sacerdote, e ocasionou seu exílio em Anatote quando Salomão assumiu o poder.

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Davi podia estar fugindo de Saul, mas permanecia sempre bem infor­mado das necessidades de sua parentela. Os filisteus, talvez testando as intenções de Davi, fizeram uma incursão na cidade de Queila (Khirbet Qilã), um vilarejo de Judá ao sul de Adulão. Buscando cuidadosamente o Senhor através do éfode que Abiatar havia trazido de Nobe (1 Sm 23.6), Davi convenceu-se da vitória e partiu para Queila a fim de libertar seus conterrâneos. Ciente, Saul marchou rapidamente para o sul com intenção de emboscar Davi e seus homens dentro da cidade. Davi soube da chega­da de Saul a tempo de escapar, buscando refúgio no deserto de Zife que ficava pouca coisa ao sul de Hebrom. Ele estava certo de que o povo de Queila, que ele acabara de salvar dos filisteus, não o defenderia contra Saul. Uma evidência de que Davi não desfrutava de apoio total nem mes­mo em Judá.

Também os habitantes de Zife provaram ser traiçoeiros, pois não per­deram tempo em informar ao rei de que Davi escondia-se no meio deles. Sempre um passo à frente, Davi partiu depressa para o deserto de Maom. Saul também chegou ao local, e por pouco não capturou o exército de Davi. Mas antes de prosseguir, teve de voltar para o norte, a fim de impedir uma invasão dos filisteus em seu território. Davi partiu para o oriente, até En- Gedi (Tel ej-Jurn), às margens do mar Morto.

Incansavelmente, depois de resolver o problema filisteu, Saul voltou à perseguição. Seguiu Davi até En-Gedi, mas desta vez quase perdeu sua própria vida, pois Davi estava em uma posição que poderia matá-lo, caso realmente o quisesse. Sem dúvida o instinto humano requeria que Davi se livrasse do rei e buscasse o trono. Porém, a percepção divina prevaleceu, porque Davi sabia que até que o próprio Jeová o removesse, Saul perma­neceria o ungido do Senhor. Ele também reconhecia sua unção divina, mas isso não significava muito no momento. Tudo o que ele sabia era que Deus, que o tinha escolhido, o colocaria na posição de poder no tempo dEle. Temporariamente atraído pela bondade e respeito manifestos por Davi, Saul decidiu retornar para casa. Davi também partiu de En-Gedi e foi para o deserto de Parã até o Carmelo (Kirmil), dois ou três quilômetros de Maom (Khirbet Ma'ín).

Davi ouvira falar de um homem muito rico chamado Nabal, que vi­via em Maom e era dono de muito gado e vastos territórios no Carmelo. De novo à beira da fome, Davi pediu àquele homem alimento para si e para seus homens, o que não era um pedido injusto se considerado o hábito da apropriação indevida comum aos indivíduos fora-da-lei. Além disso, com consentimento dos homens de Nabal, Davi protegeu os reba­nhos deste sem qualquer remuneração (1 Sm 25.15). Apesar disso, Nabal

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não concedeu o pedido e, não fosse pela intercessão da sábia e bela Abigail, mulher de Nabal, aquele homem rapidamente teria experimen­tado a ira de Davi. Abigail providenciou os suprimentos necessários. Quando Nabal ficou sabendo do que lhe iria acontecer, ficou tão choca­do que teve um ataque do coração e morreu. Davi, agradecido a Abigail e ao mesmo tempo envolvido por sua sabedoria e beleza, providenciou para que ela se tornasse sua esposa. Ele também se casou com Ainoã, de Jezreel (Khirbet Terrama?),58 uma cidade a sudoeste de Hebrom. A pri­meira mulher, Mical, tinha nesse tempo sido tomada de Davi e entregue a outro marido, Paltiel. Depois de Davi se tornar rei em Hebrom, Ainoã deu à luz seu primogênito, Amnon, e Abigail deu à luz seu segundo filho, Quileabe (2 Sm 3.2,3).

Mais uma vez os zifitas, que pareciam ter um incontrolável ódio de Davi, notificaram a Saul que seu inimigo estava entre eles, em Aquilá (lo­cal desconhecido). Quando Saul chegou ao local, Davi e seu sobrinho Absai (ver 1 Cr 2.13-16) penetraram furtivamente no acampamento do rei, du­rante a noite, e facilmente poderiam tê-lo matado juntamente com seu general de exército, Abner. Novamente Davi reconheceu a santidade do reinado em Israel e deixou que o destino de Saul fosse consumado pelas mãos de Yahweh (1 Sm 26.10). Quando Saul despertou e soube que ainda estava vivo pela misericórdia de Yahweh e seu servo Davi, confessou ou­tra vez seu pecado contra Davi e prometeu nunca mais buscar tirar a vida de Davi. Mas Davi sabia que estes eram apenas surtos de paranóia, e que em momento oportuno voltaria a caçá-lo.

O exílio de Davi na Filístia

Estava claro para Davi que seria apenas uma questão de tempo para que Saul o alcançasse, de forma que decidiu uma medida drástica - bus­cou asilo junto a Aquis, rei de Gate. Decerto alguns fatores contribuíram para um clima de mútua confiança entre Davi e o rei dos filisteus. Pri­meiro, não havia coisa melhor para Aquis do que a brecha irreparável entre Davi e Saul. Sem a presença de Davi, Saul ficava sem um comando militar forte o suficiente para eliminar os filisteus; sem Saul, Davi ficava sem uma base local para operar. Segundo, Davi se conduziu entre os filisteus de m odo que m ostrava não haver qualquer in teresse em prejudicá-los. Somente uma vez em seus anos de exílio, em Queila, lutou contra os filisteus, e assim mesmo foi uma medida defensiva. Terceiro,

58 Oxford Bible Atlas, p. 132.

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Davi deve ter comunicado a Aquis sua disposição para submeter-se ao comando dos filisteus em troca de proteção. Pode ser que tivesse prome­tido ao rei filisteu tornar o território de Judá um estado vassalo da Filístia depois que tomasse Hebrom. Existem fatos subseqüentes que parecem apontar para essa direção.

De qualquer maneira, Aquis recebeu Davi e seus homens com alegria, garantindo-lhe inclusive liberdade em Ziclague (Tel esh-Shari'ah).59 Davi morou nessa cidade por mais de um ano (ca. 1012-1011), deixando-a so­mente após a morte de Saul e sua ascensão ao trono de Judá. Durante esse tempo, combateu os gesuritas, girzitas e amalequitas no deserto. Median­te estratégias diplomáticas, trouxe os despojos das guerras para o rei Áquis, dizendo que vinham de Judá (1 Sm 27.10)! Não é de espantar que Áquis tenha visto em Davi um renegado de seu povo e um forte aliado dos filisteus. Davi estava provando ser um servo bastante devotado.

O disfarce rapidam ente assombrou Davi, que se viu lutando do lado errado no conflito, talvez o mais decisivo dentre as várias guerras tra­vadas entre filisteus e israelitas. Os filisteus tinham se reunido em Afeque para desferir o golpe mortal contra Israel. Aquis, é claro, insis­tiu para que Davi se juntasse a ele a aos demais reis em coup de grâce. Os outros quatro reis não estavam convencidos da lealdade de Davi e, de fato, achavam que ele m udaria de lado na hora mais renhida da guerra, unindo-se novamente a Saul. Com m uita relutância, Aquis teve de com unicar a Davi a decisão tomada pelos reis. Embora Davi tenha expressado com m uita sabedoria seu protesto, voltou para Ziclague bastante aliviado.

Enquanto isso, Israel já tinha se reunido em Gilboa (Jebel Fuqa'ah), uma montanha situada cerca de 11 ou 12 quilômetros ao sul de Suném (Sôlem). Aterrorizado pelo grande número de filisteus que vinham ao seu encon­tro, Saul recorreu a uma médium próximo a Endor, ao norte do monte Moriá. Tentou disfarçar-se, pois ele mesmo havia proibido tal prática (1 Sm 28.9), mas quando insistiu para que a mulher lhe chamasse Samuel dentre os mortos, ela imediatamente reconheceu que se tratava do rei. Apesar disso, ela continuou na descrição da aparição que Saul reconheceu ser o profeta Samuel. Pacientemente Samuel explicou mais uma vez que Saul, por causa da desobediência, perdera o direito de reinar, e que Davi reinaria em seu lugar. Além disso, Samuel afirmou que Saul e seus filhos morreriam naquele mesmo dia enquanto Israel cairia em desastrosa der­rota diante dos filisteus.

~ Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, p. 184.

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Na manhã seguinte, os filisteus partiram de Afeque e chegaram a Suném. Depois de uma batalha sangrenta, Israel viu-se em desvantagem e fugiu, porém Saul e seus filhos não conseguiram escapar. Quando tudo já estava perdido, e não havia mais como reverter a situação, Saul preferiu o suicídio a cair nas mãos dos filisteus (1 Sm 31.4). As pessoas abandonaram as cidades e vilarejos, deixando-os à mercê dos filisteus. No outro dia en­contraram os corpos de Saul e de seus filhos. Em uma brutal atitude de vingança, decapitaram o rei de Israel, tomaram sua armadura e levaram- na ao templo da deusa Astarote; por fim, amarraram seu corpo pelo lado de fora da muralha de Bete-Seã. Naquela noite, os homens de Jabes-Gileade, 19 quilômetros a sudeste de Bete-Seã, cruzaram o rio Jordão e resgataram os corpos de Saul e seus filhos. Depois de os queimarem, pois estavam completamente mutilados, enterraram os ossos em sua cidade. Assim, Saul voltou para a casa de seus ancestrais.

Após Davi ser despedido do serviço militar pelos príncipes filisteus, voltou para Ziclague e descobriu que a cidade estava em ruínas, e que sua família e a população local haviam sido levadas pelos amalequitas. Abiatar, o sacerdote, consultou o Senhor por Urim e Tumim, e entendeu que era vontade de Deus que Davi, acompanhado de seiscentos homens, partisse atrás do inimigo amalequita. Depois de quatro dias de viagem, cerca de duzentos homens de Davi estavam tão exaustos e famintos que preferi­ram ficar em Besor Ravine (Vadi Ghazzeh), uns 24 quilômetros ao sul de Ziclague. Os outros continuaram e encontraram um egípcio que havia sido abandonado pelos amalequitas que decidiu informar onde exatamente eles estavam, caso Davi lhe poupasse a vida. Os homens de Davi alcançaram e dizimaram os amalequitas, trazendo de volta suas famílias. Depois de di­vidir os despojos entre os quatrocentos que foram à peleja e os duzentos que não puderam continuar, Davi enviou uma parte do despojo para os anciãos de Judá, como um presente. Significativamente, a última cidade para a qual Davi enviou o presente foi Hebrom. Sua generosidade sincera serviu para pôr um fim na ingratidão daquele povo que em breve o ungi­ria como o seu rei.

Depois de três dias em Ziclague, Davi recebeu um amalequita fugitivo que tinha vindo do campo de guerra em Gilboa, trazendo a notícia acerca da morte de Saul e de seus filhos. O mensageiro declarou que ele próprio havia matado Saul, como um ato de misericórdia. Como evidência apre­sentou a Davi a coroa e o bracelete de Saul (2 Sm 1.1-10). O jovem, na verdade, não tinha matado Saul, mas era provavelmente uma testemu­

A morte de Saul

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nha. Imaginando ser o momento propício para ganhar o favor de Davi, declarou ter destruído pessoalmente aquele obstáculo à ascensão de Davi ao trono. Mas Davi não percebia assim o fato. Ele que, por duas vezes, havia evitado matar Saul por considerá-lo ungido do Senhor, jamais acei­taria o fato de que outra pessoa viesse a fazê-lo, ainda mais sendo um amalequita pagão! Imediatamente ordenou que o amalequita mentiroso fosse executado pelo crime que não havia cometido. Depois, em um dos mais expressivos lamentos em toda a literatura, Davi chorou pela alma de Saul e de Jônatas.

Mas a escritura se cumpriu. O reino de Saul chegou ao fim, exatamente como Samuel lhe havia dito. Davi ficou em uma encruzilhada. Não podia simplesmente subir a Gibeá e fazer-se rei, pois Saul tinha um filho sobre­vivente, Is-Bosete, que reivindicaria sem dúvida o direito de sucessão real. Por outro lado, havia forte pressão para Davi assumir o comando de Judá, um movimento que vinha crescendo fazia tempo e chegara ao ápice com a morte de Saul. Judá estava pronta para reconhecer o reinado de Davi, e a orientação clara de Yahweh indicava que o centro da autoridade estaria em Hebrom. Dessa forma, Davi partiu para Hebrom em 1011 a.C. e foi formalmente coroado rei de Judá (2 Sm 2.4).

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D A V I : 0 H E I N A 0 0 D A A L I A N Ç A

A falta de nacionalidade antes de Davi Davi em Hebrom

Diplomacia inicial Davi e Abner Rei de todo o Israel

Crônicas e história teológica Jerusalém , a capital O estabelecim ento do poder de Davi

O problema filisteu A construção do tabernáculo

O centro do culto antes de Jerusalém A razão para o atraso

Uma introdução à cronologia davídica

A falta de nacionalidade antes de Davi

O período de oitenta anos dos reinados de Davi e Salomão é em muitos aspectos a era de ouro da longa história de Israel. Até aquele ponto, mes­mo nos melhores anos de Saul, Israel dificilmente se denominou reino ou mesmo estado, porque ainda não havia um reconhecimento significativo de uma unidade política fundamental. Não porque houvesse um espírito teocrático em Israel, pois isto não havia sido de fato traduzido em algo além de um ideal teológico. Todo o peso do livro dos Juízes foi o lamento por não existir um rei em Israel; o povo nem mesmo via Deus como seu rei. Conseqüentemente, não havia unidade política.

A falta de nacionalidade que perdurou por aproximadamente 450 anos- desde o pacto no Sinai até a entronização de Davi em Hebrom - pode ser explicada de várias maneiras. Em primeiro lugar, por razões práticas, não era possível para as tribos nômades que estavam a caminho de Canaã existir em sentido nacional. Havia certamente uma coesão que os tornava uma federação, um reconhecimento de mesma ancestralidade e etnicismo, e bases e objetivos teológicos comuns. Havia também uma constituição à qual a comunidade e os indivíduos eram sujeitos. Mas não havia uma terra própria, e sem uma terra, nacionalidade é simplesmente um ideal.1

1 Quanto à terra ("espaço") ser uma necessidade fundamental para a nacionalidade, ver Walter Brueggemann, The Land (Philadelphia: Fortress, 1977), esp. pp. 28-44.

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D a v i : O R e in a d o da A lia n ç a 2 3 7

Durante o período de transição até a conquista (o princípio do século catorze), a identidade tribal ainda prevalecia. Todavia existia também o reconhecimento progressivo de que Israel era o povo de Deus, cuja inter- relação ultrapassa todas as diferenças tribais. Tal atitude permitiu que Josué unisse as tribos em um sentimento de cooperação e interesses comuns a fim de conquistar e subjugar as populações cananéias, e fazer pelo menos uma tentativa de ocupação da terra. Já havia sinais de independência na­quele período, conforme visto no pedido das tribos de Rúben, Gade e Manassés (Js 1.12-18). Mas, com sabedoria, Josué conseguiu manter a uni­dade, e o resultado foi que a confederação permaneceu intacta até o dia de sua morte.

Chamar Israel sob a liderança de Josué de nação, a despeito de tudo o que se tem dito, seria impróprio. Josué era mais um mediador da aliança e líder militar do que um político. A verdadeira autoridade estava nas mãos dos anciãos, que agiam apenas dentro do limite de seu campo de trabalho. Não havia uma cidade que servisse como capital, de onde a política naci­onal produzisse seus rumos, a não ser que alguém considere que Gilgal ou Siló fossem vistas dessa forma. O modo de operação parecia ser ad hoc. Qualquer emergência que precisasse de uma convocação intertribal era feita através da solicitação de Josué, sendo que algumas vezes ele não con­seguia apoio ou sucesso.

O período dos juizes, desde a morte de Josué (ca. 1366) até o reino de Saul (1051), deu origem a uma ocupação mais ou menos efetiva de alguns territórios, mas isso geralmente se acompanhava de uma desintegração da solidariedade das tribos. Os próprios juizes não eram políticos, e na maioria das vezes fizeram seu juizado em algumas regiões da terra. Mas eram os únicos líderes em uma escala nacional. Não havia também um Moisés ou um Josué que pudesse convocar as tribos para uma unidade de propósitos e ações. A função de ancião ainda existia entre o povo, mas raramente se vê um deles agindo de forma decisiva na liderança do povo. Aqueles anos, conforme registrado repetidamente, foram anos de anar­quia, quase uma quebra total da Lei e da ordem em todos os aspectos.

A principal razão para essa condição caótica, é claro, era a infidelidade para com a aliança. O povo, desde os líderes até os menos honrados, havia abandonado Yahweh e se envolvera em um sincretismo religioso e um paganismo ultrajante. De fato, esta foi a razão por que Israel fora discipli­nado por meio de vários inimigos, tais como os moabitas e midianitas (Jz 2.11-23). Mas havia outros fatores um pouco mais difíceis de ser identifi­cados, que não apenas encorajaram mas também aceleraram as tendênci­as em direção à divisão regional e decomposição nacional.

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A geografia obviamente era um deles, especialmente durante o perío­do formativo.2 O rio Jordão, por exemplo, forma uma divisão natural en­tre as tribos do oeste e do leste. Em certas partes do ano é quase impossí­vel cruzar o rio, e certamente uma maior intercomunicação era profunda­mente desestimulada em qualquer tempo. Talvez tenha sido por isso que Josué ficara preocupado quanto ao estabelecimento ao leste do Jordão (Js 22.13-20). Ele sabia que limites geográficos poderiam criar fronteiras psi­cológicas e até espirituais. Uma evidência da divisão entre as tribos do oeste e do leste pode ser vista na indiferença dos líderes do leste quanto ao pedido de Gideão, que consistia em que perseguissem os midianitas na­quelas terras (Jz 8.4-9). Jefté, um líder da Transjordânia, enfureceu os efraimitas: alegaram que foram convocados para participar da subjuga- ção dos amonitas (Jz 12.1-6). E interessante que, pelo tempo de Jefté (ca. 1100), já houvesse diferenças dialéticas entre as tribos do oeste e do leste (Jz 12.6).3 E, mesmo que tais diferenças não constituíssem necessariamen­te um antagonismo, o fato é que serviam para intensificá-lo.

Rupturas no corpo socio-político de Israel também são aparentes em toda parte. Uma das ocasiões mais nítidas é a história de Débora. Os cananeus tinham começado uma devastação nas tribos do norte da planí­cie de Jezreel. Em resposta, Débora solicitou apoio não apenas às tribos do norte, que mais sofriam com o problema, mas também às demais tribos de Israel, conforme registrado em seu cântico (Jz 5.12-18). Os resultados sim­plesmente desencorajavam. Não houve qualquer apoio das tribos do les­te, nem do sul de Jerusalém; apenas sinais de ajuda, que incluía também a sua própria tribo de Efraim. Se não houver aqui um reflexo de hostilidade aberta entre as tribos, pode-se ver pelo menos uma colossal indiferença entre elas.

Uma melhor visão das rivalidades regionais e tribais é obtida com uma atenção cuidadosa na história do levita e sua concubina (Jz 19-21). É um relato significativo por ser remoto, indicando que a ruptura não tardou a se manifestar, e por revelar uma tendência cismática, que se expressaria mais tarde em uma total divisão entre Israel e Judá.

Já foi proposto aqui que um dos propósitos da narrativa é chamar a atenção para um antagonismo entre Gibeá e Belém (ver p. 187). Gibeá,

2 A ligação entre geografia e história é evidente. Para uma importante discussão acerca da Síria-Palestina, ver o trabalho de George Adam Smith, The Historical Geography of the Holy Land (London: Hodder and Stoughton, 1900), pp. 43-59.

3 Sobre esse desenvolvimento surpreendente, ver Eduard Y. Kutscher, A History of the Hebrew Language (Jerusalem: Magnes, 1982), pp. 14-15.

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capital de Saul, obviamente representa a monarquia saulida, e Belém a davídica. O fato de o levita ser de Efraim prende essa tribo (e todas as outras do reino do norte) à controvérsia. A concubina havia sido humilha­da em Gibeá e deixada morta do lado de fora da casa onde o levita tinha passado a noite. O incidente não apenas provou a falta de hospitalidade e de respeito desde o princípio, mas também revelou uma total ausência de autoridade em Gibeá e em Benjamim. Para tornar pior a gravidade da situação, os anciãos de Benjamim recusaram-se a punir os malfeitores pelo crime, e chegaram ao ponto de pegar em armas para defender os crimino­sos. Mediante a expressa ordem de Yahweh, as outras tribos se uniram e pelejaram contra Benjamim, quase aniquilando-a. Além de tudo isso, mes­mo com as mulheres benjamitas mortas e a sobrevivência da tribo em pe­rigo, os israelitas recusaram-se a providenciar esposas para os poucos so­breviventes. Deram-lhes mulheres de Siló e Jabes-Gileade, da forma mais antiortodoxa já descrita.

E um fato que este terrível incidente ocorreu e foi registrado com inten­ção de mostrar a transgressão da lei em Israel na era dos juízes. Entretan­to, o episódio, destacado dentre muitos outros que poderiam servir igual­mente para ilustração, também foi incluído com propósito de explicar o mútuo antagonismo existente entre as famílias saulidas e davídicas, e a fragmentação política do reino mesmo nos tempos de Davi. A hostilidade entre Benjamim e Judá é aparente durante os primeiros anos do reinado de Davi. Ironicamente, durou até Benjamim ser absorvido pela tribo de Judá e tornar-se parte do reino do sul.

O surgimento da monarquia sob Saul fez pouco para curar a crescente brecha entre Judá e as tribos do norte. Durante o seu reinado, o abismo entre as tribos tomava proporções consideravelmente grandes. Por exem­plo, o historiador aponta que, quando Saul fez uma convocação geral para livrar Jabes-Gileade de Amom, trezentos mil homens vieram de Israel, mas apenas trinta mil de Judá (1 Sm 11.8). Quando realizou a campanha contra os amalequitas, Saul contou "duzentos mil homens de pé, e dez mil ho­mens de Judá" (1 Sm 15.4).4 Os números são reveladores, mostrando que Judá proveu um número bastante reduzido de soldados em comparação com Israel, um fato comprometedor para a própria Judá, uma vez que os amalequitas viveram por muitos anos em sua fronteira ao sul. Estaria Judá mostrando sinais de uma postura anti-Saul? Além disso, depois de Davi

4 Por causa dessa referência Ralph W. Klein conclui, de forma correta, que "é muito difícil afirmar que Judá foi, nalguma ocasião, completamente incorporado ao reino de Saul". (1 Samuel, Word Biblical Commentary [Waco: Word, 1983], p. 149).

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ter matado o gigante Golias, "os homens de Israel e Judá" perseguiram os filisteus (1 Sm 17.52) e, quando Davi foi colocado na corte de Saul, "todo o Israel e Judá amava a Davi" (1 Sm 18.16). Está claro que Israel e Judá eram tidos como duas entidades particulares que seguiam seus interesses sepa­radamente.

Davi em Hebrom

D iplom acia inicial

Que o reino de Davi teria de iniciar em Hebrom não devia causar sur­presa. Ele era da tribo de Judá, e construíra o caminho para o trono através de seu exílio em Judá, mostrando beneficência para com essa tribo naque­les dias. Reconhecia claramente que Judá era defacto um organismo políti­co, se não étnico em seu próprio direito. Além disso, ainda não havia che­gado o tempo para firmar sua autoridade em Israel, pois Saul tinha deixa­do um filho sobrevivente que, segundo os princípios da dinastia, o suce­deria. E ainda: Abner, primo de Saul, que no momento era a pessoa mais poderosa em Israel, opunha-se intensamente a Davi, assim como fazia todo o reino ao norte. Davi preferiu permanecer em Hebrom, onde esperaria pela direção divina a respeito de sua liderança em todo o Israel.

O que se seguiu durante sete anos em Hebrom foi uma verdadeira obra de arte de diplomacia governamental. Davi sabia que estava sendo visto por Israel e Judá como o inimigo de Saul, mas, logo que soube da morte do rei, compôs uma canção exaltando-o. Neste chamado Hino do Arco (2 Sm 1.19-27),5 o rei é descrito como "a glória" e "o poder". Segundo a canção de Davi, o rei foi aquele que tinha vestido Israel de roupas finas e vestidos caríssimos, e Israel tinha de lamentar a sua morte. Tal atitude, sem dúvida sincera, demonstrou aos outros que Davi considerava Saul em seu interi­or. Qualquer hostilidade que tenha existido vinha somente de um lado e estava fora do controle de Davi.

A seguir, Davi procurou ganhar o favor do povo de Jabes-Gileade, agra- decendo-lhe pelo gesto de bravura que manifestara ao resgatar os corpos

5 Acerca da autoridade do texto como da autoria de Davi, ver Masao Sekine, "Lyric Literature in the Davidic-Solomonic Period in the Light of the History of Israelite Literature," que faz uma análise da forma e conteúdo desses hinos. Em Studies in the Period of David and Solomon and Other Essays, editado por Tomoo Ishida (Winona Lake, Ind.: Eiserbrauns, 1983), pp. 2-4. Ver também David Noel Freedman, Pottery, Poetry and Prophecy (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1980), pp. 263-74.

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D a v / ; O R e in a d o da A l ia n ç a 2 4 1

de Saul e seus filhos, enterrando-os em sua própria cidade (2 Sm 2.4b-7). O êxito em sua atitude permitiria que Davi pusesse os pés no norte da Transjordânia, alcançando uma popularidade em larga escala na afastada porém importante região. Anos depois Davi retirou os ossos de Saul e Jônatas de Jabes-Gileade a fim de colocá-los na tumba dos pais, em Zelá (Khirbet Salah)6 de Benjamim (2 Sm 21.12-14).

Davi e A bner

O maior obstáculo para a expansão do domínio de Davi era Abner, pri­mo de Saul. No princípio do reinado de Saul, Abner serviu como coman­dante do exército (1 Sm 14.50). Foi ele quem conduziu Davi à presença de Saul após o combate com Golias (1 Sm 17.55-57) e que, juntamente com Davi, assentou-se à mesa do rei (1 Sm 20.25). Também ele foi alvo de zomba­ria depois que Davi passou por ele e Saul enquanto dormiam no deserto de Zife (1 Sm 26.5,14,15). Agora, com todas as lembranças em mente, Abner estava em uma grande posição para barganhar. Se não fosse capaz de subir ele próprio ao trono, no mínimo faria Davi padecer por isto.

Por cinco longos anos Davi permaneceu contente com seu pequeno rei­no em Judá. Ao norte, Israel estava envolto em uma série de tumultos insolúveis. Saul era morto e deixara um filho fraco para substituí-lo. Pri­meiramente chamado de Ish-Baal ("homem de Baal"), o jovem tornou-se conhecido por Is-Bosete ("homem da vergonha"),7 talvez um testemúnho da tendência sincretista de Saul. Aparentemente, ele não participou do combate em Gilboa, onde o pai e os irmãos perderam a vida, e agora pro­vava não ser capaz de ocupar o trono em Israel. Finalmente, o próprio Abner - talvez depois de ter vencido os filisteus, expelindo-os da terra - o tornou rei e fez-lhe de fantoche em Manaim (Tel edh-Dhahab el Gharbi),8 terra de Gileade. O reinado de Is-Bosete durou dois anos, e seu fim coinci­diu com a mudança de Davi de Hebrom para Jerusalém em 1004 a.C.

Não há dúvida de que Abner dava as ordens nesse reinado de aparên­cias, e os acontecimentos subseqüentes provam este fato. Primeiro, Abner

6 Conforme Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford University Press, 1984), p. 143.P. Kyle McCarter, Jr., II Samuel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1984), p. 86, sugere que o 'is registrado no texto massorético de Samuel é preferível ao 'es em 1 Crônicas 8.33 e 9.39. Araiz em todo caso deve ter sido 'is ("homem"). Os rolos de Qumran claramente apóiam essa posição.

5 Avraham Negev, ed., Archaeological Encyclopedia of the Holy Land (Englewood, N.J.: SBS, 1980), pp. 191-92.

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e seus homens foram para Gibeão, onde negociaram com Joabe, um repre­sentante de Davi, possivelmente para tratar da unificação dos dois reinos (2 Sm 2.12,13). Sem um acordo pacífico, Abner sugeriu que a questão fosse decidida em um confronto armado: cada lado escolheria doze homens para um combate corpo-a-corpo, o vencedor do qual assumiria a soberania de todo o povo. Os homens de Davi saíram vencedores e Abner teve de fugir com os inimigos em seu encalço. Infelizmente, Asael, irmão mais novo de Joabe, escolheu perseguir Abner, o guerreiro experiente que, em defesa própria, matou o jovem. Joabe e seu irmão Absai continuaram na perse­guição, mas Abner encontrou refúgio entre seus irmãos benjamitas, fican­do a salvo. Sua pergunta a Joabe na ocasião é bastante interessante: "Até quando te demorarás em ordenar ao povo que deixe de perseguir a seus irmãos?" (2 Sm 2.26). Não há talvez uma tentativa de paz aqui? Não esta­ria Abner à procura de reconciliação, já que era inevitável a tendência que conduzia Davi ao trono?

O historiador responde a estas perguntas enfatizando que, durante os sete anos que reinou em Hebrom, Davi fortalecia-se continuamente, ao passo que a dinastia saulida enfraquecia-se cada vez mais (2 Sm 3.1). Evidências do for­talecimento de Davi podem ser vistas na multiplicação de suas esposas e fi­lhos, uma prática comum aos monarcas do Oriente Médio, embora não san­cionada pela Lei bíblica. Além dos filhos de Abigail e Ainoã, Davi gerou Absalão de Maaca, Adonias de Hagite, Sefatias de Abital, e Itreão de Eglá. E importante observar Maaca, pois ela é identificada como filha de Talmai, rei de Gesur. É uma sugestão de que alguns casamentos de Davi foram realiza­dos com fins diplomáticos internacionais.9 Gesur aqui é provavelmente um reino que ficava ao leste do mar de Quinerete.10 Uma aliança com um reino desse tipo era extremamente importante para Davi, servindo-lhe de "esta­do tampão" entre Israel e os crescentes estados arameus do norte.

Proporcional à influência de Davi era a percepção de Abner de que somente ao lado de Davi poderia esperar algum futuro. Havia feito tudo para apoderar-se do trono - inclusive apossar-se da concubina de Saul - e mesmo assim fracassou. Passou a explorar os meios pelos quais usaria sua influência a fim de entregar Israel a Davi, assegurando pelo menos uma posição como a que tinha com Saul. O próprio envolvimento com Rispá,

9 Jon D. Levenson e Baruch Halpern, "The Political Import of David's Marriages," JBL 99(1980): 507-18.

10 Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 38. De­pois que Absalão matou Amnon, fugiu para Gesur, a terra natal de sua mãe (2 Sm 13.37,38).

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concubina de Saul, providenciou a ocasião. Depois de propriamente ser repreendido por Is-Bosete por tomar um poder que não lhe era devido, Abner voltou-se contra ele, e justificando-se negou qualquer ambição pes­soal. Mas, por vingança, deu vários passos em favor do reino de Davi (2 Sm 3.6-11).

Inicialmente, Abner enviou uma delegação até Davi oferecendo-lhe uma proposta de unificação - uma aliança que garantiria uma transferência pacífica da dinastia saulida para a davídica. As intenções de Abner po­dem apenas ser sugeridas, mas certamente ele esperava nada menos que o comando supremo do exército de Israel. Davi aceitou a proposta com grande entusiasmo, mas, como sinal da honestidade de Abner, exigiu de volta sua primeira mulher, Mical, filha de Saul. Isto significaria a unifica­ção das duas famílias reais.

Depois de Mical retornar para Davi, Abner convenceu os anciãos de Israel, particularmente os da casa de Benjamim, de que seria mais sábio submeter-se ao reinado de Davi. Contudo, o apelo não era nada teológico, mas puramente pragmático - Davi era capaz de libertar Israel de seus inimigos. A falta da apreciação de Davi como o rei messiânico, o represen­tante eleito de Yahweh na terra, foi um sério defeito do ponto de vista político de Israel. Para Abner, Davi era um rei conforme os reis das outras nações.

De acordo com suas palavras, Abner voltou para Davi em Hebrom com sólido apoio dos anciãos de Israel. Ambos decidiram então fazer uma ceri­mônia oficial de coroação, em que todo o Israel prometeria lealdade ao novo rei. Antes de serem definidos os detalhes da festividade, Abner foi cruelmente assassinado por joabe e Asael, seu irmão. E provável que Joabe tenha visto na aliança uma ameaça à sua própria posição de comandante militar.

Rei de todo o Israel

Davi agora estava com um problema potencialmente devastador, que ameaçava tudo o que havia sido construído em favor da reunificação do reino. Certamente os anciãos de Israel julgariam que o assassinato de Abner havia sido ordenado por Davi, a fim de remover o último obstáculo ao poder.11 Para desfazer imediatamente a impressão, Davi proclamou um

i: James C. Vanderkam tenta mostrar que os assassinatos de Abner e Is-Bosete foram uma conspiração armada pelo próprio Davi ("Davidic Complicity in the Deaths of Abner and Eshbaal: A Historical and Redactional Study," JBL 99 [1980]: 521-39). Essa tese ba-

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dia nacional de lamento e sepultamento do general Abner em Hebrom, conferindo-lhe todas as honrarias merecidas. O lamento de Davi foi tão sincero que Israel e Judá o aceitaram de imediato, isentando-o de qual­quer relação com o crime (2 Sm 3.36-39).

Um sentimento de instabilidade logo correu por Israel, e medidas enér­gicas precisariam ser tomadas a fim de evitar a anulação do acordo feito entre Davi e Abner. Então, dois assassinos partiram para Maanaim e ma­taram Is-Bosete enquanto este dormia à tarde.12 Levando sua cabeça como prova, partiram para Davi em Hebrom e anunciaram que finalmente o caminho estava livre para Davi assumir o trono de Saul. Temeroso de que seu nome fosse envolvido nessa barbaridade, Davi ordenou sem detença que os matadores fossem executados e seus corpos pendurados publica­mente em Hebrom. Tomou a cabeça de Is-Bosete e enterrou-a na sepultura de Abner. Esperava deixar claro que era a eleição divina e não ambição pessoal que o estabelecia no trono de Saul.

Sem candidato à sucessão de Saul no trono, os anciãos implementaram os termos do tratado estabelecido entre Abner e Davi, favorecendo o rei­nado para Davi. Juntaram-se todos em Hebrom, uma demonstração clara de submissão e boas intenções, reconhecendo ali os direitos de Davi ao trono por causa de sua ligação familiar, do registro como herói de guerra e, por último, pela escolha divina. A cerimônia de coroação seguiu a ceri­mônia da aliança, cujo propósito era permitir que o rei fizesse um pacto com o povo e com Yahweh, o verdadeiro soberano.

Crônicas e história teológica

Neste ponto, o primeiro livro das Crônicas inicia um relato paralelo da história de Israel. O propósito do livro, de autoria desconhecida, é apre­sentar a história da perspectiva da dinastia davídica. Não que o reino do norte seja sobrepujado ou considerado de forma negativa, mas apenas Judá,

seia-se em uma alegação sem fundamento de que a narrativa original incriminava o rei Davi, mas posteriormente foi profundamente modificada para beneficiar o partido pró- davídico, de forma que sua cumplicidade é praticamente impossível de ser detectada.

12 Os assassinos são identificados como benjamitas, habitantes de Beerote, situada na fron­teira do território dos filisteus. Visto que os beerotitas aparentemente tiveram de fugir de sua tribo natal num determinado tempo passado (2 Sm 4.2b-3), pode ser que Saul os tivesse perseguido (cf. 2 Sm 21.1,2). O assassinato de Is-Bosete pode ter sido um ato de vingança. Por outro lado, Hans W. Hertzberg conjectura que a expulsão dos beerotitas seguiu o assassinato de Is-Bosete (I & II Samuel [Philadelphia: Westminster, 1964], pp. 263-64).

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a tribo messiânica de Davi, está em destaque.13 Às vezes a narrativa omite alguns fatos que poderiam ser embaraçosos para Davi e sua dinastia - o caso com Bate-Seba é o exemplo mais evidente - mas tais omissões não necessariamente implicam em que o cronista seja fanaticamente leal a Davi, reescrevendo a história de modo que se conform e ao partido davídico. Há incidentes suficientemente embaraçosos para se descartar tal opinião. Na verdade, 1 Crônicas é uma história que evita as repeti­ções de fatos já bem conhecidos em 2 Samuel, buscando recontar os fei­tos de Davi que foram fundamentais para a intenção peculiar do cronis­ta. Ele está primeiramente interessado em realçar os aspectos do culto no reino de Davi; ou seja, mostrar que o rei messiânico também exerce a função de sacerdote ungido de Yahweh. Nesse caso, o cronista é mais um teólogo do que um contador de histórias. Interessa-se mais pelo sig­nificado do reino de Davi do que pelos processos políticos e militares que possibilitaram o seu estabelecimento.14

O propósito do cronista é claro desde o princípio, pois não faz referên­cia à juventude de Davi ou à sua unção, fatos considerados bem conheci­dos. Ele inicia com a história da partida dos israelitas a Hebrom para cons­tituir Davi rei. Não há sequer uma palavra acerca dos sete anos de interva­lo entre a morte de Saul e a ascensão de Davi. Vendo a ascensão como um fait accom pli, o historiador enfatiza apenas que foi Yahweh quem permitiu a morte de Saul e concedeu o reino a Davi (1 Cr 10.14).

Por outro lado, o cronista é cuidadoso em indicar que já nos anos do exílio de Davi havia aqueles em Israel e em Judá que reconheciam nele uma pessoa escolhida por Deus. Isso está claramente registrado em 1 Crô­nicas 12.1,2 - parentes de Saul estavam no meio dos que se juntaram a Davi enquanto este morava em Ziclague. Outros vieram de Gade, na Transjordânia, e ainda outros eram benjamitas não-saulidas (1 Cr 12.16,17). A princípio Davi os via com alguma desconfiança, mas depois de lhe pro­meterem lealdade, recebeu-os com alegria. Além disso, quando Davi veio com os filisteus combater Saul em Gilboa, alguns israelitas que haviam

13 Uma interpretação excelente da forma e função do trabalho de um cronista pode ser encontrada em Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture (Philadelphia: Fortress, 1979), pp. 639-55. Para uma avaliação do livro das Crônicas como um trabalho verdadeiramente histórico, ver Sara Japhet, "The Historical Reliability of Chronicles," JSOT 33 (1985): 83-107.

14 James D. Newsome, Jr., afirma que. o elemento profético é forte no livro das Crônicas, servindo para ligar o culto com a monarquia, provendo um caminho para a reinstituição da adoração no templo pós-exílico e restauração da casa de Davi ("Toward a New Understanding of the Chronicler and His Purposes," JBL 94 [1975]: 216).

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desertado de Manassés juntaram-se a ele (1 Cr 12.19-22). Fica claro que as sementes da reunificação de Israel e Judá já tinham sido plantadas antes de Abner iniciar as negociações formais para seu estabelecimento.

Mais evidência do desejo de mostrar que o reino de Davi foi recebido com entusiasmo por toda a nação está no embelezamento de 2 Samuel acerca da delegação enviada a Hebrom. Enquanto 2 Samuel apenas relata que todas as tribos vieram ao rei em Hebrom (5.1-3), o cronista relaciona cada tribo por seu nome e o seu número total de homens enviados (1 Cr 12.23-40). Incluídos estavam três mil benjamitas, ainda que tivessem per­manecido leais a Saul até o último momento. Para descrever o total apoio a Davi, o narrador informa que as tribos mais distantes não foram remis- sas em comparecer, e que juntamente com as outras vieram carregadas com todo tipo de provisões. Por três dias a cerimônia de coroação foi se­guida de muita festividade e alegria. Sem qualquer dúvida, o reinado de Davi sobre Israel foi sentido como uma cura que traria benefícios indizí- veis para o povo de Deus. Finalmente chegara o momento em que o ungi­do de Deus, esperado por tanto tempo, viria a reinar. Mas a história subse­qüente revelaria que a pompa da ocasião gloriosa era apenas uma fina pátina sobre uma estrutura política que não conseguia se desvincular do faccionismo intertribal.

Jerusalém, a capital

Enfrentando logo a realidade, Davi tratou de mudar a localização da capital depois da coroação. Hebrom serviu-lhe apenas enquanto reinava sobre Judá, mas agora, por diversas razões, não seria apropriada. Primei­ro, a cidade estava situada muito ao sul e quase inacessível aos habitantes da Galiléia e da Transjordânia. Segundo, era uma cidade tão importante na história de Judá que representava praticamente a tribo. Seria impossí­vel esperar que o restante de Israel desenvolvesse alguma afeição para com uma cidade fortemente associada à alienação do passado. Terceiro, Hebrom era uma cidade de levitas; embora não fosse um fator negativo, é certo que tenderia a corroer a neutralidade nos assuntos religiosos.

Por outro lado, Davi percebeu que não poderia estabelecer a capital muito para o norte, por exemplo em Siquém ou Siló, porque isto poderia ser interpretado por Judá como uma traição aberta. Certamente não po­deria nem pensar em estabelecê-la em Gibeá, porque além de ter sido a cidade de Saul, lembrava tudo o que trazia repulsa a Judá. A tarefa de Davi era clara: encontrar um local central que fosse, ao mesmo tempo, relativamente neutro. Jerusalém, de longe, era a melhor escolha - a mai-

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or, mais impressiva e mais estrategicamente situada cidade em toda a região central.15

Pelo menos por dois mil anos antes de Davi, o monte Ofel tinha sido chamado por vários nomes, sendo o mais popular Jerusalém ou alguma forma correlata. A cidade já existia nos tempos de Abraão, o que é confir­

15 G.W. Ahlstrõm oferece uma sugestão interessante, mas biblicamente indefensável. Ele afirma que Davi era um jebuseu para quem Jerusalém não era uma cidade neutra. Isto supostamente explicaria a facilidade com que ocupou a cidade, além de alistar como seu sacerdote o jebuseu Zadoque ("Was David a Jebusite Subject?" ZAW 92 [1980]: 285- 87). George E. Mendenhall não vai tão longe, mas sugere que Davi se apoderou de Jeru­salém e de outras cidades cananéias a fim de que pudessem prover uma infra-estrutura urbana necessária para conduzir Israel de seu estágio tribal para um estado monárquico digno. Porém, ao fazer isso, o rei Davi acabou levando o povo a uma paganização de seus ideais teocráticos ("The Monarchy," Interp. 29 [1975]: 161-66).

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mado pelos textos de Ebla16 e, sem dúvida, pela referência a Salem, a cida­de do rei-sacerdote Melquisedeque (Gn 14.18).17 As Cartas de Amarna reconhecem Jerusalém como a principal de todas as cidades de Canaã da­quele período.18 Josué e os israelitas guerrearam contra Adoni Zedeque, de Jerusalém, durante a campanha para o sul (Js 10). Se naquele tempo a cidade não conseguiu ser tomada por Josué, é certo que veio a ser con­quistada após a sua morte (Jz 1.8); apesar de a população de jebuseus ter recebido permissão para permanecer na cidade, realmente a conquista­ram pouco tempo depois (Jz 1.21). A cidade viveu praticamente sem se importar com a dominação israelita, até que Davi finalmente a reconquis­tou e fez dela sua capital.

A longa história da independência de Jerusalém , como uma ilha no mar de israelitas, pode ser praticam ente atribuída à sua situação geo­gráfica, que lhe dava grandes condições de defesa. Esta vantagem e as citadas anteriorm ente chamaram a atenção de Davi. Mas também in­cluía um problema real. Como tomariam a cidade sem um longo e cus­toso cerco?

Como era característico de todas as cidades muradas de Canaã, Jerusa­lém tinha uma passagem vertical de águas conectada a um túnel ligado a uma fonte subterrânea fora das muralhas.19 Sendo o sistema necessário para a sobrevivência de uma cidade cercada, também apresentava o mai­or perigo, já que providenciava acesso para qualquer um que achasse a entrada. De alguma forma Joabe encontrou o túnel pelo lado de fora e, através dele, atacou a cidade. Embora em descrédito por causa da morte de Abner, ele foi honrado como herói por ter aberto Jerusalém para Davi efetuar a conquista. Israel possuiu o pequeno monte de Ofel, que veio a ser conhecido como Sião ou Cidade de Davi. Davi construiu (ou recons­truiu) as fortalezas para o oriente (i.e., o Milo), expandiu as cidades, mul­tiplicando dessa forma seu poder defensivo.20

16 Jan Jozef Simons, Jerusalem in the Old Testament (Leiden: E.J. Brill, 1952).17 Gordon J. Wenham, "The Religion of the Patriarchs," em Essays on the Patriarchal

Narratives, editado por A.R. Millard e D.J. Wiseman (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), p. 195.

18 Charles F. Pfeiffer, Tel El Amarna and the Bible (Grand Rapids: Baker, 1963), pp. 50-51; Roland de Vaux, The Early History of Israel (Philadelphia: Westminster, 1978), pp. 103-4.

19 Kathleen Kenyon, Jerusalem (New York: McGraw-Hill, 1967), pp. 19-31. Quanto à natu­reza e ao curso desse sistema, ver Arie Issar, "The Evolution of the Ancient Water Supply System in the Region of Jerusalem," IEJ 26 (1976): 131-33.

20 Kenyon, Jerusalem, pp. 49-51.

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O estabelecimento do poder de Davi

Neste ponto em 2 Samuel, o narrador deixa a estrutura estritamentecronológica e passa a fazer uma descrição da história de Davi.21 Isso está

| mais definido no início, pelo fato de os ataques dos filisteus contra Davi\ serem mencionados somente depois das notas referentes ao seu programaf de construções e crescimento de sua família. O fato de o cronista seguir o! mesmo arranjo significa apenas que ele se utilizou de 2 Samuel como umi modelo nessa situação especial.

O problem a filisteu

A pista sobre a prioridade dada aos episódios relativos aos filisteus encontra-se no fato de terem buscado Davi após este ser ungido rei de Israel (2 Sm 5.17). Isto aconteceu imediatamente depois da cerimônia de coroação em Hebrom, e antes de Davi partir para a conquista de Jerusa­lém. Parece que o objetivo dos filisteus era cortar a reunificação de Israel e Judá. Por cerca de dez anos os filisteus acreditaram que Davi liderava um movimento anti-Israel, que não beneficiava outro senão os filisteus. Saul havia sido um inimigo inveterado desde que se tornara rei e, embora os filisteus tivessem mantido um ataque contínuo e sistemático, a verdade é que jamais conseguiram estabelecer uma base no interior do território israelita. Na verdade, Saul os repeliu, forçando-os a subsistir apenas nos limites costeiros. Mas com o exílio de Davi a situação mudou. Os filisteus começaram a olhar Davi, que uma vez havia sido o campeão de Israel e o

21 O que segue é um abandono radical da abordagem tradicional da história de Davi, um desvio que, apesar de tudo, parece acomodar melhor os dados bíblicos e as evidências documentais extrabíblicas. Aqui se propõe que o historiador não estava muito interes­sado em uma seqüência cronológica conforme estava em fazer os principais feitos de Davi se acomodarem em um tipo de mosaico. Analogias antigas quanto a esse método historiográfico podem ser encontradas em registros da Mesopotâmia. Ver Hayim Tadmor, "The Inscriptions of Nabunaid: Historical Arrangement," AS 16 (Chicago: University of Chicago Press, 1965), pp. 351-63; Mordechai Cogan, "Tendentious Chronology in the Book of Chronicles," Zion 45 (1980): 165-72 (Hebrew); idem, "Omens and Ideology in the Babylon Inscription of Esarhaddon," em History, Historiography and Interpretation, editado por Hayim Tadmor e Moshe Weinfeld (Jerusalem: Magnes, 1984), pp. 85-87; idem, "The Chronicler's Use of Chronology as Illuminated by Neo-Assyrian Royal Inscriptions," em Empirical Models for Biblical Criticism, editado por Jeffrey H. Tigay (Philadelphia: University of Pensylvania Press, 1985), pp. 205-7; G. Frame, "Another Babylonian Eponym," RA 76 (1982): 157,159.

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castigo dos filisteus, como um aliado potencial em sua guerra contra Isra­el. E verdade que Davi não tomou uma atitude ofensiva contra Saul, mas ele próprio era politicamente um fator divisor que drenava as forças de Saul, as quais estariam, de outra maneira, direcionadas contra os filisteus. E provável que os filisteus tenham conseguido maior controle da região de Jezreel enquanto Saul estava ocupado com Davi no sul.

Em todo caso, Davi não fez nada para desestimular as esperanças dos filisteus. Deu provas de que estava interessado em aproximar-se deles e afastar-se de Saul. Isto se expressou na forma da aliança feita com Áquis, de Gate, na qual se fez de vassalo dos filisteus (1 Sm 27.5-7).22 Assim Davi garantiu um território inalienável (Ziclague) e segurança contra Saul. O pacto também o obrigava a combater as guerras dos filisteus, um requisi­to que quase o levou a lutar contra seu próprio povo.

Parece quase certo que, na ocasião da morte de Saul, Davi retomou a Judá ainda na condição de servo de Áquis, embora também estivesse na condição de rei de Judá em potencial. Estava claro para os filisteus que Davi gozava de uma enorme popularidade entre os habitantes de Judá e, semelhantemente, que os moradores de Israel ainda o tinham como um inimigo. Seria extrema­mente vantajoso para os filisteus que as desavenças entre Judá e Israel conti­nuassem a existir, ficando assim divididos, de forma que Davi se tornasse o cabeça de um estado que, nominalmente, estaria sob o domínio dos filisteus. Davi, é claro, queria manter a aliança fictícia com os filisteus, já que tinha o problema da sucessão real no norte. Pode-se imaginar que Davi tenha se es­forçado para manter as negociações com Abner em total sigilo.

Não é possível provar se tal hipótese do relacionamento entre Davi e os filisteus é correta ou não, mas o fato é que os filisteus não perturbaram Davi até o momento em que souberam da sua coroação em todo o Israel. Somente então, e tarde demais, descobriram que seu amigo tinha sido um truque para alcançar o objetivo final - a unificação de Israel. Lançaram-se então em um ataque contra Davi em Refaim (el-Buqei'a), um vale situado pouco ao sul de Jerusalém. A batalha está descrita em 2 Samuel 23, onde o narrador informa que Davi fez da caverna de Adulão sua base, enquanto os filisteus estavam entrincheirados em Belém, 24 quilômetros acima do vale em direção nordeste.23 Na ocasião, três dos heróis de Davi arriscaram

22 P. Kyle McCarter, Jr., I Samuel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1980), pp. 414-15.

23 Isso é o que dá base para a teoria de que o ataque dos filisteus aconteceu antes que Davi cercasse a cidade de Jerusalém, pois, por que ele estaria em Adulão se já estava moran­do em Jerusalém? 2 Samuel 5.17 diz que os filisteus "subiram... a procura dele", ou seja, na caverna de Adulão (cf. 2 Sm 23.13,14).

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suas vidas para roubar água para o rei tirada da fonte próxima ao portão. Como os filisteus chegaram a Belém e como foram desalojados, não está especificado. Contudo, somos informados de que Davi conseguiu vencê- los em Baal-Perazim (talvez Sheikh Bedr).24

Audaciosos, os filisteus partiram novamente para lutar no vale de Refaim, mas outra vez foram derrotados. Davi agora perseverou em ex­pulsar os filisteus não apenas da região sul e sudoeste de Jerusalém, mas também do norte e do oeste. Portanto, conseguiu isolar Jerusalém da ame­aça filistéia de invasão, e isto facilitou em seguida a tomada da cidade do domínio dos jebuseus.

A construção do tabernáculo

Embora seja im possível a precisão cronológica, nada é virtualm ente conhecido acerca dos primeiros anos de Davi em Jerusalém . As longas narrativas que seguem a tomada da cidade são baseadas em um breve relato de suas atividade de construção na cidade, um projeto realizado por arquitetos e construtores fenícios sob as ordens de Hirão, rei de Tiro. Hirão (ou Ahiran) era filho de Abibaal e reinou em Tiro de 980 a 947 .25 Esse rei foi contemporâneo de Davi (1011-971) e Salomão (971- 931), embora apenas na últim a década de Davi. Os dados indicam que o programa de edificações de Davi deve ter ocorrido no final de seu reinado, e não no princípio .26 Os últimos projetos incluíram o taber-

24 Proposto com alguma hesitação no Oxford Bible Atlas, p. 123.25 Frank M. Cross, "An Interpretation of the Nora Stone," BASOR 208 (1972): 17, n. 11. Essas

datas são uma variação de outras apresentadas por estudiosos. Mas uma vez que estão sempre variando paralelamente com o reinado de Davi, os dez anos são constantes e o argumento desenvolvido aqui não é afetado. Ver William F. Albright, Archaeology and the Religion of Israel, 3ed. (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1969), p. 128 (969-936); John Bright, A History of Israel, 3ed. (Philadelphia: Westminster, 1981), p. 204 (969-936); H. Jacob Katzenstein, The History of Tyre (Jerusalém: Schocken Institute for Jewish Research, 1973), p. 82 (ca. 970 + 34 anos); Benjamim Mazar, "The Era of David and Solomon," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, The Age of the Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalém: Massada, 1979), p. 90.

26 Tal conclusão é tão diferente da interpretação tradicional que todos as tentativas de desfazê-la têm sido propostas. Bright (History, p. 204), reconhecendo que os reinados de Davi e Hirão se sobrepuseram por apenas alguns anos, sugere que o tratado descrito em 2 Samuel 5.11,12 possa ter sido entre Davi e Abibaal, pai de Hirão. J. Alberto Soggin admite que existe uma sobreposição bastante limitada, e que não existe evidências de que o tratado tenha sido feito com Abibaal ou com um outro Hirão. Sua conclusão é que "as fontes são muito confusas quando se trata de cronologia" (A History of Ancient

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náculo, edificado sobre o monte Sião, pois o cronista diz claramente que foi preparado somente depois que Davi edificou casas para si (1 Cr 15.1). A arca da aliança, então, deve ter retornado para a cidade de Je­rusalém somente nos últim os anos de Davi, já que o tabernáculo foi construído com o expresso propósito de guardá-la. E certo também que o desejo de Davi de construir um templo deve ter surgido durante esse período.

Essa teoria contesta a visão tradicional do reinado de Davi, além de levantar sérios problemas que precisam ser resolvidos satisfatoriamente caso seja digna de crédito. Primeiro, o fato de os escritores de Samuel e Crônicas parecerem sugerir que a arca foi trazida para Jerusalém imedia­tamente após a cidade ter se tornado capital de Israel, não deve ser enten­dido de forma estrita. E fácil demonstrar que os historiógrafos de Israel nem sempre estiveram preocupados com dados cronológicos precisos.27 Uma objeção ainda mais séria é a que diz ser pouco provável que Davi tenha esperado vinte e cinco anos para tornar Jerusalém o seu local de governo e o centro de culto nacional. Onde Israel se reuniu durante todos esses anos para adorar?

Israel [Philadelphia: Westminster, 1984], p. 56). Porém, visto que todos os estudiosos concordam que Hirão foi contemporâneo de Davi apenas em seus últimos dez anos, então por que o tratado e o programa de construções não podem ser encaixados nesse período (ca. 980)? É preciso ter em mente que Hirão não podia estar reinando durante os primeiros anos do reinado de Davi em Jerusalém (ca. 1004-1000), pois, uma vez que seu reinado durou trinta e três anos, não haveria como ainda estar vivo durante os anos do rei Salomão (971-931); no máximo já teria morrido por volta de 970. O templo de Salomão foi construído pelos engenheiros de Hirão em 966 (1 Rs 6.1) e, segundo os registros, este rei ainda estava reinando no décimo segundo ano de Salomão (ca. 951; 1 Rs 9.10-14). E possível sugerir que a data mais remota para o início do reinado de Hirão foi 984, segundo essa linha de raciocínio. O ano 980, então, parece ser uma opinião bastante sensata. Herbert Donner desfaz o problema de Davi e Hirão dizendo que a referência de 2 Samuel 5.11 não é histórica, pois fala de um relacionamento que na ver­dade existiu entre Hirão e Salomão ("Israel und Tyrus in Zeitalter Davids und Salomos," JNSL 10 [1982]; 43-52).

27 Cogan, "Chronicler's Use of Chronology," em Empirical Modles, editado por Jeffrey H. Tigay, pp. 197-209. Hayim Tadmor tem demonstrado que era muito comum nas inscri­ções reais dos assírios encontrar registros indicando que as construções nos templos e restaurações eram feitas no primeiro ano daquele reinado, quando, na realidade, as obras tinham acontecido muitos anos depois que o rei havia assumido o trono ("History and Ideology in the Assyrian Royal Inscriptions," em Assyrian Royal Inscriptions: New Horizons in Literary, Ideological, and Histocial Analysis, editado por F.M. Fales [Roma: Instituto per L'Oriente, 1981], pp. 21-23).

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O centro do culto antes de Jerusalém

Infelizmente há pouca informação acerca do culto nos primeiros anos de Davi, e mesmo dos anos após a juventude do profeta Samuel. O santuário central de Siló tinha se deteriorado moral e espiritualmente, como está claro nas histórias de Samuel, até que a arca foi capturada pelos filisteus por volta de 1104, e Siló abandonada pouco tempo depois (ver p. 176). A arca ficou em Quireate-Jearim depois de voltar da Filístia, e de lá Davi a conduziu para a cidade de Jerusalém. Por outro lado, o tabernáculo estava, pelo menos por um tempo, situado em Nobe, onde um descendente de Eli, chamado Aimeleque, era o sumo sacerdote. Esta é uma afirmação razoável à luz da referência explícita aos pães da proposição dados a Davi (1 Sm 21.4) e à designação de Nobe como "a cidade dos sacerdotes" (1 Sm 22.19).

Samuel nesse tempo havia se afastado do tabernáculo, passando a ofe­recer sacrifícios em lugares sagrados e nos altos das montanhas.28 Será que isso implica em que, nos dias de Samuel, o tabernáculo já não mais existia por haver sido destruído em Siló? A luz das informações nas Escri­turas, que narram o encontro de Davi com Aimeleque, pode-se dizer cate­goricamente não. A razão do afastamento de Samuel do santuário central está no fato de Saul ter-se apropriado dele. Depois que Yahweh rejeitou definitivamente Saul, Samuel procurou fazer o mesmo, rejeitando tudo o que estava associado a Saul, inclusive o tabernáculo (1 Sm 15.34,35).

Tem-se procurado informações precisas acerca do serviço de culto nos dias de Saul, mas pouco é encontrado. Entretanto, está claro que havia um centro religioso de adoração instalado em algum lugar ou próximo do cen­tro político, em Gibeá. Uma possibilidade é Mispa, que se localizava cerca de oito quilômetros ao norte da capital. Samuel ofereceu sacrifícios a Deus naquela cidade (1 Sm 7.9), embora isso não implique, necessariamente, na presença do tabernáculo. Foi naquela cidade que Samuel intercedeu a Yahweh em favor do povo, para que Ele lhes concedesse um rei (1 Sm 10.17- 24). Naqueles dias era costume consultar o Senhor usando o éfode sacerdo­tal, que era na verdade um artigo intimamente ligado com o tabernáculo. Até mesmo a forma como se deu a escolha de Saul - uma técnica binária sim-ou-não - sugere o lançar de sorte sagrada feito pelos sacerdotes.29

:s Samuel estava particularmente ligado com Mispa (1 Sm 7.5; 10.17), Gilgal (1 Sm 10.8; 11.14) e Ramá (1 Sm 8.4; 15.34; 16.13), embora não haja evidências de atividade religiosa e de culto em Ramá.

29 A linguagem da passagem "Saul... foi escolhido" é uma reminiscência da descrição do processo pelo qual o culpado Acã "foi descoberto" (Js 7.16-19), um processo que estava ligado ao método de seleção divina (Js 7.14) e da presença de Yahweh (Js 7.23). Que o

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Outra possibilidade, e provavelmente a mais real, é que o culto estives­se centrado em Gilgal. Esta satisfaz em muitos aspectos, já que durante os anos da conquista a cidade serviu a esse propósito (Js 5.10; 9.6-15). Além disso, tanto no episódio em que Saul ofereceu sacrifícios ilegalmente quan­do suas tropas eram pressionadas pelos filisteus (1 Sm 13.8-10), quanto na ocasião em que decidiu poupar os rebanhos dos amalequitas para oferecê- los em sacrifício a Yahweh (1 Sm 15.10-15), o local registrado foi Gilgal, que no primeiro caso era o local que Samuel havia escolhido para sacrifi­car a Deus (1 Sm 10.8). Saul, na realidade, estava certo de ir para Gilgal buscar Yahweh, mas errou gravemente em arrogar-se o direito de servir como oficiante da cerimônia.

Seja Mispa ou Gilgal o local do tabernáculo, o fato é que, depois de Saul ter sido rejeitado, deixou de ser. Parece que o local passou a funcio­nar em uma região próxima a Jerusalém, provavelmente Nobe, pelo me­nos desde os tempos em que Davi matara o gigante Golias (ca. 1027). Isso fica subentendido pelo fato de que Davi tomou a cabeça de Golias e talvez sua espada, e levou-as para Jerusalém (1 Sm 17.54). Mais tarde, Davi readquiriu a espada de Golias em Nobe (1 Sm 21.9), um vilarejo situado do outro lado do Quidron da banda de Jerusalém, considerada parte da Jerusalém maior. Por razões desconhecidas, Saul autorizou, ou pelo pelos permitiu, que o tabernáculo fosse erigido em Nobe, ficando bem próximo do monte Sião, onde Davi mais tarde estabeleceu seu pró­prio santuário.

O tabernáculo permaneceu em Nobe até que Saul, enfurecido com os sacerdotes por terem acolhido Davi, destruiu a cidade, e evidentemente moveu o tabernáculo para outro lugar (1 Sm 22.11-19). Pode ser que o tenha deslocado para a cidade de Gibeão, cerca de cinco a oito quilôme­tros a noroeste de Gibeá, pois quando o tabernáculo é novamente citado (durante o reinado de Davi), está naquela cidade (1 Cr 16.39; 21.29). E mais tarde, Salomão foi até Gibeão adorar Yahweh no tabernáculo de Moisés, localizado no grande alto (1 Rs 3.4,5; 2 Cr 1.3-6). O porquê de Salomão ter-se dirigido àquele tabernáculo e não ao tabernáculo edificado por Davi no monte Sião não está claro, mas no momento não é relevante. Contudo, é provável que o santuário de Davi, mesmo contendo a arca da aliança, fosse considerado tão inovador e problemático que até mesmo seu filho Salomão persistiu em visitar o santuário de Gibèão. Esse fato

éfode estava envolvido nas duas situações é confirmado por 1 Samuel 14.40-42 onde, pelo mesmo processo, Jônatas foi descoberto, por causa da violação do mandamento dado por seu pai. Ver Klein, 1 Samuel, pp. 96-97,140.

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apóia a nossa teoria de que a arca não foi trazida a Jerusalém senão nos últimos dias do reinado de Davi.

A razão para o atraso

O assunto da transferência da arca de Quireate-Jearim para Jerusalém estava, sem dúvida, relacionado com a existência ou não de um local apro­priado. Isso está claramente descrito em 2 Samuel 6.17 e 2 Crônicas 1.4. A questão é: por que motivo Davi esperou tanto tempo para construir um outro tabernáculo, e assim tornar a cidade de Jerusalém o verdadeiro cen­tro religioso da nação?

Em primeiro lugar, está claro que a ascensão de Davi ao poder, tão dramática quanto parece, não foi sem dificuldade, requerendo um longo período de transição. Uma coisa era receber a aclamação popular como uma figura política e militar, outra bem diferente era mudar a tradição religiosa e unir o culto e a coroa nele mesmo em Jerusalém. Na história de Israel até Davi, as linhas de demarcação entre liderança civil e religi­osa tinham sido cuidadosamente traçadas. Até mesmo Moisés tinha seu Arão, e Josué e todos os juizes permaneceram estritamente dentro das responsabilidades não clericais. Por mais de uma ocasião Saul tentou roubar as prerrogativas exclusivas dos sacerdotes, o que lhe custou mui­to caro. E não existe qualquer evidência de que ele tentou firm ar o tabernáculo em Gibeá, sua própria capital. A luz desta tradição, como Davi poderia estabelecer o centro de culto em Jerusalém sem que antes houvesse uma longa preparação?

De forma mais prática, Davi tinha em suas mãos duas grandes tarefas: estabelecer uma estrutura governamental apropriada à sua liderança e, tão importante quanto essa, defender a nação da ameaça dos exércitos estrangeiros. Só pôde alcançá-las de forma gradual. Conforme o autor de Samuel, Davi "ia crescendo em poder cada vez mais, porque o Senhor Deus dos Exércitos era com ele" (1 Sm 5.10). Ele já tinha se encontrado com os filisteus antes de tomar a cidade de Jerusalém, mas o embate não pusera um fim nos conflitos com esses adversários. Em pelo menos outra ocasião - impossível de datar, mas certamente anterior à construção do seu tabernáculo - Davi venceu os filisteus (2 Sm 8.1). Essa mesma campa­nha ou talvez outras são referidas entre as batalhas travadas pelos ho­mens valentes de Davi (2 Sm 23.9-12). Outros inimigos também tinham de ser submetidos: Moabe, Zobabe, Damasco, Amom, Amaleque e Edom. Com muito ou pouco sucesso, Davi ou incorporou tais reinos ao seu império, ou transformou-os em estados clientes. Em todos os acontecimentos, um significativo período de tempo era exigido nas campanhas, e somente de­

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pois que as nações foram realmente tratadas, Davi voltou-se totalmente para as necessidades religiosas da nação (2 Sm 7.1; 1 Cr 17.1).

Uma introdução à cronologia davídica

Neste ponto será válido atentar para a cronologia dos principais aconte­cimentos na vida de Davi.30 Não há dúvidas quanto à data da conquista de Jerusalém (ca. 1004) e de sua morte (971). As demais datas não são tão cla­ras, mas algumas sugestões podem ser feitas. Primeiramente, embora a ida­de de Salomão quando assumiu o trono não possa ser datada com precisão, não resta dúvida de que era ainda muito jovem. Em sua oração feita em Gibeão, ele se diz "uma criança" e, mesmo considerando aqui a presença de uma hipérbole, seria um embaraço uma idade além de vinte anos (1 Rs 3.7).31 Além disso, quando Davi estava fazendo planos para construir um templo, referiu-se a seu filho como "moço e inexperiente" (1 Cr 22.5; 29.1). Se Salomão não tinha mais de vinte anos quando subiu ao trono, provavelmente então não passava de dezoito quando Davi tratou com ele acerca da construção do templo (1 Cr 22.6-16; cf. 23.1). Salomão então deve ter nascido em 991, treze anos após Davi ter tomado a cidade de Jerusalém.32

O nascimento de Salomão ocorreu um ou dois anos depois que seu pai envolveu-se num relacionamento adúltero com Bate-Seba. Provavelmente Salomão nasceu durante a época em que Joabe conduzira Israel na peleja contra os amonitas em Rabá. Uma data apropriada para essa guerra é 993. Essa é a última batalha de Davi antes de fugir de Absalão, e há boas razões para acreditar que também foi cronologicamente a última. Com exceção de 2 Samuel 8, que é um catálogo das conquistas no estrangeiro e não propria­mente parte da narrativa, os outros episódios militares parecem estar des­critos exatamente na ordem em que os acontecimentos ocorreram.

30 O que segue é uma breve panorâmica do problema que envolve a cronologia da vida de Davi e sua resolução. Esse assunto é discutido exaustivamente em Eugene H. Merrill, "O Ano da Ascensão e a Cronologia de Davi," JANES 19 (1987). A ser publicado.

31 A frase na ar qãtõn foi usada, em outras ocasiões, para descrever o moço que apanhava as flechas de Jônatas (1 Sm 20.35), a pele de Naamã após sua cura miraculosa (2 Rs 5.14), a criança escatológica que guiará animais selvagens (Is 11.6), o príncipe edomita Hadade (1 Rs 11.17) e os rapazinhos que zombaram de Eliseu (2 Rs 2.23). Sem qualquer uma exceção, o que temos aqui são crianças ou adolescentes. Ver Francis Brown, S.R. Driver e Charles A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (Oxford: Clarendon, 1962), pp. 654-55.

32 Isso está baseado nas datas acerca do reinado de Salomão (971-931) que são universal­mente aceitas.

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Tabela 5 A vida de Davi

O nascimento de Davi 1041A unção de Davi por Samuel ca. 1029Davi exilado por causa de Saul ca. 1020-1011A unção de Davi como rei sobre Judá 1011A unção de Davi como rei sobre Israel

e a conquista de Jerusalém. 1004A grande fome ca. 996-993As guerras contra os amonitas ca. 993-990O adultério com Bate-Seba ca. 992O nascimento de Salomão ca. 991O violação de Tamar ca. 987A morte de Amnom ca. 985O exílio de Absalão ca. 985-982A construção do palácio de Davi ca. 979A construção do tabernáculo e a transferência

da arca da aliança ca. 977A rebelião de Absalão e o exílio de Davi ca. 976O censo ca.975A co-regência de Salomão ca. 973-971A coroação de Salomão e a morte de Davi 971

A série de campanhas contra os amonitas foi provocada pelo tratamen­to vergonhoso que os embaixadores de Davi sofreram nas mãos do rei Hanum (2 Sm 10.1-5). O episódio deve ter se passado antes de Davi tor- nar-se poderoso, já que Hanum e seus conselheiros pareciam não saber da capacidade de retaliação de Davi. Além disso, Hanum era filho de Naás, o rei amonita que tinha cercado Jabes Gileade nos primeiros anos do rei Saul (1 Sm 11.1-5). Considerar que Naás havia acabado de morrer implicaria ou em um reinado extremamente longo para Naás, ou em uma sucessão de Hanum nos primeiros anos do reino de Davi.

Quando os amonitas perceberam que Davi representava mais do que a ameaça suposta, decidiram alugar alguns mercenários de Bete-Reobe, Zobá, Maacá e Tobe, tentando evitar o ataque de Israel sobre Rabá, a capital dos amonitas. Joabe e Abisai, os generais de Davi, conseguiram ganhar o dia; embora não tenham conseguido tomar a cidade, pelo menos forçaram o recuo dos inimigos (2 Sm 10.6-14; 1 Cr 19.6-15). A perda apenas serviu como estímulo aos arameus para que se reagrupassem e aumentassem as suas forças visando a um futuro conflito. Dessa vez seria Hadadezer, de Zobá, quem se lançaria em guerra contra Israel em Elan ('Alma), no deser­to a oeste do mar de Quinerete; mas ele seria novamente vencido (2 Sm 10.15-19; 1 Cr 19.16-19). Assim encerrava a assistência dos arameus aos amonitas.

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O cerco de Rabá prolongou-se até a virada do ano, na mesma época em que aconteceu o envolvimento entre Davi e Bate-Seba (2 Sm 11.1). Logo, o conflito entre Israel e os arameus, bem como o primeiro ataque contra a cidade de Rabá, devem ter acontecido entre 1004 e 993, mais provavel­mente para o final do período.

Outro caminho a ser explorado concerne à rebelião de Absalão e aos eventos relacionados. Absalão, filho de Davi com M aaca, nasceu em Hebrom e, portanto, tinha idade suficiente para liderar uma rebelião con­tra seu pai logo depois do nascimento de Salomão.33 Quanto tempo de­pois não se pode dizer ao certo, mas é possível garantir que Davi partici­pou da campanha contra os amonitas após Salomão ter nascido e antes de Tamar ser violentada. Uma data provável para a defloração de Tamar é 987. Dois anos após o acontecimento, Absalão matou seu meio-irmão Amnom (2 Sm 13.23), e exilou-se por três anos (985-982; 2 Sm 13.23). Quan­do finalmente voltou do exílio, ficou por mais dois anos sem ver o rosto de seu pai (982-980; 2 Sm 14.28). Então gastou mais quatro anos34 ganhando a confiança do povo (980-976), até que rompeu definitivamente com seu pai Davi (2 Sm 15.7,13).

Argumentou-se no princípio (pp. 251,252) que, uma vez que o tabernáculo de Davi, construído para guardar a arca, não foi levantado antes de vários outros projetos (incluindo o palácio de Davi) serem completados, a histó­ria da chegada da arca à cidade de Jerusalém deve refletir um período posterior ao seu reinado. Isso está baseado no fato de Hirão, rei de Tiro - na verdade, o construtor do palácio - não ter começado a reinar senão a partir de 980, não podendo envolver-se em projetos de construção antes disso. Também é preciso ratificar que não há qualquer referência acerca da arca da aliança ou do tabernáculo em Jerusalém até o tempo da rebelião de Absalão. Logo, na história do exílio de Davi para a Transjordânia, oca­sionada por aquela rebelião, o narrador indica que os levitas, com Zadoque, carregavam a arca (2 Sm 15.24). Davi pediu-lhes para voltar com a arca para Jerusalém (implicando em que já havia estado lá), expressando a ar­dente esperança de que pudesse vê-la mais uma vez, assim como o local de habitação de Yahweh (2 Sm 15.25). Isso pressupõe a presença do tabernáculo em Jerusalém. A luz dos fatos discutidos com respeito à data

33 Caso tenha nascido nos primeiros dias do reinado de Davi em Hebrom (1008), Absalão devia estar com dezessete anos quando Salomão nasceu (991).

34 O texto massorético aqui diz "quarenta" ao invés de "quatro". Embora seja uma leitura mais difícil de aceitar, o hebraico deve ser descartado em favor da tradução da Septuaginta, o Siríaco, a Vulgata e Josefo. Ver McCarter, II Samuel, p. 355.

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da rebelião de Absalão, a mudança da arca para o novo tabernáculo deve ter ocorrido em cerca de 977, assim encaixando mais naturalmente com a data da ascensão do rei Hirão ao trono (980).

E importante reconhecer neste ponto que as datas sob exame não po­dem ser consideradas inflexíveis, visto que tanto a cronologia de Hirão quanto a de Absalão estão sujeitas a debate. Contudo, e isto é o mais im­portante, nenhum estudioso está disposto a datar o reinado de Hirão an­tes de 980, nem considerar que a rebelião de Absalão tenha ocorrido mais cedo por qualquer razão extraída da evidência. De fato, a firme e madura liderança exibida por Absalão em todos os sentidos indicaria uma idade de trinta ou trinta e cinco anos. Parece plausível datar a rebelião em 976.35 Uma data em 980 para a ascensão de Hirão permitiria que ele construísse o palácio de Davi, assim como concederia tempo a Davi para trazer a arca para o tabernáculo que seria construído depois de seu palácio.

Esta nova maneira de considerar a transferência da arca da aliança tem uma série de vantagens. Primeiro, explica o motivo de o registro antes da rebelião de Absalão mostrar-se tão estranhamente silencioso com respeito a Jerusalém ser o local central do santuário. Segundo, ajusta-se bem com a noção de que a tradição em Israel não seria fácil de ser repentinamente quebrada por Davi, e que ele, portanto, não tentou imediatamente promo­ver a unificação do culto e do governo em um local. A reação de Mical (2 Sm 6.16-20) pode ter significado muito mais do que uma reação contra a alegria de Davi,36 conforme tem sido alegado, já que era a segunda vez que Davi tentava trazer a arca para Jerusalém; antes havia sido impedido por causa da irreverência de Uzá. A chegada da arca aconteceu somente depois de três meses, ocasião em que Davi se vestiu como sacerdote e oficiou a cerimônia, conduzindo ele mesmo a procissão. Tal atitude deve ter constrangido não apenas a Mical, mas também a toda população. Tal­vez tenha sido esse o motivo que o levou a distribuir comida para todos os que ali estavam, aproveitando também para lembrar à sua mulher que ele, e não seu pai Saul, tinha sido escolhido por Yahweh. Pode ser que a insatisfação com a atitude de Davi tenha alcançado uma proporção tal que Absalão iniciou sua própria revolução.

Terceiro, a visão defendida nesta obra encaixa melhor a história do cul­to, especialmente como é delineado pelo cronista. Ele inicia o relato com a arca da aliança, como o faz o autor de 2 Samuel, descrevendo a tentativa

35 Se Absalão tinha nascido em cerca de 1008, como foi proposto acima, ele devia estar no princípio de seus trinta anos em 976.

36 David F. Payne, I & II Samuel (Philadelphia: Westminster, 1982), p. 185.

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frustrada de trazê-la para Jerusalém. A tentativa falhou não apenas por causa de Uzá, mas fundam entalm ente porque as pessoas religiosas especializadas, envolvidas na ocasião, não estavam devidamente prepa­radas para carregar a arca - elas a puseram num carro de bois ao invés de carregarem-na erguida pelas varas. Na segunda tentativa de transferir a arca, Davi tomou cuidado de convocar sacerdotes e levitas, instruindo-os sobre a forma correta de transportá-la (1 Cr 15.11-15). É digno de nota que os sacerdotes Zadoque e Abiatar sejam mencionados, sendo Zadoque mencionado pela primeira vez (v. 11). Visto que depois desse incidente Zadoque passou a servir como co-sum o sacerdote juntam ente com Aimeleque, o filho de Abiatar (2 Sm 8.17; 1 Cr 18.16), é provável que ele fosse bem mais novo que Abiatar, e muito jovem para que em 1004 já ser­visse como sacerdote (uma data que tem sido normalmente aceita como a data da transferência da arca), uma vez que ele ainda continuou servindo como sacerdote no tempo de Salomão (1 Rs 2.35; 4.4).

De maior interesse ainda é a designação de Henã, Asafe, Etã e outros músicos levitas e pessoal religioso, todos dentro do contexto da transfe­rência da arca para Jerusalém (1 Cr 15.19). Alguns desses oficiais perma­neceram a cargo da arca (1 Cr 16.4-6), enquanto outros, como Zadoque, foram designados por Davi para servirem no tabernáculo de Moisés, que ainda permanecia em Gibeão (1 Cr 16.39-42). Essa responsabilidade conti­nuou nos respectivos tabernáculos até que o templo de Salomão foi final­mente construído em cerca de 959 (1 Cr 6.31,32). E difícil admitir que o início de seus mandatos tenha sido tão cedo quanto 1004, e que tenha con­tinuado até 959. Porém, se o ministério no tabernáculo teve seu início em cerca de 977, o problema é grandemente aliviado.

Tanto o livro de Samuel quanto o de Crônicas indicam que a transferên­cia da arca para Jerusalém seguiu-se imediatamente ao desejo de Davi de construir uma estrutura mais permanente para a adoração de Yahweh. Pen­sar como alguns estudiosos que o desejo expressado por Davi de edificar uma casa para Deus surgiu logo assim que o Senhor lhe dera descanso de todos os seus inimigos, tem causado sérios problemas para muitos intérpre­tes. Mas isso é exatamente o que aconteceu! Davi esteve ocupado com as atividades militares durante os primeiros anos de seu reinado, e foi somen­te depois de Rabá ser subjugada que ele transferiu a arca e fez seus planos para a construção do templo. O cronista leva a identificar o desejo de Davi em construir um templo com a transferência da arca da aliança para Jerusa­lém. Depois de descrever todo o cuidado que Davi teve para com o trans­porte da mesma, o novo tabernáculo em Jerusalém e o tabernáculo em Gibeão (1 Cr 16.37-42), o cronista diz que Davi, ao voltar para seu palácio, tendo

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D avi: O R einado da A liança 2 6 1

observado sua estabilidade, comparada à temporalidade do tabernáculo, concebeu o plano de construir um templo (1 Cr 17.1).

Yahweh rejeitou a proposta de Davi, mas depois de um indeterminado período de tempo, durante o qual ocorreu a rebelião de Absalão e um infe­liz recenseamento, o Senhor permitiu que Davi desenvolvesse o projeto da planta do templo, separasse um pessoal apropriado para o serviço sagrado e coletasse material necessário para sua construção. A rebelião provavel­mente terminou em 975, apenas quatro anos antes da morte de Davi. Veio então o recenseamento: Davi bem pôde ter querido saber ao certo qual era o grau de lealdade e qual era a força militar de que poderia dispor em casos de levantes internos ou tentativas de invasões do exterior.

De qualquer maneira, o fim da praga enviada por Yahweh em conse­qüência do recenseamento coincidiu com o desejo renovado de Davi de edificar um templo (1 Cr 21.14 - 22.1). Ele ofereceu sacrifícios na eira de Araúna, o jebuseu, que ficava ao norte de Jerusalém. Quando o Senhor o respondeu naquele lugar, Davi compreendeu que aquele local deveria ser o lugar onde o templo seria construído. Assim começou a reunir todo o material necessário para a construção e repartiu seus objetivos com seu jovem filho Salomão. Por Davi ser um guerreiro e preocupado com negó­cios da guerra, a obra de construção do templo devia ser deixada para Salomão, um homem de paz. Para garantir que Israel obedeceria e aceita­ria seu filho, Davi fez dele um co-regente em seu reino (1 Cr 23.1). Juntos, designaram os sacerdotes e levitas que serviriam no templo como canto­res, porteiros e tesoureiros.

O anúncio formal foi feito a toda a nação. Davi enfatizou aos líderes de Israel que havia sido escolhido por Yahweh para reinar, mas em razão de ser um guerreiro, foi impedido de construir o templo. O privilégio foi re­servado a seu filho Salomão. Sendo assim, ele exortou seu filho a que fos­se fiel e fizesse a vontade de Deus, construindo o templo exatamente como Yahweh havia revelado (1 Cr 28.9-12). Finalmente, voltou-se mais uma vez para os líderes e insistiu para que dessem seus recursos em favor do progresso da obra, um pedido que foi abertamente aceito e acatado. Davi os conduziu em uma oração de louvor e compromisso e, no dia seguinte, em uma cerimônia com grandes sacrifícios (1 Cr 29.20-22). Dois anos de­pois o povo juntou-se para a cerimônia de coroação de Salomão, desta vez como o único rei em lugar de seu pai (1 Cr 29.22b,23).37

37 Ver 1 Reis 1.32-40 para uma descrição da unção de Salomão. A narrativa de 1 Reis 1 indica que a conspiração de Adonias para impedir a ascensão de Salomão ao trono (vv. 5-10) chegou ao clímax exatamente antes da cerimônia de coroação. Isso foi cerca de dois anos depois que Salomão tinha sido nomeado co-regente (1 Cr 23.1). Existem vári-

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2 6 2 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e st a m e n t o ,1Ij

Em suma, os últimos anos do reinado de Davi podem ser assim descri- i tos: Davi trouxe a arca para Jerusalém em cerca de 977, Absalão rebelou-se em 976, o censo foi realizado no ano seguinte, Salomão tornou-se co-re- gente por volta de 973 e Davi morreu em 971. Portanto, o tabernáculo de Davi esteve em uso por apenas seis anos na administração de Davi e por onze anos com Salomão (1 Rs 6.1,37,38). A adoração no tabernáculo de Moisés em Gibeão presumivelmente chegou ao fim por esse mesmo tem­po (c. 959).

os fatores que corroboram nossa teoria dos acontecimentos, que incluem um período de co-regência e uma clara ligação entre 1 Crônicas 29.22b com 1 Reis 1.32-40: (1) quando Salomão foi ungido, foi reconhecido como rei "pela segunda vez" (1 Cr 29.22b); (2) A unção de Salomão é mencionada apenas em 1 Crônicas 29.22b e 1 Reis 1.39, uma refe­rência que surge exatamente depois da rebelião de Adonias; (3) ambos os relatos da coroação mencionam Zadoque. Embora não estivesse ligado a qualquer uma das ceri­mônias de unção, o próprio sacerdote Zadoque é ungido na ocasião quando Salomão foi ungido (1 Cr 29.22b). De fato, 1 Reis descreve que Zadoque se torna o chefe dos sacerdotes segundo o mandato de Salomão, depois da morte de Davi (2.35). Para os problemas que surgem quando alguém deixa de admitir a existência de um intervalo de tempo entre 1 Crônicas 29.22a e b, ver H. G. M. Williamson, 1 and 2 Chronicles, New Century Bible Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), pp. 186-87.

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A N O S

O Egito e a independência de Israel As guerras contra os am onitas

A fonte histórica: a narrativa da sucessão Considerações cronológicas

Davi e Mefibosete

A grande fome

A causa do conflito Os aliados dos amonitas

Os arameus

Moabe e Edom

A derrota dos amonitas A derrota de Edom

O início dos problem as fam iliares de Davi A violação de Tamar A vingança de Absalão

Jerusalém com o centro do cultoMelquisedeque, Jerusalém e o sacerdócio real Davi como sacerdote

A rebelião de Absalão A ocasião O exílio de Davi A morte de Absalão

Os esforços de Davi para reconciliação Proposta a Judá Apelos feitos a Benjamim

M ais problem as para Davi A rebelião de Seba O infeliz recenseamento

O plano de D avi para construir um tem plo Os motivos de DaviA resposta de Yahweh: a aliança davídica A singularidade do reinado de Davi Preparativos para o templo

A sucessão salom ônica A burocracia davídica

Militar Civil Religiosa

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2 6 4 H istória d e Isr a el no A ntig o Testamento

0 Egito e a independência de Israel

Uma importante razão para a rápida ascensão de Davi e seu reino israelita foi a falta de interferência das principais potências, especialmen­te os egípcios. O reino do Nilo estava, na ocasião, no período conhecido por Terceiro Período Intermediário (ca. 1100-650).1 Com apenas poucas exceções, os reis por toda aquela longa era foram impotentes em relação à política internacional aventureira. Os registros de Psusennes I (1039-991), da 21a Dinastia, que foi contemporâneo de Saul e Davi, não falam de ne­nhuma campanha militar especial na Palestina, embora revelem suas rea­lizações culturais e domésticas.2 Portanto, Saul e Davi não precisaram te­mer o Egito e, da mesma forma, os filisteus também assim se sentiam. O sucessor de Psusennes, Amenemope (993-978), foi ainda menos ativo in­ternacionalmente, e não pode se comparar ao antecessor Psusennes nas realizações culturais. Mas pode ser que tenha ele sido o rei que ofereceu refúgio para Hadade, rei de Edom, o qual Davi forçou a partir para o exí­lio (1 Rs 11.14-22). A conquista de Edom não pode ser datada com preci­são. Entretanto, conforme será discutido mais tarde, essa deve ter ocorri­do antes de 980 e, portanto, dentro do período de Amenemope.3 A rainha Tahpenes, cuja irmã casou-se com o rei Hadade (1 Rs 11.19) deve ter sido mulher de Amenemope, ou mais propriamente Siamun, embora seu nome não esteja claramente registrado.4

Siamun (978-959), um construtor expedito, era mais interessado em diplomacia do que em explorações militares. Foi provavelmente ele que deu a filha em casamento a Salomão, algum tempo depois do terceiro ano do rei de Israel (967 - 1 Rs 2.39; 3.1), presenteando à filha a cidade de Gezer como seu dote (1 Rs 9.16). Em algum ponto no início de seu reina­do, ele arrancou a cidade de Gezer das mãos dos filisteus e matou seus habitantes cananeus. Pode ser que Davi tenha contribuído com os egípci­

1 Para uma discussão mais detalhada acerca do tema, ver Kenneth A. Kitchen, The Third Intermediate Períod in Egypt (1100-650 B.C.) (Warminster: Aris and Phillips, 1973).

2 Donald B. Redford, "Studies in Relations Between Palestine and Egypt During the First Millennium B.C. II. The Twenty-second Dynasty," JAOS 93 (1973): 4

3 A cronologia desse período no Egito é extremamente complicada, visto que as fontes são bastante contraditórias e incompletas. De qualquer forma, é pouco relevante aqui se o faraó em vista era Amenemope ou Siamum. Ver J. Cerny, "Egypt: From the Death of Ramesses III to the End of the Twenty-first Dynasty," em Cambridge Ancient History, 3a ed., editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1975), vol. 2, parrte 2, pp. 644-49.

4 Pierre Montet, Egypt and the Bible (Philadephia: Fortress, 1968), pp. 38-39.

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0 * . t: Os A nos d e L uta 2 6 5

os na ocasião para a tomada de Gezer (1 Cr 20.4).5 Caso tenha sido assim, a ação ocorreu depois de 978, o primeiro ano de Siamun, e também na mesma época em que a arca da aliança foi levada para Jerusalém. Esta tese ganha bastante credibilidade quando observado que a atitude de Davi de ajudar os egípcios na conquista de Gezer indiretamente o beneficiava tam­bém, pois a destruição dos filisteus seria um fator positivo para que a arca fosse trazida para Jerusalém. Isso também explica como um rei egípcio relativamente fraco conseguiu penetrar tão profundamente em Canaã sem uma oposição israelita.

A parte esse incidente, nada é conhecido acerca de um envolvimento egípcio na Palestina durante todo o período da unificação da monarquia israelita. A aparente indiferença não apenas permitiu aos filisteus manter sua independência, mas também permitiu que Davi e Salomão criassem uma poderosa política em Israel que, por fim, tornou-se um alvo para qual­quer competidor internacional.

As guerras contra os amonitas

A fon te histórica: a narrativa da sucessão

O primeiro conflito de grandes dimensões que envolveu a nação de Israel, depois da ocupação da cidade de Jerusalém, foi com os amonitas e seus aliados arameus. O assunto é introduzido logo no início da longa seção de 2 Samuel, conhecida como a narrativa da sucessão (2 Sm 9-20; 1 Rs 1-2), assim chamada porque o principal tema parece ser a preparação de Davi para que seu herdeiro o suceda no trono. Virtualmente, todos os estudiosos concordam que este é um dos exemplos mais elegantes na histó­ria escrita do Oriente Médio.6 Ele é ao mesmo tempo uma obra de arte da

; Ronald J. Williams, "The Egyptians," em Peoples ofO ld Testament Times, editado por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), pp. 94-95. Quanto às dificuldades cronológicas referentes à identidade desse faraó, ver Redford, "Studies in Relations," JAOS 93 (1973): 5. Quanto à possibilidade do faraó ter sido Psusennes II, ver Abraham Malamat, "The Kingdom of David and Solomon in Its Contact with Egypt and Aram Naharaim," em Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr. e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, p. 93.

' Ver especialmente J.R Fokkelman, Narrative Art and Poetry in the Books o f Samuel, vol. 1, King David (Assen: Van Gorcum, 1981), e a literatura nele citada. A visão comum acerca da natureza e da extensão da narrativa da sucessão originou-se com Leonhard Rost, Die Überlieferung von der Thronnachfolge Davids, BWANT 3.6 (Stuttgart: W. Kohlhammer, 1926). Outros tratamentos bem interessantes do assunto estão em R. A. Carlson, David, the Chosen

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2 6 6 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e st a m e n t o

biografia que combina de forma magistral as muitas intrigas e conspira­ções, cenas de brilho sem igual, e com muita beleza, culminando com per­feitas finalizações.7

O centro de toda a narrativa encontra-se no nascimento de Salomão e nos acontecimentos que marcaram seu surgimento como o herdeiro do trono de Israel.8 Seu nascimento ocorreu porque Davi, que deveria estar liderando seus exércitos contra os amonitas, permaneceu em casa, caindo em um relacionamento adúltero com Bate-Seba. Embora o filho gerado tenha morrido, Davi e Bate-Seba tiveram mais tarde Salomão. Portanto, os detalhes que envolvem a campanha dos amonitas em 2 Samuel estão rela-

King (Uppsala: Almquist & Wiksells, 1964); David M. Gunn, The Story o f Kíng David: Genre and lnterpretation, JSOT suplemento 6 (Sheffield: University of Sheffield, 1978); Roger N. Whybray, The Succession Narrative: A Study o f l l Samuel 9-20 and 1 Kings 1 anã 2, Studies in Biblical Theology, 2a série, vol. 9 (Naperville, 111.: Alec R. Allenson, 1968); Ernst Würthwein, Die Erzãhlung von derThronfolge Davis, Theologísche Studién (B) 15 (Zurich: Theologischer Verlag, 1974). Nem todos os estudiosos concordam com as teses e limites traçados por esses pesquisadores. De fato, alguns duvidam que tal unidade independente sequer realmente existiu. Ver o alerta consciente de Peter R. Ackroyd, "The Succession Narrative (so-called)," Interp. 35 (1981): 383-96. Tais debates, entretan­to, em nada afetam o valor do material histórico e da narrativa apresentada nesse traba­lho. Para uma análise positiva da narrativa como verdadeiramente histórica, ver Moshe Weinfeld, "Literary Creativity," em World History o f the Jewish People, vol. 5, The Age of the Monarchies: Culture and Society, editado por Abraham Malamat (Jerusalém: Massada, 1979), pp. 41-43.

7 Quanto a um estudo interessante de algumas variedades de gênero dentro do corpus maior, ver George W. Coats, "Parable, Fable and Anedocte: Storytelling in the Succession Narrative," Interp. 35 (1981): 368-82. Coats presta uma atenção especial à parábola de Natã (2 Sm 12.1-4), a qual ele prefere chamar de fábula, e à anedota contada pela sábia mulher de Tecoa (2 Sm 14.5-7). David M. Gunn afirma que a real existência de tais gêneros implica em uma base de transmissão oral para toda a com­posição e, portanto, determ ina a falta de confiabilidade histórica ("Traditional Composition in the Succession N arrative," VT 26 [1976]:214-19). Quanto à uma res­posta convincente a esse argumento, embora bastante cético com respeito aos deta­lhes, ver John Van Seters, "Problems in the Literary Analysis of the Court History of David," JSOT 1 (1976):22-29.

8 Whybray, Succession Narrative, pp. 19-21; J. Alberto Soggin, A History o f Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 43; Tomoo Ishida, "Solomon's Succession to the Throne of David - A Political Analysis," em Studies in the Period o f David and Solomon and Other Essays (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), pp. 175-76; P. Kyle McCarter, Jr. "Plots, True or False: The Succession Narratives as Court Apologetic," Interp. 35(1981): 355-67. Quanto a pontos de vista contrários, ver Ishida, "Solomon's Succession," p. 175, n.2.

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D v . : : Os A n o s d e L u t a 2 6 7

donados com os principais acontecimentos que seguem a ordem da nar­rativa e, é claro, com a história de Israel.9

Considerações cronológicas

Davi e M efíbosete

O cenário cronológico da luta contra os amonitas, descrito em 2 Samuel 10, já foi tratado abreviadamente. Foi sugerido que o acontecimento deve ter ocorrido logo assim que Davi tomou posse da cidade de Jerusalém (1004), porque Hanum, filho de Naás, havia recentemente assumido o poder em Amom. Outra pista cronológica é encontrada em 2 Samuel 9, que muitos estudiosos consideram ser parte integral na ordem da narrati­va. O capítulo, que precede imediatamente o relato da guerra diz respeito ao pedido de Davi quanto à possibilidade de haver algum sobrevivente da casa de Saul, a fim de que pudesse exercer misericórdia em seu favor por causa de Jônatas. Tal pedido poderia soar como um cinismo, já que era do interesse de Davi cultivar uma boa política com os que apoiavam o rei Saul, os quais ainda perfaziam um grande número em Israel. Mas qual­quer que tenha sido a intenção de Davi, um servo de Saul chamado Ziba informou a Davi que o filho de Jônatas, Mefibosete, ainda estava vivo e morando em Lo-Debar (Umm ed-Dabar?), cerca de dezesseis quilômetros a sudeste do mar de Quinerete.10 Davi mandou buscá-lo, estabeleceu-lhe uma pensão pública e instruiu o servo Ziba e sua família que o atendes­sem em todas as suas necessidades.11

Essa história, além de fundamentar a subseqüente aceitação de Davi por parte dos benjamitas, auxilia a determinar alguns limites cronológi­cos. Um texto anterior, quase parentético, mostra que Mefibosete era da idade de cinco anos quando Jônatas morreu em Gilboa. Naquela ocasião,

‘ Hans W. Hertzberg, I & II Samuel (Philadelphia: Westminster, 1964), p. 303. A ligação entre a hostilidade dos amonitas e a narrativa da sucessão como um todo é bem traba­lhada em John I. Lawlor, "Theology and Art in the Narrative of the Ammonite War (2 Samuel 10-12)," GTJ 3 (1982): 193-205.

:: Yohanan Aharoni and Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan, 1968), p. 180

:: Política semelhante a essa provisão para os descendentes de Saul concedidas por Davi, por suas prerrogativas reais e por sua liberalidade, estão confirmadas nos textos ugaríticos; ver Anson F. Rainey, "The System of Land Grants at Ugarit in Its Wider Near Eastern Setting," Fourth World Conference on Jewish Studies (Jerusalem, 1967), p. 190.

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a criada, em uma tentativa de fuga, tropeçou e deixou a criança cair no chão, aleijando-a em suas duas pernas (2 Sm 4.4). A questão aqui é que Mefibosete estava com cinco anos de idade em 1011; logo, ele nascera em 1016. Em 1004, ano em que Davi tomou a cidade de Jerusalém, Mefibosete estava apenas com doze anos de idade. Tinha já ele um filho quando o rei ordenou que fosse assistido em suas necessidades (2 Sm 9.12). E precário construir um caso sobre uma data subjetiva; mas dado a propensão para casam entos em idades tenras no antigo Israel, é razoável supor que Mefibosete estivesse com aproximadamente vinte anos de idade na épo­ca, e que a data de seu retorno foi aproximadamente 996.

A grande fom e

A metade dos anos 990 parece o cenário perfeito para a terrível fome que assolou a Palestina da época, e que se encontra registrada em 2 Samuel21.1-14. A razão por que tal episódio aparece nesse local do texto, ou seja, fora da ordem cronológica, é que a história da fome encaixa-se melhor em um outro acontecimento de natureza semelhante, e que está registrado no capítulo 24. Tudo o que separa as duas histórias são resumos das guerras filistinas (21.15-22), o cântico de louvor de Davi (22.1-51), o discurso de despedida (23.1-7), e a lista de seus heróis (23.8-39). O plano do historia­dor, mais uma vez, é determinado por tópicos, e não por uma ordem cro­nológica.

Há várias razões para acreditar que o relato mencionado em 2 Samuel21.1-14 encaixa-se melhor entre a chegada de Mefibosete a Jerusalém e o início das guerras contra os amonitas. Em primeiro lugar, a fome devas­tou a terra porque Saul feriu terrivelmente os gibeonitas (um evento não mencionado de outra forma), o que representou uma brecha na aliança estabelecida entre Josué e aquela cidade séculos antes (Js 9.15-20). Parece pouco provável que a retribuição tivesse sido adiada até os últimos anos de Davi. Além disso, o preço que os gibeonitas exigiram de Davi para que a fome viesse a cessar, seria a morte de sete filhos de Saul ou netos. O preço incluiria dois filhos de Rizpá, concubina de Saul, e cinco filhos de sua filha Merabe.12 Os sete foram enforcados pelos gibeonitas no início da colheita da cevada. Rizpá manteve-se junto aos cadáveres dia e noite até que voltou a chover e a seca foi quebrada. A não ser que seja aceito aqui

12 O texto massorético aqui está escrito "M ical" em vez de "Merabe" (2 Sm 21.8), talvez, como S. R. Driver sugere, um lapsus calami (cf. 1 Sm 18.19) (Notes on the Hebrew Text and the Topography ofthe Books o f Samuel, 2a ed. [Winona Lake, Ind.: Alpha, 1984 reedição] p. 352).

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D a v i : O s A n o s d e L uta 2 6 9

uma senhora idosa que, mui amorosamente guardava os corpos de seus filhos de meia-idade, uma interpretação que forçaria a datar o incidente nos últimos dias da vida de Davi, deve-se necessariamente admitir uma data mais antiga.

A data mais antiga é confirmada também pela reação de Davi à devoção de Rizpá aos cadáveres de seus filhos - ele mandou buscar em Jabes-Gileade os ossos de Saul e Jônatas, juntando-os aos corpos dos enforcados, de forma que pudesse dar-lhes um enterro com todas as honrarias de praxe. É difícil imaginar que Davi esperaria por quarenta anos depois da morte deles para então dar-lhes um sepultamento digno, ainda mais sabendo que era hora do rei tentar ganhar de todas as formas a lealdade dos benjamitas, bem como das demais tribos do norte. De fato, a retirada dos ossos da cidade de Jabes- Gileade aconteceu alguns anos depois que o próprio Davi parabenizou aque­les homens pelo que fizeram ao corpo de Saul, uma mensagem que ele en­viou logo que passou a reinar em Hebrom (2 Sm 2.4-7).

Mesmo assim, a seca não poderia ter acontecido antes do estabeleci­mento de Jerusalém como capital da nação e do benefício feito por Davi a Mefibosete. Isso fica claro pelo fato de que Mefibosete fora poupado por Davi de ser enforcado pelos gibeonitas, uma circunstância que pressupõe a presença de Mefibosete com Davi.

O melhor ponto de vista parece ser aquele dos três anos de fome ocor­ridos por volta de 996-993. Mefibosete, conforme já sugerido, tinha idade suficiente para ter um filho ainda moço. Além disso, as guerras amonitas, conforme se verá adiante, tiveram de começar por volta de 993, mas não muito antes. É provável que os amonitas não estivessem com medo de Davi por causa da terrível seca que devastara a nação, deixando-a enfraquecida e empobrecida, embora seja isso tudo mera especulação. Contudo, uma coisa está clara, isto é, se nossa reconstrução estiver corre­ta. Quando Davi entregou aqueles sete homens nas mãos dos gibeonitas, estava, na realidade, minando ainda mais suas tentativas de reconciliação com os benjamitas. O mínimo que ele pôde fazer foi devolver os corpos de Saul e Jônatas para Benjamim, na esperança de poder aplacar os senti­mentos feridos das tribos do norte.

A causa do conflito

Nesse tempo Naás, rei de Amom, morreu e foi sucedido por seu filho Hanum. Infelizmente nenhum dos dois indivíduos foi registrado em fontes extrabíblicas, de forma que não se pode conhecer mais nada acerca deles, senão o que está escrito em Samuel e Crônicas. De fato, a história antiga dos

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amonitas praticamente só pode ser reconstituída através do Antigo Testa­mento, a não ser quando alguns artefatos incidentais são encontrados.13 Os amonitas vinham sendo uns dos opressores do povo de Israel (1124-1106) mesmo antes dos dias de Jefté (1106-1100), e nos dias deste juiz reivindica­ram o direito de possuir de volta uma terra que já vinha sendo habitada por Israel por trezentos anos. Não há dúvidas de que eles já tinham habitado o leste do Jordão desde tempos imemoráveis, até que foram forçados pelos amoritas a mudar-se para longe dali. Em todo caso, Jefté levantou-se e for­çou-os novamente a permanecer nos desertos ao leste. Uma outra tentativa de reivindicar os territórios no oeste ocorreu na época em que Naás reinava, durante os primeiros anos de Saul (ca. 1050 - 1 Sm 11). Mais uma vez os amonitas foram derrotados, embora não haja registros que confirmem sua expulsão para o leste. Aparentemente, permaneceram ao sul do Jaboque, tendo estabelecido sua capital em Rabá (a moderna Amman, Jordânia). Lá concentravam-se nos dias de Davi.

Parece que Davi, quando subiu ao trono de Saul, foi congratulado pelo rei Naás (2 Sm 10.2). Isto não é de causar surpresa, considerando a animo­sidade entre Naás e Saul. Talvez o rei Naás esperasse que Israel se com­portasse de forma amigável, já que o rei era Davi, aparentemente um ad­versário de Saul. Quando o filho de Naás, Hanum, o substituiu no trono, Davi retribuiu a cortesia manifestada por Naás, enviando a Rabá uma missão para congratular-se com aquele novo monarca. Porém, as inten­ções de Davi foram mal interpretadas, e seus oficiais vergonhosamente tratados e despachados de volta para casa. Tal atitude não podia ser to­lerada, de forma que Davi enviou Joabe e seu exército até Rabá para vin- gar-se da afronta.

Os aliados dos amonitas

Os arameus

Estava mais do que evidente a Hanum que havia ele cometido um gra­ve erro e que, a partir de agora, teria de buscar ajuda, caso ainda quisesse

13 Quanto a uma síntese geral, ver George M. Landes, "The Material Civilization of the Ammonites," em Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, pp. 69-88. Com respeito aos poucos textos amonitas que restaram, nenhum é mais antigo do que a época da monarquia no Israel unificado. Ver Dennis Pardee, "Literary Sources for the History of Palestine and Syria II: Hebrew, Moabite, Ammonite, and Edomite Inscriptions," AUSS 17 (1979): 66- 69. Ver também B. Oded, "Neighbors on the East," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 258-62.

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permanecer vivo. Para isso alugou os serviços dos arameus de Bete-Reobe e de Zobá, bem como os pequenos reinos de Maaca e Tobe.14

Bete-Reobe era o nome tanto de uma cidade quanto de um estado, sen­do este impossível de identificar. O reino situava-se no grande vale de Baca, entre as cadeias montanhosas do Líbano e Anti-Líbano, que se es­tendia de Dã ao sul até o reino de Zobá, no norte.15 A destruição dos hititas pelos Povos do Mar em cerca de 1200, associada ao rápido declínio da 20a Dinastia Ramessida, do Egito, tinha deixado a Síria e a alta Mesopotâmia praticamente nas mãos dos assírios. Devido às necessidades internas de se tratar com a recentemente imposta Dinastia Babilônica Pós-Cassita e também com os elamitas, os assírios se viram forçados a permanecer onde estavam, não se movendo em direção oeste, para tomar proveito do vácuo político criado na Síria até os dias de Tiglate-pileser I (1115-1077). Ele mar­chou sobre a Síria para desfazer o crescente reinado político e militar dos arameus ou qualquer outro que estivesse no caminho.16 Por volta de 1100 os arameus começaram a infiltrar-se na baixa Mesopotâmia de forma mais forte, e não muito tempo depois um rei de origem araméia assumiu o tro­no da Babilônia. Esse governante, Ada-apla-iddina (1067-1046), foi o pri­meiro de uma série de muitos outros arameus que ocupariam os palácios reais na Mesopotâmia.17 De fato, o grande império caldeu de Nabucodo- nosor, quinhentos anos depois, teve suas origens na Síria.

Tiglate não pôde dominar as cidades-estados araméias, porque teve de retirar-se do conflito, em vista da crescente hostilidade babilônica em sua terra. Ainda que outros reis assírios, como Assur-bel-kala (1074-1057) fi­zessem esporádicas incursões para o interior da Síria, as cidades-estados permaneceram na maior parte livres para desenvolver-se, até a ascensão de Israel sob Davi.18

Zobá parece ter sido o mais forte dos reinos arameus estabelecidos ao sul. Saul já havia pelejado contra alguns de seus reis (1 Sm 14.47), mas foi somente durante o reinado de Davi que Zobá, governada na ocasião por

14 Para um relato sucinto sobre o relacionamento de Israel com seus vizinhos ao norte no período de Davi, ver Benjamim Mazar, "The Aramaean Empire and Its Relations with Israel," em Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, pp. 131-33.

15 Merrill F. Unger, Israel and the Aramaeans o f Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980, reedição), p. 42.

16 Albet Kirk Grayson, Assyrian Royal Inscriptions (Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1976), vol. 2, #4, pp. 89-97.

17 D.J. Wiseman, "Assyria and Babylonia c. 1200-1000 B.C.," em CAH 2.2, pp. 466-67.18 Yutaka Ikeda, "Assyrian Kings and the Mediterranean Sea: The Twelfth to Ninth

Centuries B.C.," Abr-Nahrain 23 (1984-85): 23.

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Hadadezer, filho de Reobe, alcançou seu zênite. Seu território estendeu-se desde Bete- Reobe, ao norte, alcançando a Hamate, situada a noroeste da cadeia montanhosa do Anti-Líbano, até o Tadmor, e ao sul até Damasco.19 Dessa forma, Hadadezer fez-se uma figura notável, e provavelmente a ele Salmaneser III (858-824) referiu-se como o rei dos "am uru", que havia se apoderado de territórios assírios que pertenciam ao rei Assur-rabi II (1013- 973).20 Esses dados encaixam-se muito bem com a narrativa bíblica que informa ter Hadadezer chamado algumas de suas tropas "dalém do rio" (i.e., o Eufrates) para lutar contra o rei Davi (2 Sm 10.16).

Naqueles anos os reinos de M aaca e Tobe eram pequenos tributários de Zobá (2 Sm 10.6,19). O primeiro localizava-se ao leste do lago Hulé e o último ao leste e sudeste do mar de Quinerete. Não há nenhuma outra informação acerca deles.21 Damasco, embora mencionado no resumo de2 Samuel 8, não era nessa época um importante reino, apesar de, é claro, ter sido a principal cidade séculos antes de Davi. Realmente ela tornou- se o centro do poderio e influência arameus até o fim do reinado de Salomão.

M oabe e Edom

Moabe, cuja opressão acabou culminando no surgimento do juiz Eúde, no início do décimo terceiro século (Jz 3.12-30), aparentemente deslocou ou viveu entre os israelitas da tribo de Rúben e Gade, ao leste do Jordão, desde aquela época em diante. O território moabita era muito flutuante, mas geralmente se localizava ao leste do Jordão, ao norte do rio Zerede e ao sul do Arnom.22 E impossível saber qualquer coisa acerca da força e estabilidade de Moabe nos anos que antecederam o rei Davi, mas é certo que Gideão evitou a área sul do Jaboque, imediatamente a leste do Jordão, quando perseguia os príncipes midianitas, o que talvez possa significar que ele reconhecia no lugar um território dos moabitas. Davi, no início de seu exílio (ca. 1020), enviou sua família para encontrar refúgio junto ao rei de Moabe em Mispa, um local que infelizmente não pode mais ser identi­ficado (1 Sm 22.3,4). Sem as referências bíblicas, o reino dos moabitas des­se período permanece um mistério.23

19 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 43.20 J.D. Hawkins, "The Neo-Hitite States in Syria and Anatólia," em CAH 3.1, pp. 391-92.21 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 45.22 Yohanan Aharoni, The Land o f the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 295; Oded,

"Neighbors on the East," em World History ofthe Jeivish People, vol. 4, parte 1, p. 256.23 A.H. VanZyl, The Moabites (Leiden: E.J. Brill, 1960).

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Pouca coisa se sabe acerca de Edom.24 Esse reino, localizado nos pla­naltos relativamente isolados do leste e do sul do mar Morto, tinha sido governado pela dinastia de reis desde Esaú. Moisés tinha passado pelo lado de Edom; seus territórios foram postos de lado e não foram conquis­tados pelos israelitas na ocupação da Terra Prometida. A única referência a Edom entre o período mosaico e o de Davi é 1 Samuel 14.47 que diz que Saul lutou com Edom. Saul obteve alguma vantagem sobre os edomitas porque alugou um assassino edomita chamado Doegue. Não é possível determinar se isso implica em que Edom tenha sido um estado vassalo de Israel.

A derrota dos amonitas

Voltando às guerras amonitas travadas por Davi, encontramos Joabe cercando a cidade de Rabá (2 Sm 10.6-14). As tropas amonitas guardavam seus portões enquanto os aliados arameus, cerca de trinta e três mil, reuni- am-se nos campos vizinhos. A distribuição dos adversários acabou encur­ralando Joabe, de modo que este decidiu dividir seu exército em duas par­tes: os melhores homens ficaram com ele para atacar os arameus, ao passo que o restante dos soldados estariam sob as ordens de seu irmão Abisai, e atacariam os amonitas. A estratégia deu certo: os arameus fugiram para o norte, e os amonitas recuaram e se abrigaram em cidades muradas. Foi assim que Joabe desistiu de persegui-los e voltou para Jerusalém.

Em um segundo episódio, o rei Hadadezer mandou chamar seus ho­mens que estavam além do Eufrates e os enviou para a guerra contra Isra­el em Elam ('Alma), sob as ordens de seu general Shobach, cerca de 64 quilômetros a leste do mar de Quinerete. Davi conseguiu uma esmagado­ra vitória, ferindo os exércitos dos arameus, inclusive o general. O resulta­do foi a capitulação não apenas de Hadadezer, mas também de todos os estados vassalos a ele ligados. Assim começou Davi a esculpir seu próprio império, embora esta não pareça ter sido a sua intenção original.

Tanto um resumo quanto uma ampliação das conquistas feitas por Davi contra os arameus estão registrados em 2 Samuel 8. Nesta passagem o historiador declara que dos quarenta mil mortos (2 Sm 10.18), vinte mil eram de Zobá e vinte e dois mil de Damasco.25 Ele acrescenta ainda que

24 John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples ofO ld Testament Times, edita­do por D.J. Wiseman, pp. 229-58.

25 Quanto ao problema de harmonizar as cifras em 2 Samuel 8 e 10 com o registro em 1 Crônicas 18, ver o trabalho de Eugene H. Merrill, "2 Samuel" em The Bible Knowledge

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Davi tributou a cidade de Damasco e tomou os seus escudos de ouro per­tencentes aos oficiais do rei, assim como o bronze das cidades que eram sujeitas a Hadadezer. Os metais, diz o cronista, Salomão utilizou na con­fecção de artigos para o templo (1 Cr 18.7,8).

A submissão de Hadadezer ocasionou a rendição voluntária de Tou, rei de Hamate. Inimigo de Hadadezer, talvez Tou tenha se entregado com vista a obter proteção. A sinceridade de Tou foi expressada através dos presentes em ouro, prata e bronze, enviados pessoalmente por seu filho Jorão. Esses metais Davi também guardou para o futuro serviço a Yahweh.

Praticamente todo o Arã estava agora sob a hegemonia de Israel, em­bora o problema amonita ainda não estivesse totalmente resolvido. Mais uma vez a cidade de Rabá foi atacada, mas Davi permaneceu em casa. Enquanto desfrutava da tranqüilidade de Jerusalém, o rei se viu espiando Bate-Seba, mulher de seu vizinho, que se banhava completamente à vista do telhado do palácio real. Tomado pela cobiça, mandou trazer a mulher à sua presença e consumou o adultério. Quando depois soube que a mulher estava grávida, Davi mandou trazer da batalha o seu marido, Urias, que pelejava em Rabá, a fim de que parecesse ser o pai da criança. Quando o plano de trazer Urias para os braços de sua esposa fracassou, Davi imedi­atamente ordenou ao general que colocasse Urias na linha de frente, onde a luta estivesse mais árdua para que ali morresse. Depois que a criança nasceu, o profeta Natã informou ao rei Davi que a espada jamais se afasta­ria de sua casa. A criança então morreu, como evidência clara do juízo de Deus, mas Yahweh, por sua graça, permitiu que Salomão nascesse mais tarde de Bate-Seba e assim preparou o caminho para a sucessão dinástica.

Enquanto isso Joabe derrotava as tropas dos amonitas no campo e, mais uma vez, sitiou a cidade de Rabá (2 Sm 12.26-31). Não há dúvida de que, nesse período da história, os moabitas estavam sob o domínio de Israel, uma vez que Davi, provavelmente, teve de atravessar o território moabita para alcançar a cidade de Rabá vindo de Jerusalém. A luz do parentesco com os moabitas, é difícil entender o porquê de Davi ter-lhes dado um tratamento áspero (2 Sm 8.2,12), ou, da mesma forma, de os moabitas te­rem se unido aos amonitas contra Israel, interferindo-se nos objetivos mi­litares de Davi. A queda de Rabá resultou no mesmo tratamento dado aos amonitas. Davi os tornou escravos e talvez tenha lhes dado uma represá­lia bastante severa (2 Sm 12.31).

Commentary, editado por John F. Walvoord e Roy B.Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, pp. 465,467; Gleason L. Archer, Jr., Encyclopedia o f Bible Difficulties (Grand Rapids: Zondervan, 1982), p. 184.

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A derrota de Edom

As campanhas militares de Davi contra Edom devem ter sido realiza­das durante o período que antecedeu o nascimento de Salomão. E prová­vel que os edomitas tenham feito alianças políticas e militares com os moabitas e amonitas contra Israel, a fim de poderem impedir a penetração de Davi no interior da Transjordânia, pois, mesmo sendo a campanha na ocasião dirigida contra os amonitas, os moabitas e edomitas estariam sen­do igualmente ameaçados. O tempo pode ser melhor determinado em 1 Reis 11.14-22, que descreve a fuga do príncipe edomita Hadade para o Egito. No resumo das guerras de Davi, em 2 Samuel 8, o historiador indi­ca que Davi havia esmagado dezoito mil edomitas no vale do Sal (Vadi el- Milh), que estava situado no Negueve, próximo a Berseba e Arade. Isto pode ser uma indicação de que os edomitas se lançaram em uma ofensiva direta contra Israel vindos do sul, visto que o vale estava sob o controle israelita. O cronista acrescenta que a vitória israelita, na verdade, só foi concretizada com a atuação de Abisai, que foi o responsável pelo estabele­cimento de guarnições em Edom. Foi ele, inclusive, quem obrigou os edomitas a se tornarem vassalos de Davi (1 Cr 18.12,13).

O relato apresentado em 1 Reis não é uma variação de tudo isso, mas sim um complemento e um relato de eventos subseqüentes. Depois que Edom foi reduzido à condição de vassalo, parece que Davi e Joabe parti­ram para o local a fim de sepultar os mortos e colocar um fim na oposição que ainda restava. Alguns membros da família real de Edom, incluindo Hadade, conseguiram escapar rumo ao Egito, onde encontraram uma cor­dial hospitalidade. Mais tarde Hadade retomou para Edom e mostrou ser o maior responsável da queda de Salomão. Mas por enquanto só é impor­tante notar que o autor de Reis descreve Hadade como "apenas um meni­no" na época de seu exílio. Então, após alcançar a maioridade, casar-se e tornar-se pai de um menino, voltou para Edom pouco tempo depois da morte de Davi (1 Rs 11.20-22). Esse período da vida de Hadade deve ser datado por volta de 969. Uma boa época para se datar sua fuga para o Egito seria 993, data que tem sido vista como o tempo das guerras amonitas. Portanto, a campanha edomita pode ter sido o fim das guerras contra os amonitas e arameus (2 Sm 10).

O cenário pode ser reconstruído da seguinte maneira: Quando Joabe foi enviado para Rabá a fim de completar o cerco da cidade (2 Sm 12.26- 28), Abisai, seu irmão, foi simultaneamente para o vale do Sal combater uma invasão edomita (1 Cr 18.12,13). Depois de serem alcançados ambos os objetivos, Davi, que foi pessoalmente a Rabá com o intuito de supervi­

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sionar a queda, partiu para Edom com Joabe a fim de completar a con­quista iniciada por Abisai. Então os edomitas tornaram-se um estado tri­butário de Israel, mas antes a família real edomita conseguira escapar para o Egito.

O início dos problemas familiares de Davi

Foi depois de todas as vitórias no exterior, de acordo com 2 Samuel, que a família de Davi passou a ser um foco de problemas - incluindo um estupro e um assassinato - que quase custou a Davi sua coroa e compro­meteu a sucessão de Salomão. Os problemas surgiram depois do nasci­mento de Salomão, filho de Davi e Bate-Seba, cujo adultério foi a principal causa do tumulto (2 Sm 12.10-14). Já foi sugerido que Salomão tinha vinte anos quando começou a reinar, de forma que deve ter nascido em cerca de 991. Depois desta data começaram os problemas familiares de Davi. Uma implicação de tudo isso é que, se a primeira metade do reinado de Davi foi caracterizada pela bênção e sucesso, a segunda foi marcada pelas dores de cabeça e derrota.

A violação de Támar

A primeira evidência de que a espada não se apartaria da casa de Davi (2 Sm 12.10) foi, sem dúvida, a violação cometida por Amnom contra sua meia- irmã Tamar. Nascido de Ainoã, a jezreelita, Amnom era o filho mais velho de Davi (2 Sm 3.2). Visto que nascera em Hebrom, era um jovem de apro­ximadamente vinte anos quando forçou a irmã de Absalão e tirou-lhe a vir­gindade. Ela, aparentemente, nasceu em Jerusalém (1 Cr 3.4-9); portanto, era muitos anos mais nova que Amnom. Depois de satisfazer a cobiça, a paixão desmedida pela jovem tornou-se em desprezo, e Amnom recusou-se a tomá-la como esposa, conforme a lei exigia em tais circunstâncias. Humi­lhada, Tamar buscou refúgio e consolo em seu irmão mais velho, Absalão.

A vingança de Absalão

Absalão estava furioso e desejoso de vingança, mas percebeu que a situação precisava ser resolvida com incomum diplomacia. Não seria nada bom, certamente ponderou, levar o problema a Davi, pois seu pai já havia comprometido a própria integridade por ocasião do adultério com Bate- Seba e do assassinato de Urias e, portanto, não faria nada. Além disso, Amnom era o herdeiro do trono, um fator que o deixava imune a processo

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ou punições. Sendo assim, Absalão deixou a situação arrefecer até que pudesse divisar uma ocasião oportuna para vingar-se. Nessa época, o de­sejo de tomar o trono de Israel surgia em Absalão. Destruir a vida de Amnom não apenas vingaria a honra de sua irmã, mas também abriria um espaço para que ele sucedesse ao pai no trono.

Davi tomou conhecimento do crime de Amnom e, embora enraivecido, mostrou-se paralisado em tomar alguma atitude. Talvez tenha imaginado que seria hipocrisia punir o filho por um pecado semelhante ao seu. Em todo caso, Absalão por dois anos elaborou um plano que consistia em um convite a seu pai Davi para uma festa em Baal-Hazor (Tel 'Asür), que fica­va entre Betei e Siló. Quando Davi disse não poder comparecer, Absalão insistiu para que enviasse o sucessor em seu lugar. Após Amnom se em­briagar nas festividades, os assassinos contratados por Absalão o mata­ram. Depois, Absalão fugiu para seu avô Talmai, rei de Gesur, com quem encontrou apoio e proteção por três anos.

Já foi defendida aqui uma data próxima a 987 para a violação de Tamar, 985 para o assassinato de Amnom e 985-982 para o exílio de Absalão em Gesur. Quando Absalão voltou para Jerusalém, uma engenhosa estratégia de Joabe, permaneceu por mais dois anos (982-980) sem sequer ver o rosto de seu pai. Foi durante esse tempo que o jovem e belo filho de Davi tor­nou-se pai de quatro filhos, incluindo uma filha a quem ele deu o nome de Tamar, começando assim a dar uma boa impressão ao povo de Israel. Por fim, Joabe conseguiu fazer com que Absalão e Davi se encontrassem, e houve reconciliação, pelo menos aparentemente. Porém, o espírito de re­belião já estava entranhado no coração de Absalão e, dentro de quatro anos, acenderia as chamas da revolução.

Jerusalém como centro do culto

É quase certo que durante esse período (980-976) Davi tenha dado iní­cio ao seu programa de construções (2 Sm 5.9-12), o que incluiria, depois de tudo pronto, os planos para a edificação do templo. E óbvio que no reino de Davi houve construções, palácios e edifícios públicos; porém, os envolvimentos com a expansão do império e os acontecimentos que asso­lavam sua família impediram a infra-estrutura impressiva característica de um monarca de sua estatura. A reconciliação com Absalão deu-lhe a oportunidade esperada, que era transformar a cidade de Jerusalém no cen­tro religioso e político.

Davi incumbiu Hirão, que tinha acabado de assumir o trono de Tiro, uma cidade-estado na Fenícia, de prover os materiais e o pessoal especi­

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alizado para levar avante os projetos de construção.26 Uma vez que a cidade passou a ter uma aparência mais apropriada para a capital políti­ca da nação, Davi tomou as devidas providências para transformar a cidade em um centro religioso. Isso significaria construir um tabernáculo temporário para adoração e serviço religioso, e a remoção da arca da aliança de Quiriate-Jearim ,27 local onde havia permanecido por cerca de 130 anos.28

Tais medidas não poderiam ser tomadas sem serem sentidas. Em pri­meiro lugar, não havia qualquer precedente na história de Israel que de­monstrasse a união religiosa e política da nação em um só local e sob a liderança de uma única pessoa, pelo menos no período pós-mosaico. O antecessor de Davi, o rei Saul, fez da cidade de Gibeá sua capital política, mas não providenciou para que o tabernáculo, durante todo o seu reina­do, se estabelecesse ali. Obviamente é verdade que Saul agiu em negócios religiosos de forma semelhante aos monarcas do antigo Oriente Médio, e os resultados foram desastrosos. O fato é que, sob a liderança de Saul, Israel não tinha como visualizar o governo político e religioso em uma só pessoa. Seria diferente sob a liderança de Davi?

Em segundo lugar, o tabernáculo de M oisés estava localizado em Gibeão, e lá as pessoas, incluindo o próprio Davi, provavelmente reuni­ram-se para adoração comunitária durante todos os anos de seu reinado (1 Cr 16.39; 21.29; 1 Rs 3.1-4). Poderia Davi simplesmente remover o tabernáculo de Gibeão para Jerusalém sem uma específica revelação de Deus? Provavelmente o tabernáculo tinha sido posto em Gibeão pelo pró­prio Saul e, visto que a cidade ficava em Benjamim, tribo de Saul, uma remoção arbitrária realizada por Davi pareceria mal aos habitantes das tribos do norte. O melhor que Davi poderia fazer - e na verdade foi o que fez - era deixar o tabernáculo de Moisés por enquanto no mesmo lugar, em Gibeão, e construir um outro no monte Sião.

26 Para um estudo detalhado acerca do alcance e proporções do programa de construções do governo de Davi, ver Yohanan Aharoni, "The Building Activities of David and Solomon," IEJ 24 (1974): 13-16.

27 Baalim de Judá (2 Sm 6.2) pode significar a própria Quiriate-Jearim ou alguma cidade próxima (Aharoni, Land ofthe Bible, pp. 350-51). Joseph Blenkinsopp sugere que Quiriate- Jearim pode estar se referindo a "uma área consideravelmente grande", da qual Baalim fazia parte ("Kiriath-jearim and the Ark," JBL 88 [1969]: 146-47).

28 Como afirma Antony F. Campbell, o propósito maior das narrativas acerca da arca (1 Sm 4-6; 2 Sm 6) é legitimar "a dinastia davídica, a eleição e a teologia de Sião” bem como demonstrar a rejeição do velho tribalismo em favor da monarquia davídica ("Yahweh and the Ark: A Case Study in Narrative," JBL 98 [1979]: 42-43).

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A terceira consideração tinha a ver com a relocação da arca da ali­ança.29 A arca representava a própria presença de Yahweh entre seu povo. Sem que houvesse um a au torização direta e esp ecífica de Yahweh (e nesse caso não há um claro registro bíblico de uma autori­zação), qualquer m udança de local poderia ser considerada uma pre­sunção do rei Davi. A suspeita de tal presunção parecia crescer mais, especialm ente após o trágico episódio envolvendo Uzá e a arca, pois este desde o início estava no grupo dos que traziam a arca de Quiriate- Jearim (2 Sm 6.6-8).

Em quarto lugar, mas de forma alguma menos importante, estava o fato de a cidade de Jerusalém em momento algum da história ter sido vista como um centro religioso da nação. Desde os tempos patriarcais até que Davi a conquistou, tinha ela sido dominada pelos pagãos, habi­tantes de Canaã, e tida como o seu centro religioso, sendo apenas santi­ficada intermitentemente quando o povo de Deus ali comparecia. Sem dúvida, então, Davi se valeu da ligação com os patriarcas para justificar a presença da arca da aliança e do tabernáculo no novo local. De fato, deve ter sido a ciência da ligação entre Abraão e Jerusalém que o fez selecioná-la como sua capital. Essa certeza deu a Davi coragem e intrepi­dez suficientes para, não obstante a oposição que tal decisão viria sofrer, estabelecer o monte Sião como o novo local permanente da habitação de Deus na Terra.30

Muitos estudiosos da escola conhecida como "Mito e Ritual" negam a historicidade da narrativa acerca da arca (1 Sm 4-6; 2 Sm 6), preferindo tê-las como parte de um comple­xo de mitos que celebravam os triunfos de Yahweh sobre o caos e outros inimigos. Para uma breve discussão apoiando tais noções, ver Aage Bentzen, "The Cultic Use of the Story of the Ark in Samuel," JBL (1948): 37-53. Talvez a historicidade das narrativas não possam ser provadas, mas a existência de objetos semelhantes à arca nos antigos rituais semíticos de culto, e que foram contemporâneos do Israel da época de Moisés, sem dúvida rebatem essa forma teológica de pensar na historicidade do texto como um mero mito; ver William F. Albright, From the Stone Age to Christianity (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1957), pp. 266.

M Davi mesmo articulou sua consciência da escolha de Sião por parte de Yahweh como o local para construir o palácio e o templo (SI 78.68; 87.2; 132). Quanto a paralelos, ver Giorgio Buccellati, "Enthronement of the King and the Capital City in Texts from Ancient Mesopotamia and Syria," em Studies Presented to A. Leo Oppenheim, editado por Robert M. Adams (Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. 54-61; Baruch Halpen, The Constitution o f the Monarchy in Israel (Chico, Calif.: Scholars Press, 1981), pp. 17-23; Shemaryahu Talmon, "The Biblical Idea of Statehood," em The Bible World, editado por Gary Rendsburg et al. (New York: Ktav, 1980), p. 239.

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M elquisedeque, Jerusalém e o sacerdócio real

O incidente histórico em vista diz respeito ao encontro de Abraão com Melquisedeque, descrito em Gênesis 14 e mais tarde interpretado teologi­camente pelo próprio Davi no Salmo 110. Quando retornava da batalha com os reis do norte de Damasco, da qual saíra vitorioso, Abraão teve um encontro com o misterioso Melquisedeque, rei de Salem e sacerdote de El- Elyon, "Deus Altíssimo" (Gn 14.18). Tendo tomado o despojo da guerra, Abraão pagou o dízimo de tudo a Melquisedeque depois que o sacerdote o abençoou em nome de El Elyon.

O Salmo 72 diz que Salém é igual a Sião, ou seja, Salem não é outra senão Jerusalém . Esta interpretação é comum tanto na tradição judaica quanto na cristã .31 Por outro lado, a identidade de M elquisedeque é muito mais problem ática.32 Alguns estudiosos descartam completamen­te a historicidade do personagem e sugerem que o conto seja uma es­pécie de etiologia destinada a legitim ar a cidade de Jerusalém como um local sagrado para os hebreus.33 Outros vêem essa passagem como o encontro dos primeiros pais de Israel com um sacerdote cananeu que os conduziu à fé em El.34 Alguns escritores mais conservadores vêem a figura de M elquisedeque como uma cristofania, ou seja, uma m anifes­tação pré-encarnada de Jesus Cristo. Esse ponto de vista se baseia no significado do nome M elquisedeque ("rei de ju stiça"), na sua associa­ção com Salém (ele era "rei de Salém " ou "rei de paz") e na com para­ção explícita de M elquisedeque com Jesus, particularm ente na epístola aos Hebreus (7.3, 15-17, etc.).35

31 Ver, por exemplo, Artur Weiser, Psalms: A Commentary (Philadelphia: Westminster, 1962), pp. 524-26. Isso em nada pretende significar um consenso. John G. Gammie defende a idéia de que Salém não poderia ser Jerusalém, e que a tradição que envolve a pessoa de Melquisedeque precisa encontrar suas raízes em outro local, quem sabe em Siquém, de onde a tradição migrou para Siló, Nobe e, finalm ente, Jerusalém ("Loci of the Melchizedeck Tradition," JBL 90 [1971]: 385-96). Tal idéia vai radicalmente contra o que está escrito no Salmo 76.2 e em outras passagens.

32 Para vários pontos de vista, ver Leopold Sabourin, The Psalms: Their Origin and Meaning (Staten Island, N.Y.: Alba House, 1974), pp. 360-62

33 Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary, traduzido por John H. Marks (London: SCM; Philadelphia: Westminster, 1961), pp. 173-76.

34 Georg Fohrer, History o f Israelite Religion, traduzido por David E. Green (Nashville: Abingdon, 1972), pp. 104-5.

35 Citado e convincentemente rejeitado por James A. Borland, Christ in the Old Testament (Chicago: Moody, 1978), pp. 164-74.

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Porém, a melhor interpretação é que Melquisedeque é um tipo de Cris­to.36 Ele prefigurou a vida e o ministério de Cristo em vários aspectos, mas principalmente no que dizia respeito a ser ele tanto rei quanto sacerdote, da mesma forma que Jesus Cristo, como Messias, cumpriu os dois papéis. Além disso, ele igualmente tipificava a vida e ministério de Davi, um fato que pode ter surpreendido Davi, mas que apesar disso veio a aceitá-lo. No Salmo 110 Davi expressamente se refere ao Rei messiânico como um sa­cerdote segundo a ordem de Melquisedeque, por meio de quem o Senhor irá julgar as nações (vv. 4-6). Não apenas o Messias, mas também o pró­prio Davi era tal sacerdote.37

A noção de um sacerdócio real não era totalmente estranha no antigo mundo do Oriente M édio.38 Os reis regularmente tomavam a liderança nas atividades de culto e eram, às vezes, os principais sacerdotes em seus sistemas sacerdotais. Nem mesmo em Israel a noção de um sacer­dócio real era estranha, por causa de sua ideologia e experiências pró­prias.39 Nos tempos patriarcais, os pais tinham sido líderes civis e religi­osos de suas famílias e clãs, oferecendo sacrifícios e desempenhando outras funções de culto conforme sua vontade. Somente com a criação da ordem sacerdotal, representada na pessoa de Arão, houve uma base histórica demarcando as funções reais e sacerdotais, e residindo em pes­soas diferentes. Essa visão prevaleceu por todo o período do Antigo Tes­tamento, e até mesmo os discípulos de Jesus não puderam entender como o Filho de Deus poderia ser ao mesmo tempo Rei e Sacerdote, Soberano e Salvador. A seita judaica de Qumran antecipava dois messias - um sacerdotal, descendente de Arão, e um real, descendente de Davi.40 Foi o autor da Carta aos Hebreus quem pela primeira vez articulou o duplo papel de Jesus Cristo como Rei e Sacerdote. Jesus poderia ser um sacer­dote a despeito de seus ancestrais não terem sido da descendência de Arão, porque o seu sacerdócio era de uma ordem superior - da ordem de Melquisedeque (Hb 7.4-25).

36 Patrick Fairbairn, The Typology o f Scripture (Grand Rapids: Baker, 1975 reedição), vol.l, pp. 302-5.

37 Leslie C. Allen, Psalms 101-50, World Biblical Commentary (Waco: Word, 1983), pp. 78- 87.

38 Sidney Smith, "The Practice of Kingship in Early Semitic Kingdoms," em Myth, Ritual and Kingship, editado por Samuel H. Hooke (Oxford: Clarendon, 1958), pp. 22-73.

39 Roland de Vaux, Ancient Israel (N ew York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, pp. 113-14.40 Helmer Ringgren, The Faith o f Qumran (Philadelphia: Fortress, 1963), p. 182.

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Davi como sacerdote

Ser da ordem de Melquisedeque foi também a base do papel de Davi como sacerdote real e da sua escolha de Jerusalém como o local para a arca e para o tabernáculo. Ele entendeu que, assim como Melquisedeque era rei de Salém, ele, como um sucessor de Melquisedeque, deveria reinar em Jeru­salém. E assim como Melquisedeque era um sacerdote do Deus Altíssimo, também ele, como sucessor de Melquisedeque, em uma ordem superior à de Arão, poderia obter o santo privilégio do sacerdócio diante de Yahweh.41

Portanto, sobre essas bases teológicas, Davi pôde estabelecer a cidade de Jerusalém como centro religioso e político, mas para isso ele teve de enfrentar sérias dificuldades práticas. Estaria o povo preparado para este radical ajuste teológico? Iriam eles tolerar que a tradição religiosa fosse abalada, tradição que negava ao rei o direito de agir em qualquer área religiosa da nação?

Não é de espantar que Davi tenha reassumido o cortejo com cuidado redobrado e, depois de seguir os procedimentos corretos e louvar ao Se­nhor com toda a alegria, a arca foi finalmente trazida ao monte Sião. O próprio Davi conduziu a procissão, vestido em um éfode de linho, sacrifi­cando e dançando na presença de Yahweh. Quando a arca já estava segura e bem arrumada no tabernáculo, Davi e os levitas apresentaram ofertas queimadas e de comunhão perante Yahweh, atestando assim a aliança exis­tente entre Yahweh e seu povo Israel. Nem o cronista nem o escritor do livro de Samuel mencionam um sacerdote durante toda a cerimônia e sa­crifícios. Claramente Davi se via como um sacerdote e foi aceito pelo povo e pelos levitas. Seu papel sacerdotal também pode ser visto quando ele faz a designação do pessoal para o serviço religioso e para o trabalho no tabernáculo (1 Cr 16.4-6). Esses eram liderados pelo levita Asafe em Jeru­salém e por Zadoque, o sacerdote que servia no tabernáculo de Moisés em Gibeão (1 Cr 16.37-39).42 O fato de não haver menção de um sacerdote em

41 Walter Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, traduzido por David E. Green (Atlanta: John Knox, 1978), pp. 88-93; Walter Eichrodt, Theology o f the Old Testament (Philadelphia: Westminster, 1961), vol. 1, pp. 446-47; Dennis J. McCarthy, "Compact and Kingship: Stimuli for Hebrew Covenant Thinking," em Studies in the Period o f David anã Solomon and Other Essays, editado por Tomoo Ishida (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), pp. 82-85.

42 A referência mais antiga a Zadoque o descreve ocupando um ministério sacerdotal em Gibeão, e não em Jerusalém, pois há uma teoria que supõe que ele descendia de uma linhagem sacerdotal cananéia, com origem provavelmente em Melquisedeque, que na

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Jerusalém pode implicar no fato de que o próprio Davi preencheu essa responsabilidade, pelo menos inicialmente (ou que Abiatar assumiu tal função).

Pouco depois que Davi completou o tabernáculo de Sião, e depois que a arca foi posta nesse novo tabernáculo, ele passou a contemplar a dife­rença contrastante entre seu grande e belo palácio e a estrutura do tabernáculo, que representava a habitação de Yahweh, o Deus Todo-pode- roso. Ele questionou o fato de viver com tanta ostentação, ao passo que Yahweh vivia como um nômade. Assim Davi determinou em seu coração iniciar os planos para a construção do templo.

A rebelião de Absalão

A ocasião

Antes de os planos serem levados adiante, o filho de Davi, Absalão, instigou uma rebelião contra seu pai, a qual não apenas o obrigou a adiar

época ministrava em um santuário religioso em Jerusalém. De acordo com esse ponto de vista, Davi trouxe Zadoque para o sacerdócio javista e, por fim, promoveu-o sobre Abiatar (Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, p. 94). Frank M. Cross, conhecen­do as dificuldades de tal posição e da genealogia de Zadoque, sugere que este era um sacerdote da linhagem arônica em Hebrom antes do reinado de Davi em Jerusalém [Canaanite Myth and Hebrew Epic [ Cambridge: Harvard University Press, 1973), pp. 209- 15). Essa última hipótese é totalmente possível, embora não possa ser provada. Walter Brueggemann interpreta o sacerdócio como a expressão das tensões entre a monolítica tradição mosaica (sacerdócio de Abiatar) e a criação de um sacerdócio real, universal e messiânico (sacerdócio de Zadoque). Este último, diz ele, cresceu e prevaleceu nos dias de Davi, mas foi praticamente destruído nos dias de Salomão. Porém, Brueggemann não oferece uma única evidência convincente ("Trajectories in OT Literature and the Sociology of Ancient Israel," ]BL 98 [1979]: 170-71). Assumindo que o Eleazar de 1 Crô­nicas 24.3 era o pai de Zadoque, e identificando-o com o sacerdote Eleazar de Quiriate- Jearim (1 Sm 7.1), o estudioso J. Dus (citado por P.R. Davies, "The History of the Arki in the Books of Samuel," em JNSL 5 [1976]: 17) defende a idéia de que Zadoque era de Quireate-Jearim. Mas esse ponto de vista não pode ser sustentado, pois Eleazar foi de­signado sacerdote em Quiriate-Jearim mais de um século antes de Zadoque surgir. Ou­tro estudioso, Saul Oylam, diz que Zadoque era um auxiliar de Jeoiada (1 Cr 12.27-28), pai do general de Salomão chamado Benaia. Segundo Oylan, Zadoque era natural de Kabzeel, dentro do Neguebe. ("Zadok's Origins and the Tribal Politics of David," JBL 101 [1982]: 185). Jeoiada, de fato, era um nagid ("líder"), um chefe na casa de Arão (1 Cr 12.27) e um sacerdote (1 Cr 27.5), mas ninguém deve deduzir imediatamente que Zadoque tinha ligações arônicas e nem que esse Zadoque seja o mesmo Zadoque sacerdote.

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seus planos de construção, mas também o forçou a fugir da cidade de Jerusalém. Tudo isso deve ter ocorrido em cerca de 976, seis anos depois que Absalão voltou de Gesur. Foi durante esse tempo que Absalão desen­volveu uma política que enfraquecia a imagem de seu pai, em favor de sua própria, especialmente em Judá. Quando o momento pareceu propí­cio, ele insistiu com seu pai que o deixasse ir até Hebrom, sua cidade na­tal, para oferecer sacrifícios em cumprimento a um voto feito por ele em Gesur. Ao chegar a Hebrom, fez pública sua conspiração que vinha traba­lhando havia anos - ironicamente, reivindicou o reino em Hebrom como Davi havia feito trinta e cinco anos antes (2 Sm 15.7-12).

Quando Davi soube da conspiração, já era tarde demais para fazer algo, restando-lhe apenas fugir da capital. Absalão ganhava seguidores por todo o Israel - incluindo Jerusalém - e conseguiu recrutar até mesmo o conse­lheiro real, Aitofel. As razões para o declínio da popularidade de Davi e para a ascensão de Absalão não estão totalmente esclarecidas, embora este pudesse estar perto da verdade quando disse aos cidadãos que o rei, sem­pre muito ocupado, não podia atender-lhes os pedidos. Absalão insinua­va-lhes que, se ao menos fosse juiz, tudo faria para que a justiça fosse estabelecida. A avaliação dos fatos e uma política astuta, equivalente aos apertos de mãos de hoje, rapidamente alcançaram o coração do povo. Se a nossa sugestão de que Davi ocupara os anos com construções e com o estabelecimento de Jerusalém como centro do culto estiver correta, é pro­vável que Davi tenha negligenciado outros interesses do estado. Além dis­so, o fato de arrogar-se autoridade religiosa e política pode ter contribuí­do para sua falta de apoio, pois é bastante evidente que sua atitude o se­parava de alguns elementos da nação, particularmente os benjamitas. A reação de Mical, filha de Saul, pode ser um exemplo típico (2 Sm 6.20).

O exílio de Davi

Ávido por evitar a violência, Davi voluntariam ente partiu com seus seguidores e amigos mais chegados. N otáveis entre os seguidores, as tropas m ercenárias estavam com promissadas, é claro, exclusivam ente com Davi, e não com a nação. A intenção de Davi era retornar para Jerusalém no m om ento apropriado, já que havia deixado algum as concubinas para cuidar do palácio enquanto estivesse ausente, e tam­bém inform ou o sacerdote Zadoque que voltaria algum dia pela m ise­ricórdia de Deus (2 Sm 15.25).

É válido apontar que nesta conjuntura Davi, enquanto cruzava o Quidrom em sua rota para a Transjordânia, foi encontrado por Zadoque e

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os levitas, os quais carregavam a arca da aliança. Isso significa, obviamen­te, que a arca e o tabernáculo já estavam estabelecidos em Jerusalém. O fato de ser essa a primeira referência a respeito'da arca estar em Jerusalém reforça a tese de que Jerusalém não se tomou o santuário central até, pelo menos, a metade do reinado de Davi. Deve ser lembrado que Zadoque tornou-se o chefe dos sacerdotes em Gibeão somente após a chegada da arca em Sião. Evidentemente, entre a chegada da arca e a rebelião de Absalão, Zadoque serviu no tabernáculo davídico. Davi então pediu-lhe que conduzisse a arca de volta para Jerusalém, porque um dia Yahweh permitiria que o rei retornasse para vê-la, bem como o seu tabernáculo.

Quando chegou ao monte das Oliveiras, Davi soube que o seu conse­lheiro de confiança, Aitofel, havia se juntado a Absalão. Nesse momento, Usai, um grande amigo de Davi, o ajudou em um plano que visava frus­trar a utilidade de Aitofel para Absalão: Usai voltaria para Jerusalém, ga­nharia a confiança de Absalão e lhe ofereceria conselhos contrários aos de Aitofel. Também serviria como um agente secreto para conhecer os planos de Absalão, passando-os a Davi através de seus filhos Abiatar e Zadoque.

A próxima pessoa com quem Davi se encontrou foi Ziba, o servo de Mefibosete. Ziba prontamente informou Davi de que seu senhor havia permanecido em Jerusalém, porque estava convencido de que a queda do rei resultaria no restabelecimento da dinastia de Saul, tendo ele como o cabeça (2 Sm 16.1-4). Essa informação, embora pareça uma inverdade, su­gere que ainda devia existir um resíduo pró-saulida em Israel. Poderia até ser que esses elementos vissem na ruptura entre Davi e Absalão uma opor­tunidade para, mais uma vez, dividirem a nação em Israel e Judá, estabe­lecendo um descendente de Saul no trono do norte. Mais surpreendente é que os esforços de Davi para unificar a nação tenham sido bem-sucedidos apenas superficialmente.

A hostilidade latente dos benjamitas expressou-se totalmente mesmo quando Davi ainda saía da capital. Em Baurim (talvez Ras el-Temim),43 no flanco sul do monte das Oliveiras, Simei, um parente de Saul, começou a amaldiçoar e zombar de Davi, lembrando-o de que ele havia usurpado o trono de Saul, e agora Absalão servia como agente punitivo de Deus. Com admirável resignação, Davi sofreu a afronta, sabendo que tudo isso vinha de Deus. E, caso Deus tivesse realmente enviado Simei para o amaldiçoar, Ele poderia no tempo certo transformar a maldição em bênção.

De volta a Jerusalém, Absalão preparou-se para assumir o controle do governo. Isto foi simbolizado, dentre outras maneiras, pela apropriação

43 Tentativas foram identificadas em Aharoni e Avi-Yonah, MacMillan Bible Atlas, p. 176.

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pública das concubinas de seu pai, um ato que no antigo Oriente Médio geralmente indicava a transferência de poder de um rei para outro.44 Ele também formulou um plano para perseguir seu pai, a fim de remover qual­quer ameaça. O plano foi totalmente delineado por Aitofel, que aconselhou Absalão a perseguir imediatamente Davi, enquanto este ainda estivesse fra­co e confuso. Mas, estando Absalão pronto para realizar o plano, Usai, que já havia conquistado sua confiança, aconselhou-o de outra forma. Ele o per­suadiu de que seria tolice enfrentar o guerreiro experiente Davi com apenas doze mil homens. Seria melhor esperar e juntar um exército forte o suficien­te para destruí-lo no campo de guerra ou retirá-lo de alguma fortaleza.

Este conselho pareceu melhor a Absalão, de forma que adiou a persegui­ção por um tempo. Então Usai enviou Jônatas e Aimaás, filhos de Abiatar e Zadoque, ao acampamento de Davi, recomendando-lhe que cruzasse o Jordão imediatamente, e buscasse refúgio em outro local. Aitofel, o conse­lheiro que ficou ao lado de Absalão, voltou para casa e enforcou-se.

Davi partiu para o leste de Maanaim (Tel edh-Dhahab el-Gharbi),45 no Jaboque superior. Esta havia sido a capital de Is-Bosete, quando este ainda reinava, mas é provável que Davi tenha sido bem recebido na cidade, em conseqüência de sua misericórdia para com Mefibosete, o neto de Saul. Os amigos da Transjordânia vieram em seu auxílio - inclusive Shobi, filho de Naás, o rei dos amonitas (2 Sm 17.27). Sem dúvida, ele era irmão de Hanum, o rei que havia tratado os embaixadores de Davi de forma vergonhosa. Shobi provavelmente tentava desfazer o mal causado por seu irmão. Também é claro que os amonitas eram um estado tributário de Israel, de forma que não havia outra escolha.46 Maquir, de Lo-Debar, também chegou com mui­tos suprimentos. Uma vez que Mefibosete tinha vivido com este bom ho­mem antes de Davi o tomar, a generosidade de Maquir é mesmo compreen­sível. O último benfeitor foi Barzilai, de Rogelim (Bersinya),47 um vilarejo 19 quilômetros a sudoeste de Lo-Debar, local desconhecido. Ele mostrou favor ao rei, e foi convidado a voltar com Davi para Jerusalém.

A m orte de Absalão

Enquanto isso, Absalão cruzava o Jordão com seu exército, dirigido por Amasa, sobrinho de Davi. Davi dividiu suas tropas em três frentes sob

44 de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, p. 116.45 Aharoni e Avi-Yonah, MacMíllan Bible Atlas, p. 181.46 John Bright, A History o f Israel, 3a ed. (Philadelphia: Westminster-rl&Sl), pp. 203, 209.47 Assim pensam Aharoni e Avi-Yonah, embora com alguma hesitação, em MacMillan Bible

Atlas, p. 182.

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o comando de Joabe, Abisai, e do mercenário hitita Itai. Então, permane­cendo em Maanaim a pedido do povo, Davi enviou as tropas, pedindo solenemente que seu filho Absalão fosse poupado. Os dois exércitos en- contraram-se nas florestas de Efraim, e Israel, sob o comando de Absalão, sofreu terrível derrota, fugindo totalmente humilhado. Durante a fuga, Absalão ficou preso em alguns galhos e suspenso à vista de todos, e ali mesmo foi cruelmente assassinado por Joabe (2 Sm 18.4-15).

A despeito do protesto de Joabe, Aimaás correu para informar Davi acerca da morte de seu filho, mas quando chegou perante o rei, não teve coragem de contar-lhe. Um mensageiro cusita, entretanto, deu-lhe as más notícias, e Davi, conforme Joabe havia antecipado, chorou copiosamente. O lamento de Davi minou a moral das tropas vitoriosas. Eles haviam se arriscado pelo rei somente para vê-lo lamentar-se por aquele que havia instigado a rebelião em Israel.

Esta foi a última gota para Joabe. Davi havia punido o jovem que disse­ra ter matado Saul (2 Sm 1.15); levantou um forte pranto por Abner, que havia sido morto por Joabe, e lhe deu um enterro com todas as honrarias (2 Sm 3.31-39); também executou os assassinos de Is-Bosete, que era o seu principal obstáculo ao trono (2 Sm 4.12); e agora, mais uma vez, Davi cho­rava para todo o mundo ver, quando na realidade Joabe lhe tinha feito um grande favor, exterminando o seu adversário (2 Sm 18.33). Uma pessoa cínica pode sugerir, com alguma justificação, um grau de motivação polí­tica no lamento de Davi por seus inimigos, mas não parece ter sido esse o caso. Davi, sem dúvida, queria ter morrido em lugar de seu filho, pois entendia que a morte deste era, na realidade, o reflexo de seu próprio adul­tério e da espada que passaria a assolar sua família.

Joabe, entretanto, não via a situação desta maneira. Ele contendeu com Davi por causa de sua insensibilidade para com os que tudo faziam pelo rei: "amando tu aos que te aborrecem, e aborrecendo aos que te amam" (2 Sm 19.6). Além do mais, disse Joabe, se Davi não animasse os seus guer­reiros e seguidores, acabaria só e perdedor.

Os esforços de Davi para reconciliação

Proposta a Judá

A repreensão de Joabe forçou Davi a considerar como poderia ganhar a lealdade de Israel e, mais ironicamente, de sua própria tribo Judá.48 Os

48 Uma interpretação fascinante do processo que envolveu o retorno de Davi, ver Hayim Tadmor, "Traditional Institutions and the Monarchy: Social and Political Tensions in the

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habitantes do norte já reconheciam que, com a morte de Absalão, Davi voltaria a ser o rei. Judá, contudo, não expressava o mesmo sentimento, um fato de que Davi se achava consciente. Enviou, pois, uma mensagem aos anciãos de Judá, perguntando-lhes o motivo da relutância em permiti- lo voltar, especialmente visto que Israel já se mostrava favorável. Assim, depois de envergonhá-los apelando para a comum ascendência, Davi as­tutamente colocou no comando de seu exército Amasa, general de Absalão, em lugar do insolente e agora desacreditado Joabe. Tal atitude agradou o povo, de forma que foi enviada uma delegação a Gilgal para encontrar-se com o rei e reafirmar-lhe sua lealdade (2 Sm 19.15).49

A pelos fe itos a Benjamim

Quando ficou claro para toda a nação que Judá se associara novamente a Davi, Simei e Ziba, líderes de Benjamim, conduziram uma caravana de sua tribo para reconciliar-se com o rei. Embora Abisai estivesse ansioso por matar Simei em razão de ter este amaldiçoado abertamente o rei, Davi viu na ocasião uma oportunidade para curar a ferida entre Benjamim e Judá, e todo o restante de Israel, de forma que o deixou viver.

Agora surge no cenário o jovem Mefibosete. Ziba, em ocasião anterior, acusou-o de traição ao rei. Quando Davi dirigia-se para Jerusalém , Mefibosete rapidamente foi explicar ao rei que havia sido mal interpreta­do. Tinha a intenção de unir-se ao rei, mas não podia fazê-lo devido à incapacidade física. Mais uma vez Davi mostrou sua habilidade diplomá­tica, e não apenas restaurou o jovem Mefibosete à sua corte, mas também perdoou o servo mentiroso Ziba.

Tão bem -sucedidos foram os esforços de Davi em favor da reconci­liação que Judá e as outras tribos passaram a discutir acerca de quem era, de fato, a tribo mais fiel, e quem mais tinha se pronunciado a favor do rei. Judá argum entava que tinha maior ligação com Davi por causa do mesmo sangue, mas Israel protestou afirmando que eram dez tri­bos, enquanto Judá era somente uma e, além disso, eles haviam tom a­do a iniciativa de devolver ao rei o trono. Assim, Davi conseguiu har-

Time of David and Solomon," em Studies in the Period o f David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, pp. 247-50.

49 Embora Gilgal fosse considerada um local estratégico de reuniões, visto que estava muito próxima do Jordão, deve-se observar o fato de que a monarquia de Davi está sendo reafirmada no mesmo local em que Saul tinha feito, pela primeira vez, a aliança real com a nação (1 Sm 11.14,15).

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monizar-se com o povo ao preço de uma profunda e fatal divisão entre o norte e o sul.

Mais problemas para Davi

A rebelião de Seba

Aproveitando-se do mal-estar entre as tribos, um benjamita chamado Seba organizou um novo movimento cismático que rapidamente atraiu um grande número de seguidores insatisfeitos em Israel. Na verdade, essa foi uma tentativa abortada a tempo, mas que expressava a divisão política que aconteceria quarenta anos mais tarde sob a liderança de Jeroboão. Davi, depois de reinstalar-se em Jerusalém, ordenou que convocassem as milíci­as de Judá e dessem fim a Zeba, com receio de que acontecesse um mal pior do que aquele feito por Absalão. Ao perceber que Amasa mostrava-se lento em resolver a questão, Davi enviou os generais Abisai e Joabe com seus exércitos. Encontraram-se todos em Gibeão e lá, fingindo abraçar Amasa, Joabe o matou traiçoeiramente, assumindo novamente o coman­do (2 Sm 20.9,10).

Joabe perseguiu Seba até Bete-Maaca (Abil el-Qamh), ao norte de Dã. Quando pareceu que Joabe demoliria a cidade a fim de capturar Seba, uma mulher sábia que ali morava fez com que o achassem na cidade, e o mataram ali mesmo, atirando para fora do muro a sua cabeça. Assim a revolução chegou ao fim, mas deixou sementes de discórdia que anuncia­vam o pior.

O infeliz recenseam ento

Depois das revoluções de Absalão e Seba, foi necessário Davi reavaliar sua situação militar contra a possibilidade de mais surpresas e emergênci­as. Isto pode em parte explicar o censo registrado em 2 Samuel 24 (ver 1 Cr 21), um censo que o historiador informa ter sido motivado pelo próprio Yahweh por causa de sua ira contra Israel. A causa específica de sua ira é desconhecida, mas Davi não hesitou em obedecer os desejos de seu cora­ção de fortalecer seu poder, e contar com um exército que lhe valesse nas horas certas.

Embora Joabe tenha se manifestado contra o recenseamento, foi-lhe designado a tarefa de supervisioná-lo. Joabe começou a contagem da Transjordânia, deu a volta pelo norte até Dã, a oeste de Tiro e Sidom e, por fim, chegou ao sul, até Berseba. O total era oitocentos mil homens de Isra­

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el e quinhentos mil hom ens de Judá, excluindo as tribos de Levi e Benjamim.50 Somente depois de a tarefa ter sido concluída o rei sentiu ter pecado perante o Senhor - ele havia posto sua confiança na carne ao invés de em Yahweh. Agora era tarde demais, pois o Senhor já tinha decretado punir o seu povo em uma dentre as três formas: três anos de fome; três meses fugindo de seus inimigos ou três dias de praga. Sem saber qual a decisão certa a tomar, Davi deixou-se levar pelas misericórdias de Deus. O resultado foi uma praga que ceifou setenta mil almas em todo o territó­rio de Israel.

Quando o julgamento de Yahweh estava para alcançar a cidade de Je­rusalém, Ele reteve a espada do anjo no campo de Araúna, um jebuseu que lá habitava. Tendo visto o anjo com os próprios olhos, Davi caiu pros­trado diante do Senhor em profundo arrependimento. Então levantou-se, negociou o campo com Araúna pelo preço real dos imóveis da época e erigiu ali um altar sobre o qual sacrificou ofertas queimadas e pacíficas diante de Yahweh. Por fim, a praga cessou.

O plano de Davi para construir um templo

Os motivos de Davi

O mais significativo em toda a narrativa do censo e suas conseqüências é que Davi pôde perceber que a eira de Araúna, o jebuseu, deveria ser o local do templo de Yahweh (1 Cr 21.28-22.1). Obtendo esta percepção, passou a reunir os materiais e a mão-de-obra especializada para dar início às preparações da edificação que seu filho Salomão veria terminada.

O desejo de Davi de edificar um templo para Yahweh começou após Hirão, rei de Tiro, ter-lhe construído um palácio real, e a arca da aliança ter sido trazida para Jerusalém. Por várias razões, incluindo talvez a rebe­lião de Absalão, a obra não pôde ser executada naquele período. Agora, cerca de quatro ou cinco anos depois, o momento parecia propício, especi­almente porque a eira de Araúna havia sido comprada e designada para esse propósito.

O motivo da intenção de Davi de construir um templo é claro: ele vivia em um suntuoso palácio de cedro, enquanto Yahweh habitava em uma simples tenda (2 Sm 7.1,2; 1 Cr 17.1). É importante entender que, no antigo Oriente Médio, a soberania de um monarca não era totalmente reconheci­

50 Quanto ao problema destes e outros números altos, ver J. W. Wenham, "Large Numbers in the Old Testament," Tyn Buli 18 (1967): 19-53, esp. 33-34.

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da até que tivesse construído uma apropriada habitação.51 Se isto era ver­dade sobre os reis humanos, quanto mais o seria sobre os deuses, que, afinal, eram os verdadeiros reis sob os quais os governadores serviam! De fato, estudos etimológicos indicam que a palavra hebraica "tem plo" está relacionada com palácio. Os sumerianos chamavam seu templo de E.GAL ("grande casa"), que foi trazida para o hebraico (hêkal) por meio do acadiano (ekallu). Até mesmo o templo de Yahweh era considerado não apenas um lugar para se oficiar cerimônias religiosas, mas também o palácio no qual Ele, o Soberano do céu e da terra, vivia entre seu povo.52

Além disso, embora parecesse prático para Yahweh habitar em uma tenda durante os dias da peregrinação no deserto, o fato é que por cerca de quatrocentos anos a nação já estivera estabelecida na terra. Por que, perguntava Davi, Yahweh precisaria ainda morar em uma tenda, refletin­do um período de transição já ultrapassado pela nação? Assim como seu povo, Yahweh entrou em Canaã para morar e, sendo assim, poderia habi­tar em um palácio majestoso o suficiente para expressar sua grandeza, manifestando sua autoridade e soberania sobre todos os outros deuses.

A resposta de Yahweh: a aliança davídica

Essas eram claramente as preocupações de Davi, e formavam a base para seu pedido implícito de iniciar tal projeto. A resposta de Yahweh foi atordoante: "...o Senhor te faz saber que o Senhor te fará casa" (2 Sm 7.11). Ele esteve satisfeito em morar em uma tenda desde o êxodo até o presente momento. De qualquer forma, ainda que algum dia Yahweh habitasse em um templo, tal edifício não seria construído por Davi, mas por seu filho que o sucederia no trono. Então, em uma das mais marcantes e significati­vas passagens teológicas da Bíblia, Yahweh revelou que Davi, longe de construir uma casa para Yahweh, seria ele mesmo uma casa, ou seja, uma dinastia, a qual não mais teria fim (2 Sm 7.11-13). As promessas feitas aos patriarcas com respeito a um reinado sem fim foram, por fim, cumpridas em Davi e em seus descendentes.

Yahweh lembrou que havia tirado Davi do aprisco para fazê-lo pastor de seu povo. A confirmação da eleição divina pode ser vista no êxito de Davi no passado e nas promessas com respeito ao futuro. O nome de Davi (i.e., reputação) seria grande, seu povo habitaria para sempre na terra e seu filho

51 A. Leo Oppenheim, Ancient Mesopotamia (Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. 95-98.

1,2 de Vaux, Ancient Israel, vol. 2, pp. 282-83.

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construiria um templo para Yahweh. Seu filho - Salomão, a continuidade da dinastia e o messiânico Filho de Davi - reinaria para sempre.53

A promessa, geralmente descrita como a aliança davídica, é tecnica­mente apresentada como uma concessão real, por meio da qual um sobe­rano graciosamente concede uma bênção ou presente, usualmente na for­ma de um pedaço de terra ou a liberdade de alguém, a um vassalo. Essa concessão seria o resultado de uma atitude benéfica para com o rei, mas poderia simplesmente derivar do amor e generosidade do rei.54 A última hipótese é, sem dúvida, a mais próxima do correto, pois a promessa do reinado eterno através de Davi tinha sido articulada antes de seu nasci­mento. Desde o início foi o propósito de Deus trazer sua soberania sobre seu povo (e sobre toda a terra) através de uma linhagem real que culmina­ria no próprio Filho de Deus. Davi conseguiu entender que a linhagem teria início com ele mesmo.

A singularidade do reinado de Davi

Portanto Davi, que havia assumido um papel sacerdotal superior ao da ordem aarônica, assumiu também o papel de vice-regente de Deus, o rei humano que, em virtude de sua adoção por Deus, tornou-se filho de Deus de forma única e dramática. Os reis do antigo Oriente Médio viam- se como divinos ou possuidores de autoridade divina; porém Davi, e to­dos os seus descendentes, compreenderam que o verdadeiro e único Deus do universo tinha concedido graciosamente sua soberania sobre eles, de form a que poderiam representá-lo agora e preparar-se para o dia escatológico, quando o último rei da linhagem, o segundo Davi, reinaria unicamente e para sempre.55

E impossível aqui prosseguir nas implicações teológicas ou mesmo his­tóricas do reinado de Davi. Mas uma breve atenção deve ser dispensada a alguns dos chamados salmos da realeza, que tratam de assuntos da corte.

53 Walter C. Kaiser, Jr., Toiuard an Old Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1978), pp. 149-64; Talmon, "Biblical Idea," em The Bible World, pp. 247-48.

54 Moshe Weinfeld, "The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East," JAOS 90 (1970): 184-203, esp. 185-86. E. Theodore Mullen, Jr., diz que entre os hititas tais concessões tinham de ser feitas diante de uma testemunha divina. Mullen sugere que, embora esse detalhe esteja faltando em 2 Samuel 7 e em 1 Crônicas 17, o mesmo não ocorre no Salmo 89.37 (v. 38 no texto hebraico), um oráculo real cujo propó­sito, diz ele, é interpretar o oráculo de Natã ("The Divine Witness and the Davidic Royal Grant: Ps 89.37-38," JBL 102 [1983]: 207-18).

55 Kaiser, Toward an Old Testament, pp. 152,16^.-62.

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No Salmo 2 Davi descreve-se como o "ungido" (v. 2), que foi gerado como seu filho (v. 7), e que reinará sobre todas as nações da terra (vv. 8-9). Tal descrição dificilmente se encaixaria com um rei puramente humano, mas apenas com aquEle que, como Davi, havia sido especialmente separado por Yahweh.56 De forma semelhante, no Salmo 18, Davi fala de reinar so­bre um povo que não o conheceu pessoalmente (v. 43), e de ser o recipien­te da hesed de Yahweh ("bondade") para todo o sempre (v. 50). O Salmo 45 celebra o casamento do rei e assegura que Deus o ungiu, de forma que ele permanece exaltado sobre os demais (v. 7). No Salmo 72 o rei Salomão fala do reinado eterno e universal do rei (vv. 8-11); o nome do rei permanecerá para sempre e nele serão abençoadas todas as nações (v. 17). Davi, no Sal­mo 101, assume o papel que pertence ao próprio Yahweh na função de juiz moral e espiritual. Ele reivindica as prerrogativas que, de outra ma­neira, são reservadas exclusivamente a Deus (vv. 5-8).

E no Salmo 110 que os dois ofícios de Davi - rei e sacerdote - são vistos justapostos.57 Sua adoção por Yahweh é claramente expressa nos versículos1 e 2, e lhe são feitas promessas de vitória sobre todos os inimigos em virtude desta ligação. Então, ele passa a ser descrito como um sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque (v. 4). Finalmente, Davi (i.e., Cristo) julgará todas as nações e levantará sua cabeça em um último triun­fo (vv. 5-7).

A resposta de Davi à promessa incondicional de Deus para ele e Isra­el nesta concessão real é muito importante. Ele estava espantado por Yahweh tê-lo escolhido dentre todo o povo, tratando-o como se fosse o mais exaltado de todos (1 Cr 17.17). Sentia-se perplexo porque a escolha feita por Deus seria perpétua, ou seja, pertenceria aos seus descendentes (2 Sm 7.19). Tudo isso, ele diz, tem sido feito pelo único Deus, que graci­osamente escolheu e redimiu o seu povo Israel como sua propriedade peculiar. Finalmente, ele ora para que Deus se lembre dele e de sua casa para sempre, uma oração na qual Davi se mostra confiante da resposta de Deus (1 Cr 17.27). O mesmo sentimento ecoa nas últimas palavras (2 Sm 23.1-7) de Davi:

A inda que m inha casa não seja tal para com D eus, contudo estabeleceu com igo um concerto eterno, que em tudo será bem ordenado e guardado [v. 5]

56 Peter C. Craigie, Psalms 1-50, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1983), pp.65-69.

57 Samuel Terrien, The Elusive Presence (New York: Harper and Row, 1978), pp. 295-98.

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Fora de questão, Davi sabia que Deus o tinha escolhido por sua exclu­siva soberania, como um instrumento através do qual Ele traria as bên­çãos temporais e eternas sobre o mundo.

Preparativos para o templo

O desejo de construir um templo para Yahweh resultou em benefícios inesperados para Davi. Não poderia cumprir o desejo de seu coração, mas Deus lhe construiria uma casa através da qual sua soberania encontraria expressão eterna e universal. Além disso, embora Davi não tivesse per­missão para construir o templo, pelo menos possuía autorização para dar início aos preparativos da obra. O autor de 2 Samuel raramente dá pistas acerca dessa preparação, mas Crônicas, que é um livro particularmente interessado nas questões do culto, a menciona com muitos detalhes.

O cronista deixa claro que os preparativos da construção somente ini­ciaram depois da aquisição do campo de Araúna, um episódio que deve ter ocorrido pouco depois das rebeliões de Absalão e Seba. Isso exigiria uma data bem tarde no reinado de Davi, mas suficiente para acomodar o recrutamento de pessoal especializado, a compra de materiais e uma bre­ve co-regência com Salomão. Uma data bem provável seria 973.

Davi deu início ao projeto convocando todos os cortadores de pedras que viviam em Israel como estrangeiros, ordenando-lhes que preparas­sem blocos de pedra com um corte perfeito, segundo as especificações (1 Cr 28.12). Isso só foi possível porque o Espírito de Deus já lhe tinha revela­do todo o projeto e especificações necessárias detalhadamente (1 Cr 28.12). Ele também se incumbiu de buscar o ferro, o bronze e o cedro para a gran­de construção.

O próximo passo foi encarregar seu filho Salomão de completar o que ele podia apenas começar (1 Cr 22.6-13). Ele havia desejado construir o templo, mas Deus negou-lhe o privilégio, uma vez que era um homem de guerra. Mas seu filho Salomão (Selom oh), um homem de paz (salôm ), seria o responsável pela construção. Seria o filho de Deus, conforme Yahweh tinha prometido na concessão real, e se assentaria no eterno trono de Davi (1 Cr 22.10). O rei Davi, ao sentir que havia chegado o tempo, advertiu Salomão de que fosse não apenas fiel à construção do templo, mas tam­bém à Lei.

Davi ordenou que todos os líderes de Israel cooperassem com seu filho Salomão (1 Cr 22.17). Deus tinha dado descanso ao povo em toda a terra, de forma que esta era a ocasião de construir o templo e colocar-lhe dentro a arca, como um sinal de que Deus habitava no meio de seu povo. Davi

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então firmou o pedido de honra e obediência a Salomão, fazendo-lhe seu co-regente, legitimando assim a autoridade de seu filho.58

Feito isso, Davi lembrou a seus oficiais as suas obrigações para com a aliança e o templo (1 Cr 28.1-8). Ele quisera construir o templo, Davi reite­rou, mas não pôde porque era um homem de sangue. Porém Deus o havia escolhido para ser rei para todo o sempre, uma escolha tão antiga quanto a bênção das tribos pronunciada por Jacó. Então, dentre os seus filhos, Yahweh escolhera Salomão para sucedê-lo. Portanto, o mandato divino de Salomão era tão legítimo quanto o de Davi.

Na presença de todos os oficiais reunidos, Davi procedeu em encarre­gar Salomão da grande responsabilidade de reinar (1 Cr 28.20-21). Ele de­veria ser fiel à Lei e a Yahweh. Esta fidelidade seria expressa em sua obe­diência aos mínimos detalhes da construção, sobre os quais Davi tinha sido revelado e compartilhado com seu filho (1 Cr 28.11). O templo seria construído por mãos humanas, mas sua estrutura e dependências teriam de conformar-se com os desígnios do céu. A estrutura terrena seria um antítipo do que existia na mente de Deus, e cada detalhe serviria para comunicar algo de sua natureza e propósito. Nem mesmo o rei poderia usar sua imaginação ou criatividade nesse projeto tão santo.59

Quanto ao custo da obra, Davi afirmou que vinha acumulando metais e pedras preciosos no tesouro público (1 Cr 29.1-5). Esses objetos, provenien­tes dos despojos militares e tributos pagos à nação, foram destinados espe­cificamente para o serviço de Yahweh. Davi também colocou todos os seus bens à disposição da construção do templo, e desafiou seus oficiais a faze­rem o mesmo. O resultado foi impressionante: juntos, os líderes deram 190 toneladas de ouro, 375 toneladas de prata, 675 toneladas de bronze, e 3750 toneladas de ferro, além de muitas pedras preciosas (1 Cr 29.6-9)!

Finalmente, Davi encerrou a reunião cerimonial com uma oração de louvor e súplica (1 Cr 29.10-19). Exaltou ao Senhor por ser aquEle que

?8 Que aqui temos, sem dúvida, uma solenidade de co-regência, fica claro pelo fato que Davi, noutra ocasião mais à frente, refere-se a Salomão como sendo o escolhido de Deus (1 Cr 29.1) e que Salomão foi feito rei "pela segunda vez" (v. 22). Ver em Leon J. Wood, IsraeVs United Monarchy (Grand Rapids: Baker, 1979), pp. 276-77; E. Bali, "The Co-Regency of David and Solomon (1 Kings 1)" VT 27 (1977): 268-79.

59 Tryggye N.D. Mettinger chega mesmo a dizer que o templo era "céu sobre a terra." Embora seus paralelos extraídos da antiga mitologia do Oriente Médio possam ser ques­tionados, sua posição ao referir-se ao templo como a localização terrena de uma habita­ção divina celestial não estaria longe da verdade ("YHWH SABAOTH - The Heavenly King of the Cherubim Throne," em Studies in the Period o f David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, pp. 119-23).

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concede todas as bênçãos, inclusive riquezas, e somente dEle os homens dependem para viver. O rei intercedeu pelo filho e pelo povo, a fim de que permanecessem fiéis e obedientes às exigências da aliança. Ao final da oração, o povo expressou seu compromisso, inclinando-se perante Yahweh e seu rei, o ungido.

A sucessão salomônica

Cerca de dois anos mais tarde, o jovem Salomão foi trazido diante do povo para a cerimônia pública de coroação. Salomão já havia sido desig­nado como o sucessor pelo próprio Davi, mas era necessário que sua pos­se fosse solenizada e ratificada. Um procedimento semelhante havia ocor­rido com Saul e Davi. Haviam sido escolhidos particularmente em uma ocasião, e investidos da autoridade diante do povo em outra. O cronista diz que Salomão estava sendo reconhecido como rei pela segunda vez, e agora era ungido diante de Yahweh (1 Cr 29.22b). Foi ordenado que todos, o povo e os oficiais, prometessem obediência e submissão ao novo rei, incluindo os próprios filhos de Davi (1 Cr 29.23,24).

A impressão comunicada pelo cronista é que a transferência de poder de Davi para Salomão ocorreu tranqüilamente e sem qualquer oposição. Mas este não foi o caso, como o escritor de 1 Reis esclarece. O cronista normalmente estava interessado em resultados básicos, não nas circuns­tâncias ou ações pelos quais se concretizavam. Isto é verdadeiro especial­mente em relação à área política, pois o cronista preocupava-se primaria­mente com as questões do templo e do culto.

Segundo alguns estudiosos, os primeiros dois capítulos de 1 Reis estão ligados à sucessão da narrativa de 2 Samuel 9-20, porque a ordem da nar­rativa fica sem sentido sem essa conexão.60 O cenário inicial de 1 Reis 1-2 são os últimos dias do rei Davi, com ênfase nos dias entre a co-regência de Salomão como sucessor (1 Cr 23.1) e a formalização de seu reinado, na cerimônia de coroação (1 Cr 29.22b-24). Agora, Davi estava velho e sem condições para conduzir os negócios do reino. Ele havia iniciado os pre­parativos da construção do templo, adquirindo a mão-de-obra e os mate­riais necessários. Também todos estavam cientes de que seu filho Salomão o substituiria no trono e concretizaria a obra de construção do templo.

A notícia da escolha oficial de Salomão não agradou a todos, particu­larmente a seu irmão Adonias, que pensava ter maior direito ao trono. Salomão, afinal, não era o filho mais velho, e pelo costume não poderia

60 Ishida, "Solomon's Succession", pp. 186-87.

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esperar suceder a seu pai. O mais velho, Amnom, havia sido assassinado por seu irmão Absalão. E este, o próximo herdeiro (Quileabe, o segundo mais velho, desapareceu de cena), morreu em uma rebelião fracassada. Adonias era o quarto filho de Davi e o mais velho sobrevivente. Salomão era quinze anos mais novo do que Adonias; além disso, era fruto de uma união no mínimo escandalosa. Apesar disso, Salomão foi amado por Yahweh desde seu nascimento (2 Sm 12.24), e ficou claro para Davi desde aquele tempo que Salomão reinaria em seu lugar (1 Cr 22.9-10).

Quando se tornou óbvio para Adonias e os seus seguidores que Davi tornaria pública a escolha oficial de Salomão, imediatamente tomou me­didas preventivas. Ajuntou um contingente militar, sem fazer evidente­mente qualquer alarme, e alistou como conspiradores Joabe e Abiatar. Es­tes, juntamente com os demais irmãos e outros oficiais, reuniram-se em En-Rogel (Bir Ayyub), próximo à junção dos vales do Quidrom e Hinom. Lá aclamaram Adonias como o novo rei (1 Rs 1.9,11,18).

O profeta Natã descobriu a conspiração e, por meio de Bate-Seba, in­formou a Davi o que estava acontecendo. Natã entrou na câmara real e confirmou todas as palavras de Bate-Seba, asseverando a Davi que qual­quer hesitação em tomar uma atitude significaria que seus planos de fazer Salomão o rei seriam em vão, pois Adonias usurparia o trono. Assim, Davi convocou o sacerdote Zadoque e outros homens que ainda lhe eram leais, e imediatamente ordenou-lhes que tomassem providências para coroar Salomão em Giom, que ficava no vale do Quidrom, pouco ao norte de En- Rogel.

De acordo com as ordens de Davi, Zadoque, Natã e os outros oficiais escoltaram Salomão, que foi carregado na mula oficial do rei Davi até Giom, onde Zadoque formalmente o ungiu rei. O povo, embora reunido às pressas e talvez em pequeno número, reconheceu com alegria e sole­nidade a liderança de Salomão, prometendo servi-lo (1 Rs 1.39,40; 1 Cr 29.22). Os sons da festividade e aclamação do rei Salomão chegaram aos ouvidos de Adonias e seus conspiradores, que ainda celebravam a coro­ação de Adonias não muito distante daquele local. Naquele momento, um mensageiro foi até Adonias dizer-lhe que a conspiração havia fracas­sado, pois Salomão tinha sido coroado com a sanção de Davi e da maio­ria do povo. Os seguidores de Adonias fugiram enquanto ele próprio apegou-se ao altar no monte Sião em busca de refúgio contra a ira de Salomão. Porém o rei Salomão perdoou-lhe a terrível ofensa, e o convi­dou para as festividades da sucessão. De acordo com o cronista, "todos os príncipes, os grandes e até todos os filhos do rei Davi prestaram ho­menagens ao rei Salom ão" (1 Cr 29.24).

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Pouco tempo após a coroação de Salomão, Davi morreu, na idade de setenta anos. O seu reinado durou quarenta anos - sete em Hebrom e trin­ta e três em Jerusalém. O cronista declara que ele desfrutou de uma longa vida, com riquezas e honra, e que os detalhes de seu reino podem ser acha­dos nos registros de Samuel, Natã e Gade. Os registros de Samuel têm, é claro, sobrevivido nos livros canônicos de Samuel. As obras de Natã e Gade são mencionadas somente nos livros do cronista, e certamente serviram como principais fontes de informação não contidas em Samuel.

A burocracia davídica

M ilitar

Um estado amplo e importante como Israel requeria uma superestru- tura administrativa e religiosa.61 De fato, já nos dias em que fugia de Saul, Davi começava a atrair pessoas ao seu redor, que conseqüentemente for­maram o núcleo de seu governo. Por razões óbvias, esse grupo de seiscen- tos (1 Sm 27.2) era essencialmente militar no princípio. No curso de seu exílio, Davi ganhou o apoio de Abiatar, filho de Aimeleque, o sacerdote. Abiatar serviria por muitos anos como capelão de Davi.

Pouco se sabe dos sete anos em Hebrom, exceto que Joabe serviu como comandante militar, pelo menos extra-oficialmente. Depois de chegar a Je­rusalém, Joabe foi confirmado na posição e manteve-a, não obstante os tem­pos difíceis, até que veio a ascensão de Salomão, quando optou por seguir Adonias. Abiatar provavelmente continuou servindo na função de sacerdo­te, embora como e com quais aparatos ele pôde oficiar os sacrifícios não seja conhecido. A família de Davi crescera bastante durante aqueles anos, em parte devido aos casamentos políticos de Davi. Assim ele estabelecia uma modesta relação internacional, mesmo durante o seu reino em Hebrom.

Os seiscentos homens de Davi devem ter-se fortalecido após ele ser constituído rei de Judá, embora não haja informações específicas a respei­to. O fato de Abner ter sentido necessidade de negociar com Davi, ao in­vés de lhe fazer guerra, indica que Davi representava uma grande ameaça militar contra Israel. Deve-se lembrar, é claro, que os exércitos de Israel haviam sido dizimados em Gilboa pelos filisteus. Uma vez estabelecido como rei sobre todo o Israel, Davi foi capaz de derrotar os filisteus pelo menos por duas vezes em Refaim.

61 Para uma visão mais abrangente, ver S. Yievin, "Administration," World History o f tbe ]ewish People, vol. 5, pp. 147-71.

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A unificação de Judá e Israel trouxe não apenas uma maior responsabi­lidade para Davi, mas também a necessidade de criar estruturas adequa­das a fim de possibilitar ã nação recobrar-se dos traumas militares exter­nos e dos conflitos internos. Com um pouco de unidade alcançada, Davi centralizou o governo em Jerusalém sem sacrificar as distinções e interes­ses das tribos. Entretanto, estava ali, na melhor das hipóteses, uma frágil federação, pois até os últimos anos de Davi o rei precisou lutar contra a fragmentação, especialmente entre Judá e as tribos do norte. Mesmo as­sim o sucesso de suas guerras contra os amonitas, arameus e outros atesta a sua habilidade de organizar a nação, ao menos sobre bases temporárias.

O núcleo do exército de Davi permanecia constituído dos homens que o serviram no deserto. As tropas eram conduzidas por trinta chefes sobre os quais havia outros "três valentes" e Joabe (2 Sm 23.8-39). Enquanto es­tava em Ziclague, juntaram-se a Davi certos parentes de Saul, bem como um número de gaditas e manassitas (1 Cr 12.1-22). Os homens aumenta­ram em milhares desde que o pequeno rebanho ungira o rei em Hebrom. Muitas das tropas não eram regulares, mas convocadas segundo a neces­sidade.

Durante os períodos normais, vinte e quatro mil homens estavam de serviço a cada mês (1 Cr 27.1-15). Embora cada tribo tivesse seus oficiais superiores (vv. 16-22), não há indicação de que faziam parte da convoca­ção mensal.

Civil

Além dos componentes militares, havia obviamente os oficiais civis que serviam nos vários departamentos do governo central. Esses incluíam um cronista, um escriba (ou secretário), conselheiros e outros oficiais cujas funções não são especificadas. Entre os mencionados por último estão os filhos de Davi (1 Cr 18.17). Os administradores menores estavam incum­bidos dos armazéns, dos trabalhadores do campo, das vinhas e olivais e suas indústrias, dos sicômoros e figueiras, dos rebanhos de gado, came­los, mulas e pequenos rebanhos (1 Cr 27.25-31). Isso implica a proprieda­de real sobre as fontes de renda, bem como um forte controle sobre o setor privado.

Religiosa

A estrutura religiosa de Israel sob o comando de Davi era também alta­mente organizada. Contudo, pode-se especular acerca da natureza do cul­

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to e de como se compunha o pessoal responsável pelo serviço antes da chegada da arca em Jerusalém. Abiatar, um descendente de Eli, era o sumo sacerdote nos tempos pré-Hebrom e nos anos em que Davi ali reinou, mas é obscuro a forma pela qual exerceu a função. Ele possuía a estola sacerdo­tal, e por meio desta poderia saber a vontade de Deus, mas os sacrifícios do estado e outros serviços religiosos deveriam ser realizados em vários altos, particularmente em Gibeão, onde estava o tabernáculo de Moisés.

Uma vez que Davi construiu seu próprio tabernáculo e nele pôs a arca da aliança, em Sião, apresentou uma hierarquia religiosa altamente sofis­ticada para lá ministrar (1 Cr 23-26), enquanto traçava os planos para a construção do templo. Provavelmente, Davi continuou a exercer sua fun­ção de sacerdote real. Abiatar e Zadoque serviam como sacerdotes arônicos na ocasião da transferência da arca para Jerusalém (1 Cr 15.11). Mais tarde o próprio Zadoque serviu no tabernáculo de Moisés em Gibeão (1 Cr 16.39,40). Contudo, lá permaneceu por apenas alguns anos, pois na época em que Absalão rebelou-se contra o seu pai, Zadoque já servia em Jerusa­lém. Algum tempo depois, Abiatar aparentemente deixou as atividades sacerdotais, e seu filho Aimeleque exerceu a função (2 Sm 8.17; 1 Cr 18.16). Por alguma razão, Aimeleque desaparece de vista, e no momento da su­cessão de Salomão, Abiatar aparece novamente como sacerdote, desta vez em oposição a Davi.62 O erro de Abiatar custou-lhe a posição de sacerdote, pois Salomão, ao tornar-se rei, o depôs, e fez permanecer apenas Zadoque. Assim o sacerdócio de Eli chegou ao fim, e o de Zadoque teve seu início formalizado.

Os levitas participaram com os sacerdotes na relocação da arca. Até o momento não havia qualquer sinal de organização e distribuição de res­ponsabilidades entre as várias famílias levitas. De fato, a falha em trazer a arca pela primeira vez é atribuída à falta de procedimentos levíticos apro­priados (1 Cr 15.13). Portanto, Davi incumbiu alguns levitas de cuidar inin­terruptamente da arca (1 Cr 16.4-6).63 Não está claro o que isto significava

62 P. Kyle McCarter, Jr., II Samuel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1984), pp. 253-54, juntamente com outros estudiodos, sugere que 2 Samuel 8.17 está corrompido, devendo ser lido "Abiatar, filho de Aimeleque." Isto é pouco provável, já que em outra passagem Zadoque e Aimeleque são alistados como co-sacerdotes (1 Cr 24.3,31), e Aimeleque é identificado como um filho de Abiatar (1 Cr 24.6). Para uma forte defesa em favor de nosso ponto de vista, o de que Abiatar foi substituído por seu filho por um tempo e depois reapareceu em cena, ver Carl F. Keil e Franz Delitzch, Biblical Commentary on the Books o f Samuel (Grand Rapids: Eerdmans, 1960 reedição), pp. 355-67.

63 Quanto a função dos sacerdotes, levitas e pessoal especializado do templo, no período de Davi, ver de Vaux, Ancient Israel, vol. 2, pp. 372-86.

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a respeito da adoração diária em Sião, pois o grande altar de bronze de Moisés ainda se encontrava em Gibeão. Pode-se deduzir que também fora construído um altar em Sião (após comprar a eira de Araúna, Davi ali construiu um altar), uma vez que a ministração diante da arca exigia sa­crifícios (1 Cr 16.1,2).

Com os planos para o templo e o culto mais elaborado, seria possível uma maior demarcação das responsabilidades levíticas. Davi fez uma con­tagem e constatou que havia trinta e oito mil levitas da idade de trinta anos para cima. Desses, vinte e quatro mil foram designados para minis­tros do templo, seis mil para oficiais e juízes, quatro mil para porteiros e quatro mil para músicos. Todos foram divididos por seus respectivos clãs - Gérson, Coate e Merari. Os sacerdotes foram organizados em vinte e quatro divisões determinadas pelo lançar de sortes; cada divisão tinha a sua vez no serviço do templo. Visto que os levitas serviam aos sacerdotes, foram divididos de forma semelhante (1 Cr 24.31).

Próximo à morte de Davi, já havia um aparato político e religioso total­mente estabelecido. As antigas distinções tribais ainda existiam, mas com Davi surgiu agora um sentimento de nacionalidade e unidade, em negóci­os seculares e espirituais. Agora Israel era uma nação completa dentre as demais nações do mundo. Todos os ingredientes necessários à nacionali­dade - exército, burocracia política e um culto centralizado - estavam bem estabelecidos. Agora dependia de Salomão construir sobre esse fundamento e fazer o povo de Deus transformar-se em um reino de sacerdotes por meio do qual Deus pudesse abençoar o mundo.

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D 0 P I N Á C U L O A O f l l l í iOs problem as da transição

O conceito de sucessão dinástica A deslealdade de Joabe A deslealdade de Abiatar

O fracasso da oposição contra Salom ão O conclave em G ibelo Relações internacionais

Israel e Tiro Israel e o Egito

O s projetos de construção de Salom ão O templo

Construção e desenho A aparição do SenhorA oração de Salomão e a dedicação do templo

O palácio real Outros projetos

Rupturas no im pério de Salom ão O princípio do declínio A independência de Edom Rezim de Damasco A rebelião de Jeroboão

A form a de gov erno de Saiom ão Quatro esferas de influência política

A pátria As províncias

Estados vassalos Estados aliados

Adm inistração interna Os distritos adm inistrativos A política fisca l Com ércio internacional

Apostasia m oral e espiritual Salom ão e a natureza da sabedoria

Os problemas da transição

Ao chegar ao fim de sua vida, Davi via-se no momento de passar a monarquia que havia permitido a Israel um lugar entre as nações do mun­do. Ele havia conseguido unir as tribos sem obliterar suas identidades; guardou as fronteiras da nação contra seus inimigos tradicionais; desen­volveu relacionamentos internacionais com estados emergentes tais como os estados arameus, normaímeníe em uma posição superior; e estabeíe-

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ceu Jerusalém como o centro político e religioso da nação. Esta última con­tribuição foi a mais importante de todas, pois simbolizava a fusão entre as tradições patriarcais e sinaíticas e a noção de monarquia humana divina­mente estabelecida. Davi chegou ao entendimento de que era como um filho adotivo de Yahweh, que não apenas reinava sobre seu povo, mas também o representava. Ele conseguiu persuadir a nação desta verdade, e assim a preparou para assumir seu papel histórico e escatológico como a nação serva, por meio da qual os povos da terra buscariam a salvação.

O conceito de sucessão dinástica

Como já observado (pp. 296,297), a transferência de Davi para Salomão não procedeu sem obstáculos. A própria idéia de dinastia não era bem-vista por muitos israelitas. Além disso, para os que aceitavam a dinastia davídica, de acordo com as normas prevalecentes, o trono não pertencia a Salomão, mas a Adonias, por ser o filho mais velho. Esta opinião estava sendo tão fortemente sentida que, mesmo quando Davi tomou conhecido (bem antes de sua morte) que seu filho Salomão seria o sucessor real, houve uma tentativa de Adonias usurpar o trono. Embora o plano tenha fracassado, serviu para alertar Salomão dos perigos reais e potenciais que confrontavam a sua administração.

As razões para o apoio dado a Adonias, especialmente pelos que ocu­pavam posições estratégicas no reino, muitos deles fiéis amigos de Davi, não estão totalmente esclarecidas. Elas devem firmar-se além da tradição do filho mais velho como herdeiro dinástico, pois certamente a vontade expressa de Davi excedia em valor tal consideração. A causa não poderia ser a pessoa de Salomão, pois nada há no registro que o afete. Na realida­de, o alvo da conspiração não era diretamente Salomão, mas Davi. Salomão apenas foi a pessoa que se colocou entre Adonias e o trono.

A deslealdade de Joabe

A solução mais plausível parece ser a vangloria pessoal e a ambição dos conspiradores. Adonias sentiu-se vítima de Davi por haver sido pre­terido em favor de Salomão; então decidiu fazer ele mesmo justiça. Isso requeria alguns colaboradores, homens que compartilhavam da mesma ambição e eram semelhantemente frustrados. Não surpreende que Joabe fosse um deles. Joabe era sobrinho de Davi, filho de sua irmã Zeruia (1 Cr 2.16); havia ele se destacado pela sua lealdade a Davi desde os anos pré- Hebrom. Por fim, assumiu o comando de todo o exército de Davi. Mas acabou cada vez mais sufocado com o que percebia ser uma atitude vaci­

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lante, ou no mínimo ambígua, de Davi a respeito de sua política diplomá­tica e militar. Sempre que Joabe investia enérgica ou violentamente contra os inimigos de Davi, incluindo Abner e Absalão, o rei invariavelmente "oferecia a outra face" e buscava medidas mais amenas para resolver o problema. Sem dúvida Joabe considerava isto uma fraqueza de Davi, e pode ser que a tenha percebido também no jovem Salomão.

Uma motivação ainda maior foi que Joabe notou o desprestígio de sua posição nos planos de Davi. A responsabilidade pela morte de Absalão e insensibilidade para com o lamento de Davi fizeram com que fosse subs­tituído, para sua humilhação, pelo seu primo Amassa, um homem que havia servido na mesma posição a Absalão! A fim de reaver sua posição, Joabe matou covardemente Amasa e, a partir daí, o relacionamento com Davi apenas piorou. Havia possibilidade de ser ainda mais rebaixado quan­do o jovem Salomão ocupasse o trono. Nesse caso, ele decidiu seguir a rebelião disparada por Adonias na esperança de que o novo rei, ao assu­mir o trono, o constituísse comandante no novo regime.

A deslealdade de Abiatar

O segundo maior aliado de Adonias foi o sacerdote Abiatar que, como Joabe, havia estado com Davi em todos os piores momentos. Ele deixou o santuário em Nobe e juntou-se a Davi no deserto. Também teve o privilé­gio de ministrar diante da arca no tabernáculo de Davi, enquanto seu co- sacerdote Zadoque oficiava em Gibeão. O que então fez com que Abiatar abandonasse Davi e Salomão, juntando-se a um movimento rebelde co­mandado por Adonias? A resposta certamente está nos mesmos motivos que impulsionaram a Joabe. Abiatar temia perder a influência e, talvez, ser substituído em seu ofício de sacerdote.

Abiatar era descendente direto de Eli, um sacerdote aarônico da linha­gem de Itamar (1 Cr 24.1-6)1 que seria encerrada por causa dos pecados dos filhos de Eli (1 Sm 2.30-36; cf. 1 Rs 2.27). Certamente Abiatar conhecia0 julgamento e devia guardar-se constantemente contra a possibilidade

1 Quanto à defesa dessa genealogia, ver Eugene H. Merrill, "1 Chronicles," em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F. Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, p. 613; Carl F. Keil e Franz Delitzsch, Biblical Commentary on the Books of Samuel (Grand Rapids: Eerdmans, 1960 reedição), pp. 39-40. Até mesmo Frank M. Cross admite que "o cronista traça a descendência de Zadoque ao sacerdote aronida Eleazar, e Abiatar ao sacerdote aronida It&max"(Canaanite Myth anã Hebrew Epic [Cambridge: Harvard University Press, 1973], p. 196).

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deste se cumprir em sua vida. Enquanto desfrutava o favor de Davi, pou­co tinha a temer. Mas sua posição veio a tornar-se um tanto nublada nos últimos anos. Abiatar continuava como chefe dos sacerdotes, mesmo de­pois de ter sido a arca levada para Jerusalém. Sentia-se, contudo, cada vez mais ameaçado pelo jovem sacerdote Zadoque. No registro bíblico, Zadoque aparece pela primeira vez quando Davi trazia a arca da casa de Obede-Edom (1 Cr 15.11). Muito tempo antes ele havia sido co-sacerdote com Abiatar, servindo primeiro em Gibeão, depois com a arca no monte Sião (2 Sm 15.24), até que por fim seu nome já precedia o de Abiatar quan­do mencionados juntos (2 Sm 20.25).

Porém, o que mais alarmava Abiatar era o fato de que a linhagem de Zadoque tinha origem em Eleazar, filho de Arão. Esta substituiria a linha­gem de Abiatar algum dia. Não surpreende então que Abiatar tenha acha­do prudente unir-se ao movimento pró-Adonias. Parecia-lhe inteiramente lógico que uma mudança no reino em favor de Salomão ocasionaria tam­bém uma mudança no sacerdócio — Zadoque estaria dentro, e ele, fora.

O passado de Zadoque como sacerdote é um mistério, embora 1 Crôni­cas 16.39 revele que Davi deixou Zadoque "diante do tabernáculo do Se­nhor, no alto que estava em Gibeão". Teria Zadoque servido lá anterior­mente?2 Caso a resposta seja sim, é mais provável que tenha sido descen­dente de uma família de sacerdotes lá instalada por Saul depois da atroci­dade cometida em Nobe. E, se esta visão está correta, o próprio Saul, vol- tando-se para os descendentes de Eleazar, em vez de voltar-se para os de Itamar, foi um instrumento para que a profecia de Samuel a respeito da nova sucessão sacerdotal fosse cumprida. Isto deve ter feito com que a convocação de Zadoque tenha sido mais ainda odiosa para Abiatar, pois este servia a Davi com toda lealdade desde os dias em que deixara Saul. A ascendência sacerdotal de Zadoque deve ter sido intolerável para Abiatar.

O fracasso da oposição contra Salomão

Mesmo com o apoio de tal influência, Adonias não conseguiu o seu objetivo. Zadoque, Benaia, Natã e outros fiéis servidores de Davi foram mais hábeis em suprimir seu maligno intento. Persuadiram Davi da rápi­da coroação de Salomão antes que fosse muito tarde. Mas a aparente aqui­escência de Adonias rapidamente deu outros sinais de deslealdade e insa­tisfação. Davi advertiu Salomão a respeito, especialmente com referência

2 Roland de Vaux argumenta que este é o significado tencionado pelo cronista (Ancient Israel [New York: McGraw-Hill, 1965], vol. 2, pp. 373-74).

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a Joabe, e de fato aconselhou Salomão a fazer o que ele mesmo nunca havia determinado — punir Joabe pelos engenhosos assassinatos do pas­sado (1 Rs 2.5,6). Salomão, entretanto, estava verdadeiramente interessa­do em perdão e reconciliação. Uma punição com sangue logo no início de seu reinado poderia manchar a sua caracterização como homem de paz, e minar a moral que usufruía entre as tribos.

Não passou muito tempo após a morte de Davi para que a oposição subterrânea contra Salomão começasse a emergir. Primeiro, Adonias pe­diu a Bate-Seba, agora a rainha mãe, que lhe desse Abisague, concubina de Davi. Salomão entendeu imediatamente a intenção do pedido: "Pede também para ele o reino (porque é meu irmão maior)" (1 Rs 2.22). Adonias tentava incrementar sua autoridade política, e apoderar-se do harém real representaria transferir a autoridade real para suas mãos. Salomão, con­vencido de que Adonias estava com seu espírito irreparável, ordenou que Benaia o executasse.

Salomão também se convenceu da insatisfação de Abiatar, e determi­nou que ele fosse confinado em sua cidade natal, em Anatote.3 Por fim, toda linhagem sacerdotal ficou exclusivamente com os descendentes de Eleazar. Joabe, ao ouvir acerca das decisões de Salomão, fugiu para salvar a vida e refugiou-se no grande altar em Sião. Depois de apelarem várias vezes para que saísse do santuário, Joabe, o instigador de assassinados brutais, foi morto por Benaia. Portanto, a vingança pelas mortes de Abner e Amasa finalmente se cumpriu. Benaia assumiu o lugar de Joabe como o comandante geral dos exércitos de Salomão.

Embora Salomão eliminasse a ameaça de Adonias, seu apetite por vin­gança havia apenas começado. Primeiro, mandou chamar Simei, parente de Saul que havia escarnecido de Davi em seu caminho para o exílio (2 Sm 16.5-8). Salomão o confinou em uma casa avisando-o de que se deixasse Jerusalém, morreria imediatamente. Três anos mais tarde, Simei deixou a cidade para pegar dois escravos fugitivos e foi imediatamente executado.

3 Nobe, provavelmente identificada com el-Tsãwiyeh, situava-se a menos de três quilô­metros de Anatote, que sem dúvida é a Râs el-Kharrübeh. Ambas as cidades situavam- se a menos de cinco quilômetros a nordeste de Jerusalém (Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas [New York: Macmillan, 1968], mapa 154). É provável que depois da queda de Siló como centro religioso, os sacerdotes da linhagem de Itamar (e de Eli) tenham residido em Anatote, mas fizeram da cidade de Nobe o local do tabernáculo. Ver Tryggve N.D. Mettinger, "YHWH SABAOTH - The Heavenly King on the Cherubim Throne," em Studies in the Period o f David and Solomon and Other Essays, editado por Tomoo Ishida (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), p. 129.

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Em razão desses atos de vingança, não surpreende que o autor de Reis declare: "...assim foi confirmado o reino na mão de Salomão" (1 Reis 2.46).

O conclave em Gibeão

A cronologia do reino de Salomão não apresenta dificuldades como a de Davi. Com exceção das passagens não narrativas, que se referem exclu­sivamente a tópicos e temas, a ordem em 1 Reis e 2 Crônicas reflete o fluxo geral dos acontecimentos. Parece, entretanto, que a aliança política feita com Siamum do Egito (1 Rs 3.1) não aconteceu antes das negociações com os habitantes de Tiro para ajudá-lo na construção do templo. Isto deve ter sucedido ao momento em que Salomão pediu a Deus sabedoria, pois o rei de Tiro, Hirão, a reconheceu no filho de Davi (1 Rs 5.7).

O cronista então está correto ao iniciar o relato do reinado de Salomão com o seu comparecimento em Gibeão. O motivo de Salomão preferir reu­nir-se com o povo naquele local em vez de em Sião não está claro. Pode ser que, como sugere o cronista (2 Cr 1.1-6), o interesse de Salomão no mo­mento estivesse mais no sacrifício ao Senhor do que na arca da aliança. Afinal, o grande altar de bronze em Gibeão era o altar original de Moisés; aquele que estava em Sião não desfrutava da mesma tradição.4

De qualquer forma, a decisão de Salomão de fazer o conclave em Gibeão não desagradou a Yahweh, pois foi ali que o Senhor lhe apareceu, conce­dendo-lhe o desejo de seu coração — que ele obtivesse sabedoria para conduzir o povo. Em acréscimo, Yahweh lhe prometeu riquezas e honra incomparáveis.

A oração de Salomão na ocasião é particularmente significativa, pois revela claramente sua percepção do papel que exercia como herdeiro na sucessão davídica. Ele via-se como o cumprimento da promessa divina a Davi (1 Rs 3.6), e como ocupante do trono de Davi em virtude da eleição eterna de Yahweh. Esses pensamentos serão ainda melhor trabalhados em sua oração quando da dedicação e consagração do templo.5

4 Em acréscimo, conforme Jacob M. Myers observa, Zadoque ainda estava associado com Gibeão, e pode ter insistido com Salomão para buscar Yahweh naquele local (II Chronicles, Anchor Bible [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965], p. 6).

5 Roddy L. Braun observa que o cronista começa todo seu relato de Salomão afirmando que ele tinha sido eleito por Deus para construir o templo (1 Cr 22. 28,29), como que esta tivesse sido a função mais importante em toda sua vida ("Solomon, the Chosen Temple Builder: The Significance of 1 Chronicler 22, 28 and 29 for the Theology of Chronicles," JBL 95 [1976]: 581-90).

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Relações internacionais

Israel e Tiro

Pouco tempo depois da visitação de Deus, Salomão recebeu mensagei­ros de Hirão, rei de Tiro, parabenizando-o por sua ascensão ao trono de Israel. Segundo 1 Reis 5.1, já por muitos anos Hirão vinha mantendo um relacionamento amigável com Davi. Sendo o monarca de um dos mais im­portantes portos da época, o porto de Tiro, por volta de 980,6 Hirão foi con­temporâneo de Davi por cerca de dez anos. Esteve envolvido nos progra­mas de construção de Davi, de forma que Salomão, aproveitando-se da cor­tesia e bom relacionamento entre os dois monarcas, o convidou a cooperar na construção do templo e em outros projetos públicos que tinha em mente.

Hirão alegrou-se com a proposta, e sugeriu enviar a madeira a Jope, via mar, e de lá Salomão a transportaria para Jerusalém. Ele também enviaria artesãos para ajudar nas dificuldades da construção. Estes artesãos estariam sob a supervisão de Huram-Abi, um m eio-israelita proficiente em todo tipo de habilidades manuais (2 Cr 2.13-14; cf. 1 Rs7.13,14).7 Salomão supriria os celeiros de Hirão com grãos e outros gêne­ros alimentícios em grandes quantidades. Quando todos os detalhes fo­ram arranjados entre os dois monarcas, um contrato formal foi estabele­cido (1 Rs 5.12).8

Israel e o Egito

Pouco tempo entre a ascensão de Salomão e o início da construção do templo em seu quarto ano, fez-se um tratado entre Salomão e o faraó do

6 Ver p. 251. Michael B. Rowton, mesmo diminuindo as datas de Salomão e de Hirão em nove anos, mostra que há uma semelhança e concordância notável entre as fontes bíblicas e as fenícias quanto à data do templo ("The Date of the Founding of Solomon's Temple," BASOR 119 [1950]: 20-22).

7 Quanto à identificação de Huram-Abi, ver H. Jacob Katzenstein, The History ofTyre (Jerusalem: Schocken Institute for Jewish Research, 1973), p. 100. O autor do livro dos Reis o aponta como filho da viúva de Naftali, enquanto o cronista informa que ele era um danita. Sua mãe provavelmente era danita de nascimento e naftalita por residência ou vice-versa. Ver Eugene H. Merrill, "2 Chronicles," em Bible Knozvledge Commentary, vol. 1, p. 621.

8 Está claro, pelo uso do termo técnico sãlôm ("relações pacíficas"), que esse contrato en­volvia mais do que uma transação comercial. Ver John Gray, I & II Reis (Philadelphia: Westminster, 1970), p. 154.

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Egito. Este era Siamum, da 21a Dinastia, que reinou de 978 a 959. Embora Siamum estivesse basicamente preocupado com negócios internos, sabe- se que nutria algum interesse pela Palestina, conforme visto em alguns relevos que o ilustram em uma pose de vencedor sobre um grupo de pri­sioneiros. Estes podem ser identificados como os filisteus, em razão de segurarem um machado duplo típico do Egeu e do oeste da Anatólia.9 Talvez estes filisteus tenham sido subjugados quando, segundo o registro em 1 Reis 9.16, faraó atacou e capturou a cidade de Gezer, incendiando-a e matando seus habitantes cananeus. A data dessa campanha anti-filisteus não é revelada. Já foi sugerido (pág.265) que, se Davi colaborou nessa cam­panha, uma data pouco depois de 978 não seria improvável. Se, por outro lado, Davi não participou, a destruição de Gezer provavelmente ocorreu nos últimos anos de seu reinado, quando ele estava ocupado com outros problemas internos, como a praga que devastou milhares em conseqüên­cia de ter ele levantado um censo.10

De qualquer forma, Siamum logo percebeu que Salomão estava se tor­nando o monarca de um reino que lhe seria rival ou mesmo mais forte em poder e influência. Portanto, decidiu por uma política de bom relaciona­mento e diplomacia com o jovem monarca, ainda que tivesse de reconhe­cer que Salomão lhe era igual em poder.11 Isto se confirma pelo fato de entregar a sua própria filha como esposa a Salomão, uma concessão quase que sem paralelo em toda história egípcia, visto que representava o reco­nhecimento da fraqueza do Egito e sua conciliação. Normalmente os reis do Egito tomavam princesas estrangeiras, mas jamais davam suas própri­as filhas a outros reis.12

9 Pierre Montet, Egypt and the Bible (Philadelphia: Fortress, 1968), pp. 36-39. Contra essa interpretação do relevo de Tanis, ver Alberto R. Green, "Solomon and Siamum: A Synchronismo Between Dynastic Israel and the Twenty-first Dynasty of Egypt/' JBL 97 (1978): 363-64. Contudo, Green ainda considera Siamum como sogro de Salomão.

10 Abraham Malamat aceita que a conquista de Gezer possa ter precedido a total regência de Salomão ("A Political Look at the Kingdom of David and Solomon and Its Relations with Egypt," em Studies in the Period o f David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, p. 198).

11 O prestígio de Salomão era tão grande que as práticas de administração egípcias passa­ram a ser feitas nos moldes das que eram praticadas em Israel. Ver Alberto R. Green, "Israelite Influence at Shishak's Court?" BASOR 233 (1979): 59-62.

12 Alan R. Schulman,"Dilomatic Marriage in the Egyptian New Kingdom,"/NES 38 (1979): 190-91. H. Darrell Lance sugere que Gezer pertencia ao Egito no início do reinado de Salomão e que um ataque malsucedido de Siamum contra Salomão permitiu com que a cidade ficasse sob a autoridade do monarca israelita. A "dádiva" da cidade como um

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A razão para este acordo pode estar baseada no medo que Siamum sentia quanto ao tratado existente entre Israel e Tiro, o que podia fazer Salomão voltar-se contra o Egito. Também há possibilidade de que o rei do Egito estivesse in teressado em usar Salom ão com o uma força neutralizadora contra os filisteus, pois eram inimigos do Egito e amea­çavam-nos devido à posição fronteiriça que ocupavam ao nordeste. Po­rém, o mais próximo da verdade é que Siamum conhecia muito bem as transformações militares que aconteciam na Assíria, e que tais m odifica­ções estavam criando um império ao oriente. Uma aliança com Salomão faria de Israel um estado tampão entre o Egito e a Assíria, e que se esten­deria até o rio Eufrates.

As preocupações com o poderio da Assíria eram bem fundadas. Cem anos antes, o rei assírio Tiglate-pileser I havia intimidado a Síria e a Fenícia o suficiente para fazer duras exigências ao Egito.13 E verdade que a Assíria havia entrado em um período de declínio, principalmente por causa das dificuldades com os arameus. Mas estava evidente que a Assíria se consti­tuiria em uma séria ameaça para todo o mundo mediterrâneo oriental. Isto não se cumpriria nos anos de Salomão e Siamum, mas a possibilidade fez Israel e Egito entrarem em um acordo, pelo menos enquanto Salomão reinou sobre Israel.

Como parte dos procedimentos legais do casamento, Faraó cedeu a cidade de Gezer como dote por sua filha. Gezer situava-se no caminho entre o porto de Jope e Jerusalém. Visto que os materiais enviados de Hirão para Salomão tinham de desembarcar naquele local, e que transi­tavam sem qualquer obstáculo, conclui-se que Gezer estava sob o domí­nio de Salomão na época da construção do templo. Duas considerações cronológicas precisam ser observadas a fim de datarmos o acordo entre Siamum e Salomão e o casamento envolvido. A construção do templo teve início em 966, no quarto ano de Salomão; este evento deve ter segui­do a aquisição de Gezer por Salomão. Sabe-se também que a morte de Simei aconteceu em 967, o terceiro ano do reinado de Salomão (1 Rs 2.39). Esses e outros fatos testificaram a autoridade e controle de Salomão so­bre seu reino (1 Rs 2.46), e provavelmente fizeram Siamum perceber o poderio do monarca de Israel.

dote foi, na verdade, um presente sobre o qual Siamum não tinha controle ("Gezer in the Land and in History," BA 30 [1967]: 34-47).

13 D.J. Wiseman, "Assyria and Babylonia c. 1200-1000 B.C.," em Cambridge Ancient History, 3a edição, editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: Cambridge University Press,1975), vol. 2, parte 2, p. 461.

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Os projetos de construção de Salomão

O templo

Construção e desenho

Uma vez que Salomão obtinha um firme controle do reino, voltou-se para o extenso programa de construções, iniciando com a construção do templo. Davi já havia comprado a eira de Araúna — o local separado por Deus — e o rei ordenara que o terreno fosse totalmente limpo a fim de começar a obra. Ele também preparou os materiais da construção, particu­larmente blocos de pedras trabalhadas e metais preciosos, e fez acordos com os fenícios para o fornecimento de madeira para construção. Tudo o que Salomão precisava fazer era reunir os materiais e construtores no mes­mo local, e dar início à obra.

Hirão foi informado de que tudo estava pronto, então começou o envio de madeiras para a construção, conforme havia prometido. Salomão en- viou-lhe os gêneros alimentícios acordados e outros bens como forma de pagamento. Também foram convocados trinta mil cortadores de lenha para que mensalmente, em turnos de dez mil homens, fossem auxiliar os traba­lhadores de Hirão no Líbano. Setenta mil carregadores foram destacados para o serviço, mais oito mil cortadores de pedras. Todos os trabalhadores foram supervisionados por três mil e trezentos homens que respondiam diretamente a Adonirão, o oficial encarregado dos trabalhadores forçados (1 Rs 5.13-18).14

Infelizmente, apesar da grande quantidade de informações nas fontes em relação às especificações e aparência do templo, é impossível reprodu­zi-lo em detalhes.15 O estilo da construção se assemelha ao tabernáculo construído por Moisés e aos antigos templos do Oriente Médio em ge­ral,16 mas além disso suas características têm de ser, em grande parte, fru­to da imaginação estrutural, artística e arquitetônica, baseada nos dados esparsos e ininteligíveis do texto. Apesar disso, o templo era sem dúvida

14 Quanto ao sistema de trabalhos forçados em Israel, ver J. Alberto Soggin, "Compulsory Labor Under David and Solomon," em Studies in the Period o f David and Solomon, edita­do por Tomoo Ishida, pp. 259-67.

15 Para esforços na reprodução do templo, ver Carol L. Meyers, "The Elusive Temple," BA45 (1982): 33-41; Mina C. Klein e Arthur Klein, Temple Beyond Time (New York: Van Nostrand Reinhold, 1970), pp. 35-49.

16 William F. Albright, Archaeology and the Religion o f Israel (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1969), pp. 138-50.

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esplendoroso, um monumento impositivo da majestade e glória de Deus. A obra durou sete anos e certamente foi uma construção sem igual no mundo antigo do Oriente Médio.

A aparição áo Senhor

Quando o prédio estava terminado e sua mobília já instalada, manufa­turada sob a supervisão de Huram-Abi, Salomão providenciou para que a arca da aliança fosse trazida do tabernáculo de Davi, no monte Sião, para seu novo local de habitação no monte Moriá (1 Rs 8.1-11).17 Com reverên­cia, os anciãos, sacerdotes e o rei uniram-se em procissão com a arca da aliança, oferecendo muitos sacrifícios pelo caminho. Uma vez que a arca foi depositada no Santo dos Santos, atrás do véu, e os sacerdotes se retira­ram do local, todo o prédio foi preenchido com a nuvem da presença de Yahweh. Este era um sinal de que Deus aprovara a obra de Davi e Salomão; este templo era o símbolo visível de sua residência entre o seu povo.

Salomão respondeu a essa evidência da presença localizada de Deus comparando a forte passagem da nuvem com a divina possessão do tem­plo. Naquele momento, sendo ele o mediador real e sacerdotal do povo, voltou-se para a multidão e a abençoou como havia feito seu pai, na oca­sião em que a arca foi trazida para o tabernáculo em Sião. A bênção con­sistia em reconhecer que a promessa de que o filho de Davi construiria o templo havia sido cumprida. Salomão demonstrou que nele se cumpria a expressão dinástica da aliança que Yahweh havia feito com seu pai (1 Rs 8.20). Agora sentava-se no trono de Davi, e como rei providenciara um local para que a arca da aliança, o símbolo do trabalho redentor de Deus para com seu povo, pudesse descansar. Assim ele liga a aliança mosaica, na qual um povo escravizado havia sido escolhido e libertado, à aliança davídica, em que um rei messiânico havia sido chamado para estabelecer uma linhagem que um dia reinaria sobre toda a terra.18

A oração de Salomão e a dedicação do templo

A ligação dessas alianças apenas sugerida no m om ento em que Salomão abençoa o povo é melhor trabalhada em sua oração dedicató­ria. Neste notável tratado teológico, Salomão primeiro celebra a singula­ridade e incomparabilidade de Yahweh, o Deus que guardou sua aliança

17 Richard E. Friedman argumentou com firmeza que o próprio tabernáculo foi removido e colocado dentro do templo ("The Tabernacle in the Temple," BA 43 [1980]: 241-48).

18 Gray, I & II Kings, p. 213.

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com Davi e agora a confirmava em seu filho (1 Rs 8.22-26). O rei então reconhece a incapacidade do templo magnífico de abrigar o Soberano do céu e da terra. Porém, Deus permitiu-se localizar no templo, de for­ma que as pessoas deveriam ir lá buscá-lo. Caso cometessem algum pe­cado e conseqüentemente sofressem derrota, seca, pestilência ou mesmo cativeiro, deveriam, arrependidos, buscar Yahweh no templo, a fim de que fossem perdoados e restaurados. Yahweh assim faria, orou Salomão, porque eles eram o seu povo, a quem Ele havia resgatado do Egito como sua herança especial (vv. 27-53).

Depois da oração, Salomão abençoou toda a multidão ali reunida. Lem- brou-lhes de que a dedicação do templo era um sinal do cumprimento da promessa de Yahweh concedida por meio de Moisés. Ou seja, a sucessão dinástica e real de Davi e Salomão não era algo contrário aos propósitos de Deus; pelo contrário, era a extensão lógica e teológica daqueles propó­sitos (vv. 54-61).

Finalmente, como sacerdote real, Salomão oficiou o oferecimento de um imenso sacrifício a Yahweh.19 Proclamou que as festividades em Israel durariam catorze dias. Terminadas as comemorações, o povo voltou cada um para a sua casa, regozijando-se na bênção de Deus sobre seu rei e so­bre toda a nação (vv. 62-66).

O palácio real

Depois de ser construído o templo, Salomão passou a construir o seu próprio palácio, uma obra que levou treze anos para ser concluída. Parece claro que os dois projetos foram realizados em seqüência, e não simultanea­mente, pois embora 1 Reis 3.1 registre que Salomão construiu "seu palácio e o templo do Senhor," o historiador indica que foi preciso sete anos para a construção do templo (1 Rs 6.39), e treze para o palácio (1 Rs 7.1), soman­do um total de vinte anos (1 Reis 9.10). O templo, então, foi terminado em cerca de 959 a.C., e o palácio depois de 946.

A residência real era mais larga do que o templo, consistindo aparen­temente de um edifício central maior, o Palácio da Floresta do Líbano, com alas ou estruturas geminadas, tais como a sala da Justiça e as de­

19 A real função de Salomão nos sacrifícios não está claramente definida, como foi no caso de Davi quando comandou a procissão trazendo a arca para Jerusalém (2 Sm 6), mas está claro, apesar disso, que Salomão está incumbido de alguns aspectos do culto. Ver Dennis J. McCarthy, "Compact and Kingship: Stimuli for Hebrew Covenant Thinking," em Studies in the Period o f David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, p. 81-82.

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pendências privadas de Salomão. Não é possível determinar como esses edifícios foram construídos um em relação ao outro, ou em relação ao templo, mas todo o complexo de prédios deve ter sido extremamente im pressivo .20 Agora a nação de Israel começava a parecer com outros grandes reinos do mundo, se as construções públicas puderem servir como um tipo de barômetro.

Por todo esse tempo a filha de Siamum morou em uma residência tem­porária no monte Sião. Agora que o templo e o palácio estavam termina­dos, Salomão construiu um palácio para sua esposa favorita, uma cons­trução que se assemelhava à sala da Justiça e seus próprios quarteirões. O motivo por que ele a transferiu de Sião tem um significado — muralhas de proteção não foram previamente construídas em volta da nova parte da cidade onde estava localizado o templo (1 Rs 3.1; cf. 9.24) e, de um ponto de vista mais negativo, a permanência da mulher no palácio de Davi era uma afronta à sua santidade (2 Cr 8.11). O cronista registra a sensibilidade de Salomão quanto ao fato de ter uma esposa pagã no meio do povo da aliança.21

Outros projetos

Embora nenhum dos outros projetos de construção de Salomão pos­sam ser precisam ente datados, é apropriado m encioná-los como um tributo à sua indústria e prosperidade dom éstica, e ao seu domínio co­mercial e político. Primeiro ele fortificou e alargou a cidade de Jerusa­lém com uma muralha em forma de circunferência, que envolveu toda a cidade antiga (i.e., monte Sião ou a cidade de Davi), abrangendo tam ­bém o templo e os edifícios públicos situados ao norte de Ofel. A área media cerca de 99 quilômetros de norte para o sul, e vinte quilômetros do leste para o oeste. Para os padrões daquela parte do mundo, esta era uma cidade bastante significativa .22 Como parte do sistema de de­fesa da cidade e nivelam ento, Salomão construiu proteções em Milo (1 Rs 9.15,24; 11.27). Essa palavra, que literalm ente significa "recheio", provavelm ente refere-se às estruturas em forma de terraço que foram construídas nas encostas dos despenhadeiros de certas partes da cida­

20 David Ussishkin identifica pelo menos seis estruturas separadas, algumas das quais foram unidas em complexos ("King Solomon's Palaces," BA 36 [1973]:78-105).

21H. G. M. Williamson, I and 2 Chronicles, New Century Bible Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), p. 231.

22 Kathleen Kenyon, Jerusalém (New York: McGraw-Hill, 1967), pp. 56-58.

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3 1 6 H is t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t a m e n t o

de .23 Isso facilitaria a construção de melhores muralhas para defesa e edifícios de vários tipos.

Por fora da cidade, Salomão autorizou a reconstrução e fortificação de outras cidades, particularmente Hazor, Megido e Gezer (1 Rs 9.15).24 Este locais, estrategicamente localizados em rotas comerciais, serviam como cidades para armazenamento de suprimentos necessários e quartéis mili­tares, pelos quais o rei exercia efetivo controle do território. Escavações feitas nesses locais têm fornecido abundante evidência do estilo das edificações no tempo de Salomão. Bete-Horom (Beit 'Ur et-Tahtã), situada pouco a noroeste de Gibeão e Baalate (Catra), e um pouco a sudoeste de Gezer, também foram reforçadas, principalmente porque precisavam pre- venir-se contra os filisteus ou quaisquer outros que tentassem invadir pela planície costeira (1 Rs 9.17,18). Tamar ('Ain Husb), no Arabá, cerca de 40 quilômetros ao sul do mar Morto, guardava a fronteira ao sul.25

Postos avançados no exterior da cidade também receberam atenção espe­cial. O livro dos Reis fala geralmente de locais "no Líbano e em toda terra do seu [Salomão] domínio" (1 Rs 9.19); o cronista especifica também que Salomão reconstruiu os locais que ganhara de Hirão, capturou e reconstruiu a cidade de Hamate Zobá (Hamã), no Orontes, e até mesmo restaurou e fortificou um importante oásis no deserto, chamado Tadmor (ou Palmyra), cerca de 225 quilômetros a noroeste de Damasco (2 Cr 8.2-6). Assim Salomão criou uma cadeia de posições defensivas que protegiam não apenas a cidade de Jerusa­lém e Israel, mas também as principais rotas através de seu império.

Rupturas no império de Salomão

O controle de Salomão sobre um vasto número de cidades espalhadas pelo reino pressupõe o controle das nações e regiões nas quais as cidades

23 Ibid., pp. 50-51. Para uma visão contrária — que os terraços devem ser identificados com os "campos do vale do Quidron" (sadmôt qidrôn — 2 Rs 23.4) e não com Milo — ver Lawrence E. Stager, "The Archaeology of the East Slope of Jerusalem and the Terraces of the Kidron," JNES 41 (1982): 111-21.

24 Ver, respectivamente, Yigael Yadin, "Excavations at Hazor (1955-1958)," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, p. 199; Yadin, "New Light on Solomon's Megiddo," em The Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, pp. 240-43; Yohanan Aharoni, "The Stratification of Israelite Megiddo," JNES 31 (1972): 302-11; William G. Dever, "Gezer Revisited," BA47 (1984): 206-18.

25 Quanto às evidências arqueológicas das fortificações de Salomão no Negueve, ver Rudolph Cohen, "The Iron Age Fortresses in the Central Negev," BASOR 236 (199): 77-78.

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estavam localizadas.26 Isto não surpreende, uma vez que nas guerras con­tra os amonitas Davi reduziu boa parte dos reinos da Síria e Transjordânia à condição de vassalos ou de província. E não há indicação de alguma mudança durante a fase depressiva do reinado de Davi. Certamente o im­pério foi passado para Salomão intacto. Além disso, as alianças feitas por Davi com os estados amigos de seu reino, tais como Tiro, não só foram preservadas por Salomão como também fortalecidas. Além disso, é claro, ele cultivou importantes relacionamentos, como aquele com o Egito.

O princípio do declínio

Nos últimos anos de Salomão, o império começou a desintegrar-se ao re­dor. Mesmo o antigo cisma entre Israel e Judá começou a ressurgir. A razão é explícita no registro bíblico: "Pelo que o Senhor se indignou contra Salomão, porquanto desviara o seu coração do Senhor Deus de Israel" (1 Rs 11.9). Espe­cificamente, isto envolve pelo menos a tolerância da adoração idólatra, se não a promoção de um sincretismo religioso comandado pelo próprio rei. As muitas mulheres de Salomão, provavelmente adquiridas durante o curso das várias negociações, tratados internacionais e outras alianças, exigiram que ele lhes fizesse um local apropriado para os seus deuses. Nesse tortuoso caminho, Salomão construiu altares nos lugares altos e outras instalações de culto a fim de pacificá-las. Como conseqüência, o castigo de Yahweh levou à perda do império, um juízo que Salomão viu com seus próprios olhos. Mas, por amor a Davi, não estaria tudo perdido. Israel realmente se voltaria para Jeroboão, um dos oficiais chefes de Salomão, mas Judá e Jerusalém permaneceriam sob o domínio da casa de Davi para sempre.

A independência de Edom

A primeira ruptura na estrutura imperial de Salomão surgiu no leste do mar Morto, na província de Edom. Este reino orgulhoso havia sido tomado por Davi em algum tempo na primeira metade de seu reino, provavelmente em conexão com as guerras amonitas. No curso daquela conquista, Joabe implementou uma política de genocídio que destruiu a maior parte da população masculina. Mas um dos que compunham a família real, o príncipe Hadade, conseguiu escapar. Viajando pelo deser­to, passando por Midiã e Parã, esse príncipe e seus seguidores chegaram ao Egito, onde encontraram refúgio, provavelmente sob a proteção do

26 John Bright, A History o f Israel, 3a ed. (Philadelphia: Westminster, 1981), p. 214.

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Faraó Am enem ope (993-978).27 Hadade provavelmente não alcançou idade para se casar até o reinado de Siamum (978-959), e é provável que tenha se casado com a cunhada deste (1 Rs 11.19). Se isto estiver correto, percebe-se a ironia de Siamum ao dar sua filha como esposa a Salomão, e sua cunhada para Hadade, o maior inimigo de Israel.

O retorno de Hadade para Edom deve ser datado bem no início do reinado de Salomão, porque, de acordo com o historiador sagrado, o que o incentivou a voltar foi a notícia das mortes de Davi e Joabe (1 Rs 11.21). Ele esperou o melhor momento por cerca de trinta anos, pois somente após Salomão envelhecer, Hadade, como outros adversários de Salomão, passou a reivindicar independência. A extensão reconquistada pelos edomitas não está clara,28 pois a próxima vez em que são mencionados (cerca de setenta e cinco anos depois) aparecem vivendo sob um fraco controle imposto por Jeosafá, rei de Judá (1 Rs 22.47).

Rezim de Damasco

A segunda fonte de dificuldades externas para o reinado de Salomão era Rezim de Damasco.29 Depois de Davi vencer Hadadezer, rei de Zobá, Rezim, que anteriormente era vassalo de Hadadezer, ganhou forças e estabeleceu seu próprio domínio em Damasco.30 Embora Damasco fosse, pelo menos teoricamente, uma província de Israel sob o comando de Salomão até o final de sua vida, fica claro que Rezim foi uma constante irritação durante todos esses anos. Finalmente ele ou seu sucessor, Tabrimmon, tirou a cidade de Damasco de sob o controle de Israel. Isso provavelmente ocorreu pouco depois da morte de Salomão e da divisão do reino.

A rebelião de feroboão

O terceiro instrumento registrado da punição de Yahweh foi um homem chamado Jeroboão, filho de Nebate, um dos mais confiáveis e importantes

27 Green, "Solomon and Siamum," ]BL 97 (1978): 363, n. 49.28 Pode ser que, conforme B. Oded, Hadade readquiriu o firme controle de Edom, mas não

da região do Golfo de Acaba ("Neighbors on the East," em World Histoty o f the Jeivish People, vol. 4, parte 1, The Age o f the Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat [Jerusalem: Massada, 1979], p. 254).

29 Para a sugestão de que Rezon é idêntico a Hezion, fundador da dinastia damascena, ver Merrill F. Unger, Israel anã the Aramaeans o f Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980, reedição), p. 57.

30 Ibid., p. 54.

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oficiais da corte salomônica. O historiador informa que no processo de cons­trução de Milo, em Jerusalém, Salomão encontrou-se com o jovem Jeroboão, o qual impressionou tanto ao rei por suas habilidades que rapidamente foi promovido ao cargo de supervisor dos trabalhadores no distrito de Efraim (1 Rs 11.27,28). Yahweh também havia notado Jeroboão. Quando Salomão começou com a apostasia, o profeta Aías, de Siló, um certo dia chamou Jeroboão à parte e disse-lhe que dez tribos de Israel se separariam do reina­do de Davi e que ele, Jeroboão, havia sido escolhido por Yahweh para ser seu líder. Essas informações chegaram aos ouvidos de Salomão, e Jeroboão, embora aparentemente inocente de qualquer pretensão política, teve de fu­gir para o Egito. O rei egípcio na ocasião era Shoshenq (945— 924), da 22a Dinastia, conhecido por sua habilidade governamental, e que ainda causa­ria sérios problemas a Judá e Israel cinco anos depois da morte de Salomão. Jeroboão ficou com Shoshenq até a morte de Salomão, voltando depois para tornar-se o primeiro rei do reino do norte de Israel.

A forma de governo de Salomão

Quatro esferas de influência política

A pátria

Surge então a pergunta: pode o termo império ser aplicado à hegemonia israelita do décimo século?31 Se por "império" entende-se uma vasta exten­são territorial, não. Mas, se o significado for uma relativa expansão territorial que impõe um domínio sobre países e povos, incorporando-os ao estado dominante, então os reinos de Davi e Salomão enquadram-se perfeitamen­te na descrição.32 Porém, uma linha de raciocínio frutífera poderia conside­rar as várias esferas de influência política que Davi e Salomão exerceram. A primeira é a própria terra. Israel, sob o domínio de Davi, conseguiu fazer a transição política de um agrupamento desunido e, muitas vezes, isolado uns dos outros, para uma nação definida, caracterizada por um forte gover­no central, e uma presença diplomática e militar unificada entre as nações

31 Quanto aos termos descritivos para as várias fases do estado israelita e suas ramifica­ções sócio-políticas, ver a obra de Malamat, "A Political Look," em Studies in the Period o f David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, pp. 192-97.

32 Um estudo que trata da profundidade do termo "império" foi feito por Carol L. Meyers, "The Israelite Empire: In Defense of King Solomon," Michigan Quarterly Review, 22 (1983): 415-16.

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do mundo. Mas Israel sob Davi e Salom ão estava geograficam ente coextensivo aos antigos territórios das tribos, ou seja, a nação ocupou ape­nas aquela área que havia sido determinada para as tribos na época da con­quista. Histórico e escatologicamente, o Antigo Testamento fala de um Isra­el que se expandirá para além de suas fronteiras tribais, mas isso parece nunca ter sido o caso no período da monarquia unida.

A s províncias

Sob o domínio de Salomão, Israel não incorporou formalmente, sob sua jurisdição, as terras que estavam fora de suas fronteiras tradicionais. Salomão herdou de Davi um complexo de províncias consistindo em rei­nos e estados imediatamente contíguos a Israel. Esses incluíam Damasco, Amom, Moabe, Edom e outros principados menores. Como províncias, tais áreas não eram consideradas partes integrais da terra, mas, apesar disso, perdiam sua soberania nacional e ficavam sob o controle de Salomão, por meio de governadores ou outros subordinados. As províncias eram obrigadas a pagar tributos e taxas, e esperava-se delas que defendessem Israel contra as hostilidades externas. Em troca, podiam esperar a prote­ção e os benefícios do governo central.33

Estados vassalos

A terceira esfera de influência política, e a que melhor define o termo im pério, tornando-o aplicável ao Israel de Salomão, foi o complexo de esta­dos vassalos mais distante e menos rígido. Essas nações clientes — inclu­indo Zobá, Hamate, Arábia e possivelmente a Filístia — foram trazidas para debaixo do domínio de Israel por meio da diplomacia internacional ou mediante a força militar. Contudo, seja por um ou outro meio, tais esta­dos vassalos possuíam certo grau de autonomia, incluindo governantes nativos e política fiscal interna. Eram obrigados a reconhecer a suserania do rei de Israel, providenciar os pagamentos das taxas de bens e serviços ao rei em datas definidas em um calendário e, acima de tudo, manter a lealdade ao governo central em quaisquer circunstâncias, especialmente em tempos de guerra. Salomão, o Grande Rei, responsabilizava-se por defender as áreas do seu império e fornecer apoio quando necessitassem .34

33 Albrecht Alt, Essays on Old TestamentHistory and Religion (Garden City, N.Y.: Doubleday,1968), pp. 284-97.

34 Detalhes sobre Salomão como o Grande Rei que exercia autoridade sobre um amplo sistema de estados vassalos são, na realidade, muito esparsos no registro bíblico, mas

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Estados aliados

Finalmente, a política imperial de Salomão também incluía uma rede de tratados de mútuo benefício com potências próximas e mesmo distantes de seu reino, com quem ele se ligaria em termos de amizade e cooperativismo. Esses tratados reconheciam a igualdade das partes contratantes e normal­mente continham provisões para mútua defesa, comércio, tráfego livre, ex­tradição ou semelhantes. O melhor exemplo conhecido nas Escrituras é o re­lacionamento entre Salomão e Hirão, rei de Tiro.35 Nenhum dos governantes estava subordinado ao outro, e as provisões acordadas beneficiariam ambas as partes. Tiro providenciou homens e materiais para os vultuosos projetos de construção de Salomão, ao passo que Israel enviou a Hirão navios cheios de alimentos. Mais tarde Salomão cedeu vinte cidades da Galiléia a Hirão. Embora Hirão não houvesse ficado satisfeito, pagou ainda assim 120 talentos de ouro por elas (1 Rs 9.10-14). Os fenícios — sem dúvida como uma expres­são da validade de seu tratado — também supriram Israel com marinheiros para a marinha mercante israelita (1 Rs 9.26-28).36

No início de seu reinado Salomão também fez tal acordo com o Egito. O pacto foi ratificado pelo casamento de Salomão com a filha de Siamum e por seu dote: a cidade de Gezer. Não se sabe o que Salomão deu em retorno, embora possa ter sido não mais do que proteção à fronteira nordeste do Egito. O documento também continha cláusulas relativas ao comércio, pois Salomão comprou carruagens do Egito, as quais em seguida exportou para os hititas e reis arameus ao norte. Contudo, o tratado não devia ter uma cláusula a respeito de extradição, pois Jeroboão fugiu para o Egito e lá per­maneceu em segurança até a morte de Salomão (1 Rs 11.40). Mas também é possível que naquele tempo as relações pacíficas entre Israel e Egito já tives­sem sido rompidas. Certamente estavam nos últimos dias de Shoshenq, pois foi desferida uma forte invasão nos territórios de Judá e Israel.

Adm inistração interna

Há pouca informação acerca de como se processava a administração imperial no dia-a-dia, mas o registro refere-se a uma organização e buro-

tal relacionamento pode ser admitido sobre as bases de estruturas semelhantes no anti­go Oriente Médio. Ver George E. Mendenhall, "Covenant Forms in Israelite Tradition," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr. e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1970), vol. 3, pp. 28-32.

35 Dennis J. McCarthy, Old Testament Covenant (Atlanta: John Knox, 1972), p. 43.36 Jack M. Sasson, "Canaanite Maritime Involvement in the Second Millenium B.C.," JAOS

86 (1966): 126-37.

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cracias em Israel.37 Quase simultaneamente à ascensão ao trono de Israel, Salomão teve de tomar medidas enérgicas para solidificar sua posição mediante várias decisões administrativas. Essas incluíram a substituição do sacerdote Abiatar pelo sacerdote Zadoque, e a escolha de Benaia para assumir o comando geral do exército. Entre os seus oficiais superiores es­tão os secretários, o escrivão, o supervisor dos oficiais dos distritos, o con­selheiro pessoal do rei, o chefe do pessoal que trabalhava no palácio, e o diretor dos trabalhos forçados.

Os oficiais dos distritos eram, na verdade, governadores cujas jurisdi­ções podem ser mais ou menos classificadas com o mesmo significado de áreas tribais. Cônscio da força da tradição, Salomão não combateu as dis­tinções existentes entre uma tribo e outra, embora soubesse que a perma­nência desses isolamentos apenas serviriam como obstáculos para o cres­cimento de uma unidade, impedindo que Israel constituísse uma nação. A tarefa de Salomão era, sem dúvida, difícil, pois teria de desenvolver um sentimento de coletividade e nacionalidade, mediante a centralização do governo, sem com isso ofender os antigos ideais das tribos.

A solução encontrada foi dividir a nação em doze distritos adminis­trativos, preservando assim a identidade das tribos e, ao mesmo tempo, os doze meses do ano.38 Cada um dos distritos estava sob a supervisão de um governador (1 Rs 4.7-19) que se reportava diretam ente ao supervisor dos oficiais dos distritos. Cada distrito tinha a responsabili­dade de prover os gêneros alimentícios para o governo central por um mês inteiro todos os anos. Quando havia a necessidade de se arregimentar soldados dentre as tribos, ou quando os projetos de construção civil exi­giam um número maior de trabalhadores, havia uma convocação geral, provavelmente obedecendo a critérios de quantidade de população, sem estar relacionado à rotatividade anual. Por exemplo, quando Salomão recrutou 180.000 homens para seus projetos civis, ele os chamou dentre todos os que constituíam seu reino, sem levar em conta qualquer afiliação tribal (1 Rs 5.13-15).

Entretanto, havia uma distinção entre os israelitas convocados para um serviço temporário e os não-israelitas que realizavam trabalhos forçados permanentemente (1 Rs 9.15-22). Estes eram os habitantes que sobraram

37 S. Yeivin, "Administration," em World History ofthe Jewish People, vol. 5, pp. 147-71.38 John Bright, "The Organization and Administration of the Israelite Empire," em Magnalia

Dei, the Mighty Acts o f God: Essays on the Bible and Archaeology in Memory o f G. Ernest Wright, editado por Frank M. Cross et at. (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1976), pp. 193- 208; de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, pp. 133-36.

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das nações autóctones da terra de Canaã. Sem estarem sob o pacto da lei, não desfrutavam dos direitos de livres cidadãos do reino, e eram os pri­meiros candidatos a todo tipo de trabalho requerido pelo rei. Os israelitas, por outro lado, serviam permanentemente apenas no serviço militar — talvez na reserva ou como profissionais — e como supervisores dos traba­lhadores engajados nos projetos de construções civis.39

Os distritos adm inistrativos

Já se mencionou que os doze distritos correspondiam basicamente às áreas ocupadas pelas doze tribos, mas os limites são debatidos até hoje e não podem ser definidos. O historiador forneceu algumas informações; então é preciso esforçar-se para, pelo menos, ter uma idéia geral dos limi­tes e de suas implicações na história de Israel.40

O primeiro dos distritos é conhecido como "a região montanhosa de Efraim" e pode ser considerado basicamente idêntico à tribo de Efraim. O segundo ficava a oeste de Judá e Benjamim, na região que original­mente pertencia aos filhos de Dã. O terceiro distrito, "a terra de Hefer," estendia-se pela costa do Mediterrâneo entre Jope, na direção sul, e o Vadi Shihor, no norte. Portanto, sua situação geográfica correspondia ao oeste de Efraim e Manassés teoricamente, mas na prática esteve sob o controle cananeu até o tempo de Davi e Salomão. O quarto distrito abran­gia toda planície costeira ao norte de Hefer, até que englobava o monte Carmelo. Essa região tinha sido parte de Manassés e Zebulom mas, como no caso de Hefer, permaneceu na maioria dos anos sob a dominação dos cananeus. O quinto distrito estendia-se irregularmente pelo Megido, no noroeste, até Bete-Seã, no leste, e Jokmeam, a sudeste. Este era essencial­mente o lado mais ocidental de Manassés, com exceção das regiões cos­teiras da tribo, que não foram incluídas.

O sexto distrito, centralizado em Ramote-Gileade, era uma enorme área na Transjordânia que ocupava quase totalmente as terras entre os rios Jaboque e o Yarmuk, desde 16 quilômetros ao leste do Jordão até o interior dos vastos desertos orientais. Basicamente, pode-se dizer que esse distrito se comparava ao antigo lado oriental da tribo de Manassés. O sétimo dis­trito também se situava na Transjordânia, correndo toda a extensão entre o mar de Quinerete e o mar Morto, ficando a oeste do reino dos amonitas.

39 Soggin, "Compulsory Labor Under David and Solomon," em Studies in the Period o f David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, p. 266.

40 Ver o interessante gráfico feito por de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, p. 134.

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O oitavo estava para o norte e consistia na área original destinada à tribo de Naftali e no território conquistado pelos filhos de Dã.

O nono distrito estava ao ocidente e incluía todo o território de Aser, e a parte de Zebulom não conquistada pelo quarto distrito. Foi deste nono distrito que Salomão cedeu algumas cidades para Hirão (1 Rs 9.11), tornando-se toda a costa ao norte do Carmelo um território fenício .41 O décimo distrito era virtualmente o mesmo da tribo de Issacar, estenden­do-se para o vale de Jezreel, ao oriente, e para o norte de Bete-Seã. O décimo primeiro era coextensivo com Benjamim mas não incluiu a cida­de de Jerusalém. O décimo segundo estava na Transjordânia, ao sul de Gileade e Amom, e ao norte do rio Arnom, fronteira com Moabe. Basica­mente, este era o mesmo território de Rúben.

Como é possível ver, os limites originais das tribos foram mantidos quando houve a distribuição dos distritos, embora houvesse novos distri­tos sendo criados em áreas que haviam estado sob controle cananeu ou de outra força exterior. Vários outros aspectos dos distritos de Salomão pre­cisam ser observados. Primeiro, nenhuma tentativa foi feita para incluir a Filístia no plano, embora Salomão tivesse poderio militar suficiente para conquistá-la e incorporá-la como parte de seu reino. E ele teria ampla base teológica para fazê-lo, porque a Filístia ficava exatamente nos limites da terra prometida aos patriarcas e a Moisés. Pode ter sido por razões práti­cas que Salomão preferiu coexistir pacificamente com a Filístia a gastar suas energias e recursos para manter esse recalcitrante e ambicioso povo à força debaixo de seu controle.42

Segundo, é impossível não perceber o desaparecimento das tribos de Dã e Zebulom como entidades distintas. Não há como saber o motivo, mas parece que, no caso de Dã, o rei Salomão deliberou eliminá-la ou incorporá-la em Naftali, a fim de neutralizar a tendência ao paganismo que vinha caracterizando a tribo desde os primeiros dias dos juízes.

O terceiro fato foi a transferência da faixa costeira de Aser de Israel para a Fenícia.43 A única explicação racional para isto é uma aparente ne­cessidade de caixa da parte de Salomão. Após vinte anos de construções,

41 Quanto ao problema da fronteira geral entre Fenícia e Israel, assim como a transferência das cidades em particular, ver B. Oded, "Neighbors on the West," em World History of the Jeioish People, vol. 4, parte 1, pp. 234-35.

42 Oded, "Neighbors on the West," p. 239, é de opinião que a Filístia era, pelo menos, um estado tributário quando Salomão reinava em Israel.

43 Herbert Donner, "The Interdependence of Internai Affairs and Foreign Policy during the Davidic-Solomonic Period (with Special Regard to the Phoenician Coast)," em Studies in the Period o f David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, pp. 207-8.

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faltou-lhe recursos financeiros para pagar toda a madeira e o ouro que Hirão e o rei da Fenícia haviam providenciado. Só o ouro avultava a 120 talentos. Hirão ficou insatisfeito com o negócio, mas parece que aceitou as cidades, pelo menos por pouco tempo.

O mais notável de todo esse fato é que Judá e Jerusalém não foram incluídas no processo de designação dos distritos.44 Isto implica em que Jerusalém e seus arredores foram considerados um distrito federal isen­to das obrigações determinadas para as demais tribos. Está claro que havia uma linha de demarcação entre Israel e Judá pelos comentários do historiador: "Judá e Israel eram tão numerosos quanto a areia da praia" (1 Rs 4.20) e "Judá e Israel habitavam seguros, cada um debaixo da sua videira, e debaixo da sua figueira" (1 Rs 4.25). A isenção de taxas, traba­lhos forçados e outras obrigações pode ser com preendida à luz da ancestralidade judaítica de Salomão, mas também pode ter sido um fa­tor decisivo que contribuiu para a divisão do reino .45 Quando Roboão, filho e sucessor de Salomão, decidiu aumentar ainda mais a carga do povo, ou seja, os serviços e impostos, ocasionou um clamor desesperado das tribos do norte:

Que parte temos nós com Davi?Não há para nós heranças no filho de Jessé!

As vossas tendas, ó Israel! Cuida agora da tua casa, ó Davi (1 Rs 12.16).

E óbvio que as reclamações dos israelitas não se baseavam apenas no aumento de serviço ou impostos, mas também nos encargos discrimi­natórios. O silêncio de Judá com respeito a essa opressão é uma evidência de que não eram vítimas.

44 Roland de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, p. 136, sugere que Judá provavelmente está sendo mencionada em 1 Reis 4.19b ("o distrito"; cf. RSV: "E havia um oficial na terra de Judá"). Contudo, não há base para esta opinião, pois a designação de Judá, mencionada pelo historiador na época de Salomão pode perfeitamente estar associada às divisões feitas por Josué 15.21-62 muitos anos antes.

45 Simon J. De Vries sugere que havia um sistema, não registrado, de taxação e de alista­mento para Judá — de outra forma teria havido, inevitavelmente, algum tipo de relato mencionando a insatisfação, inquietação e revolta (1 Kíngs, Word Biblical Commentary [Waco: Word, 1985], pp. 71-72). Mas este é precisamente o ponto! O tratamento discriminatório foi o principal motivo para a ruptura e divisão do reino. Ver J. Alberto Soggin, A History o f Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), pp. 82-83.

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A política fisca l

O problema da taxação leva-nos a considerar a base fiscal do império de Salomão.46 O governo central possuía seus recursos oriundos do traba­lho forçado e dos rendimentos dos próprios cidadãos. Entretanto, nada é dito acerca do valor ou do percentual das taxas impostas sobre as fontes israelitas. Embora o peso parecesse excessivo ao povo, como sempre são as taxas, a vasta riqueza de Salomão não poderia basear-se apenas nos impostos domésticos.

A resposta está nos impostos e tributos pagos pelas províncias e esta­dos vassalos, e na magistral capacidade de Salomão de fazer negócios internacionais. Além disso, em Israel havia um grande número de ho­mens escravos, remanescentes cananeus, que viviam em vários enclaves pela terra. O trabalho forçado desses escravos permitia aos israelitas vol- tar-se para as ciências e para o comércio internacional. Assim surgia um fenômeno em Israel — uma afluente classe média que podia empreen­der tempo e recursos em novas maneiras criativas de desenvolver a cul­tura e o com ércio .47

Algo do confortável estilo de vida conquistado através da política de Salomão é captado pelo historiador: "...comendo, bebendo e alegrando- se" (1 Rs 4.20). Então, como se para explicar o modo pelo qual este estado se concretizou, ele passa a discorrer acerca do domínio de Salomão sobre toda a terra, desde o Eufrates até o Egito, um domínio que exigiu de seus estados-clientes um pagamento de taxas e tributos durante toda a sua vida. Especificamente, e como exemplo, somente as necessidades diárias do pa­lácio consistiam em 30 coros de flor de farinha, 60 coros de farinha, 10 bois cevados, vinte bois de pasto e 100 carneiros. Parte dessa quantidade de alimentos era fornecida pelas tribos de Israel, mas a maior parte vinha dos tributos impostos aos estados estrangeiros.

As exigências pessoais de Salomão, tão gigantescas quanto possam pa­recer, significavam uma ínfima parcela de tudo o que entrava nos cofres do reino. Todos os anos, diz o historiador, entrava em Israel cerca de 666 talentos de ouro, além da quantia que a nação recebia dos tributos e do comércio (1 Rs 10.14,15). Essa vultosa importância vinha apenas das taxas e dos tributos. Não é de espantar que o rei Salomão pudesse esbanjar tan­

46 de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, pp. 140-41.47 Hanoch Reviv, "The Structure of Society," em World History o f the Jewish People, vol. 5,

pp. 138-43.

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to esplendor em Jerusalém e em todo o reino, nem causa surpresa que visitantes do oriente chegassem para ver a magnificência de Salomão com os próprios olhos.

Comércio internacional

O comércio internacional era outra principal fonte de prosperidade de Israel. Provavelmente era realizado com as nações sob o seu controle polí­tico, mas o registro comprova operações comerciais entre Israel e nações com as quais ele mantinha um relacionamento pacífico. Salomão servia como um corretor nessas negociações internacionais. Aproveitando-se da localização estratégica de Israel, que ficava no caminho das rotas comerci­ais, ao leste do Mediterrâneo, Salomão fez de Israel uma câmara de com­pensação, por onde as mercadorias internacionais passavam. Estas eram taxadas enquanto entravam e saíam dos limites de Israel. Toda a quantia aumentava o tesouro da nação.

Este processo pode ser visto no tratado entre Hirão de Tiro e Salomão, no qual Hirão providenciaria madeira para as construções de Salomão e, em troca, receberia grãos e azeite. Esta parece ter sido uma negociação justa, sem nenhuma vantagem especial para alguma das partes. Israel não tinha madeira suficiente para dar continuidade aos seus programas de construção, e Tiro estava imprensada entre o mar e as montanhas, depen­dendo da importação de gêneros alimentícios.48 Alguns anos mais tarde, com o término das construções, o acordo precisou ser renegociado, pois parece que Salomão não pôde mais continuar o pagamento das madeiras importadas de Hirão. Como isto aconteceu, em vista da riqueza de Israel, não se pode esclarecer, a menos que tal riqueza tenha sido acumulada após o contrato em questão. De fato, o cronista parece supor esta hipótese. Ele diz que depois de vinte anos de construção, Salomão "edificou [re­construiu] as cidades que Hirão lhe tinha dado, e fez habitar nelas os fi­lhos de Israel" (2 Cr 8.2). Isto pode significar que Salomão, pouco depois de ceder essas cidades a Hirão, comprou-as de volta, em razão de uma repentina mudança em seus haveres.

De qualquer forma, Hirão não se preocupou com o fato de Salomão recobrar as cidades, pois também ele fornecia marinheiros para servir na m arinha mercante de Israel (1 Rs 9.26-28).49 Operando na base de

48 Oded, "Neighbors on the West," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 233.49 Os fenícios eram, é claro, marinheiros reconhecidos. Ver Oded, "Neighbors of the West,"

pp. 228-30.

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Eziom Geber, o porto edomita no Golfo de Acaba, a frota percorreu gTandes distâncias à procura de ouro, m adeira de sândalo, pedras pre­ciosas, marfim , m acacos e babuínos (1 Rs 10.11-12,22). As rotas incluí­am Ofir (provavelm ente na baixa A rábia50 ou na região centro-leste da África) e Társis (possivelm ente Sardenha51 ou mesmo a Espanha). Não é im possível que as frotas de Salomão tenham alcançado a longínqua índia.

O comércio terrestre era feito particularmente sobre cavalos e carrua­gens.52 O próprio Salomão possuía mil e quatrocentas carruagens e doze mil cavalos nas cidades destinadas a guardá-los, e em Jerusalém. Mas, sem dúvida, negociou muitos deles, pois ele servia como intermediário na compra e venda dos bens mais valorizados da época. Foram os hicsos e os hurrianos que introduziram a carruagem no mundo do Oriente M é­dio, e sua popularidade foi cada vez mais difundida pelos cananeus e filisteus .53 Somente na época de Davi passaram os israelitas a utilizar esse equipamento sofisticado de guerra. Na época de Salomão, ironica­mente, todo o comércio de carruagens e cavalos estava sob o controle de Israel. A razão é que os egípcios produziam as melhores carruagens (1 Rs 10.28,29).54 Cada cavalo era estimado em 150 shequels de prata, e cada carruagem em 600 shequels. A mercadoria seria comercializada com os hititas e com as cidades-estados araméias do norte da Síria. Porém, no centro estava a nação de Israel, e é evidente que Salomão conseguiu um grande lucro com a situação.

Outra fonte de renda provinha à parte dos tributos ou comércio. Con­sistia em presentes voluntários de monarcas abastados que visitavam o reino de Salomão, oriundos de todas as partes do mundo conhecido da época. A visita mais celebrada dentre todas é a da rainha de Shebá (mais tarde conhecida como Sabá); seu reino localizava-se no sudoeste da pe­

50 Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 15.31 Ibid.52 Yutaka Ikeda, "Solomon's Trade in Horses and Chariots in Its International Setting," em

Studies in the Period o f David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, pp. 215-38.53 Ibid., pp. 216-18.54 No texto massorético está escrito mimmisrãyim ("do Egito"), mas muitos estudiosos su­

gerem a emenda mimmusri ("de Musri"), baseados nas várias referências do antigo Ori­ente Médio a um local chamado Musri (Gray, I & II Kings, pp. 268-69). Contudo, não há qualquer base textual para essa idéia, e Ikeda ("Solomon's Trade," pp. 215, 227-29) tem argumentado não apenas que a própria existência de um Musri afora o Egito é duvido­sa, mas também que o Egito de fato tornou-se um centro de criação de cavalos nos tempos pré-Salomônicos.

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nínsula Arábica, a mais de mil e novecentos quilômetros distante de Jeru­salém .55 Possuidora de uma riqueza fabulosa, esta nobre mulher ouviu acerca da sabedoria de Salomão e de sua ligação com Yahweh, de forma que decidiu visitá-lo, com todo tipo de bens raros e preciosos, incluindo especiarias, pérolas e 120 talentos de ouro. Salomão a tratou bem, embora o registro não especifique os detalhes. Certamente tais visitas não apenas acrescentavam mais fortunas aos tesouros de Salomão, mas também o fa­ziam reconhecido no mundo antigo do Oriente Médio. Pode-se afirmar sem receio de contradição que Israel, sob o domínio de Salomão, alcançou o pináculo do poder e prestígio internacionais. Juntamente com a Assíria e com o Egito, Israel certamente poderia reivindicar ser uma das três gran­des potências do século X.

Apostasia moral e espiritual

As proezas militares, políticas e econômicas de Israel tornaram-se ape­nas um verniz que cobria a degradação social, cultural e espiritual dos últimos anos de Salomão. O registro bíblico atesta inequivocamente a con­duta justa e íntegra de Salomão e seu reinado no princípio, mas revela a profunda mudança ocorrida no quadro quarenta anos mais tarde.

Salomão herdara de seu pai a responsabilidade de governar e, mais importante ainda, de ser o líder espiritual do povo. A primeira ele cum­priu razoavelmente bem — ou, no mínimo, efetivamente. A segunda, por outro lado, foi um fracasso. Isto ainda é mais trágico porque, em sua mo­cidade, Salomão tomou precaução contra esta eventualidade. Ele iniciou o seu reinado com uma santa convocação em Gibeão, e lá teve um encon­tro com o Deus vivo (1 Rs 3.4,5). Quando indagado sobre o seu maior desejo, Salomão pediu sabedoria a fim de conduzir e julgar o povo. Ele foi o responsável pela construção do templo, e por sua gloriosa compleição. Depois de mais de vinte anos Deus lhe apareceu pela segunda vez, e rea­firmou suas promessas contidas no pacto (1 Rs 9.1-9). Deus comunicou a Salomão sua satisfação com o templo e o desejo de estabelecer seu nome naquele lugar para sempre. Por outro lado, sua bênção contínua sobre a casa real e sobre o templo seria condicional: se Salomão permanecesse fiel e obediente, a bênção não seria interrompida; se viesse a desobedecer, seu reinado, o templo, e toda a nação seriam lançados fora da presença de Yahweh, até que Ele, por sua infinita graça, os restaurasse novamente. A

15 Gus Van Beck, "Frankincense and Myrrh," em The Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, p. 125.

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história subseqüente revela que exatamente isto aconteceu. Salomão e seus descendentes violaram a aliança, de modo que Israel e Judá sofreram as conseqüências da derrota e deportação.

A deterioração espiritual de Salomão (e de Israel) não aconteceu da noite para o dia, é claro, e nem se pode dividir o reino em um período de justiça e um período de rebelião. É preciso ver o processo como um afastamento gradual do padrão de santidade com o qual ele havia se comprometido (pelo menos idealmente) no início de seu reinado. Parece que o jovem rei, embora abençoado com as mais nobres intenções, achou-se preso no vórtice das circunstâncias históricas que fugiam ao seu controle. O livro de Eclesiastes descreve sucintamente o que tais conflitos representavam.

O autor do livro dos Reis deixa escapar que o rei Salomão assumiu alguns compromissos no princípio que já apontavam para seu futuro com­portamento e atitudes.56 Ele casou-se com a filha de faraó; embora tenha sido um casamento de conveniência para cumprimento de fins políticos, esta atitude violava o código de conduta que se esperava de um eleito, filho real de Yahweh (Dt 17.14-17). Além disso, embora amasse Yahweh e andasse segundo seus estatutos, Salomão adorou nos lugares altos que, com exceção do que estava em Gibeão, eram tabu. O historiador também deixa claro a ligação entre os casamentos ilícitos de Salomão e sua adora­ção a outros deuses. Ele informa que Salomão amou muitas mulheres es­trangeiras além da filha de faraó, e que elas o encorajaram à apostasia e ao sincretismo (1 Rs 11.3).

A ilícita poligamia não iniciou tarde na vida de Salomão. Há evidência, por exemplo, de que Salomão já havia se casado com uma mulher pagã, chamada Naamá, amonita, antes de seu casamento com a filha do faraó. De fato, ele casou-se com Naamá antes mesmo de tornar-se rei, pois ela foi a mãe de seu filho Roboão, que era da idade de quarenta anos quando assumiu o trono de seu pai, após este reinar quarenta anos (1 Rs 14.21). Além do mais, Salomão tomou para si mulheres de Moabe, Edom, Sidom e dos hititas, embora tal comportamento fosse proibido em Israel (Ex 23.31- 33; 34.12-16). Gradualmente desviaram seus corações de Yahweh até que a apostasia os conduziu à adoração de Astarote, Moloque e Camos, junta­mente com Yahweh. Ele até providenciou lugares nos altos montes, onde pudesse com suas mulheres participar de rituais pagãos associados a tais

56 Quanto à omissão do cronista a respeito dessas atitudes negativas de Salomão e as ra­zões teológicas para ter agido assim, ver Raymond B. Dillard, "The Chronicler's Solomon," WTJ43 (1981): 290-92; Roddy L. Braun, "Solomonic Apologetic in Chronicles/' JBL 92 (1973): 503-16.

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divindades. Foi essa mistura de poligamia física e espiritual que trouxe sobre Salomão e o reino o julgamento de Yahweh, um julgamento que ficou registrado historicamente na separação irremediável da nação em duas partes.

Salomão e a natureza da sabedoria

Toda essa decadência moral e espiritual aconteceu a despeito de Salomão ter sido abençoado por Deus com notável sabedoria, sendo conhecido em todo o mundo antigo como o homem mais sábio dentre os mortais (1 Rs 4.31). Como pôde um homem tão dotado por Deus ser tão insensível à voz do Espírito? A resposta encontra-se na natureza da sabedoria bíblica.

É impossível aqui entrar no complexo assunto acerca da sabedoria, mas pelo menos um breve comentário precisa ser feito .57 Primeiro, é pre­ciso reconhecer que em Israel e em todo o antigo Oriente M édio, a sabe­doria não era sinônimo de conhecimento, educação ou ciência, mas esta­va relacionada à maneira certa de viver, uma habilidade possuída ape­nas por quem conhecia e temia a Deus. Esta é a razão por que o Antigo Testamento enfatiza a dicotomia entre o sábio e o louco (i.e., entre o justo e o pecador).58

Isto não significa, entretanto, que alguém poderia tornar-se sábio sem atentar para os fatos e os fenômenos. Evidências da sabedoria de Salomão podem ser vistas nos três mil provérbios que compôs, além de mil canções que tratavam de assuntos seculares, como árvores, animais, pássaros e peixes (1 Rs 4.32,33). A sabedoria implícita aqui não está apenas no enten­dimento da botânica ou zoologia, mas na perspicácia em reconhecer que esses organismos, como toda a criação, são a obra de Deus e que, em suas características e hábitos, os propósitos de Deus para a vida em geral po­dem ser discernidos.59

Utilizando símiles e metáforas retiradas diretamente da natureza,60 a literatura de sabedoria do Antigo Testamento também procurava pene­trar o caráter e personalidade humana. Mesmo sem os benefícios da psi­cologia e psiquiatria moderna, ela compreendeu os impulsos da natureza básica dos seres humanos e suas emoções, podendo oferecer conselhos

57 Para um estudo produtivo, ver James L. Crenshaw, Old Testament Wisdom: An lntroduction (Atlanta: John Knox, 1981).

58 Ibid., pp. 24, 31.59 Ibid., pp. 50-52.60 Delbert R. Hillers, "The Effective Simile in Biblical Literature," JAOS 103 (1983): 185-85.

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baseados na moral e ética da própria natureza de Deus. Enquanto os tex­tos dispõem de vasta ilustração, o melhor exemplo pode ser visto na nar­rativa referente às duas prostitutas que reivindicavam o mesmo bebê, e levavam a questão até Salomão (1 Rs 3.16-28). Em uma das mais belas expressões da verdadeira sabedoria do Antigo Testamento, o rei ordenou que a criança fosse dividida ao meio, e cada mulher recebesse uma meta­de. A verdadeira mãe, movida pelo genuíno instinto maternal, clamou ao rei a fim de que a criança fosse deixada viva. A decisão sábia de Salomão não foi achada em um manual ou nos muitos anos de experiência de vida, mas vinha do entendimento fundamental do caráter de Deus e daqueles que foram criados à sua imagem.

Voltando agora ao problema do desvio de Salomão em face de sua pre- eminente sabedoria, deve-se simplesmente admitir que é possível ser sá­bio no sentido bíblico do termo, e ainda assim falhar em viver de acordo com suas implicações. O pecado de Salomão em multiplicar esposas e se­guir após os seus deuses não adulterou a sua sabedoria, mas certamente cancelou qualquer reivindicação de sua parte, para si ou para o reino, de acordo com os seus princípios.

Finalmente, depois de quarenta anos nos quais ele viu Israel alcançar um estado nunca antes conhecido, e que jamais o alcançaria novamente, Salomão morreu. Pela misericórdia do Senhor ele morreu antes de ser for­çado a ver com os próprios olhos o fruto de sua política desastrosa e extra­viada: a ruptura do reino em duas partes irreconciliáveis.

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As raízes da divisão nacional A ocasião im ediata da divisão nacional

A sucessão de Roboão A rebelião de Israel A ascensão de Jeroboão

O reino de Roboão O reino de Jeroboão A pressão das nações ao redor Abias de Judá Asa de Judá

Considerações cronológicas As guerras de Asa

O novo surgim ento da Assíria N adabe de Israel A dinastia de Baasa de Israel

O reino de Baasa O reino de Elá

Om ri de Israel Josafá de Judá

Co-regência com Asa As realizações de Josafá

Acabe de IsraelA maldade de Acabe O ministério de Elias As invasões de Ben-Hadade A morte de Acabe

A am eaça da A ssíria Os sucessores de Acabe

Acazias de Israel Jorão de Israel

A unção de H azael de Dam asco Jeorão de Judá A unção de Jeú

As raízes da divisão nacional

A morte de Salomão abriu caminho para um dos mais traumáticos e decisivos acontecimentos da longa história de Israel — a formal e perma­nente divisão do reino entre as dez tribos do norte, que doravante passari­am a se chamar Israel ou Efraim, e a tribo de Judá, ao sul. Embora tenha abalado a nação psicologicamente, a divisão não deve ter causado surpre­sa ao povo esclarecido, porque as raízes políticas e teológicas do cisma eram profundas no passado de Israel.

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Já se observaram alguns sintomas de doença no povo da aliança. Isto foi exacerbado por outros fatores, alguns dos quais fora do controle hu­mano. Por exemplo, a própria distribuição das terras feita por Josué con­tinha dentro a semente da separação — fronteiras naturais que, por neces­sidade, separavam o povo. Além disso, o Jordão separava as tribos do leste e do oeste; o resultado era um sentimento de mútua desconfiança e alguns conflitos militares vez por outra. Semelhantemente, as chamadas tribos da Galiléia estavam isoladas de Manassés e Efraim por causa do vale de Jezreel. Neste caso, a separação entre elas não era tanto geográfica quanto prática. Os cananeus, que não puderam ser expulsos de Jezreel e outros vales e planícies, ocuparam o espaço entre o Israel norte e o central até o reinado de Davi. Evidências do isolamento da Galiléia acharam ex­pressão mais tarde, nos tempos do Novo Testamento.1

O mais importante, entretanto, foi o antigo e contínuo senso de bifur­cação entre Judá e as outras tribos. Mais uma vez a geografia parece ter exercido um papel; no mínimo proveu um habitat que permitiu o desen­volvimento independente de cada tribo. A tribo de Judá não se comunica­va com as tribos do norte em razão da largura e profundidade do vale de Soreque, na região central de Israel. Ao oeste estavam os filisteus; ao sul, o perigoso deserto do Neguebe e também as populações nômades da re­gião, sempre hostis aos estrangeiros; ao leste, havia o mar Morto. Assim Judá era a tribo mais isolada de Israel e, portanto, a mais sujeita ao senti­mento de não pertinência.

Este fato é irônico, pois Judá, desde o princípio, tinha a promessa patri­arcal de assumir a liderança política e teológica da nação. Quando Jacó deu a bênção final a seus filhos, afirmou: "O cetro não se arredará de Judá..." (Gn 49.10); esta é uma indicação incontestável de que a localização do rei histórico e messiânico se acharia nesta tribo. A genealogia de Davi, no livro de Rute e em 1 Crônicas 2.3-17, estabelece a ligação entre a promessa patriarcal e seu cumprimento histórico e, de uma vez por todas, demons­tra a primazia teológica da tribo de Judá sobre .as demais tribos, a despeito das suas dificuldades geográficas.2

Durante o longo período dos juízes, emergiu uma tensão entre o princípio teológico que preconizava a realeza de Judá e sua alienação das tribos do norte. Um dos propósitos da conhecida trilogia de Belém, especialmente a história de Rute, é estabelecer a cidade de Belém (e

1 Denis Baly, The Geography of the Bible (New York: Harper, 1957), p. 190.2 Eugene H. Merrill, "The Book of Ruth: Narration and Shared Themes," Bib Sac 142

(1985): 130-41.

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3 3 8 H is t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t a m e n

portanto, Judá) como o local de nascim ento da verdadeira dinastia. Outro propósito é revelar, quase em forma de parábola, as raízes da riva­lidade entre o reinado de Saul, que estava centrado em Gibeá de Benjamim, e a dinastia de Davi, originária de Belém. Também é particularmente no­tória a história do levita que trouxe sua concubina belemita para Gibeá, onde ela foi cruelm ente violentada e assassinada pelos hom ens de Benjamim. Longe de sentir remorso e buscar punição para os criminosos, a tribo de Benjamim preferiu empunhar as armas e guerrear contra Judá e as demais tribos, até ser quase aniquilada. De fato, a tribo seria eliminada e, como conseqüência, não haveria Saul ou o seu reinado, mas isto não ocorreu porque as mulheres de Jabes-Gileade e Siló foram forçadas a ca­sar-se com os homens sobreviventes de Benjamim. Claramente, o propósi­to da história é mostrar a injustiça feita contra a tribo de Judá e as inclina­ções malignas da tribo de Benjamim.

Pelo final da era dos juízes, a polarização Judá-Israel já era um fait accompli. O autor de Samuel diz que o exército de Saul era constituído por homens de Israel e homens de Judá (1 Sm 11.8; 15.4; 17.52); ele também mostra que os filisteus percebiam Judá (i.e., as forças de Davi) como uma entidade distinta de Israel. Parte dessa percepção sem dúvida refletia o desejo dos filisteus de separar Israel, mas também era produto de um re­conhecimento geral de que tal divisão de fato já existia.

Qualquer dúvida ainda pendente foi eliminada quando Davi cedeu aos pedidos de seus conterrâneos e tornou-se o rei em Hebrom, um reinado estabelecido à parte. Mediante uma série de passos diplomáticos e estra­tégias políticas, Davi tornou-se também o rei das tribos do norte; porém, as negociações levaram sete anos para serem concretizadas. A aparente unidade não passava de uma fachada, pois seu filho Absalão instigou uma revolta, valendo-se da instabilidade entre o sul e o norte. Além disso, quan­do Davi retornou do exílio, teve de paliar o ódio e a inveja de alguns ele­mentos da nação antes de reivindicar a sua lealdade mais uma vez. Na verdade, mesmo após a sua volta, ele precisou cortar uma revolução pela raiz, comandada por um membro da facção saulida.

Embora não haja uma declaração específica do rompimento entre Isra­el e Judá nos anos de Salomão, uma claro depoimento é feito a respeito da isenção de Judá de todos os impostos e taxas. Como e por que o sábio Salomão cometeria um erro assim tão grave permanece um mistério, más provavelmente não havia outra decisão mais desastrosa e divisora para a nação. O milagre é que a rebelião aberta do reino do norte ocorreu apenas depois da sua morte. Foi somente a personalidade forte e diplomática de Salomão que impediu que o caldeirão transbordasse durante o seu reino.

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.4 \ 1 o .x a r q u ia D iv id id a 3 3 9

Houve também o aspecto teológico na ruptura do reino .3 Os confli­tos intertribais em Israel e as atitudes impensadas na política de Salomão devem-se ao seu destempero espiritual: Salomão violou a aliança entre Yahweh e Davi, uma aliança para com a qual ele, como herdeiro da di­nastia, tinha obrigações. Especificamente, sua desobediência foi m ani­festada em seus casamentos malfeitos e em sua tolerância para com os deuses pagãos, mas tais erros podem não ter sido os mais sérios dentre seus pecados. O narrador afirm a que o Senhor indignou-se contra Salomão "porquanto desviara o seu coração do Senhor Deus de Israel, o qual duas vezes lhe aparecera" (1 Rs 11.9). Salomão seguiu outros deu­ses, o que constituía a essência da infidelidade. Por essa razão, o reino, com exceção de Judá e Jerusalém, seria tomado de suas mãos e de seus descendentes, e entregue a Jeroboão (1 Rs 11.11-13).

A ocasião imediata da divisão nacional

A sucessão de Roboão

Jeroboão ben-Nebate, o supervisor dos trabalhos forçados do distrito de Efraim, já havia sido informado pelo profeta Aías que seria o rei de dez tribos de Israel (1 Rs 11.31). Uma tribo, Judá, permaneceria nas mãos da dinastia de Davi em razão da aliança incondicional entre Yahweh e Davi.4 Deus havia escolhido Jerusalém como seu local de habitação na terra, e Davi e seus descendentes lá serviriam para sempre, como uma lâmpada emitindo para o mundo a luz da radiante presença de Deus e os seus propósitos salvíficos. Nada poderia apagá-la. A semente de Davi poderia ser disciplinada em conseqüência de sua deslealdade para com Yahweh, mas não para sempre. Em seus planos inescrutáveis, Yahweh

3 Esse é o principal argumento da chamada visão deuteronomista do livro dos Reis, que afirma ser a preocupação fundamental dessas histórias examinar cada rei baseado na sua conformidade ou fracasso para com a aliança e Yahweh. Ver John Van Seters, In Search of History (New Haven: Yale University Press, 1983), pp. 311-14, 359-61.

4 Como resultado, Benjamim juntou-se a Judá, e ambas formaram uma única tribo, co­nhecida por Judá (ver 1 Reis 12.21; 2 Cr 11.1,10; 15.2,9; Ed 4.1). É bastante significativo que Benjamim tenha se unido à Judá para saudar Davi, que retornava do exílio na Transjordânia (2 Sm 19.16-17). Portanto, a deserção de Benjamim para a família de Davi pode ter ocorrido ainda nos tempos pré-Salomônicos. Quanto ao problema das dez tri­bos deixadas ao norte e somente uma ao sul, ver Carl F. Keil, The Books of the Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1950), pp. 179-81; Z. Kallai, "Judah and Israel — A Study in Israelite Historiography," IEJ 28 (1978): 256-57.

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3 4 0 H i s t ó r i a d e I s r a e i , ,w A n t i g o 7/ s/ i v/£\~:

Tabela 6 O s re is da m o n arq u ia d iv id id a

Israel Judá

Jeroboão 931 — 910 Roboão 931 — 913Nadabe 910 — 909 Abias 913 — 911Baasa 909 — 886 Asa 911 — 870Elá 886 — 885Zimri 885Onri 885 — 874Acabe 874 — 853 Josafá 873 — 848Acazias 853 — 852Jorão 852 — 841 Jeorão 848 — 841Jeú 841 — 814 Acasias 841

Atália 841 — 835Jeoacaz 814 — 798 Joás 835 — 796Jeoás 798 — 782 Amazias 796 — 767Jeroboão II 793 — 753 Uzias 792 — 740Zacarias 753Salum 752Menaém 752 — 742 Jotão 750 — 731Pecaías 742 — 740Peca 752 — 732 Acaz 735 — 715Oséias 732 — 722 Ezequias 729 — 686

Manassés 696 — 642Amom 642 — 640Josias 640 — 609Jeoacaz 609Jeoiakim 608 — 598Jeoiachim 598 — 597Zedequias 597 — 586

completaria seus propósitos eternos através de Davi, o servo escolhido (1 Rs 11.34-39).

Salomão foi sucedido por seu filho Roboão, que reinou por dezessete anos, de 931 a 913.5 Aparentemente ele foi o primeiro filho de Salomão, fruto de um casamento de diplomacia com Naamá, de Amom (1 Rs 14.21). Visto que Roboão estava com quarenta anos quando se tornou rei, após ter seu pai reinado por quarenta anos, é bastante provável que Salomão

Quanto às datas da monarquia dividida, ver Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers of the Hebrew Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1965). Para um estudo elucidativo que examina as dificuldades envolvidas na reconstrução de uma cronologia baseada nos dados biblicos, ver a obra de Hayim Tadmor, "The Chronology of the First Temple Period," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, The Age of the Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalem: Massada, 1979), pp. 44-60; Alberto R. Green, "Regnal Formulas in the Hebrew and Greek Texts of the Books of Kings," JNES 42 (1983): 167-80; J. Maxwell Miller, "Another Look at the Chronology of the Early Divided Monarchy," JBL 86 (1967): 276-88.

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tenha se casado com Naamá durante o breve período de co-regência com Davi. O casamento também pode ter sido realizado a fim de credenciar o jovem Salomão ao governo da nação.

Como seu pai, Roboão também foi um polígamo. Casou-se com a neta de Davi (portanto, sua própria prima), Maalate (2 Cr 11.18), e Maaca, filha de Absalão.6 Roboão ajuntou dezoito mulheres e sessenta concubinas, al­gumas das quais ele pode ter herdado de Salomão. O perfil geral de Roboão é descrito da seguinte maneira: "E fez o que era mau, porquanto não pre­parou o seu coração para buscar ao Senhor" (2 Cr 12.14).

O fato mais marcante acerca da sucessão de Roboão ao trono de Salomão é que tal cerimônia ocorreu fora de Jerusalém, especificamente na cidade de Siquém (1 Rs 12.1,2; 2 Cr 10.1). Sem levar em consideração se a coroação deve ser entendida como uma cerimônia separada de uma outra que já havia sido realizada em Jerusalém por Judá ,7 o fato é que a nação estava tão dividida que Roboão sentiu necessidade de ir ao antigo centro de renovação da aliança, a fim de ganhar a confiança das tribos do norte. Siquém foi o lugar onde Josué convocou a nação para reafir­mar o compromisso com Yahweh. Talvez Roboão tenha achado apropri­ado e necessário reunir-se ali novamente para consertar uma monarquia esfacelada.

A rebelião de Israel

A fragilidade da situação é aparente pelo fato de a coroação haver se tornado uma negociação, na qual o porta-voz de Israel, Jeroboão, deter­m inou condições para Roboão obter o apoio do norte (1 Rs 12.3,4). Salomão, disseram eles, tratou-os com severidade e injustiça. Roboão precisava rever a situação, acenando-lhes com uma nova perspectiva. Assim, buscou os conselheiros de seu pai,8 que prontamente recomenda­

6 Há várias indicações de que este Absalão não era o mesmo filho de Davi: (a) a neta de Davi, filha de Absalão, chamava-se Tamar (2 Sm 14.27); (b) em 1 Reis 15.2,10 está escrito Abishalom em vez de Absalão; (c) o pai de Maaca, em outro local, é chamado de "Uriel de Gibeá" (2 Cr 13.2). Ver também Eugene H. Merril, "2 Chronicles," em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F. Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, p. 629.

7 Assim pensa Jacob M. Myers, II Chronicles, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), p. 65.

8 Abraham Malamat tem proposto que os anciãos (zeqenim) e os jovens (yeladim) não representam grupos de idades diferentes, como se fossem sistemas políticos com duas câmaras de votação, compostos por delegados do povo e representantes dos príncipes ("Kingship and Council in Israel and Sumer: A Parallel," JNES 22 [1963]: 247-53).

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ram-lhe ceder às exigências de Israel. Os amigos de infância, porém, su­geriram que Roboão intensificasse ainda mais o jugo sobre o povo. Infe­lizmente, Roboão desconsiderou a sabedoria dos anciãos e ameaçou os súditos com trabalhos ainda mais pesados. Assim, o passo foi dado para o julgamento de Yahweh sobre a casa de Davi, em conseqüência de sua deslealdade.

A delegação israelita unanimemente articulou o que vinha se desen­volvendo, mas que até aquele momento não haviam expressado — uma declaração de independência:

Q ue parte tem os nós com D avi?E não há para nós heranças no filho de Jessé!

Às tuas tendas, ó Israel!Provê agora da tua casa, ó D avi (1 Rs 12.16).

Essas palavras marcaram uma separação final, irreversível. Em uma tentativa desesperada de reconciliação, Roboão enviou aos líderes israeli­tas seu administrador de obras públicas, Adorão, para com eles negociar, mas este não obteve êxito — foi apedrejado até morrer, e Roboão fugiu humilhado para Jerusalém.

A ascensão de Jeroboão

O povo de Israel aclamou Jeroboão como monarca do recém-formado reino .9 O rei imediatamente pôs em prática suas habilidades administra­tivas, estabelecendo sua capital em Siquém, uma cidade considerada san­ta por todos os habitantes de Israel. Também obteve vantagem do bom relacionamento cultivado com o Egito durante o seu exílio sob o domínio do Faraó Sisaque.10

Mas o rompimento final entre Judá e Israel ocorreu, é claro, median­te o juízo de Deus, um fato constantem ente repetido pelo historiador sagrado. Na verdade, seria um esforço inútil de Roboão, ou qualquer

9 Logo depois de tomar ciência de sua escolha como o futuro rei das dez tribos do norte, Jeroboão fugiu de Salomão e encontrou refúgio com Sisaque, fundador da 22a Dinastia (1 Rs 11.40). Ver Pierre Montet, Egypt and the Bible (Philadelphia: Fortress, 1968), p. 40.

10 J.P.J. Oliver, baseando-se sobre a idéia que Jeroboão foi rei sobre uma nação, ao invés de apenas um espaço territorial, tenta argumentar que não houve uma capital no norte antes que Onri construísse a cidade de Samaria ("In Search of a Capital for the Northern Kingdom," JNSL 11 [1983]: 117-32). Esse argumento baseia-se em teorias sócio-antropo- lógicas que não possuem nem um pouco de suporte no texto bíblico.

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outro, tentar um conserto. Mas ele realm ente tentou. Ao voltar para Judá, reuniu um grande exército para retomar Israel à força. Porém o profeta Semaías o dissuadiu deste propósito, explicando que o ocorri­do vinha de Deus, e deveria necessariam ente ser aceito (1 Rs 12.21-24; 2 Cr 11.1-4).

O reino de Roboão

Durante os três primeiros anos de seu governo, Roboão tentou ao má­ximo acomodar-se ao inalterável fato de que presidia uma pequena parte do reino de outrora. Judá ainda era o povo de Deus, e ele o herdeiro da dinastia de Davi, com todos os privilégios contidos na aliança; mas, para as demais nações, Judá não passava de uma sombra dos dias de glória de Salomão. Roboão, portanto, precisou conciliar os ideais teocráticos de Judá como povo eleito, e a realidade do dia-a-dia e da vida militar.

Uma das primeiras medidas de Roboão foi desenvolver um programa de fortificações em seu pequeno reino contra interferências externas, es­pecialmente por parte de Israel. Isso envolveu a incorporação de Benjamim ao seu território, uma importante realização cujo significado não se pode distinguir,11 e a construção de cidadelas que rodeavam todo o perímetro do reino (2 Cr 11.5-12).12 Também constituiu seu filho Abias como vice- regente,13 e distribuiu seus outros filhos por todo o território como coman­dantes das cidades fortificadas (2 Cr 11.22-23).

Os acontecim entos mais im portantes nessa prim eira fase do reina­do de Roboão não foram planejados ou criados por ele. Os sacerdotes e levitas, que habitavam com as tribos do norte, abandonaram suas cida­des natais após Jeroboão estabelecer cultos ilegítim os. Este fato enco­rajou outros sacerdotes do norte a m udar-se para a tribo de Judá ou, pelo menos, a tornar-se mais sim páticos para com a fam ília de Davi (2 Cr 11.13-17). Jeroboão, em resposta, estabeleceu os santuários rivais em Dã e em Betei.

Roboão estava afastado da presença de Yahweh e da aliança havia muito tempo. Esta postura espiritual não ficou sem conseqüências pois,

11 Ver nota 4.12 Quanto à distribuição dessas cidades, ver Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah,

Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan, 1968), mapa 119.13 Contudo, não há evidência de co-regência aqui, conforme S. Yedin mostrou ("The Divided

Kingdom: Rehoboam-Ahaz/Jeroboam-Pekah," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 130).

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em seu quinto ano, Judá sofreu uma forte invasão dos exércitos egípci­os com andados por Shoshenq. Este Faraó, o fundador da 22a Dinastia egípcia, foi o primeiro líder egípcio que, depois de m uitos anos, recon­quistou a grandeza do antigo Egito.14 Durante o seu vigésim o primei­ro ano de reinado (945-924),15 conseguiu reunificar o Alto e o Baixo Egito, restabeleceu o com ércio internacional com Biblos e outros estados fenícios e arameus e, por últim o, esperou pacientem ente por uma oca­sião apropriada para atacar Israel. Ele já havia, inclusive, concedido asilo político a Jeroboão, inim igo de Salomão e futuro rei de Israel, um indício não apenas de simples m isericórdia, mas também de ambições políticas.

Quando Salomão morreu, em 931 a.C., Shoshenq não tardou a desferir0 golpe contra Judá. Usando um incidente nas fronteiras com alguns semitas da região,16 Shoshenq fez o primeiro movimento para o norte de Judá. Tomando as cidades fortificadas e chegando às portas dos muros de Jerusalém, por volta da primavera de 926/925, o rei egípcio partiu para o norte de Israel com seu exército e muitos mercenários a seu serviço. Todo este acontecimento deve ter assustado Jeroboão, que provavelmente sen­tia-se seguro com respeito ao Egito. Mas, em um movimento característico da inconstância tradicional dos egípcios, Shoshenq tentou conquistar Is­rael, uma vez que percebera a facilidade com que Judá havia se rendido.-

Não se sabe por que Shoshenq não deu continuidade à campanha. Talvez estivesse satisfeito com os tributos que exigira de Judá e Israel, particularmente os ricos tesouros do templo. De qualquer forma, sua morte impediu qualquer outra atitude mais drástica. Seu filho Osorkon1 (924-889) evitou outras conquistas, pelo menos por um tempo, interes- sando-se mais por esbanjar riqueza no templo de Atom. A vultosa quan­

14 I. E. S. Edwards, "Egypt: From the Twenty-second to the Twenty-fourth Dynasty," em Cambridge Ancient History, 3a edição, editado por John Boardman et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1982), vol. 3, parte 1, pp. 539-49.

15 As datas para a 22a Dinastia do Egito baseiam-se praticamente em dados irrefutáveis. Ver Kenneth Kitchen, "Late-Egyptian Chronology and the Hebrew Monarchy," JANES5 (1973): 231-33.

16 Edwards, "Egypt," em CAH 3.1, p. 546.17 De fato, Yeivin interpreta os registros da expedição de Sisaque (uma inscrição encontra­

da na parede do grande templo de Karnak) como que indicando que o propósito origi­nal desse rei era atacar o reino de Israel, e não o de Judá. Yeivin defende a idéia que Sisaque estava tentando abrir as rotas comerciais para Biblos e Mesopotâmia, além de disciplinar a Jeroboão por não ter pago um tributo a ele devido ("Divided Kingdom," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 133-34).

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tidade de ouro e prata ali empregada18 procedia possivelmente do tem­plo de Jerusalém.

O pecado que gerou essa devastação na terra e a espoliação do templo foi realmente sério. O autor de 1 Reis indica que Roboão e seus compatri­otas atingiram o mais baixo grau de comportamento idólatra. Estabelece­ram lugares altos, pedras sagradas (massebôt) e os postes de Aserá, além de se envolverem em rituais de prostituição sodomita.19 Não causam es­panto todos esses acontecimentos, dado o sincretismo religioso promovi­do por Salomão, influenciado por suas mulheres pagãs, incluindo Naamá, mãe de Roboão.

Os doze anos finais do reinado de Roboão parecem ser descritos de for­ma mais favorável pelos narradores. Porque humilhando-se Roboão, "a ira do Senhor se desviou dele, para que o não destruísse de todo" (2 Cr 12.12). Mas estes também foram anos de conflito com Jeroboão. O registro sagrado diz que Judá e Israel lutaram continuamente (1 Rs 14.30). Infelizmente, não há registro de qual dos dois (se houve um) ficou em vantagem. Em um sentido, é claro, todos perderam; porque o espetáculo de irmãos contra ir­mãos não apenas desrespeitava os filhos de Jacó, mas o próprio Deus.

O reino de Jeroboão

Se era má a situação religiosa em Judá, em Israel de Jeroboão era ainda pior.20 O novo rei estabelecido, que obtivera a promessa de uma dinastia eterna diante de Yahweh, caso permanecesse fiel ao Senhor (1 Rs 11.38),21

18 Segundo James H. Breasted, não menos que 560.000 libras (A History of Egypt [New York: Bantam, 1967], p. 444).

19 Quanto aos equipamentos e práticas dessas pseudo-religiões, ver Helmer Ringgren, Religions of the Ancient Near East (Philadelphia: Westminster, 1973), pp. 158-69.

20 Robert L. Cohn presenteou-nos com uma excelente análise literária da estrutura quiástica da narrativa de Jeroboão (1 Rs 11.26— 14.20). Esse estudo ilustra, mais uma vez, o fato de que as seções históricas da Bíblia, embora decididamente verdadeiras em conteúdo, po­deriam estar (e freqüentemente estiveram) agrupadas em blocos literários que, compara­dos ao nosso estilo moderno e ao método de datação cronológica adotado atualmente, estão completamente fora da ordem. Mas, no caso em questão, não parece ser esse o pro­blema ("Literary Techinique in the Jeroboam Narrative," ZAW 97 [1985]: 23-35).

21 Essa promessa é análoga àquela dada a Saul (ver 1 Sm 13.13). Visto que nos dois casos o rei falhou em cumprir as condições estabelecidas por Yahweh e, conseqüentemente, não houve uma dinastia que continuasse para todo sempre, fica totalmente infrutífero especular acerca do "porque não" do cumprimento dessas promessas da aliança davídica. Ver em Cohn, "Literary Technique," ZAW 97 (1985): 27.

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criou um reino que se tornou o modelo de iniqüidade para sempre, com o qual os futuros reis malignos de Israel seriam comparados (1 Rs 13.34; 15.30; cf. 16.2,3,19, etc.). Sua dinastia, se de fato pode assim ser chamada, durou apenas vinte e quatro anos, ou seja, duas gerações. Este foi o pa­drão de Israel. Judá, a despeito dos tempos de apostasia, manteve-se sem­pre sob a dinastia de Davi. Em Israel havia a turbulência infinda de uma família real substituindo outra; a nação conheceria cinco diferentes dinas­tias no curto período de 210 anos.

Jeroboão, conforme já se observou, reconstruiu a cidade de Siquém e a constituiu sua capital. Peniel (Tulul edh-Dhahab),22 ao leste do Jordão sobre o rio Jaboque, também foi reconstruída, talvez como um centro provincial da Transjordânia (1 Rs 12.25). A associação de Siquém e Peniel com Jacó provavelmente foi o que impulsionou Jeroboão à escolha destas cidades.23

Qualquer tradição religiosa que possa ter motivado a escolha de Siquém e Peniel não influenciou no estabelecimento de Betei e Dã como centros de culto. Para Jeroboão estava evidente que nenhum esforço político promo­vido pelo governo poderia evitar o costume israelita de comparecer às grandes festividades em Jerusalém, onde poderiam adquirir novamente o espírito de unidade nacional e religiosa. Portanto, era necessário provi­denciar lugares sagrados em Israel, onde o povo pudesse oferecer seus sacrifícios e adorar a Deus.

Esta decisão de Jeroboão foi efetivamente contrária à exigência feita por Moisés de uma adoração centralizada em um só local (Dt 12.1-14). Na mente de Jeroboão, as exigências práticas sobrepujaram os requisitos teo­lógicos. Ele precisava impedir, a qualquer custo, a reunificação de Israel e Judá, expondo-se ao risco de perder os seus privilégios reais. Além disso, ele pode ter pensado, uma vez que Israel estava independente de Judá, que Jerusalém já não mais era o centro religioso para Israel, embora lá estivesse o templo e a arca.

A razão para Jeroboão estabelecer os santuários em Betei e Dã, em vez de em Siquém, é bastante problemática. Em Judá, afinal, as atividades re­ligiosas e políticas se combinavam apenas em um lugar: Jerusalém. Por que não seria assim em Israel? Siquém certamente não seria um local de­sapropriado para o culto, já que nenhum outro local em Israel desfrutava de tão grande tradição. Abraão, Jacó e José estiveram intimamente associ­ados ao local, e Josué ali convocou o povo para uma renovação da aliança

22 Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 440.23 Baruch Halpern, "Levitic Participation in the Reform Cult of Jeroboam I," JB L 95 (1976):

31-32.

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com Yahweh. Deve-se supor que Jeroboão, com seu espírito pragmático, buscou um local que desfrutasse de uma forte tradição e uma localização apropriada. Betei era eminentemente qualificada.24 Em Betei Jacó encon­trou-se com Yahweh — pelo menos em duas ocasiões — e poderia se dizer que ali está a formação da fé de Israel. Além disso — e este era o fator mais importante para Jeroboão — Betei situava-se na fronteira com Judá e, ao mesmo tempo, na estrada principal que ligava o norte ao sul. O povo de Israel, vindo de todos os lados do reino, poderia chegar ao local com mui­ta facilidade. Além disso, eles precisariam passar por Betei, caso insistis­sem na peregrinação até Jerusalém, o que seria seriamente desmotivador.

A escolha de Dã, por outro lado, é muito mais difícil de explicar. A cidade situava-se na fronteira norte de Israel, como ficava Betei na frontei­ra sul. Era razoavelmente acessível aos habitantes de Jezreel e a todos os demais pontos do norte. Contudo, era identificada por todos como um local de intensa idolatria, que excedia até mesmo a tolerância de Jeroboão. E preciso lembrar que quando os danitas mataram o povo de Laís e ocu­param seu território, trouxeram consigo Jônatas, neto de Moisés, e o cons­tituíram sacerdote da cidade; também montaram imagens de prata que haviam roubado de Mica (Jz 18.30-31). Assim Dã se estabeleceu como cen­tro de adoração pagã. Como Jeroboão poderia esperar que o povo de Isra­el peregrinasse para um local tão comprometimento com a idolatria?

Talvez a resposta se encontre na forma e natureza do culto criado por Jeroboão. Ele criou deuses em forma de bezerros de ouro em seus dois cen­tros religiosos, descrevendo-os como os deuses que haviam libertado Israel do Egito. Também constituiu sacerdotes fora da linhagem levítica e, em Betei pelo menos, designou o décimo quinto dia do oitavo mês para ser um dia especial de festas. Os estudiosos dividem-se a respeito do completo significa­do das inovações de Jeroboão, mas uma coisa está clara — ele estava identifi­cando Betei e Dã com o êxodo.25 Os dois bezerros, fossem ídolos de verdade ou apenas pedestais em que se presumia estar o Yahweh invisível,26 são remi- niscências do bezerro de ouro produzido por Arão quando Moisés estava ausente, no monte Sinai. As palavras de apresentação são praticamente as

24 Ibid., p. 32.25 Ibid., pp. 39-40.26 William F. Albright, Yahweh and the Gods of Canaan (Garden City, N.Y.: Doubleday,

1969), pp. 197-98. John N. Oswalt argumenta de forma bastante persuasiva que os be­zerros eram, na verdade, ídolos; se fossem apenas pedestais para o invisível Yahweh, não teriam despertado tanta indignação contra Aarão, no passado, e contra Jeroboão no presente ("The Golden Calves and the Egyptian Concept of Deity," EQ 45 [1973]: 13-20).

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mesmas em ambas as ocasiões: "Vês aqui teus deuses, ó Israel, que te fizeram subir da terra do Egito!" (Ex 32.4; cf. 1 Rs 12.28). Os dois relatos mostram que a criação desses deuses e seu reconhecimento foram seguidos por festivais. Além disso, Arão funcionou como sacerdote e, na ausência de Moisés, como o mediador da aliança. Agora Jeroboão, além de sua função de rei, instalou-se como o cabeça do culto, comparecendo no altar em Betei para oferecer sacri­fícios. Ou seja, ele via-se como um segundo Arão, que possuía o direito de estabelecer e supervisionar um novo sistema religioso à parte o que acontecia em Jerusalém. Ele arrogava-se a prerrogativa da monarquia davídica, ou seja, o direito do rei com eleito e filho adotivo de Deus, não apenas para servir como líder político de Israel, mas também como o sacerdote mediador.2 Jeroboão percebia a si mesmo como o equivalente à dinastia messiânica em Israel, um sacerdote real segundo a ordem de Melquisedeque.

Essa interpretação da ótica de Jeroboão a respeito de seu papel no reino explica o motivo de sua intrepidez em assumir o sacerdócio, e empossar outros sacerdotes que não fossem da linhagem de Arão. Também isto ex­plica a sua coragem de estabelecer locais de adoração em Betei e Dã; pois se Davi, um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, moveu o tabernáculo e a arca para Jerusalém — um local até o momento sem qual­quer significação ou tradição religiosa para Israel — , por que Jeroboão não poderia arbitrariamente criar o seu próprio culto em Betei e Dã, espe­cialmente pelo fato de a primeira cidade possuir grande tradição?

E notável que Jeroboão tenha conseguido inserir os bezerros de ouro em seu culto, especialmente considerando o destino do bezerro de Arão (aquele ídolo foi consumido até as cinzas e, misturado em água, foi bebi­do pelos apóstatas que o adoraram). O motivo por trás da ação de Jeroboão pode ter sido uma intensa animosidade contra os levitas,28 pois estes to­maram as espadas e feriram os adoradores do bezerro de Arão. Jeroboão desprezou os levitas e escolheu os seus próprios sacerdotes. Em uma ati­tude irônica, construiu os bezerros como símbolo de seu desdém para com o sacerdócio levítico. Não teria o próprio neto de Moisés, Jônatas, se ante­cipado a Jeroboão, ao servir como primeiro sacerdote de um centro religi­oso competitivo em Dã? Além desta história conceder credibilidade à ci­

27 John Gray, I & II Kings (Philadelphia: Westminster, 1970), pp. 315-18.28 Frank M. Cross diz, juntamente com outros estudiosos, que esse ataque de Jeroboão

contra o sacerdócio aarônico não passa de uma interpretação do escritor (ou redator) deuteronomista do livro dos Reis, pois na verdade Jeroboão constituiu sacerdotes da linhagem de Arão para servirem em Betei (Canaanite Myth and Hebrew Epic [Cambridge: Harvard University Press, 1973], pp. 198-200). Esta interpretação só pode ser sustenta­da caso o registro na narrativa bíblica seja completamente desconsiderado.

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dade de Dã, também revela que mesmo na própria família de Moisés ha­via espaço para divergências religiosas. Como poderia Jeroboão ser acu­sado de irreligiosidade por seus bezerros de ouro, se o próprio neto de Moisés havia oficiado sacrifícios em um culto idólatra em Dã?

E preciso admitir que muitos dos argumentos nas linhas anteriores são especulativos. Em uma análise final, não é possível conhecer os motivos ou considerações de Jeroboão. Mas está claro que ele se via como um sa­cerdote e rei de um novo sistema religioso para ele totalmente legítimo. Debate-se ainda como ele ligou tudo isso com o passado, especialmente com o incidente do bezerro de ouro após o êxodo. Mas é unanimemente aceito que as atitudes de Jeroboão foram pecaminosas e, de fato, a própria epítome da apostasia aos olhos de Yahweh.

A insatisfação de Yahweh era tão óbvia que Ele enviou um profeta de Judá para falar contra Jeroboão e seu recente sistema religioso (1 Rs 13). Quando ele chegou a Betei, este homem sem nome na Bíblia profetizou contra o altar ali erigido, pois simbolizava o próprio coração da apostasia. Viria um tempo, disse ele, quando um filho de Davi, chamado Josias, des­truiria em pedaços o altar, e nele seriam oferecidos os corpos dos sacerdo­tes iníquos que ali serviam. O profeta então voltou-se para Jeroboão. Quan­do o pseudo-sacerdote estendeu sua mão para prender o homem de Deus, esta tornou-se ressequida e sem força. Ainda assim a misericórdia de Yahweh restaurou a mão do rei. Era evidente que ele e sua religião cor­rompida estavam debaixo do juízo de Deus.

No curso da história, Abias, o herdeiro do trono de Israel, adoeceu terri­velmente. Apesar dos apelos de sua mãe ao profeta Aías, o jovem príncipe falecera (1 Rs 14.17). A razão, Aías apontou, estava clara. Jeroboão, embora abençoado com a maior parte do reino de Davi, não possuía os padrões davídicos. Violou os mandamentos e a aliança com Yahweh, seguindo ou­tros deuses e rejeitando o Deus de Israel. Portanto, Yahweh findaria a dinas­tia de Jeroboão rapidamente, e transportaria Israel para além do rio Eufrates, em conseqüência de seus pecados em seguir Jeroboão (1 Rs 14.6-16).

Os detalhes acerca dos últimos anos do reinado de Jeroboão estão in­completos. Ele transferiu a capital para Tirza (Tel el-Fâr'ah), cerca de doze quilômetros a nordeste de Siquém, pois foi para lá que sua esposa retornou depois de encontrar-se com o profeta Aías. Não se sabe ao certo o motivo da transferência, embora a invasão de Sisaque contra Judá e Israel em 926 / 925 possa ter resultado na destruição de Siquém ou, pelo menos, precipi­tado a transferência de Jeroboão para um local mais seguro.29 Sabe-se que,

29 J. Alberto Soggin, A History of Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 108.

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por outro lado, Jeroboão esteve em constante guerra com Roboão e, após a morte do rei de Judá, continuou o conflito com o herdeiro do trono, Abias, o filho de Roboão que reinou apenas por três anos. Infelizmente, não há informações concretas a respeito desses conflitos. A teoria mais plausível é que os reis de Davi tentaram reconquistar os territórios de Israel, e assim restaurar todo o reino de Davi.

A pressão das nações ao redor

Através das fontes extrabíblicas, pode-se obter certas informações que irradiam uma luz indireta sobre Israel e Judá nos anos de 931 a 910 a.C. No Egito, Osorkon I reinou de 924 a 889, ultrapassando os reinados de Roboão e Jeroboão.30 Embora não haja qualquer registro de seu envolvimento na Palestina até o ano de 897, ele de fato tomou medidas para reafirmar as relações egípcias com a cidade de Biblos.31 E certo que tais medidas não apenas garantiam um relacionamento comercial benéfico para as duas na­ções, mas também serviam como uma base egípcia firmada indiretamente no norte de Israel. Além disso, o acordo garantiria ao Egito um aliado que serviria de tampão contra a expansão militar dos arameus.

Já se comentou anteriormente a respeito do início de uma dinastia de arameus em Damasco, criada por Hezion (Rezim) durante o reinado de Davi, que provavelmente retrocede a 990 a.C. Embora a cronologia seja um pouco incerta, parece que Heziom viveu pelo menos até a morte de Salomão, e depois disso foi substituído por seu filho Tabrimmon, neto de Ben-Hadade (900-841).32 Essa sucessão é registrada pelo historiador bíbli­

30 Edwards, "Egypt," em CAH 3.1, pp. 549-52.31 H. Jacob Katzenstein, The History of Tyre (Jerusalem: Schockem Institute for Jewish

Research, 1973), p. 121.32 Essas datas são aproximações inferidas dos dados citados por Merrill F. Unger, Israel

and the Aramaeans of Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980 reedição), pp. 56-61. A data mais antiga para Ben-Hadade (que precisa de um reinado extremamente longo de quase sessenta anos) está baseada sobre o fato de o rei Baasa de Israel, em cerca de seu décimo terceiro ano (896 a.C.), ter sofrido uma forte derrota nas mãos de Ben-Hadade (1 Reis 15.20). Para evitar esse problema de um reinado tão longo, os estudiosos sugerem que um Ben-Hadade I e um Ben-Hadade II tenham vindo antes de Hazael. Ver WilliamH. Shea, "The Kings of the Melqart Stela," Maarav 1.2 (1978-1979): 159-60. Conforme o próprio Shea indicou, estabelecer sucessivos Ben-Hadades seria ir de encontro ao pa­drão de dinastia comum na Síria e na Palestina. Frank M. Cross complica ainda mais o assunto com três sucessivos Ben-Hadades entre 885 e 841 ("The Stele Dedicated to Melcarth by Ben-Hadade of Damascus," BASOR 205 [1972]: 42).

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co (1 Rs 15.18) e aparentemente confirmada na conhecida esteia de Ben- Hadade, onde está escrito: "Bir-hadad, filho de Tab-Rammân, filho de Hadyân, rei de A ram ."33

Nada é registrado sobre os feitos de Heziom e suas campanhas milita­res, exceto que ele rompeu com Hadadezer, rei de Zobá, e restabeleceu-se em Damasco (1 Rs 11.23,24). De um centro estratégico, passou a atormen­tar Salomão e, mais tarde, o rei Jeroboão e Roboão. Pôde fazer isto com relativa impunidade, porque as guerras entre Israel e Judá estavam muito intensas nesse período. Outros fatores que indicam a ascensão de Damas­co foram a relativa fraqueza dos estados arameus e a constante impotên­cia da Assíria, pelo menos até o reinado de Adade-Nirari II (911-891). Além disso, os Povos do Mar da baixa Mesopotâmia não se constituíam uma ameaça nessa época.

Abias de Judá

A situação de Judá após a morte de Roboão deteriorou-se sensivelmen­te, pois seu filho e sucessor Abias (913-911) não andou nos caminhos de Davi. Mesmo assim, diz o narrador: "M as por amor de Davi o Senhor lhe deu uma lâmpada em Jerusalém, levantando a seu filho depois dele" (1 Rs 15.4) Mais uma vez, a bênção incondicional contida na aliança de Yahweh, baseada na promessa a Davi, garantia estabilidade ao reino, não obstante o rei que se assentava no trono.

Evidências da contínua misericórdia de Yahweh podem ser vistas nos bons resultados obtidos por Abias contra todos os esforços de Jeroboão para derrotá-lo. O cronista particularmente enfatiza este fato.34 Depois de

33 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 56. Essa interpretação da esteia de Ben-Hadade (conhecida de outra forma por esteia de Melqart) de forma alguma é aceita universal­mente. Quanto a uma análise alternativa, ver J. Andrew Dearman e J. Maxwell Miller, "The Melqart Stele and the Ben Hadads of Damascus: Two Studies," PEQ 115 (1983): 95- 101. Dearman é de opinião que não houve nenhum rei com o nome de Ben-Hadade entre 865 e 806 (portanto, ele nega a historicidade de 1 Reis 20 e 21-1-38), enquanto Miller identifica o Ben-Hadade da esteia como o filho de Hazael (depois de 806), por­tanto, também deixando de acreditar na historicidade dos relatos acerca de Acabe. Ver também Shea, "The Kings of the Melqart Stela," p. 170; B. Oded, "Neighbors on the East," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 267.

34 Por várias razões — a falta de um paralelo em 1 Reis, o número enorme de soldados, a idéia de que o cronista está teologizando em vez de descrevendo — muitos estudiosos não aceitam a historicidade do registro da batalha de Zemaraim. Ver os argumentos de Ralph W. Klein, " Abijah's Campaign Against the North (2 Chron. 13) — What Were the

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subir ao trono, Abias viu-se ameaçado por Jeroboão no monte Zemaraim (Ras et-Tahuneh), distante cerca de dois ou três quilômetros de Betei.55 Abias decidiu partir para guerrear, e marchou em direção norte com seus homens visando a reconquistar os israelitas para o reino de Davi (2 Cr 13.4-12). Lembrou aos israelitas que Yahweh havia feito uma aliança ape­nas com Davi, e a nação liderada por Jeroboão era ilegítima. Além disso, Abias afirmou que Jeroboão aproveitou-se da instabilidade de Roboão para criar uma monarquia rival. Embora alguém contestasse a objetividade de Abias, seu argumento de que o culto idólatra promovido por Jeroboão era contrário à vontade de Deus em todos os aspectos jamais poderia ser ne­gado. Uma vez que a fé verdadeira estava apenas em Judá e na observân­cia das exigências de Yahweh, Abias afirmou que só restava a Israel voltar para Davi imediatamente.

Jeroboão não quis ouvir aquelas palavras e cercou os exércitos de Abias por todos os lados. Para validar a posição teológica de Abias, o próprio Yahweh tomou a frente do conflito e libertou seu povo da calamidade. Abias prosseguiu e capturou as cidades israelitas de Betei, Jesaná (el-Burj?) e Efrom (et-Taiyibeh), prejudicando assim Jeroboão no aspecto religioso e político. Israel jamais conseguiu se recuperar desse golpe. Abias, entretanto, cresceu em poder, conforme atesta o tamanho de seu harém (2 Cr 13.21).

Asa de Judá

Considerações cronológicas

Jeroboão viveu dois ou três anos a mais que Abias, de forma que foi contemporâneo de Asa por um breve tempo. Asa foi o próximo rei da linhagem de Davi, e o autor do primeiro livro dos Reis o identifica como filho de Maaca (1 Reis 15.10), mas visto que decerto é filho de Abias, o texto na verdade refere-se ao neto de Maaca. O motivo para a indicação genealógica é que Maaca havia autorizado a construção de um poste ídolo de Aserá em Jerusalém, mas o rei Asa mandou derrubá-lo, além de várias

Chronicler's Sources?" ZAW 95 (1983): 210-17. Negar a historicidade de um aconteci­mento simplesmente porque tal evento não é descrito nos outros registros sinóticos é deixar a questão em suspense e desprezar o fato de que o cronista tinha acesso a outras fontes. John Bright chega ã conclusão de que "o incidente é, sem dúvida, histórico" (A History of Israel, 3a edição [Philadelphia: Westminster, 1981], p. 234).

35 Quanto a uma reconstrução da estratégia, ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 121.

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outras reformas promovidas. Pode-se concluir que Asa era muito novo quando começou a reinar, porque seu pai havia reinado apenas três anos e era também muito jovem quando morreu. Asa governou por quarenta anos (911-870), um governo longo, mas cujo fim é considerado prematuro, pois o historiador tem o cuidado de informar que Asa ficou enfermo dos pés nos últimos três anos de sua vida (1 Rs 15.23). Não é possível saber se o motivo de sua morte está associado à doença, mas certamente este mal o impediu de exercer as funções reais. Então seu filho Josafá serviu como co-regente nos últimos três anos de reinado.36

A estrutura cronológica do reinado de Asa é um pouco complexa e jus­tifica uma discussão detalhada. O cronista inicia declarando que, com a sucessão de Asa, estabeleceu-se um período de dez anos de paz (911 — 901). Exatamente neste período (ou pouco depois dele) Asa deu início às grandes reformas religiosas que culminaram na deposição de sua própria avó e na destruição do poste ídolo de Aserá. Caso a teoria de que ele assu­miu o trono ainda menor de idade esteja correta, as reformas não começa­ram imediatamente. Pode ser que dez anos tenham se passado para Asa alcançar a maioridade e a independência tornar-se possível.

Durante esse tempo Asa também melhorou as posições de defesa do rei­no de Judá reformando os fortes construídos por Roboão, e talvez tenha construído outros. Por todos esses anos, o cronista enfatiza, Judá esteve em paz (2 Cr 14.6), e as reformas chegaram ao seu ápice em uma festa em Jeru­salém, onde não apenas os habitantes de Judá foram convidados, mas todos os fiéis de Efraim, Manassés e Simeão (2 Cr 15.8-15). Este grande aconteci­mento ocorreu no décimo quinto ano do reinado de Asa (c. 896).

Por fim, Asa envolveu-se em uma guerra no trigésimo quinto ano de seu reinado (2 Cr 15.19); esta informação cria um problema para a crono­logia. Enquanto o trigésimo quinto ano de Asa corresponderia ao ano 876, o versículo seguinte (2 Cr 16.1) indica que Asa foi à guerra em seu trigési­mo sexto ano, presumivelmente 875, contra Baasa, de Israel, que morrera em 886 — onze anos antes! A guerra mencionada no ano trinta e cinco do rei Asa foi provavelmente contra Zerá, o etíope, uma batalha geralmente datada pouco depois de 900.37

36 Thiele, Mysterious Numbers, p. 70. Quanto à co-regência ser uma característica da mo­narquia em Israel e Judá, ver Thiele, "Coregencies and Overlapping Reigns Among the Hebrew Kings," JBL 93 (1974): 174-200.

37 Edwards, "Egypt," em CAH 3.1, p. 52, fixa a guerra em 897, encaixando-se com nossa data da grande assembléia (896), para a qual foram trazidos os despojos (2 Cr 15.11) presumivelmente dos inimigos etíopes. Ver também Yeivin, "Divided Kingdom," em

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Várias resoluções têm sido propostas para este dilema. Alguns estudiosos simplesmente corrigem "trigésimo quinto" e "trigésimo sexto" para "décimo quinto" e "décimo sexto", mas não há evidência textual para isto.38 Outros drasticamente alteram os anos de Baasa, tornando-o contemporâneo de Asa em seus últimos anos.39 Esse método de ajuste cronológico não apenas retira a autoridade do testemunho bíblico, mas também força um ajuste na cronolo­gia de praticamente todos os outros reis de Judá e Israel. Além disso, atrapa­lha completamente a data da campanha militar contra Zerá.

A melhor solução parece ser a que foi proposta por Edwin Thiele. Para ele o "trigésimo quinto" e o "trigésimo sexto" não se referem aos anos do reinado de Asa, mas aos anos que correspondem à diferença entre a data em questão e a divisão do reino.40 Visto que a divisão do reino normalmente é datada em 931, o trigésimo quinto ano seria 897 e o trigésimo sexto, 896. Embora esta seja uma maneira incomum de mencionar os acontecimentos do governo de um rei, não é inerentemente impossível ou improvável. Além disso, se os anos de Roboão (17) e Abias (3) forem acrescidos dos 15 anos de Asa que precederam a sua primeira campanha militar em guerra (cf. 2 Cr 15.10 e 19), somará um total de 35, exatamente conforme sugere o narrador.

Se o conflito entre Asa e Baasa aconteceu no trigésimo sexto ano (2 Cr 16.1), a guerra no trigésimo quinto (15.19) deve ter sido aquela em que Asa encontrou-se com Zerá em Mareshah, uma vez que não há registro de outro acontecimento. A data dessa batalha teria sido no décimo quinto ano do reinado de Asa — 897. Nenhuma fonte extrabíblica trata a respeito de Zerá; a descrição do Antigo Testamento parece indicar que ele era da Núbia, ou um mercenário da Arábia a serviço de Osorkon I.41

World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 136; Kenneth A. Kitchen, The Third Intermediate Period in Egypt (1100-650 B.C.)(Warminster: Arts and Philips, 1973), p. 309.

38 Esta solução foi citada, mas não considerada válida por Edward L. Curtis, A Criticai and Exegetical Commentary on the Books of Chronicles (Edinburgh: T. & T. Clark, 1910), p. 387. Raymond B. Dillard afirma que o cronista está trabalhando com uma tradição textual diferente e que o leitor moderno deve conviver com a possibilidade de que aquela tradição foi um erro, ou pelo menos uma variante com Samuel/Reis ("The Reign of Asa [2 Chronicles 14-16]: An Example of the Chronicler's Theological Method," JETS 23 [1980]: 217).

39 William F. Albright, The Biblical Period from Abraham to Ezra (New York: Harper, 1963), p. 116-17.

40 Thiele, Mysterious Numbers, p. 60.41 T.C. Mitchell, "Israel and Judah Until the Revolt of Jehu (931-841 B.C.)," em CAH 3.1,

pp. 462-63; Kitchen, Third Intermediate Period, p. 309.

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As guerras de Asa

Em sua primeira aventura militar, Asa reconheceu a necessidade do favor divino, de forma que invocou o nome de Yahweh. O cronista diz que Yahweh não apenas o ajudou, mas também "feriu os etíopes diante de Asa e diante de Judá: e eles fugiram" (2 Cr 14.12), uma frase lembrando a anti­ga tradição da guerra santa. Zerá sofreu grandes perdas de Mareshah (Tel Sandahannah),42 cidade próxima a Laquis, caminho direto para Gerar, mais de 32 quilômetros a sudoeste. Aparentemente, Gerar estava nas mãos dos egípcios naqueles dias, pois 2 Crônicas 14.12-15 descreve a destruição e pilhagem do território inimigo.

A campanha de Asa contra Baasa no ano seguinte é de maior interesse e importância não apenas porque envolve a casa dividida de Israel, mas porque este conflito também inclui os arameus. O autor de Reis informa que houve guerra entre Asa e Baasa por todos os seus dias (1 Rs 15.16); sem dúvida ele quis dizer que havia um espírito de hostilidade entre am­bos, que eventualmente se manifestava em agressões intensas.

A provocação partiu de Baasa (909-886), que em seu décimo terceiro ano de reinado construiu uma fortaleza em Ramá (er-Râm), localizada pró­ximo a fronteira entre Israel e Judá. O propósito da estrutura era evitar que os israelitas fossem a Judá. Esta era exatamente a intenção de Jeroboão quando escolheu a cidade de Betei como centro religioso do reino do nor­te. Durante o reinado de Baasa, grande parte dos israelitas pêrcebeu a fa­lência moral e espiritual do reino de Israel, e por isso optou por deixar o reino e viajar para o sul, às vezes com intenção de participar das festivida­des em Judá, ou de estabelecer-se ali permanentemente.

Baasa pretendia impedir esse trânsito. Asa, por alguma razão, viu o movimento como uma ameaça a sua segurança, de forma que imediata­mente tomou providências para garantir o apoio de Ben-Hadade, rei de Damasco. Este já possuía um acordo com Israel, mas o rei de Judá o fez lembrar do compromisso e aliança existentes entre os seus antepassados (2 Cr 16.3). E para instigá-lo, Asa lhe prometeu ouro, prata do templo e do tesouro real.

Estabelecido o acordo, Ben-Hadade marchou contra o norte de Israel e, em rápida sucessão, tomou as cidades de Ijom (Tel ed-Dibbin), Dã, Abel- Bete-Maaca, e uma grande extensão de Naftali, incluindo a região de Quinerete, ao oeste do mar de Quinerete ou Galiléia.43 Baasa então recuou

42 Aharoni, Land of the Bible, p. 439; aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas.43 Quanto a rota, ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 124.

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e abandonou seu projeto em Ramá, voltando para sua capital em Tirza, talvez na expectativa de um ataque de Ben-Hadade até mesmo contra sua capital. Asa desmanchou a obra em Ramá e, usando as próprias pedras da fortaleza, construiu uma muralha de defesa para seu reino em Geba (Jeba') e Mispa (Tel en-Nabesh), a primeira ao leste e a segunda a oeste de Ramá.

O fato de Ben-Hadade haver feito aliança com Israel e Judá é um indicativo do crescimento e influência de Damasco sobre os pequenos es­tados da Síria e Palestina. É também um tributo à diplomacia de Ben- Hadade, que sabia o momento de cancelar um tratado e investir em outro para a sua própria vantagem. Ele não apenas foi muito bem pago com ouro e prata do templo de Jerusalém, como também tornou-se senhor de uma vasta extensão de terras ao norte de Israel, obtendo acesso direto à costa do Mediterrâneo. Damasco já desfrutava dos benefícios de sua loca­lização, pois estava em contato com a estrada real e outras principais rotas para o sul e leste do Anti-Líbano. Agora, seu controle estendia-se a todas as principais estradas que vinham do Egito, através das planícies costei­ras que conduziam à Mesopotâmia.44

O novo surgimento da Assíria

A ascensão de Damasco foi possível em parte pela ausência da interfe­rência externa, especialmente das grandes potências como a Assíria.45 Con­tudo, a liberdade que o mundo mediterrâneo oriental desfrutou desde os dias de Tiglate-pileser I, mais de um século antes, chegava ao fim. Os ob­servadores da época já podiam discernir, por volta de 900, as agitações que se passavam no gigante Assíria. Embora ainda restassem cinqüenta anos, os pequenos reinos do oeste já podiam escutar a sua vinda.

Em sua quarta campanha militar, Adade-Nirari II (911— 891)46 fez sua primeira incursão para o oeste, um assalto sobre a região de Hanigalbat, no

44 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 62.45 Inscrições paralelas assírias e aramaicas foram recentemente encontradas em uma está­

tua da metade do século nove. Descobertas em Tel Fakheriyeh, na região de Gozã, indi­cam que os assírios estavam sendo política e culturalmente influenciados pelos vizi­nhos arameus. Pode ser que a ascendência dos arameus tenha sido o fator fundamental para o processo de expansão para o oeste, iniciado durante o reinado de Assur-nasirpal II. Quanto ao significado da estátua, ver A.R. Millard, "Assyrian and Aramaeans," Iraq45 (1983): 106; Ran Zadok, "Remarks on the Inscription of Hdys'y from Tel Fakhariya," Tel Aviv 9 (1982): 117-29.

46 Albert Kirk Grayson, "Assyria: Ashur-dan II to Ashur-Nirari V (934-745 B.C.)," em CAH 3.1, p. 250.

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Tabela 7 Os reis neo-assírios

Adade-Nirari II 911 — 891Tukulti-Ninurta II 890 — 884Assur-nasirpal II 883 — 859Salmaneser III 858 — 824Shamshi-Adad V 823 — 811Adade-Nirari III 810 — 783Salmanaser IV 782 — 773Assur-dan III 772 — 755Assur-nirari V 754 — 745Tiglate-pileser IÍI 745 — 727Salmaneser V 727 — 722Sargão II 722 — 705Senaqueribe 705 — 681Esaradom 681 — 669Assurbanipal 668 — 627Assur-etil-ilani 627 — 623Sin-sum-lisir 623Sin-sar-iskun 623 — 612Assur-uballit II 612 — 609

Eufrates superior. Ali isolou e derrotou as tribos dos arameus e as tribos Suhu.47 Em uma série de sucessivos ataques (901-896), finalmente conquis­tou todo o Hanigalbat, incorporando-o na esfera de influência dos assírios. Outras tribos araméias da região superior do Habor caíram por volta de 900. Portanto, quando Ben-Hadade começou a reinar (ca. 900), toda a Meso­potâmia superior estava firmemente sob o domínio dos assírios. Ben-Hadade, como Asa, Baasa e outros governantes, estava ciente dos grandes aconteci­mentos ao norte, e compreendeu claramente o que estava para suceder em seu pequeno reinado. Não é possível discordar acerca da assinatura de tra­tados internacionais de mútuo auxílio, feitos entre os vários estados que compunham a Síria e a Palestina, tratados como os que são vistos no Antigo Testamento, entre Asa e Ben-Hadade, e entre Baasa e Ben-Hadade.

O sucessor de Adade-Nirari, Tukulti-Ninurta II (890-884), continuou a política de seu antecessor, com a clara intenção de criar um império assírio. É muito importante para o estudante do Antigo Testamento saber a res­peito das terras conquistadas no oeste, a caminho do Mushku, na Anatólia central, uma campanha ocorrida em 885.48 Sua carreira foi bruscamente interrompida, e a tarefa de construção de um império assírio passou a ser

47 Ver Albert Kirk Grayson, Assyrian Royal Inscriptions (Wiesbaden: Otto Harrassowitz,1976), vol. 2, pp. 86-87, #2,11, 30-41.

48 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, p. 252; Assyrian Royal Inscriptions,vol. 2, p. 104, #1, 11.33-45.

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de Assur-nasirpal II (883-859).49 Este iniciou um programa anual de cam­panhas militares para o oeste muito conhecido por sua crueldade. Por vol­ta de 875, conseguiu subjugar todos os estados arameus do norte, alguns tão distantes quanto Bit-Adini. Mesmo assim, Israel, Judá e Damasco obti­veram uma trégua de vinte e cinco anos ou mais até que, por fim, também foram tragados pelo redemoinho que ocasionou uma reviravolta interna­cional provocada pelos assírios, dirigindo-se para o oeste, e depois para o sul, através da terrível máquina de guerra chamada Salmaneser III.

Nadabe de Israel

Logo depois que Asa passou a reinar em Judá, Jeroboão morreu e seu filho Nadabe assentou-se em seu trono em Israel (1 Rs 14.20). O reinado durou dois anos (910-909), e caracterizou-se pela repetição dos atos peca­minosos de seu pai. Então a palavra profética do profeta Aías cumpriu-se: Nadade foi cortado violentam ente, term inando assim a dinastia de Jeroboão sobre a casa de Israel, a qual durou apenas duas gerações (1 Rs14.14). Para assegurar-se de que a casa de Jeroboão nunca mais se assen­taria no trono de Israel, Baasa, o assassino de Nadabe, exterminou toda a família real. Tudo isso aconteceu, diz o historiador teólogo, "por causa dos pecados de Jeroboão, o qual pecou, e fez pecar a Israel, por causa da provocação com que provocara ao Senhor Deus de Israel" (1 Rs 15.30). Caracterizações semelhantes de vários outros reis de Israel se repetirão com esse mesmo refrão.50

A dinastia de Baasa de Israel

O reino de Baasa

O agente da ira santa de Yahweh foi Baasa ben Aías, de Issacar, um oficial israelita. Parece que Nadabe estava cercando Gibeton (Tel el-Melât), uma fortaleza dos filisteus a oeste de Gezer, e esperava estabelecer uma

49 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 253-59; Yutaka Ikeda, "Assyrian Kings and the Mediterranean Sea: The Twelfth to Ninth Centuries B.C.," Abr-Nahrain 23 (1984-1985): 23-26.

50 Esse é apenas um dentre os vários temas encontrados em 1 e 2 Reis que reflete a conde­nação profética na história de Israel por causa da violação da aliança. Ver Ziony Zevit, "Deuteronomistic Historiography in 1 Kings 1 2 - 2 Kings 17 and the Reinvestiture of the Israelian Cult," JSOT 32 (1985): 57-73.

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abertura ou futuro ponto de invasão na região noroeste de Judá. Também seria uma oportunidade de livrar-se do problema filisteu, que estava mui­to próximo da cidade de Gezer, local destinado ao armazenamento de ví­veres em Israel. Enquanto acontecia o cerco, Baasa matou o rei de Israel e voltou para Tirza, reivindicando para si o trono do norte.

Baasa, fundador da segunda dinastia de Israel, reinou por vinte e qua­tro anos (909-886), contemporâneo de Asa, rei de Judá. A dinastia pode ter mudado, mas a natureza do governo não se alterou, pois Baasa, como Nadabe, andou nos caminhos de Jeroboão. Muito tempo antes, um profe­ta chamado Jeú ben-Hanani, pronunciou sobre Baasa a mesma sentença que Aías pronunciara sobre Jeroboão: a casa do rei seria completamente aniquilada, ainda que o Senhor por sua misericórdia o tivesse permitido subir ao poder (1 Rs 16.1-4). A oferta de Yahweh para um reinado perpé­tuo não era uma ilusão, mas uma realidade que se baseava em uma condi­cional. Se Jeroboão, ou Baasa, ou qualquer outro a quem Deus permitisse chegar ao poder, fosse obediente à aliança que firmava a vontade de Deus em qualquer situação, teria sua descendência estabelecida para sempre em Israel. Mas se, por outro lado, fosse desleal e se afastasse — e todos os reis de Israel fizeram isso — sem dúvida o juízo de Deus viria sobre sua vida. A monarquia messiânica estava reservada apenas a Davi e seus des­cendentes de Judá, mas isso não quer dizer que não haveria um governo para sempre em Israel.

À parte as lutas com Asa, que ocuparam a última parte de seu reinado (896-886), pouco se sabe acerca de Baasa. Ele havia feito um tratado com Ben-Hadade, de Damasco, em que este quebraria seu acordo com Asa, rei de Judá. Em troca, Baasa lhe entregaria uma considerável faixa de terra no norte de Israel. Parece que Baasa morreu de maneira natural, uma experi­ência rara entre os reis de Israel.

O reino de Elá

Como Jeroboão, Baasa fundou uma dinastia que durou apenas duas gerações — ele e seu filho Elá. E, conforme Nadabe, Elá também reinou apenas dois anos (886-885). Surpreendentemente, a semelhança continua, pois Elá, como Nadabe, também foi assassinado por um oficial confiden­te. Quando em uma ocasião encontrava-se embriagado com seus oficiais na casa de Arsa, seu mordomo chefe, foi atacado por Zimri, comandante da divisão de carruagens, e lá mesmo morreu (1 Rs 16.8-14). Zimri, em um ato de justiça poética, passou a exterminar toda a família de Baasa, da mesma forma que este havia tratado a parentela de Jeroboão. Mas Zimri

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era um intruso, sem qualquer aprovação divina para o cargo de rei. Por­tanto, não originou nenhuma dinastia e, de fato, sobreviveu apenas por sete dias. A festa na casa de Arsa aconteceu enquanto os exércitos de Isra­el, sob o comando de Omri, mais uma vez cercavam a cidade de Gibetom. Quando receberam a notícia nos campos de batalha, as tropas ali presen­tes aclamaram o seu general, Omri, como rei, colocando-o em evidente oposição a Zimri (1 Rs 16.16). Omri e seus seguidores partiram em direção a Tirza. Quando Zimri percebeu que não tinha apoio e estava prestes a ser capturado por Omri, incendiou seu próprio palácio e morreu nas chamas.51 O caminho para o reino agora parecia abrir-se diante de Omri.

Omri de Israel

Mas a ascensão não se efetivaria tão facilmente, pois Tibni ben-Ginate havia alcançado alguns seguidores, precipitando outra grande crise na li­derança nacional de Israel. Não se sabe quem era ele ou de onde veio, mas seus esforços para ser uma alternativa melhor que Omri fracassaram rapi­damente, pois fora assassinado e Omri permaneceu sem qualquer obstá­culo ao trono (1 Rs 16.21-22). Durante os seis primeiros anos dos doze que reinou (885-874), Omri manteve a capital do reino ainda em Tirza; porém, em torno de 880, adquiriu um imponente monte de um homem chamado Semer por dois talentos de prata, e deu um outro nome ao local: Samaria. Ali ele construiu grandes fortificações ao redor do monte, e dentro de vá­rios palácios e prédios governamentais.

Este sítio vinha sendo habitado e desabitado durante muitos anos, des­de tempos bem remotos. Porém, somente depois que Omri transformou-o na capital de Israel e o centro governamental da nação, Samaria alcançou notoriedade.52 E surpreendente que tal prestígio nunca tenha se desen­volvido antes, já que o local era extremamente estratégico. Localizada no topo de uma colina, tem-se uma visão nítida do vale abaixo ao redor de toda a elevação. Assim, o local era difícil de atacar e estratégico para a defesa. Samaria permaneceu como capital de Israel, até que caiu sob o poder dos assírios em 722. O local depois tornou-se um tipo de assenta-

31 Para evidências arqueológicas do incêndio e da reconstrução preliminar de Omri em Tirzá, ver D.N. Pienaar, "The Role of Fortified Cities in the Northern Kingdom During the Reign of the Omride Dynasty," JNSL 9 (1981): 151-52.

52 G. Ernest Wright, "Samaria," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, pp. 248-57.

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mento sob o domínio dos assírios e dos persas. Herodes, o Grande, a re­construiu e deu-lhe o nome de Sebaste, em homenagem a Augusto César, seu patrono (Sebastos é a palavra grega para "Augustus").

A mudança da capital, de Tirzá para Samaria, cerca de 19 quilômetros a oeste, não foi bem recebida por todos em Israel. Anos depois, uma comu­nidade rebelde fez de Tirza seu quartel general, e até a metade do século oito continuou a competir com Samaria. Não está claro o motivo por que a mudança foi realizada, já que o rei estava ciente da falta de apoio que isso lhe causaria. Talvez ele entendesse sua dinastia como a representante de Deus que construiria uma nova realidade, bem diferente de Jeroboão e seus sucessores. E um claro sinal disso seria a rejeição da capital escolhida por Jeroboão, em favor de uma cidade não contaminada pelo passado.53

Embora haja pouca informação bíblica a este respeito, Omri foi de fato um dos mais influentes reis nos primórdios de Israel. Ele era tão conceitu­ado pelas grandes potências do mundo que seu nome tornou-se um sinô­nimo para seu reino. Por exemplo, nos textos assírios escritos mais de cem anos depois de sua morte, Israel é chamado de Bit Humri ("casa de Om ri").54 Os reis israelitas posteriores eram às vezes chamados de filhos de Omri, mesmo sendo de dinastias diferentes.

A razão do prestígio de Omri não é clara para os estudiosos, embora o relativamente próspero e poderoso reino de seu filho Acabe sugira que Omri tenha lançado um firme fundamento. Sem dúvida ele seguiu uma política fiscal severa, e por meio da diplomacia conseguiu antecipar-se aos ataques inimigos. Ao mesmo tempo, construiu para seu reino uma penetração comercial e política em outras nações que muito lhe favorece­ram. Um importante exemplo foi seu relacionamento com Etbaal, rei de Tiro e Sidom (887-856). Como resultado, houve o casamento de seu filho Acabe com a princesa de Tiro, a conhecida Jezabel.55 Este casamento mos- trou-se desastroso para a vida espiritual de Israel (e Judá). Em outros as­pectos, a relação de Omri e Etbaal foi obviamente vantajosa para ambas as partes. Tiro sem dúvida sentia-se ameaçada pelo crescimento de Damasco ao leste, e recebeu com alegria o novo aliado.56 Israel, desde os tempos de

53 Para outras sugestões, ver Herbert Donner, "The Separate States of Israel and Judah," em Israelite and Judaean History, editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1977), pp. 402-3.

54 Mitchell, "Israel and Judah," em CAH 3.1, p. 467.55 Katzenstein, History of Tyre, p. 144.56 B. Oded, "Neighbors on the West," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte

1, p. 234.

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Davi possuía uma ligação com Tiro, o que significava uma abertura maior para o mundo comercial. Tal ligação havia sido aparentemente quebrada ou tornou-se sensivelmente enfraquecida nos tempos pós-salomônicos de Israel, de modo que Omri, ávido por restaurar os benefícios de um comér­cio crescente em seu reino, firmou a aliança com Tiro com muita satisfação. Ao mesmo tempo, as relações mais próximas entre os fenícios e israelitas devem ter sido vistas com suspeita por Damasco. Assim, não causa surpre­sa que Ben-Hadade logo entrasse em guerra contra o reino de Israel.57

Josafá de Judá

Co-regência com Asa

Antes de se considerar o conflito entre Acabe e Ben-Hadade, é necessá­rio rever a transferência do poder de Asa, rei de Judá, para seu filho Josafá. A melhor reconstrução cronológica exigirá a data de 870 para a morte de Asa e 873 para a ascensão de seu filho Josafá. Esse intervalo de tempo só pode ser preenchido por uma co-regência de três anos, fato sugerido pela doença de Asa, a qual afetou os seus pés e o debilitou sensivelmente, quan­do reinava em seu trigésimo nono ano (2 Cr 16.12). Isto pode ter ocorrido em 873, o ano em que Josafá começou a reinar junto a seu pai. A co-regência era freqüentemente usada por outros reis, tanto em Judá quanto em Israel.58

A avaliação do reinado de Asa nas fontes históricas varia um pouco. Ambos os relatos concordam que ele foi essencialmente bom e andou nos caminhos de Davi. Removeu a idolatria, com exceção dos lugares altos, e buscou restaurar a pura adoração a Yahweh. As reformas foram realiza­das sob a orientação do profeta Azarias (2 Cr 15.1-8). O profeta assegurou que Yahweh estaria com Judá da mesma forma que esteve com os ances­trais nos dias dos juizes, porém o favor divino era condicionado à obedi­ência e à busca de Deus. Ao terminar as reformas, Asa convocou uma reu­nião em Jerusalém para oferecer um grande sacrifício a Yahweh e reafir­mar que o povo estava aliançado com ele (2 Cr 15.9-15).

Por outro lado, Asa fez um acordo com Ben-Hadade, solicitando apoio contra o rei Baasa de Israel, uma atitude severamente criticada pelo profe­ta Hanani (2 Cr 16.1-9). Ao invés de confiar em Yahweh, para alcançar o livramento, Asa voltou-se para os recursos humanos e chegou mesmo a esvaziar os tesouros sagrados a fim de comprar uma resposta para seu

57 Quanto às razões das hostilidades, ver Unger, Israel and the Aramaeans, p. 66.58 Thiele, Mysterious Numbers, p. 70.

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problema. E para agravar mais o seu erro, Asa mandou prender o homem de Deus que trouxera a palavra de repreensão, e frustrado aplicou medi­das de repressão e opressão sobre seu povo. Mesmo ao contrair a enfermi­dade nos pés, buscou tratamento médico ao invés de Yahweh, pois a do­ença lhe foi permitida para que voltasse novamente para Deus.

Há uma diferença significativa entre a natureza da desobediência de Asa e a de seus contemporâneos israelitas. A desobediência destes envolvia um afas­tamento total de Yahweh e dos padrões da aliança. Asa, a despeito de seus erros, ainda conservava um coração sensível para Deus. Seu pecado não con­sistiu em insubmissão à vontade soberana do Senhor, mas em sua confiança na sabedoria e recursos humanos. Deus, que conhece o coração, pode ler os impulsos e motivações que permanecem ininteligíveis aos homens.

A s realizações de Josafá

Josafá, filho de Asa, subiu ao trono de Judá com trinta e cinco anos de idade, e reinou por vinte e cinco anos (873-848), incluindo os três anos de co-regência com seu pai. Por esse tempo, Acabe reinava em Samaria; foi sucessor de Omri em 874. Portanto, Josafá começou seu governo no quar­to ano de Acabe (1 Rs 22.41). Visto que Acabe reinou por vinte e dois anos (até 853), os dois foram contemporâneos durante a maior parte de seus respectivos reinados.

O veredicto da história é brando com Josafá — ele andou com Yahweh, especialmente em seus primeiros anos, e removeu todos os vestígio de idola­tria, com exceção dos lugares altos (1 Rs 22.43; 2 Cr 17.3-6). Percebe-se que no início não confiava em Acabe, pois seus primeiros projetos incluíram melhorias nas fortificações, bem como o aumento do número de homens das guarnições que faziam fronteira com Israel (2 Cr 17.1,2). Contudo, a suspeita não durou por muito tempo, e por fim Josafá já havia criado um vínculo com Acabe, chegando mesmo a casar-se com uma israelita da família real. A aliança com Acabe ainda redundaria em uma severa repreensão do profeta: "...Devias tu ajudar ao ímpio, e amar aqueles que ao Senhor aborrecem? Por isso virá sobre ti grande ira de diante do Senhor" (2 Cr 19.2).

Em razão das bênçãos divinas e de um rigoroso programa de controle fiscal, Josafá estabeleceu o reino de Judá com sabedoria e prosperidade que não se viam desde os tempos de Salomão. O governo evocou tal estima entre seus vizinhos que alguns deles, especificamente os filisteus e os árabes, sub­meteram-se ao seu domínio voluntariamente e pagaram-lhe o devido tributo (2 Cr 17.10,11). As razões não eram totalmente devidas ao respeito, pois havia sem dúvida algum interesse, uma vez que precisavam do apoio militar de

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Judá contra o visível crescimento da Assíria. Eles voltaram-se naturalmente para Josafá porque este havia acumulado uma reserva de alimentos e verba tão grande que gerou um exército de enormes proporções.

Uma fonte ainda mais poderosa da força de Josafá, uma força vinda do coração e do espírito, foram as atividades missionárias que ele inaugurou em Judá no seu terceiro ano (2 Cr 17.7-9). Muitos líderes de origem sacer­dotal decidiram lançar-se em uma campanha em toda parte, ensinando a Torá à medida que passavam pelas regiões. Mais tarde, com a aliança en­tre Josafá e Acabe, esses evangelistas puderam penetrar também no terri­tório de Israel, mais precisamente nas regiões montanhosas de Efraim, le­vando uma mensagem de reconciliação com Yahweh (2 Cr 19.4).

Josafá também foi o responsável por uma drástica mudança no sistema judiciário da nação de Judá (2 Cr 19.5-11). Estabeleceu juízes em todas as fortalezas e cidades fortificadas e, em Jerusalém, criou uma corte suprema constituída por pessoal religioso e secular. Eles eram incumbidos de dar audiência às causas oriundas dos tribunais inferiores. Sobre todos esses juízes estava Amarías, o sumo sacerdote, e Zebadias, o oficial superior de todo o Judá. Todos esses o rei designou que fossem juízes fiéis, diante de Yahweh, pois perante Ele responderiam por seus atos, e seus padrões san­tos deveriam ser transmitidos ao povo.

O registro histórico é silencioso a respeito dos eventos posteriores ao ano 868, que corresponde ao terceiro ano de Josafá (ver 2 Cr 17.7). O relato reaparece em 853, ano em que Acabe obteve a ajuda de Josafá para readquirir a cidade de Ramote-Gileade, que na ocasião estava sob o domí­nio dos arameus (1 Rs 22.1-4). Esta campanha militar mostrou-se uma gran­de derrota para ambos, e Acabe morreu no conflito, deixando seu filho Acazias em seu lugar. Como conseqüência para Judá, Josafá não apenas teve de ouvir a repreensão do profeta Jeú, de que Josafá amava os que detestavam Yahweh, como também ocasionou em Judá uma série de guer­ras e outras tragédias.

Alguns dos pequenos estados que compunham a Transjordânia, como os moabitas, amonitas e Meum,59 por causa da derrota e morte de Acabe lançaram-se em um ataque contra Josafá (2 Cr 20.1). O rei de Judá soube

59 O mehaammôním ("dos amonitas") no Texto Massorético deve ser lido (junto com a Septuaginta) mehammeúnim ("dos meunitas"). Os meunitas eram uma tribo de arameus que viviam em Edom e em outras regiões ao leste e sul do mar Morto (cf. 1 Cr 4.41; 2 Cr 26.7). Ver Merrill, "2 Chronicles," em Bible Knowledge Commentary, vol. 1, p. 634; H.G.M. Williamson, 1 and 2 Chronicles, New Century Bible Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), pp. 293-94.

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que as forças rivais já haviam cruzado o mar Morto e estavam acampados em Hazazon-Tamar (i.e., En-Gedi).60 Temeroso a esse respeito, Josafá con­vocou a nação para um jejum obrigatório e reuniu o povo em Jerusalém para buscar o Senhor. Na oração, o rei lembrou o Senhor de suas antigas promessas, e lhe disse que os que anteriormente haviam sido poupados por Israel, na época de Moisés, procuravam agora destruir a nação de Judá (2 Cr 20.10-12).

A resposta de Yahweh veio por meio de um levita chamado Jaaziel, que assegurou ao rei e ao povo que Deus estava com eles, e que tudo o que deveriam fazer era permanecer preparados e ver o livramento que Yahweh daria a Judá. No outro dia, os exércitos de Josafá mobilizaram- se e partiram em direção ao deserto de Técoa para lutar contra seus ad­versários. O clamor levantado a Yahweh, a adoração feita em Jerusalém e a direta intervenção de Deus mostram claramente que esta era uma guerra santa, e que a batalha pertencia ao Senhor.61 E justamente por isso, ou seja, por ser a batalha de Yahweh, uma forte confusão veio sobre os adversários de Judá, de modo que passaram a ferir-se a si mesmos, sem que sobrasse um de seus exércitos. Josafá voltou em triunfo para Jerusalém, cantando louvores a Yahweh, além de tomar do inimigo um grande despojo de guerra.

Como já foi visto, o rei Acabe de Israel foi sucedido por seu filho Acazias, que reinou por apenas dois anos (853-852). Alguém poderia pensar que Josafá teria aprendido a lição, e não mais faria acordo com a casa de Aca­be, mas evidentemente isto não aconteceu, pois uma aliança foi feita com Acazias (2 Cr 20.35-36). O acordo foi estritamente comercial, e não militar, mas apesar disso não foi bem visto aos olhos de Yahweh. E, mais uma vez, um profeta foi até Josafá e lhe disse que a grande esquadra de navios, construída em Eziom Geber em uma parceria com o reino do norte, seria completamente destruída; e assim se cumpriu.

A presença de navios de Judá em Eziom Geber, o porto do território de Edom situado no Golfo de Acaba, mostra que o reino do sul ainda continuava a dominar os edomitas. De fato, o autor do livro dos Reis diz que nos últimos

60 A maioria dos estudiosos identifica Hazazom-Tamar como Tamar ('Ain Husb) no Arabá, ao sul do mar Morto. Ver Aharoni, Land of the Bible, p. 140. Deve-se observar a seme­lhança entre Hazazon-Tamar com En-Gedi, visto que a narrativa diz que o inimigo vie­ra "do outro lado do mar" (i.e., o mar Morto). Consulte a rota sugerida por Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 13.

61 Frank M. Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic (Cambridge: Harvard University Press, 1973), pp. 105-6.

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anos de Josafá, os edomitas não tinham rei sobre si, mas estavam sob a admi­nistração de um oficial superior que, sem dúvida, era o representante do rei de Judá no local (1 Rs 22.47). Mas a situação não permaneceu assim por muito tempo. No ano seguinte, Edom, nos anos de reinado de Jorão, o segundo filho de Acabe, já possuía um rei da própria nação (2 Rs 3.9).

A independência de Edom foi alcançada sem lutas, conforme mostram os registros. Quando o rei de Israel conseguiu convencer Josafá, rei de Judá, a guerrear contra a província revoltosa de Moabe, também contou com o apoio do rei de Edom. Pode ser que o desastroso episódio da perda das esquadras em Eziom-Geber tenha sido a causa da libertação de Edom.62 Porém, essa independência não duraria muito tempo, pois na época de Jeorão, filho de Josafá, Edom seria mais uma vez reconquistada para o reino de Judá (2 Rs 8.20).

O aspecto mais significativo da rebelião ocorrida em Moabe é o fato de que Josafá, pela terceira vez, fez uma outra aliança com a dinastia de Aca­be. A sua persistência em envolver-se com os infiéis colegas do norte é inexplicável, uma vez que Josafá não precisava de seu auxílio e nem mes­mo lucrava com tal aliança, obtendo desta apenas muitas tristezas.

Acabe de Israel

A m aldade de A cabe

O ímpeto de Josafá de envolver-se em tantas confusões procedia da influência do reino do norte, começando com Acabe. Depois de suceder Omri em 874, Acabe governou os próximos vinte anos com prosperidade e influência internacional — graças à severa política de seu pai — mas este período também caracterizou-se pela decadência moral e espiritual. Como não bastasse a apostasia entre o povo para com Yahweh, Acabe casou-se com Jezabel, filha do rei Etbaal, de Sidom, a qual inseriú seu deus Baal e a adoração a Aserá em Samaria. Pela primeira vez o culto a Yahweh foi ofi­cialmente substituído pelo paganismo, não havendo sequer permissão para que ambos coexistissem na mesma região.63

62 De fato, John R. Bartlett é da opinião que a destruição dos navios não foi ocasionada por um desastre natural mas por causa de conflitos militares com os edomitas ou israelitas ("The Moabites and Edomites," em Peoples of Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman [Oxford: Clarendon, 1973], p. 236).

63 Quanto à natureza do culto fenício, ver Donald Harden, The Phoenicians (New York: Praeger, 1962), pp. 82-114.

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O m inistério de Elias

Ao invés de riscar seu povo da terra, o Senhor levantou um dos mais fascinantes e misteriosos personagens bíblicos — Elias, o profeta — para confrontar-se com os habitantes de Israel, pregando contra seus pecados e anunciando o julgamento divino. Um dia Elias apareceu subitamente di­ante de Acabe, e profetizou que Israel passaria por alguns anos de seca, em conseqüência do afastamento de Yahweh e da associação com Baal (1 Rs 17.1). Três anos mais tarde (1 Rs 18.1), Elias reapareceu e confrontou-se com os profetas de Baal e Aserá no monte Carmelo, que era o mais famoso centro religioso de adoração a Baal. O resultado do conflito foi um total descrédito dos profetas pagãos e seus deuses. Após todos eles serem mor­tos, Elias anunciou a Acabe o fim próximo da seca. Baal, o suposto deus do trovão, do raio e da fertilidade, teve de retirar-se em total humilhação diante de Yahweh, o único e verdadeiro Deus, que provou ser a única fon­te de vida e bênçãos.64

Mesmo esta demonstração miraculosa do poder de Yahweh não desper­tou a fé em Acabe que, juntamente com Jezabel, forçou Elias a refugiar-se em Horebe (Sinai). Lá o profeta encontrou-se face a face com Yahweh, no mesmo local em que Moisés o havia encontrado seiscentos anos antes. O claro signi­ficado do episódio é que o Deus da aliança ainda estava lá para encontrar-se com seu povo e abençoá-lo, à medida que se dispusessem a obedecê-lo. O Deus do Carmelo era o Deus de Horebe. E era também o soberano Deus de Israel e das nações. A evidência da superioridade de Deus estava no chamado de Elias — ele deveria voltar e ungir Eliseu como o profeta sucessor, Jeú como rei de Israel, e Hazael como rei de Damasco (1 Rs 19.15,16).

A cronologia das histórias de Elias é extremamente complexa e difícil de reconstruir,65 mas a referência a Jeú e a Hazael sugere que eram pesso­as conhecidas do profeta. Jeú, entretanto, não se tornou rei antes de 841— doze anos após a morte de Acabe — e reinou por vinte e oito anos. Parece

64 A respeito desta história como polêmica anti-cananéia, ver Leah Bronner em The Stories of Elijah and Elisha (Leiden: E.J. Brill, 1968); George E. Saint-Laurent, "Light from Ras Shamra on Elijah's Ordeal upon Mount Carmel," em Scripture in Context, editado por Carl D. Evans et al. (Pittsburgh: Pickwick, 1980), pp. 123-39. Frank E. Eakin, Jr. indica que a vitória de Elias declarou publicamente que o culto a Yahweh era de uma natureza completamente distinta, evitando assim que o javismo fosse absorvido pelo baalismo ("Yahwism and Baalism Before the Exile," JBL 84 [1965]: 413).

65 A cronologia das histórias era algo de pouco interesse para o historiador, pois sua maior preocupação e concentração estavam no desenvolvimento e associações por temas. Ver Robert L. Cohn, "The Literary Logic of 1 Kings 17-19," JBL 101 (1982): 333-50.

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então que o ministério de Elias teve início nos últimos anos de Acabe, no mínimo quatro anos antes de sua morte. A base para esta afirmação é que o chamado ocorreu antes de Ben-Hadade cercar Samaria, aproximadamen­te quatro anos antes da morte de Acabe na campanha de Ramote-Gileade, em 853 (1 Rs 20.1,26; 22.1). A data de 857 seria bastante apropriada para a caminhada de Elias ao monte Horebe. Visto que tal viagem ocorreu de­pois dos três anos de seca, Elias deve ter-se encontrado com Acabe pela primeira vez em cerca de 860, catorze anos após o início de seu reinado. Esse tempo seria suficiente para que toda as condições de apostasia des­critas na Bíblia pudessem firmar-se.

As invasões de Ben-H adade

A razão para Ben-Hadade atacar Samaria não está declarada, mas pode- se deduzir que este rei não se agradava da amizade crescente entre Israel e Sidom, cuja evidência achava-se na união matrimonial entre Acabe e Jezabel. Ben-Hadade certamente viu a aliança entre as duas nações como um obstá­culo ao seu livre acesso ao mar e às principais rotas comerciais da costa.66 Além disso, caso a cronologia aqui defendida esteja correta, Salmaneser III da Assíria já estaria, por esse tempo, em seu programa de expansão interna­cional para o oeste, atingindo a Aram e a Palestina, forçando conseqüente­mente o rei Ben-Hadade a colocar-se em posição defensiva. O historiador bíblico indica que Ben-Hadade estava acompanhado de outros trinta e dois reis, um indício de que ele também havia feito outras alianças para tratar com a futura ameaça assíria. Pode ser, é claro, que ele tenha pedido ajuda a Acabe, cujo recuo fez Ben-Hadade tentar a coalizão à força.

Seja como for, Ben-Hadade cercou a cidade de Samaria, exigindo o pa­gamento de um exorbitante resgate por sua liberdade (1 Rs 20.3). Acabe, provavelmente sem opção, aceitou os termos; mas Ben-Hadade continuou a sua demanda, exigindo desta vez todos, os bens de Acabe. Ao recusar a

66 Unger também sugere que Ben-Hadade, aproveitando-se do fato de Israel estar enfra­quecido por causa da grande fome, tentava evitar uma possível aliança entre Israel e Assíria (Israel and the Aramaeans, p. 66). Pela linguagem de 1 Reis 20.3,4, Burke O. Long concluiu que Acabe era um vassalo de Ben-Hadade e que este cobrava o tributo proporcional ao relacionamento. Quando a carga de tributos chegou a um nível insu­portável, o rei de Israel decidiu partir para guerra e recuperou sua independência. Em um segundo encontro (vv. 26-34) os dois protagonistas são vistos em nível de igualda­de ("Historical Narrative and the Fictionalizing Imagination," VT 35 [1985]: 407-12). Embora nada mais no registro sugira esse relacionamento, a hipótese não deve ser descartada.

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exigência e receber uma palavra de um homem de Deus, Acabe decidiu guerrear contra o inimigo, enquanto Ben-Hadade e seus confederados es­tavam em uma orgia regada à bebidas. Israel obteve uma poderosa vitória contra os arameus.

No ano seguinte, Ben-Hadade decidiu voltar à guerra, mas Acabe o interceptou em Afeque, provavelmente localizada na planície ao leste do mar de Quinerete.67 Os arameus estavam confiantes que triunfariam nes­sa guerra, pois criam que a derrota anterior deveu-se ao fato de Yahweh ser um "deus" das montanhas (1 Rs 20.28). Mas agora se encontravam na planície, confiantes de que a vitória estava garantida, visto que os israeli­tas não contariam com Yahweh nessa região. Esta visão provinciana do Deus do universo provou ser um entendimento fatal, pois Yahweh deu a Israel completa vitória. Na verdade, não fosse o desejo de Acabe de fazer uma aliança com Ben-Hadade, o rei arameu teria morrido naquele dia.

Um tratado de paz estabeleceu-se entre as duas nações, em que Ben- Hadade se viu obrigado a devolver todas as cidades de Israel que haviam sido tomadas pelos reis que o antecederam, além de garantir o livre co­mércio entre Israel e Damasco (1 Rs 20.34). As cidades que voltaram para o domínio de Israel provavelmente foram as que Ben-Hadade tomou de Baasa quarenta anos antes (1 Rs 15.20), e outras que haviam sido perdidas para Heziom e Tabrimon, antes de Ben-Hadade. Sem dúvida, ambos os reis percebiam outros benefícios no tratado, particularmente a criação de uma frente comum contra Salmaneser.

A morte de A cabe

A aliança rapidamente criada mostrou-se extremamente frágil, e den­tro de três anos — após passar a sua utilidade — foi quebrada. Dessa vez, Acabe decidiu recuperar a cidade de Ramote-Gileade (Tel Rãmith) das mãos de Damasco. Esta importante cidade foi capital de um impor­tante distrito nos anos do rei Salomão, mas Damasco a tomou alguns anos antes de Acabe subir ao trono, provavelmente durante o conflito entre Baasa e Ben-Hadade. E possível que Acabe tenha se interessado novamente pela cidade em razão de sua posição estratégica, ao longo da principal rota que vinha da Assíria. Também o encontro de Acabe com Salmaneser, rei da Assíria, em Carcar (ver abaixo) pode ter desenvolvido no rei de Israel um sentimento de imperialismo e extensão territorial, de

67 Aharoni, Land of the Bible, p. 381, n. 45, associa esse local a 'En Gev, um "Afeque infe­rior" situado abaixo e poucos quilômetros a noroeste de Fiq, "Afeque superior."

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maneira que decidiu readquirir a Transjordânia, iniciando o processo de restauração da glória de Israel.

Mas todo este assunto é teórico, pois Acabe morreu sem realizar esses feitos. Seu corpo foi trazido de volta a Samaria, e cachorros lamberam-lhe o sangue (1 Rs 22.38), exatamente conforme o profeta Elias havia predito (1 Rs 21.19). Assim o iníquo reino de Acabe chegou ao fim. Mas a casa perversa de Omri ainda não havia findado, pois o filho de Acabe, Acazias, assumiu o trono em seu lugar.

A ameaça da Assíria

Nesse ponto é importante examinar o contexto internacional a fim de entender as frenéticas maquinações de Ben-Hadade, Acabe, Josafá, e ou­tros governantes de pequenos estados no litoral mediterrâneo. Está claro que os olhares do mundo, incluindo Aram e Palestina, estavam voltados para apenas uma direção — a poderosa Assíria. Esse império redivivo pas­sou a desenvolver uma política de expansão territorial, em direção oeste, nos anos de Adade-Nirari II (911-891). A política continuou ainda mais intensa sob Tukulti-Ninurta II (890-884) e, nos anos de Acabe e Josafá, já se tornava bastante ameaçadora sob o reinado de Assur-nasirpal II (883-859).68 Em cerca de 875, este rei forçou uma penetração a oeste*até Bit-Adini, na porção superior do rio Eufrates, culminando na dominação assíria sobre todos os estados arameus da região. E foi seu sucessor Salmaneser III (858- 824), o primeiro a deixar claro que o objetivo da Assíria era estender sua hegemonia sobre todo o mundo ocidental.69

Salmaneser conquistou dentro de três anos a Bit-Adini, e então moveu- se em direção oeste através do Eufrates para conquistar a importante e es­tratégica cidade de Carquemis/ 0 Essa campanha militar ocorreu em 857, um ano antes de Ben-Hadade e Acabe fazerem um tratado em Afeque, de maneira que a razão do pacto se esclarece — ambos deixaram de lado as diferenças e uniram-se em favor da autopreservação. Por volta de 853,71

68 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 253-59.69 Quanto à política imperial dos assírios, centrada principalmente nos interesses econô­

micos e comerciais, ver Hayim Tadmor, "Assyria and the West: The Ninth Century and Its Aftermath," em Unity and Diversity, editado por Hans Goedicke e J.J.M. Roberts (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1975), pp. 38-40.

70 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, p. 260.71 William H. Shea sugere que a batalha de Carcar aconteceu em 854, uma data que de fato

permite mais tempo para o conflito entre os arameus e os israelitas. ("A Note on the Date of the Battle of Qarqar," JCS 29 [1977]: 242).

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Salmaneser moveu^e para o sul até Carcar (Khirbet-Qerqur), no rio Orontes, não muito mais do que 160 quilômetros da cidade de Damasco. Naquele local, segundo os próprios anais históricos do povo, o rei da Assíria viu-se em guerra contra uma coalizão de reis comandados por Ben-Hadade, da qual fazia parte também Acabe.72 É verdade que ao estilo assírio, Salmaneser alegou ter conseguido uma vitória esmagadora, mas não aconteceu assim. O próprio fato de não ter avançado, mas regredido para sua capital em Calá indica que, na melhor das hipóteses, houve empate. Além disso, depois do conflito em Carcar, Acabe e Ben-Hadade sentiram-se tão livres da Assíria que romperam o tratado de paz e reiniciaram suas hostilidades.

Enquanto retirou-se para o oriente, Salmaneser incorporou a Babilônia em sua esfera de influência logo após uma guerra civil naquele local em 850. Finalmente retornou para o oeste e impôs um cerco a Damasco em 841, na ocasião governada por Hazael.7i Israel, agora sob o rei Jeú, evitou a mesma calamidade pagando um alto tributo a Salmaneser.74 Mas, o rei da Assíria decidiu abandonar, por um tempo, sua política de opressão no oeste, permitindo a Israel e Judá um descanso por quase cem anos.

Os sucessores de Acabe

A cazias de Israel

O período de doze anos que entremeou a morte de Acabe e a ascen­são de Jeú foi coberto pelo reinado de dois dos filhos de Acabe, Acazias (853-852) e Jorão (852-841). Acazias, como seu pai, continuou a adorar

72 Quanto ao texto, ver James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 278-79.

73 J. A. Brinkman, "Additional Texts from the Reigns of Shalmanaser III and Shamshi-Adad V," JNES 32 (1973): 43-44.

74 Esse fato está registrado no famoso Obelisco Negro. A fotografia e a tradução estão presentes no trabalho de D. Winton Thomas, editor, Documents from Old Testament Times (London: Thomas Nelson, 1958), pp. 54-55. P. Kyle McCarter, Jr. afirma que o ia- ú-a (ou ia-a-ú) na esteia deve ser identificado com Jorão, e não Jeú. Se houver preferên­cia para uma leitura que identifique "Yaw" como "Jorão" é possível solucionar dois problemas: (a) o rei em questão é chamado "filho de Omri", que seria uma designação imprópria para Jeú, já que este rei eliminou toda a família de Omri e fundou sua própria dinastia; e (b) é pouco provável que um rei viesse a pagar tributos em seu primeiro ano de reinado ("Yaw, son of 'Omri': a Philological Note on Israelite Chronology," BASOR 216 [1974]: 5-7). Para uma solução, ver Edwin R. Thiele, "An Aditional Chronological Note on 'Yaw, Son of 'Omri'," BASOR 222 (1976): 25-28.

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Baal e outros deuses pagãos. Também foi repreendido pelo profetas Elias. A confrontação entre ambos sucedeu depois que Acazias feriu-se em uma queda, e enviou m ensageiros a Baal-Zebube, deus dos filisteus, inquirindo as perspectivas de sua reabilitação. (2 Rs 1.1,2). Elias inter­ceptou os m ensageiros e lhes anunciou o desprazer de Yahweh pela consulta do rei às divindades pagãs. Então o hom em de Deus declarou a sentença do Senhor a respeito de Acazias — o rei de modo algum conseguiria recuperar-se.

Já se falou a respeito da união comercial entre Josafá e Acazias, com o fim de estabelecer uma indústria marítima na região. Quando fracassou o acordo, os edomitas aproveitaram-se da ocasião e, temporariamente, tor­naram-se independentes de Judá. Aparentemente, os vizinhos ao norte de Edom, os moabitas, libertaram-se de Israel, pois vinham servindo ao reino do norte desde a época de Omri.75 A rebelião dos moabitas aconteceu pre­cisamente após Acazias sofrer um acidente, ou talvez depois de seu irmão Jorão assumir o reinado. Nessa época, surgiu entre os moabitas um líder, chamado Mesha, que os conduziria à liberdade. Sem dúvida Mesha per­cebeu na morte de Acabe e no acidente de Acazias uma ocasião propícia para livrar-se do jugo de Israel.76 Assim, logo que Jorão assumiu o trono em lugar de seu irmão, imediatamente providenciou para que os moabitas voltassem à condição de vassalos (2 Rs 3.4-9a).

Jorão de Israel

O segundo filho de Acabe também era perverso, mas não tanto quanto seu pai ou sua mãe, pois decidiu extinguir o culto e a adoração a Baal em favor do quase-jeovístico culto de Jeroboão. Isto pode parecer um bom sinal, mas dificilmente qualifica Jorão como um reformador. Josafá, é cla­

75 Gary Rendsburg sugere que Moabe havia se libertado de Israel durante os tempos turbulentos que caracterizaram o cisma de Jeroboão, e que ficaram nessa condição até o reinado de Omri ("A Reconstruction of Moabite-Israelite History," JANES 13 [1981]: 67).

76 A documentação extrabíblica é encontrada na chamada inscrição de Mesha. Temos o texto no livro de Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 320-21. Se quiser buscar um material que faz uma brilhante ligação entre os dados contidos nessa inscrição com os detalhes do Antigo Testamento, ver em Oded, "Neighbors on the East," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 256-57; Bayla Bonder, "Mesha's Rebellion Against Israel," JANES 3 (1970-71): 82-88. Rendsburg, "Reconstruction," p. 68, diz que a revolta aconteceu nos últimos dias de Acabe, mas essa é uma maneira errada de interpretar o que diz no texto de Mesha.

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ro, apoiou Israel contra os moabitas.77 Como em sua colaboração a Acabe contra os arameus, Josafá insistiu para que um genuíno homem de Deus fosse consultado a respeito do empreendimento. O profeta chamava-se Eliseu, filho de Safate, discípulo de Elias. Ele revelou que Yahweh lhes concederia uma grande vitória.78

Animados, os reis de Israel, Judá e Edom viajaram pelo sul rodeando o mar Morto, passando a seguir pelo território de Edom, rumo a M oabe.79 Quando chegaram ao rio Zerede, que é a fronteira entre Edom e Moabe, viram que o rio estava na época da cheia e transbordava muito. Enquanto isso, os moabitas haviam marchado para o sul a fim de confrontar-se com os invasores. Na aurora do dia, com o reflexo dos raios do sol, as águas do rio tornaram-se vermelhas — como sangue. Achando que seus adversári­os tinham se destruído mutuamente, decidiram avançar em um ataque final. Descobriram mais tarde o seu grave erro. Em desespero, o rei de Moabe sacrificou seu filho primogênito sobre o muro da cidade (2 Rs 3.27). Indignados pelo horror do sacrifício humano, Israel e Judá abandonaram o local e não tomaram o reino de Moabe.

Um outro evento importante no reinado de Jorão foi a visita do general Naamã (2 Rs 5). Este corajoso general dos exércitos de Ben-Hadade con­traíra uma enfermidade em sua pele. Ouvindo falar acerca de Eliseu atra­vés de sua serva israelita, Naamã decidiu ir a Samaria em busca de cura. O pronto acesso à capital de Israel indica que a ruptura com Damasco da

77 James D. Shenkel afirma que o rei de Judá aqui descrito é Acazias, e não Josafá. Ele constrói sua teoria baseado na Septuaginta, especialmente na revisão de Luciano do texto grego, cujas cronologias ele considera superior às que estão registradas no texto massorético (Chronology and Recensional Development in the Greek Text of Kings [Cambridge: Harvard University Press, 1968], pp. 92-108). Caso ele esteja certo, todo o período da história bíblica precisará ser reescrito. Thiele, "Coregencies," JBL 93 (1974): 184-88 demonstrou, por outro lado, que Shenkel chegou à sua teoria "ajustando" o texto das versões gregas que ele utilizou para corroborar suas conclusões.

78 O aparecimento de Eliseu neste momento (2 Rs 3.11) pode ser interpretado como um indício de que Elias já havia sido arrebatado para o céu. Mesmo assim, Elias escreveu uma carta para Jeorão de Judá (2 Cr 21.12-15), que reinou depois de Josafá. Green, em "Regnal Formulas," JNES 42 (1983): 176, afirma que Eliseu foi o autor dessa carta, mas parece ser melhor a opinião de Green quanto à existência de uma co-regência entre Josafá e Jeorão, o que claramente resolveria a tensão (cf. 2 Reis 1.17).

79 Quanto ao itinerário percorrido pelos reis de Judá e Edom, ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 132. J. Liver lançou a teoria de que os reis tomaram essa rota um tanto circular, ao invés de uma que fosse pelo norte do mar Morto, em virtude das grandes fortalezas, conforme escrito no texto de Mesha. Esse rei tinha construções ao norte de Moabe ("The Wars of Mesha, King of Moab," PEQ 99 [1966]: 27).

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época de Acabe estava agora sanada, embora a reação de Jorão à carta de Ben-Hadade em favor de Naamã não tenha sido tão amigável.

A frágil natureza da reconciliação entre Israel e Damasco torna-se mais aparente quando Naamã retorna para seu país curado e convertido a Yahweh, pois as hostilidades começam a surgir entre as nações (2 Rs 6.8). Os conflitos partiram de Ben-Hadade, mas a guerra transformou-se em um lamento para o seu reino. Cada passo que ele tencionava dar, o rei de Israel tomava ciência; isto o levou a pensar em espionagem ou traição. Mas finalmente o rei de Damasco descobriu que o profeta Eliseu era a fonte desta inteligência (Deus lhe revelava a estratégia dos arameus). En­tão Ben-Hadade partiu para Dotã, local em que Eliseu morava, para elimi­nar de vez o problema. Mas Yahweh protegeu o seu servo e cegou os ini­migos, conduzindo-os a Samaria. Eliseu avisou Jorão para poupá-los e deixá-los voltar para seus lares. Nunca mais os arameus enviaram poucos soldados para lutar contra Israel.80

Entretanto, os arameus voltaram rapidamente com um vasto exército, e cercaram Samaria. O cerco foi tão eficiente que, dentro da cidade, a po­pulação foi fortemente castigada pela fome, agindo como canibais. Quase ao ponto de render-se, alguns mendigos que moravam do lado de fora da muralha perceberam que os arameus haviam fugido desesperadamente. O Senhor fez com que acreditassem que os hititas e egípcios vinham em socorro de Israel. A fuga dos arameus foi tão repentina que deixaram o acampamento intacto, providenciando o alimento de que eles desespera­damente precisavam.

As datas correspondentes às duas invasões de Ben-Hadade e da visita de Naamã não estão totalmente firmes, embora as narrativas seguintes forneçam alguma luz (2 Rs 8.1-6). Nessa história o profeta Eliseu adverte a uma mulher sunamita, cujo filho havia sido restaurado à vida (2 Rs 4.8- 37), que ela deveria partir da região porque estavam decretados sete anos de fome no local. Assim ela partiu dali e quando voltou após os sete anos, achou suas terras ocupadas por outra pessoa. Então ela apelou para o rei que, após consultar Geazi, o servo de Eliseu, decidiu que os seus bens lhe seriam devolvidos. O interesse histórico aqui é a referência a Geazi. No fim da história de Naamã, este jovem foi acometido de uma enfermidade na pele e obrigado a deixar o serviço ao lado de Eliseu. A história de Naamã, então, deve seguir o período da fome. Além disso, se este período ocorreu

80 Esse deve ser o significado de 2 Reis 6.23, pois por algum tempo depois disso Aram voltou com um grande exército (6.24). Ver T.R. Hobbs, 2 Kings, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1985), p. 78

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durante todo o reinado de Jorão (852-841), deve ter se estendido até 845. A cura de Naamã e as duas invasões de Ben-Hadade devem ser datadas pró­ximo ao final do mandato de Jorão .81

A unção de Hazael de Damasco

Então, bem próximo ao fim do reinado de Jorão, Eliseu procedeu na implementação de duas partes não cumpridas da comissão que seu mes­tre Elias havia recebido no Horebe: a unção de Jeú como rei de Israel e de Hazael como rei de Damasco. Eliseu partiu primeiro em direção a Damas­co (2 Rs 8.7-15). Se Ben-Hadade e Jorão estavam ou não reconciliados é uma questão irrelevante neste momento. De qualquer forma, Ben-Hadade, esperando uma cura divina para sua enfermidade, recebeu bem o profeta Eliseu. Quando Ben-Hadade enviou seu servo Hazael para inquirir do pro­feta se ficaria ou não curado, recebeu uma resposta bastante enigmática: "Certamente náo sararás. Porque o Senhor me tem mostrado que certa­mente morrerás." (v. 10). Eliseu anunciou então que Hazael seria o novo rei — uma grande tragédia para Judá, pois ele infligiria uma cruel e inces­sante guerra contra o povo de Deus. Encorajado por esta palavra, Hazael foi ao quarto de Ben-Hadade e matou-o, asfixiando-o enquanto dormia. Depois do episódio, Hazael iniciou um período de muito derramamento de sangue na história dos arameus.

Jeorão de Judá

Antes de descrevermos a unção de Jeú, é necessário observar a histó­ria de Judá contemporânea de Jorão. Josafá vivera mais do que Acabe e seu filho Acazias, alcançando o quinto ano de Jorão. Morreu apenas em 848, e foi substituído por seu filho Jeorão, que reinou por apenas oito anos (848 — 841).

81 Green, "Regnal Formulas," JNES 42 (1983): 178, prefere pensar que o cerco à cidade de Samaria (2 Reis 6.24 - 7.20) aconteceu entre 845 e 841. Essa é uma data bastante razoá­vel, pois é tardia o suficiente para englobar o período de sete anos de fome e o cerco de Dotã (2 Rs 6.8-23). Ele também sugere que o contato inicial de Eliseu com a mulher sunamita (2 Rs 4.8) aconteceu dez anos antes do final dos sete anos de fome — seu filho nasceu, pelo menos, um ano depois daquele primeiro contato e estava com, no mínimo, dois anos quando faleceu, e a fome durou outros sete anos. Além disso, Green concluiu que o primeiro contato de Eliseu e a sunamita deve ter ocorrido no reinado de Josafá, visto que Jeorão reinou menos de dez anos. Logo, a presença de Josafá na campanha militar contra os moabitas é totalmente histórica (2 Reis 3).

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Um dos resultados das alianças feitas por Josafá com a dinastia de Omri agora ficava evidente. Jeorão, diz o historiador, era tão mau quanto Acabe e os reis de Israel, pois sua mulher era Atália, filha de Acabe. Josafá apa­rentemente arranjou o casamento, pois havia se juntado aos que despre­zavam o Senhor. Porém, mesmo sendo Jeorão pecador, Yahweh não des­truiu Judá, pois prometera a Davi que a lâmpada de sua dinastia não se apagaria (2 Cr 21.5-7).

Desde o início de seu reinado, Jeorão mostrou grande inclinação para derramar sangue, e esta foi uma característica de toda a sua administra­ção. Temendo a possibilidade de um golpe de estado por parte de seus irmãos, ordenou que todos fossem assassinados (2 Cr 21.4). Porém ele tam­bém começou a sofrer reveses. Primeiramente, Edom rebelou-se e estabe­leceu sobre si seu próprio rei. Esta nação vivera um relacionamento flutu­ante com Judá durante muitos anos.82 Nos últimos anos de Josafá, Edom obteve uma independência temporária (1 Rs 22.47; 2 Rs 3.9), mas no início do reinado de Jeorão, tornou a ficar sob o controle de Judá. Agora, mais uma vez Edom rebelava-se. Embora Jeorão enviasse um grande contin­gente militar para pôr fim à insurreição, Edom permaneceu livre da auto­ridade de Judá (2 Rs 8.20-22).

Libná (Tel es-Sâfi?),83 uma importante cidade na Sefelá, também se rebelou, provavelmente pela influência dos filisteus próximos à região, pois, juntamente com os árabes que moravam próximo aos cuxitas, lan­çaram um ataque contra Jerusalém. O palácio real foi pilhado e despoja­do, e toda a família real, com exceção do filho mais novo, Acazias, foi morta à espada (2 Cr 21.16,17).84 Tudo isso aconteceu porque Jeorão cons­truiu lugares altos e induziu Judá a desviar-se. Além disso, esses aconte­cimentos já haviam sido preditos pelo profeta Elias em uma carta escrita ao rei Jeorão (2 Cr 21.12-15), o único escrito que restou daquele ilustre homem de Deus.

82 Para uma boa análise dos períodos alternados de independência dos edomitas e sua subserviência a Judá, ver Green, "Regnal Formulas," JNES 42 (1983): 176-77.

83 Essa identificação é um tanto questionável. Ver em Avraham Negev, editor, Archaeological Encyclopedia of the Holy Land (Englewood, N.J.: SBS, 1980), p. 188; Yeivin, "Divided Kingdom," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 150.

84 O fato de não existir nenhuma evidência na narrativa, ou na arqueologia, de que a cida­de foi destruída, levou muitos estudiosos a interpretar a campanha aqui discutida como um ataque contra as cidades situadas bem próximas a Jerusalém. Ver, por exemplo, Myers, II Chronicles, p. 122.

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Jeorão faleceu através de uma excruciante morte em razão de uma en­fermidade nos intestinos85 e foi sucedido por Acazias, que reinou apenas um ano (841). Sendo filho de Atália e sobrinho de Jorão, Acazias evidente­mente foi mau. Mas esta ligação familiar significava mais do que a defici­ência espiritual: seria a própria causa de sua morte.

A unção de Jeú

Vejamos então o cumprimento da comissão que Elias recebera no mon­te Horebe — a substituição da dinastia de Omri por outra, dessa vez fun­dada por Jeú. Hazael, que subiu ao trono de Damasco por causa de um assassinato, iniciou o seu reinado (841-801) resistindo a um ataque contra Ramote-Gileade efetuado pela coligação de Jorão e Acazias (2 Rs 8.28,29). Jorão esperava recuperar essa estratégica cidade aproveitando-se da con­fusão em Damasco por causa da conspiração de Hazael. De qualquer for­ma, os problemas aumentaram para o rei de Israel, pois ele feriu-se e teve de retirar-se para Jezreel, seu centro administrativo ao norte, a fim de re­cuperar-se. Acazias, sobrinho do rei, deixou o campo de batalha e partiu para fazer uma visita ao seu tio.

Enquanto isso Jeú, filho de Ninsi (na verdade filho de Josafá, o filho de Ninsi), um comandante do exército israelita, recebeu um jovem profeta enviado por Eliseu, que lhe informou que Yahweh o havia escolhido para ser o rei de Israel. O jovem profeta ali mesmo o ungiu. Quando Jeú decla­rou aos amigos e também oficiais do exército aquilo que tinha ouvido, eles o aceitaram como o novo rei. Imediatamente Jeú arquitetou uma conspi­ração que o levasse ao trono de Israel e, induzindo os amigos a manter o assunto em segredo, partiu para Jezreel a fim de concretizar seu plano. Ao chegar à cidade, encontrou-se com Jorão e Acazias, que logo descobriram o motivo da visita. Jorão foi morto por Jeú no campo de Nabote, conforme profetizado por Elias (2 Rs 9.25,26), e Acazias tentou escapar para Sama­ria, mas foi apanhado e levado à presença de Jeú, que provavelmente esta­va próximo a Ibleã, cerca de 16 quilômetros ao sul de Jezreel. Acazias no­vamente conseguiu escapar, mas foi ferido e morreu em Megido.86

85 Green, "Regnal Formulas," JNES 42 (1983): 176, n. 31, propõe que a doença tenha sido uma intussuscepção causada por hipermotilidade intestinal associada à inflamação no cólon.

86 Esse cenário relativo a Acazias é uma reconstrução baseada em 2 Reis 9.27 e 2 Crônicas 22.7-9. Para maiores detalhes, ver Merrill, "2 Chronicles," em Bible Knowledge Commentary, vol. 1, p. 636.

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Assim Jeú destruiu os reis de Israel e Judá e permaneceu sozinho no controle. A dinastia de Omri finalmente chegara ao fim, a iniqüidade em Judá foi parcialmente purgada, e uma nova oportunidade chegava para o povo de Deus.

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A D I N A S T I A D £ J E 0 E 0 J U D A C O N T E M P O R Â N E O

O reinado de Jeú em Israel A tália de Judá O papel das outras nações

As incursões da Assíria A fraqueza do Egito

Joás, rei de Judá Os anos de justiça Os anos de apostasia A situação externa

Hazael de Damasco O retomo da Assíria

Jeoacaz, rei de Israel O cenário internacional

Assíria Egito Damasco

Jeoás, rei de Israel A m azias, rei de Judá Jeroboão II, rei de Israel

A cronologia do período A glória de Israel

U zias, rei de Judá O m inistério dos profetas

O rganização dos profetas O ofício de profeta História do profetism o Os escritos proféticos mais antigos

Obadias Joel Amós Jonas

0 reinado de Jeú em Israel

A data de 841 a.C. é uma das mais significativas da história do Antigo Testamento, pois marca o fim dos reinos de Jorão, de Israel, e de Jeorão e Acazias, de Judá, bem como o início do reinado de Jeú, o fundador da dinastia de maior duração que governou no reino do norte (841-753).1 Além disso, 841 foi o ano em que, do ponto de vista humano, a linhagem

1 Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers ofthe Hebreiv Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), pp. 50-52.

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3 8 0 H istória d e I sr a el no A ntigo Testam ent .

messiânica de Davi ficou suspensa por um triz, pois como resultado do assassinato de Acazias, sua mãe Atália, filha de Acabe, iniciou uma des­truição sistemática de toda a família real em Judá. Providencialmente, um dos filhos de Acazias sobreviveu e a dinastia de Davi pôde continuar. Fi­nalmente, 841 também foi o ano em que o imperador assírio Salmaneser III empreendeu sua mais bem-sucedida campanha em direção oeste, sem dúvida a de maior extensão territorial.2 Ele cercou Hazael de Damasco, e teria invadido e conquistado o território de Israel não fosse o rei Jeú ter decidido pagar ao assírio um enorme tributo.

Como mostra o capítulo anterior, Jeú foi levantado por Yahweh e rece­beu a incumbência de remover a perversa dinastia de Omri do trono para sempre. Ele realizou a tarefa não apenas matando o último rei da dinastia (Jorão), mas também removendo do cenário a rainha mãe, Jezabel (2 Rs 9.21-37). Foi ela a grande responsável por toda a aceitação do culto a Baal em Israel. Em conseqüência de seus muitos pecados, o profeta Elias pre­disse que ela sofreria uma horrível morte (1 Rs 21.23), e Jeú sentiu-se feliz em poder cumprir a profecia.

Jeú voltou-se para os membros sobreviventes da descendência de Aca­be. Certo de que contava com o apoio dos líderes em Samaria, mandou que exterminassem a família real e enviassem suas cabeças até ele em Jezreel como prova. Logo que isto sucedeu, Jeú usou o ato para convencer o povo de Jezreel de que ele obtinha apoio de Samaria e que, de fato, eles já havi­am decidido repudiar a família de Acabe. Então continuou o extermínio, matando todos os amigos e parentes de Acabe em Jezreel (2 Rs 10.11). Por­tanto, os dois centros governamentais de Israel estavam agora sob o con­trole de Jeú.

Porém, duas tarefas ainda o aguardavam em Samaria. No decorrer da viagem , Jeú encontrou-se com alguns parentes de Acazias de Judá; ali mesmo os feriu, como fizera anteriormente ao rei. Então, ao chegar a Samaria, eliminou o restante dos membros da fam ília de Acabe até não haver mais um sequer. Este porém não foi o único motivo que o trouxe até Samaria. Jeú sabia bem que o motivo que afastou Israel de Yahweh deveria ser traçado até chegar aos líderes da nação, de forma que convocou uma reunião com todos os profetas e sacerdotes de Baal sob o pretexto de oferecer um grande sacrifício de adoração a esse deus, e para reconduzi-los à posição oficial de líderes religiosos. Então, após

2 Albert Kirk Grayson, "Assyria: Ashur-dan II to Ashur-Nirari V (934-745 B.C.)," em Cambridge Ancient History, 3a ed., editado por John Boardman et al (Cambridge: Cambridge University Press, 1982), vol. 3, parte 1, pp. 262-63.

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conseguir reuni-los em um grande templo de Baal, Jeú enviou para lá uma tropa de homens armados, fechou todas as portas e janelas, e m a­tou todos de uma só vez. Por fim, Jeú mandou que fossem retirados do templo toda a parafernália que compunha o culto a Baal e converteu o lo c a l e m banheiro público (2 Rs 10.27),3 d e m o s tr a n d o t o d o s eu despre­zo para com essa religião pagã.

O fato de Jeú erradicar a dinastia de Omri e a adoração a Baal poderia parecer um retorno ao verdadeiro Jeovismo. Infelizmente, este não foi o caso, porque embora fosse um adversário do culto a Baal, não se mostrava um adorador de Yahweh. Era na realidade um sincretista ao estilo de Jeroboão, e praticou o culto dos bezerros de ouro em Dã e Betei. Por isso veio sobre ele uma palavra de juízo da parte de Yahweh: por haver sido fiel no cumprimento da vontade de Deus contra Acabe e sua família, sua dinastia perduraria por longos anos, mas não perpetuam ente (2 Rs 10.30,31). Este rei contemplou com os próprios olhos o início dos juízos de Deus sobre seu reino, particularmente na perda de extensão territorial para outros reinos.

Atália de Judá

O jovem rei Acazias de Judá recebeu a má influência de sua mãe Atália, e seus principais conselheiros haviam sido membros da corte real de Isra­el. Tudo o que eles propunham, assim fazia o rei, incluindo a união com Jorão naquela malfadada campanha contra Hazael, em Ramote-Gileade (2 Cr 22.5). Após as mortes prematuras de Acazias e outros membros da família real, promovidas por Jeú, não houve alguém poderoso o suficiente para assumir o lugar de Acazias em Judá. Neste caso, sua própria mãe subiu ao trono.

Filha da casa real de Israel, Atália viu a morte de seu filho não como uma tragédia, mas como uma maneira de submeter Judá ao controle de Israel. Atália supunha que isto seria vital para que a linhagem de Omri fosse restabelecida em Samaria. Portanto, depois da morte de Acazias, ela eliminou todos os filhos e netos que ainda lhe restavam em Jerusalém! Pela providência divina, a filha de Jeorão, Jeoseba,4 lançou mão de seu pequeno sobrinho Joás, filho de Acazias. Pelos seis anos em que Atália

3 Ver T.R. Hobbs, 2 Reis, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1985), p. 130.4 Jeoseba era filha de Jeorão (2 Rs 11.2), mas não de Atália. O cronista aponta o fato de

Jeoseba ser a mulher do sumo sacerdote Jeoiada (2 Cr 22.11).

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H istória d e I srael s o A\ n c o Tl >

reinou ilegitimamente (841-835), o menino foi escondido no templo e cria­do por Jeoseba e seu marido, o sumo sacerdote Jeoiada.5

Finalmente, chegou o momento propício em que Jeoiada faria Joás, o verdadeiro descendente do rei Davi, assenta-se no trono de Judá. Ele con­quistou o apoio dos oficiais do exército que, por sua vez, obtiveram o apoio dos levitas e dos cabeças dos clãs para o plano proposto. Este envolvia espalhar soldados em pontos estratégicos para guardar o templo e, com exceção dos levitas e sacerdotes, qualquer que forçasse a entrada no local seria morto. Depois disso, Joás foi trazido de seu esconderijo e posicionou- se próximo ao grande altar em frente ao templo. Jeoiada, com uma cópia da lei de Moisés, procedeu à cerimonia de coroação do novo rei. A assem­bléia não pôde conter a alegria e clamou: "Viva o rei!" (2 Rs 11.12).6

Atália, que parecia desconhecer todo o plano, ouvindo as aclamações da grande festividade, correu para o templo. Compreendendo imediata­mente o que se passava, gritava "Traição!", mas ninguém lhe deu ouvi­dos. Apavorada, correu para o Portão do Cavalo, mas ali mesmo foi morta pelos guardas de Jeoiada. Este sumo sacerdote aproveitou a ocasião para conduzir o povo a uma renovação de seus votos e de sua aliança com Yahweh, insistindo para que o rei e o povo se dispusessem a ser obedien­tes e fiéis ao Senhor (2 Rs 11.17). Em resposta ao apelo, a multidão demo­liu o templo de Baal, esmagou e reduziu a pó os ídolos e altares do culto, e matou o sacerdote do templo pagão. Então Jeoiada restabeleceu a adora­ção no templo exatamente como estava prescrita na lei de Moisés. Final­mente, conduziu o jovem rei para fora do templo e assentou-o no trono de seu pai Davi, simbolizando a continuidade da promessa de Deus de que nunca faltaria a Davi descendente que se assentasse em seu trono.

O papel das outras nações

As incursões da Assíria

O interregno sob Atália coincidiu com os primeiros seis anos do reina­do de Jeú em Israel, um período pouco referido no registro bíblico. Os

3 A ilegalidade do reinado de Atália pode ser visto no fato que o historiador interrompeseu padrão de narrativa não incluindo o período dessa rainha em sua contagem crono­lógica. Só podemos admitir a existência desses seis anos através de dedução. Ver em Walter R. Winfall, "The Chronology of the Divided Monarchy of Israel," ZAV\I 80 (1968): 328-29; Thiele, Mysterious Numbers, p. 71.

6 A linguagem do texto reflete a cerimônia e o ritual de coroação; ver John Gray, I & II Kings (Philadelphia: Westminster, 1970), pp. 575-75.

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anais assírios, porém, são muito úteis para adquirir informações acerca deste período. Depois da batalha de Carcar, em que uma coalizão de reis do ocidente uniu-se para deter o programa de expansão territorial assírio no oeste, o rei assírio Salmaneser III retirou-se de volta para sua terra natal a fim de resolver alguns problemas pelos próximos quatro anos. Retornou para o oeste em 849, 848, 845 e 841, e em todas as data exceto na última obteve resistência. Contudo, em 841 ele tentou derrotar Hazael, de Da­masco, e forçou o rei de Israel (Jeú) a pagar-lhe elevado tributo, conforme está registrado no famoso Obelisco Negro.7 O fato de Jeú estar em seu primeiro ano pode ser uma coincidência, mas é inteiramente possível que a instabilidade causada pela sua violência tenha favorecido um ataque estrangeiro.8 De qualquer maneira, o fato de Salmaneser ter praticamente destruído Damasco e estabelecido seu senhorio sobre Israel permitiu-lhe liberdade para tratar de outros assuntos. Logo, depois de 838 ele se ocu­pou com o norte da Síria e com a Média e Armênia, ao leste a ao norte.

Como conseqüência, Israel tornou-se vulnerável aos ataques depredató- rios de Hazael. Agindo como instrumento de Yahweh, ele marchou contra a Transjordânia e arrancou de Israel tudo o que estivesse ao sul do Arnom (2 Rs 10.32,33). A razão política para isso é bem aparente. Jeú, ao invés de jun­tar-se a Hazael para fazer resistência aos assírios, submeteu-se a Salmaneser como um de seus vassalos. Portanto, a invasão de Hazael nos territórios de Israel era uma medida contra o reino do norte e também contra os assírios. Parece que uma data razoável para a invasão de Hazael seja 837- 836, pois não poderia ter ocorrido enquanto Salmaneser estivesse presente na região (ele partiu depois de uma campanha malsucedida contra Damasco em 838). Por outro lado, era óbvio que Hazael desejava vingar-se de Salmaneser, e não poderia perder a chance que tão rapidamente lhe apareceu.9

A fraqueza do Egito

Durante todo esse tempo o Egito estava bem informado e conscien­te da situação turbulenta entre Judá e Israel; e embora quisesse obter

7 Quanto ao texto, ver James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a ed. (Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 280.

8 Michael C. Astour sugere de forma desafiadora que o massacre promovido por Jeú foi feito na intenção de destruir qualquer elemento anti-assírio em Israel e Judá, de forma a poder apaziguar a Assíria ("841 B.C.: The First Assyrian Invasion of Israel,'"JAOS 91 [1971]: 388-89).

9 Herbert Donner, "The Separate States of Israel and Judah," em Israelite and Jndaean History, editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1977), p. 413.

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alguma vantagem, não poderia fazê-lo em virtude do crescimento do império assírio. O Egito não resistiria a Salmaneser, de sorte que seu rei, Osorkon II (874-850), rapidamente buscou aliança com os arameus e os estados da Palestina na esperança de evitar o avanço dos assírios em direção ao Egito .10 Esses acordos eram mais do que palavras e assi­n aturas, pois havia tropas eg íp cias entre aqueles que resistiram Salm aneser em Carcar, em 853.11

Depois que Osorkon foi sucedido por Takeloth II (850-825), o Egito en­fraqueceu ainda mais, pois Tebas agora levantava-se contra o norte do próprio país, em uma tentativa de alcançar a independência do Alto Egi­to. Portanto, nem Joás ou Jeú poderiam esperar qualquer apoio dos egíp­cios contra qualquer inimigo, fosse ele Hazael ou Salmaneser.

Joás, rei de Judá

Os anos de justiça

Os fatos que ocorreram durante os anos do ilícito governo de Atália, em Judá, não estão registrados explicitamente nas Escrituras, embora se possa deduzir que durante seis anos (841-835) seu reinado esteve livre de qualquer problema semelhante ao que Israel enfrentava com Hazael. Pro­vavelmente Hazael considerava Atália uma aliada, ou no mínimo uma inimiga de Jeú, por ter este aniquilado sua família.

Finalm ente, o verdadeiro descendente de Davi assentou-se no tro­no, e reinou durante quarenta anos (835-796). Visto que ele tinha ape­nas sete anos quando se tornou rei, ficou sob a tutela de Jeoiada, o sumo sacerdote, cuja autoridade sobre o jovem monarca estendia-se ao pon­to de escolher suas esposas (2 Cr 24.3). Os anos de apostasia sob Atália atingiram a vida religiosa da nação. Particularm ente grave era o fato de o templo e os serviços sagrados haverem sido abandonados. Joás, já no princípio de seu reinado, decidiu reformar e restaurar a casa de Yahweh (2 Rs 12.4,5). Portanto, incumbiu os sacerdotes e levitas de sa­írem a todas as cidades e vilarejos de seu reino a fim de obter as ofertas para a m anutenção do templo.

Embora o apelo resultasse no acúmulo de fundos, a obra tardou por alguma razão, e até o vigésimo terceiro ano de Joás (cerca de 814) não

10 Kenneth A. Kitchen, The Third Intermediate Period in Egypt (1100-650 B.C), (Warminster: Aris and Phillips, 1973), p. 324.

11 Ibid., p. 235.

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havia qualquer indício da obra .12 O rei Joás então ordenou ao sumo sa­cerdote Jeoiada que providenciasse a construção de um gazofilácio ao lado do grande altar, onde os sacerdotes depositariam as ofertas do povo.-' Um apelo foi feito por todo o reino para que trouxessem suas ofertas ao templo; e com alegria o povo ofertou. Joás assalariou trabalhadores para iniciar a restauração. Tão honestos e fiéis eram os que contabilizavam o dinheiro que o povo não lhes exigia um relatório. A quantia empregada pelos supervisores para o pagamento dos trabalhadores servia apenas para este propósito. Nem mesmo para os utensílios do templo se empre­gou esse dinheiro. Finalmente, quando toda a obra de reparação e res­tauração já estava terminada, os vasos da casa de Yahweh foram feitos do que sobrou da prata e ouro trazidos pelo povo em sua generosidade e espontaneidade.

Os anos de apostasia

Pouco tempo depois de as obras de restauração do templo serem encerradas, Jeoiada, o sumo sacerdote, morreu (2 Cr 24.15). Então se foi a estabilidade espiritual que inspirara Joás quase desde o seu nasci­mento; Joás afastou-se dos caminhos de Yahweh e passou a tolerar a adoração a Aserá, a deusa de sua avó Atália. Para acrescentar ainda mais aos seus pecados, autorizou que o profeta Zacarias fosse assassi­nado. Este era filho de seu querido mentor Jeoiada, e havia sido envia­do por Yahweh para repreender o rei e convocá-lo a abandonar seus maus caminhos.

A atitude de Joás causou a repreensão de Deus, na forma da invasão dos arameus sobre o território de Judá, ameaçando consideravelmente a própria Jerusalém (2 Cr 24.23-25). Muitos líderes de Judá foram mortos e o próprio Joás foi ferido. E ainda mais trágico foi a sua morte, pois foi vítima de seus próprios oficiais, que se aproveitaram do momento de convales­cença do rei para matá-lo em seu leito. Tudo isto aconteceu, diz o historia­dor sagrado, por causa dos pecados de Joás e de Judá, pois abandonaram ao Senhor (2 Cr 24.24).

12 Quanto a uma análise da coincidência do vigésimo terceiro ano de Joás e o último de Jeú em 814, ver Thiele, Mysterious Numbers, p. 74. Quanto ao argumento de que o ano da ascensão de Joás foi 835 e que em 814 temos seu vigésimo terceiro ano, ver pp. 71-72.

13 Essa prática de repartir a custódia financeira do templo tem sido grandemente esclarecida por um texto assírio citado por Victor Hrowitz, "Another Fiscal Practice in the Ancient Near East: 2 Kings 12.5-17 and a Letter to Esarhaddon (LAS 277)," JNES 45 (1986): 289-94.

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A situação externa

H azael de Damasco

A invasão dos arameus que culminou na morte de Joás não pode ter sido a mesma campanha de 2 Reis 12.17,18, pois Hazael já havia morrido em 801, e Joás ainda viveu até 796. Além disso, os dois relatos nada têm em comum, exceto o inimigo.14 Por exemplo, somente em 2 Reis está escrito que a cidade de Jerusalém teria caído nas mãos do inimigo, não fosse o rei Joás ter saído ao encontro do rei arameu com muito ouro, que retirara do tesouro do templo.

Conforme já se observou, o rei Hazael aproveitou-se da ausência de Salmaneser III, da Assíria, para investir um ataque sem tréguas contra Isra­el, seu constante e inveterado inimigo ao sul. A invasão resultou na perda de grande extensão territorial de Israel, especialmente na Transjordânia. Após a morte de Jeú de Israel, os conflitos apenas aumentaram, pois o filho de Jeú, Jeoacaz (814-798), foi constantemente afligido por Hazael. O autor do livro dos Reis indica que as hostilidades dos arameus continuaram agora sob o herdeiro Ben-Hadade II (2 Rs 13.3,22-25). Não fosse a intervenção de Adade-Nirari III da Assíria nos conflitos da região siro-palestinense, os arameus teriam subjugado Israel e Judá completamente.

O retorno da Assíria

A imunidade de Hazael com respeito à interferência da Assíria durou não apenas pelo restante dos anos de Salmaneser III, mas também por todo o reinado de seu filho e sucessor Sham shi-Adad V (823-811).15 Shamshi-Adad chegou ao poder por meio de uma grave rebelião e pelo apoio do rei dos Povos do Mar, Marduk-zakir-sumi I. Com exceção de Damasco, os estados clientes ao oeste permaneceram subservientes e bem administrados, de forma que não houve pressão alguma da Assíria na re­gião. De fato, tal envolvimento tornou-se um ponto de discussão, pois desde 818 até sua morte, Shamshi-Adad esteve totalmente ocupado em muitas guerras com seus antigos aliados na Babilônia. Portanto, é fácil entender como Hazael sentiu-se verdadeiramente livre, entre 837 e 805, para empreender qualquer política entre seus vizinhos.

14 Infelizmente, muitos estudiosos interpretam incorretamente os textos de 2 Reis 12.17,18 e 2 Crônicas 24.23-25, afirmando que são registros-variantes do mesmo acontecimento; ver, por exemplo, Jacob M. Myers, II Chronicles, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), p. 138-39.

15 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 269-71.

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Próximo da ascensão de Adade-Nirari III (810-783) ao trono da Assíria, os babilônicos foram subjugados, mas isso não despertou de imediato o interesse assírio nos negócios do ocidente. Adade-Nirari era apenas um garoto quando substituiu seu pai, sendo acompanhado durante anos por sua mãe, conhecida pelo nome de Sammuramat.16 Juntos, reedificaram a cidade de Calá e tornaram-na sua capital e, depois de recuperar a Gozam em 808, Adade-Nirari pressionou em direção oeste, e em 805 empreendeu uma campanha militar contra Damasco e Palestina. Sucessivas campanhas até 79617 deixaram a maior parte da Síria sob o controle assírio, mas todo esse território, incluindo Damasco e a região mais ao sul, mas rapidamen­te conseguiu libertar-se em virtude das muitas ameaças que os assírios recebiam de outras nações. Somente em 743, com Tiglate-Pileser III no tro­no, a Assíria reassumiria sua posição imperialista no ocidente.

Jeoacaz, rei de Israel

A invasão de Hazael em Judá, registrada apenas em 2 Reis, parece ter ocorrido depois do vigésimo terceiro ano de Joás (i.e., depois de 814).18 Este foi o ano em que o templo foi reformado e enriquecido. O tributo que Joás pagou ao rei Hazael para salvar a cidade de Jerusalém sem dúvida proveio das ofertas do templo. Além disso, o vigésimo terceiro ano de Joás também foi o ano da morte do rei Jeú e da ascensão de seu filho Jeoacaz ao trono de Israel (2 Rs 13.1). O autor do livro dos Reis é cuidadoso em apon­tar que esses fatos coincidiram com os ataques de Hazael contra Israel, de

16 William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near East (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971), p. 129. Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 271-72, não está de acordo com essa afirmação, argumentando que a noção de uma co-regência está ba­seada em uma má interpretação do texto relevante.

17 Baseado na esteia de Rimah, que menciona Jeoás de Samaria (798-782), a maioria dos estu­diosos situa a última campanha de Adade-Nirari contra Mansuate em 796. William H. Shea, contudo, sugere que a esteia de Rimah, como a esteia de Sabá, refere-se a uma campanha mais anterior (805) naquela mesma região. Isso, evidentemente, exige que o remado de Jeoás seja situado da mesma forma ("Adade-Nirare III and Jehoash of Israel," JCS 30J1978]: 101-13). Shea não leva em conta o fato de as inscrições reais serem compostas de forma bastante estereotipada, e desconsidera que lugares diferentes possam ter sido conquistados em campanhas com intervalo de dez anos entre uma e outra. Ver também Hayim Tadmor, "The Historical Inscriptions of Adade-Nirari III," Iraq 35 (1973): 141-50.

18 S. Yeivin situa a invasão de Hazael em 813 ("The Divided Kingdom: Rehoboam- Ahaz/Jeroboam-Pekah," em World History o f the Jewish People, vol. 4, parte 1, The Age o f the Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalem: Massada, 1979), p. 152.

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maneira ainda mais intensa (13.3).19 É possível que a morte de Jeú, em 814, tenha servido de estímulo para Hazael lançar seu ataque contra Israel e, ao mesmo tempo, contra as cidades de Gate e Jerusalém. Shamshi-Adad da Assíria estava completamente ocupado em suas guerras contra a Babilônia nesses anos, de forma que não pôde evitar as conquistas de Hazael.

Mesmo sendo um rei injusto e mau perante os olhos do Senhor, o rei Jeoacaz clamou a Deus durante os dias em que Hazael castigava seu rei­no, de sorte que Yahweh enviou um "libertador" que livrou Israel das mãos dos arameus (2 Rs 13.5). Para a maioria dos estudiosos, esse "liber­tador" foi Adade-Nirari III que, conforme visto, lançou-se em uma inten­sa campanha ao oeste em 805, que resultou na subjugação de Hazael e, portanto, na libertação da nação de Israel.20 Enquanto isso, Israel estava reduzido a um miserável e insignificante estado, pois o historiador sagra­do diz que o exército contava com apenas cinqüenta cavaleiros, dez carru­agens e dez mil homens de infantaria!

A segunda campanha de Damasco contra Jerusalém, que resultou no ferimento quase mortal de Joás e, por fim, em sua própria morte, não pode ter sido dirigida por Hazael, pois este morrera em 801,21 embora Joás te­nha vivido até 796.22 O rei arameu que surge no cenário (não há registro de seu nome) deve ter sido o filho de Hazael, Ben-Hadade II, que conti­nuou a política de intervenção de seu pai nos negócios de Israel e Judá. Em suas mãos Yahweh entregou o reino do norte continuamente durante os dias de Jeoacaz (2 Rs 13.3), mas Jeoás, filho de Jeoacaz, foi forte o sufici­ente para reaver as cidades israelitas que estavam sob o controle de Ben- Hadade (13.25). E, por fim, Jeroboão II conseguiu recuperar todo o territó­rio que pertencera ao reino de Salomão, e que estava por muito tempo no poder dos arameus (2 Rs 14.25-27).

19 A redução do território israelita pode ser vista nos Ostracos de Samaria, que registramo pagamento de taxas de algumas poucas cidades próximas da capital (Yeivin, "Divided Kingdom," p. 153).

20 Quanto ao que está escrito na "Placa de Nimrud", ver Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 281-82. Aqui Hazael é identificado como Mari' ("Senhor"), embora aquele fosse seu nome, ao invés de título. Ver Merril F. Unger, Israel and the Aramaeans o f Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980 reedição), p. 83. Adade-Nirari também derrotou Damasco e seu rei Ben-Hadade em 796, de sorte que ele também pode ter atuado como "libertador" de Israel, que naquela ocasião estava sob o governo de Jeoás (Hayim Tadmor, "Assyria and the West: The Ninth Century and Its Aftermath," em Unity and Diversity, editado por Hans Goedicke e J. J. M. Roberts [Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1975], p. 40).

21 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 82.22 Thiele, Mysterious Numbers, pp. 72-73.

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O cenário internacional

Assíria

Antes de iniciar o oitavo século, com os reinados de Jeoás, de Israel, e de Amazias, de Judá, é necessário observar atentamente o contexto inter­nacional que influenciaria inevitavelmente a história do reino dividido. Vejamos a Assíria, que na ocasião já era a mais poderosa força militar e política estabelecida no Oriente Médio, e que continuaria mantendo a hegemonia por quase dois séculos seguidos.

A retirada de Adade-Nirari III da região oeste depois de 796 deixou a região praticamente sem a influência dos assírios por mais de cinqüenta anos. Esse rei foi sucedido por seu filho, Salmaneser IV, que reinou por apenas dez anos (782-773).23 Salmaneser viu-se na defensiva contra o rei­no de Urartu na maior parte de seu governo, e foi incapaz de controlar todo o seu império, principalmente as regiões mais distantes, como Arã. Seu irmão Assur-dan III (772-755) não foi melhor do que seu antecessor, embora haja registro em seus anais de uma campanha militar contra Da­masco, em seu primeiro ano de reinado, e muitas outras contra Hatarika (Hadrach).24 A impotência militar da Assíria está claramente sugerida pela falta de campanhas em quatro anos — uma omissão quase única — e pela fraqueza de Assur-dan em reprimir os levantes civis, particularmente em Gozã.

Um terceiro filho de Adade-Nirari, chamado Assur-nirari V (754-745), assumiu o trono. Seu curto reinado pôde empreender apenas uma campa­nha verdadeiramente eficaz, cujo alvo foi Arpade em 754. Seu assassinato em Calá pôs fim à era impotente dos assírios, pois após este episódio surgiu um dos maiores e mais respeitados monarcas assírios: Tiglate-Pileser III.

Egito

Ao sul da Palestina está o Egito, que naqueles anos atravessava uma fase complexa, em razão de duas dinastias coexistentes no país — a 22a e a 23a.25 Takeloth II, da 22a Dinastia (850-825), testemunhou a intensa batalha

23 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 276-77.24 Ibid., p. 277.25 Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 326-33. Quanto às datas pouco diferentes e uma discus­

são detalhada da cronologia do Egito nesse período, ver Klaus Baer, "The Libyan and Nubian Kings of Egypt: Notes on the Chronology of Dynasties XXII to XXVI," JNES 32 (1973): 6-15.

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de Tebas dividir-se, uma brecha que parecia inevitável. Entretanto, antes de ver a sua concretização, Takeloth morreu e foi sucedido por seu filho Shoshenq III, que usurpou o trono de seu irmão mais velho, Osorkon. Ini­cialmente, Shoshenq parecia reunificar o norte e o sul com algum sucesso, mas por razões até hoje desconhecidas um m onarca rival chamado Pedubast apresentou-se em Leontópolis. Este fundou a 23a Dinastia, que reinou por vinte e cinco anos sobre o ocidente do Delta (818-793).

Embora Shoshenq III tenha assumido o lugar de Faraó em Tanis por mais de cinqüenta anos (825-773), seu reino foi somente um pequeno prin­cipado quando comparado com os seus antecessores. Para aumentar os problemas, muitos chefes da região do Delta começaram a proclamar sua independência contra Shoshenq, e também contra Pedubast. O alto Egito professou aliança com Pedubast, mas isto se compensou através do surgimento dos príncipes do norte do Delta e pela crescente presença dos núbios no extremo sul do país. Por volta de 737, Piankhy, da Núbia, rei­vindicou o direito de reinar sobre Tebas, e fundou a 25a Dinastia no local. Dez anos mais tarde, Tefnakht I (727-720) fundou a 24a Dinastia, a conhe­cida linhagem real dos Saítas, no extremo norte do Delta. Essas duas famí­lias reais viveram paralelamente, conforme ocorreu com a 22a e a 23a Di­nastias em seus últimos anos. A primeira terminou com Osorkon IV, em cerca de 715, e a segunda com Shoshenq VI, no mesmo período.26

O que é evidente neste contexto histórico-político é que o Egito se apre­sentava como um estado completamente desestruturado e fragmentado pela maior parte do século VIII. Israel e Judá não temiam este inimigo ao sul, e ironicamente o buscaram quando se viram acossados pela Assíria.

Damasco

Mais uma vez, Damasco estava livre para molestar seus inimigos ao sul. Mas agora a situação era diferente, pois tanto Israel quanto Judá esta­vam sendo governados por reis criativos e corajosos, que não apenas re­sistiram a invasão dos arameus, mas também tomaram medidas decisivas para expandir seu território, à custa do inimigo.

Jeoás, rei de Israel

O terceiro na linhagem de Jeú de Israel foi o filho de Jeoacaz, conhecido por Jeoás, que reinou de 798 a 782. Também ele não se desviou dos peca-

Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 362-77.

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dos de Jeroboão, "os quais ele ensinou a Israel". Mas ainda assim Deus lhe foi gracioso e o capacitou para prevalecer não apenas contra os arameus, mas também contra Amazias, rei de Judá. O fato de ter consolado Eliseu próximo de sua morte e de ter recebido deste muitos conselhos (2 Rs 13.14- 19) contribuiu para que Jeoás não fosse visto como mais um rei israelita na tradição de seus antecessores.

A visita de Jeoás ao profeta Eliseu deve ter ocorrido bem no princípio de seu reinado, talvez em cerca de 796. Esta sugestão tem base no fato de Ben- Hadade II ter acabado de subir ao trono de Damasco, sucedendo Hazael, que morrera em 801. Hazael foi um problema constante para Jeú e seu filho Jeoacaz; agora que estava morto, parecia ter chegado o momento certo para Israel vin­gar-se contra aquele reino e readquirir seus territórios perdidos. Sem dúvida este fator motivou Jeoás a buscar os conselhos do antigo profeta. Ele desejava saber se os arameus, liderados por Ben-Hadade, seriam entregues nas mãos de Israel. Após receber uma resposta positiva, partiu contra Ben-Hadade e, conforme predisse o profeta Eliseu, obteve três grandes vitórias, e todas pro­porcionaram a recuperação de territórios perdidos. Se nele houvesse mais fé em Yahweh, teria destruído completamente os arameus.

Não há especificação das cidades recuperadas, exceto que haviam sido conquistadas por Ben-Hadade na época de Jeoacaz, pai de Jeoás (2 Rs 13.25). Este é um dado importante, porque Ben-Hadade, que iniciou seu reinado em 801, decidiu continuar a política de agressão contra Israel. Embora Yahweh tivesse suscitado um libertador, nos anos entre 805 e 796, o rei assírio Adade-Nirari teve de retornar para sua terra a fim de resolver al­guns problemas internos, o que deixou Israel novamente indefeso. Ben- Hadade aproveitou o afastamento do rei assírio para tomar alguns territó­rios israelitas. Por isso não é de espantar que o rei Jeoás buscasse a orien­tação de Deus.

Amazias, rei de Judá

Outra indicação de que as campanhas de Jeoás contra Damasco ocorre­ram no princípio de seu reinado é que, depois de Amazias tornar-se rei de Judá, Jeoás teve pouco tempo para tratar com os arameus, pois agora Judá tornara-se sua maior preocupação. Amazias, o filho de Joás, chegou ao trono de Davi em 796 e reinou até 767, vivendo quinze anos a mais do que Jeoás. No geral, é mencionado de forma favorável, embora não tenha se­guido Yahweh de todo seu coração.

Ao estabelecer seu domínio com firmeza, Amazias passou a punir aque­les que haviam assassinado seu pai. Depois, reorganizou e reconstruiu a

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máquina militar de Judá, com objetivo de não apenas proteger o reino das ameaças ao redor — Israel, que na ocasião estava melhor equipado e pre­parado — mas também readquirir os territórios perdidos nos cinqüenta anos anteriores.

As relações com Israel ainda não haviam se deteriorado ao ponto de haver uma guerra aberta, pois Amazias empregou em seu exército cem mil merce­nários israelitas. Segundo o cronista, esta atitude não foi sábia, pois Israel já havia sido rejeitado por Yahweh e não poderia ajudar o seu povo. Judá teria de confiar no Senhor, não na força humana. Ironicamente, quando o próprio Amazias decidiu não levar consigo os homens de Israel, sua atitude disparou um conflito de grandes proporções entre os dois reinos (2 Cr 25.5-13).

O primeiro objetivo de Amazias, quando saiu com um imenso exército, era recuperar a província de Edom, pertencente a Judá. Nenhuma menção de Edom é feita desde o reinado de Jeorão, cinqüenta anos antes, quando se rebelou contra Judá, tornando-se uma nação independente.27 Sem dú­vida permaneceu nessa condição até os anos de Amazias, de maneira que o empreendimento de Amazias não era tanto uma reação à recente seces­são edomita quanto era uma tentativa de recuperar a antiga glória de Judá.

De qualquer forma, os exércitos de Judá encontraram as forças defensi­vas de Edom no vale do Sal (Vadi el-Milh), entre Berseba e Arade, e vence­ram sobejamente os edomitas. Com indescritível brutalidade, Amazias matou dez mil homens de Edom na peleja, e outros dez mil jogou de um despenhadeiro para que morressem nas rochas embaixo. Então foi a Sela, a cidade-capital dos edomitas e a colocou sob o domínio de Judá nova­mente (2 Rs 14.7; 2 Cr 25.11-12).

O encontro triunfante com os edomitas pode ter concedido ao rei Amazias um certo prestígio, mas em nada contribuiu para estabelecer uma posição espiritual como líder do povo, pois dentre os espólios da guerra estavam os ídolos dos edomitas, que ele adorou em Jerusalém. Apesar do apelo de um homem de Deus, Amazias continuou a sua desenfreada de­sobediência, de forma que um profeta anônimo predisse a trágica e vio­lenta morte do rei (2 Cr 25.14-16).

Enquanto isso, os mercenários israelitas que haviam sido dispensa­dos do serviço, voltaram para sua terra enfurecidos, matando, ferindo e saqueando por onde passavam. O alvo principal de sua fúria, segundo o cronista, foram as "cidades de Judá, desde Samaria, até Bete-Horom"(2

27 Evidentemente a revolta contra Judá no tempo de Jeorão (2 Rs 8.20-22) permitiu a Edom tornar-se independente até ser reconquistado por Amazias. Ver B. Oded, "Neighbors on the East," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 255.

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Cr 25.13). Esta informação é surpreendente, pois revela que existiam co­lônias de Judá espalhadas em alguns locais no reino do norte .28 Talvez essas cidades fossem aquelas que Asa capturara; também poderiam ser as cidades para as quais Josafá enviou sacerdotes e levitas como mestres (ver 2 Cr 15.8; 17.2; 19.4).

Obviamente Amazias atribuiu esse massacre a Jeoás, desafiando-o em seguida à guerra (2 Cr 25.17; cf. 21).29 Sua recente conquista de Edom deve ter servido como fator de encorajamento para se voltar contra um adver­sário mais forte do que ele. Mas Jeoás também estava confiante, pois por essa época havia conseguido derrotar Ben-Hadade, de Damasco, e recu­perar as cidades perdidas por seu pai. Tudo estava preparado para uma confrontação entre os dois reis, um conflito que poderia definir a reunificação de ambos os reinos sob o domínio de um ou de outro.

A resposta de Jeoás foi enviada em forma de parábola, na qual ele se comparava a um grande cedro e o rei de Judá um cardo que estava no Líbano (2 Cr 25.18,19). O cardo exigia do cedro que lhe entregasse sua filha para ser-lhe esposa, mas os animais do campo passaram por cima do cardo, e destruíram-no. Dessa forma, Jeoás avisou a Amazias que sua vitória contra Edom não deveria dar-lhe falsa esperança de conquistar o poderoso Israel.

Este aviso não fez bem ao rei Amazias, que imediatamente conduziu seu exército à batalha em Bete-Semes. O cronista enfatiza que a pertiná­cia do rei de Judá procedia de Yahweh, pois o Senhor tencionava punir Amazias por sua prática idólatra (2 Cr 25.20). Judá não apenas caiu em desgraça, como também Amazias foi levado prisioneiro e forçado a vol­tar para Jerusalém na companhia de Jeoás. Lá ele viu com os próprios olhos a destruição da muralha de sua cidade e o saque dos tesouros acu­mulados no templo de Yahweh.

Amazias quase perdeu sua vida na ocasião. Na verdade, o porquê de Jeoás ter-lhe poupado é um mistério, pois evidentemente o levou a Sama-

28 Alguns estudiosos erram exatamente aqui. H. G. M. Williamson, por exemplo, afirma que se deve ler Migrom, em vez de Samaria (1 and 2 Chronicles, New Century Bible Commentary [Grand Rapids: Eerdmans, 1982], p. 330). Yeivin, "Divided Kingdom," em World History ofthe Jezvish People, vol. 4, parte 1, p. 159, propõe que "de Samaria" está se referindo ao ponto de origem dos que atacavam, ou seja, às tropas que vinham de Sa­maria para invadir as cidades de Judá.

29 Yeivin, "Divided Kingdom," em World History ofthe Jezvish People, vol. 4, parte 1, p. 160, é da opinião que isso não passou de um convite a um entendimento para estreitamento das relações comerciais; porém, o uso do mesmo termo ("viram-se cara a cara") em 2 Reis 14.11 e 2 Crônicas 25.21 claramente desfaz essa teoria.

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ria como prisioneiro (2 Rs 14.13,14). A resposta pode estar relacionada à data do acontecimento. Tanto o autor do livro dos Reis quanto o cronista enfatizam que Amazias viveu quinze anos a mais do que Jeoás (2 Rs 14.17; 2 Cr 25.25). Talvez seja uma sugestão de que a libertação de Amazias do controle israelita deve-se à morte de seu algoz. Assim, a batalha de Bete- Semes provavelmente ocorreu em 783 ou 782.30

Os últimos quinze anos de Amazias não foram mais tranqüilos em con­seqüência da morte de Jeoás, pois o próximo rei de Israel, Jeroboão II, tornou-se mais poderoso e ameaçador. Além disso, uma conspiração esta­va sendo trabalhada em Judá para remover Amazias do trono. Em 767, os conspiradores tentaram consumar o fato, e o rei precisou escapar de Jeru­salém. Ele dirigiu-se para Laquis, mas foi alcançado naquele local e assas­sinado. O fato não deve ser interpretado como uma ação contra a dinastia real de Davi, pois seu próprio filho, Azarias (Uzias), co-regente de Judá já por mais de vinte anos, assumiu o trono em seu lugar. A teoria mais pro­vável é que a conspiração tenha sido motivada por um desejo de restaurar a pura adoração a Yahweh (2 Cr 25.27).31

Jeroboão II, rei de Israel

A cronologia do período

As mortes de Jeoás e Amazias e suas respectivas sucessões levantam alguns problemas cronológicos, que precisam rapidamente ser trabalha­dos neste momento. Jeoás morreu em 782, e nesse tempo seu filho Jeroboão II começou a reinar. Jeroboão, por sua vez, morreu em 753, mas o autor do livro dos Reis informa que ele reinou por quarenta e um anos (2 Rs 14.23). A melhor solução para o problema dos doze anos a mais seria estabelecer uma co-regência entre Jeroboão e Jeoás, de forma que os quarenta e um anos houvessem iniciado em 793.32 Mas não há nas Escrituras qualquer

30 Outra possibilidade a ser considerada é que Uzias foi convocado a suceder Amazias porque este foi levado em cativeiro pelo rei Jeoás. Nesse caso, aquela batalha (Bete- Semes) teria de ser posicionada em cerca de 792, ano em que Uzias subiu ao trono. Thiele sugere que os "quinze anos" a mais referem-se ao período entre o final do cati­veiro de Amazias (que terminou quando Jeoás morreu, em 782) e sua própria morte em 767 (Mysterious Numbers, pp. 86-87). Uzias teria então servido sozinho como rei durante dez anos, enquanto Amazias estava em cativeiro.

31 Myers, II Chronicles, p. 146.32 Edwin R. Thiele, "Coregencies and Overlapping Reigns Among the Hebrew Kings,"

JBL 93 (1974): 192-93.

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apoio a essa hipótese, embora já tenhamos visto esse tipo de estrutura em Judá, além de ter sido uma prática muito comum no antigo do Oriente Médio. Também os reinados de Jeoacaz e Jeoás de Israel foram marcados por perigos internos e externos que, sem dúvida, imprimiram uma marca de fragilidade, gerando a necessidade de garantir a sucessão da dinastia. Outros fatores como a doença também poderiam motivar o estabelecimento da co-regência.

Se uma sobreposição de doze anos entre Jeoás e Jeroboão é problemáti­ca, o que dizer então dos vinte e cinco anos compartilhados por Amazias, de Judá, e seu filho Uzias? Os estudiosos estão unidos em aceitar a data de 740 para a morte de Uzias, de forma que os cinqüenta e dois anos mencio­nados no livro dos Reis e das Crônicas requerem que a data de ascensão seja fixada em 792, apenas quatro anos depois da coroação de Amazias. Visto que Amazias morreu em 767, Uzias foi seu co-regente por vinte e cinco anos. Embora isto pareça improvável, certamente não é impossível e, na verdade, é a melhor maneira de acomodar toda a evidência.33 Amazias estava com vinte e cinco anos de idade quando começou a reinar, em 796 (2 Rs 14.2). Em 792, ano em que a co-regência de Uzias se iniciou, Amazias estava com cerca de vinte e nove ou trinta anos. Uzias tinha dezesseis anos nessa ocasião,34 de modo que Amazias tinha apenas catorze anos quando seu filho nasceu. Sem dúvida, é uma idade muito tenra para ser pai de um filho, mas no contexto dos casamentos do mundo antigo, não seria tido por inaudito.35

Assim os dados cronológicos a respeito dos reinados de Jeroboão II e Uzias podem ser organizados quando postulam os uma longa co- regência com seus pais. As exigências políticas e m ilitares da prim ei­ra m etade do século oito tornaram tais decisões razoáveis. Também deve-se observar que Jeroboão e U zias foram contem porâneos na m aior parte de seus reinados, o prim eiro reinando de 793 a 753, e o segundo de 792 a 740.

A glória de Israel

Nos textos históricos, os relatos acerca do reinado de Jeroboão são esparsos, mas os profetas do período têm muito a dizer sobre as condições

33 Ibid., p. 193.34 Esse é o significado de 2 Reis 14.21. Ver Thiele, Mysterious Numbers, pp. 83-84. Pela maior

parte de seu reinado, então, Amazias foi co-regente com seu filho.35 Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, p. 29.

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existentes em seu governo. O julgamento proferido é que ele foi mau peran­te os olhos do Senhor. Entretanto, estabeleceu uma liderança política abso­luta. Seguindo os passos de seu pai Jeoás, a quem presumivelmente ajudou em suas campanhas militares, Jeroboão foi capaz não apenas de recuperar os territórios de Israel sob o domínio de Damasco por muitos anos, mas também de trazer todo o sul de Aram e a Transjordânia de volta ao poderio de Israel (2 Rs 14.25-28). Não houve outro reino que, desde os tempos de Salomão, tenha conseguido dominar sobre tamanha extensão territorial.

Mas isso não aconteceu em razão da piedade de Jeroboão; pelo contrá­rio, foi apesar de sua iniqüidade. Na verdade, como o profeta Jonas pro­clamou, a razão da libertação de Israel era que Yahweh permanecia mise­ricordioso com o seu povo e lembrava-se de seu pedido para não os des­truir (2 Rs 14.25-27). Viria ainda o dia do julgamento de Israel, mas esse não era o tempo. Agora, era momento de alívio e até de favor. Talvez a recuperação do reino conduzisse a nação ao zelo pela aliança.

As incursões de Jeroboão só foram possíveis porque a Assíria encontra- va-se em más condições no momento. O poderoso império chegara ao pon­to mais baixo, de forma que não podia intervir em assuntos internacionais. Quanto a Ben-Hadade II de Damasco, este foi gravemente derrotado e hu­milhado por Zaquir de Amate, em cerca de 773.36 De fato, é possível que tenha morrido nessa batalha. Ele já havia perdido algumas cidades para Jeoás, de Israel, e, na ocasião de sua morte, deixou a cidade de Damasco praticamente em falência. Jeroboão empreendeu seu programa de restaura­ção do império de Israel ou no intervalo entre a morte de Jeoás (782) e Ben- Hadade II (ca. 773) ou pouco tempo depois. A cidade de Damasco foi inclu­ída em suas conquistas, embora sua derrota para Israel não esteja registrada em nenhuma fonte extra-bíblica; por isso é menos considerada pela maioria dos estudiosos.37 Muito provavelmente Damasco foi tomada por Jeroboão durante o remado do sucessor de Ben-Hadade, cujo nome infelizmente não está registrado na história. O próximo monarca de Damasco conhecido cha- mava-se Rezim, que chegou ao poder em cerca de 750 e que, como aconte­ceu ao rei anterior, morreu junto com sua cidade em 732.38 Uma outra pos­

36 Maiores informações quanto às datas sugeridas, ver Unger, Israel and the Aramaeans, pp. 85-89. Uma tradução e comentário da esteia de Zakir podem ser achados em D. Winton Thomas, editor, Documents from Old Testament Times (London: Thomas Nelson, 1958), pp. 242-50.

37 Oded, "Neighbors on the East," em World History ofthe Jeivish People, vol. 4, parte 1, p. 268, deixa aberta essa possibilidade, citando a escavação de 'En Gev e o tratado de Sfire como evidência.

38 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 95.

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sibilidade é que não há informação de um rei em Damasco entre os anos de 773 e 750 porque não se levantou neste período um governante nativo.39 A conquista de Jeroboão da área norte de Hamate deve ter sido tão decisiva que Damasco nem mesmo pôde estabelecer-se como estado tributário, in­corporando-se d iretam ente ao im pério de Jeroboão. Não se pode desconsiderar que o reaparecimento de um rei arameu, na pessoa de Rezím (750), coincidiu exatamente com a época da morte de Jeroboão e seu filho Zacarias, em 753 — os últimos membros da poderosa dinastia de Jeú.

Uzias, rei de Judá

O reino de Judá também experimentava um grande desenvolvimento sem precedentes, tudo graças à fidelidade e piedade do rei Uzias. Durante a co-regência com seu pai, Amazias, Uzias aprendeu muito sobre como lidar com os negócios do Estado. Tanto o autor do livro dos Reis como o cronista apontam que Uzias, diferente de seu pai, era um rei querido do povo. Uma normal sucessão dinástica pela morte de um rei não seria des­crita com estas palavras: "Então todo o povo tomou a Uzias... e o fizeram rei" (2 Cr 26.1). Está claro que a sua aclamação ocorreu enquanto seu pai ainda vivia e reinava. Em outras palavras, o povo forçou uma co-regência sobre a nação .40

Pode-se encontrar apoio para a teoria de uma co-regência em duas ou­tras declarações. Primeiro, ambas as fontes históricas enfatizam o que, de outra maneira, parece apenas ser de interesse secundário — Uzias recons­truiu a cidade de Elá e devolveu-a para Judá depois da morte de seu pai (2 Rs 14.22; 2 Cr 26.2). E nítida a impressão de que a atitude de Uzias foi tomada logo que seu pai morreu, embora mesmo durante seu mandato como co-regente viesse ponderando o assunto. De outra forma, a menção de que isso ocorreu após a morte de Amazias é tão auto-evidente que se torna sem sentido.

39 T.C. Mitchel faz referência a um certo Hadianu (= Hezion) do período que está registra­do apenas em uma inscrição de Salmanaser IV, mas que não foi publicada ("Israel and Judah from Jehu Until the Period of Assyrian Domination [841-c. 750 B.C.]," em CAH 3.1, p. 510). Essa é a conhecida esteia de Pazarcik. A identificação de Hadianu como um rei de Damasco, porém, é incerta.

40 Yeivin ("Divided Kingdom," em World History ofthe Jezvish People, vol. 4, parte 1, p. 161) sugere que Amazias foi verdadeiramente deposto em favor de Uzias, mas não há razão para se pensar que o caso chegou a esse extremo, pois o tempo de duração do reinado de Amazias vai até 767, ao passo que a co-regência de Uzias começou em 792.

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Ainda mais significativo é a declaração do cronista de que Zacarias ins­truiu o jovem Uzias no temor de Deus (2 Cr 26.5). Na ausência de qualquer outra identificação conclui-se que esse Zacarias não é outro senão o filho de Jeoiada, que foi mencionado em conexão com a idolatria de Joás. É preciso

. lembrar que esse formidável profeta repreendeu o rei por permitir a adora­ção de ídolos em Jerusalém, e por isso Zacarias foi executado (2 Cr 24.17- 22). A partir daí uma série de acontecimentos culminou na morte de Joás em 796. O martírio de Zacarias aconteceu apenas um ano antes. Portanto, para que Uzias fosse instruído por esse sacerdote, seria necessário estar em uma idade própria para o ensino, no máximo em 797. Esta data acomoda-se per­feitamente à teoria de uma co-regência em 792, quando Uzias estava com dezesseis anos. Nesse caso, ele estaria com onze anos em 797, uma idade já apropriada para buscar a Deus, nos dias de Zacarias.

O reino de Uzias é descrito de forma resumida em 2 Reis, mas bastante gloriosa pelo cronista. O interesse de Uzias em questões m ilitares é enfatizado da seguinte maneira: reorganizou e reestruturou o exército, até que o efetivo subiu para mais de trezentos mil homens bem treinados. Deu-lhes armamento bastante sofisticado, como, por exemplo, máquinas para cerco, que permitiam que as muralhas do adversário fossem escala­das, e plataformas de onde seus homens pudessem arremessar munição contra os inimigos, as catapultas.

Assim Uzias lançou-se contra os filisteus, quebrando as muralhas de Gate, Jabne (Yebna) e Asdode, e construindo cidades próximas a Asdode e outros lugares que oferecessem posições defensivas de seu reino (2 Cr26.6). Depois voltou-se contra os árabes da região de Gur Baal (Tel Ghurr), entre Berseba e A rade,41 e submeteu-os. Os meunitas que viviam no Arabá, nas proximidades do mar Morto, também capitularam. Finalmen­te, Uzias prevaleceu sobre os amonitas e transformou-os em um estado cliente de Judá .42 Aparentemente isto não era definitivo, pois Jotão, filho de Uzias, teve de repetir a subjugação de Amom, pelo menos uma vez (2 Cr 27.5). O resultado de todo esse envolvimento foi o grandioso fortale­cimento que a nação experimentou, cujo rei ganhou respeito e admira­ção em lugares muito distantes.

Mas Uzias não foi apenas um "destruidor"; também foi um grande construtor, edificando instalações para defesa no interior e ao redor de

41 Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a ed. (New York: Oxford University Press, 1984), pp. 69,130.

4: Oded, "Neighbors on the East," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 262.

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Jerusalém. Sua principal realização foi a construção de torres e a escava­ção de cisternas no deserto e no Sefelá, um feito da engenharia e tecnologia agrícola que serviria como um modelo para as gerações futuras, o que inclui os nabateus e os israelitas de nossa era.43 A observação do cronista de que Uzias "era amigo da agricultura" (2 Cr 26.10) é um forte indício dos motivos que o impeliram a desenvolver projetos tão criativos.

Tragicamente, os sucessos de Uzias nos negócios militares contribuíram, por outro lado, para o seu fracasso, pois o historiador relata: "...exaltou-se o seu coração até se corromper" (2 Cr 26.16). Desconsiderando totalmente a lei de Moisés (Nm 16.40), Uzias arrogou-se o direito e o privilégio de ofere­cer incenso no templo de Yahweh, uma tarefa exclusiva dos sacerdotes. Na ocasião o sacerdote Azarias o defrontou, ordenando-lhe que saísse do recin­to sagrado. Ao recusar-se a obedecer ao sacerdote, o juízo de Deus veio so­bre ele através de uma doença de pele. Uzias ficaria leproso pelo resto de seus dias, vivendo isolado da comunidade, passando o governo ao seu filho Jotão. Mesmo na ocasião de sua morte, seu corpo não pôde ser enterrado na sepultura dos reis de Judá, mas em um campo ao lado, um silencioso memorial pelo seu desrespeito às coisas santas de Deus.

E importante enfatizar aqui que o pecado de Uzias não consistiu pro­priamente no oferecimento de incenso, mas em fazê-lo no templo de Jeru­salém, sobre o altar do incenso. Este privilégio estava reservado aos sacer­dotes da linhagem aarônica. Como herdeiro de Davi — o sacerdote segun­do a ordem de Melquisedeque — Uzias de fato obtinha as prerrogativas sacerdotais. Mas a função como sacerdote messiânico não poderia con­fundir-se com as funções específicas dos sacerdotes aarônicos. Ainda que as regras referentes ao sacerdócio messiânico não estejam registradas no Antigo Testamento, certamente o oferecimento de incenso na casa do Se­nhor era uma exclusividade aarônica.44

O ministério dos profetas

Nossa discussão está quase chegando ao fim do período de cem anos iniciado com Jeú, o qual culminou na violenta morte de seu quarto suces­

43 Eugerte H. Merrill, "Agriculture in the N egev: An Exercise in Possibilitism," NEASB 9(1977): 25-35; Lawrence E. Stager, "Farming in the Judean Desert During the Iron Age,"BASOR 221 (1976): 145-58; Yohanan Aharoni, "The Negeb and the Southern Borders," em World History ofthe Jeiuish People, vol. 4, parte 1, p. 296.

44 Conforme de Vaux tem demonstrado, os reis tinham o direito e agiram como sacerdotes em ocasiões especiais, mas esse privilégio não se estendia às ações consideradas de "ex­clusividade sacerdotal" (Ancient Israel, vol. 1, p. 114).

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sor em Israel, Zacarias, e no patético fim de Uzias, o governante rival do sul, apenas treze anos mais tarde. Mas toda a história ainda não foi conta­da. Através dos escritos dos profetas contemporâneos que conheciam es­ses monarcas e eram cidadãos de seus reinos, é possível aprender a respei­to das forças sociais e econômicas, políticas e religiosas que se combina­vam para modelar a história de ambas as monarquias.

Organização dos profetas

Já se notou que os profetas e videntes do antigo Israel exerceram um papel bastante significativo na vida da nação. O profeta Samuel é um dos mais ilustres, em razão do seu ministério de mediação entre Yahweh e o povo desde bem cedo em sua vida, e também do papel de embaixador de Deus para estabelecer o reino. Mas o seu grande legado é a escola de pro­fetas que aparentemente fundou, e cujos membros, tais como Natã e Gade, eventualmente apareciam para anunciar a palavra de Deus aos reis sob quem serviam.

Embora seja difícil saber até que ponto os profetas foram organizados formalmente sob Samuel, está claro que apareciam em grupos ou bandos, e participavam de um estilo de vida comunitário. Entretanto, grande par­te deles parecia viver isolada, agindo conforme a orientação do Espírito de Deus. Eram eles membros de uma companhia de profetas, ou repudia­vam esta idéia por associá-la às instituições pagãs? Como estavam eles ligados ao culto e ao sacerdócio? Eram elementos que constituíam a hie­rarquia religiosa estabelecida, ou viam-se a si mesmos como verdadeiros adversários desta? Será que possuíam alguma ligação com o palácio? Pro­clamavam a Palavra apenas para agradar ao rei? Se não, como eram vistos pelo rei?

O ofício de profeta

Estas e muitas outras questões importantes têm sido examinadas em vários tratados de teologia que discorrem sobre o papel do profeta.45 Po­rém, para o propósito desta obra, é necessário apenas reconhecer que os verdadeiros profetas de Deus foram levantados por Ele para servir como um tipo de terceira ordem, juntamente com o sacerdote e o rei. Seu papel

45 Veja, por exemplo, Willis J. Beecher, The Prophets and the Promise (Grand Rapids: Baker, 1963 reedição); Joseph Blenkinsopp, A History o f Prophecy in Israel (Philadelphia: Westminster, 1983); C. Hassel Bullock, An lntroduction to the Old Testament Prophetic Books (Chicago: Moody, 1986).

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era de origem mais divina e importante do que o rei e o sacerdote; não era. entretanto, "oficializado" no sentido em que eram os outros. De fato, ao invés de transitar nos círculos da política e da religião estabelecida, os profetas agiam por fora, como instrumentos de correção ou conselheiros.’7 Mesmo assim não eram vistos como adversários do templo ou do Estado, mas como porta-vozes de Deus, chamados para falar palavras de bênçãos, encorajamento, conselho, repreensão ou juízo para o povo, sacerdote e rei, conforme a necessidade. Em nenhuma lugar do Antigo Testamento os pro­fetas olharam com desrespeito ou desaprovação para o ofício dos reis e dos sacerdotes.47 Ao contrário, eles sabiam diferenciar bem os ofícios ins­tituídos por Deus e as pessoas que ocupavam esses cargos. Houve sacer­dotes e reis justos e perversos que receberam o devido tratamento dos profetas. Do mesmo modo havia profetas justos e injustos. Os ofícios nun­ca eram desprezados em razão do mau testemunho de alguns.

Todas as sociedades do mundo antigo tinham os seus profetas, mas os de Israel destacavam-se em vários sentidos.48 Em primeiro lugar, eles ti­nham a total consciência de que eram chamados por Deus e, se de fato eram servos de Yahweh, adaptavam-se aos estritos critérios necessários à função, a fim de provar a sua credibilidade e genuinidade. Agiam em nome de Yahweh, e todas as palavras proféticas cumpriam-se totalmente no tem­po e momento histórico preditos.

Além disso, os verdadeiros profetas foram instrumentos de Deus, e não agiam como os adivinhadores pagãos, que praticavam as artes mágicas em busca de satisfazer suas divindades, manipulando-as indiretamente em favor de seus planos e propósitos. Os profetas de Yahweh não conheci­am a mente de seu Deus, a menos que Ele decidisse revelar-se mediante sonhos, visão ou outra maneira. Nem podiam mudar os propósitos de Deus através de encantamentos ou outros meios mecânicos. Entretanto, podiam orar com perseverança e induzir outros a fazer o mesmo; e em res­posta poderia acontecer de Deus mudar as suas intenções. Mas tal resposta nunca estava baseava em qualquer habilidade ou simpatia do profeta. Pelo contrário, ela procedia da misericórdia e graça de Deus, e era concedida exclusivamente para a glória de seu santo nome e para o bem de seu povo.

46 G. Ernest Wright e Reginald H. Fuller, The Book o f the Acts o f God (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1960), pp. 149-51.

47 Walther Eichrodt, Theology ofthe Old Testament (Philadelphia: Westminster, 1961), vol. 1, pp. 364-69.

48 Walther Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, traduzido por David E. Green (Atlanta: John Knox, 1978), pp. 99-107.

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Finalmente, o verdadeiro profeta, associado ou não a uma compa­nhia de profetas, era o grande responsável por seu ministério diante de Deus. E esta é a grande diferença entre os profissionais que serviam nas culturas ao redor de Israel e os profetas de Yahweh. Os profetas pagãos vendiam seus serviços para aqueles que melhor os assalariassem, bus­cando sempre uma palavra de seus deuses favorável a seu cliente. Os profetas de Israel, por outro lado, faziam mais do que desvendar os mis­térios dos céus e da terra. Eles foram além da interpretação de sinais e maravilhas, e trataram de questões referentes à moralidade, justiça e ao reino de Deus. Este é o motivo de os oráculos dos profetas não serem apenas proféticos, mas fundamentalmente proclamações. Os profetas realmente falaram de temas em um futuro próximo ou distante, mas nunca perderam contato com o mundo presente em que viviam. Confor­me a necessidade, falavam à sua geração, fosse uma palavra de correção ou de encorajamento. Somente em Israel havia esse profetismo, pois ape­nas nessa nação os profetas eram instrumentos sem interesse próprio que serviam como a boca do único Deus.

H istória do profetism o

Tal movimento iniciou com Samuel e produziu uma linhagem de indi­víduos, cujos nomes já foram mencionados em nossa revisão histórica; homens de Deus como o próprio Samuel, Natã, Gade, Aías, Jeú filho de Hanani, e Zacarias. Além destes há uma plêiade de outros que perfaz a história sem terem seus nomes mencionados. Muitos desses estavam as­sociados à escola de profetas estabelecida por Samuel, e não é possível saber se ela permaneceu em vigor, e nos mesmos moldes, após a morte do profeta. De qualquer forma, a escola serviu como uma instituição de ensi­no e referencial para movimentos semelhantes ao que se vê em Elias e Eliseu, particularmente na vida deste último, em cujos dias há freqüente­mente a expressão "filhos dos profetas" (2 Rs 2.3,5,7; 4.1,38; 5.22, KJV).49

Essa comunidade de profetas teve seu início quando Elias ungiu Eliseu em cerca de 855 a.C. Eliseu tornou-se discípulo e aprendeu com seu mes­tre para, mais tarde, substituí-lo no ministério. Em algum ponto, outros jovens profetas também se associaram a Elias e Eliseu e, quando Elias foi

4“ James G. Williams entende corretamente a frase sugerindo a liderança de uma figura maior (e.g.; Samuel, Elias ou Eliseu), que comandava uma fraternidade de profetas ("The Prophetic 'Father': A Brief Explana tion of theTerm 'Sons ofthe Prophets,' " JBL 85 [1966]: 344-48).

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levado para o céu, eles já existiam como uma comunidade de número con­siderável, cuja base de ação eram as cidades de Betei e Jericó. Não há dú­vida de que esses homens viviam em um regime de internato, bem próxi­mo ao sistema monástico. Isto é evidente pelo fato de se multiplicarem em Jericó a ponto de o lugar tornar-se pequeno. Então Eliseu os encorajou a construir alojamentos apropriados (2 Rs 6.1,2).

Antes de Elias ser transladado para o céu, foi considerado em sua co­munidade como o grande mestre. A transferência de seu manto para o discípulo Eliseu significava indubitavelmente que este agora substituía o mestre; e prontamente foi reconhecido pelos jovens profetas. O termo que utilizavam para referir-se aos seus mentores era "pai", o que esclarece não apenas a forma como se sentiam a respeito de seus líderes, mas também a significação da frase "filhos dos profetas". Embora esta frase e até mesmo a existência de uma comunidade não possam ser provadas em outra parte (mesmo imediatamente após a morte de Eliseu),50 o profeta Amós, vinte e cinco anos depois da morte de Eliseu, negou qualquer vínculo com o profetismo formal, afirmando ao rei Jeroboão II que não fora treinado para ser profeta e nem era "filho de profeta" (Am 7.14). Esta não era uma crítica à ordem profética, mas simplesmente uma declaração de que não era afi­liado ao grupo.

Geralmente se faz uma distinção entre os profetas canônicos que escre­veram suas profecias e aqueles que, como Elias e Eliseu, não deixaram nenhum registro (com exceção da breve carta de Elias em 2 Cr 21.12-15). Algumas vezes conclui-se, baseado nos escritos preservados, que os pro­fetas canônicos foram de alguma forma superiores ou mais teológicos que os demais.51 Mas isso é uma proposição sem base, pois dois dos maiores profetas — Moisés e Samuel — não são contados entre os canônicos, e mesmo assim criaram obras literárias quase incomparáveis tanto pelo es­tilo de composição quanto pelos aspectos teológicos envolvidos.

A diferença reside no fato de que Deus, para sua própria glória, es­colheu preservar os escritos dos profetas que vieram depois de Elias e, por razões que somente Ele conhece, não incluiu em seu cânon Natã, Gade e todos os demais profetas dos primórdios de Israel. Além disso,

50 J.R. Porter, de fato, vê os "filhos dos profetas" como uma comunidade ad hoc, que surgiucomo uma reação à dinastia de Omri, especialmente sob Eliseu, ficando restrita apenas àquele período. JTS 32 [1981]: 423-29). Não há evidência de que essascomunidades de profetas tivessem sido tão restritas a esse ponto.

51 W. O. E. Oesterley e Theodore H. Robinson, Hebrew Religion: Its Origin and Development, 2a ed. (New York: Macmillan, 1937), pp. 222-23.

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é óbvio que nem tudo que os profetas escreveram tornou-se canoniza­do. Também não é possível saber por que o processo seletivo que de­term inou a profecia canônica iniciou com Obadias e term inou com M alaquias. De qualquer forma, essa é uma questão irrelevante para este estudo. Tudo o que se pode saber no texto bíblico é que o Espírito do Senhor controlou tanto a seleção dos profetas quanto a composição de seus textos.

Os escritos proféticos mais antigos

Obadias

Os quatro primeiros profetas canônicos — Obadias, Joel, Amós e Jonas— escreveram suas profecias durante o período que estamos tratando (840- 740). A melhor análise crítica desse pequenino livro de Obadias permite estabelecer a data de sua composição na metade do século nove ou quase em seu final, de forma que (juntamente com o profeta Joel) ele se torna a mais antiga produção dos escritos proféticos.52 Infelizmente, nada é co­nhecido acerca do autor, nem ele menciona eventos ou pessoas específicas que conduzam a datas seguras. Sua mensagem trata de Edom, que em sua arrogância e auto-suficiência recusou auxílio a Judá quando Jerusalém es­tava sob ataque. Embora alguns acontecimentos históricos até possam en­caixar-se na descrição, também é possível concluir que o profeta viveu nos dias de Jeorão, rei de Judá, quando os filisteus e árabes atacaram Jeru­salém e saquearam o palácio. Na ocasião, levaram a família real, exceto Acazias, o filho mais novo de Jeorão (2 Cr 21.16,17). A razão por que este é um período plausível para Obadias é que Jeorão anteriormente invadira Edom, na tentativa de reprimir uma rebelião em andamento contra Judá. Os esforços de Jeorão fracassaram, de forma que toda a arrogância descri­ta por Obadias é fruto da independência conquistada por Edom (2 Rs 8 .20,21).

Quando Jerusalém foi sitiada e atacada por seus inimigos, os edomitas tornaram-se não apenas indiferentes aos sofrimentos da cidade, como tam­bém uniram-se aos exércitos que passaram a pilhar seus tesouros, regozi- jando-se juntamente com os adversários da humilhação de Judá e Jerusa­lém. Mas o pecado maior, diz Obadias, era que Judá e Edom eram irmãos; os edomitas tinham de ajudá-los nessa hora. O trágico resultado pelo or­gulho de Edom é que ele seria destruído no dia do Senhor, e seu povo se tornaria cativo.

52 Gleason L. Archer, Jr., A survey ofOld Testament lntroduction (Chicago: Moody, 1964), p. 288.

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Joel

A profecia de Joel fala de um tempo em que houve uma severa praga e fome quase que sem precedentes na terra santa (1.2-20), seguidas de uma terrível invasão a Judá por numerosos exércitos do norte (2.1-10). Deus teria misericórdia de seu povo e desviaria os seus inimigos, fazendo-os cair em ruína (2.12-20). Então a fome também terminaria e a terra voltaria a produzir e ter prosperidade (2.21-27).

Tanto as conquistas militares quanto a fome foram, por algumas vezes, a fonte de desastre e sofrimento para Israel e Judá, mas essa justaposição descrita por Joel não poderia ser comum. Tal seqüência também foi vista nos dias de Eliseu. Deve ser lembrado que o profeta intercedeu diante do rei Jorão em favor de uma mulher que fugira para a Filístia, a fim de esca­par da fome que durou sete anos. Ao retornar, a mulher constatou que sua casa e propriedades haviam sido invadidas, então buscou o auxílio do profeta. O rei exigiu que todos os seus bens lhe fossem devolvidos (2 Rs 8.1-6). Parece claro que a fome ocorreu próximo ao início do reinado de Jorão, ou seja, em cerca de 852 a 845.

Também é preciso lembrar que Salmaneser III teve de enfrentar uma coalizão de reis arameus e palestinos em Carcar, em 853. Os assírios foram forçados a retirar-se por muitos anos, pois tiveram de resolver questões em seu país. Porém, em 841, ele conquistou a cidade de Damasco, gover­nada então por Hazael, e cobrou de Jeú um altíssimo tributo logo no pri­meiro ano de reinado em Israel. Não havia motivo para Salmaneser não continuar sua conquista até atingir a cidade de Samaria, culminando por fim em Jerusalém. Jeorão reinava na época em Judá. Em razão dos proble­mas enfrentados, tal como a rebelião dos edomitas, Jeorão não podia ofe­recer uma séria resistência à superioridade dos exércitos assírios.

Por que Salmaneser não continuou sua campanha, uma vez que o suces­so estava aparentemente garantido? Para qualquer um que atenta para o fato de que a história em análise final cumpre o divino propósito, a resposta é clara. O Senhor Deus de Judá graciosamente interferiu na ocasião, fazen­do o poderoso exército do norte voltar, além de pôr um fim à calamidade da praga (2 Cr 21.7). Em nossa opinião, o profeta Joel descreve precisamente esses acontecimentos, e escreve acerca deles em algum ponto entre o início da fome (ca. 852) e a invasão dos assírios (841). Portanto, Joel teria sido um profeta contemporâneo de Obadias e de Eliseu, e todos os três teriam exer­cido ministérios importantes durante o reinado de Jeorão de Judá.53

53 Quanto a algumas formas alternativas e especialmente argumentos que tratem de uma data pós-exílica, ver Leslie C. Allen, The Books o f Joel, Obadiah, Jonah and Micah (Grand

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Amós

Amós de Tecoa, o profeta ousado e independente da corte de Jeroboão II, exerceu seu ministério nos dias de Uzias e Jeroboão (Am 1.1). Visto que nenhum outro rei é mencionado, pode-se então admitir que Amós tencio- nava dizer que seu ministério público desenvolveu-se por completo en­quanto esses dois reis reinavam, entre 767 e 753. Mais precisamente, Amós revela que a mensagem de Deus veio sobre ele "dois anos antes do terre­moto" (1.1), mas tal acontecimento não pode ser datado dogmaticamente.54

A profecia de Amós está repleta de alusões históricas, especialmente nos oráculos referentes às nações (caps. 1—2). Ele faz menção, em primeiro lu­gar, às calamidades infligidas por Hazael de Damasco contra Gileade, que ocorreram nos dias de Jeú (1.3-5). A abominável atitude de Hazael resulta­ria em sua própria destruição e na deportação de seu povo. Isso ocorreu em 732, quando Tiglate-Pileser III, da Assíria, capturou a cidade de Damasco e encerrou a sua participação na história do Antigo Testamento.

Os filisteus são julgados em conseqüência de sua colaboração com Edom contra o povo de Deus em Judá (1.6-8). Essa informação encaixa-se perfei­tamente no registro histórico até certo ponto, pois, conforme visto em co­nexão com a profecia de Obadias, Edom rebelou-se contra Judá, e os filisteus aproveitaram-se da ocasião para conquistar Jerusalém, levando cativos os membros da família real. O relato em 2 Crônicas 21 deixa assim o proble­ma, mas o profeta Amós indica que os prisioneiros foram subseqüente­mente entregues aos edomitas. Nem é preciso dizer que eles passaram maus momentos ali. Em razão desta atitude, o profeta declara que as cida­des dos filisteus sofreriam a ira de Yahweh. Sob Sargão II, da Assíria, a ira desceu sobre eles em 712.55

Amós procede indicando que a cidade de Tiro, do mesmo modo que os filisteus, entregou os prisioneiros israelitas aos edomitas (1.9,10). Essa foi uma violação direta do acordo entre Israel e Tiro, que vigorava desde os dias de Davi e Hirão. Infelizmente não é possível ligar a referência de Amós

Rapids: Eerdmans, 1976), pp. 19-25. A data mais antiga que defendemos nesta obra, é brilhantemente defendida por A. E Kirkpatrick, The Doctrine o f the Prophets (London: Macmillan, 1892), pp. 57-72.

54 Hans Walter Wolff chama a atenção para as evidências do estrato VI em Hazor de um grande terremoto que ali se verificou em 760 a.C. Essa data localiza-se exatamente na metade dos reinados de Jeroboão e Uzias, quando reinavam sozinhos. (Joel and Amos [Philadelphia: Fortress, 1977], p. 124).William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near East (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971), p. 140.

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à Tiro ao relato descrito em Reis e Crônicas, mas isso não significa que Amós não esteja sendo histórico nesse ponto. Ele simplesmente incluiu um fato histórico que, por alguma razão, não foi registrado tanto por uma quanto pela outra fonte. Como Damasco e Filístia, Tiro também seria destruída por seu pecado contra Israel. Os registros assírios estão repletos de referências à destruição ali ocorrida.

Edom é o próximo objeto da mensagem profética de juízo (1.11,12). Aqui está uma declaração geral a respeito da hostilidade de Edom contra Israel e Judá, desde os dias da travessia no deserto até o presente momen­to. Ecoando o radical alerta emitido por Obadias, Amós predisse o dia em que Edom seria reduzido a cinzas, uma calamidade que sobreveio ao rei­no nos dias de Esaradom e Assusbanipal da Assíria.56

O próximo seria Amom, ainda outra nação que compartilhou da mes­ma origem de Israel (1.13-15). A ocasião específica para a dura palavra do profeta contra Amom ocorreu quando esta nação vivia seus momentos de expansão territorial e maltratava os habitantes de Gileade. A área, situada ao ocidente de Amom, já havia sido reivindicada por eles desde os dias do juiz Jefté, ao fim do décimo segundo século. Podem ter ocorrido outras tentativas não registradas nos séculos subseqüentes para obter o território à força, de forma que a ocasião particular citada pelo profeta não pode ser determinada. Talvez ele esteja se referindo à coalizão criada entre os amonitas, moabitas e meunitas contra o rei Josafá no final de seu reino. Embora a aliança tenha sido um fracasso, poderia refletir as reais inten­ções dos amonitas de penetrar no território de Judá.57 De qualquer forma, o pronunciamento do profeta foi o mesmo: Amom sofreria uma terrível derrota. A conquista desse reino efetuou-se por Senaqueribe em 70158 ou, caso seja preferível uma data posterior, por Nabucodonosor em 582.59

Finalmente, Amós volta-se para a última das nações vizinhas, Moabe, e pronuncia as acusações e as sentenças contra o povo. A razão para a ira divina desta vez, ironicamente, foi o desrespeito de Moabe para com os ossos do rei de Edom, que foram queimados até serem reduzidos a pó.

56 John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples ofO ld Testament Times, edita­do por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1971), p. 140.

57 Oded, "Neighbors on the East," em World History o f the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 262, identifica a ocasião como uma forma dos amonitas tomarem vantagem sobre a pressão dos arameus sobre Israel e Judá no tempo de Ben-Hadade I e Hazael.

58 A. T. Olmstead, History o f Assyria (Chicago: University of Chicago Press, 1975, reedição), p. 300.

59 John Bright, A History o f Israel, 3a ed. (Philadelphia: Westminster, 1981), p. 352.

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Não é possível identificar precisamente o momento referido pelo profeta nem qual seria o real significado do julgamento. Amós não podia estar se referindo à coalizão entre Jorão de Israel e os reis de Judá e Edom para combater Mesha, rei dos moabitas, e colocá-lo sob o domínio de Israel (2 Rs 3). Quando Mesha na ocasião percebeu que sua causa estava perdida e sua vida corria sério risco, tomou seu próprio filho e o ofereceu em sacri­fício ao deus Camos como oferta queimada. Ao verem isso, diz o historia­dor, os israelitas se indignaram e terminaram ali a batalha. Porém, Amós faz referência à queima dos ossos do rei de Edom, um fato que provavel­mente aconteceu perto de seus dias.60 E possível que a ira de Deus sobre os moabitas, conforme articulado por Amós, não tenha sido apenas por­que Deus estava ultrajado pelo desrespeito aos mortos, mas também por­que tal atitude atrapalhou o propósito de Israel de conquistar os moabitas.61 Por isso, diz o profeta, Moabe seria punido, conforme aconteceu durante as muitas campanhas assírias na região.

A principal preocupação de Amós era com seu povo, em Judá, e mais ainda com o reino do norte, Israel. Ele falou sobre a violação da aliança em Judá, e o juízo que inexoravelmente cairia sobre o reino. Mais especi­ficamente, Amós descreveu as condições morais e espirituais que carac­terizavam Efraim (ou Israel) nos dias de Jeroboão II. A classe alta, que crescera em número e em prosperidade em virtude da forte liderança do rei, começou a oprimir os pobres de todas as maneiras possíveis. Vende­ram os necessitados como escravos (2.6), cobiçaram vergonhosamente as propriedades dos desamparados (2.7) e, em uma atitude de profunda hipocrisia, no ato da adoração a Yahweh, usavam as vestes que haviam arrebatado como pagamento e consumiam o vinho adquirido nas extor­sões. Tudo isso e muito mais eles fizeram, não obstante terem sido resga­tados por Yahweh da escravidão no Egito, tornando-os seu povo eleito e especial. O resultado então seria a destruição de Betei, o local de todo o sincretismo religioso, e a destruição das habitações luxuosas dos ricos e nobres (3.13-15).

Parte do julgamento já viera sob a forma de fome, seca e pragas de inse­tos, sem contar as muitas guerras e conflitos que sensivelmente debilitaram a nação (cap. 4). Amenos que Israel decidisse abandonar os maus caminhos e rejeitar definitivamente a idolatria, buscando a Yahweh com sincero arre­pendimento, o juízo viria sobre a nação sem misericórdia. Os assírios já ha­

60 Wolff, Joel and Amos, pp. 150-51.Thomas E. McComiskey, "Amos," em Expositor's Bible Commentary, vol. 7, Daniel-MinorProphets, editado por Frank E. Gaebelein (Grand Rapids: Zondervan, 1985), p. 291.

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viam conquistado Calné (Kullâni)62 no norte da Síria, talvez nas primeiras campanhas militares de Salmaneser III, e continuaram nesse processo até tomar Hamate.63 Até mesmo a Filístia já havia sofrido nas mãos dos atacan­tes estrangeiros (6.2). Quanto tempo a mais, então, os tolos moradores de Samaria esperariam para passar por esses sofrimentos? Enquanto se refes- telavam em suas camas de marfim e se empapuçavam com as melhores iguarias e vinhos da região, seus corações tornaram-se insensíveis aos cla­mores do pobre e do desamparado; por isso pagariam um grande preço.

No meio de sua missão profética para Samaria, Amós foi interceptado pelo sacerdote de Betei, Amazias, que lhe ordenou que parasse de pregar e voltasse imediatamente para Judá (7.10-13). Em resposta contra a acusa­ção de que profetizava por dinheiro, como faziam os profetas pagãos, Amós afirmou que deixara seus negócios para cumprir a comissão que Deus lhe dera. Como embaixador de Yahweh, ele anunciava o julgamento divino sobre Amazias e sua família, bem como sobre toda a terra de Israel. Eles seriam levados cativos para uma terra estranha, lá amargariam um forte sofrimento e teriam muita fome da palavra de Deus.

Contudo, um remanescente seria salvo e, no seu dia, Yahweh se levan­taria e reergueria o tabernáculo caído de Davi, tornando-o poderoso como o fora nos dias antigos (9.11). Naquele dia, disse Amós, Yahweh traria os seus redimidos de volta para a terra, um local que seria indescritivelmente fértil e produtivo. Nesse tempo tornar-se-iam tão firmemente estabeleci­dos em sua verdade que não mais seriam arrancados dali e transportados para outro local.

Jonas

Amós não estava só em seu testemunho contra Jeroboão II. Jonas, filho de Amitai, de Gate-Hefer (Khirbet ez-Zurra', cerca de oito quilômetros a noroeste do monte Tabor),64 o único profeta oriundo da Galiléia, também proclamou a palavra de Yahweh para este rei de Israel, mas sua palavra foi de encorajamento. Jeroboão obteria de volta Damasco e Hamate e, por­tanto, restauraria o reino de Israel e sua extensão territorial, conforme fora nos dias de sua grandeza (2 Rs 14.25). Já foi proposto que essa bem-suce- dida campanha não ocorreu antes de 773, de modo que a profecia desse acontecimento, descrito por Jonas, deve ter ocorrido pelo menos uns pou­cos anos antes dessa data. A referência a Jonas em 2 Reis 14 deveria ser

62 Martin Noth, The Old Testament World (Philadelphia: Fortress, 1966), p. 261.63 J.D. Hawkins, "The Neo-Hitite States in Syria and Anatólia," em CAH 3.1, pp. 390-94.64 Yohanan Aharoni, The Land ofthe Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 257.

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uma evidência suficiente de que ele foi personagem histórico, e não um herói de uma parábola, conforme muitos estudiosos alegam.65 É claro que sua historicidade não é questionada em razão de sua mensagem a Jeroboão, mas sim pelo registro de suas incursões e viagens, inclusive a Nínive, como o primeiro missionário de Israel.

Não é possível entrar em um debate profundo sobre as controvérsias que envolvem o gênero literário, e que contribuem para a polêmica acerca do livro de Jonas. Para nós é suficiente que o próprio Jesus tenha afirmado indiretamente sua historicidade comparando o fato histórico de sua pró­pria morte, sepultamento e ressurreição com a experiência de Jonas no ventre do grande peixe (Mt 12.40).66 Afirmar, como fazem alguns críticos da redação, que Jesus sabia que Jonas era legendário e comparava-se a um relato fictício, ou que Jesus nunca fizera ele próprio a comparação — esta fora colocada em sua boca pelos apologistas do Cristianismo primitivo — põe em questão não apenas a história de Jonas, mas também a de Jesus. Se alguém não considerar Jonas como uma narrativa histórica, torna-se pra­ticamente impossível afirmar a historicidade de qualquer outro fato no Antigo Testamento.

De uma maneira mais positiva, os fatos do livro de Jonas encaixam-se precisamente no período em que o profeta está localizado pelo autor de Reis. Já se observou que a profecia de Jonas para Jeroboão antecedeu al­guns poucos anos 773. O cenário de seus escritos precisam ser vistos um pouco depois disso, pois o livro termina com Jonas em grande desespero e derrotado. É pouco provável que depois desta situação ele tenha tido co­ragem para voltar a Israel e desfrutar qualquer credibilidade entre o povo.

Como já foi visto várias vezes, a Assíria, depois de Adade-Nirari III (810-783), entrou em profunda depressão. Levantes internos e pressões de poderosos inimigos, tais como Urartu e os estados arameus, mantiveram- na em posição de defesa até a época de Tiglate-Pileser III, que subiu ao trono em 745. Esta data coincidiu exatamente com o período em que Israel sob Jeroboão II e Judá sob Uzias reconquistaram territórios, que haviam sido tomados anos antes, e grande parte de seu prestígio. Neste período Jonas está envolvido em seu ministério profético.

65 Allen, foel, Obadiah, Jonah and Micah, p. 175-81. George M. Landes, baseado em premissas lingüísticas, diz que a melhor data para esse livro seria o sexto século ("Linguistic Criteria and the Date of the Book of Jonah," Eretz-Israel 16 [1982]: 162-63). Mas, mesmo que suas conclusões estejam corretas, o que se pode provar é que o livro, em sua presente forma, deriva exatamente daquele período. Para uma réplica da visão de Allen de que Jonas é uma parábola, ver D.J. Wiseman, "Jonah's Nineveh," Tyn Buli 30 (1979): 32-34.

n6 Eugene H. Merrill, "The Sign of Jonah," JETS 23 (1980): 23-30.

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Dados esses limites cronológicos, o período mais provável para a mis­são de Jonas à cidade de Nínive foi durante o reinado de Assur-dan III (772-755). Embora não haja nenhuma inscrição real sobrevivente do perí­odo, a lista dos epônimos assírios e outros testemunhos indiretos confir­mam seu mandato como um período de tumultos jamais vistos anterior­mente.67 Assur, Arrafá, Gozã e muitos outros estados rivais que dependi­am da Assíria revoltaram-se. Além disso, a nação foi acometida de pragas e fomes repetidamente, até que o império chegou a uma terrível situação de total empobrecimento e desordem.

Este seria o tempo ideal para Jonas entregar sua mensagem de julga­mento e o programa de redenção universal do Deus de Israel. O culto e o panteão assírios estavam totalmente enfraquecidos e fracassados. Sem dúvida nunca houvera uma situação tão propícia para que o rei e seus súditos dessem ouvidos à voz do profeta de Deus. Além disso, a Assíria já começava a tornar-se o chicote de Deus. Com o passar de alguns poucos anos seu papel estaria claro e afirmado. Seria muito apropriado que o ins­trumento da ira de Deus primeiro tivesse a oportunidade de ser objeto de sua graça. E, conforme vemos, o rei e todo o povo se arrependeu, mesmo que superficialmente e sem resultados duradouros.68 E justamente por­que aceitaram a palavra da salvação, tornaram-se os primeiros frutos da fé entre os gentios. Jesus, de fato, afirmou que o juízo imposto sobre os fariseus seria maior do que o que recairia sobre Nínive. Este povo arre­pendeu-se diante da palavra de Jonas (e novamente Jesus confirmou a historicidade do profeta), mas os fariseus não se arrependeram com a pre­gação daquele que era maior do que Jonas (Lc 11.32).

67 Thiele, Mysterious Numbers, p. 211-12. Quanto à ausência de inscrições reais, ver W. Schramm, Einleitung in die assyrischen Kõnigsinschriften (Leiden: E.J. Brill, 1973), vol. 2, p. 123.

68 Wiseman, "Jonah's Nineveh," Tyn Buli 30 (1979): 51, cita uma carta de um rei que não se sabe o nome, provavelmente Assur-dan III, endereçada a Mannu-ki-Asssur, gover­nador de Gozã, com as seguintes palavras: "Decreto do rei. Você e todo seu povo, sua terra e seus campos terão de humilhar-se e chorar pelo espaço de três dias diante do deus Adad e arrepender-se. Terão de purificar-se por seus rituais, de forma que possa haver descanso (qulu, silêncio)." Esse texto é bem semelhante ao arrependimento des­crito pelo profeta Jonas.

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0 C A S T I G O D E Y A H W E H : A S S Í R I A E O J U Í Z O D I V H O

Fatores responsáveis pela queda de Israel O fim da dinastia de Jeú A A ssíria e Tiglate-Pileser III M enaém de Israel Os últim os dias de Israel

A rebelião de Peca A volta de Tiglate-Pileser A cronologia do reinado de Peca Oséias de Israel O papel do Egito

O im pacto da queda de Sam aria Implicações teológicas DeportaçãoA origem dos samaritanos

Judá e a queda de Sam ariaO problema da cronologia jotão de Judá Acaz deJudá Sargão II da Assíria

Ezequias de JudáOs anos de co-regência A reforma de Ezequias A rebelião contra a Assíria Senaqueribe e o cerco de Jerusalém O envolvimento do Egito A morte de Senaqueribe Os últimos anos de Ezequias

A doença de Ezequias A campanha de Senaqueribe Os últimos quinze anos

O ponto de vista dos profetas Oséias Isaías Miquéias

Fatores responsáveis pela queda de Israel

Pela metade do oitavo século uma série de acontecimentos tiveram iní­cio e, dentro de trinta anos, a cidade de Damasco entraria em colapso, Samaria seria conquistada, o reino de Israel chegaria ao seu fim, e Judá quase seria subjugada. A causa de tudo isto foi o renascimento do podero­so Império Assírio comandado por Tiglate-Pileser III e sua imbatível má­

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414 H istória d e I sr a el no A ntig o Testam e.*■?.

quina de guerra. Por mais de 130 anos os assírios aterrorizariam não ape­nas os habitantes de Judá, mas todo o Oriente Médio até que, anos depois, surgiria Nabopolassar e seu ilustre e famoso filho, Nabucodonosor, que finalmente eliminaria essa ameaça para sempre.

A tarefa deste capítulo é traçar os vários e intricados fatores que culmi­naram na destruição de Israel e na quase eliminação de Judá. São fatos de natureza profundamente teológicas, como todos os demais acontecimen­tos na Bíblia. Os historiadores e os profetas deixam bastante claro que Is­rael e Judá semearam vento, e por isso colheram tempestade. Afastaram- se dos compromissos estabelecidos com a lei, passando a sofrer as maldi­ções que ali estão registradas.

Havia, é claro, outras razões mundanas nesse contexto. Houve tira­nia e inaptidão no governo dessas nações, irresponsabilidade na política fiscal, falta de sabedoria nas relações internacionais e nas alianças várias vezes estabelecidas, lutas de classes, crimes, violência e uma série de outras enfermidades que adoeceram Israel e Judá em todos os seus seg­mentos. É um milagre que estas nações tenham durado todo aquele tem­po. Pode-se concluir com os profetas que isto só foi possível pela miseri­córdia e amor de Deus, que lembrava-se de seu pacto, apesar do esqueci­mento do povo.

0 fim da dinastia de Jeú

Indícios da violência nos últimos trinta anos de Israel podem ser vistos no fim sangrento da dinastia de Jeú. Por causa de sua obediência em re­mover a família de Omri e o baalismo implantado na terra, Jeú recebeu a promessa de um longo reinado e de prosperidade (2 Rs 10.30). Seus des­cendentes ainda ocupariam o trono por mais quatro gerações, um recorde de longevidade na tumultuada sucessão real no reino do norte. Finalmen­te, depois de quase noventa anos, o último descendente da casa real de Jeú, cujo nome era Zacarias, foi assassinado quando estava em seu sexto mês de reinado (753).1 O autor da tragédia foi Salum, filho de Jabes, o qual não pôde ver os frutos de seu ato violento, pois também seria assassinado dentro de um mês (2 Rs 15.8-15).

O líder da conspiração contra Salum foi Menaém, filho de Gadi, de Tirza. As repetidas referências a Samaria e Tirza no registro bíblico (2 Rs

1 A não ser nos casos indicados, as datas apresentadas neste capítulo quanto aos reis de Israel e de Judá estão baseadas em Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers ofthe Hebrew Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), p. 81.

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0 C astig o d e Ya h w eh : A ssíria e o J uízo D ivino 415

15.13-16) são muito mais do que simples menções. O que estava envolvi­do era mais do que apoderar-se do governo de outrem; na verdade, era uma tentativa de buscar o restabelecimento do domínio da base política em Tirza.2 Deve-se lembrar que Jeroboão I, após ter morado temporaria­mente em Siquém, estabeleceu a capital de Israel em Tirza, a qual lá per­maneceu até que Omri comprou a colina de Semer e ali construiu sua nova capital, chamada Samaria, em cerca de 880 a.C. Certamente a transferên­cia de capital não foi bem recebida pela maioria das pessoas. Alguns reti­veram um sentimento ruim, procurando exaltar novamente a cidade de Tirza. E possível que Menaém fosse um dos representantes desta facção política anti-Samaria, mas no interesse de ganhar o apoio do povo, deci­diu lá manter a capital de seu reino.

Menaém reinou por dez anos (752-742), e foi contemporâneo de Uzias em sua últim a década. Este, como seus predecessores, é descrito como um rei mau que não se apartou dos caminhos de Jeroboão, filho de Nebate. Não há detalhes sobre seu reinado, exceto que na época da invasão assíria ele pagou um pesado tributo ao rei Tiglate-Pileser (2 Rs 15.19,20).

A Assíria e Tiglate-Pileser III

Durante a ausência de influência política e militar da Assíria, nas déca­das após a morte de Adade-Nirari III (783), o trono finalmente foi ocupa­do por um usurpador, Tiglate-Pileser III (também chamado de Pulu ou, conforme o Antigo Testamento, Pul),3 que reinou de 745 a 727.4 Ele levan- tou-se determinado a realizar três grandes tarefas em seu reinado: restau­rar a ordem em Babilônia, readquirir o controle da Síria e defender as fron­teiras ao norte contra Urartu. O tumulto em Babilônia já durava muito tempo, mas foi exacerbado com a chegada dos imigrantes arameus que, juntamente com a população autóctone, criaram a formidável entidade

2 John Bright diz que Tirza era a "capital de quondam" (A History o f Israel, 3a ed. [Philadelphia: Westminster, 1981], p. 271). Mas, como outros estudiosos, ele deixa de observar que a cidade de Tirza ganha uma atenção incomum por parte do historiador bíblico.

3 A.T. Olmstead, History o f Assyria (Chicago: University of Chicago Press, 1975 reedição), p. 181; Bright, History, p. 270.

4 Quanto a mais informações sobre o reinado de Tiglate-Pileser, ver J.D. Hawkins, "The Neo-Hitite States in Syria and Anatolia," em Cambridge Ancient History, 3a ed., editado por John Boardman et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1982), vol. 3, parte 1, pp. 409-15.

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política conhecida por Kaldu (= Caldeus).5 Por fim, todo o processo cul­minaria no surgimento do Império Neo-Babilônico. A solução de Tiglate para o problema babilônico foi instalar um governante nativo, Nabonassar. Urartur foi posto sob controle através de uma série de campanhas milita­res que o reduziram ao status de província.

O maior interesse de Tiglate estava no oeste, de maneira que, depois de ficar a situação estabilizada em todos os lugares, voltou-se para outra direção. Em sua primeira campanha para a Síria, em 743, venceu Arpade (Tel Erfad), ao norte de Aleppo, e aterrorizou os pequenos estados rema­nescentes — Síria e Palestina — , pois alguns capitularam sem oferecer qualquer resistência, ao passo que outras nações tentaram mediante as armas escapar da destruição.6 Menaém de Israel estava entre os que não resistiram.7 Tanto os anais de Tiglate-Pileser como o Antigo Testamento comprovam que o rei de Israel buscou rapidamente pagar tributo ao rei da Assíria, a fim de manter sua posição em Samaria.8 Embora o Antigo Testamento não relate, é provável que Tiglate-Pileser tenha feito conta­tos com Uzias (=Azarias) de Judá. Há um texto assírio em que tal hipóte­

5 Esse desenvolvimento é profundamente documentado em J.A. Brinkman, A Political History o f Post-Kassite Babylonia, 1158-722 B.C., Analecta Orientalia 43 (Rome: Pontificai Institute, 1968).

6 Quanto à situação que resultou no domínio das terras da Transjordânia pelos assírios, ver B. Oded, "Neighbors on the East," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, The Age ofthe Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalem: Massada, 1979), pp. 270-72.

7 William W. Hallo, "From Qarqar to Carchemish: Assyria and Israel in the Light of New Discoveries," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr. e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, pp. 169-70. Louis D. Levine, porém, diz que foi em 738, ou seja, quatro anos depois da morte de Menaém segundo a cronologia bíblica, a campanha assíria que forçou Menaém a pagar tributo ("Menahem and Tiglath-pileser: A New Synchronism," BASOR 206 [1972]: 40-42). Mas enquanto Levine diz que existe um "firme sincronismo" entre Menaém e Tiglate-Pileser (p. 42), seu argumento baseado na esteia iraniana que afirma que Menaém pagou tribu­to depois de 742 permanece sem provas. Para uma réplica bastante eficaz, ver a obra de H. Jacob Katzenstein, The History o f Tyre (Jerusalem: Schocken Institute for Jewish Research, 1973), p. 205. William H. Shea, "Menahem and Tiglath-pileser III," JNES 37(1978): 43-49 também segue a mesma linha de raciocínio de Levine, embora a data que ele escolhe para o pagamento do tributo seja em 740, que para nós ainda é uma data muito tarde. Mordechai Cogan também aceita o ano de 740, pelo menos para o tributo de Turbail de Tiro ("Tyre and Tiglath-pileser III," JCS 25 [1973]: 96-99).

8 Quanto aos textos assírios, ver James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 283a.

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O C a s t ig o d e Ya h w e h : A s s ír ia e o J u íz o D iv in o 4 1 7

se pode encontrar algum apoio, embora seja bastante ambíguo e não to­talmente confiável.9

Uma segunda série de campanhas começou em 734 e continuou até 732. Estas resultaram na captura de Gaza e no desesperado apelo do rei Acaz, de Judá, a Tiglate, para juntos combaterem contra Peca, rei de Israel, e Rezim, de Damasco (2 Rs 16.5-7; Is 7.1,2). O rei da Assíria concordou, e em 732 forçou Damasco a uma rendição. Israel também teria sofrido o mesmo se Peca não fosse assassinado e substituído por Oséias,10 um fan­toche nas mãos do rei assírio. Enquanto isso, Acaz já tinha se vendido ao seu novo senhor assírio por um amargo e doloroso preço.

Os anos finais de Tiglate-Pileser ocuparam-se mais uma vez com a Babilônia. De fato, sua necessidade de tratar o problema crônico forçou-o a interromper suas campanhas ao oeste, concedendo a Israel e a Judá um p o u c o m a is d e tem p o . M esm o d e p o is de a Babilônia, ag o ra s o b a a u d a c io ­sa e persistente liderança de Marduk-apla-iddina (Merodaque-Baladan no Antigo Testamento),11 ter sido forçada a submeter-se, Tiglate-Pileser nun­ca voltou para o oeste.

Quando Tiglate-Pileser morreu em 727, foi sucedido por seu filho Salmaneser V, que reinou por apenas cinco anos (727-722).12 Por dois anos ele esteve ocupado com as rebeliões internas na Babilônia que consumiram os últimos anos de seu pai. Então, em 725, partiu para o oeste, visando re­conquistar o domínio da Fenícia e da Filístia. Daí seguiu-se um cerco de três anos à cidade de Samaria, cujo resultado culminou em seu colapso em 722 e na deportação de sua população. A cidade de Tiro continuava cercada na­quele meio tempo, e foi tomada pelo seguinte rei dos assírios, chamado Sargão II. Este também reivindicou ter conquistado Samaria,13 mas a maio­

9 Hallo, "From Qarqar to Carchemish," em Biblicol Archaeologist Reader, vol. 2, p. 170, in­terpreta " Az-ri-a-u de Ia-ú-da-a-a" como uma referência a Azarias, divergindo de estu­diosos tais como Siegfired Herrmann, que alega ser essa uma referência a um rei do nordeste da Síria chamado Ya'udi (A History o f Israel in Old Testament Times, traduzido por John Bowden [Philadelphia: Fortress, 1975], p. 246). Em favor da posição de Herrmann há a completa ausência de referências bíblicas a respeito de uma incursão assíria até o sul, chegando mesmo no reino de Judá na época de Azarias.

10 Quanto ao texto assírio, a "tabuleta de Nim rud", ver D. Winton Thomas, editor, Documents from Old Testament Times (London: Thomas Nelson, 1958), p. 55.

11 Quanto a um relato completo de sua vida e carreira, ver J.A. Brinkman, "Merodach- Baladan II," em Studies Presented to A. Leo Oppenheim, editado por Robert M. Adams (Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. 6-53.

12 Hawkins, "Neo-Hittite States," em CAH 3.1, pp. 415-16.13 Essa reivindicação é feita nos anais de seu primeiro ano de reinado. Ver Pritchard, Ancient

Near Eastern Texts, p. 284b.

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4 1 8 H istória d l I srael no A ntig o T l s í \

ria dos estudiosos está de acordo que ele estava apenas ganhando crédito por um empreendimento atribuído a Salmaneser.14

Menaém de Israel

Voltando agora para Menaém de Israel, sua submissão voluntária a Tiglate-Pileser pode ter alguma relação com a conspiração que lhe foi ar­mada. De fato, apenas dois anos depois que substituiu seu pai Menaém, Pecaías foi assassinado por Peca e um gileadita (2 Rs 15.25).15 Não é possí­vel saber se Menaém tornou-se um defensor da causa assíria, tentando assim afastar a ameaça durante seus anos de declínio, ou se a conspiração deveu-se ao fato de o rei ter sentimentos pró-assírios. O certo é que Menaém pagou a Tiglate-Pileser "m il talentos de prata, para que a sua mão fosse com ele, a fim de firmar seu reino na sua m ão" (2 Rs 15.19).

Esse estratagema, embora mau para uma nação que reivindicava a con­fiança exclusiva no Deus da aliança, poderia até ter funcionado, caso não ocorresse a morte de Menaém e Tiglate-Pileser não tivesse voltado para o norte. Mas a história não é feita por "se". Menaém morreu após retirar esse dinheiro de Israel à força, e foi sucedido por Pecaías (742-740). Tiglate- Pileser, satisfeito com a submissão de Menaém, tratou de reorganizar os estados ao norte da Síria e Fenícia,16 deixando Israel tratar de seus própri­os assuntos internos.

Os últimos dias de Israel

A rebelião de Peca

A rebelião que aparentemente havia começado nos dias de Menaém veio à tona nos dias do reinado de Pecaías. Mal iniciara seu governo, foi atacado por Peca, filho de Remalias, um oficial do exército que colaborou com o elemento gileadida que se opunha fortemente à influência dos assírios (2 Rs 15.23-25). Com Pecaías fora do caminho, Peca se autoprocla- mou rei e imediatamente rompeu o tratado com os assírios. Na verdade,

14 A crônica imparcial babilônica atribui a queda de Samaria inequivocamente ao rei Salm aneser V. Ver Hayim Tadmor, "The Cam paigns of Sargon II of Assur: A Chronological-Historical Study," /CS 12 (1958): 22-40, 77-100.

15 H.J. Cook, "Pekah," VT 14 (1964): 128.16 Ver especialmente Katzenstein, History ofTyre, pp. 204-5. Quanto a um tratamento mais

elucidativo da estrutura imperial assíria no oeste, ver I. Eph'al, "Assyrian Dominion in Palestine," em World History ofthe jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 282-88.

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essa atitude de Peca foi tomada porque Tiglate-Pileser estava envolvido em seus problemas imperiais. Não é possível definir se Peca agia por zelo patriótico ou tencionava criar uma confederação Siro-Palestina que pu­desse suplantar a Assíria, sobre a qual tornar-se-ia o líder.

A volta de Tiglate-Pileser

Qualquer que fosse o objetivo de Peca, ele estava condenado ao desa­pontamento, pois dentro de seis anos (cerca de 734) Tiglate-Pileser retornaria para o oeste e rapidamente voltaria a anexar vastas áreas da Síria e da Pales­tina, especialmente na Galiléia e Transjordânia.17 As cidades conquistadas incluíam Ijom (Tel ed-Dibbin), Abel-Bete-Maaca (Abil el-Qamh), Janoa (Yanüh), Cades (Tel Qades) e Hazor (Tel el-Qedah),18 todas localizadas na antiga área das tribos de Aser e Naftali. Gileade pode ser destacada por seu forte sentimento anti-assírio. Pela primeira vez, o historiador bíblico fala de um costume assírio que teria um profundo impacto na história subseqüente de Israel — Tiglate-Pileser levaria alguns cativos para a Assíria.

Enquanto isso, Oséias, filho de Elá, vendo a escritura na parede, livrou- se de Peca e, com a aprovação dos assírios (ou por ordem direta), tornou- se o último dos reis de Israel. Seu reinado (732-722) marca o início da últi­ma década da história de Israel no Antigo Testamento.

A cronologia do reinado de Peca

Antes de traçarmos os acontecimentos daquela década, faz-se necessá­rio atentar para os problemas relativos à cronologia de todo o período, particularmente a data que trata acerca do próprio rei Peca, de Israel.19 Essencialmente, o problema está em torno do registro de que Peca come­çou a reinar no qüinquagésimo segundo ano de Uzias (740), e que ele rei­nou por vinte anos (2 Rs 15.27). Se este terminus a quo estiver correto, ele morreu em 720, o que obviamente é impossível, porque ela pós-data o término do reino, e não deixa qualquer espaço para o reinado de Oséias.

17 B. Oded, "Observations on Methods of Assyrian Rule in Transjordania After the Palestinian Campaign of Tiglath-Pileser III," JNES 29 (1970): 177-86.

18 Todas essas identificações são de Yohanan Aharoni, The Land o f the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), pp. 429-43.

19 Esse problema ocupa todo um capítulo no livro de Thiele, Mysterious Numbers (pp. 118- 40), o que nos mostra quão complexa é a questão. Enquanto a presente discussão é devedora ao trabalho de Thiele, existem diferenças em diversos pontos.

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Outra possibilidade é que, com os vinte anos de reinado e a sucessão do trono por Oséias, em 732, Peca na verdade começou seu reinado em 752. A maior objeção a essa hipótese é que não existe qualquer evidência que indi­que um período de co-regência de Peca com Menaém ou Pecaías. O número vinte é por isso descartado como um erro cometido pelo escriba.20 Mas antes desta interpretação ser abandonada, deve-se considerar as circunstâncias peculiares da ascensão de Peca. Em estrito sentido, não houve na realidade uma co-regência entre Peca e Menaém. Peca não tinha sangue nobre, então Menaém dificilmente o teria honrado desta forma. Mas Peca pode ter sido reconhecido como fundador de uma dinastia rival por alguns segmentos da população, especialmente em Samaria e ao seu redor.21

A base para esta hipótese é o fato de que Peca reinou por vinte anos e foi assassinado em 732; começou a reinar no mesmo ano em que Menaém assassinou Salum, tornando-se rei (752). Menaém era natural de Tirza, e evidentemente representava uma facção anti-Samaria que ali se mantinha desde os dias de Omri. Provavelmente, Peca era o principal representante do partido pró-Samaria; embora tivesse de suportar com paciência doze anos como comandante dos exércitos de Israel,22 ele desfrutava do apoio de pessoas influentes em Samaria, e muitas já o reconheciam como rei.23 Pelo menos, com Menaém e Tiglate-Pileser fora do cenário, Peca sentiu-se livre para tomar a iniciativa. Ele matou a Pecaías, declarou a independên­cia de Israel contra a Assíria e ficou sozinho no poder pelos próximos oito anos. Não há como provar essa hipótese, é claro, mas sem dúvida é uma explicação bastante plausível quando comparada aos dados conhecidos.

20 A negação desse número vinte está claramente mencionado por T.R. Hobbs, 2 Kings, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1985), p. 201. Quanto a emendas propostas, ver Cook, "Pekah", VT 14 (1964): 121-22.

21 Muitos estudiosos têm o costume de incluir no período de governo de um rei os anos quando ainda era apoiado por algumas minorias. John Cray, por exemplo, vê o terminus a quo para o rei Peca quando este se levantou contra Menaém, que foi uma aberta decla­ração de que era contra os assírios (I & II Kings [Philadelphia: Westminster, 1970], pp. 64-65).

22 Apoio quanto a esse papel pré-monárquico de Peca pode agora ser encontrado num selo e é comentado por Pierre Bordreuil, "A Note on the Seal of Pekah the Armor-Bearer, Future King of Israel," BA 49 (1986): 54-55. Ver também Cook, "Pekah," VT 14 (1964): 124-26.

23 Cook, "Pekah," VT 14 (1964): 127, diz que as inscrições assírias (Pritchard, Ancient Near Eastern Inscriptions, pp. 283-84) chamam Menaém de "Menaém de Samaria", ao passo que Peca é conhecido como o governador de Bit Humria, a designação normal que os assírios davam ao reino de Israel. Isso claramente sugere um Israel dividido; "Menaém

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Oséias de Israel

Já vimos que Oséias, o último rei de Israel, chegou ao poder como um adido dos assírios. Suas opções eram extremamente limitadas, pois no mesmo ano de sua ascensão, em 732, Damasco foi reduzida a cinzas, e estava claro que Tiglate-Pileser tinha em mente Samaria como seu próxi­mo alvo. Na verdade, Oséias não era um verdadeiro aliado dos assírios, e é possível constatar esse fato no momento em que Tiglate-Pileser precisou retornar para o leste, a fim de reprimir um levante na Babilônia. Na oca­sião, o rei de Israel decidiu declarar-se livre da suserania assíria. Ele teve pouco tempo para desfrutar da independência, pois levantou-se na Assíria Salmaneser V com a mesma política imperialista de seu pai. Salmaneser chegou a Israel em 725 para exigir lealdade de Oséias. Quando compreen­deu que não mais a tinha, cercou Samaria por três anos, até que o povo se entregou em 722.

O pa-pel do Egito

Uma das razões que motivaram o rei Oséias a proclamar sua indepen­dência dos assírios foi que este percebeu o grande crescimento do Egito.24 Na época da sucessão de Salmaneser, um nobre da casa real em Sais, cha­mado Tefnakht I (727-720), fundara a 24a Dinastia do Egito, no norte do Delta. Os príncipes das dinastias 22a e 23a logo reconheceram sua soberania. Com todo esse apoio, Tefnakht I sentiu-se forte suficiente para empreender um programa de unificação de todo o Egito, o que também incluía uma campanha militar contra o sul, para assim submeter a dinastia núbia dos Piankhy (737-716). Estes, conhecidos como a 25a Dinastia, resistiram a Tefnakht com bravura e, em um conflito final em Mênfis, não apenas saí­ram-se vencedores, como também assumiram o controle de todo o Egito.

Piankhy então retornou para o sul sem que tivesse estabelecido algum tipo de administração no Delta. Isto permitiu que Tefnakht e outros prín­cipes do Delta se restabelecessem. Um desses príncipes, Osorkon IV (730-

de Samaria" pode indicar apenas um reconhecimento formal como sendo o rei do local. William H. Shea, ao discutir um conjunto de ostracas da região de Samaria, nota que os anos nove e dez referem-se a Menaém e que o ano quinze refere-se a Peca. A conclusão de Shea é que o reinado de Peca cobriu um período completo de vinte anos, período esse parcialmente contemporâneo a Menaém e que continuou depois da morte desse. ("The Date and Significance of the Samaria Ostraca," IEJ T l [1977]: 21-23).

24 Keneth A. Kitchen, The Third Intermediate Period in Egypt (1100-650 B.C.) (Warminster: Aris and Phillips, 1973), pp. 362-68.

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715), membro da 22a Dinastia, provavelmente é aquele que está descrito como "rei do Egito", a quem Oséias suplicou por socorro (2 Rs 17.4).- Infelizmente o apelo não foi atendido, e Salmaneser levou até o fim o cer­co sem qualquer interferência.

O impacto da queda de Samaria

Im plicações teológicas

A queda de Samaria foi um golpe que abalou não apenas a política de Israel, mas também o seu entendimento da natureza da aliança. O ano de 722 marcou definitivamente o fim do reino do norte? Teriam as promessas e a paciência de Deus finalmente se esgotado? Estas interrogações deveri­am estar nos lábios dos sobreviventes e de todos os habitantes de Judá. Ainda que o trono de Davi estivesse estabelecido em Jerusalém, poderia Judá esperar um futuro diferente?

As questões foram tratadas primeiramente pelos profetas. Porém, de forma quase única em seu relato, o autor de 2 Reis também trata das im­plicações teológicas para a nação de Israel. A queda de Samaria e a depor­tação de sua população foram o claro resultado dos pecados cometidos contra Yahweh (17.7). O povo de Deus tornou-se infiel para com o Senhor que os livrara do Egito, adorando e servindo a outros deuses (17.15-17). E fizeram isto apesar dos constantes avisos dos profetas de Deus de que tal atitude consistiam em grave traição. O resultado inevitável foi o julga­mento de Deus, um juízo que se manifestou na forma de exílio, expulsan­do os judeus de sua terra prometida.

Mas Judá não estava melhor (17.19). Eles imitaram a apostasia de Isra­el, e assim podiam esperar o mesmo destino. A apostasia personificou-se no primeiro rei de Israel, Jeroboão, que se tornou para todas as gerações subseqüentes um modelo de iniqüidade e mau comportamento. Não sur­preende que o único remédio para 210 anos de infidelidade e apostasia espiritual fosse a deportação da terra da promessa para as nações que, ironicamente, teriam de ser o alvo da salvação proclamada por Israel.

D eportação

De acordo com a política norm al dos assírios, os deportados de Isra­el foram levados para as demais nações do Império Assírio e, do m es­

25 Ibid., p . 374.

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mo modo, habitantes de outros povos estabeleceram -se em Sam aria.26 O propósito obviamente era suprimir qualquer sentimento de naciona­lismo, e assim inibir tendências de rebelião e independência. Mas a de­portação e o restabelecim ento teriam um impacto ainda maior sobre o Judaísm o e a Igreja Prim itiva, pois a m iscigenação resultante desse conglom erado de pessoas produziria os Sam aritanos, vistos pelo Ju ­daísmo como uma raça de cães, mas carinhosam ente tratados pelo m isericordioso M essias.

O narrador bíblico menciona apenas três paradeiros para os israelitas que foram dispersos naquela ocasião: Haia, Gozã e "as cidades dos Medos"— embora certamente a dispersão tenha se espalhado muito mais.27 Não é possível identificar Haia,28 mas Gozã não é outra senão a famosa cidade de Tel Halaf,29 no rio Habor, aproximadamente 96 quilômetros a sudoeste de Arã. Quão irônico é o fato de os israelitas da diáspora terem se instalado próximo à cidade de seu pai Abraão! E como se eles tivessem de recomeçar tudo de novo. As "cidades dos Medos" situavam-se bem ao leste e ao centro da cadeia montanhosa do Zagros, entre os atuais Irã e Iraque.

Uma deportação anterior já havia acontecido nos dias de Tiglate-Pileser, mas limitou-se, em sua maioria, às duas tribos e meia da Transjordânia. O cronista, em sua bem resumida recapitulação das genealogias tribais, diz que Tiglate-Pileser levou as tribos do leste do Jordão em cativeiro (1 Cr 5.26). Isto não é um anacronismo ou uma falsa atribuição de conquistas de Salmaneser que foram creditadas a Tiglate-Pileser, conforme alguns estu­diosos costumam afirmar,30 mas uma amplificação do texto de 2 Reis 15.29, que resume a campanha de 734-732: "Nos dias de Peca, rei de Israel, veio Tiglate-Pileser, rei da Assíria, e tomou a Ijom, a Abel-Bete-Maaca, a Janoa, a Quedes, a Hazor, a Gileade e à Galiléia, a toda a terra de Naftali, e levou os seus habitantes para a Assíria". Seu destino foi virtualmente o mesmo que o corpo principal de israelitas viria a ter dez anos depois, com exceção

26 Eph'al, " Assyrian Dominion in Palestine," em World History o f the Jezvish People, vol. 4, parte 1, p. 283.

27 Muitos nomes hebreus têm sido encontrados em Calá; ver William F. Albright, "An Ostracon from Calah and the North-Israelite Diaspora," BASOR 149 (1958): 33-36; I. Eph'al, "Israel: Fali and Exile/' em World History ofthe Jezvish People, vol. 4, parte 1, pp. 190-91.

28 Eph'al, porém, iguala-a com Halahlu, uma cidade e distrito a noroeste de Nínive ("Isra­el: Fali and Exile," em World History ofthe Jezvish People, vol. 4, parte 1, pp. 189-90).

29 Martin Noth, The Old Testament World (Philadelphia: Fortress, 1966), p. 261.30 Isso é dado a conhecer por H.G.M. Williamson, 1 and 2 Chronicles, New Century Bible

Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), p. 67.

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de que o cronista acrescenta o nome H ara, talvez uma corrupção de arê (madday), "cidades (dos M edos)" (cf. 2 Rs 17.6; 18.II ) .31

A origem dos sam aritanos

Os povos trazidos para Samaria, por outro lado, provinham de lugares distantes tais como Babilônia, Cutá (Tel Ibrahim, cerca de 32 quilômetros a nordeste de Babilônia), Ava (Tel Kef 'Aya, no rio Orontes, no norte da Síria),32 Hamate (Hamã) e Sefarvaim (próximo a Hamate na Síria superi­or).33 Tal aglomerado de povos obviamente introduziu uma confusão de línguas, costumes e práticas religiosas.34 A despeito do novo ambiente, os deportados começaram a instalar seus cultos nativos em Samaria, até que Yawheh impôs o seu julgamento: enviou leões para matar alguns do povo. Quando o rei da Assíria (presumivelmente Sargão II) ouviu falar do de­sastre que se abatera sobre a nova colônia, decidiu enviar para lá sacerdo­tes israelitas que comandassem o culto em Betei e instruíssem o povo na forma correta de adoração (2 Rs 17.27,28).35 O resultado foi um sistema altamente sincretista, pois enquanto o povo adorava e servia Yahweh ape­nas com os lábios, continuava a servir a seus deuses nos lugares altos da terra. Essa situação, segundo o historiador sagrado, ainda vigorava em seus dias, pelo menos tão recente quanto 560 a.C. E persistiu ainda depois disso, conforme se vê pelo testemunho de escritores pós-exílio como Esdras e Neemias. A despeito das atividades missionárias desenvolvidas perio­dicamente pelos javistas de Judá, apenas gradualmente Samaria aderiu ao culto monoteísta, conforme visto no Novo Testamento.

31 Edward L. Curtis, A Criticai and Exegetical Commentary on the Books o f Chronicles (Edinburgh: T. & T. Clark, 1910), p. 126.

32 Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford Universitv Press, 1984), p. 123.

33 Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan, 1968), mapa 150.

34 Quanto à prática assíria de impor costumes estrangeiros em províncias recém-adquiri- das, como Israel, ver o trabalho de Morton Cogan, Imperialism and Religion: Assyria, Judah and Israel in the Eight and Seventh Centuries B.C.E. (Missoula, Mont.: Scholars Press, 1974), pp. 105-10. Tais imposições jamais foram feitas aos estados clientes, de sorte que Judá, devido ao pagamento de tributos e outras expressões de fraternidade e aliança, foi to­talmente deixado autônomo em suas práticas religiosas, sem interferência externa. Ver Carl D. Evans, "Judah's Foreign Policy from Hezekiah to Josiah," em Scripture in Context, editado por Carl D. Evans et al. (Pittsburgh: Pickwick, 1980), p. 158.

35 Quanto a um exato paralelo num texto assírio, ver Shalom Paul, "Sargon's Administrative Diction in II Kings 17.27," JBL 88 (1969): 73-74.

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Judá e a queda de Samaria

O problema da cronologia

A história da queda de Samaria e a deportação nacional de Israel não estaria completa, é claro, sem uma referência à sua nação vizinha, Judá. O ano 740 marcou a morte do rei Uzias de Judá e, conforme declara o profeta Isaías, o ponto inicial de seu ministério (Is 6.1). Já se destacou anterior­mente que Uzias pecou por arrogar-se o direito de agir como um sacerdo­te aarônico, sendo por isso acometido por uma terrível doença de pele. Foi afastado das funções reais e posto numa quarentena em local isolado. A doença impossibilitou-o de tal maneira que foi obrigado a passar o gover­no a seu filho Jotão (2 Cr 26.21). Quando exatamente isso aconteceu?

O historiador sugere que Jotão começou seu reinado no segundo ano de Peca e continuou no trono por dezesseis anos (2 Rs 15.32-33). Por outro lado, Acaz, seu filho, subiu ao trono doze anos antes da ascensão de Oséias de Israel (2 Rs 17.1), que seria em 744.36 O problema que emer­ge desses dados é o seguinte: se Acaz começou a reinar em 744 e seu pai Jotão reinou por dezesseis anos antes dele, é lógico que Jotão iniciou seu governo em 760. Complicando ainda mais a questão, para que Jotão ti­vesse iniciado seu reinado no segundo ano de Peca, é necessário que este iniciasse o seu próprio reinado em 762. Até então as autoridades tradici­onalmente têm datado o início do governo de Peca em 740, depois dos dezesseis anos de Jotão!

Entretanto, já foi proposto que Peca fora reconhecido como rei por al­guns segmentos em Israel em cerca de 752. Nossa sugestão agora é postu­lar que os "dezesseis anos" de Jotão consistiram basicamente em duas par­tes: (1) um período que se pode chamar de regência dominante e (2) uma co-regência com Acaz. Esta última abarca um período de 750 a 740, o ano da morte de Uzias. Tudo indica que esses anos foram oficialmente uma co-regência, visto que Uzias permaneceu como titular da função até 740. Porém, o cronista insiste em afirmar que a completa autoridade foi dada a Jotão quando se constatou a incapacidade de seu pai, de forma que na prática ele era o governante (2 Cr 26.21).37 Logo, é precisa a afirmação de

36 Thiele, Mysterious Numbers, p. 129.37 O termo "regência dominante" é aqui apresentado descrevendo a situação incomum na

qual um filho (aqui Jotão) assume a co-regência com seu pai (aqui Uzias/Azarias), mas na verdade em posição superior, pelo menos funcionalmente. Essa é claramente a inten­ção de 2 Crônicas 26.21.

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que o reinado de Jotão iniciou-se no segundo ano de Peca, partindo do pressuposto de que Peca começou a reinar em 752.

Mais apoio a estes limites cronológicos para Jotão pode ser achado no fato de Rezim de Damasco, que reinou de 750 a 732,38 juntamente com Peca, ter começado a atormentar a nação de Judá nos dias do reinado de Jotão (2 Rs 15.37). Essa situação estendeu-se até os dias de Acaz, filho de Jotão (2 Rs 16.5). Visto que Rezim morreu em 732 (como também o rei Peca), é certo que Acaz tenha iniciado seu reinado antes desta data. De fato, o autor do livro dos Reis diz que Acaz começou a reinar no décimo sétimo ano de Peca, que provavelmente é 735 (2 Rs 16.1). Da mesma forma que seu pai, ele reinou por dezesseis anos (v.2), enquadrando-se entre 735- 719. Contudo, como já mencionamos, Oséias de Israel começou seu reina­do em 732 e, segundo o registro em 2 Reis 17.1, encaixa-se com o décimo segundo ano de Acaz. Isto sugere que Acaz, na verdade, começou a reinar em 744, e não em 735.

Parece que a solução para o problema seria postular uma co-regência entre Jotão e Acaz, de 744 a 735, depois de Acaz dominar absoluto por dezesseis anos. Os "dezesseis anos", em outras palavras, referem-se apenas ao seu reinado absoluto e independente, ao passo que o "décimo segundo ano de Acaz", que está intimamente ligado à ascensão de Oséias, refere-se ao décimo segundo ano desde o início da co-regência de Acaz. Também há outros dados que informam que Acaz teria de estar vivo pelo menos em 715, pois neste ano ele seria sucedido por seu próprio filho Ezequias. Essa data para Ezequias é praticamente correta, visto que seu décimo quarto ano testemunhou a invasão de Judá pelos exércitos de Senaqueribe (2 Rs 18.13), uma campanha que todos os estudiosos datam em 701. Portanto, a referên­cia que trata da ascensão de Ezequias ao trono de Judá no terceiro ano de Oséias (729 — 2 Rs 18.1) deve, certamente, pertencer a uma outra co-regên- cia — uma de catorze anos entre Acaz e Ezequias.

Porém , se Acaz viveu até 715 e iniciou seu reinado em 735, como pôde reinar por dezesseis anos? Para nós, a resposta está em adm itir uma co-regência de quatro anos entre Jotão e Acaz (735-731) que, por alguma razão desconhecida, não está inclusa no total de anos dos rei­nos de cada um. Em outras palavras, eles foram iguais durante este período.39

38 Merrill F. Unger, Israel and the Aramaeans o f Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980 reedição), p. 95.

39 Cook, "Pekah," VT 14 (1964): 121, sugere que 2 Reis 15.30 "retém uma tradição que diz que Jotão viveu por quatro anos depois que oficialmente seu reinado chegara ao fim."

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Vejamos então o resumo de nossa reconstrução: Jotão tornou-se co-re- gente em 750, enquanto seu pai Uzias ainda era vivo. Por onze anos ele serviu na corte de seu pai nessa posição superior, até que Uzias faleceu em 740. A partir daí assumiu o trono absoluto até 735. Mas, antes da morte de Uzias, Jotão designara seu filho Acaz como seu auxiliar direto na co-re- gência em 744. Então, em 735, os dois tornam-se soberanos e iguais em autoridade até 731. Nesse tempo, Acaz inaugurou sua regência absoluta de dezesseis anos, que durou até 715. Ezequias tornou-se auxiliar direto de seu pai em 729 e serviu nesta posição até 715, quando passou a reinar absoluto até o ano 696. Então ele elegeu seu filho Manassés como seu au­xiliar direto até 686.

A idade dos monarcas no momento de sua ascensão também está re­gistrada nas Escrituras, e torna-se relevante para esta discussão. Jotão, con­forme a Bíblia, tinha vinte e cinco anos quando assumiu a co-regência com Uzias, em 750 (2 Rs 15.33). Acaz estava com vinte anos quando iniciou sua co-regência (2 Rs 16.2). O raciocínio aqui é claro, pois, se ele tinha vinte anos em 744, o ano que marca o início de sua co-regência, conclui-se que seu nascimento foi em 764. Por conseguinte, Jotão teria nascido em 775 e, aos onze anos de idade, já seria pai de seu filho, uma manifesta impossibi­lidade. Obviamente, Acaz estava com vinte anos em 735 (e Jotão, seu pai, com quarenta) e morreu em 715, com a idade de quarenta anos. Ezequias tinha vinte e cinco anos quando começou seu mandato. Como no caso de Acaz, a idade deve corresponder à época em que iniciou sua regência ab­soluta em 715, pois se ele estava com vinte e cinco anos em 729, seria um ano mais novo que seu pai Acaz! Mas, se estivesse com vinte e cinco anos em 715, a data de seu nascimento seria 740, quando Acaz estava com quin­ze anos. Ainda assim o cálculo pode parecer um pouco problemático, mas é perfeitamente possível e nada incomum para a época.40 Além disso, é muito mais razoável que qualquer outra alternativa.

Concluindo este trabalho, é necessário enfatizar que os dados que pa­recem irreconciliáveis para muitos estudiosos podem ser integrados har­moniosamente.41 Postular co-regências e ascensões ao trono em idades prematuras não está em desacordo com o costume do antigo Oriente Mé­

40 Thiele, Mysteríous Numbers, p. 128.41 Thiele mostra-se tão relutante em admitir doze anos de co-regência (de acordo com sua

reconstrução) entre Jotão e Acaz por um lado, e Acaz e Ezequias por outro, que acaba cometendo um erro ao atribuir uma falha na cronologia ao editor bíblico, ou seja, que o editor localizou erroneamente o início dos reinados de Peca e Jotão em 740-749 em vez de doze anos antes (Mysterions Numbers, pp. 138-40). Nenhum outro estudioso se dispôs a

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dio.42 Além disso, os únicos dados disponíveis são os que se encontram no texto; rejeitá-los em favor de um ceticismo que não oferece nenhuma al­ternativa, senão a afirmação de um erro textual é deixar em aberto a ques­tão, desconsiderando o método erudito. A menos que alguém prove, base­ado exclusivam ente no Antigo Testamento, que a reconstrução aqui proposta é impossível ou improvável, o melhor a ser feito é reconhecê-la de forma objetiva e imparcial como pelo menos digna de consideração.

Jotão de Judá

Voltando para a narrativa histórica, Jotão, rei de Judá, reinou em lugar de seu pai de 750 a 740, o ano da morte de Uzias, e depois sozinho até 731 (2 Cr 27.1-9). Ele foi descrito pelo escritor sagrado como um bom rei, que fez o que era reto diante de Yahweh. O povo, porém, continuava suas práticas pagãs, queimando e sacrificando nos lugares altos. Como Uzias, Jotão engajou-se em um programa de defesa interna e ao redor de Jerusalém, uma obra necessária considerando os tempos agitados em que vivia. Em algum ponto, talvez logo após as campanhas de Tiglate-Pileser (743-738), quando Menaém de Israel foi forçado a pagar tributos, Jotão lançou-se em ataque contra Amom e reduziu-o a um estado tributário por cerca de três anos. Parece que isto só foi possível porque Tiglate viu-se obrigado a voltar para a Assíria, depois de 738. Se esta suposição estiver correta, a subjugação dos amonitas perdurou até 735, justamente o ano em que Acaz (partidário dos assírios) assumiu a co-regência com seu pai. Sem dúvida há uma ligação entre a ascensão de Acaz ao trono (como co-regente) e o fato de o nome dos amonitas não constar das antigas listas dos estados tributários de Tiglate- Pileser, já que mais tarde os vemos pagando tributos juntamente com Acaz.43

desenredar as complexidades da cronologia das monarquias de Israel como Thiele, que tenta de todas as maneiras reter os dados contidos no Texto Massorético. É estranho que justamente aqui ele se mostre tão radical contra o fato de Acaz ter sido feito co-regente com seu pai Jotão enquanto este mesmo ainda era co-regente com seu pai Uzias. Uma atenção mais cuidadosa ao texto de 2 Crônicas 26.21 aliviaria muito mais a tensão. Sem dúvida é difícil entender por que os cronistas, em certas ocasiões, datam uns reinados como regência única e outros como co-regência. Contudo, tal dificuldade no pensamento moderno não deve, em hipótese alguma, desqualificar o texto e a narrativa dos historia­dores antigos, pois foram intérpretes e redatores fiéis dos acontecimentos de seus dias.

42 Quanto a esse tema, sugerimos que se pesquise a interessante e persuasiva documenta­ção oferecida por Nadav Na'aman, "Historical and Chronological Notes on the Kingdoms of Israel and Judah in the Eighth Century B.C.," VT 36 (1986): 83-91.

43 Hallo, "From Qarqar to Carchemish," em Biblical Archaeologist Reader , vol. 2, p. 171.

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Bem mais importante para a política externa de Judá foi a abominável aliança entre Damasco e Samaria conduzida pelos reis Rezim e Peca, res­pectivamente, a qual representou uma forte ameaça contra o Reino do Sul nos dias de Jotão. Com início em 735, a aliança foi uma espécie de represá­lia contra Judá, agora governado por Acaz e Jotão, por não haver se dis­posto a fazer coalizão contra Tiglate-Pileser, uma vez que todos os reis da Filístia e Edom estavam engajados (734-732). Segundo o profeta Isaías, Acaz recusou-se a cooperar a fim de não ser destruído; assim, preferiu apoiar os assírios a ver seu país arrasado (Is 7).

A caz de Judá

A narrativa bíblica sugere, assim como propõe nossa cronologia, que a campanha militar Rezim-Peca contra Judá não foi direcionada ao rei Jotão, embora tecnicamente ele ainda estivesse no comando, mas sim ao seu fi­lho Acaz, que ainda não tinha vinte e cinco anos na ocasião. Diferente de seu pai e avô, esse jovem monarca foi mau e apóstata, e assim, conforme o cronista declara em sua interpretação teológica dos acontecim entos, Yahweh o entregou nas mãos de Rezim, o rei de Aram (2 Cr 28.5), que o derrotou e levou cativo muitos habitantes de Judá. Da mesma forma, ele foi vítima de Peca, rei de Israel, sofrendo duras perdas, incluindo o seu próprio filho e vários oficiais superiores. Peca, como Rezim, levou muitos prisioneiros e pilhagem para sua capital.

Essas duas campanhas punitivas, não mencionadas em parte alguma pelo autor do livro dos Reis, devem ter acontecido em 735 ou pouco tem­po mais tarde, pois tanto Rezim como Peca foram mortos por volta de 732. Conforme já foi sugerido, essas campanhas provavelmente foram uma re­taliação contra a inclinação de Acaz pela Assíria e sua recusa em partici­par da aliança criada pelos reinos que formavam o bloco siro-palestino. A necessidade desta liga protetora era mais evidente para as nações do oes­te, pois Tiglate-Pileser começava novamente sua segunda série de campa­nhas, determinado a restabelecer a hegemonia assíria por todo o Mediter­râneo. Previamente, ele fizera com que Menaém de Israel lhe pagasse tri­butos e, no mesmo ano, também subjugou o rei Rezim.

Rezim provavelmente restabeleceu a dinastia dos arameus em Damas­co, depois da morte de Jeroboão II de Israel, em 753. Provavelmente, em seus dias de glória, Jeroboão incorporara Damasco ao seu reino (773), in­troduzindo assim um interregno de vinte anos de escravidão, até a chega­da de Rezim ao poder. A nova independência de Damasco estava direta­mente ligada ao caos existente em Samaria, que presenciava uma violenta

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revolução contra a dinastia de Jeú em favor da dinastia de Menaém. Pode- se até admitir que o tributo pago a Tiglate-Pileser por Menaém tinha um duplo propósito — conseguir o apoio da Assíria contra o rei Rezim de Damasco e garantir que a nova dinastia se estabelecesse poderosamente em Samaria.

Com a retirada de Tiglate-Pileser em 738, Rezim e Peca de Israel tive­ram condições de preparar a confederação siro-palestinense, cujo pro­pósito era resistir a uma segunda fase do plano assírio de conquistar o oeste. Na ocasião, Damasco tornara-se a poderosa base e a natural líder de toda a Síria, recrutando estados ao norte em favor de sua causa.44 Rapidamente Tiro, Sidon e outros centros fenícios se uniram. Até mesmo os filisteus e edomitas aderiram, embora talvez relutantemente. Apenas Judá se esquivou. Apesar de suas faltas, Acaz foi astuto o suficiente para perceber que a total dominação do leste mediterrâneo pela Assíria era uma questão de tempo. Então decidiu lançar a sorte em favor do vence­dor em potencial, ao invés de unir-se aos que acreditavam poder resistir ao inevitável.

As invasões de Rezim e Peca (735) foram logo seguidas por uma tenta­tiva de conquista de Jerusalém. Através de um cerco, forçariam a sua sub­missão à liga recém-formada. Acaz, encorajado pelo profeta Isaías, não cedeu. Ao invés disso, enviou um frenético pedido de ajuda a Tiglate- Pileser. Durante a crise, os filisteus e os edomitas aproveitaram-se da situ­ação e fizeram duras incursões pelo território de Acaz, capturando alguns postos avançados (2 Cr 28.16-18). O rei Rezim, percebendo talvez o dispa­rate do cerco a Jerusalém, partiu em direção sul para capturar a estratégi­ca cidade portuária de Elá, entregando-a nas mãos dos edomitas (2 Rs16.5,6). Judá assim perdeu o acesso ao mar pelo sul.

Quando Tiglate-Pileser descobriu a mudança dos acontecimentos, vol­tou para o oeste em 734, atacou as cidades de Ascalom, Gaza e Gezer, e levantou um cerco a Jerusalém. Depois, atacou fortemente o recalcitrante rei de Damasco, Rezim, em 732. O estrago foi tão grande que a cidade nunca mais tornou-se significante nos tempos do Antigo Testamento. Fi­nalmente, ele retirou de Israel seus territórios fronteiriços e estabeleceu seu adido no trono israelense: o jovem Oséias.43

44 Eph'al, "Israel: Fali and Exile," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 184-85.

45 Hallo, "From Qarqar to Carchemish," em Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, pp. 173-74. Quanto aos textos assírios, ver a obra de Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 283- 84. Baseado numa recente observação de um sincronismo entre a Assíria e Israel, Na'aman

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Acaz pagou um preço espetacular por sua sobrevivência, não apenas em termos monetários, mas especialmente pelos compromissos morais e espirituais que sua barganha política o forçou a cumprir. Conforme ob­serva o cronista bíblico, no fim Tiglate-Pileser deu para Acaz tribulação, e não socorro (2 Cr 28.21). Acaz teve de pilhar o templo para pagar o alto tributo exigido e, em gesto de agradecimento, ofereceu sacrifícios aos deuses da Assíria, a quem ele creditou os méritos da salvação. Além dis­so, estabeleceu centros de culto dos deuses pagãos por toda a terra. Não surpreende que o profeta Isaías tenha castigado o rei Acaz com os mais duros termos e predito o dia em que Judá também conheceria o terrível açoite assírio (Is 7.17).

Este açoite não veio de uma só vez, pois Acaz se manteve subserviente aos assírios pelo resto de seus dias. Além disso, Tiglate-Pileser achou-se envolvido com uma série de rebeliões em sua terra, especialmente por parte dos babilônicos. Tiglate-Pileser não poderia voltar para o oeste ain­da que quisesse e, quando as pressões diminuíssem, ele já estaria morto.

Sargão II da Assíria

O sucessor de Tiglate-Pileser foi Salmaneser V (727-722), que por fim to­mou a cidade de Samaria em seu último ano, mas decididamente evitou qual­quer conflito com o reino de Judá. Talvez o acordo feito entre Acaz e os assírios ainda estivesse em vigor. O mesmo pode ser dito quanto a Sargão, sucessor de Salmaneser, pelo menos até a morte de Acaz em 715. Em nenhuma inscri­ção o rei Sargão menciona alguma marcha contra Judá naqueles anos — em­bora seus registros estejam repletos de ações contra os vizinhos de Judá. Tam­bém não há nenhuma menção no Antigo Testamento.46 Isto é uma eloqüente prova de que o rei Acaz era submisso aos reis da Assíria, uma lealdade esta­belecida mediante a desobediência direta ao Senhor da aliança.

Sargão — que provavelmente não era filho de Tiglate-Pileser, conforme alguns procuram provar — foi um usurpador e reinou sobre o vasto Império Assírio de 722 a 705. Sendo um dos reis mais guerreiros da Assíria, também foi o responsável por algumas das mais significativas campanhas durante seus dezessete anos de reinado. Nos anais de seu primeiro ano, ele credita a si

propõe que Oséias depôs ao rei Peca depois que Tiglate se retirou do oeste, em 732. O coup d'êtat e a sucessão de Oséias devem ser datados em 731, aliviando assim o proble­ma de um reinado de nove anos para Oséias, encerrado em 722 ("Historical and Chronological Notes," VT 36 [1986]: 71-74).

4n Hawkins, "Neo-Hitite States," em CAH 3.1, pp. 416-17.

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mesmo as honras por haver tomado a cidade de Samaria, embora o relato bíblico informe que Salmaneser V foi o verdadeiro responsável pelo feito. Como afirmam muitos estudiosos, o rei Sargão atribuiu a si a grande conquis­ta para que seu primeiro ano de reinado não ficasse em branco.47

A ascensão de Sargão disparou uma série de rebeliões por todo o Impé­rio. Em 720 ele começou a tratar os conflitos, fazendo uma aliança com os elamitas e babilônicos em Der (Bedrai), cerca de 128 quilômetros a nor­deste de Babilônia.48 Provavelmente ele foi derrotado, embora cada lado reivindique a vitória. O líder das forças babilônicas foi Marduk-apla-iddina (o conhecido Merodaque-Baladan, da Bíblia).49

Imediatamente Sargão moveu-se em direção oeste, para subjugar a for­te coalizão siro-palestinense comandada por Hamate.50 Tomou de volta Damasco e Samaria,51 que no momento era considerada uma província assíria, e exigiu que Judá reafirmasse lealdade mediante o pagamento de um pesado tributo. Dali passou por Ecrom e Gaza, chegando até próximo à fronteira egípcia, onde forçou o líder do Baixo Egito, conhecido por Sib'e, a render-se.52 Finalmente, voltou-se para o norte e completou o cerco a Tiro que, cinco anos antes, havia sido conquistada por Salmaneser.53

Um pouco mais tarde, em uma segunda campanha a oeste em 717-716, Sargão invadiu e arrasou Carquemis, e mais uma vez moveu-se para o sul a caminho do Egito, onde venceu a principal e decisiva batalha travada próximo do Vadi el-Arish .54 Não há nenhum registro de um confronto

47 William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near East (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971), p. 138.

4S Albert Kirk Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles (Locust Valley, N.Y.: J.J. Augustin, 1975), pp. 73-74, Chronicle 1.1. 33-37

49 Brinkman, "Merodach-Baladan II," em Studies Presente to A. Leo Oppenheim, editado por Robert M. Adams, p. 13.

50 Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, p. 285. Portanto, Samaria foi tomada duas vezes. Ver Eph'al, "Israel: Fali and Exile," em World

History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 187.52 Kitchen, Third Intermediate Period, p. 373, interpreta o nome como Re'e e não Sib'e, iden­

tificando-o como o comandante do exército que estava sob o domínio de Osorkon IV (n. 743). Moshe Elat sugere que o intenso interesse da Assíria pelos negócios egípcios, des­de os tempos de Tiglate-Pileser em diante, era fundamentalmente econômico. Sua con­quista do bloco siro-palestinense foi feita para que as rotas comerciais que levavam ao Egito permanecessem acessíveis ("The Economic Relations of the Neo-Assyrian Empire with Egypt," JAOS 98 [1978]: 20-34).

53 Katzenstein, History ofTyre, pp. 229-30.54 Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 375-76; Pritchard, Ancient Near Eastern Texts,

p. 286c.

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com o reino de Judá; portanto, conclui-se que Acaz, agora em seu penúlti­mo ano de reinado, permanecia leal e submisso ao rei da Assíria.55

Ezequias de Judá

A situação m udou radicalm ente depois de 715, entretanto, pois Ezequias, filho de Acaz, afirmou lealdade única a Yahweh e rompeu total­mente a aliança com a Assíria (2 Rs 18.7). Na ocasião Sargão não pôde punir a aberta insubordinação, mas em 712 ele (ou um emissário seu) vol­tou para o oeste a fim de reprimir qualquer manifestação contrária a seu governo que porventura Ezequias houvesse instigado.56 Depois que feriu seus estados clientes - , possivelmente Judá estava incluído na lista - Sargon retornou para a Assíria a fim de lidar mais uma vez com o Marduk-apla- iddina, da dinastia dos Povos do Mar de Babilônia.57 Além disso, Sargão achou necessário proteger mais seus flancos a noroeste por causa de Mushku, na Ásia Menor, até que, em 709, ele conseguiu estabelecer um tratado de paz com o rei M ita.58 Por fim, Sargão sofreu uma séria invasão dos Cimerianos do norte, em 706, e é possível que tenha morrido no ano seguinte, vítima dessas hostilidades.59

Os anos de co-regência

Voltando ao início do reinado de Ezequias, observa-se que ele se tor­nou co-regente com Acaz no terceiro ano de Oséias, rei de Israel (2 Rs 18.1), em 729 a.C. Nessa época, estava ele com onze anos de idade,60 e provavelmente não foi influenciado pela apostasia promovida por seu pai. Mas sem dúvida o afastamento de Deus produziu um grande impacto na

55 Evans diz de fato que "não há evidências... de que Judá em qualquer ocasião tenha sofrido ações militares feitas por Sargão II" ("Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 161).

56 Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 286-87. Para uma excelente visão de toda a campanha, ver Gerald L. Mattingly, "A n Archaeological Analysis of Sargon's 712 Campaign Against Ashdod," NEASB 17 (1981): 47-64.

57 Isso ocorreu no décimo segundo ano de Merodaque-Baladan ou 710 a.C. Ver Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 75, Chronicle 1.21-5; Brinkman, "Merodach-Baladan II," em Studies Presented to A. Leo Oppenheim, editado por Robert M. Adams, pp. 18-19.

?s Hawkins, "Neo-Hitite States," em CAH 3.1, p. 421.~'q Olmstead, History o f Assyria, p. 267."J Os "vinte e cinco anos" em 2 Reis 18.2 obviamente referem-se à idade de Ezequias em

715, quando ele começou sua regência única.

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vida do jovem monarca. Logo que assumiu o reino, aos vinte e cinco anos de idade, ele já estava tão frustrado com os longos anos de falência espiri­tual que imediatamente iniciou um grande movimento de reforma que permeou todos os aspectos de Judá.

A reforma de Ezequias

A dependência da Assíria estava integralmente relacionada com o declínio espiritual que Judá experimentava sob o governo de Acaz. Foram as pressões de Tiglate-Pileser que enfraqueceram o coração de Acaz, fa- zendo-o abandonar Yahweh e a aliança, e ainda abraçar os cultos pagãos da Assíria. Então não surpreende que as relações políticas de Ezequias com a Assíria, agora sob Sargão II, fossem quebradas.

Uma leitura atenta das fontes disponíveis revela que, embora o aviva- mento espiritual se espalhasse em Judá, não é possível dizer que sua in­fluência imediata tenha interferido na quebra das relações com a Assíria.61 O cronista diz que logo no primeiro mês de reinado,62 o rei Ezequias rea­briu o templo e restabeleceu os serviços sagrados (2 Cr 29.3). Isto requeria uma obra de reparo, uma vez que os recintos sagrados não apenas torna­ram-se ritualmente impuros em razão dos sacrilégios de Acaz, como tam­bém deterioraram-se fisicamente pela ausência de uma manutenção pró­pria. Portanto, Ezequias reuniu os sacerdotes e levitas, encarregando-os de se consagrarem novamente para o serviço sagrado e juntos renovarem a aliança com Yahweh.

Dezesseis dias foram gastos para a obra da purificação. Quando a obra finalm ente encerrou-se, o rei Ezequias convocou uma santa as­sem bléia e ordenou aos sacerdotes que trouxessem ofertas para se­rem queim adas e oferecidas a Yahweh, bem como ofertas pelo pecado em favor de todo povo. Então, à m edida que os sacrifícios eram ofere­cidos, o coral e as orquestras do tem plo retum baram fortes louvores a

61 Evans diz que não havia qualquer indicação de uma rebelião anti-assíria na época da reforma ("Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 162).

62 Mordechai Cogan descreve com bastante percepção que essa foi uma "pseudo-data" que marcou apenas o interesse de Ezequias pelos negócios do templo, mas não necessa­riamente de sua reforma ("The Chronicler's Use of Chronology as Illuminated by Neo- Assyrian Royal Inscriptions," em Empirical Modelsfor Biblical Criticism, editado por JeffrevH. Tigay [Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985], pp. 202-3). Quanto ao porquê do cronista cobrir com mais detalhes os acontecimentos que envolveram a refor­ma do rei Ezequias, quando se compara o relato com 2 Reis, ver Jonathan Rosenbaum, "Hezekiah's Reform and the Deuteronomistic Tradition," HTR 72 (1979): 23-43.

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Deus. O culto findou com o oferecim ento de ofertas de ação de gra­ças, que atestavam a sinceridade e a com pleta dedicação daqueles que as traziam .

Quando o mês da Páscoa chegou, no primeiro ano de Ezequias, o rei quis restaurar a festa como uma observação nacional — parece que ela não vinha sendo celebrada apropriadamente por muitos anos — , mas percebeu ser fisicam ente im possível em virtude dos poucos sacerdotes qualificados (2 Cr 30.1-9). Além disso, não houve tempo hábil para a divulgação de suas intenções, e para que o povo viesse de todas as extremidades dos dois reinos. Então o rei decidiu adiar a celebração da Páscoa para o segundo mês, e enviou mensageiros desde Dã até Berseba, convidando o povo para a grande festividade que se realizaria em Je­rusalém .63 A mensagem de Ezequias era mais do que um mero convite; era um apelo a Israel, e também a Judá, para que se voltassem para o Deus de seus pais e renovassem a aliança com Yahweh. Poderiam ser apenas um rem anescente, mas Deus os abençoaria e restauraria seu fa­vor sobre o povo.

Entretanto, tão endurecida estava a nação, que muitos decidiram não ir a Jerusalém para celebrar a Páscoa. Apesar disso, um grande número de israelitas se ajuntou no décimo quarto dia para participar do festival que comemorava sua eleição e redenção como povo de Deus. Alguns estavam ritualmente impuros, provavelmente devido à lassidão espiritual, mas Ezequias intercedeu por eles perante o Senhor, a fim de que Ele não olhas­se para as mãos impuras do povo, mas para os seus corações dedicados (2 Cr 30.18,19).

A festa não durou os sete dias prescritos, mas estendeu-se por catorze dias, pois o povo estava cheio de alegria. O cronista relata que desde os tempos de Salomão não se comemorava a Páscoa assim. E Deus, dos céus, ouviu e se agradou das canções de louvor.

Como resultado da restauração do culto a Yahweh, todo vestígio e sím­bolo pagão foi destruído. Isto incluía não apenas os altos do sul ao norte, como também a serpente de bronze que Moisés fizera no deserto do Sinai (2 Rs 18.3-4; 2 Cr 31.1). Um indicativo de quão profunda era a apostasia de Israel é o fato de que adoravam qualquer objeto que, no passado, servira- lhes como símbolo da graça de Deus.

O próprio fato de Ezequias sentir-se à vontade para enviar mensageiros por todo o Israel, na expectativa de obter uma resposta favorável, é uma prova indiscutível, segun­do o estudioso Hanoch Reviv, de que a Assíria comandada por Sargão tinha pouco con­trole da região ("The History of Judah from Hezekiah to Josiah," em World History ofthe Jezvish People, vol. 4, parte 1, pp. 194-95).

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Seguiu-se à renovação da aliança com Yahweh a reorganização dos oficiantes religiosos e de suas responsabilidades.64 O rei Ezequias divi­diu os sacerdotes e levitas conforme prescrevia a Lei de M oisés, e orde­nou ao povo que viesse ao templo e trouxesse seus dízimos e ofertas para a manutenção da casa de Deus. O comando foi prontamente aten­dido com muita generosidade, e após quatro m eses acum ulou-se mui­to dinheiro e bens para o santuário. Foram trazidas tantas ofertas que o rei teve de construir outros depósitos para arm azená-las. Alguns ho­mens foram encarregados de adm inistrar o patrim ônio, de modo que os sacerdotes, levitas, e suas fam ílias pudessem obter a porção que lhes determ inava a lei, sendo m oradores de Jerusalém ou não. Assim o rei Ezequias fielm ente desempenhou suas funções de rei e sacerdote pe­rante o Senhor, de m aneira que o cronista relata que ele prosperou em seu reino (2 Cr 31.21).

A rebelião contra a Assíria

Em algum tempo no início de seu reinado, provavelmente logo após a reforma religiosa acima descrita, Ezequias rebelou-se contra Sargão, da Assíria, e recusou-se a pagar-lhe o pesado tributo que fora exigido de Acaz. Em seguida atacou alguns estados controlados pelos assírios, como a Filístia, fazendo pesadas incursões pela região, tomando alguns de seus entrepostos que haviam sido estabelecidos em Judá (2 Cr 28.18).63

Estranhamente, nem o livro dos Reis nem o das Crônicas relata a rea­ção de Sargão à ousada atitude de Ezequias. Porém, o profeta Isaías fala a respeito. Já se falou da campanha de Sargão em 717-716, na qual ele acabou com uma rebelião em Carquemis, no norte da Síria. Na ocasião, ele subjugou Shilkanni (= Osorkon IV) do Egito no Vadi el-Arish. Agora (715), o rei Acaz de Judá, o fiel vassalo dos assírios, estava morto, e no trono reinava seu filho Ezequias, um impetuoso anti-assírio. A razão de Sargão não saber a respeito da mudança na administração ou, se estava ciente, por que não tomou providências imediatas contra a rebelião de

64 A centralização do culto naturalmente resultou em uma reorganização política e admi­nistrativa incomparavelmente melhor. Tal reorganização interna pode ser evidenciada por mais de mil alças de jarros daquela época, em que se tem gravado o selo real (Imlk) e que foram descobertas em. Laquis e noutros sítios arqueológicos. Evans crê que os jarros reais foram produzidos para coleção e distribuição de ofertas religiosas ("Judah's Foreign Policy," em Scrípture in Context, p. 163).

65 B. Oded, "Neighbors on the West," em World History ofthe Jezvish People, vol. 4, parte 1, p. 244.

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Ezequias, permanece um mistério. Ao invés, Sargão voltou para Dur- Sharrukin (Khorsabad), sua capital.66

Uma pessoa de fé verá a atitude negligente de Sargão como um clás­sico caso de providência divina. Com os assírios de volta à sua terra, Ezequias teve oportunidade de efetivar a reforma e ainda enviar mensa­geiros à província assíria de Samaria, convidando os israelitas para a Páscoa. Esse descanso prolongou-se até 712, quando Sargão retornou para o oeste a fim de reprimir a rebelião filistéia em Asdode,67 estabelecer relações diplomáticas com Shabako, o sucessor núbio de Osorkon e* fi­nalmente, punir a rebeldia de Ezequias. Isaías faz menção dessa campa­nha assíria (20 .1 ), mas nenhuma fonte, bíblica ou não, revela as conseqü­ências sobre o reino de Judá. Conclui-se então que os objetivos malévo­los de Sargão não prevaleceram, embora haja um texto assírio que refe- re-se ao estado de Judá como um tributário de Sargão. Isto significa que o rei Ezequias esteve, pelo menos temporariamente, sujeito ao rei da Assíria.68 Quanto ao restante dos dias de Sargão (712-705), Judá ficou imune da interferência assíria, mas com a ascensão de Senaqueribe hou­ve mudança, e aproximadamente em 701, os assírios mais uma vez par­tiram em direção oeste.

Senaqueribe e o cerco de Jerusalém

Senaqueribe reinou de 705 a 681. Embora fosse filho de Sargão, ele deu início a algumas das maiores mudanças na política dos assírios, incluindo a transferência da capital do reino de Dur-Sharrukin para N ínive .69 Senaqueribe mal assumira o governo e estourou uma rebelião na Babilônia,

66 Hallo e Simpson, Ancient Near East, p. 140.67 Eph'al, "Assyrian Dominion in Palestine," em World History o f the jewish People, vol. 4,

parte 1, p. 277.68 Quanto à lista dos que pagavam tributos, a qual incluía o nome de Judá, ver Cogan,

Imperialism and Religion, p. 118. Ele julga que a lista é datada de 712 a.C. Baseado nesta e em outras evidências, A.R. Jenkins vai mais além e diz que o cerco de Jerusalém no décimo quarto ano de Ezequias tem de estar ligado ao rei Sargão, e não a Senaqueribe ("Hezekiah's Fourteenth Year," V I 26 [1976]: 284-98), acalmando assim o problema da hipótese das duas campanhas. Além do fato de que essa explicação necessariamente exigiria uma data para a ascensão de Ezequias em 727 (Jenkins) em vez de 729, confor­me já foi estabelecido, ela também vai diretamente contra o claro registro bíblico que relaciona o décimo quarto ano de Ezequias com Senaqueribe (esp. 2 Reis 18.13).

09 Olmstead, History o f Assyria, pp. 283-336. Quanto aos textos assírios com respeito a Senaqueribe, ver Daniel D. Luckenbill, The Annals o f Sennacherib (Chicago: University of Chicago Press, 1927).

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comandada pelo eterno adversário, Marduk-apla-iddina.70 Este líder da dinastia araméia dos Povos do Mar havia acabado de retornar do exílio imposto por Sargão, mas com uma tenacidade característica, logo conse­guiu apoio do povo e de alguns estados elamitas orientais e arameus oci­dentais para promover novamente a independência de Babilônia. Até mes­mo Ezequias pode ter se juntado a ele. Marduk-apla-iddina no mínimo enviou em baixadores à cidade de Jerusalém solicitando o apoio de Ezequias; não se sabe, entretanto, se o auxílio se concretizou (Is 39).

De qualquer forma, Senaqueribe prevaleceu e tomou a cidade de Babilônia, restabelecendo a soberania dos assírios na região. Ele também forçou uma subjugação sistemática de toda a área dos Povos do Mar. Sur­preendentemente, Marduk-apla-iddina instigou outra rebelião em 700, mas também foi derrotado. Dessa vez, porém, os assírios estabeleceram o fi­lho de Senaqueribe, Assur-nadin-sumi, como regente da Babilônia.71

Enquanto isso, Ezequias era motivado pelos egípcios a rebelar-se contra os assírios (2 Rs 18.13,21). Então em 701, Senaqueribe marchou para o oeste, e pelejou contra o Egito e Judá em Eltekeh (Tel esh-Shallaf), a oeste de Gezer, e ameaçou Jerusalém com severo castigo.72 Ezequias foi forçado a pagar um tributo exorbitante para poder escapar da destruição, o que resultou no es­vaziamento dos tesouros do palácio e do templo.73 Insatisfeito, o rei da Assíria decidiu infligir um cerco à cidade que certamente traria muita fome, doen­ças e mortandade à cidade de Jerusalém, não fosse a intervenção miraculosa de Yahweh na destruição do exército assírio, a qual forçou o retorno de Senaqueribe de mãos vazias para a cidade de Nínive.74

70 H.W.F. Saggs, "The Assyrians," em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), p. 163; Louis D. Levine, "Sennacherib's Southern Front: 704-669 B . C JCS 34 (1982): 29-34. Quanto ao texto, ver Luckenbill, Sennacherih, 1.1-64.

71 Olmstead, History ofAssyria, pp. 289-90; Levine, "Sennacherib's Southern Front," JCS 34 (1982): 41; Brinkman, "Merodach-Baladan II," em Studies Presented to A. Leo Oppenheim, pp. 26-27.

72 Quanto ao texto, ver Luckenbill, Sennacherib, 2.37-3.49.73 É interessante notar, como já o fez A.R. Millard, que o tributo não foi entregue imediata­

mente, mas depois enviado a Nínive. Isto dá a entender que Ezequias apenas fez uma promessa de pagamento, o que deixou Senaqueribe insatisfeito. Então ele ordenou um segundo cerco, mas Ezequias honrou seu compromisso mesmo depois que os assírios foram forçados a se retirar ("Sennacherib's Attack on Hezekiah," Tyn Buli 36 [1985]: 71).

74 A tese proposta pelo famoso estudioso John Bright (History o f Israel, p. 300), de que Senaqueribe empreendeu duas campanhas militares contra Jerusalém, e que foram in­tercaladas por um espaço de quinze anos, não tem como ser aceita. A base que sustenta

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O envolvim ento do Egito

Antes de um exame detalhado desta crise, é necessário observar rapi­damente a situação política do Egito, visto que as fontes bíblicas, particu­larmente Isaías, enfatizam consideravelmente o envolvimento do Egito nos negócios de Judá naquele tempo .75 Já descrevemos a situação confusa

tal idéia é o argumento de que Tiraca, da Núbia (2 Reis 19.9), que conduziu um exército egípcio para a Palestina na época do cerco de Jerusalém imposto por Senaqueribe, esta­va com apenas catorze a dezoito anos de idade em 701. Isso, obviamente, o desqualificaria como o comandante daquela campanha, de forma que a sugestão proposta é que ele conduziu uma outra campanha quinze anos mais tarde, em 686. A idéia de que Tiraca era um adolescente em 701 está baseada em uma má interpretação da cronologia da 25a Dinastia e das esteias 4 e 5 de Kawa. Como o próprio Kitchen demonstra, Tiraca estava com vinte ou vinte e um anos de idade em 701 e, portanto, bem hábil para ser pelo menos "o responsável pela expedição." O fato de ele ser chamado de "rei cusita" em 2 Reis 19.9 pode ser apenas uma antecipação proléptica de seu reinado, que realmente começou em 690 (Third Intermediate Period, pp. 157-61). Além disso, não existe referência nos anais de Senaqueribe ou mesmo no Antigo Testamento de uma campanha contra Jerusalém depois de 701, embora Bright e outros estudiosos proclamem ter descoberto uma quando isolam o texto de 2 Reis 18.14-16 de seu contexto (dessa forma vendo-a como o registro de uma campanha em 701), deixando 2 Reis 18.17-19.37 e Isaías 36 — 37 como registro dessa tal segunda campanha.Danna Fewell demonstrou que a passagem de Reis, sobre a qual as duas campanhas costumam se basear, é uma "unidade coesiva" que tem uma estrutura concêntrica e perfeitamente perceptível. Enquanto não chegam ao acordo acerca do número de cam­panhas, a análise que Fewell faz do texto pode conduzir a apenas uma conclusão — a de que o historiador descrevia um episódio maior ("Sennacherib's Defeat: Words at War in2 Kings 18.13 - 19.37," JSOT 34 [1986]: 79-90). Ver também Anson F. Rainey, "Taharqa and Syntax," Tel Aviv 3 (1976): 40.Contudo, a pouco tempo um estudioso chamado William H. Shea comparou alguns dos recentemente publicados textos assírios (K 6205 + BM 82-3-23,131), palestinos (o Papiro Adon) e egípcios (uma inscrição no templo em Karnak), e concluiu que eles indicavam decisivamente que realmente houve uma segunda campanha de Senaqueribe, que ele data em 688/687 ("Sennacherib's Second Palestine Campaign," JBL 104 [1985]: 401-18). Shea baseia boa parte de seu argumento nos estudos dos textos assírios de Hayim Tawil, que falam dos projetos de construção do rei Senaqueribe de sistemas de irrigação em Musur (monte Musri próximo de Nínive), em 694. Tawil associa o acádio Musri com o hebraico masôr de 2 Reis 19.24 (=Is 37.25), e diz que os mensageiros assírios não poderi­am estar se gabando, em 701, de um acontecimento que só iria ocorrer em 694. Sendo assim, Tawil sugere que a palavra hebraica que designa Musri pode ter sido posta no vernáculo por um editor posterior ("The Historicity of 2 Kings 19.24 [=Isaiah 37.25]: O problema de Ye'orê Masôr," JNES 41 [1982]: 195-206).

75 Ver especialmente Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 356-87.

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vivida pelo Egito durante o último terço do século oito. Duas dinastias, a 22a e 23% reinaram sobre uma parte bastante limitada na região do Delta, ao passo que a 24a Dinastia crescia e se localizava em Sais, no norte, e a 25- dinastia também se desenvolvia muito no extremo sul. Por volta de 737, Piankhy, o rei núbio da 25a Dinastia, assumiu o controle de todo o sul do Egito. Coagindo o norte, através da batalha crucial de Mênfis, ele também conseguiu submeter o Baixo Egito.

Mas quando Piankhy voltou para o sul, Tefnakht, da 24a Dinastia, rei­vindicou ser o líder do Baixo Egito. Osorkon IV, da 22a Dinastia (o rei So da Bíblia), aparentemente parecia ser seu servo. Depois que Piankhy mor­reu, Shabako, o próximo rei da 25a Dinastia, moveu-se para o norte a fim de unificar o Egito contra a ameaça de invasão de Sargão. Com dificulda­de, ele conseguiu a unificação desejada, mas somente pela extradição de um príncipe filisteu para S arg ão é que foi poupado do que certamente seria uma devastação para seu reino. A partir de então, Shabako só reinou porque obteve permissão dos assírios, até que morreu em 702.

Shebitku, um dos filhos de Piankhy, seguiu Shabako. Com espírito re­volucionário, logo após a morte de Sargão, em 705, Shebitku com seu exér­cito armado moveu-se para o norte em 701 para juntar-se aos estados pa­lestinos, que incluíam Judá, no esforço de deter o avanço do novo rei da A ssíria, Senaqueribe.76 Quando Shebitku chegou, é possível que o rei Ezequias já houvesse prometido seu tributo ao rei assírio. De qualquer forma, Senaqueribe suspendeu suas hostilidades contra Jerusalém quan­do soube que Shebitku estava a caminho. Então confrontou o Egito e Judá em Eltec.77 Vitorioso, Senaqueribe repartiu seu exército, deixando parte para manter a defesa contra os egípcios e a outra para retomar contra Jerusalém, aparentemente para punir Ezequias por sua colabora­ção com os rebeldes.

Mas agora, um novo contingente militar, maior e mais poderoso, co­mandado pelo príncipe egípcio Tiraca estava a caminho. Senaqueribe foi informado de tal movimento egípcio, mas advertiu Ezequias de que seu auxílio em nada seria proveitoso, uma vez que os assírios já haviam destruído esses mesmos inimigos uma vez (2 Rs 19.9-13). De fato, o Egito

76 Nadav Na'aman, "Sennacherib's 'Letter to God' on His Campaign to Judah," BASOR 214 (1974); 33-34.

77 É possível, é claro, que a cobrança do tributo exigido pelos assírios e a destruição das cidades interioranas de Judá tenha sucedido e não precedido a vitória de Senaqueribe em Eltec. Ver Eph'al, "Assyrian Dominion in Palestine," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 278-79.

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provou ser uma "cana quebrada" (2 Rs 18.21): Shebitku e Tiraca retira­ram-se, sem causar nenhum dano aos assírios. Mas Ezequias descobriu que não precisava do Egito de forma alguma, pois os exércitos de Yahweh logo repeliriam a poderosa máquina de Senaqueribe.

A morte de Senaqueribe

Depois que Senaqueribe voltou para a Assíria, ele descobriu que esta­va com um duplo problema: a primeira dinastia dos Povos do Mar e tam­bém os elamitas.78 Ele tentou uma invasão naval em Elam, mas foi repeli­do, e os elamitas, por sua vez, atacaram Babilônia. Assur-nadin-sumi, o filho de Senaqueribe, que lá era o governador, foi levado cativo. Três anos depois, em 692, ocorreu uma batalha árdua entre os elamitas e assírios no vale Diyala, um conflito que terminou em um empate. A Babilônia, que na ocasião estava sob o domínio do nativo Musezib-Marduk, foi atacada e saqueada por Senaqueribe em 689,79 e permaneceu sem rei pelos últimos oito anos de Senaqueribe, que morreu vítima de uma conspiração armada por dois de seus filhos .80 O tumulto permitiu que um outro filho de Senaqueribe, o conhecido Esaradon, ocupasse o lugar de seu pai, manten­do o controle da situação que ameaçava explodir.81

Os últimos anos de Ezequias

Com esse cenário em vista, será mais fácil reconstruir de alguma forma o confuso registro cronológico da última parte do reinado de Ezequias, conforme 2 Reis, 2 Crônicas e Isaías. A confusão surge porque o relato não se apresenta em ordem cronológica, especialmente em Isaías, e porque os historiadores sagrados, como é freqüentemente o caso, preferem ordenar suas discussões por temas, tópicos, ou assuntos teológicos, diferentemen­

78 Olmstead, History ofAssyria, pp. 283-86; Levine, "Sennacherib's Southern Front," JCS 34(1982): 41.

79 J.A. Brinkman, "Sennacherib's Babylonian Problem: An Interpretation," JCS 25 (1973): 94-95.

50 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 81, Chronicle 1.3. 34-38. Simo Parpola demonstrou que o assassino foi o filho de Senaqueribe chamado Arad-Ninlil, um nome equivalente ao Adrameleque da Bíblia ("The Murderer of Sennacherib," em Death in M esopotamia, editado por Bendt Alster, Rencontre assyriologique internationale 26 [Copenhagen: Akademisk Forlag, 1980], pp. 171-82).Ver o chamado Prisma B em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 289-90.

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te dos historiógrafos modernos.82 Apesar disso, as linhas principais são bastante semelhantes e os acontecimentos podem ser propriamente har­monizados. O que segue é algo repetitivo de nossa prévia discussão, mas a ênfase agora é sobre o ponto de vista bíblico.

A doença de Ezequias

A história começa com a doença de Ezequias, um episódio registrado em todas as três fontes (2 Rs 20.1-19; 2 Cr 32.24-26; Is 38,39). Ela deve ter ocorrido antes da invasão de Senaqueribe, uma vez que o acontecimento é antecipado. O papel de M erodaque-Baladan é bastante significativo aqui, pois ele enviou mensageiros para ostensivamente se congratula­rem pela recuperação de Ezequias, mas na realidade buscava apoio para a independência do reino dos Povos do Mar. Aquela rebelião começara em 703; então é quase certo que a doença de Ezequias tenha se manifes­tado após esta data.83 Em acréscimo, a oração de Ezequias por recupera­ção ocasionou a prolongação de sua vida em quinze anos. Ele morreu em 686 (depois de um reinado de vinte e nove anos, que começou em 715); logo, a oração deve ter sido feita em 701. A doença propriamente pode ser datada em 702 ou 701.

A campanha de Senaqueribe

Bem pouco tempo após Ezequias recuperar-se de sua enfermidade, e após a partida dos embaixadores de Merodaque-Baladan, Senaqueribe par­tiu para o oeste e pressionou terrivelmente Jerusalém, uma campanha re­gistrada em Reis e Isaías. Apenas se especula o motivo da campanha, embo­ra a maioria dos estudiosos assuma que Ezequias associou-se à coalizão siro-palestinense contra os assírios. Se esta visão de que Merodaque-Baladan enviou seus mensageiros a Jerusalém primeiro e em seguida Ezequias fez

s2 Evans, "Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 84.83 R eviv data a ida dos mensageiros em 703-702 ("The History of Judah from Hezekiah to

Josiah," em World History o f the Jeioish People, vol. 4, parte 1, p. 196). Em parte porque Merodaque-Baladan é chamado de Rei em Isaías 39.1, John H. Walton sugere a data de 703, a última data na qual ele é conhecido por esse título ("New Observations on the Date of Isaiah," JETS 28 [1985]: 129; ver também Julian Reade, "Mesopotamian Guidelines for Biblical Chronology," Syro-Mesopotamian Studies 4.1 [1981]: 2; Brinkman, "Merodach- Baladan II," em Studies Presented to A Leo Oppenheim, p. 33). A missão diplomática não poderia ter sido tanto tempo antes, porque ela surge após a doença de Ezequias, em cerca de 702.

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algum acordo mútuo de defesa estiver correta, o ataque de Senaqueribe a Jerusalém deve ter tido um objetivo específico: punir Ezequias por sua des­lealdade, cortando o relacionamento deste com a dinastia dos Povos do Mar.

E certo que algo semelhante aconteceu, pois está implícito na mensagem de Ezequias a Senaqueribe que, tendo este devastado a maior parte de Judá, agora liderava tropas contra os egípcios, filisteus e outros próximos a Eltec. Em abjeta contrição Ezequias confessou: "...Pequei; retira-te de mim; tudo o que me impuseres levarei" (2 Rs 18.14). Claramente Ezequias está admitin­do algum tipo de ofensa contra administração de Senaqueribe, provavel­mente a recusa em pagar o tributo exigido pelos assírios. Então ele prome­teu que enviaria mais tarde um enorme tributo, chegando ao ponto de ar­rancar o ouro das portas do templo e dos seus pilares. Observa-se, incidentalmente, que os representantes de Merodaque-Baladan admiraram- se da riqueza do palácio de Ezequias, o que certamente não poderiam ver caso a visita ocorresse após Senaqueribe exigir o pesado tributo.84

Aparentemente satisfeito, e também pressionado no campo de guerra, Senaqueribe retirou-se de Jerusalém e arremeteu contra uma coalizão re­belde primeiramente em Laquis, e depois em Libna (2 Rs 18.17; 19.8). Ele os derrotou e devastou um grande número de cidades e vilarejos de Judá, e então retornou para Jerusalém .85 Enquanto isso, o rei Ezequias se prepa­rou para enfrentar um cerco prolongado; então mandou fechar os poços de água que estavam fora da cidade, para impedir que os assírios os utili­zassem. Também reforçou as muralhas e armazenou grande número de armas (2 Cr 32.1-5).

Na peleja contra Laquis, Senaqueribe preferiu enviar três de seus ofici­ais, um tartãnu, um rab-sãris e um rab-sãqeh86 para que negociassem com Ezequias os termos da rendição. Com propósito de evitar os custos de deslocamento dos exércitos para aquele local, tentaram conquistar a cida­

84 Evans, "Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 163.85 O curso dessa campanha agora pode ser muito mais bem entendido graças à fusão de

dois fragmentos textuais (Na'aman, "Sennacherib's 'Letter to God/ BASOR 214 [1974]: 25-39), que acabou se constituindo na grande descoberta para a harmonização dos rela­tos bíblicos e assírios; ver Nadav Na'aman, "Sennacherib's Campaigns to Judah and the Date of the LMLK Stamps," VT (1979): 69-70. A destruição de Laquis em 701 também tem sido confirmada através dos estudos minuciosos de David Ussishkin, "The Destruction of Lachish by Sennacherib and the Dating of the Royal Judean Storage Jars," Tel Aviv 4 (1977): 52-53.

86 Esses três termos significam "principal comandante," "eunuco-mor" e "mordomo-che- fe", ver Gray, I & II Kings, p. 678. Quanto a rab-saqeh, ver Richard A. Henshaw, "Late Neo-Assyrian Officialdom," JAOS 100 (1980): 290, 299.

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de pela intimidação. Os enviados de Senaqueribe lembraram o povo de que a poderosa máquina de guerra assíria não tinha respeito por deuses ou homens. Mesmo a notícia de que Tiraca, rei do Egito, estava a caminho com seus exércitos não ajudou. Os embaixadores de Senaqueribe passa­ram a clamar em alta voz para que todo o povo pudesse ouvir e entender. Se eles se entregassem, o rei da Assíria não puniria Jerusalém. E até re­compensaria os habitantes da cidade, garantindo-lhes paz e prosperidade como nunca haviam tido antes.

Essa tentativa de tomar a cidade teria alcançado seu objetivo não fosse a intervenção de Isaías, que insistiu com o rei Ezequias para que confiasse em Yahweh a fim de obter a salvação. O profeta assegurou que Deus inter- viria em favor do povo, e faria os assírios se retirassem (2 Rs 19.6,7). En­quanto isso, o rab-saqeh retornou a Senaqueribe para dar-lhe seu relatório, porém não o achou em Laquis, mas em Libna. Senaqueribe ouviu falar de um movimento de enormes tropas núbias, comandadas por Tiraca, que seguiam em direção norte. O rei da Assíria entendeu que esta era a razão da intransigência de Ezequias, de forma que imediatamente enviou outro grupo de embaixadores a Jerusalém com uma carta do rei assírio, aconse­lhando Ezequias a render-se. A carta questionava: como o rei do Egito poderia servir de algum auxílio se por várias outras ocasiões os assírios provaram sua superioridade sobre todas as nações que se lhe opunham?

Ao receber a carta, a primeira providência do rei de Judá foi apresentá-la perante o Senhor, suplicando-lhe que se manifestasse poderosamente contra o blasfemo rei da assíria. Ezequias disse ao Senhor que, de fato, Senaqueribe humilhara os deuses das outras nações, mas estes não eram verdadeiramente deuses nem aquelas nações eram o povo de Deus. Agora o Deus de Judá poderia demonstrar, de uma vez por todas, que Ele é o único Deus.

Não muito tempo depois da oração, chegou a palavra do profeta Isaías afirmando que Yahweh enviaria a resposta. O Deus de Israel conhecia to­dos os sucessos dos assírios muito antes de existirem; na verdade, tudo isso aconteceu pela permissão de Deus. O orgulho dos assírios e seu fra­casso em não perceber que eram apenas um instrumento de Yahweh re­sultariam em sua própria tragédia. Quanto a Judá, este seria poupado da máquina de guerra assíria, pois Yahweh com seu braço forte preservaria a cidade de Davi.

Naquela mesma noite o anjo de Yahweh feriu 185.000 homens do exér­cito assírio.87 Devastado e totalmente desmoralizado, Senaqueribe aban­

87 Os céticos, é claro, consideram o relato como uma "narrativa teológica," segundo as palavras de Ronald E. Clements, Isaiah and the Deliverance o f Jerusalem, suplemento 13 do JSOT (Sheffield:

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donou seus planos de conquistar Jerusalém, e retornou com o que lhe res­tou de seus exércitos para a capital em Nínive. Os anais de Senaqueribe registram em termos triunfais seu sucesso no cerco imposto ao rei Ezequias, em Jerusalém — "como um pássaro engaiolado," 88 mas, de acordo com a prática tradicional, propagavam-se as vitórias e omitiam-se os reveses.

Os últimos quinze anos

Os historiadores bíblicos silenciam acerca dos últimos quinze anos do reinado de Ezequias. O cronista informa que foram dias de prosperidade incomum (2 Cr 32.27-29). Os tesouros novamente encheram-se de bens, e novos celeiros e armazéns foram construídos para armazenar as abun­dantes colheitas que se seguiram. Ezequias também construiu um túnel para suprir Jerusalém com água em abundância, trazida de fora das mu­ralhas — um milagre da engenharia que até hoje causa espanto e admira­ção.89 Houve outros empreendimentos durante os anos de seu governo.90 Ezequias morreu em 686, deixando o reino nas mãos de seu filho e co- regente, Manassés, um homem profundamente iníquo.

O ponto de vista dos profetas

Antes de encerrarmos a retrospectiva deste período mais importante da história de Israel, é necessário observar a fase através dos olhos dos profetas que participaram dos maiores eventos e interferiram nos resulta­dos. Já nos referimos repetidamente ao profeta Isaías que, pelos dados históricos em seu livro, suplementa os livros dos Reis e das Crônicas. Mas sua apresentação prosaica do fato histórico é apenas uma pequena parte de seu significado. Muito mais importante é sua interpretação dos fatos e de seu papel como mensageiro de Deus com respeito aos negócios políti­cos e religiosos de Israel. Imbuído de seu ofício profético, Isaías era tanto

University of Sheffield.,1980), p. 21. Quanto ao episódio como um exemplo da intervenção divina, ver Millard, "Sennacherib's Attack on Hezekiah," Tyn Buli 36 (1985): 75-77.

88 Luckenbill, Sennacherib, 3.18-23.89 Kathleen Kenyon, Jerusalem (New York: McGraw-Hill, 1967), pp. 69-71. Quanto ao texto

de uma inscrição encontrada num túnel e seu significado histórico, ver Victor Sasson, "The Siloam Tunnel Inscription," PEQ 114 (1982): 111-17.

90 O surpreendente crescimento populacional que se verificou em Jerusalém e suas vizi­nhanças, depois de 700 a.C. e que, segundo M. Broshi, foi o resultado de uma migração em massa que vinha de Israel, tem sua confirmação convincentemente provada e docu­mentada pela evidência arqueológica ("The Expansion of Jerusalem in the Reigns of Hezekiah and Manasseh," IEJ 24 [1974]: 21-26).

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um participante ativo de sua sociedade quanto um porta-voz através do qual as verdades contemporâneas e escatológicas eram mediadas. Isaías não estava sozinho, pois Oséias e Miquéias eram seus contemporâneos e também deram suas próprias contribuições. O mais antigo dos três, Oséias, será estudado primeiro.

Oséias

Oséias, filho de Beeri, um profeta cujo ministério concentrou-se prin­cipalmente no Reino do Norte, exerceu seu ministério por muitos anos. Ele próprio revela que profetizou durante os anos de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias de Judá, e nos dias de Jeroboão II, rei de Israel (Os 1.1). Esta apresentação deve ser entendida como uma base histórica para a mensa­gem do profeta, indicando uma mudança de residência ou, no mínimo, de interesse de Israel para Judá. É possível ver isso no reinado de Jeroboão II — o único rei de Israel que aparece nessa lista, cujo governo encerrou- se em 753 — e o de Ezequias, que iniciou sua co-regência em 729 e seu reinado independente em 715. Não há como explicar o motivo de o pro­feta Oséias ter omitido os reis Menaém, Peca e Oséias — todos de Israel, a não ser que ele tenha deixado Samaria nos últimos anos de Jeroboão, ou que as intenções proféticas de seu ministério não tivessem relação com esses reis.91 A última hipótese, sem dúvida, é a mais provável den­tre as duas.92 Infelizmente há poucos indícios em seus escritos de qual era o local de sua residência em qualquer momento de seu ministério.

Logo no início de seu livro, Yahweh ordena que Oséias case-se com uma mulher adúltera. Pouco depois — não há motivo para supor que esse relato é uma parábola ou uma experiência figurada93 — nasce-lhe um filho cujo nome, Jezreel, significava que a dinastia de Jeú estava prestes a che­gar ao fim. Isto realmente aconteceu quando Zacarias foi assassinado por Salum, em 753. Visto que Zacarias não é mencionado por Oséias, a profe­

91 Francis I. Andersen e David Noel Freedman oferecem uma sugestão bastante plausível, de que Oséias via em Jeroboão o último e real descendente no trono de Israel, tanto porque ele era o último (com exceção de Zacarias) da linhagem de Jeú, quanto porque, após sua morte, iniciou-se uma era sem paralelos de uma política catastrófica naquele reino (Hosea, Anchor Bible [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1980], pp. 147-48).

92 Conforme as palavras de E.B. Pusey, Oséias "marca sua profecia com os nomes dos reis de Judá, porque o reino de Judá era considerado o reino da teocracia" (The Mínor Prophets [Grand Rapids: Baker, 1967 reedição], vol. 1, p. 19).

93 Quanto aos vários pontos de vista, ver em C. Hassel Bullock, An lntroduction to the Old Testament Prohphetic Books (Chicago: Moody, 1986), pp. 88-92.

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cia deve ter sido dita enquanto Jeroboão ainda estava vivo. E uma vez que a estrutura de toda a composição é tal que a "metáfora do casamento" é claramente sua parte mais antiga, uma data pouco antes de 753 parece mais conveniente como um terminus a quo para o ministério público de Oséias.

O comando de Yahweh para que Oséias se casasse com a adúltera Gomer tinha o propósito de simbolizar o caráter adúltero de Israel, com quem Yahweh, através do pacto no Sinai, tinha se "casado". Certamente Gomer, que era uma ilustração da infidelidade na aliança, estava incontaminada na ocasião de sua união com o profeta; apenas mais tarde tornou-se uma prostituta, alugando-se a qualquer amante que a desejasse. Assim, disse o profeta, a nação de Israel havia feito, e por causa deste comportamento iníquo, precisava ser despejada mediante o divórcio. Apesar de Israel ter se desviado do amor divino, indo após os baalins daquela geração, Yahweh se mostraria benigno e traria de volta para si o seu povo, curando definiti­vamente suas feridas.

As referências aos amantes de Israel (e.g., Os 2.5,7) é uma forma inci­siva de descrever a incrível apostasia que Oséias testemunhou por toda parte durante os anos de Jeroboão. Por causa de seu próprio nome o Senhor tolerou os centros de culto pagão localizados em Dã e Betei, que eram a total negligência da aliança mosaica. Essa apostasia produziu toda sorte de violência e crimes, passando a existir uma insensibilidade uni­versal para com a vontade de Deus e sua santidade. O povo procurava os lugares altos e as cavernas para envolver-se em todo tipo de ritual que incluía a prostituição. Tão perversa e caótica tornara-se a situação que o profeta entendeu não haver mais esperança para a intercessão. Efraim estava firmemente unida aos seus ídolos; até certo ponto Judá permaneceu livre de todo o embaraço, então Oséias intercedeu para que o reino do sul mantivesse distância de Gilgal e Bete-Aven (4.15).94

Com esta palavra, Oséias pode ter de fato começado a residir em Judá, pois a partir daquele momento ele parece ver o reino de Israel quase que a distância. Por exemplo, ao referir-se ao "rei Jarebe" (KJV) da Assíria — provavelmente uma cifra para Tiglate-Pileser III93 — o profeta informa

94 Muitos estudiosos vêem aqui a referência a Judá como uma interpolação editorial feita por um redator posterior; ver, por exemplo, Hans Walter Wolff, Hosea (Philadelphia: Fortress, 1974), p. 89. James L. Mays, porém, mostra que esse não é o caso em hipótese alguma: o profeta está avisando a Judá para não cair na mesma armadilha que sua irmã do norte caíra (Hosea [Philadelphia: Westminster, 1969], p. 77).

95 Wolff, Hosea, pp. 104,115.

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que Efraim "subiu à Assíria" (5.13). Essa é sua forma de descrever a sub­missão do rei Oséias aos assírios em 732. Além disso, as referências à Judá tornam-se ainda mais proeminentes, ainda que Efraim permanecesse a razão principal da profecia de Oséias.

De acordo com seu chamado profético, Oséias continua a apelar para que Israel se arrependa. Realisticamente, entretanto, ele parece sentir a impossibilidade. O povo de Deus não tem nenhum desejo de voltar-se para Ele. Ao contrário, seus olhos voltam-se para os assírios e para os egípcios, uma estratégia que só os levará à destruição. O apelo ao Egito, que o profeta Oséias cita em 7.11, pode ter sido aquele que o rei Oséias fez (2 Rs 17.4). Na ocasião, o Egito era comandado por Osorkon IV, exa­tamente nos dias tumultuosos da transição de Tiglate-Pileser III para Salmaneser V (727 — este número corresponde com a referência à conti­nuidade do ministério do profeta até os dias de Ezequias). Mas Oséias seria co r ta d o , d iz o p ro fe ta , d a mesma maneira que "Salmã destruiu Bete- Arbel" (Os 10.14-15).96 Salmã, sem dúvida, não é outro senão Salmaneser V (727-722), o rei assírio que finalmente conquistou Samaria e levou ca­tivos seus habitantes.

A situação histórica de Israel é sem esperança, diz Oséias, mas a histó­ria n ã o é o fim d o p r o b le m a . Chegaria o dia em que Deus traria de volta o seu povo, agora curado para sempre de sua idolatria, e os laços da aliança de amor, que uma vez unira ambos, seriam mais uma vez vistos no casa­mento entre Deus e o seu povo.

Isaías

Talvez o maior e mais amado profeta de todo o Antigo Testamento, Isaías, filho de Amoz, era um jovem contemporâneo do profeta Oséias. Segundo sua própria informação, envolveu-se no ministério profético em 740, bem no ano da morte do rei Uzias, ano em que o serafim tocou em seus lábios com uma brasa que havia sido tirada do altar. Na ocasião, o Senhor, alto e sublime, comissionou-o para que fosse ao seu povo com uma mensagem de salvação e julgamento (Is 6).

E impossível e completamente fora de propósito neste livro tratar dos pontos teológicos que envolvem a profecia de Isaías. Em vez disso, exami­nemos os seus escritos como fundamento histórico que auxiliará na me­lhor compreensão da história de Israel. Freqüentemente, Isaías utiliza os

96 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 431, identifica a cidade de Bete-Arbel como Irbid or Arbela, uma cidade em Gileade, ao sudeste do mar de Quinerete.

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dados históricos quando profetiza à nação. E até mesmo quando pronun­cia os oráculos escatológicos de Deus, i\ão se desprende de sua sociedade.

Embora às vezes o profeta forneça evidências cronológicas ou referênci­as históricas a acontecimentos que auxiliam na datação de sua mensagem, a verdade é que este não parece ser o caso. E impossível reconstruir com pre­cisão o padrão histórico que envolve esse material. A forma geral com que ele apresenta seus vaticínios parece seguir um curso cronológico ordeiro, mas há muitas passagens que estão ligadas apenas por tópicos ou por con­teúdo teológico, em vez de por ordem cronológica. Um típico exemplo está registrado em seu próprio chamado para o ministério profético, pois mes­mo sendo o acontecimento mais antigo em todo o livro, vê-se o mesmo evento registrado no capítulo 6 de sua profecia, e não no início do livro.

Há duas principais narrativas no livro de Isaías: capítulos 7— 8 e ca­pítulos 36— 39. A primeira ocorre rvo reiuado de Acaz, e a últim a r\o de Ezequias. Ambas foram aludidas em nossa descrição do reinado desses reis, mas agora é importante que os detalhes especiais sejam considera­dos cuidadosamente. O cronista, de fato, dá a entender que uma das maiores fontes do reino de Ezequias — uma fonte que ele provavelmen­te teve como sua base — foi a obra de Isaías (2 Cr 32.32). Em acréscimo à essas duas maiores passagens acima mencionadas, outras referências históricas e acidentais também ocorrem por todo livro e ajudam a com­pletar o quadro político e histórico que se passava naqueles dias, acres­centando substancialmente à nossa discussão.

A longa e brilhante carreira do príncipe dos profetas abrange partes de ou todo o reinado de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias (740-681). E notável o fato de ele rvão fazer qualquer menção a um só rei de Israel tva introdução de seu livro, embora o faça mais tarde. A razão deve ser que ele foi um profeta para o reino do sul, não havendo, portanto, necessidade de referir- se a algum rei de Israel na introdução de seu livro.97 Além disso, depois da queda de Samaria em 722, não houve mais rei ou Estado de Israel, de modo que Isaías fixou a atenção exclusivamente em Judá pela maior parte de seu ministério. E, de fato, uma análise mais detalhada de sua profecia re­vela que o Sitz im Leben de praticamente todos as suas obras ocorreu após 722. A exceção é a narrativa do capítulo 7, onde a fatal aliança de Acaz contra Rezim, de Damasco, e Peca, rei de Israel, é relatada.

Logo no início de sua mensagem, há um texto disputado,98 um ríb-, no qual o profeta fala de Jerusalém, "a Filha de Sião," sendo poupada da

97 Edward J. Young, The Book oflsaiah (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), vol. 1, pp. 28-29.98 Quanto a esse importante gênero profético literário, ver Berend Gemser, "The Rib- or

Controversy Pattern in Hebrew Mentality," VT suplemento 3 (Leiden: E.J. Brill, 1955),pp.

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ruína que se abateu sobre outras cidades de Judá como uma cidade sob um cerco (1.2-9)." Claramente, Israel já havia caído e Jerusalém estava em grande apuro. Imediatamente, pensa-se na campanha de Senaqueribe em 701, quando os assírios subiram contra todas as cidades fortificadas de Judá e as tomaram, segundo registrado em 2 Reis 18.13. O próximo orácu­lo, porém, descreve um período bem mais anterior, talvez aquele de Jotão, pois é feita uma declaração de que crianças governariam sobre Judá (3.4— Acaz?) e que Yahweh entraria em juízo contra todos os juízes iníquos que oprimiram seu povo (3.13-15).100 As mulheres de Jerusalém pareciam- se com as mulheres de Samaria, todas arrumadas com ornatos materialis­tas. Ostentavam-se orgulhosamente e eram indiferentes para com o Se­nhor. Este período encaixa-se perfeitamente no intervalo entre Uzias e Ezequias. E não há nenhuma evidência interna para se datar os capítulos 4 e 5 de outra maneira.

O capítulo 6, é claro, relata o chamado do profeta em 740, "o ano da morte do rei U zias" (6.1). O cenário de Isaías 7.1— 10.4 ocorre muitos anos depois desse episódio, equivalente ao tempo da coalizão Rezim- Peca contra Judá. Este pacto foi feito entre nações que por séculos eram hostis uma contra a outra, mas que, em face da ameaça de invasão de Tiglate-Pileser III em 734, esqueceram momentaneamente as suas dife­renças. Embora Jotão ainda fosse tecnicamente o rei de Judá (até que morreu em 731), está claro que o real poder estava nas mãos de seu filho Acaz, que preferira colocar-se ao lado da Assíria a apoiar a coalizão en­tre Damasco e Israel, atraindo para si a ira destes reis.

A narrativa de Isaías refere-se aparentemente aos esforços de Rezim e Peca para capturar Jerusalém, e não às campanhas independentes feitas em tempo anterior (2 Cr 28.5-8). Acaz, então, já havia sofrido nas mãos de seus vizinhos do norte e aterrorizava-se ao pensar em ser alvo de uma

120-37; Herbert B. Huffmon, "The Covenant Lawsuit in the Prophets," JBL 78 (1959): 285-95; James Limburg, "The Root and the Prophetc Lawsuit Speeches," JBL 88 (1969): 291-304; Kirsten Nielsen, Yahweh as Prosecuior and Judge: An lnvestigation o f the Prophetc Lawsuit (Rib-Pattern), JSOT suplemento 9 (Sheffield: University of Sheffield, 1978).

99 Peter Machinist presta atenção à fraseologia aqui e noutras passagens em Isaías que fazem referência aos assírios e compara-a com as inscrições reais desse povo que foram escritas durante aqueles anos ("Assyria and Its Image in the First Isaiah," JAOS 103[1983]: 724-29). Não há dúvida de que Isaías testemunhou tudo o que escreveu e que estava também familiarizado com a linguagem e literatura assírias.

100Thomas K. Cheyne, The Prophecies o f Isaiah (New York: Thomas Whittaker, 1886), vol. 1, p. 22; Franz Delitzsch, Biblical Commentary on the Prophecies o f Isaiah (Grand Rapids: Eerdmans, 1954 reedição), vol. 1, p. 139.

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outra campanha, o que provavelmente resultaria na perda de sua capital e, provavelmente, de sua própria vida.101

Exclusivamente por sua graça, Yahweh enviou o profeta Isaías para assegurar ao rei Acaz que este seria poupado das mãos de Rezim e Peca. Disse-lhe também que os dias destes reis estavam contados, e seus esfor­ços para banir Acaz do trono, estabelecendo em seu lugar o filho de Tabeel, não prosseguiriam. O profeta aconselhou Acaz a buscar um sinal de Yahweh para confirmar todos estes acontecimentos, mas o rei já havia determinado no coração buscar socorro com o rei da Assíria. Isaías então profetizou que uma virgem conceberia, e o seu filho seria chamado de Emanuel. Este seria o sinal da misericórdia de Deus, a despeito de toda a incredulidade de Acaz. Na providência de Deus, aquEle Filho, no senti­do messiânico, era Jesus de Nazaré. Mas o sinal específico para Acaz e sua corte era uma criança, não identificada, que nasceria de uma jovem mulher conhecida pelo rei.102 Antes que a criança alcançasse a idade de discernir entre o bem e o mal, Rezim e Peca perderiam os seus tronos, e Acaz começaria a sofrer a depredação de seu aliado assírio. Damasco caiu em 732 e Rezim, seu rei, foi sumariamente executado. Quase simul­taneamente Peca foi assassinado, e em seu lugar levantou-se o rei Oséias, um aliado dos assírios. Assim, o cumprimento da palavra profética ocor­reu dentro de dois anos. Sete anos mais tarde, Salmaneser V finalmente tomou a cidade de Samaria, causando também espanto e terror ao reino de Acaz. Não foi senão no reinado de Ezequias, cerca de dez anos de­pois, que a Assíria iniciou suas campanhas sistemáticas contra Judá e quase eliminou o reino do Sul, como acontecera com o reino do Norte. E sobre essa série de ataques que o profeta Isaías está profetizando. As incursões dos assírios resultariam na ocupação das terras de Judá, em

101A maioria dos estudiosos vê os acontecimentos de 2 Crônicas 28.5-8 e Isaías 7.1-2 como idênticos, porém uma leitura cuidadosa sugere que Rezim e Peca primeiro conduziram ataques separados contra Acaz e, depois, juntaram-se em uma outra campanha pouco tempo depois. Quanto a uma apresentação bastante convincente desta interpretação, ver Young, Book oflsaiah, vol. 1, pp. 267-69.

102 Para esse e outros pontos de vista que tratam dessa importante passagem messiânica, ver Herbert M. Wolf, "A Solution to the Immanuel Prophecy in Isaiah 7.14 - 8.22," JBL91 (1972): 449-56; VValter C. Kaiser, Jr., Toivard an Old Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1978), pp. 207-20. Kaiser afirma que o filho da promessa era Ezequias, filho de Acaz, mas já se discutiu anteriormente que Ezequias nasceu em 740. Somente conje- turando que houve erros textuais por todo o relato (algo que o próprio Kaiser não faz) pode-se admitir esse tipo de identificação. Um defensor desta visão é John McHugh, "the Date of Hezekiah's Birth," V T 14 (1964): 446-53.

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uma diminuição acentuada da população nativa, e na total destruição do sistema agrícola do país.

Deste mesmo período vem o alerta de Isaías 9.8-21, que fala do terror que se abateria sobre a cidade de Samaria, causado pelos inimigos de Rezim: os assírios e seus aliados. Daí seguiria um julgamento semelhante sobre Judá do qual, ironicamente, Israel fazia parte. Todo este complexo de acontecimentos deve ser associado à rendição de Israel a Tiglate-Pileser em 743-742, e à invasão subseqüente de Judá primeiramente por Rezim, e depois por Peca, na década seguinte.

O cenário dos oráculos de Isaías 10.5-19 surge muitos anos depois e estão relacionados com o julgamento dos assírios, os quais Yahweh envi­ara contra Judá para discipliná-lo. Os assírios não compreenderam que eram apenas uma vara utilizada pelo Deus onipotente de Israel. Eleva­ram-se a si mesmos sobremaneira, de modo que em seus murais e docu­mentos da época encontrados, atribuem a sí mesmos a destruição das cidades de Damasco e Samaria (Is 10.8-11; cf. 2 Rs 18.34,35; 19.12,13). Toda a vangloria pode ser vista nas próprias palavras de rab-saqeh, quan­do se dirigia ao rei Ezequias na ocasião em que Senaqueribe impôs cerco sobre Jerusalém em 701. A iminência da ameaça assíria é descrita pelo profeta nos mais vividos termos (Is 10.28-32). Os assírios já haviam en­trado em Aiate (Khirbet Haiyân),103 menos de dezesseis quilômetros de distância ao norte de Jerusalém, diz o profeta, e passaram por Migrom (Tel M iriam ),104 bem mais próximo da capital. Deixaram seus suprimen­tos em Micmás (Mukhmâs),105 cidade próxima a Migrom e planejaram acampar-se em Geba (Jebá)106 ao sul, em preparação para o cerco de Je­rusalém. O terror caiu sobre Ramá, Gibeá, Galim (Khirbet ka'kül),107 Laís (el-Isawiyeh?),108 e Anatote (Râs el-Kharrübeh),109 todas pequenas cida­des ao norte da capital. Parece que também existia um avanço assírio pelo sul, pois o profeta anuncia que a população de M admena,110 entre

103 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 430.104Oxford Bible Atlas, p, 135.105 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 439.106 Ibid., p. 435.107Oxford Bible Atlas, p. 129.106 Ibid., p. 134. Aharoni e Avi-Yonah, porém, identificam el-Isawíyeh com Nobe (Macmillan

Bible Atlas, p. 181).109 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 430. Para um bom mapa que descreve a rota de Senaqueribe,

ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 154.110 Ou Madmaná — ver Aharoni, Land ofthe Bible, p. 346. Porém, a maioria dos estudiosos

identifica Madmena com um ponto ao norte (talvez Khirbet Soma), e toda a lista das

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Berseba e Hebrom, desocupara a cidade. Os cidadãos de Gebim (desco­nhecida) e Nobe,111 no monte das Oliveiras, também preparavam-se para a devastação inevitável que viria pelas mãos dos assírios.

Este oráculo de Isaías é extremamente importante para a reconstrução da estratégia de Senaqueribe em suas duas operações contra Jerusalém em 701, mais particularmente para a primeira, que resultou na promessa de Ezequias de pagar-lhe um tributo. Na ocasião Senaqueribe estava em Laquis, e já havia atacado as cidades fortificadas de Judá (2 Rs 18.13,14). Essas cidades incluem, certamente, aquelas mencionadas por Isaías na lis­ta acima. Deduz-se que Senaqueribe estava em guerra contra a cidade de Laquis, pois esta era uma fortaleza que guardava o caminho para Jerusa­lém, ou seja, o caminho daqueles que vinham do sul naquela direção.112 Quando os embaixadores de Senaqueribe retornaram, depois de terem ameaçado e exigido a rendição de Jerusalém sem êxito, não mais encon­traram seu rei em Laquis, mas em Libna, cerca de dezesseis quilômetros de distância e na direção norte. Portanto, parece que os assírios, uma vez que tomaram as cidades do norte, do sul e do leste de Jerusalém, estavam decididos a tomar as cidades de defesa estabelecidas ao ocidente, a fim de tornar Jerusalém completamente vulnerável. Quando conseguiram seu ob­jetivo, chegou a vez de formar o cerco em Jerusalém e, não fosse a inter­venção divina, sem dúvida a capturaria definitivamente.

Um relato completo da campanha de Senaqueribe em 701 encontra- se no livro de Isaías, capítulos 36 e 37. Entretanto, o profeta desmente que houve uma primeira fase — a devastação do interior e a exigência do tributo — com apenas um versículo (36.1), e concentra-se exclusiva­mente na libertação sobrenatural de Jerusalém das mãos dos assírios. O propósito claramente é demonstrar e enfatizar a intervenção de Yahweh em favor de seu povo, em resposta à intercessão de Isaías e do rei Ezequias. Tem-se aqui, portanto, um clássico exemplo de "história sa­grada", uma historiografia que registra de forma acurada os fatos, mas que concerne fundamentalmente o significado teológico desses aconte­cimentos.

cidades indica que a marcha vinha apenas do norte. Ver Otto Kaiser, Isaioh 1-12 (Philadelphia: Westminster, 1972), p. 152.

111 Ver p. 215, n. 55; p. 289, n. 3.112 Baseado nos conhecidos selos de Imlk, Nadav Na'aman identifica as cidades fortificadas

com a lista de quinze cidades encontradas em 2 Crônicas 11.6-10, uma passagem que ele data no período de Ezequias. Ele afirma que Ezequias reforçou as fortalezas e os postos avançados de defesa que haviam sido construídos muitos anos antes, durante o reinado de Roboão ("Hezekiah's Fortified Cities and the LMLK Stamps," BASOR 261 [1986]: 10-11).

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O verdadeiro ponto apresentado por Isaías não é o conflito existente en­tre Judá e os assírios, mas entre suas teologias e ideologias. A pergunta cen­tral é: Quem é Deus? A essência do discurso de rab-saqeh significava que a Assíria era invencível porque seus deuses eram invencíveis (36.13-20). Por­tanto, seria inútil para Ezequias buscar o Senhor, já que os deuses de Hamate, Arpade e Sefarvaim não puderam resistir a máquina de guerra assíria. O próprio conteúdo da carta recebida por Ezequias, cujo remetente era Senaqueribe, dizia claramente que Yahweh não poderia evitar a fatalidade que estava por vir contra aquela cidade, pois seria como os outros deuses das outras nações, que não conseguiram livrar suas cidades (37.10-13).

Ezequias percebeu corretamente a ameaça assíria como uma questão teológica, e não política ou militar, pois se voltou para Yahweh e confes­sou que somente Ele era o soberano entre todos os reinos da terra. Sua soberania baseava-se no fato de ter sido Ele o criador dos céus e da terra, uma autoridade exclusivamente dEle. E justamente por isso os deuses das outras nações foram destruídos diante dos assírios, pois, na verdade, não eram deuses, mas criação de seus adoradores néscios.

A mensagem de Isaías em resposta à oração de Ezequias também pos­sui o mesmo sentimento. Os assírios, disse o profeta, tinham zombado e escarnecido de Yahweh, Deus de Judá (37.21-35), mas esqueceram-se de que fora Ele mesmo o que havia levantado os assírios, permitindo-lhes ser um instrumento na correção de seus filhos rebeldes. Os deuses dos assírios nada tinham a ver com o sucesso da nação ou com a crise em Judá. Além disso, Yahweh mostraria para todas as nações e reinos que Ele é que havia levantado os assírios e tinha também o direito e o poder de abatê-los. E, naquela mesma noite, Yahweh abateu o rei Senaqueribe e seus exércitos. Outra demonstração da soberania de Yawheh sobre todos os demais siste­mas religiosos aconteceu, ironicamente, no próprio templo dos deuses assírios, de quem o rei Senaqueribe tanto se vangloriava (37.38). Senaqueribe foi assassinado em Nínive enquanto adorava o deus Nisroque. O deus que falhara com ele em Jerusalém foi, vinte anos mais tarde, ex­posto como um produto da imaginação assíria: não pôde livrar um de seus servos devotos, que buscava-o com sinceridade.

Examinamos as principais passagens contidas no livro de Isaías que servi­ram como documento histórico. Isto não quer dizer, é óbvio, que o restante de sua profecia, mesmo com as seções estritamente escatológicas, não tenha va­lor como testemunho para a história de Israel. Pelo contrário, o restante do livro é extremamente importante como um aferidor da temperatura que en­volvia a época em que o profeta viveu. Mas o valor das outras seções, do ponto de vista histórico, é sensivelmente limitado pelo fato de o profeta ter

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O C astig o d e Ya h w eh : A ssíria e o J uízo D ivino 4 5 5

vivido por um longo período de tempo (765-680). Assim, qualquer luz que o livro lance sobre assuntos históricos, sociológicos, econômicos e políticos não pode ser prontamente conciliada com algum evento histórico específico. E o problema se intensifica com a impossibilidade de datar a maior parte dos oráculos, senão de maneira extremamente subjetiva. Esta insegurança impe­de o historiador de querer usá-los. Por outro lado, onde o profeta estava cons­cientemente engajado em narrar os acontecimentos, ele proveu informação tanto da situação histórica quanto do significado teológico.

M iquéias

Finalmente, a breve produção do profeta Miquéias encerrará este capí­tulo. Infelizmente, ele fornece ainda menos documentação histórica do que seu contemporâneo mais velho e ilustre Isaías.113 Miquéias também foi um profeta de Jerusalém, mas sua mensagem, diferentemente de Isaías, estava dividida entre os dois reinos. A impressão geral do declínio moral e espiritual em Israel e em Judá que caracteriza o livro de Isaías também se encontra em Miquéias, mas ele não compôs sua mensagem de julgamento e esperança em uma matriz de narrativa histórica, como fez ocasional­mente Isaías. Portanto, Miquéias deve ser utilizado com cautela como uma testemunha da seqüência dos acontecimentos de seus dias.

Os oráculos mais antigos de Miquéias antecedem o ano de 722, pois ele profetiza a queda de Samaria como a expressão da ira de Yahweh contra a casa real de Israel (1.6,7). Jerusalém também foi alcançada por sua palavra profética de julgamento, pois seu rei, sem dúvida Acaz, conduzira a nação de Judá para os mesmos pecados abomináveis. A palavra de julgamento chegaria aos ouvidos dos filisteus e esses se regozijariam em face da ruína que estava por vir sobre Judá.

O restante da mensagem de Miquéias não pode ser datado com preci­são. Israel e Judá viriam a sucumbir, mas o mesmo aconteceria com seu terrível adversário, a Assíria (5.5,6). Na plenitude dos tempos, porém, o povo do Senhor seria restaurado e, sob o domínio de seu Rei Messias, desfrutariam para sempre da aliança eterna feita com seus pais (7.7-20). E assim Miquéias, como Isaías, encerra sua mensagem com uma nota de esperança, uma palavra que parecia estar em profundo contraste com as terríveis perspectivas para Judá no início do sétimo século.

113 Uma excelente, embora breve, introdução ao contexto histórico do profeta Miquéias pode ser encontrada em Leslie C. Allen, The Books t f Joel, Obadiah, Jonah and Micah (Grand Rapids: Eerdmans, 1976), pp. 239-53.

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E S P E R A N Ç A D E S V A N E C E N T E : A D E S I N T E G R A Ç Ã O D E J U D Á

O legado de EzequiasOrgulho e suas conseqüências A superficialidade das reformas

M anassés de Judá A m om de JudáO cenário internacional: A ssíria e Egito Josias de Judá

Relações com a Assíria Reform as religiosas

A q ueàâ de JerusâlémA catastrófica destruição em M egido Jeoacaz de Judá Jeoiaquim de Judá O Im pério N eo-Babilônico

O contexto histórico

NabopolassarA sucessão de Nabucodonosor

Jeoiaquim e Zedequias de Judá As conseqüências

O testem unho dos profetasNaumHabacuqueSofoniasJeremias

O legado de Ezequias

Depois da morte do bom rei Ezequias, em 686, e do profeta Isaías, Judá entrou em um processo de declínio em todos os setores, do qual não mais viria a recuperar-se, exceto pelo breve reinado de Josias. As sementes des­sa deterioração, que perdurou por exatamente cem anos (686-586), não são fáceis de traçar, mas certamente o próprio Ezequias possui alguma responsabilidade, mesmo que no cômputo geral, o testemunho da histó­ria esteja substancialmente a seu favor.

Orgulho e suas conseqüências

Uma falha específica no caráter de Ezequias pode ser vista no seu com­portamento para com os embaixadores de Merodaque-Baladã, de Babilônia. O cronista refere-se a esse incidente de forma bastante sucinta: a cura de

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4 5 8 H istória df. I srael a:o A ntig o T esta m est-.

Ezequias realizada por Yahweh tornou o rei orgulhoso, de sorte que o Se­nhor usou os embaixadores da Babilônia para testar o seu coração (2 Cr 32.25,31). O autor de Reis e o profeta Isaías declaram que o rei Ezequias expôs os tesouros do reino à embaixada babilônica (2 Rs 20.12-15; Is 39.1- 4). Esses visitantes chegaram para solicitar o apoio de Ezequias, um anti- assírio, à causa de Merodaque-Baladã, que por muitos anos tentava criar um estado caldeu soberano e independente da Assíria. O fato de Ezequias ter aberto seus tesouros para os embaixadores de Babilônia pode ser a expressão de um suposto apoio à causa dos caldeus, de forma que queria impressioná-los mostrando-lhes sua força e seu poder. Tal atitude foi má aos olhos do Senhor, ocasionando a ira de Yahweh contra Judá e Jerusa­lém. Ezequias arrependeu-se, mas Isaías o informou de que chegaria o tem po em que os d escend entes p o líticos desses m esm os caldeus retomariam para Jerusalém. Eles despojariam todo o tesouro de Judá e levariam seus filhos e filhas para a corte real da Babilônia.

A superficialidade das reformas

O pecado do rei em si não poderia ter precipitado a profecia do ju l­gamento. Tal atitude foi apenas um ato público isolado, embora extre­m amente sério, pois tinha sido cometido pelo próprio rei. Ainda mais grave, entretanto, era a situação espiritual e moral que se perpetrava no meio da população, com uma violação indescritível da aliança. Uma breve revisão do livro de Isaías revelará a apostasia e a perversidade que existia no reino, a despeito da reforma promovida por Ezequias no princípio de seu governo. A adoração tornara-se profundam ente hipó­crita (1.10-15), os poderosos exploravam os mais fracos e indefesos (1.21- 23), e a classe alta desfrutava a luxúria que lhes advinha da extorsão e dos altos tributos pagos pelo pobre (3.16-24). Yahweh havia libertado seu povo da opressão egípcia, plantando-os em uma terra próspera e farta, conhecida como a terra da promessa. Mas quando o Senhor espe­rava colher frutos maduros, o povo produziu frutos desprezíveis (5.1- 7). Consum idos pelo espírito da ganância e glutonaria, embriagavam- se desde a manhã até a noite, em total desrespeito e descaso para com o Senhor (5.8-12). Até mesmo os líderes, incluindo profetas e sacerdotes, afastaram -se da verdadeira aliança e prostituíram seus ofícios em fa­vor de seus interesses.

O nobre caráter de Ezequias opõe-se radicalmente ao de sua geração má. Qualquer que tenha sido o benefício da reforma religiosa, percebe-se claramente que fora superficial e temporária, pois o veredicto profético

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E sperança D esvanecentf. : A D esinteg ra çã o d e J udá 4 5 9

para aquela geração de Judá é unânime: culpados de alta traição. E, uma vez que a influência restringente de Ezequias e Isaías não mais estava em ação, a vida moral e espiritual de Judá declinou rapidamente.

Manassés de Judá

O declínio de Judá pode ser melhor compreendido quando se observa a vida do filho de Ezequias, o rei Manassés, que chegou ao domínio abso­luto em 686, permanecendo no poder até 642.1 O fato de ele ter reinado por cinqüenta e cinco anos só pode ser explicado mediante uma co-regên­cia com Ezequias, em cerca de 696 até 686. A razão para o rei Ezequias haver decidido elevar um menino de doze anos a tal posição é um assunto para especulação. Mas é possível que a doença de Ezequias (cerca de 702)0 tenha motivado a tomar as mediadas necessárias para garantir a suces­são dinástica.2

Igualmente misteriosa foi a incapacidade de Ezequias de comunicar os princípios de retidão a seu filho, pois Manassés provou ser uma antítese de seu pai. Após tomar posse do reino, Manassés imediatamente se voltou para os deuses cananeus que eram adorados na terra antes da conquista. Semelhante a Acabe de Israel, ele erigiu altares para os baalins e para as imagens de Aserá, chegando mesmo ao extremo de oferecér sacrifícios humanos, incluindo seus próprios filhos, em uma ocasião no vale de Hinon. Praticantes de todo o tipo de arte religiosa pagã — feiticeiros, encantado­res, bruxos, agoureiros, médiuns e espíritas — foram elevados em posição de destaque na terra. Mas a maior e mais ofensiva de todas as blasfêmias cometidas por Manassés foi a instalação de uma imagem da deusa Aserá no recinto sagrado do templo — considerado pelo próprio Yahweh o local exclusivo e perpétuo de sua habitação (2 Rs 21.2-7).

O resultado de todo o descaso para com a justiça foi a Palavra de Yahweh através dos profetas de que Judá sofreria o mesmo juízo de Israel. O mes­mo critério pelo qual Samaria fora julgada seria aplicado a Jerusalém, e o veredicto de culpado seria inquestionável. Então Judá, o elemento rema­nescente do povo de Deus, seria levado cativo.

1 Exceto com indicação em contrário, as datas reais utilizadas neste capítulo baseiam-se em Edwin R.Thiele, The Mysterious Numbers ofthe Hebrezv Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), p. 61. A cronologia dos últimos anos de Judá também apresenta problemas em seus detalhes — um assunto que não pode ser tratado nesta obra — mas foi bem traba­lhada em Alberto R. Green, "The Chronology of the Last Days of Judah; Two Apparent Discrepancies," JBL

1 Thiele, Mysterious Numbers, pp. 157-58.

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O cronista relata que a tolice de Manassés em não dar ouvidos aos pro­fetas ocasionou sua deportação para a Babilônia pelas mãos dos assírios (2 Cr 33.10-13). O monarca assírio responsável certamente era Assurbanipal (668-627), filho e sucessor de Esaradon.3 A referência a Babilônia, como tendo sido o local para onde o rei Manassés fora deportado, serve como importante instrumento de datação cronológica, uma vez que Assurbanipal não se tomou senhor de Babilônia antes de 648.4 Manassés não pôde ter ido para lá antes disso. Maiores informações podem ser extraídas dos anais de Assurbanipal, que registram a invasão ao Egito em 667 que, por fim, resultou na tomada de Tebas e que contou, inclusive, com a ajuda material de Manassés.5 O texto assírio revela claramente que Manassés era um dos vassalos de Assurbanipal desde 667.6 A ida para a Babilônia em 648 ou pouco depois pressupõe que Manassés violara seu pacto de submissão a Assurbanipal de alguma forma.

Não se sabe quanto tempo o rei de Judá esteve na Babilônia, mas prova­velmente ele foi conduzido ao arrependimento e à fé bem no princípio de seu cativeiro. O Senhor ouviu suas orações e clamor e, pela sua grande mi­sericórdia, trouxe-o de volta para Jerusalém e restaurou-lhe o trono de Davi. Manassés então demoliu todas as imagens e altares pagãos que ele próprio mandara erguer e restaurou a adoração ao verdadeiro Deus. O povo conti­nuou a reunir-se nos altos, observa o cronista, mas tão-somente para servir a Yahweh (2 Cr 33.17). Manassés também fortificou ainda mais Jerusalém e os postos avançados, uma tarefa necessária em vista da possibilidade de mais interferências assírias pelo oeste ou, quem sabe, da exigência de mais tributos ao rei de Judá. Para os assírios, Manassés ainda era seu vassalo.7

3 John Bright lança a teoria de que Manassés pode ter sido conduzido ao cativeiro porque apoiou ou incentivou a rebelião promovida por Samas-sum-ukin (652-648), que era o irmão de Assurbanipal e vice-rei da província de Babilônia (A History o f Israel, 3'1 edição [Philadelphia: Westminster, 1981], p. 311). Porém, muitos estudiosos negam a historici­dade dessa deportação e de qualquer relato a ela relacionado, atribuindo tudo a uma linguagem poética ou a alguma tentativa de produzir edificação. Ver, por exemplo, J. Alberto Soggin, A History o f Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 239.

4 B. Oded, "Judah and the Exile," em Israelite and Judaean History, editado por John H. Hayes and J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 294.

5 James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 294.

6 Hanoch Reviv, "The History of Judah from Hezekiah to Josiah," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, The Age o f the Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalém: Massada, 1979), p. 200.

7 Ibid.

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A inclusão de todos os pecados de Manassés, sua deportação, arrepen­dimento e restauração pelo cronista bíblico é mais instrutiva, porque ser­ve como uma prefiguração do próprio cativeiro de Judá. A nação também cometeria várias atrocidades e pecados, de sorte que seria deportada para a Babilônia. Lá também os cativos chegariam ao arrependimento e, em razão do pacto mantido por Deus, seriam finalmente restaurados. Os pro­fetas da ocasião devem ter utilizado a experiência de Manassés como exem­plo para indicar o fim de Judá.

Amom de Judá

Amom, filho de Manassés, parece não ter aprendido a lição, pois anu­lou o padrão estabelecido por seu pai e restaurou o paganismo que carac­terizara os primeiros anos do reinado de Manassés (2 Rs 21.19-24; 2 Cr 33.21-25). Este deve ter sido o resultado dos vários anos em que Amom viveu na corte de seu pai enquanto imperava o paganismo, pois ele nas­ceu pelo menos dezesseis anos antes de Manassés arrepender-se e retornar para Jerusalém (ver 2 Rs 21.19). Também é provável que ainda existisse no reino alguns focos de resistência contra a reforma religiosa promovida, os quais buscavam o retorno ao antigo status quo. Parte da estratégia foi in­duzir o jovem rei a abandonar a política de seu pai e lançar um outro programa de governo.

Também é razoável assumir que a volta de Manassés para casa foi com­prada pelo alto preço da lealdade ao governo assírio e que Amom, sempre cauteloso com Assurbanipal, tentava manter boas relações. Por isso as au­toridades acreditam que o assassinato do filho de Manassés só pode ter sido conseqüência dessa política pró-assíria, e que seus algozes foram ho­mens de um suposto partido anti-assírio (2 Rs 21.23). Estes rebeldes foram exterminados por um movimento contra-revdlucionário que instalou o fi­lho de Amom, Josias, no trono (2 Rs 21.24).8 Se os detalhes deste cenário estão corretos ou não, o certo é que Josias rebelou-se contra a Assíria, en­contrando a morte em uma tentativa de apoiar a aliança medo-caldaica, cujo propósito era a destruição do reino assírio.

O cenário internacional: Assíria e Egito

Será bastante instrutivo neste ponto observar o cenário internacional do sétimo século, particularmente quando o mundo estava dominado pe­

8 Bright, History, pp. 316-17.

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los assírios e egípcios no princípio e, depois, pelos babilônicos.9 Dentro de oito anos, após a incorporação de Babilônia ao seu reino em 689, Senaqueribe foi assassinado enquanto adorava seu deus em Nínive. Seu filho, Esaradon, que servia no reino de seu pai como um representante na Babilônia, teve de retornar imediatamente para Nínive a fim de restaurar a ordem e apoderar-se do trono da Assíria. Enquanto isso, os assassinos, dois dos próprios filhos de Senaqueribe, fugiram e estabeleceram-se em Urartu. Então passaram a ameaçar e causar muitos problemas para os assírios ainda por muitos anos.

A dinastia dos Povos do Mar aproveitou-se do momento difícil e instá­vel para engendrar mais uma vez sua própria independência em Babilônia. Os rebeldes esperavam obter o apoio dos elamitas, mas como tal não acon­teceu, Esaradon teve a oportunidade de reprimir a revolução e designar um governador segundo sua vontade.10

Outra fonte de problemas surgiu no noroeste, e caracterizou-se por uma série de escaramuças promovidas pelos Asguzaya, que mais tarde passa­ram a ser conhecidos por Citas. Estes causaram enormes danos ao império assírio, especialmente porque roubaram consideráveis extensões territoriais da fronteira. Também no oeste os sidônios estavam promovendo uma rebe­lião contra a autoridade assíria e somente depois que o rei Esaradon sa­queou a cidade (677), pôde trazer estabilidade para a região mais uma vez.11

Então, Esaradon fez uma série de tratados com os Medos — inimigos incessantes dos estados da Mesopotâmia. Esses tratados, muitos dos quais ainda hoje sobrevivem, são importantes porque provêem informações va­liosas não apenas acerca dos aspectos históricos da época, mas também acerca da estrutura dos textos neo-assírios do gênero.12 A aliança docu­mentada era extremamente frágil, pois em dez anos os medos e assírios estavam novamente em conflito.

Esaradon estava envolvido mais uma vez com seu insolúvel problema— os Povos do Mar, que como cães ferozes persistiam em obter a indepen­

9 Para a seguinte discussão, ver especialmente os textos de Esaradon que foram publica­dos por Rykle Borger, Die Inschriften Asarhaddons, Kõnigs von Assyrien, AFO supplement9 (1956): Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 289-91.

10 Quanto à política conciliatória de Esaradon a respeito da Babilônia, ver J.A. Brinkman, "Through a Glass Darkly: Esarhaddon's Retrospects on the Downfall of Babylon," JAOS103 (1983): 35-42.

" H. Jacob Katzenstein, The History o f Tyre (Jerusalem: Schocken Institute for Jewísh Research, 1973), p. 259.

:2 D.J. Wiseman, The Vassal Treatíes ofEsarhaddon (London: British School of Archaeology in Iraq, 1958).

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dência babilônica dos assírios.13 A princípio, ele tentou forçar o fim da rebelião, mas parece que nada resolvia a questão, a menos que ele institu­ísse seu poderio de uma vez no local. Sendo assim, Esaradon estabeleceu dois de seus filhos como co-regentes. Assusbanipal governaria a Assíria e um segundo filho, Samas-sum-ukin, governaria a Babilônia.14 Esta deci­são favoreceria o orgulho dos povos, pois seriam equiparados aos assírios, permitindo-lhes que exercessem controle sobre toda a Mesopotâmia. Em­bora o plano funcionasse por um tempo, os assírios esqueceram-se da de­terminação quase fanática dos príncipes caldeus, os quais pretendiam dominar Babilônia a qualquer custo.

Com o problema babilônico solucionado, pelo menos por um tempo, Esaradon empreendeu a expedição mais bem-sucedida dentre todas as que realizou: a conquista do Egito .15 O reino do Nilo estava sendo go­vernado na ocasião (671 a.C.) por um rei da Núbia, chamado Tiraca, que estava envolvido em outros problemas. Assim ele perdeu M ênfis e todo o Baixo Egito para os assírios.16 Mas recuperou-se do golpe e retomou o Baixo Egito em cerca de 669. Na ocasião, o Esaradon partiu para o Egito a fim de resolver a crise ali existente, mas morreu no cam inho .17 É pro­vável que Manassés de Judá houvesse se tornado um vassalo dos assírios na ocasião em que Esaradon conseguiu obter vitória sobre os egípcios, em 671.

Tiraca tornou-se rei da ilustre 25a Dinastia núbia na ocasião do faleci­mento de seu irmão Shebitku em 690. Como um jovem oficial militar com cerca de vinte anos, ele participou de uma campanha egípcia contra o rei Senaqueribe, quando o Egito e alguns aliados tentavam rechaçar a amea­ça assíria que vinha contra Judá, em 701. Quando, por fim, Tiraca foi cons­tituído Faraó, estabeleceu um reinado pacífico por toda a metade de seu reinado — por vinte e seis anos. Em cerca de 674, os assírios voltaram a ameaçar. Embora Esaradon à princípio não tivesse obtido sucesso nas fron­teiras egípcias, sendo repelido pelas forças do Nilo, ainda assim persistiu na captura de Mênfis, o que ocorreu em 671. Mesmo após a morte de

13 A.T. Olmstead, History o f Assyria (Chicago: University of Chigado Press, 1975 reedição), pp. 350-52.

14 Ibid., pp. 396-97.15 Kenneth A. Kitchen, Third Intermediate Period in Egypt (1100-650 B.C.) (Warminster: Aris

and Phillips, 1973), pp. 391-92.16 Quanto aos textos assírios que documentam a conquista, ver Albert Kirk Grayson,

Assyrian and Babylonian Chronicles (Locust Valley, N.Y.: J.J. Augustin, 1975), p. 85, Chronicle1.4. 23-27.

17 Ibid., 11. 30-33.

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E s p e r a n ç a D e s v a n e c e n t e : A D e s i n t e g r a ç ã o d e J udá 4 6 5

Esaradon, os egípcios tiveram pouco alívio, pois Assurbanipal, o novo rei dos assírios, deu início às suas próprias operações militares contra o Egito em 667.K Isto resultou não apenas na queda de Mênfis por mais uma vez, mas também na penetração das forças assírias em Tebas, tida como o cora­ção do Egito. Tiraca foi forçado a mover-se para o sul, para Napata, e den­tro de três anos (664) morreria ali.

Na Assíria, Assurbanipal (668-627)19 tomou rápidas providências após a morte de seu pai para assegurar uma monarquia exclusiva.20 Logo que assumiu o trono, teve de tratar com os medos, que não apenas violaram os tratados firmados com Esaradon, mas também bloquearam as estradas principais que davam acesso ao interior do Irã. O próprio irmão de Assurbanipal, Samas-sum-ukin, que reinava nas províncias de Babilônia, também sentia-se desconfortável sob a liderança do irmão, passando en­tão a desenvolvei pianos paia fortalecer o sen domínio.

Entretanto, a preocupação maior de Assurbanipal era a situação peri­gosa existente no Egito.21 Assim que a situação se mostrou favorável, ele adotou novamente a política imperialista de seu pai com respeito ao Egi­to. Retomou Mênfis e, após morte de Tiraca, respondeu a uma ameaça de contramedidas egípcias. Por sua vontade, estabeleceu no trono do Egito o rei Psamético, filho de Neco I, de Sais, introduzindo assim a 26a Dinastia.22

As contramedidas egípcias acima mencionado foram adotadas por Tantamani (664-656), sobrinho de Tiraca, que foi hábil o bastante para to­mar tem porariam ente a cidade de M ênfis, m atar Neco I, o últim o governante da 24a Dinastia (Saite), e conquistar a simpatia de todo Egito para ser o próximo faraó. Mas as campanhas de Assurbanipal em 663 for­

18 Litchen, Third Intermediate Period, pp. 392-93.19 A cronologia da segunda metade do último século da história assíria é extremamente

problemática. O sistema admitido aqui é o que temos em Joan Oates, "Assyrian Chronology, 631-612 B.C., Iracj, 27 (1965): 135-59.

20 As fontes primárias para o reinado de Assurbanipal podem ser achadas em Robert S. Lau, TheAnnals o f Ashurbanipal, Semitic Study Series 2 (Leiden: E.J. Brill, 1903); M. Streck, Ashurbanipal, 3 vols. (Leipzig: J.C. Hinrichs, 1916); R.C. Thompson, The Prisms o f Esarhaddon and o f Ashurbanipal (London: Oxford University Press, 1931); Arthur C. Piepkorn, Historical Prism Inscriptions o f Ashurbanipal (Chicago: University of Chicago Press, 1933); Mordechai Cogan, "Ashurbanipal Prism F: Notes on Scribal Techniques and Editorial Procedures," JCS 29 (1977): 97-107. Ver também nota 26.

21 As complexas negociações entre Assurbanipal e o Egito estão brilhantemente documen­tadas e explicadas por Anthony J. Spalinger, "Assurbanipal and Egypt: A Source Study/' JAOS 94 (1974): 316-28.

22 Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 394-95.

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çaram a Tantamani para fora do norte, embora ainda continuasse sendo reconhecido como o rei de Tebas.

Psamético nesse tempo (663-610) foi designado o governador do Egito por Assurbanipal e, como um servo fiel, recebeu todo o apoio dos assírios para estabelecer seu domínio também no Delta, no Médio Egito e em Tebas, tudo em cerca de 656. Ele retirou Tantamani de seu trono. Assim, por volta de 655, o Egito esteve unido desde a Núbia até o Mediterrâneo debaixo de um único soberano. Encorajado por este sucesso e pelos problemas que Assurbanipal enfrentava em outras regiões, Psamético recusou-se a conti­nuar o pagamento dos tributos aos assírios em cerca de 656, embora o Egito permanecesse mais ou menos um aliado da Assíria até a sua morte ou mesmo depois desta.

As dificuldades enfrentadas por Assurbanipal vinham, em parte, dos elamitas, mas fundamentalmente de seu próprio irmão, Samas-sum-ukin, que ainda dominava na Babilônia.23 As razões para o conflito eram comple­xas, mas a crise realmente se agravou quando o rei Samas-sum-ukin passou a discordar publicamente das atitudes de seu irmão Assurbanipal, especial­mente na questão da escolha de governantes que buscavam sempre circuns­crever a autoridade do rei da Babilônia.24 Esta atitude culminou na forma­ção de uma coalisão entre Elão, Guti, Amurru, Arábia, certos estados arameus e a própria Babilônia, que juntando forças, atacou os assírios bem no início de 652.25 Mas Assurbanipal resistiu aos ataques e conseguiu sair vitorioso. Profundamente desmoralizado, seu irmão Samas-sum-ukin suicidou-se.:c Assurbanipal puniu severa e cruelmente os elamitas, e derrotou os prínci­pes dos arameus que haviam participado do levante contra os assírios. Es­sas medidas de retaliação foram adiadas por várias razões até os anos 642- 639. Depois disso, os anais de Assurbanipal se encerraram e, como conse­qüência, seus últimos treze anos são completamente obscuros.27

Sabe-se que Assusbanipal foi sucedido por seu filho Assur-etil-ilani (627- 623). Os registros desse acontecimento estão indelevelmente gravados na

23 Olmstead, History o f Assyria, pp. 440-52.24 Sami S. Ahmed, "Causes of Shamash-shum-ukin's Uprising, 652-651 B.C.," ZAW 79

(1967): 1-13. Quanto a outras possibilidades, ver em G. Frame, "Another Babylonian Eponym," RA 76 (1982): 166.

25 J.A. Brinkman, "Foreign Relations of Babylonia from 1600 to 625 B.C.: The Documentarv Evidence," AJA 76 (1972): 279.

26 Olmstead, History o f Assyria, p. 475. Os feitos de Assurbanipal estão, dessa vez, comple­tamente convincentes na obra de Mordechai Cogan e Hayim Tadmor, "Ashurbanipal's Conquest of Babylon: The First Official Report - Prism K," Or 50 (1981): 229-40.

27 Olmstead, History o f Assyria, pp. 627-28.

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parede, e os observadores mais atentos da história assíria puderam con­cluir que os dias dos assírios estavam contados. Assur-etil-ilam conseguiu suprimir duas rebeliões que surgiram em seu breve reinado, mas a Babilônia, Média, Fenícia e Judá rebelaram-se abertamente contra sua au­toridade.

Depois de uma rápida rebelião promovida por Sin-sum-lisir, um se­gundo filho de Assurbanipal, o reinado de Assur-etil-ilani chegou ao fim por causa de um terceiro filho, Sin-sar-iskun (623-612). Isso aconteceu no terceiro ano de Nabopolassar, o sucessor do governador assírio que reina­va em Babilônia e que se chamava Kandalanu.28 Sin-sar-iskun iniciou as hostilidades contra Nabopolassar com a intenção de readquirir o domínio da Babilônia para os assírios, mas Nabopolassar mostrou-se mais hábil em sua resistência e tomou medidas ofensivas.

Gradualmente, o território de Sin-sar-iskun foi diminuindo, e ele não foi capaz de reverter a situação. Em cerca de 614 a antiga cidade de Assur foi perdida para os Medos e, em apenas dois anos, a cidade de Nínive caiu nas mãos destes inimigos. Nabopolassar relata — em um dos mais bem conservados e documentados registros da época, "As Crônicas Babilônicas"— que ele até tentou unir-se a Cyaxares, o rei da Média, na conquista de Assur, mas não pôde fazê-lo porque ficou detido na Babilônia.29

Com a queda de Nínive e Sin-sar-iskun, o último rei da Assíria che­gou ao poder. Seu nome era Asur-uballit II (612-609). Ele foi um oficial do exército que conseguiu reorganizar as forças assírias em Arã, mas teve de abandonar a cidade quando esta ficou sob forte ataque dos babilônicos .30 Neco II, do Egito, esforçou-se para auxiliar os assírios, obviamente temendo o poder que surgia no eixo M edo-Babilônico. O exército egípcio foi interceptado pelo pequeno exército de Josias de Judá, o que sem dúvida pode ter sido o fator determinante para a vitória dos babilônicos naquele conflito .31

Forçado a abandonar Arã, Assur-uballit moveu-se em para o oeste no­vamente, mas dessa vez para a importante cidade de Carquemis, que se situava na porção superior do Eufrates. Porém, os exércitos babilônicos partiram incansavelmente na direção dos assírios em 605, sob o comando do jovem príncipe N abucodonosor e elim inaram definitivam ente os

28 Oates, "Assyrian Chronology," Irarq TI (1965): 146-48.;u B.M. 21901, 11. 28-29, publicados em D.J. Wiseman, Chronicles ofCha.ld.aean Kings (625-

556 B.B.) in the Brifisíi Museum (Londoiv. Trastees of the British Museum, 1961), p. 59. B.M. 21901, 11. 58-62.Quanto ao contexto e estratégia usada na batalha de Megido, ver Abraham Malamat, "Josiah's Bid for Armaggedon," JANES 5 (1973): 267-79.

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4 6 8 H istória d e Isr a el no A ntigo Te st a v z -~\

assírios.32 Mais uma vez os egípcios enviaram reforços, mas também fo­ram rechaçados e retirados da Síria e da Palestina. Assim, os assírios desa­pareceram do cenário como uma potência mundial, depois de mais de mil e duzentos anos de existência nacional. A vara de Yahweh cumprira o seu propósito e agora tinha sido posta de lado.

Josias de Judá

Relações com a Assíria

Contra esse contexto, o registro bíblico do reinado de Josias ganha toda a significação, pois como tem enfatizado esta obra, as histórias bíblicas não se deram em um vácuo. Isto se torna particularmente verdadeiro quan­do se constata as rotas internacionais de comércio que cruzavam a Palesti­na. Não poderia aquela pequena terra ficar estática à parte, apenas obser­vando como um espectador. Inevitavelmente a Palestina estava envolvida nas tendências políticas do mundo naquela época, como um pequeno bote que involuntariamente é atraído para o centro de um redemoinho.

Em nenhuma outra época isto foi mais evidente que nos dias do rei Josias, pois durante seu reinado (640-609), toda a balança de poder no Ori­ente Médio mudou radicalmente do que vinha sendo nos últimos trezen­tos anos. A Assíria não passava de ruínas e o Egito, apesar de mais estável, era uma mera sombra do que um dia havia sido. Por outro lado, os Medos e seus parentes, os Persas, iniciavam uma política de expansão nas regiões mais altas do Irã e já mostravam fortes indícios de que um dia seriam um sério fator a considerar. Mais dramático, entretanto, foi a ascensão meteórica do Império Neo-Babilônico na fundação dos Reinos Caldeus. Sem dúvida este era um manifesto para todo o mundo de que a Babilônia agora era o centro do poder, e que passaria a ditar o curso dos eventos humanos por um longo tempo.

Tal era a situação do mundo quando Josias assumiu o poder ao su­ceder seu pai Amom. Anteriorm ente propomos que Amom, como seu pai M anassés, perm aneceu fiel aos assírios, tendo sido morto por ele­mentos que supunham que o colapso da Assíria era im inente. O fato de o Egito, o grande vizinho ao sul, ainda perm anecer fiel aos assírios não fazia diferença para esses rebeldes. Mas a maioria dos habitantes de Judá não com partilhava o mesmo sentim ento, pois os assassinos de Amom foram também sumariamente executados, e o partido pró-assírio estabeleceu em seu lugar o rei Josias, que na ocasião estava com oito

32 B.M. 21946, 11.1-7.

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E sperança D esvanecente: A D esinteg ra çã o d e J udá 4 6 9

anos de idade.33 Visto que toda a informação acerca da política de Josias indi­ca que ele era contrário aos assírios, é seguro admitir que sua posição inicial mudou em poucos anos, e ele tornou-se um veemente antagonista da Assíria.

No passado, os profetas alertaram sobre o perigo de se afiliar aos assírios, mas aqueles que ministraram nos dias de Josias — Jeremias, Habacuque e Sofonias — são relativamente silenciosos acerca dos assírios. Naum é uma ex­ceção; de fato, todo seu livro é uma descrição da destruição que se abateria sobre a cidade de Nínive. Mesmo assim não existe qualquer menção no livro de Naum que descreva uma aliança entre Judá e os assírios. A atenção dos profe­tas, nos dias de Josias, voltam-se para os babilônicos, pois lá pelo início do rei­nado de Josias, em 640, já ficava claro que o julgamento que se abateria sobre a nação de Judá não viria pelas mãos dos assírios, mas dos babilônicos. Diferen­temente da Assíria, Babilônia não era para ser resistida. Conforme as próprias palavras do profeta Jeremias, o que Judá teria de fazer era submeter-se à Babilônia, não como um estado vassalo, mas em reconhecimento do inexorável fato de que a Babilônia era um agente de Yahweh para disciplinar o seu povo.

O ponto aqui é que as fontes informam pouco sobre o relacionamento de Josias com a Assíria. De fato, durante seu reinado, os assírios não fo­ram considerados como dignos de menção, senão em seus últimos dias, quando os exércitos de Judá interceptaram as forças egípcias em Megido, pois Josias cooperava com a coalizão Medo-Babilônica em Arã, que culmi­nou na destruição final dos assírios.

Reformas religiosas

O real interesse do rei Josias se concentrava na reforma religiosa.34 Bem cedo em seu reinado, em oitavo ano (632), quando ele estava com dezesseis anos, Josias voltou o seu coração para Deus, e quatro anos mais tarde em­preendeu uma limpeza sistemática de todo e qualquer vestígio de paga­nismo em seu governo (2 Cr 34.3).35 Na verdade, quando o rei Manassés

33 Não se deve desconsiderar as motivações religiosas daqueles que apoiavam Josias, pois, segundo a opinião de Carl D. Evans, o "povo da terra" foi quem estabeleceu o jovem monarca no trono "a fim de guardar a sucessão davídica" ("Judah's Foreign Policy from Hezekiah to Josiah," em Scripture in Context, editado por Carl D. Evans et al. [Pittsburgh: Pickwick, 1980], pág.170).

34 A sugestão cínica de alguns estudiosos (por exemplo, W. Eugene Claburn, "The Fiscal Basis of Josiah's Reforms," JBL 92 [1973]: 11-22) de que os motivos ou métodos de Josias iam além de religiosos, não encontra fundamentação alguma no texto.

35 O autor do livro dos Reis não faz qualquer referência a uma data anterior ao décimo oitavo ano do reinado de Ezequias (622), o ano da descoberta do manuscrito da Torá, da

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retornou de seu exílio na Assíria, chegou a dar início a uma série de refor­mas, mas seu filho Amom desfez todas as boas obras de seu pai e, dentro de dois anos, tempo de duração de seu reinado, reinstalou todas as divin­dades cananéias e sua adoração. Josias não apenas mandou retirar todas essas abominações, como também incluiu as regiões longínquas do norte até Naftali em sua reforma.36 É de particular interesse a destruição do al­tar e dos lugares altos de Betei, como a ocasião em que mandou queimar os ossos dos sacerdotes que haviam servido por muitos anos como ofici- antes dessas abominações durante os anos de Jeroboão I (2 Rs 23.15-20). Sem dúvida a antiga profecia de que chegaria o dia em que todos os altos e altares de Betei, dedicados às divindades pagãs, seriam completamente destruídos e expurgados da terra referia-se a Josias (1 Rs 13.1,2).

Entretanto, a remoção da idolatria de Judá se constituía apenas em um lado das reformas daqueles dias. Havia a premente necessidade de se res­tabelecer o culto oferecido a Yahweh, baseado nos preceitos estabelecidos pela lei de Moisés, restaurando inclusive as estruturas da adoração no tem­plo. Essa obra maravilhosa iniciou no décimo oitavo ano do rei (622), quan­do foram decretadas as reformas no prédio já bastante castigado, pois desde os dias de Ezequias (havia sessenta anos) não se faziam quaisquer reparos (2 Rs 22.5,6). Depois de uma alta soma de dinheiro ser levantada junto ao

reforma e da grande celebração da Páscoa (2 Rs 22.3; 23.23). Embora seu relato pareça comprimir uma série de acontecimentos em um espaço de um ano, na verdade, deve ter-se desenrolado por vários anos, começando no oitavo ano de Josias, segundo a pró­pria descrição do cronista. John Gray sugere que o homem que compilou o livro dos Reis provavelmente encaixou os três estágios da reforma em um só (I & II Kings [Philadelphia: Westminster, 1970], p. 275). Mordechai Cogan, por outro lado, contempla o relato no livro das Crônicas como um exemplo de como se datava as principais reali­zações de um monarca em seu primeiro ano ou nos seus primeiros anos de reinado, nesse caso para mostrar "logo de início sua profunda preocupação e motivação interna para as coisas santas" ("The Chronicler's Use of Chronology as Illuminated by Neo- Assyrian Royal Inscriptions," em Empirical Modelsfor Biblical Criticism, editado por Jeffrev H. Tigav [Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985], pp. 204-5). Embora se deva reconhecer a admirável teoria, ainda continua sendo difícil de acreditar. Frank M. Cross e David Noel Freedman têm feito tentativas de estabelecer uma ligação entre os acontecimentos do oitavo, décimo segundo e décimo oitavo ano do rei Josias e as prin­cipais crises com a história assíria. Porém, tais tentativas mostram-se deficientes e pou­co prováveis. Ver "Josiah's Revolt Against Assyria," JNES 12 (1953): 56-58 e a resposta de Evans, "Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 171.

36 Conforme indica o estudioso Reviv em "History of Judah", em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 203-4, a influência política do rei Josias se estabelecia muito além das fronteiras da nação de Judá.

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povo, o rei comissionou o sacerdote Hilquias para supervisionar toda a obra e também certificar-se de que o dinheiro seria corretamente empre­gado no projeto. Durante a construção, à medida que o dinheiro era retira­do dos cofres do templo, o sacerdote deparou-se com uma cópia do Livro da Lei de Moisés. Imediatamente ele a entregou a Safã, o escriba, para que este fizesse chegar o material às mãos do rei. O rei, depois de ouvir aque­las palavras, foi compungido em seu espírito e rasgou suas vestes, humi­lhado diante da palavra de Deus quanto ao iminente julgamento que esta­va por vir sobre sua nação.

Não é possível aqui debater acerca da natureza e conteúdo desse manus­crito. Mas está bem claro que consistia basicamente no livro do Deuteronô- mio e, semelhantemente, de todo o Pentateuco, já que algumas das medidas adotadas por Josias são o reflexo dos ensinamentos de Moisés.37 Porém, há uma pergunta intrigante: como pôde a Lei de Moisés perder-se e ser encon­trada apenas em 622, e mesmo assim por acaso? A erudição liberal afirma que o documento em questão era o livro de Deuteronômio, e que este nunca esteve perdido de todo. Na verdade, dizem eles, o livro era composto de predições ditadas por um determinado círculo de profetas que estava inte­ressado nas reformas religiosas. E com propósito de conseguir apoio canônico para suas palavras, atribuíram-nas à Lei de Moisés. A obra poderia estar relacionada diretamente à tradição mosaica, mas certamente não fora escri­ta pelo próprio Moisés, e sim por escribas anônimos do sétimo século. Tal­vez ela tenha sido escrita por um movimento secreto nos dias de Manassés e colocada propositadamente no Templo, na esperança de que pudesse ser encontrada e inspirasse Manassés a buscar Yahweh. Infelizmente, o livro não foi descoberto durante seus dias, mas apenas casualmente em 622.38

Esta reconstrução desconsidera a tradição universal dos judeus a res­peito da autoria de Deuteronômio, e também falha em explicar como é possível que ninguém nos dias de Josias, incluindo os escribas e sacerdo­tes, questionasse a suposta autoridade mosaica de um documento que, segundo diz essa escola de pensamento, não possuía nenhuma tradição. Além disso, os aspectos relacionados com a reforma de Josias, e que pare­cem estar calcados no ensino de Deuteronômio, já eram conhecidos na vida religiosa de Israel antes de Josias. O crítico deve admitir que as mai­ores recomendações de Deuteronômio eram conhecidas muito tempo an-

Ver especialmente a obra de Oswald T. Allis, The Tive Books o f Moses (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1949), pp. 178-84.Essa visão está convenientemente resumida, embora não completamente aceita por Ernest W. Nicholson, Deuteronomy and Tradition (Philadelphia: Fortress, 1967), pp. 1-17.

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tes da descoberta do manuscrito do templo. Sendo assim, é realmente in­crível que Deuteronômio existisse por tanto tempo e simplesmente desa­parecesse até que Hilquias o descobrisse.

Na era da imprensa e da disseminação de materiais impressos em mi­lhões de cópias, é realmente difícil compreender a escassez de textos escri­tos no mundo antigo. Até mesmo alguns dos mais importantes registros, compostos em tábuas de argila, são colecionados em cópias únicas, apesar da reconstrução de algumas das grandes bibliotecas do mundo antigo. O que, então, pode ser dito a respeito dos manuscritos de papiro, couro e pergaminhos, que serviram de material para o registro dos escritos do Antigo Testamento? Além disso, é bastante provável que as Escrituras do Antigo Testamento, em qualquer época da história de Israel, não passas­sem de doze cópias no máximo. Elas foram preservadas com extremo cui­dado, pois estariam sujeitas às guerras, desastres naturais, ou simples­mente à desintegração com o tempo. Era presumível que um rei diabólico e déspota como Manassés fizesse tudo para destruí-las a fim de propagar sua própria apostasia. De alguma maneira, pela providência de Deus, um sacerdote piedoso ou escriba conseguiu guardar uma cópia em lugar se­guro no templo, e orou para que esta não perecesse até que tivesse sua posição restaurada como o sustentáculo de Israel.

Sem dúvida foi isto o que aconteceu. Josias, conhecendo bem que aquele documento era a verdadeira Palavra de Deus, buscou o Senhor para saber as conseqüências daquelas palavras em seus dias. A resposta veio através da profetisa Hulda, que confirmou a efetivação dos juízos contidos no manuscrito. Josias, porém, seria poupado, pois se inclinara a buscar o Se­nhor com todo o seu coração. Josias não reagiu a estas palavras com auto- satisfação, mas demonstrou um verdadeiro amor pelo povo conduzindo- o a uma renovação do pacto com seu Deus. Ele ajuntou os líderes de Judá e o povo de Jerusalém no templo. E lá, depois de ler os preceitos contidos na aliança, declarou seu fiel compromisso à Lei do Senhor (2 Rs 23.1-3).

A cerimônia de restauração da aliança deu-se durante a celebração da Páscoa, talvez a maior dentre todas as registradas na história de Israel desde os dias de Moisés e Samuel (2 Cr 35.1-19). Tudo foi conduzido se­gundo as prescrições contidas no manuscrito recém-descoberto, que exi­gia meticulosa atenção para a organização e preparação dos levitas e sa­cerdotes, para a forma correta de conduzir a arca e os rituais de sacrifício. O próprio rei entrou com trinta mil ovelhas e bodes, e três mil bois para repartir com o povo. Outros líderes, inspirados em seu exemplo, fizeram notáveis contribuições. Quando tudo estava pronto, iniciou o sacrifício e o sangue foi aspergido, conforme prescrevia a lei de Moisés. Os músicos no

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templo reuniram-se no culto e os porteiros cumpriram detalhadamente suas responsabilidades. Finalmente os leigos, de Samaria e Judá, rende­ram louvores ao Senhor, que mais uma vez os libertara do fardo do paga­nismo e da incredulidade, fazendo-os seu povo especial em toda terra.

Contudo, nem mesmo isto foi suficiente para que o juízo de Deus fosse cancelado. O pecado do rei Manassés conduzira a nação ao ponto de repu­diar a aliança estabelecida com Jeová. Uma semente de destruição inevitá­vel havia sido plantada em Judá, apesar de Manassés ter-se arrependido mais tarde e Josias haver promovido as reformas religiosas. Isto não fora suficiente para mudar o coração e o estilo de vida do povo (2 Rs 23.26,27). A conseqüência inevitável foi a derrota e a deportação, da qual mais tarde surgiria o remanescente justo e fiel, como um instrumento nas mãos de Deus para fazer cumprir seus propósitos redentores na terra.

A queda de Jerusalém

A catastrófica destruição em M egido

As fontes nada revelam acerca dos próximos treze anos, mas em 609, o faraó Neco II, do Egito, respondeu um apelo urgente de Assur-uballit, da Assíria, e marchou para Arã, através da Palestina, a fim de ajudar o amigo a livrar-se do poderio militar babilônico. Josias, porém, era fiel à Babilônia e, ciente dos planos de Neco, providenciou rapidamente a interceptação dos exércitos egípcios, esperando derrotá-los ou, no mínimo, dificultar sua chegada a Arã (2 Rs 23.29). Apesar de Judá, sem dúvida, haver recupe­rado muito de sua força e território, ainda não era capaz de enfrentar o exército egípcio. Mas Josias corajosamente encontrou-se com Neco em Megido, embora o cronista relate que esta decisão do rei não foi segundo o coração de Deus (2 Cr 35.22).39 O resultado foi uma vergonhosa derrota de Judá e a morte do rei fora do tempo, com apenas trinta e nove anos de idade. Não é possível definir a motivação do pecado de Josias,40 mas, para

39 Stanley Brice Frost descreve as omissões dos "deuteronomistas" desse detalhe como uma "conspiração do silêncio", pois se tornou extremamente difícil para ele conciliá-las com seu quadro do reinado de Josias. O cronista, porém, não se intimidou ao atribuir a morte de Josias ao seu próprio pecado ("The Death of Josiah: A Conspiracy of Silence," JBL 87 [1968]: 369-82). Mas se houve uma tentativa de "cobrir" o caso ou amenizar a situação, por que a narrativa da morte do rei acabou registrada no livro dos Reis?

40 Quanto a possíveis explicações, ver Abraham Malamat,"The Last Kings of Judah and the Fali of Jerusalém," IEJ 18 (1968): 137, n. 1.

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seus contemporâneos, Josias tornou-se um símbolo de retidão e devoção a Yahweh e ao seu povo. O profeta Jeremias compôs alguns cânticos de la­mento em sua homenagem, e o cronista relata que eles eram cantados pelo povo até os seus dias (2 Cr 35.35).

Jeoacaz de judá

A morte de Josias deve ter abalado as aspirações dos piedosos de Judá, que esperavam a continuidade da paz, prosperidade e devoção religiosa que haviam sido introduzidas. Mas esta preocupação era o triste reflexo da superficialidade com que o povo guardava a aliança. De fato, não tar­dou para que a nação se envolvesse com a iniqüidade.

O sucessor de Josias foi seu filho maligno Jeoacaz,41 que reinou por ape­nas três meses, já que Neco II do Egito pôs fim ao reino (2 Rs 23.31-33). Os exércitos de Neco, embora forçados pelos babilônicos a recuar para o su­deste do Eufrates, depois da batalha de Arã, permaneceram com uma par­cela de hegem onia na baixa Síria e na Palestina. A preocupação dos babilônicos com os remanescentes da resistência assíria foi a razão por que não reivindicaram aquelas áreas até a queda de Carquemis, em 605.

O domínio dos egípcios na Palestina é claramente descrito na forma com que Neco tratou Jeoacaz. Ele foi removido do trono de Judá e enviado para Ribla, na Síria central, onde permaneceria sob a custódia egípcia. Neco esta­beleceria em seu lugar o irmão mais velho de Jeoacaz, Jeoiaquim, e, como sinal evidente da soberania do Egito, exigiu de Judá um tributo de cem talentos de prata e um talento de ouro. Jeoacaz foi tirado de Ribla e enviado ao Egito, permanecendo exilado naquele país até o fim de seus dias.

Jeoiaquim de Judá

Enquanto isso Jeoiaquim, envolvido com a terrível missão de arreca­dar o pesado tributo exigido pelos egípcios, teve de apelar para o único recurso disponível: aumentar os impostos do povo (2 Rs 23.35). Sem dúvi­da a medida era totalmente impopular e desgastou substancialmente sua imagem junto ao povo; porém, nada podia ser feito enquanto o Egito esti­vesse no comando. A libertação deste jugo ocorreu em 605, quando Nabu- codonosor, então comandante dos exércitos babilônicos, cruzou o Eufrates,

41 Malamat assume que a aclamação de Jeoacaz como rei, por parte do "povo da terra" (2 Rs 23.30), mesmo não sendo o filho mais velho, não passou de um golpe para colocar no trono de Judá um monarca anti-egípcio ("Last Kings," p. 140).

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expulsou os egípcios da Palestina, e colocou Jeoiaquim debaixo de sua proteção. Porém, logo ficaria evidente que esta proteção não era nada se­não uma escravidão contínua sob um novo senhor.

O Império N eo-Babilônico

O contexto histórico

O Império Neo-Babilônico exerceu um papel crucial na vida de Judá de 609 a 539 a.C. Para este período há disponível um bom número de do­cumentos históricos de valor e objetividade inestimáveis, que suplementa o Antigo Testamento, além de prover uma visão incomum dos fatores com­plexos que, combinados, conduziram Judá à queda e restauração.42 Po­rém, agora é preciso uma descrição dos acontecimentos históricos da épo­ca para melhor compreensão.43

Logo após o colapso da dominação cassita na metade do século doze, o norte da Mesopotâmia caiu nas mãos dos assírios e o sul foi destinado à Segunda Dinastia Isin, que se manteve no poder até 1027. Depois, houve uma série de dinastias menores (1026— 980), a primeira das quais foi a Segunda Dinastia dos Povos do Mar, assim chamada porque seus domíni­os estendiam-se até as costeiras pantanosas do Golfo Pérsico. Então, um nativo da Babilônia, Nabu-mukin-apli (979-944), conseguiu assenhorar-se da área dos Povos do Mar. Por volta de 890, os assírios haviam derrotado os babilônicos. Até sua derrota final, cujo início foi em 626, os assírios man­tiveram o controle da Mesopotâmia central e sul, embora tenham havido algumas rebeliões esporádicas. Chegaria o tempo em que eles perderiam o domínio daquela região.

Durante esse tempo, os migrantes arameus moveram-se gradualmente para a bacia do Tigre-Eufrates. Eles começaram a coexistir com outros gru­pos étnicos, como os Kaldu (ou Caldeus), que são referidos pela primeira vez nos anais de Assur-nasirpal II, da Assíria (ca. 878).44 As três maiores e principais tribos dos Caldeus — Bit-Yakin, Bit-Dakkuri e Bit-Amukani — surgem pela primeira vez nos textos da era de Salmaneser III (ca. 850). Por fim, eles constituíram o principal elemento político do sul, os verdadeiros precursores do Império Neo-Babilônico que seria fundado por Nabopo-

42 Recursos fundamentais bibliográficos e documentais desse período são encontrados em Rykle Borger, "Der Aufstieg des neusbabylonischen Reiches," JCS 19 (1965): 59-78.

43 Ver especialmente J.A. Brinkman, A Political History o f Post-Kassite Babylonia, 1158-722 B.C., Analecta Orientalia 43 (Rome: Pontificai Institute, 1968).

44 Ibid., p . 260.

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Tabela 8 Os reis neo-babilônicos

Nabopolassar 625 — 605Nabucodonosor II 605 — 562Evil-Merodaque 562 — 560Ner.iglissar 560 — 556Labasi-Marduk 556Nabonidus 555 — 539

lassar em 626. É correto dizer então que "Caldeus" e "Neo-Babilônicos" são termos intercambiáveis para descrever um povo ou povos que ocupa­ram a região central e mais baixa da Mesopotâmia nos tempos pós-cassitas. Embora suas raízes possam ser encontradas no estoque sumério-acadiano, já pelo primeiro milênio tinham assimilado outros elementos étnicos, sen­do o mais destacado oriundo das tribos araméias.

N abopolassar

O movimento final em direção a tão esperada independência babilônica dos assírios começou, ironicamente, sob o governo de Samas-sum-ukin (668-648), filho de Esaradon da Assíria e vice-rei da Babilônia. Seu irmão, Assurbanipal (668-627), opôs-se-lhe radicalmente, suspeitando de inten­ções separatistas. Depois de uma rebelião malsucedida promovida por Samas-sum-ukin, Assurbanipal reinou sobre uma Assíria e Babilônia unificadas. E possível que os registros que atestam um governante babilônico chamado Kandalanu estejam se referindo a Assurbanipal por seu pseudônimo.45 O sucessor de Assurbanipal foi Assur-etil-ilani (627- 623). Havia outro filho, chamado Sin-sum-lisir, que por pouco tempo apo­derou-se do governo de Babilônia (623). Sin-sar-iskun, então, dominou na Assíria (623-612) e tentou submeter Sin-sum-lisir no sul. Porém foi impe­dido por Nabopolassar, um caldeu que ironicamente havia sido designa­do governador dos Povos do Mar três anos antes pelo próprio Sin-sar- iskun, que na ocasião era o general dos exércitos assírios incumbidos de rechaçar as forças de Babilônia.46

Segundo uma crônica babilônica, Nabopolassar se engajou em batalha contra Sin-sar-iskun em Uruque, e prevaleceu definitivamente.47 A partir

45 Oates, "Assyrian Chronology," Iraq TJ (1965): 159; ver também Julian Reade, "The Accession of Sinsharishkun," JCS 23 (1970): 1.

46 Oates, "Assyrian Chronology," Iraq TJ (1965): 143.47 Wiseman, Chronicles, p. 51 (B.M. 25127).

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deste momento, ele assumiu formalmente o trono da Babilônia em 23 de Novembro de 626, embora a atitude não obtivesse o apoio da população assíria. Por três anos Nabopolassar defendeu seu reino contra os assírios, que tenazmente tentavam reconquistá-lo. Por fim, ele conseguiu afastar Sin-sar-iskun, que recentemente havia se constituído rei, e o expulsou de­finitivamente em 623.48

Nove anos mais tarde, em 614, Nabopolassar tomou a antiga cidade sagrada de Assur, depois de ela já ter sido saqueada pelos Medos.49 Na­queles dias ele fez uma aliança com o rei medo Ciaxerxes, um relaciona­mento que pode ser confirmado pelo casamento que uniu suas famílias.50 Então, em 612, Nabopolassar capturou a cidade de Nínive,51 sendo apoia­do por Umman-Manda (talvez os Citas)52 e pelos Medos. Os assírios mu­daram sua capital para Arã, mas Nabopolassar, novamente apoiado por Umman-Manda,53 tomou a cidade, ocupou-a pelo espaço de um ano, e em 609 repeliu os assírios e seus aliados egípcios que tentavam recapturar Arã. Nabopolassar expulsou-os para o ocidente através do rio Eufrates.54 Pelos próximos três anos, os babilônicos estiveram preocupados com a tarefa de negociar com Urartu, a fim de abrir rotas comerciais e garantir a segurança das fronteiras ao norte. Por fim Nabopolassar voltou-se para a única fortaleza assíria ainda sobrevivente — Carquemis. Em 605, derro­tou definitivamente os assírios, e forçou os egípcios a se retirarem do nor­te da Síria.

Contudo, o grande golpe em Carquem is não foi desferido por Nabopolassar, mas por seu jovem filho e comandante chefe, Nabucodo- nosor. Insatisfeito com a derrota de Neco e de seus exércitos, este príncipe partiu em seu encalço, cruzou o Eufrates e todo o caminho que conduz a Hamate. De fato, o Antigo Testamento sugere que Nabucodonosor os per­seguiu até a entrada do Egito e que, nessa ocasião, ele forçou Jerusalém a pagar-lhe um pesado tributo e a entregar-lhe prisioneiros, dentre os quais estava o profeta Daniel.55

48 Reade, "Accession," JCS 23 (1970): 5.49 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 93, Fali of Nineveh Chronicle 24-30.50 Wiseman, Chronicles, p. 14.51 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 94, Fali of Nineveh Chronicle 38-49.32 Wiseman, Chronicles, p. 16.53 William F. Albright identificou os Umman-Manda como os medos ao invés de citas, um

ponto de vista que parece estar correto ("The Seal of Eliakim and the Latest Pre-exilic History of Judah, with Some Observations on Ezekiel," JBL 51 [1932]: 86-87).

54 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 96, Fali of Nineveh Chronicle 66-72.M Wiseman, Chronicles, p. 26, citando 2 Reis 24.7 e Josefo, Antiquitie s ofthe Jews 10.6.

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A sucessão de N abucodonosor

Quando Nabopolassar morreu inesperadamente, Nabucodonosor aban­donou seu projeto de perseguir o faraó Neco e retornou para a Babilônia, a fim de garantir sua sucessão. E assim ele o fez, em 7 de Setembro de 605, permanecendo na cidade até a passagem do ano, quando novamente vol­tou os olhos para o oeste, pois intentava implementar um programa de extensão territorial naquela direção.

Deve-se lembrar que Jeoiaquim de Judá foi o homem designado por Neco do Egito para ocupar o trono da Palestina e do sul da Síria, entre os anos 609 e 605. Como seu irmão Jeoacaz, Jeoiaquim também foi mau perante os olhos de Yahweh e, por isso, alvo do juízo de Deus. Antes de Nabucodonosor expulsar definitivamente os egípcios da Palestina, o estado de Judá era vassalo do rei do Egito, sendo forçado a pagar um pesado tributo a faraó. Nabucodonosor expeliu os egípcios da região, mas imediatamente incorpo­rou Judá ao Império Babilônico, exigindo o tributo que era pago aos egícios.

Uma observação cuidadosa das fontes revela que Nabucodonosor pene­trou profundam ente no território Siro-Palestinense após a queda de Carquemis, e que algumas de suas tropas chegaram a se movimentar até bem próximo à cidade de Jerusalém. Em uma rápida ação, ele invadiu o Egito, fez o rei Jeoiaquim lhe prestar juramento de lealdade, e enviou um número de judeus cativos para sua própria capital, Babilônia. Tudo isto aconteceu em poucas semanas, pois em cerca de 15 de Agosto de 605, Nabopolassar morreu e Nabucodonosor teve de voltar imediatamente para a Babilônia.

Conforme indica o autor do livro dos Reis, o rei Jeoiaquim permane­ceu leal aos babilônicos pelos três anos seguintes (605-602). Por alguma razão não específica, ele rebelou-se,36 e a resposta foi certa (2 Rs 24.1,2). Nabucodonosor enviou tropas da Babilônia e de alguns estados vassalos do oeste, tais como Arã, Moabe e Amom, forçando Jeoiaquim a subme­ter-se.57 O cronista diz que Nabucodonosor chegou mesmo a prender Jeoiaquim "com cadeias" a fim de levá-lo para Babilônia como prisionei­

56 Malamat, "Last Kings," IEJ 18 (1968): 142-43, associa a rebelião de Jeoiaquim ao conflito entre os babilônicos e os egípcios, que se deu no inverno de 601 / 600 a.C., que é confirmado por uma carta escrita em aramaico da cidade de Saqqarah. Quanto ao teor dessa carta, ver William H. Shea, "Adon's Letter and the Babylonian Chronicle," BASOR 223 (1976): 61-64.

37 Wiseman, Chronicles, p. 31, indica que a campanha contra o rei Jeoiaquim não é men­cionada nos registros da Babilônia (B.M. 21946, invertido 5-7) porque o principal obje­tivo de Nabucodonosor concentrava-se no Egito, e não em Judá. Ver também John R. Bartlett, "Edom and the Fali of Jerusalem, 587 B.C.," PEQ 114 (1982): 16, acerca da opinião de que "aram eu" deve ser mantido em 2 Reis 24.2 e não substituído por

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ro de guerra (2 Cr 36.6). Aparentemente, a punição não pareceu severa, mas Nabucodonosor ordenou que o templo fosse saqueado, e seus uten­sílios sagrados fossem conduzidos para a capital e depositados nos tem­plos pagãos. Até a sua morte, em 598, o rei Jeoiaquim permaneceu sub­serviente aos babilônicos.

Enquanto isso, Nabucodonosor havia empreendido uma série de cam­panhas rumo ao ocidente, contra os vizinhos de Jerusalém. Na verdade, eles eram uma preocupação para a administração real, pois sem dúvida encorajaram Jeoiaquim a rebelar-se contra Nabucodonosor. De qualquer forma, o cronista diz que a primeira campanha de Nabucodonosor, depois que sucedeu a seu pai, ocorreu em seu primeiro ano de reinado (604). Nesse tempo, ele penetrou profundamente na Palestina e tomou Ascalom, cidade dos filisteus. No quarto ano de seu governo (601), empreendeu uma guerra contra faraó Neco II na fronteira do Egito, um conflito que acabou empata­do. Mas talvez os babilônicos não tivessem sido malsucedidos, pois parece que no caminho de volta ele tomou o reino de Judá.

Jeoiaquim e Zedequias de Judá

Em seu sexto ano (599-598), Nabucodonosor marchou rumo ao norte da Síria, e no sétimo ano (599-597), tomou a cidade de Jerusalém das mãos de Jeoiaquim, filho e sucessor de Joaquim (2 Rs 24.10-17). Em 15/16 de março de 597, ele estabeleceu um outro filho de josias como o novo rei, cujo nome era Zedequias.58 A última campanha registrada nas crônicas babilônicas foi con­tra os elamitas. Infelizmente, as crônicas são interrompidas em 594-593 e nada mais se sabe acerca dessas fontes babilônicas até 557-556.0 Antigo Testamen­to fala deste histórico momento, quando Nabucodonosor toma Jerusalém em 587-586, mas as fontes extra-canônicas são completamente silenciosas.

Depois de substituir seu pai no trono de Davi, Jeoiaquim sem dúvida manteve uma postura anti-babilônica que produziu a reação imediata de Nabucodonosor. Com apenas três meses no poder, Jeoiaquim viu sua cida­de cercada pelos exércitos babilônicos e rapidamente capitulou.s9 A família

"ed om ita", como sugerem muitos estudiosos. As hostilidades praticadas pelos edomitas contra Arade estão descritas nas cartas daquele período, e bem podem refle­tir, segundo Yohanan Aharoni, os anos 587 a 586 ou 600 a 598 ("Three Hebrew Ostraca from Arad," BASOR 197 [1970]: 28).

58 B.M. 21946, invertido 11 - 13.59 Malamat, "Last Kings," IEJ 18 (1968): 144, conclui que o cerco durou no máximo um

mês.

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real foi deportada juntamente com outros líderes e pessoas de influência, como o profeta Ezequiel. Além disso, a nata das forças militares e os mais habilidosos dentre o povo também foram conduzidos para o exílio. Por fim, Nabucodonosor se serviu por mais uma vez dos tesouros do templo e le­vou-os consigo para Babilônia, como um sinal de completo sucesso.

Embora Zedequias, que era tio de Jeoiaquim e filho de Josias, houvesse sido deixado no governo como um rei-fantoche de Judá, está claro que o povo de Jerusalém considerava o rei Jeoiaquim como o legítimo sucessor do trono de Davi até o dia de sua morte.60 Nunca mais Jeoiaquim voltou para Jerusalém, mas, depois de anos como prisioneiro político na Babilônia, deram-lhe um benefício financeiro, e aparentemente ele passou a ser tra­tado como um convidado na corte babilônica (2 Rs 25.27-30). Pode ser que a comunidade judaica espalhada pelo Império Babilônico ainda sonhasse com o retorno de Jeoiaquim, conduzindo-os de volta à terra e restaurando a glória da antiga casa de Davi.61

Zedequias, entretanto, era o rei de fa c to de todo o Judá deixado na terra em 597. Mau como foram seus irmãos, ele não atentou para as ad- moestações do profeta Jeremias, para aceitar a soberania dos babilônicos como a vontade de Deus para a nação. Rebelou-se contra Nabucodono­sor, ocasionando o desastre fatal para o reino.62 Não é possível precisar esta data (ver Ez 17.11-18), mas em 588, Nabucodonosor lançou um ata­que contra Jerusalém, por meio de um cerco que culminou na queda da cidade e no fim da monarquia judaica, em Julho de 586 (2 Rs 25.2-7).63 Zedequias conseguiu escapar por uma abertura na muralha da cidade e fugiu para os lados de Jericó, mas logo foi capturado e conduzido à pre­sença de Nabucodonosor que, na ocasião, estava alojado na Síria, na ci­dade de Ribla. Nesta cidade, o rei de Jerusalém teve de presenciar a exe­cução de seus filhos. Depois, vazaram-lhe os olhos e conduziram-no as­sim para a Babilônia.

60 Albright, "Seal of Eliakim," JBL 51 (1932): 91-92. Quanto à ambivalência criada pela existência de dois reis em Judá em sua última década, ver Martin Noth, "The Jerusalem Catastrophe of 587 B.C. and Its Significance for Israel," em The Laws in the Pentateuch and Other Essays (Edinburgh: Oliver and Boyd, 1966), pp. 266-80.

61 Jon D. Levenson sugere que o historiador ergue uma esperança mesmo em face do apa­rente desespero ("The Last Four Verses in Kings," JBL 103 [1084]: 361).

62 Malamat, "Last Kings", IE] 18 (1968): 151, associa essa rebelião à ascensão de Hofra do Egito, em 589, um acontecimento que estimulou Zedequias a quebrar suas relações e obrigações políticas com o governo central de Babilônia.

63 Abraham Malamat, "The Lst Years of the Kingdom of Judah", em World History o f the Jewish People, vol. 4, part 1, pp. 218-20.

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As conseqüências

Os principais prédios e residências de Jerusalém foram destruídos e incendiados pelos exércitos de Babilônia, sob o comando de Nebuzaradã. Arrebentaram as muralhas de defesa, e a cidade outrora magnificente foi vista como uma ruína, incapaz de proteger os miseráveis que lá ain­da residiam.

Todos os objetos de valor foram tomados pelos babilônicos e carrega­dos triunfantemente como espólio de guerra. A população, com exceção dos mais miseráveis, foi deportada irremediavelmente em massa. Somen­te poucos, dentre eles o profeta Jeremias, puderam permanecer. Os princi­pais líderes da nação, como o sumo sacerdote Seraías e todos os seus assis­tentes, foram levados à presença de Nabucodonosor e sumariamente exe­cutados. Assim Judá e Jerusalém deixaram de ser o foco especial dos olhos do Senhor na terra. A responsabilidade de continuar a aliança estava ago­ra sobre os exilados por todo o Mediterrâneo oriental, desde o Egito até o Golfo Pérsico. Yahweh trabalharia com eles a fim de cumprir sua promes­sa imutável de redenção e reconciliação. E a respeito disso todos os profe­tas da época testemunharam.

O cronista, como habitualm ente, faz uma declaração acerca do sig­nificado teológico desses eventos catastróficos. Jerusalém caiu, apesar dos esforços de Yahweh por meio de seus profetas, de restaurar o seu povo. Mas eles escarneceram de suas palavras até que não mais houve remédio senão a destruição e deportação (2 Cr 36.15,16). Havendo re­jeitado a postura de filhos da aliança e servos de Yahweh, a com unida­de judaica espalhada pelo cativeiro agora cum priria o papel de escra­vos em terra estranha. Somente quando se cum prisse o tempo da disci­p lin a , o povo p od eria sonhar com o retorno à sua terra . Então reassumiria a responsabilidade de ser verdadeiram ente a nação santa e o povo de Deus.

O testemunho dos profetas

Nossa discussão do último século da história de Judá tem conduzido exclusivamente à uma crítica da história política e militar daqueles dias, mas agora é necessário analisar a questão de forma mais extensa. E claro que os historiadores bíblicos também tentaram fazê-lo, pois selecionaram os acontecimentos e os preservaram na forma escrita para os leitores con­temporâneos, lembrando-se das implicações teológicas dos julgamentos que viriam sobre a nação.

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Naum

Um dos profetas mais antigos é Naum, o elcosita, cuja mensagem em sua totalidade é uma sentença contra o Império Assírio.64 Pouca coisa se sabe acerca de sua vida e personalidade, pois ele não faz qualquer alusão a si mesmo, exceto na introdução do livro. Também não há qualquer outra informação sobre ele em todo o Antigo Testamento. Sua profecia contra a cidade de Nínive é especialmente importante porque apenas ele e Jonas estiveram preocupados com a Assíria. Porém, diferentemente de Jonas, onde Nínive é alvo da grande misericórdia de Deus, Naum profetiza o iminente julgamento divino sobre a cidade.

Depois de uma pequena introdução em forma de cântico, na qual o Senhor é descrito como o majestoso vingador (1.2-8),65 o profeta se volta tanto para Judá como para Nínive, profetizando sobre esta uma iminente destruição, em razão de sua idolatria e crueldade para com o povo de Deus. Como a cidade de Tebas, Nínive também cairia e tornar-se-ia um espetáculo para todo o mundo. Nenhuma preparação defensiva resolve­ria, visto que a sentença já estava determinada. Sua queda seria o fim ca­tastrófico de uma forte nação, uma chaga que, segundo as palavras do profeta, não poderia jamais ser curada.

Embora não seja possível determinar com precisão a data do pronuncia­mento anti-assírio, certamente já havia forças operando no mundo que eram radicalmente contrárias ao poderio assírio. A grande cidade de Nínive caiu nas mãos dos babilônicos em 612, mas a total ausência de referência aos babilônicos é a prova de que o profeta não se referia necessariamente a este povo ou influência. Por outro lado, Tebas sucumbiu em 613, um evento que parece de alguma forma remoto ao presente de Naum. Parece que o profeta já antevia a queda do Império Assírio antes mesmo que as forças de Nabopolassar surgissem no cenário internacional daqueles dias. Uma boa incursão nos últimos três anos do rei Assurbanipal (640-627) acrescentará informações importantes para o raciocínio histórico dessa questão.

Por esse tempo, Josias, o rei de Judá impetuosamente anti-assírio, já havia assumido o poder. Judá experimentara terrível sofrimento nas mãos

64 Quanto a uma breve discussão introdutória desses assuntos, ver Roland K. Harrison.Introductíon to the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1969), pp. 926-30.

63 Ralph L. Smith, Micah-Malachi, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1984), pp. 72- 73. Outros estudiosos, baseados em um suposto padrão acróstico, vêem o hino esten- der-se através de 2.3. Ver, por exemplo, George Buchanan Gray, The Form ofHebrew Poetry (London: Hodder and Stoughton, 1915), pp. 243-63. Isso, porém, requer uma emenda muito imaginativa para ser tomada em consideração.

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dos assírios durante o reinado de seu avô Manassés, um fato registrado pelo profeta Naum (2.11-13). Sem dúvida a política internacional desen­volvida por Josias foi alvo das reprimendas e ameaças dos assírios. Uma palavra de consolo oferecida por Naum a Judá teria sido singularmente apropriada e encorajaria o rei Josias, que deve ter sentido uma certa inse­gurança em face do poderio dos assírios. Há possibilidade de que Naum houvesse atuado como um dos primeiros arautos para a reforma em Judá, em 632, no oitavo ano do jovem monarca de Judá.

H abacuque

Menos se sabe ainda a respeito do profeta Habacuque.66 O certo é que ele era um talentoso compositor de música (ver 3.19) assim como um pro­feta, e que profetizou no final dos anos da história política de Judá. Sua menção aos babilônicos é um indício claro de que eles já haviam se torna­do independentes e ameaçadores daquela região, assim pressupondo a ascensão de Nabopolassar ao trono de Babilônia em 626 (1.6-11). Um terminus ad quem de 605 é praticamente certo, visto que o julgamento de Judá parece ser totalmente no futuro.67 Por outro lado, Judá se encontra em perigo — abundância de injustiça e falta de conserto — o que afasta totalmente a possibilidade de que Josias governasse Judá nesta ocasião. A descrição do declínio moral e anarquia civil parece encaixar-se mais com os primeiros anos do rei Jeoiaquim (609-605), pouco antes de as maldades de Judá ocasionarem a intervenção divina por meio de Nabucodonosor.

A descrição de Habacuque das hordas babilônicas é gráfica ao extremo (1.5-11). Eles já haviam começado a conquista das nações de uma maneira ainda não testemunhada pelo mundo antigo. Nada podia detê-los. Pareci­am determinados a tornar-se os senhores do mundo. Além disso, eram auto-suficientes. Habacuque sentia dificuldade em ver a Babilônia pagã e arrogante como o instrumento de Deus para a punição de Judá e de outras nações ao redor (1.13).

A resposta do Senhor confirma o sentimento do profeta de que aquele povo era iníquo, pois em sua sede de conquista, derramara muito sangue inocente. Embora Yahweh permitisse o êxito nas conquistas, os babilônicos

66 Harrison, lntroduction, pp. 931-38.67 Harrison, lntroduction, p. 936, com a maioria dos estudiosos, data o livro depois de 605.

Gleason L. Archer Junior estabelece uma data em algum ponto entre 607 ou 606 a.C. A. data desse último parece ser mais apropriada (A Survey o f Old Testament lntroduction [Chicago: Moody, 1984], p. 344).

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beberiam do próprio cálice do julgamento divino. Todos os pedidos e sú­plicas que fizessem aos seus deuses seriam inúteis, pois só Yahweh é Deus.

Satisfeito, o profeta compôs um hino em que celebra a magnificente pessoa do Senhor e suas grandes obras na história.68 Desde o êxodo até a conquista, Yahweh manifestou seu poderoso braço contra os inimigos, tra­zendo grandes vitórias e salvação para o seu povo (3.1-15). Não importa o que aconteça, canta o profeta, todas as coisas terminarão bem, pois Yahweh é o Deus soberano.

Sofonias

O cenário da mensagem do terceiro profeta dos últimos anos de Judá— Sofonias — é mais facilmente determinado, como também o é a identi­dade do autor. Ele relata que pertencia à linhagem real, ou seja, era tataraneto do rei Ezequias,69 e que profetizou durante o reinado de Josias (1.1). A ausência de referências às reformas de Josias sugerem uma data nos primeiros anos do reinado deste, ao invés de uma posterior à purifica­ção do templo (622).70 Esta sugestão apóia-se na descrição do declínio moral e espiritual de Judá. O povo se inclinava e adorava às hostes do céu, e jurava pelo deus Moloque,71 como o fizeram nos dias de Manassés e de Amom, e até mesmo nos anos em que Josias era ainda criança (1.4-6). Tudo isso, diz o Senhor, seria punido no grande dia de seu juízo, que sobreviria à nação de forma iminente e inevitável.

Mas Judá não estaria só no tempo da ira, pois havia outras nações que também desprezaram a graça de Deus e sofreriam suas conseqüências. Os filisteus eram os primeiros da lista (2.4-7), e de fato experimentaram a terrível mão de Nabucodonosor em sua primeira campanha (604).72 Os moabitas e amonitas, genealogicamente primos de Judá, e que já haviam

68 Ver especialmente a obra de William F. albright, "The Psalm of Habakkuk/' em Studies ofO ld Testament Prophecy, editado por H.H. Rowley (Edinburgh: T. & T. Clark, 1950), pp. 1-18.

69 Ver, porém, Smith, Micah-Malachi, p. 125, que argumenta que essa não poderia ser uma referência ao rei Ezequias, visto que ele não tinha nenhum filho com o nome de Amari- as. A objeção baseia-se na hipótese de que, se o rei Ezequias de fato tinha um filho chamado Amarias, este seria mencionado mais à frente em algum lugar.

70 Harrison, Introduction, p. 940.71 Para uma possível confirmação arqueológica da adoração a Moloque nesse mesmo pe­

ríodo, ver Randall W. Younker, "Israel, Judah, and Ammon and the Motifs on the Baalis Seal from Tel el-'Umeiri," BA 48 (1985): 173-80.

72 Wiseman, Chronicles, p. 69 (B.M. 29146, 1. 18).

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demonstrado todo seu ódio para com a nação de Deus, também sofreriam sua queda (2.8-11). Embora não haja evidência explícita nas fontes que confirme estes dados, não há razão para acreditar em contrário.73

O oráculo referente aos etíopes (2.12) tem a ver com a derrota da dinas­tia núbia, que reinou sobre o Alto Egito em Tebas. O cumprimento preciso desta profecia é de difícil interpretação; mas, muito embora os oráculos referentes às outras nações tratem de julgamento e punição que seriam infligidos pela Babilônia, é provável que a tentativa de conquista do Egito em 567 por Nabucodonosor é que esteja em vista nessa passagem.74

A queda da Assíria por meio dos babilônicos é a última da lista das nações estrangeiras que incorreriam na ira do Deus de Judá, em vista dos maus tratos aplicados ao povo de Yahweh (2.13-15). Na ocasião do pro­nunciamento, Nínive ainda permanecia intocada, uma indicação de que o ministério de Sofonias precedeu à queda em 612. Isso também confirma a impressão de que o ministério do profeta floresceu durante os primeiros anos do reinado de Josias, e também sugere que os outros oráculos da série antedatam a destruição de Nínive. Esta grande cidade, proclama o profeta Sofonias, seria completamente devastada e deixada sem habitan­tes. De fato, a própria localização de Nínive foi esquecida pelo mundo, até que as escavações em Kuyunjik revelaram o antigo sítio onde estava loca­lizada a antiga cidade.75

Finalmente, Sofonias falou mais uma vez para sua própria cidade e nação, castigando juízes, profetas e sacerdotes por sua infame desconsideração com a lei de Yahweh (3.1-7). A despeito de seus freqüentes e dramáticos livramen­tos concedidos a Judá, quando era afligido por seus inimigos, o povo sempre se recusava a temer a Deus e se desviar de seus maus caminhos. Yahweh, portanto, reuniria as nações para o julgamento, e Judá também sentiria a sua fúria. Mas, tanto do meio dos pagãos quanto de Judá, emergiria um remanes­cente fiel que agradaria ao Senhor e que serviria como testemunha para os povos da terra. Mesmo os dispersos pelos cantos mais longínquos retornariam e seriam restaurados pelo favor do Senhor Deus (3.14-20).

A linha entre o cumprimento histórico e escatológico é sempre muito fina e difícil de discernir. Aqui em Sofonias, como em todos os profetas,

73 John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples ofO ld Testament Times, edita­do D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), pp. 242-43.

74 Quanto ao texto, ver Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, p. 308; ver também Alan Gardiner, Egypt ofthe Pharaohs (London: Oxford University Press, 1961), pp. 361-62.

75 André Parrot, Nineveh and the Old Testament (New York: Philosophical Library, 1955), pp. 16-17.

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essa demarcação é indistinta. Porém, está claro que os juízos de Deus so­bre Judá e sobre as demais nações ocorreram por mais de uma vez nos tempos do Antigo Testamento, e que sempre emergiu dessas ocasiões um povo purificado, voltado exclusivamente para a aliança mosaica e seus termos de salvação. E igualmente correto que os juízos e processos de res­tauração dos tempos históricos não exauriram o que os profetas tinham em vista; pelo contrário, lançavam sobre a história a perspectiva que ain­da estava por vir, o encontro final entre a humanidade e o Senhor, no qual julgamento e salvação encontrariam sua última expressão.

Jeremias

Certamente a maior e mais informativa voz dentre todos os profetas da geração pré-exílica de Judá foi Jeremias, que é significativo não apenas como fonte histórica, mas também como interpretador teológico.76 Ele in­troduz seu livro identificando-se como filho de Hilquias e cidadão da co­munidade sacerdotal de Anatote (Râs el-Kharrübeh) — cidade dos levitas que se situava para os lados do norte, nas encostas do monte das Olivei­ras. Isto sugere que Jeremias cumpria um duplo papel: o de sacerdote, para o qual estava qualificado por seu nascimento e treinamento, e tam­bém o de profeta, pela virtude do chamado divino. Sobre este fato, nada deve ser dito além de que um membro de uma família sacerdotal foi cha­mado para profetizar. Certamente nada sugere nos escritos de Jeremias que ele fosse um profeta de culto ou tivesse algum interesse no templo além do que qualquer outro profeta da época.77

Felizmente, Jeremias data muitos de seus oráculos, embora a estrutura de seu livro não esteja estritamente em ordem cronológica. Para evitar as especulações, então, à medida que a história de Judá for sendo reconstruída através de Jeremias, não contaremos com as passagens que não ofereçam pistas cronológicas. Apesar disso, visto que as seções sem data também auxiliarão a compreensão do ambiente em que viveu o profeta, uma breve atenção será dispensada a estas passagens.

Com uma precisão incomum, logo no início o profeta determina os li­mites cronológicos de sua profecia. A palavra de Deus lhe veio no décimo terceiro ano do reinado de Josias, ou seja, em 627 (1.2). Seu ministério pú­

76 Para uma apreciação de Jeremias como fonte histórica, ver F. Charles Fensham, "Nebukadrezzar in the Book of Jeremiah," JNLS 10 (1982): 53-65.

77 George Fohrer, History o f Israelite Religion, traduzido por David E. Green (Nashville: Abingdon, 1972), pp. 261-62.

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blico continuou por todos os reinados de Jeoacaz, Jeoiaquim, Joaquim e Zedequias, alcançando o fim do reino em 586, e até mesmo além disto. Portanto, ele foi testemunha dos principais acontecimentos da nação de Judá em seus quarenta anos finais. Sabe-se que Jeremias continuou a pro­fetizar mesmo depois do cataclísmico julgamento de Jerusalém, pois lhe foi oferecida a condição de permanecer em Judá, ao invés de ir em cativei­ro junto com os demais habitantes da cidade para a Babilônia. Uma vez que sua escolha foi permanecer em Jerusalém por um tempo, ele foi para o Egito, indubitavelmente contra sua vontade. O último acontecimento em seu livro é o relato da libertação de Jeoiaquim da prisão, benefício conce­dido em 562 por Evil-Merodaque, rei da Babilônia. Embora Jeremias esti­vesse com cerca de oitenta e cinco ou noventa anos de idade, não há razão para negar que ele pessoalmente tenha registrado suas memórias, inclusi­ve a libertação de Jeoiaquim.

A chamada de Jeremias para o ministério profético surgiu, conforme re­gistrado, em 627, bem depois das tentativas iniciais de Josias para reformar a nação, mas cinco anos antes da descoberta do livro da Torá no templo e do grande avivamento religioso que se seguiu. Isso explica o motivo das mensa­gens iniciais de Jeremias para Judá terem sido de caráter bastante condenatório. Ele fora chamado para falar a respeito da erradicação e destruição das nações, incluindo Judá, e de sua futura restauração e restabelecimento (1.10). Anação escolhida precisava ser informada de seus pecados e de suas conseqüências, uma mensagem repugnada pelo povo, mas Jeremias, o mensageiro, seria pro­tegido por Deus de qualquer reação violenta.

A essência do pecado de Judá era a sua deslealdade para com Yahweh seu Deus, que a livrara do Egito, inserido-a na terra prometida. Durante todos os anos seguintes, a nação seguiu o caminho da desobediência, abandonando o Senhor e servindo aos deuses ou, segundo as palavras de Jeremias:

Porque o m eu povo fez duas m aldades: a m im m e deixaram ,

o m anancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas,

que não retêm as águas (2.13).

Toda a disciplina aplicada pelo Senhor por meio da Assíria e do Egito não fora suficiente. O povo permanecia negando o seu Deus e, como uma mulher infiel, se unira aos seus amantes (3.1).

Mas Yahweh ainda amava seu povo e desejava que se reconciliassem com Ele. Portanto, Ele ordenou a Jeremias que falasse uma palavra de es­perança — não apenas para os habitantes de Judá, mas também para os

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4 8 8 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T f.st .\\!£---.

que estavam em Israel. Esta palavra pode ter estimulado o rei Josias a convidar os moradores de Israel para comparecer à comemoração da Pás­coa, em 622. Mas Jeremias via uma contradição entre a mensagem de oti­mismo e a evidente ameaça que despontava no horizonte.78 Logo Jerusa­lém estaria cercada, e embora os profetas e sacerdotes pregassem a paz, esta não era pressentida na realidade (8.11). Ao contrário, o que se ouvia era o resfolegar dos cavalos inimigos (8.16).

Porém, isso não significava necessariam ente uma com pleta aniqui- lação, pois o Senhor graciosamente perdoaria a seu povo e manteria suas promessas para aqueles que se arrependessem e renovassem o pacto. Este rem anescente ainda seria restaurado à sua terra em um dia futuro, à terra que lhes fora entregue por causa da promessa que Yahweh havia feito aos seus pais no passado (16.14,15). O cativeiro era um re­sultado esperado, e certam ente haveria muitos desastres e destruição de todo tipo. Como um sinal daqueles tempos incertos, Jerem ias foi prevenido pelo Senhor de que perm anecesse solteiro, pois qualquer fi­lho nascido ao profeta certam ente pereceria na catástrofe que aguarda­va a nação (16.1-4). Mesmo assim, havia esperança para aquele que confiasse no Senhor. Este sobreviveria e perm aneceria de pé no dia da vingança e da ira do Senhor Deus (17.7,8).

A maior parte dos capítulos 1 a 17 do livro de Jeremias ocorre durante o reinado de Josias, provavelmente antes da restauração do templo e da descoberta do rolo da Torá, em cerca de 622.79 A mensagem é quase toda de condenação e julgamento, sugerindo que não houvera qualquer tipo de arrependimento nacional. É justo admitir que a mensagem de juízo iminente sobre Judá causou forte impacto sobre Josias que, aconselhado pelo profeta, empregou as medidas necessárias para a reforma, conforme registrado nas fontes históricas. Embora a reforma não houvesse sido pro­funda nem seus resultados permanentes, como parecem indicar as cele­brações públicas, de forma alguma o ministério de Jeremias foi em vão em seus primeiros anos.

Uma vez que não há marcos cronológicos específicos, não há meio de determinar se as palavras de Jeremias, entre 622 e a sucessão de Jeoiaquim,

78 Edwin M. Yamauchi identifica o inimigo do norte como uma combinação de caldeus e citas, a presença do último sugerida pelos artefatos de guerra característicos dos citas, os quais foram achados na Palestina ("The Scythians: Invading Hordes from the Russian Steppes," BA 46 [1983]: 90-99).

79 Não se pode deduzir com isso que os capítulos 1 a 17 representam uma unidade literá­ria independente. Quanto ao complexo arranjo do livro de Jeremias, ver a obra de John Bright, Jeremiah, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), pp. lv.lxxxv.

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em 608, estão registradas em seu livro. Já se definiu que os capítulos 1 ao 17 estão diretamente ligados aos primeiros anos do rei Josias. Também deve se destacar que quase todos os capítulos restantes podem ser, de al­guma maneira, associados a um período depois de 609. Isto fortemente sugere que os anos entre 622 e 608 foram relativamente estáveis; anos de paz e renovação espiritual, não havendo necessidade de uma palavra pro­fética de julgamento.

A situação transformou-se radicalmente após 609, quando o filho ma­lévolo de Josias, Jeoiaquim, assumiu o poder. Quase imediatamente vê-se o retorno do ministério profético e público de Jeremias. A evidência mais antiga está no capítulo 26, onde Jeremias recebe uma palavra de Yahweh "no início do reinado de Jeoiaquim". Logo Jeoacaz e Jeoiaquim conduzi­ram Judá para a infidelidade espiritual. Jeremias respondeu à crise, ad­vertindo que Jerusalém seria destruída como a famosa Siló, caso não se arrependesse a tempo, pois os profetas de Deus já vinham falando com a nação (26.9). Alguns do povo exigiram que Jeremias fosse executado por causa de sua mensagem impopular. Outros pediam que ele fosse poupa­do como fora Mica, nos dias de Ezequias, e que sua mensagem fosse rece­bida como uma advertência de Deus para o povo. Embora o segundo gru­po prevalecesse e Jeremias fosse deixado livre, outro profeta, Urias, não tão afortunado, teve de pagar com a vida por seu testemunho intrépido da verdade (26.20-24).

No ano em que Nabucodonosor veio pela primeira vez a Jerusalém e exigiu de Jeoiaquim o pagamento de tributos (605), Jeremias registrou muitos acontecimentos importantes. Os dados cronológicos precisos que o profeta inclui em seu relato indicam que a cidade já tinha caído e Jeoiaquim estava tecnicamente sob o controle dos babilônicos. Mas, ainda assim, a cidade permanecia intacta e seus habitantes sofreram bem pouco. Esta foi a causa do otimismo e do descaso para com os sinais de alerta emitidos pela primeira incursão babilônica.

Portanto, Jerem ias pronunciou um juízo ainda maior (cap. 25). Ele vinha anunciando a palavra do Senhor ao povo por vinte e três anos, sem qualquer resultado satisfatório. Por isso o castigo seria a aproxi­mação de Nabucodonosor, que dessa vez causaria uma completa des­truição e um cativeiro de setenta anos para a população de Judá (25.11). A nação, por outro lado, não seria a única a experimentar o castigo de Deus, mas todas as nações vizinhas também sofreriam os duros golpes desferidos pela máquina de guerra babilônica. Os detalhes da conquis­ta estão contidos nos capítulos 46 a 49. O Egito, mencionado em pri­meiro lugar (46.2-28), fora recentem ente hum ilhado na batalha de

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Carquemis. Este, no entanto, foi apenas o início dos problemas, pois N abucodonosor não ficaria satisfeito enquanto a cidade de M ênfis não fosse com pletam ente arrasada e Tebas trazida para debaixo da autori­dade e controle babilônicos. Tudo isso Nabucodonosor conseguiu em cerca de 567.

Os filisteus também conheceram a ira de Deus (47.1-7). Antes de NecoII, do Egito, atacar a cidade de Gaza em sua campanha militar de 609, Jeremias já havia profetizado que cinco cidades dos filisteus seriam víti­mas de conquistas militares que sobreviriam repentinamente do norte. A palavra se cumpriu na campanha de Nabucodonosor em seu primeiro ano de reinado, em 604.

Moabe (48.1-47), Amom (49.1-6) e Edom (49.7-22), embora estivessem relacionados por parentesco com Judá, também não escapariam ao juízo. A águia babilônica voaria rasante e se apoderaria de sua presa, consumin­do-lhe a carne, deixando os ossos à vista. Mesmo assim, o Senhor não permitiria que Moabe e Amom desaparecessem da terra. Mas, a respeito de Edom, este jamais se recuperaria, perdendo seu lugar na terra, como Sodoma e Gomorra.

Finalmente, os pronunciamentos de juízo alcançaram as cidades de Damasco, Quedar e Hazor, que também conheceriam o forte martelo do império babilônico (49.23-33). As cidades seriam devastadas e deixadas em pó, e sua população seria espalhada pelos quatro ventos. Sua constan­te recusa em servir o Deus de Israel e obedecer seus estatutos, pela medi­ação de sua graça através do povo escolhido, certamente resultaria em irremediável julgamento.

Também no quarto ano de Jeoiaquim, o Senhor ordenou a Jeremias que escrevesse todos os juízos concernentes a Judá e às demais nações em um livro. Segundo o registro bíblico, o escrivão Baruque escrevia as palavras à medida que Jeremias as proferia, utilizando um rolo de manuscrito (cap. 36). Provavelmente isto aconteceu depois de Nabucodonosor submeter Jerusalém, pois o rolo continha os julgamentos que Jeremias pronunciou depois que o rei Jeoiaquim capitulou. O primeiro dos julgamentos — so­bre o Egito — foi, como já visto, liberado depois da batalha de Carquemis. Baruque tomou o rolo de manuscrito e leu-o diante do templo no nono mês do quinto ano de Jeoiaquim, o qual havia sido proclamado como um dia de jejum (Jr 36.9,10).80

80 Bright, Jeremiah, p. 182, indica que esse foi o mesmo mês em que os exércitos babilônicos saquearam a cidade de Ascalom. O jejum promulgado em Judá pode ter sido feito exa­tamente por causa do ataque.

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O conteúdo do manuscrito perturbou sobremaneira o rei, dado as conde­nações nele contidas, de maneira que tomou o livro e rasgou-o em várias partes. Em seguida, queimou-o num braseiro que ficava diante de seu trono. Era a prova de que Jeoiaquim não temia aquelas palavras. A razão para o desprezo pode estar no fato de ele não haver sido propriamente infligido pelos babilônicos, embora Nabucodonosor lhe tivesse exigido um pesado tri­buto e deportado um número de prisioneiros importantes. Certamente ele sentia que desfrutava de proteção em virtude de ser um vassalo da Babilônia.

Mesmo assim, a palavra profética era insistente: Jerusalém cairia sob julgamento divino e seu povo seria espalhado pelos confins da terra. E como evidência de que tais palavras não falhariam, Jeremias laboriosa­mente ditou mais uma vez o conteúdo do livro para o escrivão Baruque. Desta vez a mensagem dirigiu-se especificamente para o rei Jeoiaquim. Sua família nunca mais se assentaria no trono de Davi, e ele mesmo mor­reria e seu corpo seria exposto ao calor de dia e à geada de noite, em razão de sua desobediência (36.30).

A única mensagem de Jeremias claramente endereçada a Joaquim, fi­lho de Jeoiaquim, está registrada no capítulo 22, cujas palavras tratam da rejeição de Jeoiaquim e de sua linhagem. A data deste oráculo provavel­mente ocorreu após a morte de Jeoiaquim. Após uma palavra introdutória, em que o jovem monarca é incitado a voltar-se para Yahweh, Jeremias lembra-lhe que a ambição e a política de auto-suficiência promovida por seu tio Jeoacaz e seu pai Jeoiaquim resultaram em exílio e em violentas mortes. Caso não procurasse fazer melhor — e Jeremias certamente é pes­simista nesta questão —, o jovem rei também experimentaria o mesmo fim trágico. Joaquim seria conduzido para a Babilônia como um troféu, e nunca mais retornaria para sua terra. E ainda seus filhos nunca se assenta­riam no trono de Davi (22.24-30). A história confirma o cumprimento das palavras do profeta Jeremias. Mas a dinastia de Davi não deixou de ter um representante no trono, um descendente legítimo, que o próprio Deus pre­servara para validar suas promessas. Este descendente viria da linhagem de um outro filho de Davi, Natã, ao invés de Salomão.81 Jesus, filho adoti­vo de José, descendente de Jeoiaquim, foi concebido no ventre de Maria, que era descendente de Davi, mas não dos reis de Judá que o sucederam.

81 Marshall D. Johnson, The Purpose o f Biblical Genealogies (Cambridge: Cambridge University Press, 1969), pp. 243-49. Devo esta referência e sua profunda significação ao colega Darrel Bock. Ver também Eugene H. Merrill, "1 Chronicles," em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F. Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, p. 595.

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Logo no início do reinado de Zedequias, no ano 593 (27.1; cf. 28.1), Jere­mias reiterou a mensagem de julgamento sobre a nação de Judá e seus vizinhos (caps. 27—28), dizendo que Nabucodonosor viria, e que seria completamente inútil resistir-lhe de qualquer forma. A única prudência seria submeter-se às suas ordens. Porém, havia outras vozes proféticas em conflito com a de Jeremias, as quais diziam que o exílio logo terminaria e Joaquim retornaria para Jerusalém, trazendo os artigos do templo que fo­ram roubados e levados para a Babilônia em 605 e em 597. Uma dessas vozes, um profeta chamado Hananias, filho de Azur, declarava nitidamente que o retorno ocorreria em um prazo máximo de dois anos (28.3,4). Antes deste tempo, Hananias já estava morto e, após cumprir-se o período, pôde- se comprovar que suas palavras eram mentirosas e as de Jeremias, verda­deiras. O cativeiro duraria setenta anos.

Por esse tempo, Jeremias escreveu duas cartas, uma endereçada aos que estavam no cativeiro (29.4-23), e outra composta em forma de oráculo profético contra a Babilônia (caps. 50-51). A primeira foi enviada aos cati­vos por uma delegação que fora despachada pelo rei Zedequias a fim de ter uma audiência com Nabucodonosor. A segunda, por meio de uma de­legação que incluía o próprio Zedequias. O motivo de tais viagens não é esclarecido, embora seja possível que estivessem relacionadas com a apre­sentação anual dos tributos ao rei de Babilônia.82

De qualquer forma, a carta continha instruções para que os cativos se estabelecessem na terra de seus dominadores e, pacientemente, esperas­sem pelo momento do retorno, que se cumpriria somente após os setenta anos indicados na profecia. As condições de existência favoráveis são evi­dentes, pois o profeta instrui o povo a casar-se, ter filhos, constituir casas e negócios, submetendo-se às autoridades babilônicas. Dificilmente ele fa­lava a prisioneiros de guerra perecendo em campos de concentração. O profeta menciona que Zedequias, o atual ocupante do trono, em pouco tempo não mais ali estaria, e qualquer vestígio do antigo reino do sul sim­plesmente iria desaparecer. Para eles, o futuro consistia em viver na Babilônia, não mais em Jerusalém, embora a situação não fosse definitiva, pois Deus, em seu próprio tempo, os traria de volta para a terra.

O julgam ento da Babilônia (caps. 50— 51) é descrito em termos grá­ficos como um colapso m eteórico de um império magnífico, infligido pelos inim igos que se levantaram do norte. A queda seria o fator fun­damental para o retorno dos filhos de Israel, e também uma lição, para que pudessem perceber, como a Assíria, que a Babilônia servira aos

82 Bright, Jeremiah, p. 211.

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propósitos de disciplina do Senhor concernentes a Israel e Judá. Os Medos e seus aliados reduziriam a cidade a cinzas, e sua própria loca­lização seria com pletam ente esquecida. Para sim bolizar o fato, Jerem i­as ordenou ao m ensageiro responsável por entregar o texto escrito do o r á c u lo q u e o l e s s e e m p ú b l i c o n a B a b ilô n ia . D ep o is , e l e d e v e r ia a m a r ­rar ao escrito uma pedra e atirá-lo no rio Eufrates. Assim como afun­dou a pedra no interior das escuras águas, Babilônia desapareceria no mar das nações (51.63,64).

O crescimento dos egípcios e sua influência na primeira década do sex­to século começou a causar uma mudança no equilíbrio do poder no Ori­ente Médio. O rei Zedequias, um relutante servo da Babilônia, quebrou seu tratado de submissão a Nabucodonosor em 588, ocasionando a imedi­ata retaliação. Mesmo quando os exércitos da Babilônia estavam em mar­cha para o oeste, Jeremias proclamou, na parábola do vaso e do oleiro (cap. 18) e do vaso quebrado (cap. 19), que o fim de Judá estava próximo. Como fora dito na parábola, Jerusalém seria quebrada e esmagada, e se tornaria um objeto de refugo.

A intrepidez do profeta Jeremias e sua aparente tentativa de enfraque­cer a moral de Judá custou-lhe uma noite de prisão (cap. 20). Mesmo liber­tado no dia seguinte, o preço que começava a pagar — seu estresse físico e psicológico — levara-o a questionar seu chamado e mensagem. Como ele podia pregar submissão aos exércitos estrangeiros se, nas horas de maior crise nacional, os profetas instigavam as autoridades e o povo a confiarem exclusivamente em Deus como aquEle que os libertaria de toda opressão? O rei e o povo também faziam a mesma pergunta. Se de fato os babilônicos estavam chegando, não deveria o profeta orientá-los a resistir no poder de Deus, em vez de miná-los com uma mensagem de rendição incondicio­nal? Quando o rei Zedequias pediu conselhos a Jeremias, tudo o que ou­viu foi que devia render-se aos babilônicos. E a razão era simples: Deus determinara a destruição da cidade e nada poderia ser feito para alterar o veredicto. A oposição humana aos decretos de Deus fatalmente conduzira a trágicas conseqüências.

No meio do cerco a Jerusalém, parecia por um tempo que os falsos profetas estavam certos e Jeremias errado, pois Hofra, do Egito, chegou na terra e forçou Nabucodonosor a voltar-se para a retaguarda de seus exér­citos (37.11).83 Com os babilônicos temporariamente afastados, a cidade pôde respirar com mais alívio. Até mesmo Jeremias aproveitou a situação para deixar a capital e resolver negócios em sua terra, Benjamim. Mas na

83 Malamat, "Last Kings," IEJ 18 (1968): 152, data esse episódio na primavera de 587.

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ocasião ele foi acusado de estar fugindo para os caldeus, sendo por isso lançado no calabouço (37.15). O mal se tornaria ainda pior: os rumores de que Jeremias era um adido dos caldeus em Jerusalém resultou em seu encarceramento num poço de lamaçal onde certamente pereceria, não fos­se a intercessão do etíope Ebede-Meleque (38.7-13).

Ainda na prisão, Jeremias ofereceu seu último conselho a Zedequias: ren­der-se, para que ele, a família, e toda a cidade fossem poupados da morte e devastação (38.17-23). Zedequias quase foi persuadido. Mas o orgulho de sua posição e a necessidade de manter a coragem em face de certa calami­dade impediu que acedesse às palavras do homem de Deus. Tal pertinácia contra a verdade causou a destruição do rei e de todo o povo.

Em 587, um ano antes da queda de Jerusalém, Hananeel insistiu com Jeremias (seu primo) para que comprasse dele um campo em Anatote (32.6- 15). Certamente porque se fosse levado para o cativeiro, Jeremias poderia guardar aquele pedaço de terra. Conforme a direção de Deus, Jeremias concordou em comprar o campo, e chamou o escrivão Baruque para subs­crever a escritura da compra. Depois guardou-a em um jarro de barro, a fim de que fosse preservada por muitos dias, até o final do cativeiro, e seus herdeiros pudessem requerê-la em dias vindouros.

A atitude de Jeremias era um testemunho da promessa de Yahweh de trazer de volta seu povo e instaurar uma nova aliança (32.37-41). Yahweh mesmo tomaria a iniciativa de suscitar dentre seu povo um remanescente com um novo coração, uma nova disposição para amá-lo e obedecer-lhe. Certamente a terra ainda desfrutaria de abundância e bênção. Do meio da devastação, surgiria uma nova cidade e um novo país, cheios de vida e esperança. A antiga promessa feita por Deus de que sempre haveria des­cendente que se assentasse no trono de Davi iria vigorar para sempre (33.14- 18). Na verdade, a situação presente não podia ser comparada com o glo­rioso futuro já preparado. Seriam dias de restauração, em que Yahweh cumpriria o seu plano redentor para Israel e todas as nações da terra.

Finalmente chegara o dia do julgamento predito por Jeremias e seus com­panheiros profetas. As muralhas de Jerusalém foram rompidas e os exércitos caldeus ocuparam a cidade. Zedequias tentou escapar furtivamente da morte e do cativeiro, mas foi alcançado e conduzido à presença do rei da Babilônia. Lá teve seus olhos vazados e foi conduzido cego e escravo para a capital do Império. Jerusalém foi despojada de todos os seus ricos tesouros e queimada a fogo (39.1-10). Enquanto isso, Jeremias foi libertado e não seguiu com os exilados para a Babilônia, pois obteve o direito de escolher ir para o cativeiro ou ficar em Jerusalém. O profeta, mesmo após essa devastação, ainda presen­ciaria acontecimentos terríveis e até mesmo seria envolvido em um deles.

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Antes dos babilônicos partirem e deixarem a região, escolheram um homem chamado Gedalias, um judeu a favor dos caldeus, para governar os pobres deixados na terra (40.7). Ele se estabeleceu politicamente em Mispa e de lá administrava os negócios de Judá segundo as determina­ções do governo babilônico. Mas nem todos estavam satisfeitos com a si­tuação e, dentro de pouco tempo, uma conspiração foi instigada por Ismael, filho de Netanias, contra a autoridade de Gedalias. Ismael representava os interesses de Baalis, rei dos Amomitas,84 que aparentemente estava enciumado ou talvez temeroso acerca da possibilidade de surgir um esta­do judeu semi-independente, pois já havia uma forte atração para que os judeus espalhados pelas nações vizinhas voltassem para sua terra.85

Quando um oficial do exército judeu, cujo nome era Carea, tomou ci­ência da conspiração, imediatamente propôs ao governador a eliminação de Ismael (40.13-15). Mas Gedalias não lhe deu crédito. Após alguns me­ses, Ismael e alguns companheiros foram recepcionados pelo governador em Mispa, quando subitamente o mataram, assim como a alguns oficiais e soldados babilônicos presentes (41.1-3). Ismael levou os prisioneiros dire­tamente para Amom, mas antes mesmo de ultrapassar Gibeom, foi inter­ceptado por Joanã e seus homens, que conseguiram libertar os prisionei­ros. Porém, Ismael escapou e fugiu para os termos de Amom. Joanã partiu em direção do Egito, pois acreditava que Nabucodonosor, furioso, man­daria destruir o que restava de Judá. Imaginou que o rei da Babilônia o culparia pela morte de seus soldados e do governador estabelecido na recém-formada província dos caldeus (41.16-18).

No caminho, partidários de Joanã se encontraram casualmente com o profeta Jeremias, e angustiados lhe pediram que intercedesse por eles a Deus, e que lhes desse alguma orientação naquele momento. Jeremias lhes declarou que deviam ficar na terra. Os babilônicos não os incomodaria, pois Yahweh cuidaria deles. Caso partissem para o Egito, sofreriam a es­pada e a fome (cap. 42).

Joanã, apesar disso, desconsiderou a palavra do profeta e partiu para o Egito, levando membros da família real que haviam sido deixados na terra sob os cuidados de Gedalias. Até mesmo Jeremias foi obrigado, juntamente

84 Para uma nova e importante confirmação desse nome, ver Larry G. Herr, "The Sarvant of Baalis," BA 48 (1985): 169-72. Henry O. Thompson e Fawzi Zayadine identificaram anteriormente Baalis (corretamente) como o filho de Aminadabe que tem seu nome numa inscrição cunhada em uma garrafa de Tel Siran ("The Works of Amminadab," BA 37 [1974]: 13-19).

85 Bartlett, "Edom and the Fali of Jerusalem," PEQ 114 (1982): 18-19.

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com Baruque, a segui-los em direção sul, até que, por fim, chegaram a Táfnes (Tel Dafanneh), no nordeste do Delta (43.1-7).86 Neste local, Yahweh reve­lou a Jeremias que Nabucodonosor construiria um toldo real exatamente no local escolhido pelos judeus para se refugiarem. A destruição que viria so­bre o Egito também atingiria os judeus que para lá se refugiaram.

Jeremias preparou uma mensagem para circular entre todos os judeus que habitavam no Egito. Eles já haviam assimilado o estilo de vida egíp­cio, incluindo o sistema religioso, e assim negaram sua identidade como filhos da aliança com Yahweh. Então, sofreriam as conseqüências de seus atos, da mesma forma que seus ancestrais. A comunidade judaica do Egi­to seria destruída, com exceção de um pequeno rebanho que voltaria para a terra (44.1-14).

Novamente, a palavra profética foi desprezada. Ao invés de se volta­rem para o Senhor, os judeus do Egito votaram fidelidade aos deuses pa­gãos, atribuindo-lhes o mantimento e a proteção (44.15-19). Com resigna­ção, Jeremias profetizou que o Egito sofreria a ira de Deus por suas ofen­sas. Ofra (Apries), o governante na ocasião (589-570), seria entregue aos inimigos estrangeiros, e a aparentemente proteção dos judeus simples­mente ruiria diante de seus próprios olhos (44.30).

A história de Jeremias se encerra neste ponto (c. 585), com exceção da nota concernente à libertação de Jeoiaquim no ano 562. Na ausência de documentos que provem o contrário, parece provável que Jeremias tenha passado o resto de seus dias no Egito, vivendo entre a comunidade ali estabelecida. Não se sabe por que ele não registrou os acontecimentos de­pois de 585. O que se pode imaginar é que ele manteve contato com os judeus espalhados pelo mundo, como atesta a referência à libertação do rei Jeoiaquim.

86 Para uma confirmação dos relatos históricos e geográficos do profeta Jeremias com res­peito aos acampamentos judaicos no Egito, ver Eliezer D. Oren, "Migdol: A New Fortress on the Edge of the Eastern Nile Delta," BASOR 256 (1984): 31-32.

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0 E X Í L I O E O P R I M E I R O R E T O R K O

Um a visão panorâm icaOs estágios das deportações A vida na diáspora O retorno do exílio

A situação m undial durante o exílioO declínio e a queda âo Im pério Babilônico As origens do Im pério Persa

O povo judeu durante o exílio Em Judá Em Babilônia

A visão de Ezequiel

A visão de Daniel No Egito

A situação m undial durante o período da restauraçãoCam bises II da Pérsia Dario H istapes da Pérsia

O prim eiro retornoCiro como um agente de Yahiveh Sesbassar, o líder do retorno O número dos que voltaram

Problem as decorrentes do retorno A influência benéfica dos çro tetas

Ageu Zacarias

Uma visão panorâmica

Os estágios das deportações

A primeira vez que Jerusalém submeteu-se ao poderio de Babilônia foi no ano 605 a.C., o marco inicial para a contagem dos setenta anos preditos pelo profeta Jeremias. Um período encerrado com a queda e rendição da cidade de Babilônia em 539.1 Os longos anos em que a elite política, militar e religiosa de Judá esteve longe de sua terra são popularmente conhecidos como o exílio na literatura moderna, um termo singularmente apropriado, um vez que não

1 John Bright, feremiah, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), pp. 16— 61. Este é obviamente um número aproximado, visto que o cativeiro foi, de fato, apenas de sessenta e seis anos, mas o número é bem aproximado ao do profeta Daniel (Dn 9.1,2). A referência aos setenta anos em Zacarias 1.12 e 7.5 se aplica a um período diferente, ou

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apenas sugere a remoção forçada da população de judeus para a Babilônia, como também comunica a ausência de Yahweh durante o processo. A tragé­dia do exílio não pode ser interpretada como apenas a deportação de um povo para outra terra, ou a destruição de uma cidade e seu santuário central. Na verdade, Deus havia se retirado do meio de seu povo, uma ausência sim­bolizada por uma das visões de Ezequiel, na qual a Shekinah movia-se do templo para o monte das Oliveiras (Ez 11.23). De certa forma, portanto, o fim do cativeiro dos judeus em 539-538 não pode ser sinônimo do exílio, porque Yahweh não retornou na ocasião para habitar no templo. Pelo contrário, os profetas predisseram que seu retorno aconteceria apenas na era escatológica, quando o próprio Messias seria a glória de Deus (Ag 2.7-9).

A primeira fase do exílio de Judá foi simultânea com a ascensão de Nabucodonosor (605-562) ao trono de Babilônia. Este jovem príncipe, der­rotando os egípcios na batalha de Carquemis em 605, foi, mediante a ines­perada morte de seu pai, obrigado a abandonar o propósito de expulsar os egípcios da Palestina. Mesmo assim, no caminho de retorno, Nabuco­donosor saqueou Jerusalém, conduzindo muitos judeus em cativeiro para a capital do Império.2 Deixou no trono de Judá o rei Jeoiaquim, que veio a rebelar-se, forçando o retorno de Nabucodonosor em 601. Também em 597 ele retornou, depois que Joaquim, filho de Jeoiaquim, subiu ao trono. Nabucodonosor enviou-o para o exílio, onde permaneceu até a morte. En­quanto isso, Zedequias, irmão de Jeoiaquim, foi estabelecido no trono de Judá. Também esta ação foi malsucedida, pois Zedequias era instável e de pouca confiança. Assim, Nabucodonosor decidiu retornar para Jerusalém, desta vez para destruí-la completamente, carregando consigo a nata da sociedade israelita para o cativeiro (586).

A vida na diáspora

Permaneceu esta situação até que ascendeu ao poder o imperador Ciro, que em 538 promulgou um decreto de libertação.3 Sendo assim, a maior

seja, entre a destruição do templo (586) e sua reconstrução (515). Ver David L. Petersen. Haggai and Zechariah 1-8 (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 149; Petersen, porém, pre­fere as datas de 590-520.

2 O silêncio nos registros da Babilônia com respeito ao cerco de Jerusalém em 605 (ver Dn 1.1) não é suficiente para provar a inexistência de tal acontecimento. Ver D.J. Wiseman. "Some Historical Problems in the Book of Daniel," em Notes on Some Problems in the Book of Daniel, editado por D.J. Wiseman et al. (London: Tyndale, 1965), p. 18.

3 Quanto à conquista de Babilônia e aos eventos que a conduziram, ver A.T. Olmstead. History o f the Persian Empíre (Chicago: University of Chicago Press, 1948), pp. 49-58.

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parte do exílio foi vivida entre os anos 586 a 538. Há poucos dados, quer nas fontes bíblicas quer não, a respeito das condições da Palestina durante esse período, embora a evidência aponte para um profundo pessimismo por toda a parte.4 Os judeus exilados que, antes ou depois das deporta­ções feitas por Nabucodonosor, decidiram partir para o Egito (novamente as fontes são escassas) tiveram uma condição aparentemente melhor, ape­sar de ficarem confinados a um único lugar, Elefantina.5

Entretanto, é possível identificar melhor o cotidiano dos cativos na Babilônia. A literatura bíblica contém indícios de a vida lá era agradável, e o povo ajustou-se rapidamente ao novo local.6 Estas conclusões são confirmadas por algumas placas de escrito cuneiforme que testificam acerca da vida dos judeus .7 Yehezkel Kaufmann argumenta que não há evidência de anti-semitismo entre os babilônicos e que, de fato, os ju ­deus desfrutavam de bem -estar econômico e até mesmo assumiam altos postos políticos.8

4 Ver William F. Albright, The Biblical Period from Abraham to Ezra (New York: Harper, 1963), p. 84-87. Quanto a algumas sugestões acerca da organização política, ver Sean E. McEvenue, "The Folitical Structure in Judah from Cyrus to Nehemiah," CBQ 43 (1981): 353-64.

5 Bezalel Porten, Archives from Elephantine: The Life o f an Ancient Jeivish Militanj Colony (Berkeley: University of Califórnia Press, 1968). Quanto aos acampamentos espalhados no Egito, ver em Elizer D. Oren, "Migdol: A New Fortress on the Edge of the Eastern Nile Delta," BASOR 256 (1984): 35-36.

6 Por exemplo, Jeremias 29.4-7; Ezequiel, 33.30-32. Para uma visão contrária, ver J.M. Wilkie, "Nabonidus and the Later Jewish Exiles," JTS 2 (1951): 36-44.

7 Esses consistem em documentos de Murashu e outros materiais discutidos em Michael D. Coogan, "Life in the Diaspora: Jews at Nippur in the Fifth Century B.C.," BA 37 (1974): 6-12. Esses materiais foram originalmente publicados por Hermann V. Hilprecht e Albert T. Clay, Busineff Documents o f Murashu Sons o f Nippur Dated in the Reign of Artaxerxes I (464-424 B.C.i. Babylonian Expedition 9 (Philadelphia: University of Pennsylvania, 1898).

8 Yehezkel Kaufmann, Histom o f the Religion o f Israel, vol.4, caps. 1-2, The Babylonian Captivity and Deutero-Isaiah (New York: Union of American Hebrew Congregations, 1970), pp. 9-11; ver também Julian Morgenstern, "The Message of Deutero-Isaiah in Its Sequential Unfolding," HUCA 29 (1958): 5-6. Evidência de um tratamento ainda mais especial dos judeus é visto no caso de Jeoiaquim, que recebeu uma pensão real por Evil-Merodaque; ver William F. Albright, "King Jehoiachin in Exile," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por David Noel Freedman e G. Ernest Wright (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1961), vol. 1, pp. 106-7. Coogan, "Life in the Diaspora," BA 37 (1974): 9-10, sugere que "não existem indícios de discriminação ou de restrição religi­osa ou de qualquer outra espécie de preconceito étnico. Os judeus estavam engajados nas mesmas formas de contrato, participavam das mesmas taxas de juros como os

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De qualquer forma, está claro que na época do decreto de Ciro, a maio­ria dos judeus exilados pertencia a uma geração que não conhecia a sua pátria. Tinham nascido no exílio e, embora sonhassem com Jerusalém, eram o povo da Babilônia. A geração mais antiga e os idealistas ansiavam por retornar ao lar, mas é fato notório que Sesbassar, Zorobabel e outros líde­res do retorno aparentemente não conseguiram um grande número de judeus para acompanhá-los à pátria. Obviamente isto não é difícil de com­preender, visto que em Babilônia eles eram relativamente prósperos, sen­do doloroso reiniciar a vida em uma terra de morte e cinzas. Mas o princi­pal ponto aqui é a grande adaptação e assimilação do povo. Como outros refugiados e povos deportados, os judeus demonstraram a flexibilidade da psique humana, não apenas permanecendo na terra, mas permitindo a terra penetrar-lhes.

Argumentar que os judeus, comprometidos com a comunidade e a tradição como eram (e são), poderiam viver sob condições relativamente favoráveis no exílio babilônico e não absorver sua cultura é assumir uma tenacidade resoluta ou um isolamento rígido opostos ao que é conheci­do acerca de Judá no exílio. Os judeus, sempre um povo de fácil adapta­ção e até mesmo coesivo, têm historicamente demonstrado um desejo e uma habilidade para serem bons cidadãos em qualquer local onde habi­tem. Isso se estende ao serviço militar, educação, cultura e, não menos, à linguagem. É ilegítimo e contrário às evidências assumir que os judeus cativos da Babilônia, quer por coerção quer por escolha, tenham se isola­do física ou intelectualmente. Eles absorveram profundamente o estilo da sociedade em que viviam, e ainda assim retiveram a apreciada fé, vida e tradições de seus ancestrais.9 Mais particularmente os profetas Isaías e Ezequiel revelaram uma consciência dessas duas realidades — os antigos caminhos dos antepassados e o novo mundo de que partici­pavam, cujas imagens, metáforas e padrão de vida serviriam aos santos propósitos de Deus.10 Eles falaram a um povo que estava imerso na cul-

seus vizinhos contemporâneos não-judeus de Nippur." Embora as circunstâncias des­critas por Coogan reflitam a vida dos exilados um século depois, não existem razões para sentir que havia diferenças apreciáveis no tratamento daqueles que moraram naquele local no sexto século.

9 Arthur J. Zuckerman, "The Coincidence of Centers of Jewry with Centers of Western Civilization," em Shivím: Essays and Studies in Honor oflra Eisenstein, editado por Ronald A. Brauner (New York: Ktav, 1977), pp. 99-116.

10 A consciência de Ezequiel a respeito da Babilônia veio, é claro, pelo fato de ser ele uma testemunha ocular e participante do cativeiro, enquanto Isaías profetizou acerca de tais coisas especialmente nos capítulos 40—55; ver Eugene H. Merrill, "The Language and

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tura local. Como melhor poderiam comunicar os eternos propósitos de Deus para o seu povo, assim como para a Babilônia, que não no próprio idioma tão familiar? Deveríamos esperar dos profetas algo além de que eram homens da mesma época, que falavam para sua comunidade em linguagem que pudesse ser entendida pelo povo? A língua certamente era hebraica, mas o hebraico notado em toda parte estava permeado de sutis diferenças léxicas e literárias, cuja fonte não foi outra senão a influ­ência cultural e religiosa sofrida na Babilônia.

O retorno do exílio

No tempo de Deus o exílio chegou ao fim e o processo de retorno teve início, embora não sem obstáculos. Nabucodonosor morreu em 562, um fato que precipitou a queda do Império Babilônico e abriu caminho para Ciro, rei dos Persas. O filho e sucessor de Nabucodonosor, Evil Merodaque, assumiu as rédeas do império em 562-560,11 e deu provas de sua total ine­ficiência. É conhecido como o responsável por soltar Jeoiaquim da prisão e prover-lhe uma pensão real até a morte. Depois dele levantou-se Neriglassar (560-556), cunhado de Evil Merodaque, o qual nada fez para impedir o iminente colapso do império. Seu filho Labasi-Marduque tam­bém não pôde salvar o reino, e foi assassinado provavelmente por um partido que pelejava contra a soberania do culto ao deus Marduque. Este partido conseguiu estabelecer no trono Nabonido (555-539),12 um fiel de­voto de Sin, o deus-lua, cuja adoração era centralizada nas cidades de Ur e Arã. Em razão deste culto ao deus Sin, Nabonido acabou distanciando-se da população de Babilônia e do clero religioso, pois aquela cidade era a principal capital da adoração de Marduque. Segundo as inscrições desco­bertas, Marduque estava bastante insatisfeito com a postura de Nabonido, de sorte que passou a procurar por um "outro pastor" que apascentasse corretamente seu rebanho babilônico.13

Literary Characteristics of Isaiah 40—55 as Anti-Babyloniam Polemic", dissertação de Ph.D. na Universidade de Columbia, 1984.

11 O tratamento autoritário de seu reinado é visto em Ronald H. Sack, Amel-Marduk 562- 560 B.C.: A Study Based on Cuneiform, Old Testament, Greek, Latin and Rabbinical Sources (Neukirchen-Vluyn: Butzon und Bercker Kevelaer, 1972).

12 Essa série de acontecimentos é documentada em Sidney Smith, Babylonian Historical Texts Relating to the Capture and Downfall ofBabylon (London: Methuen, 1924). Ver tam­bém Raymond P. Dougherty, Nabonidus and Belshazzar, Yale Oriental Series 15 (New Haven: Yale University Press, 1929); Olmstead, History, pp. 34-38.

13 Uma espécie de propaganda escrita (o conhecido Relato Acerca de Nabonido Cantado

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Tal "pastor" seria o Ciro de Ancham que, tendo subm etido os M e­dos e outros rivais,14 criou um dos mais poderosos exércitos de toda a história da hum anidade. Ciro, um general de inteligência estratégica admirável, passou parte de sua vida desferindo ataques-relâmpago con­tra vários adversários, tanto próxim os quanto distantes. Com a experi­ência de guerra, Ciro cercou Babilônia, tomando-a praticam ente sem resistência em 539. O rei Nabonido tinha o hábito de ausentar-se da capital, e fazia-o até mesmo (ou especialmente) nas com em orações de Ano Novo, quando como de costume participava dos rituais tradicio­nais. Suas ausências eram cada vez mais freqüentes e demoradas, de form a que o real governo da cidade estava nas m ãos de seu filho Belsazar. Foi este desafortunado vice-rei que presenciou o colapso da nação com a chegada de Gubaru, o com andante persa e governador de Gutium. Parece que Belsazar morreu durante ou pouco depois do con­flito ,15 enquanto seu pai N abonido foi capturado e em seguida solto condicionalmente. Duas semanas depois, Ciro marchou triunfantemente pela cidade e celebrou com alegria a derrota de seu rival, tornando-se o senhor absoluto do oriente .16

Ciro pôs em prática uma política beneficente, perm itindo a todos os exilados o retorno para suas terras. Os judeus, é claro, também esta- vam incluídos, e viram neste decreto a bênção de Deus, como cum pri­mento da palavra profética. Para eles, esta libertação não era menos significativa que aquela do êxodo sob a liderança de M oisés. Na verda­de, a linguagem dos profetas, por exemplo Isaías 40— 66, está repleta de imagens do êxodo. E verdade que a maioria dos judeus da disper­são preferiu perm anecer em suas casas, especialm ente os que m ora­vam em Babilônia, mas aqueles que tinham seus olhos voltados para o propósito eterno de Deus viram no cativeiro um instrum ento de corre-

em Versos Persas), que delata os pecados cometidos por Nabonido mas que, por outro lado, exalta em refrões a escolha de Ciro como amado de Marduque, pode ser pesquisada em Smith, Babylonian Historical Texts, pp. 82-97; e em A. Leo Oppenheim, "Babylonian and Assyrian Historical Texts," em James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 312-315.O famoso Cilindro de Ciro também relata a mesma coisa (pp. 315-316). Quanto a transliteração do texto, ver F.H. Weissbach, Die Keilinschriften der Achameniden, Vorderasiatische Bibliothek 3 (Leipzig: J.C. Hinrichs, 1911), pp. 2-7.

14 Stephen Langdon, Die neubabylonischen Kõnigsinchiften, Vorderasiatische Bibliothek 4 (Leipzig: J.C. Hinrichs, 1912), pp. 252-61, n. 6 (Nabon), esp. 1.29-35.

15 Dougherty, Nabonidus and Belshazzar pp. 174-175.16 Olmstead, History, pp. 38-51.

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ção. E o retorno à pátria era o sinal de que ainda tinham um pape! redentor a desempenhar.

A situação mundial durante o exílio

O declínio e a queda do Im pério Babilônico

Um ano após a conquista de Jerusalém, Nabucodonosor lançou outro cerco, dessa vez contra a parte marítima de Tiro, pois já havia capturado Sidom, Arvade e a porção continental da própria Tiro.17 O cerco durou treze anos, mas mesmo após a ilha render-se em 573, os babilônicos con­seguiram pouco lucro em vista de seus esforços. Tentando obter mais vantagens nessa campanha militar, Nabucodonosor decidiu mover-se para o sul, em direção ao Egito. No ano 568 ele devastou uma extensa porção do vale do Nilo. Somente o Delta ocidental parece ter escapado na ocasião .18

Os anos que restaram a Nabucodonosor permanecem um mistério. Não há dúvidas de que ele morreu em 562 e foi substituído por seu filho Evil- Merodaque. Conforme já se observou, este filho de Nabucodonosor foi o responsável pela libertação de Jeoiaquim. Salvo este acontecimento, seu governo é visto de forma totalmente negativa, de modo que em 560 ele foi assassinado por Neriglassar, marido de sua irmã.

Neriglassar empenhou-se para, no mínimo, empreender uma campa­nha pela cadeia montanhosa do Taurus, o que sem dúvida foi motivado pelas intensas movimentações dos Medos, que vinham em sua direção através da Anatólia central. Ele também se comprometeu na edificação de uma série de construções. Porém, seu mandato foi de curta duração (560- 556). Seu filho Labasi-Marduque, jovem e vigoroso, assumiu o governo, mas foi assassinado em apenas trinta dias.

A participação de Nabonido na morte de Labasi-Marduque ainda não está esclarecida, mas de qualquer forma ele estava no trono, substituin­do a dinastia de Nabopolassar, a qual durara exatamente setenta anos.19 Nabonido era filho de um nobre chamado Nabu-balatu-iqbi e Adda- guppi, uma sumo sacerdotisa do deus-lua. A influência religiosa que esta mulher exerceu, cuja idade ultrapassou os cem anos, causou forte im­

17 H. Jacob Katzenstein, The History o f Tyre (Jerusalem: Schocken Institute for Jewish Research, 1973), pp. 330-31.

18 Ibid., pp. 338-39.19 Olmstead, History, pp. 35-36.

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pacto na vida religiosa de seu filho, contribuindo fatalmente para a que­da final de Babilônia.20

Caso Nabonido seja o alto oficial da corte no oitavo ano (597) de Nabucodonosor, ele mesmo devia estar avançado em anos em cerca de 555 .21 E esta hipótese não está sem fundamento lógico, pois há infor­mações de que sua mãe, que morreu em 547, nasceu em 650.22 Alguns estudiosos tentam identificar Nabonido com Labynetus, um mediador na disputa entre os Lídios e os Medos em 585.23

Nabonido, sempre influenciado por sua mãe, tornou-se um fiel e con­sagrado servo do deus-lua Sin. Enquanto um simples cidadão, ainda que importante, esse fato não causou nenhuma dificuldade particular. Quan­do se tornou rei da Babilônia, entretanto, a situação mudou dramatica­mente, pois a cidade era o centro religioso de culto ao deus Marduque, líder no panteão babilônico. O conflito estabeleceu-se precipitando não só a ruína de Nabonido, mas também de todo o Império Babilônico.

Mas a crise ainda obteve um bom intervalo, pois logo que assumiu o trono de Babilônia, Nabonido informou a todos que tivera um sonho, em que o deus Marduque lhe dizia para reedificar o templo de Sin, conhecido por E-hul-hul.24 Claramente esta era uma tentativa do novo rei de justifi­car a introdução do culto ao deus Sin dentro da jurisdição religiosa do deus Marduque, e também para tentar abafar e conciliar as suspeitas do povo e dos sacerdotes.

Do início ao fim do seu primeiro ano de reinado, em 555, Nabonido, tendo apaziguado temporariamente os seus críticos, empreendeu sua pri­meira campanha rumo ao nordeste, a qual resultou na conquista de Hamate e Arã. Em seu terceiro ano, voltou à Síria e tomou outras cidades naquela região. Provavelmente Arã era o seu principal objetivo, pois juntamente com a antiga Ur constituía o centro de adoração ao deus Sin. Ele mesmo forjou um tratado unindo-se a Ciro contra os Medos que, na ocasião, obti­nham o controle de Arã. Os Medos deixaram a cidade para guerrearem

20 Peter R. Ackroyd, Exile and Restoration (Philadelphia: Westminster, 1968), pp. 19-20.21 Dougherty, Nabonidus and Belshazzar, p. 31.22 Albert Kirk Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles (Locust Valley, N.Y.: J.J. Augustin,

1975), p. 107, Crônica de Nabonido 2.13-14; ver também Oppenheim, "Historical Texts," em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 311-12, quanto aos assim chamados Textos da Família de Nabonido, que traçam sua vida desde o vigésimo primeiro ano do reina­do de Assurbanipal até o nono de Nabonido.

23 D.J. Wiseman, Chronicles ofChaldaean Kings (626-556 B.C.) in the Britsh Museum (London: Trustees of the British Museum, 1961), p. 39.

24 Oppenheim, "Historical Texts," em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, p. 310.

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contra os persas, proporcionando a Nabonido uma oportunidade para en­trar na cidade e reivindicá-la para si mesmo .25

Logo Nabonido iniciou a restauração de Arã como centro de culto. Cons­truiu uma grande estátua do deus-lua e reconstruiu o templo de E-hul- hul. A atitude do rei provocou suspeitas nos sacerdotes de Babilônia, que se lhe tornaram hostis. Para eles, Nabonido não tencionava apenas elevar a posição do deus Sin, mas desejava substituir definitivamente a adoração a Marduque.26 A situação tornou-se tão desconfortável para Nabonido que ele mesmo impôs-se um exílio de dez anos em Tema, o grande oásis do deserto Siro-arábico, do lado oriental do mar Vermelho.27 Este exílio ocor­reu em seu sexto ano de reinado (550).

Porém isto não significou a abdicação do reino. N abonido apenas deixou os negócios nas m ãos de seu filho Bel-sar-usur (Belsazar). Há poucos docum entos para esclarecer este período .28 Mas não há dúvi­da de que, durante os anos de exílio, N abonido esteve m uito envolvi­do com cam panhas m ilitares, especialm ente contra as tribos árabes que se tornavam um sério problem a, em vista do rápido crescim ento. Além do aspecto m ilitar, N abonido cultivou o hábito de colecionar antigüidades e restaurar objetos de arte. A ssim esteve envolvido na reconstrução de alguns tem plos destruídos e m uitas outras constru­ções a n tig a s .29 Quanto a Belsazar, praticam ente nada se sabe a seu respeito até a fatídica noite de 539, ocasião em que ele leu a escritura que fora gravada na parede, a qual determ inava sua im inente des­truição e queda.

Durante os anos em que Nabonido morou em Tema, Ciro esteve com­pletam ente absorvido com a preparação de um poderoso império. Fal­tava apenas a incorporação da Babilônia em seu vasto domínio, de m a­neira que estabeleceu sua meta em direção à conquista. No inverno de 539 Ciro tomou a cidade de Opis, situada próximo ao rio Tigre. Poucos

25 Sidney Smith, Isaiah, Chapters XL-LV (London: Oxford University Press, 1944), p. 33.26 Assim está soletrado no Relato Acerca de Nabonido Cantado em Versos Persas. Ver

Smith, Babylonian Historícal Texts, p. 88; Oppenheim, "Historical Texts," em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 312-15.

27 Enquanto silencioso acerca do sexto ano, a Crônica de Nabonido registra que ele estava em Tema no sétimo ano (549). Ver Grayson, Assyrian and Babylonian Cbronicles, p. 106, Crônica de Nabonido 2.5.

25 Ver, porém, Dougherty, Nabonidus and Belshazzar, pp. 96-97,133; Gerhard F. Hasel, "The Book of Daniel: Evidences Relating to Persons and Chronology," AUSS 19 (1981): 42-45; A.R. Millard, "Daniel 1-6 and History," EQ 49 (1977): 71-72.

29 William L. Reed, "Nabonidus, Babylonian Reformer or Renegade?" LeiTQ 12 (1977):24

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dias depois, em 10 de outubro, ele conquistou Sipar sem qualquer re­sistência. Durante esse tempo, Nabonido pôde retornar à Babilônia e, com os próprios olhos, testemunhou a queda e o colapso de sua glorio­sa cidade, indefesa diante das forças do Império Persa, comandadas por Gubaru, governador de Gutium. A queda ocorreu em 12 de outu­bro. Duas semanas depois, em 29 de outubro de 539, Ciro entrou na cidade em paz, não perm itindo qualquer destruição. Estabeleceu no governo o próprio Gubaru e deixou a adm inistração civil e religiosa perm anecer inalterada .30

As origens do Im pério Persa

As raízes de Ciro originam-se com os medos e os persas. Ambos eram descendentes de tribos arianas que se moveram da Rússia em direção sul

para o platô urartiano, e por volta de 1000 a.C. estabeleceram-se nas vizi­nhanças do lago Urmia (hoje geograficamente reconhecido como o extre­mo noroeste do Irã). Gradualmente, os medos se moveram para o leste e ocuparam o oeste do Irã, no sul do mar Cáspio, enquanto os persas migra­vam para o sul, estabelecendo-se no sudoeste do Irã, voltados para o Gol­fo Pérsico.31

A linhagem real de que Ciro fazia parte foi fundada por Acamenes, que reinou de 700 a 675.32 Foi ele quem emprestou seu nome para a di­nastia acamenida. Seu filho Teispes (675-640) estendeu os territórios da Parsa (Pérsia) em direção sul, até atingir a Passárgada. Em razão da gran­de extensão do reino, Teispes dividiu-o entre seus dois filhos, Ariaramnes,

30 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, pp. 109-11, Crônicas de Nabonido 3.12-28.31 Roman Ghirshman, Iran (Hammondsworth: Penguin, 1954), pp. 90-96.32 Quanto ao próximo cenário até Ciro II, ver Ghirshman, Iran, pp. 95-126.

Tabela 9 Os reis da Pérsia

Ciro II Cambises II Gaumata Dario Histaspes Xerxes Artaxerxes I Dario II Artaxerxes II

522-486486-465464-424423-404404-358

559-530530-522522

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no sul, e Ciro I, no norte. Ele também reconquistou sua independência, não mais submetendo-se aos medos, os quais controlaram a Pérsia em cerca de 670.

A linhagem de Ariaramnes (640-615) incluiu Arsames, Histaspes e Dario Histaspes; a de Ciro I (640-600) produziu Cambises I (600-559) e Ciro II (559- 530), o que criou o império. Cambises, estabelecido como governante da Pérsia após esta ser novamente tomada pelos medos e constituída uma província, casou-se com a filha do rei da Média, conhecido por Astiages. Deste casamen­to nasceu Ciro II, que unia em si mesmo as famílias reais da Média e da Pérsia.

Um contemporâneo de Acamenes, da Pérsia, foi Deioces, da Média, de quem muito pouco se sabe. Seu filho Fraortes (675-653) fez de Parsa um estado vassalo, mas sua morte no campo de batalha contra os assírios, em 653, contribuiu para Teipes readquirir a independência. O trono na Média permaneceu sem monarca de 653 até 625 em conseqüência da do­minação Cita no noroeste do Irã. Porém, no tempo apropriado levantou- se Ciaxares (625-585) que venceu os citas e os assírios, estabelecendo para a Média o controle de toda a região norte da Mesopotâmia e do Irã. Nes­se mesmo tempo, ele forçou a submissão da Pérsia, momento em que decidiu pôr Cambises no trono daquele estado vassalo. Ciaxares foi subs­tituído por seu filho Astiages (585-550), cuja filha viria a ser a mãe do grande Ciro II.

O próprio Ciro, na verdade, era um vassalo de seu avô, e reinava em uma região conhecida por Ansan .33 O jovem monarca tomou a liberdade de estabelecer sua capital em Passárgada, e deu início ao processo de uni­ficação de uma série de tribos da Pérsia que ainda resistiam ao novo go­verno imperial. Ele também conseguiu estabelecer aliança com Nabonido, rei da Babilônia, uma ação equivalente a uma rebelião contra Astiages, visto que os babilônicos eram na ocasião, os inimigos mais hostis do reino da Média. Por esta razão Ciro foi oficialmente convocado para compare­cer diante do rei em Ecbátana, capital do império. Mas corajosamente de­cidiu não ir. Astiages desferiu um ataque contra seu neto, mas seu exército desertou. Ciro marchou contra Ecbátana, aprisionou seu avô, e fez da Média uma província da Pérsia.

Com este golpe, Ciro reivindicou todos os territórios da Média, cau­sando uma confrontação imediata com a Lídia. Um poderoso reino no mar Egeu, no lado oeste da Ásia Menor, Lídia era comandada naqueles anos por Cresus, um monarca de reputação tão elevada que era conside­rado como os heróis épicos da literatura grega. Cresus antecipou-se às

33 Olmstead, History, pp. 34-51; Smith, Isaiah, pp. 35-48.

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aspirações de conquista de Ciro, e marchou para evitar a chegada dos persas nos territórios de influência helênica. Mas Ciro mostrou-se mais poderoso, e na batalha forçou o recuo de Cresus até a capital Sardes, derrotando-o finalmente em 547. Ciro transformou o reino de Cresus em uma nova satrapia persa, chamada agora de Saparda, e desenvolveu re­lações amigáveis com os gregos da região, que mais tarde o serviriam como aliados e mercenários.

Babilônia, entretanto, com a ausência de Nabonido, começava a deteri­orar interna e externamente sob a incompetência de Belsazar. Muitas pro­víncias babilônicas, como Elam, renderam-se aos persas, e em 539 Ciro enviou um exército contra a Babilônia, sob o comando de Gubaru.34 A cidade caiu sem nenhuma batalha e Ciro transformou-a na capital de mais uma de suas satrapias, chamada Babirus, que incluía em sua jurisdição a Síria, Fenícia e Palestina.

Uma das razões para a pronta capitulação da Babilônia era a aversão do povo pela política de Nabonido e de seu filho, cuja postura religiosa desprestigiava abertamente o deus Marduque. Ciro já ganhara a reputa­ção de um imperador iluminado, que agia com benevolência e era eclético em seu ponto de vista. Um aspecto de sua política era que reconhecia os direitos dos deuses nativos sobre os seus seguidores, e não tentava suplantá-los com os seus próprios deuses. De fato, ele chegou à Babilônia mediante as ordens expressas de Marduque, que se enfurecera com a irreverência de Nabonido, e desejou substituí-lo por um outro rei, um pastor que mais fielmente apascentasse seu rebanho. O pastor, é claro, não era outro senão Ciro.

A política de Ciro beneficiou sensivelmente os judeus exilados em Babilônia, pois Ciro conferiu a Yahweh o mesmo respeito dado a Marduque e a outras divindades. A conseqüência lógica de sua política foi o decreto que permitia aos judeus o retorno à sua terra. Somente em um templo restaurado em Jerusalém Yahweh poderia agir efetivamente como o Deus de Judá. Assim, em fiel obediência a Yahweh, Ciro decidiu repatriar o povo judeu. Providenciou autorizações para que eles voltassem e reconstruís­sem a cidade e o templo para seu Deus.

34 As Crônicas de Nabonido declaram que no décimo sexto dia de Tashritu, "Ugbaru, gover­nador de Guti, e o exército de Ciro entraram em Babilônia sem qualquer batalha" (3.15-16). Continua o relato dizendo que "Gubaru, seu oficial do distrito, designou os oficiais distritais em Babilônia" (3.20) e que "na noite do décimo primeiro dia do mês de Marchesvan, Ugbaru morreu" (3.22). William H. Shea sugere que (também é nossa opinião) Ugbaru e Gubaru são a mesma pessoa, e que ambos têm de ser distinguidos do Gubaru constituído sátrapa por Ciro algum tempo depois ("Darius the Mede: Na Update," AUSS 20 [1982]: 245).

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Após o decreto em 558, Ciro continuou a expandir seu magnificente império. Sua morte ocorreu em 530, em um combate contra Massageta, no vale do rio Jaxartes, na Ásia Central.

O povo judeu durante o exílio

Em Judá

Em meio a todos esses acontecimentos que devastaram o mundo, o povo eleito de Deus manteve sua identidade, embora não mais como uma nação estabelecida em um lugar. Os miseráveis que evadiram as três de­portações para a Babilônia em 605, 597 e 586, assim como os fugitivos no Egito, somavam talvez não mais que vinte mil almas.35 Com Jerusalém e as maiores cidades em ruínas, esses pobres sobreviveram do trabalho agrí­cola e como criadores de gado. Alguma idéia da calamitosa situação pode ser extraída do livro das Lamentações de Jeremias que, embora poético, descreve realisticamente como foi a vida não apenas para o profeta como também para os cidadãos que ali habitavam (ver também Ez 33.21-29).

Não se pode concluir, entretanto, que não havia mais senso de comunida­de em Judá.36 Certamente houve esforços para reconstruir não apenas casas e cidades, mas também as infra-estruturas da vida social. E dentro das estrutu­ras provinciais impostas na terra pelos babilônicos emergia algum tipo de governo local. Além disso, o culto não desaparecera, embora a destruição do templo possa ter alterado a sua forma original. Provavelmente, algo seme­lhante às sinagogas que surgiram por toda parte anos depois, na Diáspora, pode ter aparecido em Judá para satisfazer as necessidades do povo de estu­dar a Torá.37 Mas, no cômputo geral, os textos bíblicos silenciam a respeito da natureza e atividades da comunidade que não fora para o exílio.

Em Babilônia

Ironicamente, embora Judá permanecesse o local geográfico do povo da aliança, Babilônia tornara-se histórica e intelectualmente o seu lar. E isto era verdade não apenas nos anos de exílio, mas por séculos depois. De

35 Albright, Biblical Period, p. 87.36 Uma excelente análise da situação de Judá durante os tempos do cativeiro pode ser

vista em Ackroyd, Exile and Restoration, pp. 20-31.37 Para várias sugestões, ver a obra de Solomon Zeitlin, "The Origin of the Synagogue,"

em The Synagogue: Studies in Origins, Archaeologist and Architecture, editado por Joseph

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fato, nos primeiros séculos da Era Cristã, Babilônia era um centro religio­so judaico que desenvolvera uma tradição completamente separada de Jerusalém e Alexandria. Foi lá que os judeus mais devotos criaram o co­nhecido Talmude Babilônico, e uma escola de massoretas da Babilônia produziu sua própria família de textos bíblicos e manuscritos.38

Particularmente isto não surpreende, pois os exilados, não tão nume­rosos, eram a nata política, intelectual e religiosa da sociedade judaica. No cativeiro, eles viveram juntos em seus próprios guetos. Uma vez que esta­va evidente que permaneceriam no exílio ainda por muito tempo, come­çaram a fixar-se, compraram propriedades e se engajaram em negócios. Há evidências de que alguns tentaram a resistência, mas finalmente per­ceberam que a coexistência pacífica seria o único caminho.39 De fato a vida tornou-se tão confortável que a maioria não retornou para Judá quando saiu o decreto de Ciro.

A visão de Ezequiel

A melhor percepção da vida no exílio da Babilônia é encontrada em Ezequiel, que passou todos os anos de seu ministério público no local. Como Jeremias, ele era sacerdote, conforme atesta seu testemunho (1.3) e seu grande interesse pelo culto. Seus escritos auxiliam particularmente nossa investigação, porque na maior parte estão em ordem cronológica e repletos de dados históricos.40

O profeta inicia o relato definindo o cenário — ele estava com os exilados próximo do rio Quebar, no décimo terceiro ano. O Quebar é o nar kabari men­cionado pelos registros babilônicos, um canal que forma uma extensão do rio

Gutmann (New York: Ktav, 1975), pp. 14-26; Martin Noth, "The Jerusalem Catastrophe of 587 B.C. and Its Significance for Israel," em The Laws in the Pentateuch and Other Essays (Edinburgh: Oliver and Boyd, 1966), pp. 263-64; Peter R. Ackroyd, Israel Under Babylon anã Persia (London: Oxford University Press, 1970), pp. 27-28.

38 Samuel Safrai, "The Era of the Mishnah and Talmud (70-640)," em A History ofthe Jewish People, editado por Haim H. Ben-Sasson (Cambridge: Harvard University Press, 1976), pp. 373-82. Quanto ao cativeiro da Babilônia como um cenário para o florescimento do judaísmo, ver D. Winton Thomas, "The Sixth Century B.C.: A Creative Epoch in the History of Israel," [55 6 (1961): 33-46.

39 John Bright, A Histom of Israel, 3a edição (Philadelphia: Westminster, 1981), p. 346; William H. Shea, "Daniel 3: Extra-Biblical Texts and the Convocation on the Plain of Dura," AUSS 20 (1982): 30-32.

40 Para uma revisão de todas as datas, ver K. S. Freedy e Donald B. Redford, "The Dates in Ezekiel in Relation to Biblical, Babylonian and Egyptian Sources," JAOS 90 (1970): 462-85.

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Eufrates.41 O "décimo terceiro ano" provavelmente é uma referência ao seu décimo terceiro ano.42 Era 593 a.C., o décimo quinto ano do cativeiro de Jeoiaquim, como informa o profeta (1.2). O hábito de datar os acontecimentos baseado no cativeiro de Jeoiaquim corrobora a opinião de que Jeoiaquim, e não Zedequias, era considerado o verdadeiro herdeiro do trono de Davi.43

Ezequiel fora comissionado por Yahweh para ministrar à comunidade exilada que vivia próxima ao Quebar, especialmente os que estavam nos acampamentos de Tel Abibe (3.15). Sua mensagem para o povo centrava-se na iminente destruição de Jerusalém. Sem dúvida eles pensavam que a ci­dade santa sobreviveria, ainda que de lá fossem deportados. Eles precisa­vam entender, porém, que Jerusalém era invencível apenas enquanto o povo fosse fiel para com Deus. E de acordo com os fatos, eles falharam em perma­necer fiéis. Como conseqüência, viria sobre Jerusalém o iminente e irreme­diável julgamento. Através de uma série de ilustrações — representando o cerco a Jerusalém (4.1-3), raspando sua cabeça (5.1-4) e preparando algemas (7.23-27) — Ezequiel preconizava a iminente destruição de Sião.

No sexto ano, 592, Ezequiel estava em sua própria casa juntamente com um concilio de anciãos de Judá, quando repentinamente o Senhor condu- ziu-o em visão até Jerusalém, onde ele testemunhou uma série de abomi- nações cometidas pelos líderes de Judá no santo templo de Deus (cap. 8). O resultado foi a partida dos querubins e da glória de Deus do templo, ficando suspensos sobre o monte das Oliveiras. Isto significava que a ani- quilação da cidade estava próxima. Mas, antes que a glória de Deus se afastasse do santo templo, o profeta ouviu a mesma promessa que todos os seus antecessores ouviram: o povo de Deus passaria por um amargo cativeiro e escravidão por causa de seus pecados, mas Ele mesmo iria dar- lhes um coração novo, para que verdadeiramente o adorassem e servis­sem, de modo que retornariam para sua terra. Como ossos secos que fo­ram trazidos à vida, eles rejuvenesceriam e se uniriam novamente — Isra­el e Judá — e o próprio Davi reinaria sobre ambos (11.14-21; cap. 37).

A visão de Daniel

Daniel é a segunda maior fonte de informação acerca da vida no exílio antes do decreto de Ciro. De fato, Daniel viveu além daquela era e fornece

41 Agora é conhecido por satt en-níl; ver Walther Zimmerli, Ezekiel: A Commentary on the Book ofthe Prophet Ezekiel (Philadelphia: Fortress, 1979), vol 1, p. 112.

42 Walther Eichrodt, Ezekiel (Philadelphia: Westminster, 1970), p. 52.43 Zimmerli, Ezekiel, vol. 1, pp. 114-15.

5 1 2 H is t o r ia d e I sraf. í \o A '.t;»;-.-

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inestimável documentação sobre a dominação dos persas na Babilônia e seu subseqüente governo sob Dario, o medo, e Ciro. Não há espaço nesta obra para tratar da historicidade do livro de Daniel e dos acontecimentos registrados.44 Tudo o que precisa ser dito é que o livro não tem se mostra­do contrário às informações extrabíblicas, e que retórica e linguagem en- quadram-se com os padrões lingüísticos do sexto século, era em que o livro parece ter sido escrito. Apenas nas linhas mais subjetivas da evidên­cia nega-se historicidade ao autor e ao livro.

Segundo as próprias palavras, Daniel estava entre os nobres depor­tados por Nabucodonosor durante a primeira conquista de Jerusalém (605). Logo que chegou à Babilônia, Daniel e alguns de seus compa­nheiros foram separados por Aspenaz, oficial da corte, e treinados nas artes e ciências dos caldeus. O aparente propósito seria prepará-los para serem membros de um corpo diplom ático que pudesse mais tarde re­presentar os interesses da Babilônia, talvez na própria Palestina. Eles eram estudantes aptos, mas decidiram em seus corações não se conta­minar com as iguarias do rei, pois desejavam m anter-se puros na lei de seu Deus.

No segundo ano de seu reinado, Nabucodonosor teve um sonho que deixou-o profundamente desatinado (Dn 2). Então ordenou que todos os adivinhos do império se apresentassem para revelar-lhe o sonho e a inter­pretação sob pena de morte. Como ninguém pôde assim fazer, Daniel apre- sentou-se diante do rei. Informando-o de que falava como emissário do Deus verdadeiro, Daniel revelou não apenas o sonho, mas também sua interpretação. Convencido de que Daniel falara a verdade, Nabucodono­sor reconheceu o poder de Yahweh e promoveu Daniel e seus três amigos a posições de grande autoridade na província de Babilônia. Embora nem D aniel nem seus com panheiros possam ser identificados nos textos extrabíblicos, há bastante evidência de que estrangeiros, incluindo judeus, se destacaram nos cargos governamentais em Babilônia e, ocasionalmen­te, chegaram aos mais altos escalões.45

44 Veja, por exemplo, Arthur J. Ferch, "The Book of Daniel and the 'Maccabean Thesis'" AUSS 21 (1983): 129-41; John Goldingay, "The Book of Daniel: Three Issues," Themelios 2 (1977): 45-49; Gerhard F. Hasel, "The Book of Daniel and Matters of Language: Evidences Relating to Names, Words, and the Arramaic Language/TLÜSS 19 (1981): 211-25; Millard, "Daniel 1-6 and History," EQ 49 (1977): 67-73; Gordon J. Wenham, "Daniel: The Basic Issues," Themelios 2 (1977): 49-52; Edwin M. Yamauchi, "Daniel and Contacts Between the Aegean and the Near East Before Alexander," EQ 53 (1981): 37-47.

45 Shea, "Daniel 3," AUSS 20 (1982): 46-47.

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Mais tarde Nabucodonosor teve outro sonho, e Daniel declarou-lhe a interpretação: por não reconhecer a soberania do Deus Altíssimo, o rei teria sua vida reduzida a uma existência animal. Por sete anos ele ficaria insano e impossibilitado de reinar (Dn 4). Ao fim deste período, seria res­taurado e assumiria novamente a regência. Tudo isto se cumpriu, e Nabu­codonosor finalmente reconheceu que era apenas um instrumento nas mãos do Deus do céu.

Os céticos negam que Nabucodonosor sequer tenha sofrido alguma moléstia descrita por Daniel, mas seu argumento é extremamente fraco.46 M esmo que a insanidade do rei seja corroborada pelos documentos extrabíblicos, é importante notar que os registros babilônicos são quase totalmente omissos a respeito da última década de sua vida. Os esforços para salvar a credibilidade da história mediante a sugestão de que Daniel não se referia a N abucodonosor m as a N abonido47 são totalm ente insatisfatórios, pois não apenas compromete a credibilidade do registro de Daniel como fonte histórica, como também a alegação da insanidade de Nabonido traz pouca semelhança com acontecimentos relatados em Daniel.48

Por razões desconhecidas, Daniel nada menciona acerca do período entre os reinados de Nabucodonosor e Belsazar. Quando reassume a nar­rativa, ele trata da noite de 539 quando Belsazar, em um banquete regado a muito vinho, recebeu uma palavra do Deus do céu, a qual dizia que os Medos e os Persas estavam a caminho para destruir toda a glória de Babilônia. Percebendo talvez a inevitabilidade do julgamento, Belsazar decidiu honrar o homem de Deus que lhe trouxera a fatídica mensagem, elevando-o a terceiro governante do reino. Isto implica em que Nabonido era o primeiro, Belsazar o segundo, e Daniel o terceiro.49

Esta organização, porém, não iria adiante, pois Nabonido foi captu­rado por Gubaru, o general da Pérsia, Balsazar foi assassinado, e Babilônia tornou-se apenas uma das satrapias do im pério persa. As re­ferências de Daniel a "D ario, o M edo" (Dn 5.31; 6.1) e "D ario, filho de X erxes" (Dn 9.1) parecem ser a descrição do general Gubaru. Foi ele quem o im perador Ciro colocou sobre todo o reino da Babilônia (Dn 9.1). A mudança no governo babilônico apenas ergueu Daniel à posi­

46 Veja, por exemplo, Louis F. Hartman e Alexander A. Di Lella, The Book o f Daniel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1978), pp. 178-79.

47 Ackroyd, Exile and Restoration, p. 37.48 Hasel, "The Book of Daniel," AUSS 19 (1981): 38-42.49 William H. Shea, "Nabonidus, Belshazzar and the Book of Daniel: An Update," AUSS

20 (1982): 133-49.

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ção de estadista, pois Ciro rapidamente viu nele habilidade adm inis­trativa, pois havia se destacado nessa função por mais de sessenta anos. Portanto, Dario, o Medo, designou-o para ser um dos três principais supervisores de todo o sistema provincial do império persa .30 A efici­ência de Daniel era tal que Dario planejava elevá-lo à posição máxima do governo. Mas os inimigos de Daniel, tomados por inveja, consegui­ram um meio de fazer o rei decretar a morte de Daniel. Contudo, por intervenção divina, o profeta foi salvo, e o rei Dario confessou publica­mente a soberania do Deus de Daniel.

Foi no primeiro ano de "D ario, o M edo" (i.e., 539) que Daniel com ­preendeu que os setenta anos profetizados por Jerem ias já estavam no fim, e que seus com patriotas logo retornariam para Jerusalém e recons­truiriam o santo templo, que na ocasião ainda estava em ruínas (Dn 9.1,2). O decreto logo seria emitido pelo imperador Ciro e m ilhares de Judeus voltariam para sua terra, e a aliança mais uma vez seria respei­tada pela nova comunidade em solo sagrado. Daniel rapidamente per­cebeu que o exílio ainda estaria em vigor enquanto o templo de Jerusa­lém perm anecesse destruído, por isso orou fervorosamente a Deus para que Ele se com padecesse do santuário em ruínas (9.17) e voltasse a fa­zer seu nome vigorar naquele lugar (9.19). A resposta a essa oração chegou durante os anos dos profetas Ageu e Zacarias, que foram ins­trumentos divinos usados para exortar e incentivar o povo a recons­truir a casa de Deus.

Mas havia ainda uma resposta maior aos clamores de Daniel. Basean­do-se na idéia numérica dos setenta anos de exílio, Yahweh prometeu que ao fim de "setenta semanas", Ele faria uma obra maior do que apenas reconstruir o templo dos judeus.

Ele enviaria seu Ungido, o Salvador messiânico que morreria por seu povo, e poria um fim nos longos anos de oposição aos propósitos de Deus (Dn 9.24-27).51

50 Essa designação, embora decretada pelo próprio Ciro, foi posta em ação por "Dario, o Medo" (Dn 5.31; 6.1; cf. 6.28). Parece melhor, sem iniciar um debate aqui, aceitar a opi­nião de Shea, que identifica "Dario, o Medo" com Gubaru, governador de Gutium, que à frente do exército persa conquistou Babilônia ("Darius the Mede," AUSS 20 [1982]: 234-47). Quanto à opinião de ser Dario um segundo Gubaru (cf. n. 34), ver John C. Whitcomb, Jr., Darius the Mede (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1963). Para uma identificação deste com o próprio Ciro, ver Wiseman, "Some Historical Problems," em Notes on Some Problems, pp. 9-16.

51 J. Dwight Pentecost, "Daniel," em The Bible Knozrledge Commentary, editado por John F. Walvoord e Rov B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, pp. 1361-65.

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f 1 6

No Egito

A terceira maior concentração de judeus depois do colapso ocorrido em Jerusalém encontrava-se no Egito. A terra do Nilo sempre foi um dos locais favoritos de Israel quando estavam à procura de refúgio. Abraão foi para lá por ocasião da grande fome na terra santa. José e, mais tarde, Jacó e sua família também se estabeleceram nesse país. Anos mais tarde, Jeroboão lá buscou asilo. Tudo isto porque há uma grande proximidade entre o Egito e a Palestina, além de existir uma forte afinidade entre os dois povos. Embora o Egito tivesse feito dos hebreus seus escravos por muitos anos, tornando- se inclusive símbolo ou tipo da escravidão, ainda assim era visto com favor especial pelo Senhor. Muitas promessas escatológicas com respeito a Israel incluem benefícios especiais para o povo egípcio (Is 19.24,25).

Não é de estranhar que os refugiados judeus e israelitas escapassem para o Egito vez por outra nos tempos bíblicos. E quase certo que assim fizeram na conquista de Samaria em 722 pelos assírios, e Jeremias registra uma ocasião em que foi forçado a partir para o Egito depois da destruição de Jerusalém pelos exércitos de Nabucodonosor. Esse contingente de hebreus no Egito era formado basicamente de oficiais do exército, mem­bros da família real e judeus que tinham recentemente voltado para Judá das cidades que a circundavam, depois que Gedalias fora designado go­vernador da recém-formada província babilônica (Jr 43.4-7). Naquele epi­sódio, o destino inicial deles foi a cidade de Tafnes (Tel Dafanneh), no lado oriental ào Delta (]r 43.8), mas íinalmente se estabeleceram em Migdol (Tel el-Heir), no lado norte do Delta, e também em Mênfis. À medida que se estabeleciam, moviam-se para o sul em direção ao Alto Egito, criando novas colônias de hebreus ou unindo-se a outras já existentes (Jr 44.1).

A conquista babilônica finalmente chegou e trouxe uma profunda des­truição, segundo as palavras de Jeremias, o profeta de Deus. Porém, nem todos os judeus no Egito pereceram na ocasião, pois pelo menos uma da­quelas colônias judaicas — a de Elefantina no Alto Egito — sobreviveu e, em tempos pós-exílicos, tornou-se não apenas o centro da vida política de Israel no Egito, como também desenvolveu um culto paralelo e rival ao de Jerusalém .52 Mesmo mais tarde, no quarto século, Alexandre encorajou a mudança de milhares de judeus da Palestina para sua nova cidade . Em poucas gerações aquela comunidade tornou-se talvez a maior e mais cria­tiva comunidade de judeus, conhecida por todo o mundo pela sua capaci­dade intelectual e notável estilo de vida.

52 Porten, Archíves from Elephantine

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A situação mundial durante o período de restauração

Antes de irmos muito longe em nossa história, é importante examinar o contexto histórico e cultural das comunidades do exílio, particularmen­te as da Babilônia, que retornaram para a terra da promessa e iniciaram a restauração predita por todos os profetas. As fontes bíblicas que tratam do tema são os livros de Esdras e Neemias, que são uma fonte rica de infor­mação do período desde o decreto de Ciro (538) até o governo de Neemias (ca. 430), mas mesmo tais informações precisam ser preenchidas por uma reconstrução cuidadosa da história da Pérsia.

Cambises II da Pérsia

Em 530, Ciro partiu para o rio Jaxartes, localizado na Ásia central, a fim de impedir as intenções de Massageta, que violava as fronteiras noroeste do reino da Pérsia. Mas a batalha foi a última participação de Ciro, que morreu após ficar seriamente ferido por três dias. Seu filho Cambises, que ficara a cargo dos negócios do reino, conduziu o corpo de seu pai de volta para Passárgada, e providenciou o sepultamento. Em seguida, assumiu o trono acamenida.

Cambises II (530-522) já vinha ocupando por muitos anos algumas po­sições importantes na administração de Ciro. E desde o início de 538 já havia sido apontado por seu pai Ciro como o substituto no trono.53 Na época em que assumiu o império, ele era governador do importante dis­trito que rodeava Sippar, no norte da Babilônia. E ainda possuía o título de "Rei da Babilônia" — um claro e inconfundível indício de toda a fama e prestígio que desfrutava na região. Ao assumir o império, consolidou imediatamente a boa imagem que usufruía naquela região. Para garantir que sua ascensão ao poder não fosse ameaçada por um outro candidato, Cambises casou-se com suas irmãs e mandou executar seu irmão Bardiya, um fato que escondeu do povo.

A primeira maior ação do novo rei foi a invasão do Egito, o único dos quatro principais reinos pré-persas (Média, Lidia, Babilônia, Egito) que ainda não havia sido conquistado.54 Juntamente com aliados da Fenícia, ele atacou Amasis II (570-526) e continuou vencendo Psamtik III (526-525) em Pelusium. Depois de executar Psamtik, Cambises marchou para o sul até alcançar a fronteira com a Etiópia, anexando imediatamente seus terri­

53 Olmstead, History, pp. 86-93,107-8.54 Ibid., pp. 88-92.

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5 1 8 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t a m e s t -

tórios mais próximos. Então organizou todo o Egito em uma satrapia cha­mada Mudraya, tendo Mênfis como capital. Estabeleceu ali um de seus companheiros, Ariandes, como o sátrapa desta nova jurisdição, e retornou imediatamente para a Pérsia.

Não demorou muito para Cambises descobrir que um usurpador — que reivindicava ser Bardiya, seu irmão assassinado — havia tomado o poder. O impostor provavelmente era Smerdis ou Gaumata, e já havia con­quistado muitos adeptos na Babilônia. Em 1 de Julho de 522, foi aclamado rei de todo o império. Quando Cambises viu que tudo estava perdido, cometeu suicídio.

Dario H istapes da Pérsia

O sucesso de Gaumata, ironicamente, deve-se ao fato de Cambises ter escondido do povo a morte de seu irmão Bardiya, não tendo como provar o fato. Bardiya talvez tenha ganhado muito prestígio e admiração por um partido contrário ao governo de Cambises, e provavelmente nem mesmo aceitaram sua ascensão ao trono da Pérsia. Mas nem todos foram engana­dos por Gaumata, pois também havia uma conspiração contra sua vida para restaurar no trono persa o legítimo sucessor de Cambises. O líder dessa conspiração, Dario Histapes, com seis outros colaboradores, assas­sinou Gaumata em 29 de setembro de 522, estabelecendo a si mesmo no poder.55

Mas o movimento liderado por Dario não convenceu a opinião públi­ca, que sensivelmente se opôs às suas atitudes. Embora fosse de sangue real, uma vez que descendia de Teispes por intermédio de Ariaramnes, tinha contra si a agravante de não pertencer à família direta de Ciro. A fim de impedir qualquer oposição futura, Dario preparou uma enorme inscri­ção em que revelou detalhadamente como Cambises havia assassinado Bardiya, seu irmão. Revelou ainda que Gaumata jamais poderia ser iden­tificado com Bardiya, pois era na realidade um impostor. Embora esta medida aliviasse a tensão criada em torno da administração de Dario, es­pecialmente por parte dos líderes do império persa, não foi forte o sufici­ente para eliminar as rebeliões que surgiam no império. Em meio a essa forte tensão, Babilônia tornava-se alvo constante de preocupação para Dario. De fato, as rebeliões surgiram naquela cidade, mas Dario não tinha poderio militar bastante forte para enfrentar as insurreições ali surgidas. Então por meio de medidas diplomáticas, Dario conseguiu restabelecer

55 Ibid., pp. 107-16.

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em 520 a autoridade persa no trono de Babilônia. Com este feito, os de­mais estados em rebelião logo afirmaram-lhe lealdade.

Com a paz e a estabilidade no governo, Dario deu início à imple­mentação de grandes reformas administrativas. De grande importância era o desenvolvimento contínuo de um sistema legal que já havia se tor­nado famoso pela inalterabilidade dos editos do rei. Tanto Daniel (6.8,12,15) quanto Ester (1.19) demonstraram estar cientes deste aspecto da jurispru­dência persa. Baseando-se, sem dúvida, nas antigas leis precedentes, como o código de Hamurabi, o sistema de leis de Dario era administrado com, no mínimo, uma preocupação teórica pela justiça.56

Outra realização foi a introdução de uma política fiscal completamente revisada.57 Dario padronizou a cunhagem de moedas e definiu as medi­das para pesos e medidas, facilitando sensivelmente todo o comércio. In­felizmente essas reformas foram acompanhadas de uma drástica inflação no império, o que ocasionou uma intervenção estatal no setor privado. Essas alterações repercutiram mal por todo o império, e rapidamente con­duziram Dario à ruína.

Uma terceira área de bastante atividade foram os projetos de constru­ção civil. Por volta de 521, Dario removeu sua capital para Susã, situada cerca de 482 quilômetros a noroeste da antiga capital, e lá construiu um belíssimo e suntuoso palácio .58 É a essa estrutura que Ester e Neemias se referem como a "cidadela de Susã" ("palácio de Susã" KJV). Mais tarde em seu reinado, Dario empreendeu a construção de uma nova cidade cha­mada Persépolis, onde ele intentava estabelecer permanentemente a capi­tal do império. Ele chegou mesmo a dar início ao projeto, mas foi seu filho e sucessor Xerxes quem deu continuidade à obra e completou-a totalmen­te. Susã provavelmente continuou sendo a capital política e administrati­va, ao passo que Persépolis tornou-se mais ou menos uma "casa de espe­táculos", para onde os reis da Pérsia levavam seus convidados a fim de impressioná-los com toda sua beleza.59

A única parte do império que ainda permanecia fora de todos esses pro­gramas em 520 era a satrapia de Mudraya, isto é, o Egito.60 Dario dirigiu-se

56 Ibid., pp. 119-34.57 Ibid., pp. 186-94.58 William Culican, The Medes and Persians (New York: Praeger, 1965), pp. 87-89.59 Ibid., pp. 89-90. Quanto a uma excelente pesquisa acerca da arte na Pérsia e sua arquite­

tura, ver em Denise Schmandt-Besserat, Ancient Persia: The Art o f an Empire (Austin: University of Texas, 1978).

60 Olmstead, History, pp. 141-44.

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para essa terra distante em 519, passando com milhares de homens pela Síria e Palestina. Essas terras banhadas pelo Mediterrâneo faziam parte da satrapia babilônica, mas, devido a distância tanto de Babilônia quanto de Susã, esta- vam menos suscetíveis à supervisão. Como resultado, os tumultos e rebeliões eram freqüentes no local, e somente quando os reis persas aplicaram uma intervenção direta, alguma medida de ordem pôde ser estabelecida.

Este foi o caso em Judá no ano 520. Os judeus começaram a reconstru­ção de Jerusalém e do templo, mas imediatamente encontraram oposição pelos samaritanos e Tattenai, o sátrapa da província. Dario foi informado pelos líderes judeus que o próprio Ciro havia autorizado os projetos de construção. Quando mandou investigar os anais do império e constatou que tais palavras eram verdadeiras, Dario ordenou que as hostilidades contra os judeus cessassem completamente. Sem dúvida seu itinerário pela Palestina foi mais para averiguar se suas determinações tinham realmente sido cumpridas.

Ao entrar no Egito em 519, Dario marchou livremente até a cidade de Mênfis. Esta cidade rapidamente submeteu-se em razão da simpatia de Dario pelo culto local, mas antes que pudesse consolidar seus objetivos no Egito, teve de voltar às pressas para Susã, a fim de combater as tentativas de usurpação do trono .61

Dario permaneceu em Susã nos anos seguintes, mas por fim reassumiu sua campanha de expansão territorial. Em cerca de 516, ele já havia feito campanhas em direção à índia, e então retornou à África para tratar com os líbios. Mas as tentativas de penetração pelo norte não foram bem suce­didas, pois ali ele encontrou forte resistência por parte dos Citas e foi for­çado a retirar-se. Ainda insatisfeito, voltou-se para a Europa. Sua primeira tentativa de dominar os estados do Egeu falhou quando os estados Jônicos, que já faziam parte do Império Persa, decidiram proclamar a independên­cia e passaram a ajudar seus irmãos de sangue que estavam sendo amea­çados. Mas a vitória final pertenceu aos persas, e culminou na incorpora­ção de todo o oeste da Ásia ao reino de Dario.62

Movido pelo ímpeto da vitória, Dario precipitou-se pelo mar Egeu, em 490, para conquistar a cidade de Atenas e outras cidades-estados que for­mavam a península da Grécia.63 A cidade de Eretria sofreu séria destrui­

61 G.B. Gray e M. Cary, "The Reign of Darius," em Cambridge Ancient History, 2a edição, editado por J.B. Bury et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1939), vol. 4, pp. 182-84, 212-14.

62 Ibid., pp. 214-28.63 Ibid., pp. 233-68.

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ção e seus habitantes foram levados em cativeiro. Por isso, os atenienses enfrentaram os persas na decisiva batalha de Maratona, onde os persas sofreram uma desastrosa e humilhante derrota, e foram forçados a retirar- se dali para a porção continental da Ásia. Convencido de que o fracasso devia-se à falta de contingente militar, Dario resolveu voltar mais uma vez para atacar os gregos, pois queria terminar o que havia começado. Mas a revolta que estourou no Egito impediu-o de concretizar a conquista e, antes que pudesse resolver seus problemas internos e reassumir uma campanha de guerra na Europa, Dario morreu, deixando seus planos nas mãos de seu filho Xerxes (486-465).

E m bora tiv e sse os m esm os d e fe ito s de ca rá te r com u n s aos governantes poderosos — um orgulho sem fim, muita ambição pessoal e supervalorização de habilidades pessoais — Dario era relativam ente perspicaz, culto e benigno. Ele projetou e iniciou a construção da m ag­nífica cidade de Persépolis, até hoje considerada uma das m aravilhas do mundo antigo. Também patrocinou a escavação do canal entre o rio Nilo e o mar Vermelho. Um dos projetos mais im portantes foi a criação de uma rede de estradas que interligou com pletam ente seu vasto im ­pério, além de um forte sistem a postal que beneficiou a com unicação entre as várias satrapias ali reunidas como nunca existira antes. E mais im portante de tudo, ele possibilitou o desenvolvim ento de um am bi­ente propício para o retorno dos judeus a Jerusalém. Debaixo de sua administração eles estavam livres de qualquer ameaça, senão por aque­les pequenos adversários ao redor.

O primeiro retorno

Ciro como um agente de Yahiveh

No século dezenove foi encontrado um cilindro cuja inscrição registrava o grande decreto de Ciro autorizando os cativos da Babilônia a retornarem para seus lugares de origem. A inscrição foi primariamente uma propagan­da criada para demonstrar que Ciro havia sido chamado por Marduque, deus da Babilônia, e que seu reinado era segundo a permissão de todos os deuses. Não se pode negar a habilidade política e psicológica do homem. De fato, sua política de permitir o retorno dos exilados para suas terras o ajudou a ganhar o coração dos habitantes de seu reino.64

64 Essa política também tinha seu lado negativo. Ver Amelie Kuhrt, "The Cyrus Cylinder and Achaemenid Imperial Policy/' JSOT 25 (1983): 83-97.

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Os historiadores bíblicos e os profetas reconheceram que em Ciro se cumpria o chamado de Yahweh, e não de Marduque. Yahweh foi quem deu a Ciro as condições para cumprir a missão que lhe estava determina­da. Isaías falou acerca dele como um "pastor" de Yahweh (44.28), o "ungi­do" que era sustentado pela mão direita de Deus, de sorte que tinha poder para submeter as nações (45.1). Seria ele o homem a quem o Senhor usaria para fazer seu povo voltar e reconstruir sua cidade e templo.

Não é possível dizer qual foi a participação de Daniel neste processo, mas não ajuda alguém achar que tenha sido um papel de grande importância. De qualquer maneira, os exilados judeus entenderam que o decreto de Ciro pro­vinha do próprio Deus. Tanto o cronista (2 Cr 36.22,23) como Esdras (1.1-4) interpretaram o decreto como um cumprimento da palavra do profeta Jere­mias e reafirmaram que fora Yahweh, e não Marduque, quem inspirou Ciro a tomar esta nobre medida. Mas não se pode ler no texto que Ciro tenha se tornado um adorador de Yahweh. Ele não era mais adorador de Yahweh do que Nabucodonosor havia sido, quando exaltou Yahweh perante Daniel. Ambos eram sincretistas que buscavam razões políticas para aceitarem seus novos deuses em seus respectivos panteões. Não é possível negar, entretanto, que ambos estavam sob o controle do Deus soberano dos céus e da terra, que os usou, soubessem ou não, para cumprir os seus santos propósitos.65

Sesbassar, o líder do retorno

A principal fonte de informação acerca do primeiro retorno do exílio é Esdras, o sacerdote zadoquita (7.1-5) e escriba profissional, além de mes­tre da Torá. Embora ele mesmo não tivesse retornado a Jerusalém até 458, oitenta anos após o decreto, obviamente ele possuía excelentes fontes, in­cluindo os memorandos escritos e a palavra transmitida oralmente, e pro­vê detalhes notáveis.

De acordo com Esdras, Ciro não apenas deu permissão para os judeus retornarem para sua terra, como também estipulou que fossem assistidos em tudo pelos povos que os cercavam (1.3,4). Além disso, os tesouros rou­bados por Nabucodonosor do templo de Jerusalém e postos nos santuári­os pagãos tiveram de ser devolvidos a Sesbassar, o príncipe de Judá. E possível que Jeoiaquim tenha falecido nesses dias. Depois de ser designa­do governador por Ciro sobre o recém-formado estado (5.14), Sesbassar

65 Eugene H. Merrill, "Daniel as a Contribution to Kingdom Theology," em Essays in Honor o f J. Dwight Pentecost, editado por Stanley D. Toussaint e Charles H. Dyer (Chicago: Moody, 1986), pp. 211-25.

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conduziu os exilados de volta a Jerusalém (1.11), onde iniciou os funda­mentos do novo templo (5.16). Visto que ele não mais é mencionado no relato subseqüente, a identidade de Sesbassar tornou-se matéria de inten­so debate. Muitos estudiosos afirmam com convicção que ele é Zorobabel66 — a figura de maior expressão política das primeiras décadas do Judá restaurado. Porém, tal identificação torna-se quase impossível de defen­der, uma vez que Zorobabel em momento algum é chamado de príncipe e, além disso, não é filho de Jeoiaquim, mas de Sealtiel (Ed 3.8). E muito mais provável que Sesbassar seja o mesmo que Shenazzar, um dos filhos de Jeoiaquim mencionado em 1 Crônicas 3.18.67 No versículo seguinte, Zorobabel é listado como filho de Pedaías, um outro filho de Jeoiaquim, da mesma forma que Sealtiel. Ora, se ele era filho de Sealtiel ou de Pedaías, Zorobabel seria sobrinho de Shenazzar (i.e., Sesbassar). E provável que Sesbassar tivesse morrido logo depois de retornar para Jerusalém, e que Zorobabel o tenha sucedido como líder do povo.

O número dos que voltaram

O número total dos que voltaram foi 42.360, acrescidos de 7.337 es­cravos e 200 cantores (Ed 2.64,65). Parece que estes eram basicamente judeus, embora não seja descartada a possibilidade de israelitas estarem incluídos nesse grupo .68 Neemias observa que em seus dias (7.4,5), ou seja, quase cem anos depois, Jerusalém ainda era um local pobremente habitado. Dessa forma, Neemias buscou as listas genealógicas para de­terminar ao certo se alguns dos que primeiro retornaram, em virtude de sua linhagem, deveriam ter residido em Jerusalém ou em alguma locali­dade vizinha. Isto corrobora a impressão de que apenas uma pequena porcentagem de judeus que estava de volta era de fato natural de Jerusa­lém. Entretanto, quando alguém lembra o sofrimento da cidade nas mãos dos babilônicos em 605,597 e 586, e que apenas cerca de vinte e cinco mil

66 Por exemplo, Carl F. Keil, The Books o f Ezra, Nehemíah, and Esther (Grand Rapids: Eerdmans, 1950 reedição), p. 27.

67 Bright, Histom, p. 362; Hayim Tadmor, "The Babylonian Exile and the Restoration/' em A History o f the jewísh People, editado por Haim H. Ben-Sasson (Cambridge: Harvard University Press, 1976), p. 168.

68 Os povos cativos em Babilônia não deixaram de manter sua homogeneidade e identida­de por todo esse período, de sorte que não teriam tido qualquer problema para se reuni­rem em um grupo separado a fim de retornar para suas terras. Ver I. Eph'al, "The Western Minorities in Babylonia in the 6th-5th Centuries B.C.: Maintenance and Cohesion," Or 47 (1978): 74-90, especialmente na p. 53.

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foram levados para o exílio, não é difícil acreditar que os naturais de Jerusalém estivessem tão diminuídos em número. Além disso, os des­cendentes dos judeus que nasceram e foram criados na cultura e estilo de vida babilônicos estavam indubitavelmente inclinados a permanecer na Babilônia, em vez de retornar para o que certamente seria um estilo de vida radicalmente inferior.

Problemas decorrentes do retorno

Deve ter se passado bastante tempo para o retorno ser organizado e a jornada em si ser completada. Quando Esdras refere-se ao sétimo mês (3.1), quer dizer o sétimo mês do primeiro ano daqueles que haviam retornado para reconstruir a cidade e o templo. Provavelmente esta data era 537, uma vez que o decreto de Ciro foi emitido em 538.69 Por aquele tempo o povo começou a se estabelecer. No sétimo mês, sob a inspirada liderança de Josué, o sacerdote, e Zorobabel, o povo construiu um altar sobre as ruínas do antigo que estava no monte do templo e celebrou a primeira festa dos Tabernáculos, pois não a comemoravam desde a de­portação para a Babilônia. Então, como Salomão fizera séculos antes, o povo mandou que trouxessem materiais de Tiro e Sido para iniciar a construção da casa do Senhor. Os alicerces foram lançados no segundo mês do ano seguinte, em 536, e todo o trabalho estava sendo supervisio­nado pelos sacerdotes. Uma vez concluída esta fase, o povo reuniu-se no local e regozijou-se na presença de Deus, cantando o mesmo hino que Davi havia composto na ocasião em que a arca da aliança fora deposita­da no tabernáculo construído no monte Sião (1 Cr 16.34). Mas a alegria não era unânime, pois o prédio edificado em nada poderia ser compara­do ao construído pelo rei Salomão. Os sentimentos misturados dos anti­gos que se lembravam do primeiro templo (Ed 3.12,13) foram um dos principais problemas enfrentados por Ageu (Ag 2.3).

O lamento dos anciãos deve ter desmoralizado Zorobabel e seus com­panheiros, mas certamente não era o único problema que enfrentavam. Os samaritanos, aquela mistura de israelitas não deportados com povos do norte transplantados pelos reis assírios deu origem a um culto sincretista que possuía aparência de Jeovismo, mas a essência era pagã. Assim que ouviram sobre o retorno dos judeus e sobre a reconstrução da cidade e do templo, quiseram unir-se imediatamente a eles. Reconhecendo a impure­

69 F. Charles Fensham, The Books o f Ezra and Nehemiah, New International Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), pp. 58-59.

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za do sistema religioso samaritano, e talvez motivados por um senso de exclusividade, os líderes judeus declinaram da proposta. Assim despreza­dos, os samaritanos tentaram impedir a obra do templo, uma hostilidade que continuou por dezesseis anos (536-520).

Uma mudança na situação dos judeus surgiu com a ascensão de Dario Hystapes ao trono da Pérsia em 522. Após dois anos, período necessário para que sua autoridade fosse estabelecida, Dario pôde (em cerca de 520) tratar de outras questões em locais mais distantes de seu império, o que incluía o forte antagonismo entre os judeus e samaritanos. Os conflitos se intensificaram depois que Ageu e Zacarias, no segundo ano de Dario, in­centivaram fervorosam ente a retom ada das obras do tem plo. Os samaritanos apelaram para Tatenai, o sátrapa de toda a região oeste do Eufrates. Ele e seus subordinados, depois que investigaram a situação, desafiaram a autoridade com que os judeus reivindicavam o direito de reconstrução. Insatisfeito com a resposta dos judeus, Tatenai enviou uma carta ao imperador Dario questionando a legalidade das construções fei­tas pelos judeus (Ed 5).

Visto que os judeus apelavam para o decreto promulgado pelo impera­dor Ciro, Dario passou a investigar nos anais de Babilônia se de fato tal documento existia. Uma cópia foi descoberta em Ecbátana, a antiga capi­tal da Média onde Ciro residia na época do decreto.70 Completamente con­vencido da causa legítima dos judeus, Dario emitiu um parecer em favor daquele estado: ordenou que Tatenai e seus homens não apenas cessas­sem qualquer tipo de interdição no novo estado judaico, mas também que financiassem toda a reconstrução e serviços religiosos associados ao novo templo (Ed 6.6-12). Qualquer falha no cumprimento destas determinações ocasionaria duras retaliações. Uma vez que Dario, alguns meses depois, decidiu empreender campanha contra o Egito, é bem provável que ele tenha parado em Jerusalém durante o caminho para constatar se suas or­dens haviam sido cumpridas.

A influência benéfica dos profetas

Ageu

Conforme já se observou, Ageu e Zacarias tiveram influência direta no encorajamento do povo, incentivando-os a prosseguir as obras de recons­trução do templo. Por dezesseis longos anos pouco tinha sido feito, exceto

70 Olmstead, History, p. 57.

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a construção dos alicerces. Por outro lado, o povo construíra casas para si mesmo e começava a desenvolver um próspero estilo de vida. Porém, a casa de Yahweh estava em ruínas. E o povo acomodara-se diante da opo­sição dos samaritanos.

O profeta Ageu, acerca de quem nada se conhece, falou primeiro. Pro­vavelmente conhecendo que Dario havia se estabelecido em Susã e que, não muito depois, apoiaria a causa dos judeus, Ageu exortou o povo para que deixasse de lado seus próprios interesses e iniciasse as obras do tem­plo imediatamente (1.4-9). Em três semanas, Zorobabel e Josué reuniram uma força de trabalho com novo entusiasmo. Conforme a construção to­mava forma, via-se que jamais poderia se comparar com a grandeza do templo de Salomão. Mas isso não era o mais importante, Ageu dizia ao povo. O que realmente importava era que um dia Yahweh encheria a hu­milde estrutura com sua glória (2.6-9). Então nesse dia o templo verdadei­ramente cumpriria sua real função.

Zacarias

Dois meses após o primeiro pronunciamento de Ageu, levantou-se po­derosamente o profeta Zacarias, cuja mensagem clamava por arrependi­mento. A obra no templo prosseguia, mas a mera construção não era sufi­ciente para a necessidade básica do povo, que era restaurar o relaciona­mento com seu Deus e renovar mais uma vez o pacto com Ele (1.2-6). Três meses depois, ainda no segundo ano de Dario, Zacarias teve sua primeira série de visões. Uma de suas mensagens afirmava que o templo seria con­cluído. Também profetizou a vitória apocalíptica que Judá teria sobre to­das as nações inimigas e a união de todos os povos arrependidos com Yahweh, mediante o testemunho de seu povo. Zorobabel e Josué repre­sentavam a autoridade civil e religiosa, e seriam grandemente exaltados na presença do Messias no Dia escatológico (caps. 3—4). Então, em um ato notável, Zorobabel aproximou-se de Josué e, vendo nele um protótipo do Messias, coroou-o com o diadema real (6.9-15). Fazendo assim Zacarias uniu os privilégios reais e cúlticos em uma só pessoa, da mesma forma que Davi. Josué, de alguma maneira, simbolizava a linhagem davídica rediviva.

O templo se completou em 515, no sexto ano de Dario, vinte anos após os fundamentos serem lançados (Ed 6.15). Esta data marca o térmi­no dos "setenta anos" profetizados por Jeremias no sentido religioso, pois enquanto Yahweh não estivesse habitando em seu templo em Jeru­salém, o povo nunca teria um lar de verdade. Embora a Shekinah, um

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detalhe reservado para o fim dos tempos, não se manifestasse no encer­ramento das obras de reconstrução, ainda assim o povo regozijou-se na presença de Deus por toda sua bondade, e dedicou-lhe seu templo com toda alegria e júbilo em seus corações, trazendo generosas ofertas para a casa de Deus. Tanto judeus quanto prosélitos comemoraram a próxima Páscoa com um entendimento especial, pois assim como Deus trouxera seu povo para fora do Egito novecentos anos antes, ordenando-lhes na ocasião a celebração da Páscoa, assim fazia agora aquele povo resgatado do jugo e da escravidão em Babilônia, e que poderosam ente havia retornado para sua terra prometida.

Com o término da festividade segue-se um silêncio na história de Judá. Os registros retornam pouco depois de Xerxes assumir o trono da Pérsia (486-465). A bela judia Ester, depois de conquistar o coração do rei, muda­ria todo o curso dos judeus no exílio.

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R E S T A U R A Ç Ã O E N O V A E S P E R A N Ç A

A influência persaXerxes A rtaxerxes I Ester

Outros retornos posteriores: Esdras e Neem iasO problema da prioridade Esdras: sacerdote e escriba Neem ias, o governador

M alaquias, o profeta

A história do Israel no Antigo Testamento chegou ao fim cem anos de­pois da construção do segundo templo. Pouca coisa se sabe nas Escrituras acerca dos anos 515 a 474, de forma que o conteúdo desse capítulo deve ficar restrito quase exclusivamente à metade do quinto século.1 As fontes mais completas que discorrem acerca desses anos são os livros de Esdras e Neemias, embora as contribuições de Ester e Malaquias também sejam muito válidas para se obter um quadro mais preciso dos problemas en­frentados pela comunidade judaica, a que permaneceu no exílio e a que retornou para Judá.

A influência persa

A Pérsia continuou sendo a grande potência do mundo nos anos finais da era bíblica de Judá e, de fato, continuaria ainda por muitos anos até o aparecimento de Alexandre, o Grande, em 333 a.C. e sua conquista de Persépolis, em 330. E importante então fazer uma breve revisão sobre a história persa, de forma que a história bíblica possa ser ainda melhor com­preendida.

1 Uma excelente fonte bibliográfica acerca deste período pode ser encontrada em Menachem Mor e Uriel Rappaport, "A Survey of 25 Years (1960-1985) of Israeli Scholarship on Jewish History in the Second Temple Period (539 B.C.E. - 135 C.E.)," BTB 16 (1986): 56-58. As dificuldades de reconstruir a história de um período sobre o qual há poucos textos bíblicos são bem descritos por Peter R. Ackroyd, "Faith and Its Reformation in the Post-exilic Period: Sources," TD 27 (1979): 323-34.

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Xerxes

Dario Histapes, o rei por meio do qual o templo dos judeus foi nova­mente construído, morreu em 486, sendo sucedido por seu filho Xerxes — conhecido no Antigo Testamento por Assuero.2 Já por alguns anos ele ti­nha sido apontado por seu pai como o herdeiro, de modo que não houve tensão ou animosidade na substituição da liderança do império. Por sua excelente administração em Babilônia, Xerxes foi admiravelmente prepa­rado para assumir a responsabilidade maior no Império Persa.

Os anos iniciais da administração de Xerxes foram dedicados ao térmi­no de seu palácio real em Susã, e ao embelezamento descomunal da cida­de de Persépolis. Este último projeto foi o que mais ocupou-o durante os vinte anos que esteve à frente do império (486-465). Sua maior preocupa­ção, no entanto, era com o Egito, que se opusera contra a sua autoridade logo que assumiu o trono. Contudo, a força de Xerxes era verdadeiramen­te grande, de maneira que conseguiu resolver o problema egípcio em me­nos de dois anos. Porém, reprimindo a religião egípcia, Xerxes alienou os sacerdotes. Assim não poderia esperar uma subserviência egípcia.

Xerxes seguiu os mesmos passos de seu pai. Nutriu um interesse incomum pelo oeste e pela conquista da Grécia. Após reorganizar seus exércitos e navios, partiu para o oeste em 481. Os estados mal divididos da Grécia não foram capazes de formar uma efetiva coalizão, sendo gra­vemente feridos pelos persas. Mesmos os bravos espartanos foram derro­tados na batalha de Termópila, uma luta sangrenta que lhes custou a vida do último homem. Mas em Salamina o quadro mudou. Xerxes encurralou milhares de guerreiros gregos na cidade e subestimou sua coragem quase fanática. Como resultado, perdeu mais de duzentos navios. Foi necessário buscar uma explicação para o grande fracasso, e os persas acusaram de covardes os mercenários fenícios e egípcios. Ofendidos, os mercenários decidiram retornar para suas terras, abandonando os exércitos persas.

Xerxes, então, decidiu voltar para a Pérsia, e deixou no comando das tropas persas seu general Mardonius, que assumiu a guerra na Grécia. Em razão de vários erros de estratégia, Mardonius foi perdendo batalha após batalha, até que por fim perdeu a vida na batalha de Platea. O golpe final nas aspirações de Xerxes à conquistar a Grécia foi administrado em Micale,

2 Quanto ao curso da história persa sob Xerxes, ver A.T. Olmstead, History o f the Persian Empíre (Chicago: University of Chicago Press, 1948), pp. 230-88. Robert Dick Wilson, A Scientifíc Investigation o f the Old Testament (Chicago: Moody, 1959), p. 69, n. 25. Estas obras têm demonstrado definitivamente que "Assuero" é a tradução do grego "Xerxes".

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R e s t a u r a ç ã o e N ova E sp e r a n ç a 5 3 1

em 479. Os gregos já haviam destruído dois dos exércitos persas e força­ram o terceiro a recuar para a Ásia. Enquanto os persas permaneciam des­norteados, os gregos percebiam que uma frente unida poderia prevalecer. Em 478, eles formaram a Liga Deliana, cujo principal estado era Atenas. As implicações deste ato para a criação de uma nação grega são óbvias.

Xerxes tornava-se completamente desacreditado. Iniciou deste modo uma vida promíscua, relacionando-se com as mulheres mais belas da cor­te, inclusive as esposas de alguns oficiais, semeando as sementes da dis- sensão irreparável.3 Terminou, por fim, sendo assassinado por um oficial do palácio ou marido ciumento.

A rtaxerxes I

O governo deveria passar para Dario, filho mais velho de Xerxes, mas seu irmão Artaxerxes assassinou-o e assumiu o trono da Pérsia. A conspi­ração foi ajudada por Artabanus, o capitão da guarda.4 Artaxerxes tentou restabelecer a confiança do povo na administração central do império me­diante a reorganização do sistema de satrapias e pela redução das taxas de impostos. Mas a medida não obteve o efeito esperado, e muitas terras par­ticulares passaram a ser incorporadas pelo governo porque não consegui­am pagar suas obrigações fiscais. O resultado foi a insatisfação e até mes­mo revoltas, particularmente nas mais remotas províncias. Por volta de 460, os egípcios se recusaram a pagar os tributos aos persas, solicitando apoio à Liga Deliana, que decidiu apoiá-los. Mas os persas conseguiram subornar os espartanos para que declarassem guerra contra Atenas. Este fato não apenas neutralizou o apoio da Liga Deliana aos egípcios, como também prejudicou os atenienses, colocando ambos em perigo.

Atenas conseguiu sobreviver e formou um império próprio,5 provo­cando a reação dos persas. De 450 até o início das Guerras do Peloponeso (431), o controle territorial de ambos os lados do Egeu passava de um para o outro, sem nenhuma vantagem permanente para os persas ou para os atenienses. Péricles, orador e estadista, começava a conduzir os atenienses para uma posição de liderança entre todos os estados gregos por volta de 458. Essa preeminência causou medo e ressentimento por parte dos ou­tros estados. As guerras civis na região livraram Artaxerxes da preocupa­

3 Maiores informações acerca desses anos podem ser colhidas na obra de Heródoto, History 9.109-13.

4 Olmstead, History, pp. 289-90.5 J.B. Bury, A History o f Greece (London: Macmillan, 1963), pp. 346-425.

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ção com as províncias ocidentais, permitindo-o atentar para os problemas internos, incluindo os conflitos em Judá com respeito à construção dos muros de Jerusalém. Sua morte em 424 coincidiu aproximadamente com o final do período do Antigo Testamento. Assim se torna o ponto apropri­ado para o fim da revisão da história persa.

Ester

A única testemunha bíblica do reinado de Xerxes é o livro de Ester, cuja historicidade tem sido negada por praticamente todos os estudiosos da escola crítica.6 Tal rejeição não é porque o livro contradiz informações co­nhecidas do período persa, grego, ou outra fonte extrabíblica7 — e certa­mente não contradiz; mas provém do fato de que essas fontes não explici­tamente corroboram os detalhes da Festa de Purim ou a existência de Es­ter e seu primo Mardoqueu .8 Mas o silêncio jamais deve ser considerado um argumento infalível em favor de alguma coisa, especialmente quando se trata de historiografia. A menos que haja evidências realmente provem o contrário, resta admitir que o livro de Ester é um documento perfeita­mente digno de confiança, e que procura descrever fielmente todos os acon­tecimentos ocorridos nos dias do narrador da história.

O livro de Ester inicia no terceiro ano de Xerxes (ca. 483). Nesse mo­mento, o rei encontra-se em Susã, presidindo um majestoso banquete ofe­recido em honra de seus subordinados espalhados por todo o império: desde a índia até a Etiópia, conforme o próprio narrador explicita. Duran­

6 Para uma típica visão, ver J. Alberto Soggin, Introductíon to the Old Testament, traduzido por John Bowden (Philadelphia: Westminster, 1980), p. 404, que resume o seguinte: "O que nós temos não são detalhes de acontecimentos que, na verdade, ocorreram, mas uma novela histórica". Quanto a uma forte defesa da historicidade do livro, ver Gleason L. Archer Jr., A Survey ofO ld Testament Introductíon (Chicago: Moody, 1964), pp. 404-6; e J. Stafford Wright, "The Historicity of the Book of Esther," em New Perspectives on the Old Testament, editado por J. Barton Payne (Waco: Word, 1970), pp. 37-47.

' Conforme Robert Gordis faz menção, "Qualquer que seja a data, o autor de Ester mos­tra-se intimamente conhecedor das leis da Pérsia, bem como de seus costumes e lingua­gens durante o período acamenida." ("Studies in the Esther Narrative," JBL 95 [1976]: 44). Para uma visão semelhante, ver A. R. Millard, "The Persian Names in Esther and the Reliability of the Hebrew Text," JBL 96 (1977): 481-88.

s Porém, um dos textos persas não datados, menciona um certo Marduka (o equivalente babilônico do nome hebreu Mardoqueu), que foi um dos altos oficiais durante Dario Histapes ou Xerxes. Carey A. Moore sugere que "Marduka pode ser o Mardoqueu da Bíblia" ("Archaeology and the Book of Esther," BA 38 [1975]: 74).

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te seis meses Xerxes mostrou o esplendor de sua corte. Agora coroava sua estratégia com um banquete de sete dias.9 Depois de uma semana de festa e vinho, o rei ordenou que a rainha Vasti fosse trazida até os convivas, a fim de que sua beleza lhes fosse exibida (Et 1.10-12). Quando Vasti se recu­sou a apresentar-se, Xerxes a depôs da posição e passou a buscar outra que pudesse assumir o lugar da rainha (Et 2.1-4).10

Assim o narrador introduz Ester, a moça judia que m orava em Susã com seu prim o M ardoqueu. A presença deles ali sugere a larga exten­são da diáspora judaica um século depois da queda de Jerusalém e, como já se enfatizou, o fato de a m aioria dos judeus perm anecerem na terra do exílio m esm o após a autorização do retorno para Jerusa­lém. A influência da cultura babilônica é vista nos nom es dos prota­gonistas da h istória .11 "M ardoqueu" é a transliteração para o hebrai­co do nom e do deus babilônico M ardu qu e. Por que um judeu piedoso carregaria este nom e não é fácil de responder.12 O nome da prima é sem elhantem ente pagão em sua origem. "E ster" é uma form a de Istar, a deusa babilônica do amor e da guerra. Ela tam bém tinha um nome hebreu, H adassa, pelo qual provavelm ente era conhecida na com uni­dade judaica da cidade.

A proeminência de Mardoqueu na corte persa atesta que os judeus po­deriam assumir altos cargos no governo e na sociedade.13 Não se deve apoiar neste fato, entretanto, pois Mardoqueu orientou Ester a esconder sua identidade judaica, sendo bem provável que ele tenha feito o mesmo. Talvez isto explique por que ambos adotaram nomes pagãos para si.

Depois do tempo requerido para a preparação das moças, Ester foi de­clarada rainha de Xerxes em seu sétimo ano (479). Por esse tempo, Xerxes já era senhor tanto do Egito quanto da Babilônia. Mas nem todas as suas campanhas militares foram bem-sucedidas, pois a guerra contra os gregos

9 Há, portanto, uma separação entre os seis meses de celebração e a semana do banquete. Carey A. Moore sugere que essa celebração tinha a ver com a vitória sobre o Egito e com uma demonstração de confiança em preparação para suas campanhas gregas (Esther, Anchor Bible [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1971], p. 12; ver também Wright, "Historicity," em Neiv Perspectives, p. 37).

10 Wright, "Historicitv," em New Perspectives, pp. 40-43, apresenta alguns argumentos para demonstrar que a Vasti do livro de Ester não é outra senão a Amestris dos textos clássicos.

11 Moore, Esther,pp. 19-20.12 Para mais informações, ver Michael D. Coogan, "Life in the Diaspora: Jews at Nippur in

the Fifth Century B.C.," BA 37 (1974): 10-11.13 Ibid., p. 10; Bezalel Porten, Archivesfrom Elephantine: The Life ofan Ancient Jewish Military

Colony (Berkeley: University of Califórnia Press, 1968), pp. 279-80.

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revelou uma grande derrota. Em 479, Xerxes retornou do oeste e deixou no comando de suas tropas Mardonius, que foi finalmente derrotado na batalha de Platea. Parece claro que Ester se tornou rainha pouco tempo depois que Xerxes se retirou da Grécia.

As derrotas de Xerxes podem ter suscitado uma conspiração contra si, um plano descoberto por M ardoqueu, o qual seria executado por dois oficiais do próprio palácio (Et 2.19-23). A atitude de M ardoqueu foi registrada nos anais da Pérsia e teria im portância vital para que mais tarde ele pudesse ganhar o favor do rei. A necessidade de tal fa­vor surgiu quando Xerxes prom oveu Hamã a prim eiro-m inistro, e este ordenou que todos os oficiais se ajoelhassem em sua presença, mas M ardoqueu recusou-se a fazê-lo. Quando lhe perguntaram sobre o as­sunto, Mardoqueu afirmou que o comportamento era contrário aos seus princípios como judeu. Enfurecido, Hamã decidiu eliminar não apenas Mardoqueu, mas também toda a comunidade judaica de Susã e em todo restante do império. Na ocasião, Xerxes já havia desistido de atacar os gregos, e buscava culpar alguém pelo seu fracasso. Aproveitando-se do episódio, Hamã sugeriu ao rei que os culpados poderiam ser os ju ­deus; a idéia não pareceu mal aos olhos de Xerxes. Assim o decreto para a aniquilação dos judeus foi prom ulgado, e seria executado no décimo segundo ano de Xerxes, em 474.

Durante esse intervalo, numa noite em seu palácio, o rei gastou parte de seu tempo lendo os arquivos da Pérsia que registravam os grandes feitos do reino. Então descobriu que o judeu Mardoqueu havia denuncia­do a conspiração contra a vida do rei (Et 6.1-3). Percebeu ainda que nada havia sido feito para recompensar o ato. Então decidiu honrar Mardoqueu, fazendo-o um de seus oficiais superiores. Também declarou à rainha que fizesse qualquer pedido. Corajosamente, Ester revelou sua identidade ju­daica e relatou ao rei tudo o que Hamã planejava contra Mardoqueu e o seu povo. Após tomar ciência de tudo, o rei ordenou a execução imediata de Hamã e emitiu um outro decreto concedendo direitos de defesa para os judeus de todo o império. Quando os oficiais de todas as províncias en­tenderam que o próprio rei não era favorável à atitude de Hamã, suprimi­ram toda campanha anti-semita. Por mais uma vez, o Deus de Israel es­tendera seu poderoso braço em favor de seu povo.

Para comemorar esta poderosa libertação, o povo instituiu a Festa do Purim, uma cerimônia que marcava o final do lamento e o início do júbilo (Et 9.26-28). Juntamente com as demais festividades mosaicas, esta festa também passaria a constar no calendário anual dos judeus, servindo como testemunho da fidelidade do Senhor.

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Outros retornos posteriores: Esdras e Neemias

O problem a da prioridade

Passados dezesseis anos da instituição da Festa do Purim em Susã, Esdras, o sacerdote e escriba, empreendeu sua viagem de Babilônia para Jerusalém, liderando também um contingente de judeus que decidiram retornar para a terra santa. Ele especificamente data sua viagem no sétimo ano do rei Artaxerxes, ou seja, em 458 (Ed 7.8). O seu retorno contou não apenas com a permissão, mas também com um decreto do rei — o texto que Esdras deixou registrado — que dizia que toda prata e ouro que Esdras recebera do rei, de origem babilônica, poderiam ser usados no templo de Yahweh, na compra de animais para oferecer os sacrifícios prescritos na Lei, e que, para este fim, muitos judeus poderiam ser levados para se res­ponsabilizarem pela compra dos animais. Caso as despesas fossem mais altas que o previsto, os cofres da Pérsia estariam abertos para o comple­mento. Por fim, Esdras também recebeu autonomia para estabelecer ofici­ais do governo por todas as satrapias estabelecidas além do Eufrates. Es­ses seriam homens entendidos nos assuntos administrativos e que preser­variam a Torá.

Um problema que precisa ser tratado aqui é a identidade do Artaxerxes que promulgou o decreto. A data do retorno de Esdras e a seqüência cro­nológica de Esdras e Neemias dependem da resposta a esse problema. Os eruditos tradicionais assumem que foi sob a administração de ArtaxerxesI (464-424) que Esdras fez sua viagem para Jerusalém, e que Neemias foi beneficiado por este mesmo rei treze anos depois.14 As caravanas de Esdras partiram quando Artaxerxes estava em seu sétimo ano (458), e Neemias partiu em seu vigésimo ano (445).

Uma visão alternativa propõe que quem retornou de fato para Jerusa­lém em 445, sob os auspícios de Artaxerxes I, foi Neemias, e Esdras não viajou para a Palestina senão no sétimo ano de Artaxerxes II, que reinou de 404 a 358.15 Este ponto de vista tem sido aceito por muitos nos meios acadêmicos de ensino bíblico. O retorno de Esdras teria sido em 398, com uma vantagem cronológica de Neemias sobre Esdras de mais de quarenta

14 Uma discussão detalhada do problema pode ser vista em John Bright, A History o f Israel, 3a edição (Philadelphia: Westminster, 1981), pp. 391-402.

15 Otto Eissfeldt, The Old Testament: An Introduction, traduzido por Peter R. Ackroyd (New York: Harper and Row, 1965), p. 554; Norman H. Snaith, "The Date of Ezra's Arrival in Jerusalem," ZAW 63 (1951): 62-63.

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e cinco anos. Por outro lado, a posição de John Bright é de que Esdras chegou em 428, já que, segundo ele, o "sétimo ano" em Esdras 7.7,8 é um erro, pois deveria constar "trigésimo sétimo ano", uma opinião defendida sem muito fundamento.16

Há quatro grandes argumentos que vão de encontro ao ponto de vista tradicional:

1. N eem ias voltou para Jerusalém para reedíficar as m uralhas; em bora pareça que quando Esdras retornou, as m uralhas estavam de pé.17 Porém, as palavras de Esdras — "... Deus, para restaurar as suas ruínas e para que nos desse um muro de segurança em Judá e em Jerusalém" (Ed 9.9b) — dificilmente podem ser entendidas literalmente, uma vez que não havia muros ao re­dor de Judá. Além disso, Esdras emprega a palavra gader para "muralha", ao passo que a palavra comum para descrever as muralhas de Jerusalém é hôm â.K Contudo, há razão para se acreditar que havia algum tipo de mu­ralha construída pouco antes da chegada de Neemias, já que ele está sur­preso pelo fato de estarem destruídas (Ne 1.3,4).19 Por que ele ficaria sur­preso ao descobrir, 140 anos depois do evento, que Nabucodonosor der­rubara as muralhas da cidade? De fato, é inconcebível que Neemias des­conhecesse o acontecimento. A muralha que ele menciona devia ser uma referida em seus dias.

2. Parece que Esdras e N eem ias não faz iam idéia da existência um do outro, e não há evidências de que foram contemporâneos. As três passagens em que eles aparecem juntos — N eem ias 8.9; 12.26,36 — são sim plesm ente glosas posterio­res.20 A última parte do argumento não possui qualquer base bíblica, e é um clássico exemplo de se tomar uma questão como provada. A primeira parte, então, perde completamente a sua força, uma vez que Neemias men­ciona Esdras. O fato de Esdras não ter mencionado Neemias pode ser ex­

16 Bright, History, p. 400.17 Ibid., p. 393.18 F. Charles Fensham, The Books o f Ezra and Nehemiah, New International Commentary

(Grand Rapids: Eerdmans, 1982), pp. 130-31; I.H. Eybers, "Chronological Problems in Ezra-Nehemiah," Die Ou-Testamentiese Werkgemeenskap in Suid-Africa 19 (1979): 12.

19 Peter R. Ackroyd, Israel Under Babylon and Persia (London: Oxford University Press, 1970), pp. 174-75. Esdras 5.3 pode estar indicando que Zorobabel dera início à reconstrução da muralha. O significado do aramaico ‘ussarna é, por outro lado, pouco claro, embora a Vulgata e a Síríaca traduzam-na como "muralha". Ver Carl F. Keil, The Books o f Ezra, Nehemiah, and Esther (Grand Rapids: Eerdmans, 1950 reedição), p. 27; Snaith, "Date of Ezra's Arrival," ZAW 63 (1951): 58-59; Eybers, "Chronological Problems," Die Ou- Testamentiese Werkgemeenskap in Suid-Africa 19 (1979): 10,12.

20 Eissfeldt, Old Testament, p. 552.

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plicado pelo fato de ele ter iniciado seu trabalho cerca de treze anos antes de Neemias chegar à Palestina. Além disso, era comum contemporâneos não mencionarem um o outro. Isto pode ser ilustrado por Ageu e Zacarias, Isaías e Miquéias, e outros.

Tentando respeitar os textos em Neemias que se referem a Esdras, Bright admite que ambos foram contemporâneos, mas mantém que Neemias sur­giu primeiro. Ele também propõe uma reorganização cronológica do ma­terial histórico. Na interpretação tradicional, Esdras retornou para Jerusa­lém em 458 (Ed 7— 8). Quando ele foi informado de que muitos de seu povo haviam se casado com mulheres de outras culturas, raça e religião, conduziu o povo a uma confissão pública de pecados (Ed 9— 10). Em 445, depois de Neemias voltar e reconstruir as muralhas de Jerusalém, Esdras leu a lei para os israelitas (Ne 8), que se arrependeram de seus pecados e se comprometeram a guardar e cumprir a Lei (Ne 9— 10). Bright afirma que, uma vez que Esdras foi comissionado por Artaxerxes para ensinar a Lei (Ed 7.25), a leitura desta deve ter ocorrido logo após sua chegada. Além disso, "a sensibilidade do povo quando confrontado pelo sacerdote por causa dos casamentos mistos (Ed 10.1-4) e sua prontidão em conformar-se com a Lei (v.3) sugere que a leitura pública já havia sido feita".21 Bright então sugere que, logo que chegou à cidade em 428 (Ed 7— 8; Ne 8), Esdras procedeu à leitura da Lei, e o povo confessou seus pecados, jurando obe­diência aos preceitos contidos na aliança de Moisés (Ne 9— 10).

A proposta de Bright seria bastante atrativa se não fosse o acréscimo do número "trinta" para os versículos 7 e 8 de Esdras 7. Sua opinião é que a passagem originalmente era lida como se Esdras viesse a Jerusalém no tri­gésimo sétimo ano de Artaxerxes, em 428. Segundo essa cronologia, Neemias chegou primeiro, em 445, retornou para Susã em 433, e então, em seu retor­no a Jerusalém poucos anos depois, encontrou com o sacerdote Esdras pela primeira vez. Porém, na busca de uma solução, deve-se achar outra manei­ra de alcançá-la que não seja a manipulação arbitrária do texto.

3. Esdras parece ter tratado a questão dos casamentos mistos com mais severi­dade do que Neemias. Argumenta-se que Neemias foi bastante leniente, exi­gindo apenas que os pais não mais dessem seus filhos em casamento para estrangeiros (13.25), ao passo que Esdras ordenou que todos os casamen­tos já efetuados fossem desfeitos (10.10-14).22 Entretanto, esta é uma tênue evidência. Se, conforme a visão tradicional mantém, a reforma de Esdras

21 Bright, History, p. 396.22 J. Maxwell Miller e John H. Hayes, A History o f Ancient Israel and Judah (Philadelphia:

Westminster, 1986), pp. 473-74; Snaith, "Date of Ezra's Arrival," ZAW 63 (1951): 61.

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aconteceu em cerca de 457 e a de Neemias em 430, depois que voltou de Susã, os vinte e cinco anos que separam um do outro seriam tempo sufici­ente para que os habitantes de Jerusalém e Judá se envolvessem nova­mente no problema de casamentos mistos. Além disso, é arbitrário argu­mentar que uma medida foi mais decisiva que a outra. Esdras e Neemias responderam a situações peculiares que enfrentaram com medidas apro­priadas, conforme percebiam o problema.23

4. O sumo sacerdote contem porâneo de N eem ias fo i Eliasibe (Ne 3.1,20,21; 13.28), mas Esdras retirou-se para as câmaras de Joanã, o filh o de Eliasibe (Ed 10.6). Como Esdras poderia preceder Neemias se, segundo as Escrituras, ele viveu na época do filho do sacerdote que ministrava nos dias de Neemias?24 Este argumento surge de Neemias 12.10,11,22, onde a linha­gem sacerdotal é listada como Jesua, Joiaquim, Eliasibe, Joiada, Jonatã (uma variação de Jeoanã, como também o é Joanã) e Jadua. Aqui está claro que Joanã é, na verdade, neto de Eliasie, não seu filho, tornando o problema ainda mais difícil de ser solucionado. Além disso, Joanã aparece no papiro de Elefantina como sumo sacerdote de Jerusalém no décimo sétimo ano de Dario II.25 Este seria o ano 407, cinqüenta anos após a data tradicional da chegada de Esdras em Jerusalém e de suas reformas. Portanto, ele deve ter retornado no sétimo ano de Artaxerxes II (ca. 398), e não no sétimo ano de Artaxerxes I.

Em resposta, deve-se notar que o Eliasibe de Esdras 10.6 não é chama­do de sacerdote, de forma que não pode ser o Eliasibe dos anos de N eem ias.26 Também Joanã é filho de Eliasibe em Esdras, mas neto em Neemias. Josefo registra que este neto de Eliasibe matou seu próprio ir­mão, Jesua, quando Bigvai, o sucessor de Neemias no governo, tentou estabelecê-lo como sumo sacerdote.27 E difícil crer que Esdras se sentisse confortável em repartir seu ministério com alguém de caráter tão corrom­pido.

Uma proposta atrativa para harmonizar as evidências é oferecida por Frank Cross, segundo a qual existe uma haplografia na genealogia sa­cerdotal descrita em Neemias 12.28 Ele apresenta uma lista original em

23 Eybers, "Cronological Problems," Die Ou-Testamentiese Werkgemeenskap in Suid-Africa 19 (1979): 14.

24 Ackroyd, Israel Under Babylon and Persia, p. 193.25 Miller e Hayes, History, p. 469.26 Fensman, Ezra and Nehemiah, p. 136.27 Frank M. Cross, "A Reconstruction of the Judean Restoration," Interp. 29 (1975): 188-89

(publicada também no JBL 94 [1975]: 4-18).28 Ibid., pp. 189-90.

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que constam dois Eliasibes e dois Joanãs, um par na época de Esdras e outro na de Neemias. O problema com esta teoria é que não há qualquer manuscrito que lhe sirva de apoio, sendo tida apenas como conjectura. Embora isto aliviasse o problema da seqüência de Esdras e Neemias, não é possível reconstruir textos baseando-se no que poderia apoiar uma hipótese histórica.

De acordo com o exame desta evidência, parece claro que a visão cro­nológica tradicional de que Esdras precedeu Neemias é a mais sensata. É claro que tem os seus problemas, mas provê uma estrutura confortável com a qual ambos os livros podem ser entendidos.

Esdras: sacerdote e escriba

Esdras recebeu permissão de Artaxerxes I para conduzir um grupo de exilados de volta a Jerusalém. Este rei autorizou Esdras a tomar qualquer decisão nas províncias além do Eufrates, o que incluía Judá. Será impor­tante verificar se houve algum fator político que motivou Artaxerxes a assumir esta posição beneficente, pois é difícil crer que o rei agia por mo­tivos puramente carismáticos.

Já sugerimos que a neutralização da Liga Deliana, depois de 460, dei­xou Artaxerxes livre para tratar com alguns assuntos mais próximos de sua terra. Ele deu ordens a Megabyzus — um oficial que havia subornado as autoridades de Esparta para guerrearem contra os atenienses, e que também fora governador de uma de suas satrapias, a da Síria — para con­duzir os exércitos da Pérsia para o sul, da Cilícia para a grande guerra no Egito, os aliados dos atenienses. Depois de derrotar os exércitos atenienses em Prosopitus (uma ilha no Delta do Nilo), Megabyzus conseguiu subme­ter todo o Egito em 456.29 As evidências mostram que, já por volta de 458, Artaxerxes considerou a província leal de Judá como um importante meio da ação disciplinadora contra o Egito.30 E qual seria a melhor maneira de efetuar isto senão concedendo a Esdras, um líder judeu popular e influen­te, permissão para restabelecer a vida e cultura judaica naquela pequena terra tão crucial para o sucesso da Pérsia?

Ao reunir a caravana que partiria para Jerusalém, no Canal Ahava, Esdras os conduziu ao jejum e oração, e distribuiu entre os sacerdotes lí­deres e os levitas os tesouros que recebera do rei e da comunidade judaica

29 Olmstead, History, p. 308.30 Carl Schultz, "The Political Tensions Reflected in Ezra-Nehemiah," em Scripture in

Context, editado por Carl D. Evans et al. (Pittsburgh: Pickwick, 1980), pp. 233-34.

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(Ed 8.15-30). Quando chegaram à cidade, apresentaram ofertas queima­das a Yahweh e deram início à reconstrução e restauração. O templo havia sido acabado cinqüenta e oito anos antes, mas desde aquele momento en­trou em Judá um tempo de decadência moral e espiritual. Esdras viu-se forçado a tomar medidas para purificar a vida religiosa e social da jovem comunidade.

O primeiro ponto a ser tratado foi o casamento entre judeus e pessoas de outras culturas. O sacerdote foi informado que o povo, sacerdotes e levitas tinham constituído família desta maneira, contradizendo os ensi­nos na lei de Moisés. Tão aflito estava Esdras que chorou profundamente na presença do Senhor (Ed 9.3-15). Deus tinha sido fiel em preservar um pequeno rebanho, e trouxe-os do cativeiro e do exílio, evitando que a vida no estrangeiro destruísse o povo. Mas agora o sacerdote temia que este povo abençoado se afastasse de Deus e perdesse os privilégios como povo escolhido. Como fizeram seus antepassados, na época de Josué, quase mil anos antes, eles também se envolveram em alianças impuras com os po­vos da terra. Se o Senhor não lhes perdoasse o pecado, não haveria espe­rança de permanecer na terra como a nação de Deus.

A resposta do povo resultou da angústia do sacerdote Esdras. Eles se arrependeram e os sacerdotes e demais líderes reafirmaram seu compro­misso para com a aliança do Sinai (Ed 10.1-8). Três dias depois, todos os homens da nação estavam reunidos em Jerusalém e lá receberam instru­ções para que dissolvessem aquelas uniões ilegais. Embora o relato não esclareça muito o assunto, o fato é que os culpados por terem assumido um relacionamento misto tiveram de divorciar-se de suas companheiras. Mas a necessidade de uma ação similar vinte e cinco anos mais tarde sob Neemias sugere exatamente o contrário.

N eem ias, o governador

Nada mais está registrado acerca de Esdras e seu ministério depois de seu primeiro ano em Judá até que Neemias chegou, em 445, treze anos depois. Não resta dúvida de que esses anos foram bastante difíceis para Esdras, com respeito à administração interna e a incessante oposição dos samaritanos e outros povos. Os motivos que determinaram a ida de Neemias à Jerusalém são um testemunho claro e evidente dos problemas que Esdras enfrentava, e tudo o que Neemias lá encontrou apenas os con­firma.

Depois que Megabyzus, o governador da Síria, conseguiu subjugar os egípcios, tomou os comandantes da Grécia e do Egito e levou-os até Susã,

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prometendo não lhes fazer mal. Esta promessa foi sustentada por muitos anos, mas em 449, a viúva de Xerxes e rainha mãe, exigiu a execução de Amestris. Ao perceber que as exigências da mulher foram acatadas, Megabyzus enfureceu-se sobremaneira, fugiu de volta para a Síria e de lá declarou sua independência do governo persa. No início, por ter um forte contingente que o seguia, saiu-se vitorioso em duas guerras que os persas lhe fizeram, mas depois de conseguir apoio para suas causas, retornou a Susã e declarou-se novamente fiel ao rei da Pérsia.31

A relevância deste fato para a narrativa da viagem de Neemias rumo a Jerusalém é que a satrapia Siro-Palestina encontrava-se em situação extre­mamente precária. O rei Artaxerxes sabia que o acontecimento poderia se tornar um modelo para futuras rebeliões nas províncias além do Eufrates, e que, se isto realmente acontecesse, os persas não teriam condições de reavê-las. Sem dúvida ele estaria disposto a tentar algo para consolidar sua liderança naquelas longínquas províncias. Quando Neemias se tor­nou voluntário para voltar a Jerusalém, o rei viu a oportunidade para o cumprimento de seus desejos e projetos, pois seu copeiro sempre lhe tinha sido leal. Assim ele seria o elemento-chave para manter a harmonia e sub­missão de Judá à administração persa. A presença de Neemias seria um instrumento de pacificação na região.32

Megabyzus rebelara-se em 449 e reafirmou sua lealdade em cerca de dois anos depois. De acordo com Neemias, ele pediu autorização para voltar a Jerusalém em 445, no vigésimo ano de Artaxerxes (2.1). Não seria errado supor que as condições nas regiões siro-palestinas estivessem caó­ticas depois de 449, e que ali havia uma necessidade quase desesperadora de liderança. A situação de Judá era uma das mais difíceis, pois sofria rebeliões e contra-rebeliões, além de estar freqüentemente sob ataques verbais, se não físicos, dos samaritanos e seus aliados. O relato acerca das muralhas quebradas de Jerusalém refletem, com toda certeza, os conflitos e devastações que a cidade sofrerá durante esses anos.

Neemias é uma das figuras mais inspiradoras da historia bíblica. Como foi nos dias da diáspora judaica, muitos jovens que ali residiam eram inte­ligentes e capazes para assumir posições no governo persa. Neemias era um desses que, por suas habilidades, foi levado à posição de copeiro do rei.33 Para alguém exercer esta função era necessário haver uma confiança

31 Olmstead, History, pp. 312-13.32 John M. Cook, The Persian Empire (New York: Schocken, 1983), p. 128.33 Quanto ao verdadeiro significado da função de copeiro na corte persa, ver Olmstead,

History, p. 217: "Depois de Xerxes vem o copeiro que, nos tempos acamenidas, exercia uma influência muito maior do que o próprio comandante-chefe do exército".

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mútua, pois o copeiro poderia ser subornado para derramar algum vene­no no copo do rei ou fazer outra maldade semelhante. A despeito da in­tensa fidelidade para com o rei, Neemias tinha uma fidelidade ainda mai­or para com seu Deus. Embora jamais estivesse em Jerusalém, seu coração pertencia àquela cidade, e como Daniel ele deve ter orado todos os dias com a face voltada para Sião.

Em 445, o irmão de Neemias, Hanani, e alguns de seus companheiros de viagem retornaram de Jerusalém (Ne 1.1-3). Não se sabe a natureza da via­gem e nem se ele estava a serviço do rei, mas de qualquer forma eles relata­ram a Neemias a desgraça e a tristeza que presenciaram em todos os cantos da cidade. Ao ouvir essas palavras, o coração de Neemias ficou completa­mente pesaroso, de sorte que entrou imediatamente em jejum e oração por muitos dias. Ele lembrava ao Senhor as suas grandes e preciosas promessas de restauração. Também se humilhou pedindo ao Senhor que ele pudesse encontrar favor diante do rei, e depois disso fosse dispensado para viajar para Jerusalém na intenção de ser usado por Deus de alguma forma.

Logo Artaxerxes notou no semblante de seu copeiro uma grande triste­za e inquiriu dele o motivo. Após ser inteirado de todos os fatos que atri­bulavam o espírito de Neemias, o rei autorizou a partida de seu copeiro para a cidade de Jerusalém e lhe deu cartas reais que garantiam acesso seguro por todas as províncias além do Eufrates, e patrocínio do governo persa para a reconstrução (Ne 2.7,8). Quando chegou à cidade, Neemias descobriu que a situação era bem pior do que imaginava. As muralhas e outras estruturas estavam tombadas em ruínas e os oficiais e administra­dores de outros distritos foram radicalmente contrários à reconstrução.

Um desses governadores, Sambalate, o Horonita, tem seu nome confir­mado no papiro aramaico de Elefantina, onde está registrado que ele foi governador de Samaria no décimo sétimo ano de Dario II, ou seja, em 407.34 Visto que por esse tempo ele já tinha filhos adultos, provavelmente ele ha­via sido governador quarenta anos antes. Tobias, governador de Amom, é menos conhecido.35 Gesém, o arábio, o terceiro principal antagonista, é visto nos registros extracanônicos. A fonte primária dessas informações é uma bacia de prata descoberta em 1947 em Tel el-Masskhütah, no Bai­

34 H.L. Ginsberg, "Aramaic Letters," em James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 492; Porten, Archives, pp. 289-93. A família de Sambalate é bem conhecida nos papiros de Samaria; ver Frank M. Cross, "Papyri of the Fourth Century B.C. from Dâliyeh," em New Directions in Biblical Archaeology, editado por David Noel Freedman e Jonas C. Greenfield (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1971), pp. 47-48, 59-63.

35 Ver, porém, Benjamim Mazar, "The Tobiads," em IEJ 7 (1957): 137-45.

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xo Egito.36 Da mesma maneira que três outras bacias, esta contém uma ins­crição dedicatória à deusa Han'-Uat. Além disso está escrito em certa linha, "aquela que Qaynu, filho de Gasmu, rei de Quedar, trouxe como oferta para Han'-Ilat." Gasmu é o Gesém da Bíblia. Com base na característica lingua­gem aramaica, na natureza da bacia e nas moedas atenienses descobertas no mesmo sítio, essa inscrição foi datada em 400.

O motivo maior para esses antagonistas resistirem ã obra de restaura­ção da cidade não se concentrava necessariamente no culto a Yahweh. Se­tenta e cinco anos antes do episódio, é verdade que as razões estavam diretamente relacionadas com o culto (Ed 5.3). Porém agora a resistência era contra o restabelecimento de mais um estado rival e poderoso dentre os demais daquela região. Certamente eles se uniram a Megabyzus em sua revolta contra a administração persa, e passaram a ver o governador Neemias como um líder a favor da dominação persa naquelas províncias, tornando-se uma espécie de vigia para o rei Artaxerxes. O próprio fato de eles se sentirem no direito de interferir nas reformas comandadas por Neemias é uma prova de que já havia uma certa independência desses povos para com o governo persa, especialmente depois de tomarem ciên­cia do conteúdo da carta de autorização dada por Artaxerxes.37

Neemias não perdeu tempo: em três dias ele empreendeu uma grande pesquisa do perímetro exato da cidade para, com os números exatos à mão, poder determinar os passos necessários para a reconstrução dos muros. Imediatamente os líderes se aproximaram e se dispuseram a aju­dar na tarefa, de maneira que a obra não tardou a começar. Depois de uma tentativa fracassada, Sambalate, Gesém e Tobias, que tentaram desestimular o povo escarnecendo da obra, partiram para uma tática diferente: argu­mentaram sobre a deslealdade dos judeus para com o trono da Pérsia, mas isto foi em vão, pois a obra tinha sido autorizada pelo próprio rei. A medida que a construção chegava ao fim, os inimigos de Israel se desespe­ravam, percebendo que a cidade ficaria novamente invulnerável à ação de exércitos estrangeiros. Para eles, tudo isso tinha dois significados básicos: os judeus automaticamente proclamariam sua independência dos persas, e depois buscariam o controle de toda a região, criando um reino redivivo de Davi, o que não estava distante das perspectivas dos profetas. Neemias teve de defender a obra contra todos esses ataques.

36 William J. Drumbrell, "The Tel el-Maskhuta Bowls and the 'Kingdom' of Qedar in thePersian Period," BASOR 203 (1971): 33-34.

37 J. Alberto Soggin, A History o f Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), pp.272-74.

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Quando a tentativa de ridicularizar mostrou-se ineficaz, os adversários da construção atacaram de outra forma: tentaram conquistar a amizade de Neemias, oferecendo também seu apoio à reconstrução. Na verdade, havia um plano para assassinar Neemias. Os protagonistas da conspiração foram Sambalate e Gesém, que pediram para o governador encontrá-los em uma planície conhecida pelo nome de Ono (Kafr'Anã),38 cerca de dezesseis qui­lômetros a leste de Jope.39 Por cinco vezes eles entraram em contato com Neemias. Na quinta vez o contato foi feito através de um documento oficial onde Sambalate, o grande adversário de Neemias, acusava o governador de manter em oculto ambições reais e que, no devido tempo, proclamaria sua independência de Artaxerxes (Ne 6.5-7). Na carta, Sambalate deixou transparecer que não revelaria essas coisas ao rei da Pérsia se, em troca, Neemias se dispusesse a encontrá-los para algumas negociações.

Neemias imediatamente rejeitou a proposta, que seria uma maneira de afastá-lo da cidade para ser sumariamente executado. Mas as intrigas não tinham se esgotado. Um homem chamado Semaías, filho de Delaías, o quinto a ser alugado por Tobias e Sambalate, suplicou a Neemias que bus­casse refúgio e proteção no templo, a fim de guardar sua vida contra al­guns assassinos que tencionavam matá-lo (Ne 6.10-14). Neemias compre­endeu que tal demonstração de covardia repercutiria negativamente en­tre o povo e, logo em seguida, baixaria sensivelmente o moral dos traba­lhadores, além de desacreditá-lo diante da nação. Por isso, Neemias não aceitou aquele conselho mortífero e, como homem de Deus, lançou-se pe­rante a face do Senhor, buscando nEle refúgio e proteção.

Passaram-se apenas cinqüenta e dois dias e as paredes foram termina­das. O curso e extensão da área urbana não podem ser determinados hoje, em virtude da inacessibilidade arqueológica. Porém, o quadro que o livro de Neemias apresenta da cidade de Jerusalém sugere que era bem menor do que a Jerusalém anterior ao cativeiro.40 Somente depois que os macabeus alargaram-na, no segundo século a.C., pode-se dizer que a cidade chegou às mesmas dimensões de seus tempos antigos. Apesar de tudo, o término da reconstrução das muralhas de Jerusalém frustraram as perversas in­tenções dos inimigos de Judá, os quais puderam constatar que a mão de Deus estivera em todo aquele negócio (Ne 6.16).

38 Yohanan Aharoni, The Land o f the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 440.39 Esse era provavelmente considerado um lugar neutro, situado entre Asdode e Samaria,

e também fora das fronteiras de Judá; ver Jacob M. Myers, Ezra-Nehemiah, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), p. 138.

40 Kathleen Kenyon, Jerusalem (New York: McGraw-Hill, 1967), p. 105-11.

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Depois de assegurar que a cidade já estava bem protegida, Neemias deu início à mais importante de todas as tarefas. Ele precisava agora reor­ganizar toda a vida e administração pública e, acima de tudo, efetuar uma sólida e profunda reforma espiritual.41 Logo de início, ele designou que houvesse porteiros, cantores e outros que serviriam no santuário, além de estabelecer seu irmão, Hanani, como o prefeito da cidade. Então passou a tratar dos problemas econômicos da província (Ne 5.1-5). O profeta Ageu já havia tocado no ponto central do problema, ou seja, ele percebeu que as pessoas que tinham se restabelecido na terra preocupavam-se exclusiva­mente com suas vidas, criando uma mentalidade puramente consumista, construindo habitações cada vez mais atrativas e confortáveis, ao passo que a casa de Deus permanecia em ruínas. Os pobres da terra também estavam sendo esquecidos (Ag 1.2-6). Esse mesmo espírito prevaleceu du­rante os dias do sacerdote Esdras, e a g o ra co n fro n ta v a N eem ia s . O proble­ma tinha se exacerbado pela guerra civil instigada por Megabyzus e a cons­tante interferência dos samaritanos e seus aliados. Certamente o novo cer­co em Jerusalém durante as semanas de construção provocou instabilida­de no povo, aumentando a miséria para muitos, pois o alimento estava em falta e os que o possuíam vendiam-no a preços exorbitantes.

Tudo isso provocou uma confusão na economia sem precedentes. Al­guns judeus tiveram de hipotecar suas casas em troca de comida, e outros buscaram empréstimos com juros elevados na Pérsia. Muitos se viram in­capazes, depois de algum tempo, de pagar o que deviam, de maneira que foram obrigados a entregar seus próprios filhos e filhas aos credores para serem vendidos como escravos. O mais vergonhoso era que os que lucra­vam com a situação não eram os pagãos, mas os judeus ricos! Eles escravi­zavam seus próprios irmãos e irmãs, ao mesmo tempo que a própria co­munidade judaica usava esse dinheiro para libertá-los das mãos dos gen­tios (Ne 5.6-8). Furioso, Neemias ordenou que essa prática perniciosa ces­sasse, e todas as propriedades confiscadas fossem devolvidas a seus legí­timos donos.

Outro passo administrativo e político tomado por Neemias foi a me­lhor redistribuição dos judeus na terra. Aparentemente, a maioria dos que retornaram do cativeiro tinha se estabelecido nos vilarejos e cidades em que a destruição babilônica havia sido mínima. Jerusalém estava abando­nada em virtude de sua destruição massiva (Ne 7.4). Mas agora que o

41 Quanto ao escopo da reforma, ver Edwin M. Yamauchi, "Two Reformers Compared: Solon of Athens and Nehemiah of Jerusalem," em The Bible World, editado por Garv Rendsburg et al. (New York: Ktav, 1980), pp. 269-92.

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templo e as muralhas de Jerusalém estavam reconstruídos, a cidade rece­beria um grande número de famílias que tentariam se restabelecer na ca­pital de Judá. O plano desenvolvido por Neemias envolvia um levanta­mento genealógico das famílias, permitindo que voltassem para a cidade apenas aquelas que habitavam lá anteriormente.

Finalmente, estava próximo o sétimo mês daquele ano. Neemias ajun- tou o povo em Jerusalém para celebrar os festivais de outono. No primei­ro dia do mês, o dia de Ano Novo, Esdras pôs-se de pé para ler a Torá diante de todos os que ali estavam (Ne 7.73— 8.3). Quando alguns come­çaram a chorar, Neemias os exortou a regozijar-se perante o Senhor, pois aquele era um dia de festa. Eles começaram a construir suas tendas de acordo com as instruções para a Festa dos Tabernáculos. Quando chegou o décimo quinto dia do mês, celebraram por uma semana a maravilhosa provisão de Deus para com seu povo no deserto, enquanto os conduzia para a Terra Prometida. Durante todas as comemorações, Esdras lia as Escrituras, e o povo se regozijava por este novo êxodo e preservação.

No dia vinte e quatro do sétimo mês, Neemias convocou uma assem­bléia especial com o propósito específico de assumir um maior compro­misso com a lei (Ne 9.1). O texto deste compromisso é apresentado em forma de oração que inicia com a exaltação de Yahweh como o Criador: somente Ele é Deus.42 Depois, o Senhor é apresentado como o Deus da história que elegeu Abraão e os patriarcas, prometendo-lhes uma heran­ça — a terra de Canaã. Ele os redimiu da opressão egípcia, deu-lhes a Lei no Sinai, e depois de haver efetuado a correção e punição de muitos no deserto, por causa de suas desobediências, introduziu-os na terra que jurara dar a seus pais. Mesmo assim, eles continuaram a pecar até que foram arrancados da terra e levados em cativeiro para várias nações es­trangeiras. Foi uma dura lição, mas Deus sempre se mostrou gracioso para com seu povo, e por sua misericórdia trouxe-os de volta. Estavam novamente na terra, mas ainda permaneciam vassalos de um rei estran­geiro (Ne 9.32-38).

Uma vez que pronunciaram o compromisso com a Lei, os líderes escre­veram essas palavras e puseram suas assinaturas no documento. Fizeram uma aliança com aquelas palavras mediante o juramento e a maldição, caso não as cumprissem. Da mesma forma todo o povo também se com­prometeu com os preceitos e mandamentos da lei. Houve um apelo espe­cial para que o povo não se casasse com pessoas de outras nações, e não

42 Para Neemias 8-10 como um material do pacto, ver Dennis J. McCarthy, "Covenant and Law in Chronicles-Nehemiah," CBQ 44 (1982)-. 34-35.

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negligenciasse suas obrigações para com a casa de Deus mediante a entre­ga de seus dízimos e o oferecimento do primogênito.

Todos esses acontecimentos parecem ter ocorrido em um ano, 445, o primeiro ano de Neemias em Jerusalém. Ele ficou na cidade por mais doze anos, e depois voltou para Susã por um breve espaço de tempo (Ne 5.14; 13.6,7). Está claro que durante esses anos de ausência (ca. 433-430), o repovoamento e redistribuição de terras autorizados por Neemias foi re­almente posto em prática. Essa pode ter sido a ocasião em que o sacerdote Eliasibe mudou-se para Jerusalém.43 De qualquer forma, quando Neemias voltou de Susã para Jerusalém, encontrou Eliasibe na cidade e, para seu profundo desgosto, achou também Tobias, seu velho adversário. Tobias estava ligado por laços familiares de casamento a alguns dos líderes de Jerusalém (Ne 6.17,18), e de alguma forma conseguiu um acesso direto ao templo de Deus juntam ente com todos os que apoiavam sua causa. Neemias imediatamente mandou que Tobias fosse expulso das câmaras do templo e determinou que estas fossem purificadas.

Não é possível determinar quais foram os negócios urgentes que im­peliram o restaurador Neemias de volta para Susã em 443. Pode ser que a resposta seja bastante simples: é possível que seu período de licença já estivesse expirado, sendo-lhe necessário retornar para renová-la. De qual­quer forma, ele não demorou muito na capital do império, embora sua curta ausência tenha sido um período grande o suficiente para todo tipo de problemas ressurgir. Neemias viu que os levitas tinham sido negli­genciados, o dia de sábado já não era observado e os malsucedidos casa­mentos mistos voltaram a ser comuns no meio do povo. Até mesmo um dos filhos do sacerdote Joiada tinha se casado com a filha de Sambalate (Ne 13.28)!

Mais uma vez, Neemias viu-se forçado a promulgar uma série de mu­danças. Ele dedicou as muralhas44 — provavelmente no aniversário de sua construção — e aproveitou a ocasião para estabelecer um sistema que providenciava sustento para os levitas além das ofertas do povo de­

43 Fensham, Ezra and Nehemiah, p. 260. Fensham indica corretamente, em nossa opinião, que esse Eliasibe não deve ser confundido com o sumo sacerdote Eliasibe, visto que este jamais seria identificado como alguém responsável pelos armazéns do templo (Ne 13.4).

44 Embora muitos estudiosos liguem Neemias 12.27-47 com 6.15 (eg., Myers, Ezra-Nehemiah, p. 202), não há nada implícito na "dedicação" que a limite ao ato inicial de compromis­so. Bright (History, p. 383) propõe que a dedicação inicial ocorreu alguns anos depois da construção. As frases "naquele tempo" em Neemias 12.44 e "naquele dia" em 13.1, e a unidade de 12.27-13.3 tornam claro que todos os eventos registrados dali em diante aconteceram depois da volta de Neemias para Jerusalém em cerca de 430.

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terminadas pela Lei. Ele também fez com que as determinações de Moisés a respeito dos estrangeiros, especialmente os amonitas e moabitas, fos­sem lidas, de sorte que não houvesse mistura na santa congregação de Israel (Ne 13.1-3; cf. Dt 23.3-6). Essa atitude foi uma resposta direta à presença de Tobias, o amonita, nos recintos sagrados do templo. Em se­guida, as palavras se voltaram contra o problema da quebra do sábado, e Neemias determinou que este fosse observado tanto pelos judeus quanto pelos gentios que ali habitavam, a fim de evitar o juízo e a ira divina. Finalmente, Neemias repreendeu os culpados pelos casamentos mistos, castigou-os fisicamente e os advertiu que a continuação desta prática desagradava principalmente ao Senhor.

Malaquias, o profeta

A última fonte de informação histórica do Antigo Testamento presenci­ada por alguém que viveu aquela época é o profeta Malaquias. Pouco se sabe acerca dele — até mesmo o seu nome45 — mas não está claro se seu ministério chegou a coincidir com alguma parte do governo de Neemias. A ausência de referências a Neemias e o fato de Malaquias ter falado con­tra um povo que demonstrava evidente desequilíbrio social e religioso — que Neemias havia corrigido quando voltou de Susã pela segunda vez — sugerem que o profeta exerceu seu ministério durante os anos em que Neemias esteve fora. Os anos de 433 a 425 provavelmente eqüivalem ao período profético de Malaquias.46

Em Malaquias não há qualquer registro que indique a presença de Neemias e Esdras. Alguns estudiosos crêem que Esdras morreu antes de 432.47 Isso pode ser a resposta para a situação caótica de Judá durante os anos de ausência de Neemias, uma condição que provocou o clamor de Malaquias para o arrependimento nacional e para as reformas que estari- am por vir através do próprio Neemias. O maior peso sobre o profeta é a violação da aliança da Lei. Deus sempre amou seu povo, dizia Malaquias, mas este nunca havia assimilado a profundidade deste amor, e na verda­

45 "Malachi" (Heb., maV-ãkí) significa "meu mensageiro", e portanto deve ser um nome para uma pessoa que, na verdade, tinha um outro nome. Ver Joyce G. Baldwin, Haggai, Zechariah, Malachi (Downers Grove, 111.: Inter-Varsity, 1972), p. 211.

46 Walter C. Kaiser, Jr., Malachi: God's Unchangíng Love (Grand Rapids: Baker, 1984), p. 17.47 Por exemplo, Eybers, "Chronological Problems, " Die Ou-Testamentiese Werkgemeenskap

in Suid-Africa 19 (1979): 15. Se Esdras morreu antes de 432, a dedicação das muralhas deve ter sido celebrada antes de Neemias retornar para Susã, pois Esdras é listado como um dos participantes daquela ocasião (Ne 12.36).

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de retribuía-o com desonra e desobediência (Ml 1.6-14). Tudo isto pode ser visto na própria indiferença do povo para com as ofertas, pois enquan­to se empenhavam em importar o melhor para suas próprias casas, os sacrifícios eram da pior espécie, com animais cegos e doentes. Os próprios sacerdotes se voltavam contra Deus, violando abertamente o compromis­so de levitas (Ml 2.8). Além disso, muitos judeus tinham se divorciado de suas mulheres, sinalizando assim seu descaso para com os ensinamentos das Escrituras (Ml 2.10). Como resultado, o Senhor enviaria seu mensagei­ro messiânico para purgar o mal enraizado no coração do povo e purificar um remanescente que andaria diante da presença do Senhor em verdade. Naquele dia, diz Malaquias, se levantará o "sol da justiça, trazendo salva­ção nas suas asas" (4.2) e o Senhor "converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais" (4.6). E será assim que o eterno propósito de Deus chegará à sua consumação, quando enfim a história alcançará seu clímax através do maravilhoso ato de amor e sacrifício de seu Filho Unigênito.

A história de Israel no Antigo Testamento se encerra com as derradei­ras palavras do profeta que escreveu este último livro canônico. Mas a história de Israel como um reino de sacerdotes não finda aqui. Neste sen­tido, o Antigo Testamento acha sua expressão maior nas páginas do Novo Testamento, com grandes propósitos de Deus para a Igreja e para o Israel escatológico.

Nosso intuito nesta obra não foi apenas contemplar a história de Israel como um fenômeno sóciopolítico, mas como o cumprimento do plano re­dentor de Deus, ou seja, como uma mensagem teológica. A humanidade, alienada de Deus pela queda, é ainda o objeto de seu amor e sua graça. O Antigo Testamento conta a história da implementação da graça mediante o veículo de um elemento humano (Abraão) que deu origem a uma nação eleita (Israel), um reino de sacerdotes cuja tarefa era demonstrar o que significa ser o povo redimido de Deus e o mediador da revelação salvadora para o mundo.

A nação falhou miseravelmente nos tempos do Antigo Testamento, mas o remanescente continuou e ainda continua a ser testemunha da aliança inabalável que o Senhor faz com o seu povo. O reino de sacerdotes, então, não é uma relíquia dos tempos e lugares antigos, mas uma manifestação na terra dos graciosos propósitos do Rei dos reis e Senhor dos senhores.

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Esta bibliografia contém uma visão completa da história e civilização do Antigo Oriente Próximo e de Israel. O maciço volume de literatura nestas disciplinas requer que nossa lista seja altamente seletiva. Para arti­gos de jornal acerca de tópicos mais específicos, veja as notas de pé de página ao longo do livro.

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