história da vida privada vol. 4 - da revolução francesa a primeira guerra - trecho]

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HISTÓRIA DA  VIDA PRIVADA Da Revolução Francesa à Primeira Guerra Organização  Michelle Perrot Tradução Denise Bottmann (partes 1 e 2) Bernardo Joffily (partes 3 e 4) 4 1ª -  reimpressão

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  • HISTRIA DA VIDA PRIVADADa Revoluo Francesa Primeira Guerra

    OrganizaoMichelle Perrot

    TraduoDenise Bottmann (partes 1 e 2)Bernardo Joffily (partes 3 e 4)

    4

    1- reimpresso

  • Copyright 1987 by ditions du Seuil

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Ttulo originalHistoire de la vie prive Vol. 4: De la Rvolution la Grande Guerre

    Na verso de bolso, foram suprimidas imagens que constam na primeira edio da srie, que vem sendo publicada pela Companhia das Letras desde 1989.

    CapaJeff Fisher

    PreparaoIsabel Jorge Cury

    RevisoMarcelo D. de Brito RiquetiVivian Miwa Matsushita

    ndice remissivoPedro Carvalho

    2009

    Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHwARCz LTDA.

    Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo SPTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Histria da vida privada, 4 : Da Revoluo Francesa Primeira Guerra / organizao Michelle Perrot ; traduo Denise Bottmann, Bernardo Joffily So Paulo : Companhia das Letras , 2009.

    Ttulo original : Histoire de la vie prive vol. 4 : De la Rvolution la Grande Guerre

    Vrios autores.Bibliografia isbn 978-85-359-1436-8

    1. Europa Civilizao 2. Europa Histria 3. Europa Usos e costumes i. Perrot, Michelle.

    09-02436 cdd-940.1

    ndice para catlogo sistemtico:1. Europa : Vida privada : Civilizao : Histria 940.1

  • SUMRIO

    Introduo Michelle Perrot, 7

    ERGUE-SE A CORTINA, 13Outrora, em outro lugar Michelle Perrot, 14Revoluo Francesa e vida privada Lynn Hunt, 18Sweet home Catherine Hall, 47

    OS ATORES, 77A famlia triunfante Michelle Perrot, 79Funes da famlia Michelle Perrot, 91Figuras e papis Michelle Perrot, 107A vida em famlia Michelle Perrot, 169Os ritos da vida privada burguesa Anne Martin-Fugier, 176Dramas e conflitos familiares Michelle Perrot, 246 margem: solteiros e solitrios Michelle Perrot, 268

    CENAS E LOCAIS, 283Maneiras de morar Michelle Perrot, 284Espaos privados Roger-Henri Guerrand, 302

    BASTIDORES Alain Corbin, 387O segredo do indivduo, 392A relao ntima ou os prazeres da troca, 466Gritos e cochichos, 525

    1.

    2.

    3.

    4.

  • 6Concluso Michelle Perrot, 569

    Bibliografia, 573ndice remissivo, 595

  • 1 ERGUE-SE A CORTINAMichelle PerrotLynn HuntCatherine Hall

  • 14

    OUTRORA, EM OUTRO LUGAR

    Michelle Perrot

    OUTRORA: REVOLUO FRANCESA E VIDA PRIVADA

    O sculo xVIII havia apurado a distino entre o pblico e o privado. O pblico tinha se desprivatizado at certo ponto, apresentando-se como a coisa do Estado. O privado, antes in-significante e negativo, havia se revalorizado at se converter em sinnimo de felicidade. Assumira um sentido familiar e espacial, que no entanto estava longe de esgotar a diversidade de suas formas de sociabilidade.

    Nesse processo, a Revoluo Francesa opera uma ruptura dramtica e contraditria, sendo preciso, alis, distinguir seus efeitos a curto e a longo prazo. No nvel imediato, h a descon-fiana de que os interesses privados, ou particulares, oferecem uma sombra propcia aos compls e s traies. A vida pblica postula a transparncia; ela pretende transformar os nimos e os costumes, criar um homem novo em sua aparncia, linguagem e sentimentos, dentro de um tempo e de um espao remodelados, atravs de uma pedagogia do signo e do gesto que procede do exterior para o interior.

    Num prazo mais longo, a Revoluo acentua a definio das esferas pblica e privada, valoriza a famlia, diferencia os papis sexuais estabelecendo uma oposio entre homens polticos e mulheres domsticas. Embora patriarcal, ela limita os poderes do pai em vrios pontos e reconhece o direito do divrcio. Ao mesmo tempo, proclama os direitos do indivduo, esse direito segurana no qual comea a se fazer presente um habeas corpus que, ainda hoje [1986] na Frana, carece de uma garantia mais slida; ela lhe confere uma primeira base inicial: a inviolabili-dade do domiclio, cuja transgresso est sujeita, desde 1791, a penas severas previstas no artigo 184 do Cdigo Penal.

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    Seria preciso um livro inteiro para descrever essa tumul-tuada histria privada da Revoluo em todas as dimenses do direito e dos costumes, dos discursos e das prticas cotidianas. Especialista nesse perodo, Lynn Hunt evoca aqui os grandes traos de uma experincia que cintila no horizonte do sculo.

    A forma como, sob a influncia conjunta dos evanglicos, dos militaristas e de uma evoluo econmica que estabeleceu uma distncia progressiva entre o domiclio e o local de trabalho, se operou na Inglaterra dos incios do sculo xIx a separao entre o pblico e o privado este agora consubstancial famlia , a par de uma diferenciao mais estrita dos papis sexuais: tal o tema de Catherine Hall, que o aborda por meio de algumas fi-guras tpicas. Desde Carolina, a rainha ultrajada cujo processo de 1820 envolve apaixonadamente a opinio inglesa, a qual, a par-tir da, passa a exigir do rei uma conduta exemplar, at o ourives de Birmingham para quem os cuidados com seu cottage consti-tuem o sentido e a finalidade de sua existncia, o que nos nar-rado toda a histria do novo ideal domstico.

    EM OUTRO LUGAR: INFLUNCIAS ESTRANGEIRAS E MODELO INGLS

    Na elaborao desse ideal, essencial o papel das classes mdias, que a encontraram uma verdadeira identidade. Ele se irradia desse mbito para as classes operrias, que se pretende moralizar com as virtudes da boa dona de casa. No h dvida de que o operariado adota tal ideal, mas sua prpria maneira e para seus prprios fins. Por outro lado, a gentry [pequena no-breza] se converte s prticas de uma sociabilidade mais ntima e transforma seus castelos em interiores domsticos.

    Sob as asas daquelas que logo sero denominadas os anjos do lar, entre a nursery e o jardim, viceja a doura do home. Estamos nas fontes da privacy vitoriana, tema de uma vasta literatura que fascinou a Europa.

    Qual a influncia exercida por tal modelo sobre a sociedade francesa, em busca de um novo equilbrio de suas atividades

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    e sua felicidade? Por inmeros canais diferentes, materiais ou pessoais viajantes, dndis, exilados, comerciantes, nurses ou misses das boas famlias , ele se infiltrou nas classes dominan-tes que encontravam na anglomania uma forma de distino. Os costumes de higiene (sabonete, latrina, banheira...), as modas do vesturio, as maneiras de falar (home, baby, comfort...), de jogar, de sentir ou de amar oferecem inmeros traos desse fenme-no, inclusive entre as classes populares. O sindicalismo de 1900 aspira aos espaos verdes e s cidades ajardinadas, ao esporte e ao lazer dos britnicos. Os cartazes da CGT em defesa da jor-nada de oito horas e da semana inglesa guardam uma grande semelhana com as gravuras de Cruikshank. E isso apesar de uma anglofobia recorrente, que se alimenta de cada conflito econmico e poltico.

    A prioridade concedida Inglaterra sem dvida justifica-da, principalmente na primeira metade do sculo xIx. A seguir, a Alemanha, de tanto vigor cultural, e, no comeo do sculo xx, os Estados Unidos passam a exercer uma atrao cada vez maior, s vezes numa relao de rivalidade.

    Tudo isso faz com que a questo do papel das influncias estrangeiras sobre a vida privada francesa, para alm das zonas em disputa (Alscia, Nice e Saboia) ou das regies de fronteira, se coloque de maneira mais abrangente. A Itlia das viagens amo-rosas ou de iniciao dos adolescentes seria ainda a senhora das sensibilidades estticas e das emoes, como fora para Rousseau e Stendhal (sob esse aspecto, testemunhas de seu tempo) e continua a ser, por exemplo, para uma Genevive Breton? Tomando-se a Europa nrdica, a Europa oriental e a Europa meridional, qual delas, e em que momento, predomina na Frana oitocentista? Pergunta sem resposta e talvez sem sentido. Influncia cultural no sinnimo de prtica da vida privada. E elementos isolados, mais ou menos naturalizados, no chegam a formar um estilo de vida. Mas, mesmo assim, difcil no tom-los em considerao.

    De uma ponta a outra, a Frana profundamente contradi-tria. Suas condies demogrficas diminuio precoce da taxa

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    de natalidade, manuteno de uma elevada taxa de mortalidade e, consequentemente, um baixssimo crescimento natural , nicas na Europa, fazem do pas um foco de atrao de imigrantes. Na segunda metade do sculo xIx, chegam levas macias de belgas, italianos e judeus da Europa central, fugidos dos pogroms (entre 1880 e 1925 chegam Frana cerca de 100 mil, dos quais 80% se concentram em Paris). Somando apenas 380 mil em 1851, eles ultrapassam a casa do milho em 1901, ou seja, 2,9% da popula-o total e 6,3% da populao parisiense. Esses imigrantes so, por definio, pessoas pobres e pouco atraentes. Isso se mostra claramente na desconfiana com que os judeus assimilados de velha cepa recebem os recm-chegados dos guetos da Europa central, e pela xenofobia dirigida contra os italianos nos meios populares, sobretudo em pocas de crise. Suas condies de so-brevivncia supem a preservao de suas estruturas familiares e de seu modo de vida. No entanto, a legislao (por exemplo, a lei de 1889 sobre as naturalizaes automticas) no deixava de favorecer a assimilao. Qual o impacto dessas migraes sobre as prticas e as concepes da vida privada?

    Por outro lado, essa Frana jacobina, onde a escola unificadora constri um modelo coerente e bastante rgido de cidadania e de civilidade, empertigando os corpos, investindo contra os dialetos regionais, corrigindo as pronncias, impondo a todos, migrantes internos ou externos, seu modelo de integrao de eficcia in-questionvel como ela parece autoconfiante! O livro de Pierre Sansot La France sensible [A Frana sensvel], de 1985, apresenta outras provas dessa diluio do privado diante do pblico.

    Num mbito totalmente diverso, a atitude refratria em relao ao pensamento de Freud, o grande vienense, a recusa em perceber a sexualidade como uma dimenso fundamental da pessoa no vm a constituir outra manifestao de uma representao bastante fechada da intimidade e da relao do indivduo consigo mesmo?

    Os modelos da vida privada no sculo xIx dificilmente se separam dos espaos nacionais.

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    REVOLUO FRANCESA E VIDA PRIVADA

    Lynn Hunt

    Durante a Revoluo, as fronteiras entre a vida pblica e a vida privada mostraram uma grande flutuao. A coisa pblica, o esprito pblico invadiram os domnios habitualmente privados da vida. No resta dvida de que o desenvolvimento do espao pblico e a politizao da vida cotidiana foram definitivamente responsveis pela redefinio mais clara do espao privado no incio do sculo xIx. O domnio da vida pblica, principalmente entre 1789 e 1794, ampliou-se de maneira constante, preparan-do o movimento romntico do fechamento do indivduo sobre si mesmo e da dedicao famlia, num espao domstico de-terminado com maior preciso. No entanto, antes de chegar a esse termo, a vida privada iria sofrer a mais violenta agresso j vista na histria ocidental.

    Os revolucionrios se empenharam em traar a distino entre o pblico e o privado. Nada que fosse particular (e todos os interesses eram particulares por definio) deveria prejudicar a vontade geral da nova nao. De Condorcet a Thibaudeau e Napoleo, a palavra de ordem era a mesma: No perteno a nenhum partido. As faces, a poltica partidria a poltica de grupos privados e de particulares viraram sinnimo de conspi-rao, e os interesses significavam uma traio nao.

    No perodo revolucionrio, privado significa faccioso, e tudo o que se refere privatizao considerado equivalente a sedicioso e conspiratrio. A partir da, os revolucionrios exigem que nada se furte publicidade. Apenas uma vigilncia contnua e o servio constante coisa pblica (que na poca possui um sen-tido preciso) podem impedir que aflorem interesses particulares (privados) e faces. Era preciso abrir as reunies polticas ao pblico: as reunies da legislatura extraem sua legitimidade de

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    uma plateia numerosa e de interrupes frequentes. Os sales, os grupos e os crculos podem ser denunciados de imediato. Num pas dominado pela poltica, a expresso dos interesses privados s pode ser tida como contrarrevolucionria. Existe apenas um partido, o dos intrigantes!, exclama Chabot. Todo o resto o partido do povo. Essa preocupao obsessiva em manter os interesses privados a distncia da vida pblica logo vir, parado-xalmente, a apagar as fronteiras entre o pblico e o privado.

    Os termos aristocrata e sans-culotte assumiram uma acepo poltica: um sans-culotte, caso esmorecesse em seu ardor revolucio-nrio, poderia ser chamado de aristocrata; dessa forma, o carter privado se revestiu de um sentido poltico. Em outubro de 1790, Marat denuncia a Assembleia Nacional como quase totalmente composta de antigos nobres, prelados, togados, cortesos, oficiais, juristas, homens sem alma, sem costumes, sem honra nem pudor; inimigos da Revoluo por princpio e por condio. A maioria dos legisladores composta to somente de velhacos manhosos, de charlates indignos. So homens corruptos, astutos e prfidos, escreve ele em seu jornal LAmi du Peuple [O Amigo do Povo]. No bastava errar de campo poltico; era preciso ainda que faltassem as qualidades humanas mais elementares. Se o homem pblico no defendia a Revoluo de maneira satisfatria, o homem privado s podia ser corrupto. Marat abriu o caminho, outros o seguiram. Em 1793, um panfleto bastante medocre definia o moderado, feuillant,* aristocrata como aquele que no melhorou a Sorte da Umanidade miservel e patriota, tendo Notoriamente os meios para isso. Aquele que no usa por ruindade uma Roseta de trs po-legadas de Circomferena; Aquele que comprou roupas que no so nacionaes, e Principalmente os que no Se orgulham do ttolo e do Barrete de Sans-Culotte (sic). As roupas, a linguagem, as atitudes em relao aos pobres, os servios prestados, o uso dos bens mveis,

    * No perodo revolucionrio, chamavam-se feuillants os moderados ou constitucionalistas, por terem a sede de sua associao em Paris no antigo con-vento dos frades bernardos ( feuillants). (N. T.)

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    tudo se convertia em critrio de patriotismo. Onde estava a linha de demarcao entre o homem pblico e o homem privado?

    A mescla do privado com o poltico e o pblico no era apa-ngio das reunies das sees e dos jornais mais exacerbados; o exemplo mais conhecido , certamente, o discurso de Robespierre, em 5 de fevereiro de 1794, Sobre os princpios de moral poltica. Partindo do postulado de que o motor do governo popular em revoluo , ao mesmo tempo, a virtude e o terror, o porta-voz do Comit de Salvao Pblica contrapunha as virtudes da repblica aos vcios da monarquia:

    Em nosso pas, queremos substituir o egosmo pela moral, a honra pela probidade, os usos pelos princpios, as con-venincias pelos deveres, a tirania da moda pelo imprio da razo, o desprezo desgraa pelo desprezo ao vcio, a insolncia pelo orgulho, a vaidade pela grandeza de alma, o amor ao dinheiro pelo amor glria, a boa companhia pelas boas pessoas, a intriga pelo mrito, o espirituoso pelo gnio, o brilho pela verdade, o tdio da volpia pelo encanto da felicidade, a mesquinharia dos grandes pela grandeza do homem [...].

    Da se seguia que, no sistema da Revoluo Francesa, o que imoral impoltico, o que corruptor contrarrevolucio-nrio. Desse modo, os revolucionrios, mesmo pensando que os interesses privados (entendendo por eles os interesses de pequenos grupos ou faces) no deviam ter representao na arena poltica, estavam persuadidos de que a atitude privada e a virtude pblica guardavam uma estreita ligao. Assim que, em novembro de 1793, a Comisso temporria de vigilncia republicana estabelecida em Ville-Affranchie (Lyon) declarou:

    Para ser realmente republicano, preciso que cada cidado experimente e opere em si mesmo uma revoluo igual que transformou a face da Frana. [...] todo homem que

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    abre sua alma s frias especulaes do interesse, todo ho-mem que calcula o quanto lhe vale uma terra, um lugar, um talento [...] todos os homens de tal feitio e que ousam se declarar republicanos mentiram natureza [...] que fujam ao solo da liberdade: no tardar que sejam reconhecidos e que o reguem com seu sangue impuro.

    Em suma, a viso revolucionria da poltica rousseauniana. A qualidade da vida pblica depende da transparncia dos co-raes. Entre o Estado e o indivduo, no h necessidade da mediao dos partidos ou dos grupos de interesses, e os indiv-duos devem realizar sua revoluo pessoal, reflexo daquela que se realiza no Estado. Segue-se da uma profunda politizao da vida privada. Segundo os revolucionrios de Lyon, a Repblica j no deseja em seu seio seno homens livres.

    MUDAR AS APARNCIAS

    Um dos exemplos mais claros da invaso do pblico no es-pao privado a preocupao constante com o vesturio. Desde a abertura dos Estados Gerais, em 1789, a roupa possui um sig-nificado poltico. Michelet descreveu a diferena entre a sobrie-dade dos deputados do Terceiro Estado, frente da procisso de abertura uma massa de homens, vestidos de negro [...] com trajes modestos , e o pequeno grupo refulgente dos depu-tados da nobreza [...] com seus chapus de plumas, suas rendas, seus paramentos de ouro. Segundo o ingls John Moore, uma grande simplicidade, e na verdade a avareza no vesturio era [...] considerada uma prova de patriotismo. Em 1790, os jornais dedicados moda apresentam um traje estilo Constituio para as mulheres que, em 1792, se torna o chamado traje estilo igualdade com um toucado muito em moda entre as republica-nas. Segundo o Journal de la Mode et du Got [ Jornal da Moda e do Gosto], a grande dama de 1790 veste cores listradas estilo nao, e a mulher patriota usa tecido de cor azul-rei com chapu de feltro negro, fita do chapu e roseta tricolores.

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    A moda masculina no se definiu de imediato com tanta clareza, mas a indumentria logo se transformou num sistema semitico intensamente carregado. Ela revelava o significado pblico do homem privado. Os moderados e os aristocratas eram identificados por sua recusa em usar a roseta. A partir de 1792, o barrete vermelho, o casaco estreito com vrias filas de botes e as calas largas passam a definir o sans-culotte, isto , o verdadeiro republicano. A roupa investida de tal significado poltico que a Conveno, em outubro de 1793, se v obrigada a reafirmar a liberdade do vesturio. O decreto, em si, parece andino: Nenhuma pessoa, de qualquer sexo, poder obrigar qualquer cidado ou cidad a se vestir de maneira particular [...] sob pena de ser considerada e tratada como suspeita.

    No entanto, essas discusses na Conveno mostram que tal decreto se dirige principalmente s associaes femininas cujas participantes usavam toucado vermelho e foravam as outras mulheres a imit-las. Aos olhos dos deputados, nesse auge de ra-dicalidade revolucionria o momento da descristianizao , a politizao da indumentria ameaava subverter a prpria de-finio da ordem dos sexos. O Comit de Segurana Geral temia que os debates sobre o vesturio fossem resultantes da masculi-nizao das mulheres: Hoje se exige o barrete vermelho: no vo parar por a; logo exigiro o cinto com pistolas. Mulheres armadas nas longas filas do po seriam bem mais perigosas; e o pior era que fundavam associaes. Fabre dglantine observou que essas sociedades no so absolutamente compostas de mes de famlia, de moas de famlia, de irms que cuidam de seus irmozinhos menores, e sim de uma espcie de aventureiras, de cavaleiras andantes, de jovens emancipadas, de mocetonas de modos livres e soltos. Os aplausos que o interromperam mos-tram que ele havia tocado na corda sensvel dos deputados; todas as associaes femininas foram suprimidas, pois iam contra a ordem natural, na medida em que emancipavam as mulheres de sua identidade exclusivamente familiar (privada). Como dizia Chaumette: Onde j se viu que a mulher abandone os cuidados

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    do lar, o bero dos filhos, para ir praa pblica, discursar na tribuna?. As mulheres eram tidas como a representao do pri-vado, e sua participao ativa como mulheres em praa pblica era rejeitada por praticamente todos os homens.

    Apesar do aparente apoio da Conveno ao direito de se ves-tir vontade, o Estado desempenhou um papel crescente nesse campo. A partir de 5 de julho de 1792, todos os homens passa-ram a ser obrigados por lei a usar a roseta tricolor; a partir de 3 de abril de 1793, todos os franceses, sem distino de sexo, fica-ram submetidos a esse decreto. Em maio de 1794, a Conveno solicitou ao pintor-deputado David que apresentasse projetos e sugestes para melhorar o traje nacional. Ele fez oito desenhos, entre os quais se incluam dois para os uniformes civis. No havia grande diferena entre os trajes civis e os oficiais. Todos con-sistiam em tnica curta e aberta, presa cintura por uma faixa, cales justos, sapatos ou botas sem salto, uma espcie de gorro e uma capa trs-quartos. Nesse traje, misturavam-se detalhes da Antiguidade, da Renascena e tambm de figurinos de teatro. A indumentria civil criada por David nunca foi usada, a no ser por alguns jovens admiradores do mestre. No entanto, a sim-ples ideia de um uniforme civil, surgida na Sociedade Popular e Republicana das Artes, mostra que havia quem desejasse o fim da fronteira entre o pblico e o privado. Todos os cidados, sol-dados ou no, andariam uniformizados. Os artistas da Sociedade Popular diziam que os hbitos da poca, no tocante s roupas, eram indignos de homens livres; se era para a Revoluo entrar no mbito privado, ento seria preciso remodelar totalmente os trajes. Como chegar igualdade se a distino social continuava a se manifestar no vesturio? As roupas femininas no pareciam to importantes aos artistas e legisladores, o que, alis, no de admirar. Segundo wicar, as mulheres no precisavam de grandes mudanas, exceo desses lenos ridiculamente empolados. Como os papis privados estavam reservados s mulheres, elas no tinham nenhuma necessidade de usar o uniforme nacional dos cidados.

    Mesmo depois de abandonado o grandioso projeto de re-

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    formar e uniformizar a indumentria masculina, as roupas no perderam seu significado poltico. Os muscadins [janotas] da rea-o termidoriana usavam linho branco e criticavam os pretensos jacobinos que no empoavam os cabelos. O traje estilo vtima dos muscadins consistia na bata quadrada e decotada, sapatos bem rasos, cabelos soltos nos ombros, andando armados com pequenas bengalas chumbadas. De modo geral, a Revoluo contribuiu para diminuir o nmero de peas de roupa e deixar a indumentria mais solta. Para as mulheres, isso significava uma tendncia a se desnudarem cada vez mais, o que chegou a susci-tar o comentrio de um jornalista: Vrias deidades apareceram em trajes to leves, to transparentes que despojaram o desejo do nico prazer que o alimenta: o prazer de adivinhar.

    MUDAR A DECORAO DO COTIDIANO

    Os objetos do espao privado no foram esquecidos. Os mais ntimos objetos trazem a marca do ardor revolucionrio. Na residncia dos patriotas abastados, encontram-se camas estilo Revoluo ou estilo Federao. As porcelanas e faian-as so enfeitadas com divisas ou vinhetas republicanas. As tabaqueiras, os estojos de barba, os espelhos, os cofres e at os jarros de lavatrio so decorados com cenas das jornadas revo-lucionrias ou com alegorias. A Liberdade, a Igualdade, a Pros-peridade, a Vitria, sob a forma de jovens deusas encantadoras, enfeitam os espaos privados da burguesia republicana. Mesmo os alfaiates ou os sapateiros mais pobres ostentam nas paredes os calendrios revolucionrios com o novo sistema de datao e as inevitveis vinhetas republicanas. inquestionvel que os re-tratos dos heris antigos e revolucionrios e os quadros histri-cos mostrando os acontecimentos fundadores da Repblica no chegaram a substituir integralmente as gravuras e imagens da Virgem e dos santos, e no se pode afirmar com segurana que as atitudes populares tenham sofrido modificaes profundas com essa tentativa de nova educao poltica. Mas, por outro lado, certo que a invaso dos novos smbolos pblicos nos es-

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    paos privados foi determinante para a criao de uma tradio revolucionria. Da mesma forma, todos os retratos de Napoleo e as numerosas representaes de suas vitrias ajudaram a criar a lenda napolenica. A nova decorao do espao privado teve consequncias a longo prazo, graas vontade dos dirigentes revolucionrios e seus amigos de politizar todas as coisas.

    MUDAR AS PALAVRAS

    O simbolismo revolucionrio no era unilateral. Os smbo-los revolucionrios invadiam o mbito da vida privada, mas as marcas da vida privada, por seu lado, tambm invadiam o espao pblico. O tratamento familiar por tu se generalizou. Em ou-tubro de 1793, um sans-culotte zeloso encaminhou Conveno uma petio em nome de todos os meus comitentes para que se votasse um decreto determinando que todos os republicanos tratem indistintamente por tu todos aqueles ou aquelas com quem falem a ss, sob pena de serem declarados suspeitos. Ele alegava que tal prtica levaria a menos orgulho, menos distin-o, menos inimizades, mais familiaridade no tratamento, mais pendor para a fraternidade; consequentemente, mais igualda-de. Os deputados recusaram a obrigatoriedade do tuteio, mas o uso do tu se generalizou nos crculos de revolucionrios ardorosos. O emprego da linguagem familiar na arena poltica exercia um efeito deliberadamente destruidor. O tuteio invertia as regras usuais do discurso pblico.

    Ainda mais chocante era a invaso macia das imundcies do linguajar chulo no discurso poltico impresso. Jornais de direita como Les Actes des Aptres [Os Atos dos Apstolos], pan-fletos annimos como La vie prive de Blondinet Lafayette, gnral des bluets e Sabbats jacobites [Sabs jacobitas] inauguraram essa tendncia desde os primeiros anos, parodiando o ritual catlico e divulgando as brejeirices galantes to apreciadas no mundo do Antigo Regime. Logo se seguiram os jornais de esquerda, sobretudo Le Pre Duchesne [Pai Duchesne], de Jacques Hbert. Em pouco tempo, as expresses vulgares bougre [bicha ou patife],

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    foutre [caramba, diabo] e torche-cul [limpa-cu] se tornaram ter-mos correntes, que podiam ser lidos ao lado de uma lista inter-minvel de pragas do mais puro estilo (desde tonnerre de Dieu at vingt-cinq mille millions de ptards). No caso de Hbert, como tambm de muitos outros, o uso de termos coloquiais, vulgares ou grosseiros atingiu o pice nas descries de Maria Antonieta: A tigresa austraca era vista em todas as cortes como a mais miservel prostituta da Frana. Ela era amplamente acusada de chafurdar na lama com criados, e seria difcil distinguir quem era o pulha que havia fabricado os abortos coxos (sic), corcundas, gan-grenosos, sados de seu ventre triplamente enrugado (Le Pre Duchesne). Maria Antonieta era apresentada como a anttese de tudo o que as mulheres deviam representar: uma besta selvagem ao invs de uma fora civilizadora, uma prostituta ao invs de uma mulher sria, um monstro gerando criaturas disformes ao invs de uma me. Ela era a expresso ltima e mais baixa daqui-lo que no temor dos revolucionrios ocorreria s mulheres caso ingressassem no universo pblico: j no seriam mulheres, e sim medonhas perverses do sexo feminino. Essa perverso abominvel parecia requerer uma linguagem to suja quanto a que os homens reservavam para suas histrias obscenas. Em pblico, utilizavam-na para destruir a aura da soberania, da no-breza e da deferncia.

    A linguagem reflete as flutuaes da fronteira entre o pblico e o privado sob vrios outros aspectos. O Estado revolucionrio tentou regulamentar o uso da linguagem exigindo que se empre-gasse o francs em lugar dos regionalismos e dos dialetos. Barre explicou a deciso do governo da seguinte maneira: Em um povo livre, a lngua deve ser uma nica e a mesma para todos. O con-flito entre o pblico e o privado se deslocou para o terreno lin-gustico; as novas escolas tinham como tarefa propagar o francs, principalmente na Bretanha e na Alscia, e todos os textos oficiais eram publicados em francs. Em muitas regies, a lngua oficial era o francs, ao mesmo tempo relegando os regionalismos e os dialetos para o mbito privado.

    Para alguns, a perda da vida privada foi compensada com

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    a criao de uma linguagem privada. Os soldados que, com o recrutamento, abandonavam toda e qualquer vida pessoal criaram um falar dos veteranos para se diferenciarem dos paisanos, que no pertenciam s foras militares. Eles dispu-nham de seus prprios termos para designar o equipamento, o uniforme, as divises do Exrcito (os soldados de guarda vira-ram os imortais), os incidentes nos campos de batalha, o soldo (o dinheiro foi batizado de baixela de bolso) e at as fichas de loto (o 2 era a franguinha, o 3 era a orelha do judeu). O inimigo alemo era conhecido como cabea de chucrute e o ingls, mais simplesmente, era o goddam.*

    MARIANNE, MINHA ME

    Os smbolos da vida familiar e domstica podiam exercer um efeito poltico (e portanto pblico) durante esse perodo de confuso entre a vida pblica e a vida privada. O emblema da Repblica, a deusa romana da Liberdade, muitas vezes ostentava um ar abstrato nos sinetes oficiais, nas esttuas e nas vinhetas. Mas, num grande nmero de representaes, ela assumia o aspec-to familiar de uma jovem donzela ou de uma jovem me. Logo, primeiro por troa e depois carinhosamente, passou a ser conhe-cida como Marianne, nome feminino muito corrente. A mulher e a me, to desprovidas de qualquer direito poltico, foram ca-pazes, apesar disso (ou justamente por isso?), de se converter nos emblemas da nova Repblica. At Napoleo, em 1799, imaginou que estaria salvando-a de um abismo de discrdia e diviso. Para ter eficcia, o poder devia apelar afeio e, por isso, de vez em quando precisava ser familiar.

    O discurso poltico e a iconografia da dcada revolucionria contam uma histria de famlia. No comeo, o rei representa-do como um pai benevolente que teria reconhecido os proble-

    * Goddam: derivado da expresso inglesa God damn, Que Deus te conde-ne, V para o inferno. (N. T.)

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    mas de seu reino, desejando resolv-los com o auxlio de seus filhos agora adultos (particularmente os deputados do Terceiro Estado). Mas, depois de sua tentativa de fuga em junho de 1791, tornou-se impossvel sustentar essa verso: pouco a pouco, os filhos passaram a requerer transformaes fundamentais, e che-gariam a exigir a substituio do pai. Nesse momento, a necessi-dade de eliminar o pai tirnico se intensificou duplamente com a raiva contra a mulher que jamais fora possvel representar com traos maternos; o adultrio to explorado de Maria Antonieta constitua um insulto nao, servindo de certa forma para justificar seu fim trgico. Agora, num novo esquema familiar do poder, substitui-se o casal monrquico pela Fraternidade dos re-volucionrios, protegendo suas irms mais frgeis, a Liberdade e a Igualdade. As novas representaes da Repblica nunca mostram a figura paterna, e muito raro que apaream mes, exceto as muito jovens: uma famlia praticamente sem geni-tores. Restou aos irmos a tarefa de criar um mundo novo e de velar por suas irms rfs. Vez por outra, principalmente entre 1792 e 1793, as irms aparecem nas representaes defendendo ardorosamente a Repblica; de modo geral, porm, figuram como personagens em busca de proteo. A Repblica amada, mas seu destino depende do povo, uma fora poderosa e viril.

    A RELIGIO PRIVADA CONTRA O ESTADO

    Os efeitos da Revoluo sobre a vida privada no se manti-veram apenas simblicos, ou seja, limitados somente s expres-ses da cultura poltica representadas pelo vesturio, pela lingua-gem e pelo ritual poltico. O novo Estado atacou frontalmente os poderes das comunidades do Antigo Regime em muitos outros campos a Igreja, as corporaes, a nobreza, a comunidade de aldeia e o cl familiar , definindo simultaneamente um novo espao para o indivduo e seus direitos privados. claro que existiram resistncias e ambiguidades. Estas se mostram princi-palmente na luta contra a Igreja catlica, a grande rival na disputa pelo controle da vida privada. O catolicismo, ao mesmo tempo

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    um conjunto de crenas privadas e cerimnias pblicas, congre-gao de fiis e instituio poderosa, foi campo das mais acesas lutas pblicas (e talvez privadas). De incio, como bons liberais, os revolucionrios esperavam fundar um regime sobre a tolerncia religiosa universal; as questes religiosas permaneceriam como assuntos privados. Mas os velhos hbitos e a crescente necessida-de financeira ditaram uma soluo mais duvidosa: o confisco dos bens eclesisticos e a Constituio Civil do Clero. A partir da, os bispos deviam ser nomeados por eleio, tal como ocorria com a grande maioria dos representantes pblicos; uma aps a outra, as assembleias revolucionrias passaram a exigir que o clero pres-tasse juramento e proibiram o uso de vestimentas eclesisticas. O apoio aos padres refratrios veio a ser identificado com a contrar-revoluo, e o Estado passou a controlar cada vez mais os locais, datas e cerimnias do culto religioso. Pela Concordata de 1801, Napoleo renunciou ao controle tirnico do Estado, mas somen-te sob a condio de que se reconhecesse o direito permanente do Estado em intervir nas questes religiosas.

    Mesmo que muitos deles desejassem uma reforma, os ca-tlicos no aceitaram irrestritamente o controle do Estado. Foi a primeira vez que indivduos privados em sua maioria, mu-lheres e crianas assumiram um papel pblico para defender sua Igreja e seus ritos. Segundo o abade Grgoire, a Igreja cons-titucional foi estrangulada pelas mulheres devassas e sedicio-sas. Elas escondiam os padres refratrios, ajudavam a celebrar missas clandestinas e at missas brancas; depois do Termidor, instigavam os maridos a ir exigir do governo a reabertura das igrejas; recusavam batizar ou casar os filhos com padres jurados; e, quando nada disso dava certo, realizavam manifestaes em nome da liberdade religiosa. Em protesto contra a intromisso do Estado, voltou-se a cultuar antigos santos padroeiros e, nas regies mais hostis Revoluo, criaram-se novos mrtires. A reza do rosrio nas viglias se transformou num ato de resistn-cia poltica. Uma certa Suzanne-sem-medo teve ousadia sufi-ciente para expressar sua resistncia num libelo encontrado no ano VII do calendrio republicano, numa aldeia de Yonne cha-

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    mada Villethierry: No existe em nenhum governo despotismo que se iguale ao nosso. Dizem-nos: vocs so livres e soberanos, enquanto somos arrastados a tal ponto que no nos permitido cantar, brincar e, quando estamos endomingados, nem sequer nos ajoelhar para render homenagem ao Ser Supremo.

    Sob o ataque do Estado e dos revolucionrios mais encarni-ados, principalmente nas cidades, a religio veio a se privatizar. Em 1794, aps a emigrao, a deportao, as execues, as pri-ses, as demisses e os casamentos dos padres, pouco restou para que ainda se pudesse celebrar uma religio pblica. As pessoas realizavam suas devoes em casa, com a famlia ou um grupo de amigos de confiana. Mas, com o trmino de todas as restries, o mundo privado veio fazer reivindicaes pblicas em nome de sua f. As igrejas paroquiais, que haviam se transformado em granjas, estbulos, salitreiras, peixarias ou salas de reunies de as-sociaes, foram restauradas e reconsagradas. Os vasos sagrados e as roupas sacerdotais foram retirados de seus esconderijos, e, quando no havia padre, quem se encarregava do ofcio religioso era um mestre-escola ou um antigo escriturrio. Em muitos luga-res, principalmente no campo, no se dava nenhuma ateno ao dcadi,* e os aldees se reuniam aos domingos para alardear sua recusa em trabalhar. Como consequncia dessa intensa mescla entre o pblico e o privado, v-se surgir uma nova estrutura dur-vel de religiosidade praticante: as mulheres viriam a ser os pilares da Igreja, a qual tinham defendido com tanto ardor, e os homens se tornariam, na melhor das hipteses, praticantes espordicos. A partir desse momento, novas formas de vida pblica a taberna e o caf passam a exigir a presena da populao masculina.

    A FAMLIA, FRONTEIRA ENTRE O PBLICO E O PRIVADO

    O mbito em que se faz mais evidente a invaso da autoridade pblica o da prpria vida familiar. O casamento foi secularizado,

    * Semana de dez dias instaurada pelo calendrio republicano da Re vo-luo. (N. T.)

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    e a cerimnia, para ser legal, devia se realizar na presena de um funcionrio municipal. No Antigo Regime, o casamento consistia na troca do sim, e o padre desempenhava apenas o papel de tes-temunha desse mtuo consentimento. Pelo importante decreto de 20 de setembro de 1792, um funcionrio ficou encarregado do estado civil, devendo tambm declarar o casal unido perante a lei. Desse momento em diante, a autoridade pblica assumiu uma participao ativa na formao da famlia. O Estado definiu os impedimentos unio, restabeleceu e regulamentou o processo de adoo, determinou os direitos (depois seriamente restringi-dos pelo Cdigo Civil) dos filhos naturais, instituiu o divrcio e limitou o poder paterno, em parte com o estabelecimento de tribunais de famlia (que foram suspensos em 1796, embora o Estado tenha continuado a limitar o poder paterno, principal-mente em questes de deserdamento). Ao tentar fundar um novo sistema de educao nacional, a Conveno partia do princpio de que os filhos, como dizia Danton, pertencem Repblica antes de pertencer a seus pais. O prprio Napoleo insistiu para que a lei tomasse a criana ao nascer, atendesse sua educao, a preparasse para uma profisso, regulamentasse como e sob que condies poderia se casar, viajar, escolher um estado.

    A legislao da vida familiar mostra as preocupaes hete-rogneas dos governos revolucionrios; tratava-se de conservar o equilbrio entre a proteo da liberdade individual, a preser-vao da unidade familiar e a consolidao do controle do Es-tado. Principalmente sob a Conveno, mas j antes dela, dava--se prioridade proteo dos cidados contra a eventual tirania das famlias e da Igreja. As ordens rgias, em particular, foram consideradas vergonhosas, por terem sido usadas pelas famlias para obter a recluso dos filhos, por simples motivos de rebe-lio ou dissipao. No entanto, a instituio dos tribunais de fa-mlia, em agosto de 1790, foi um estmulo jurdico para que as famlias resolvessem seus conflitos internos, inclusive, caso ne-cessrio, atravs do divrcio (possibilitado pela lei promulgada em 20 de setembro de 1792). O Cdigo Civil iria mostrar uma

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    preocupao bem menor pela felicidade e autonomia dos cida-dos (sobretudo das mulheres), e aumentaria os poderes pater-nos. Os poderes conferidos aos tribunais de famlia viriam a ser confiados ao pai, chefe da famlia, ou aos tribunais do Estado. De modo geral, visvel que o Estado frequentemente limitou o controle da famlia ou da Igreja sobre o indivduo a fim de ampliar o seu prprio. Ele garantiu os direitos individuais, en-corajou a unio familiar e limitou o poder paterno.

    DIREITO AO DIVRCIO

    Pode-se avaliar a tenso entre os direitos individuais, a famlia e o controle do Estado especialmente no caso do divrcio, insti-tudo pela primeira vez na Frana pela Revoluo. O divrcio foi a consequncia lgica das ideias liberais expressas na Constituio de 1791. O artigo 7 tinha secularizado o casamento: A lei agora considera o casamento apenas como um contrato civil. Se o casamento era um contrato civil fundado sobre o consentimento de ambas as partes, ele poderia ser rompido. O argumento ad-quiriu peso pela fora das circunstncias. A Constituio Civil do Clero abriu uma diviso dentro da Igreja catlica, e muitos casais se recusavam a trocar o juramento de unio perante um padre jurado. Ao secularizar o casamento, o Estado assumiu o controle do estado civil e substituiu a Igreja como autoridade mxima nas questes da vida familiar. Nos debates sobre o divrcio (que, a despeito de sua novidade, no foram muito numerosos), apre-sentaram-se outros argumentos a favor dele: a emancipao dos casais infelizes, a liberao das mulheres do despotismo marital e a liberdade de conscincia para os protestantes e os judeus, cuja religio no proibia o divrcio.

    A lei de 1792 era notavelmente liberal. Sete motivos justi-ficariam um pedido de divrcio: a insanidade; a condenao de um dos cnjuges a penas aflitivas ou infamantes; os crimes, sevcias ou injrias graves de um contra o outro; o notrio des-regramento de costumes; o abandono por dois anos no mnimo; a ausncia sem notcias durante cinco anos no mnimo; a emi-

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    grao. Nesses casos, o divrcio era concedido imediatamente. Alm disso, um casal tambm podia se divorciar por acordo m-tuo num prazo de quatro meses, e o divrcio seria igualmente concedido por incompatibilidade de gnio e personalidade, depois de um perodo de seis meses para uma tentativa de re-conciliao. Exigia-se um prazo de um ano antes de um novo casamento. As despesas legais eram to mdicas que estavam ao alcance de quase todos; ainda mais surpreendente que tanto os homens quanto as mulheres podiam pedir o divrcio. Na poca, era a lei mais liberal do mundo.

    No captulo VI do Cdigo Civil, os motivos foram reduzidos a trs: a condenao, as sevcias, o adultrio. Em consonncia com a reafirmao napolenica do poder paterno, os direitos da mulher foram consideravelmente reduzidos. O marido podia pe-dir o divrcio alegando adultrio da mulher, mas ela, por sua vez, s poderia pedi-lo caso seu marido mantivesse sua concubina na casa em comum (artigo 230). Ademais, se fosse reconhecida sua culpa de adultrio, a mulher estaria sujeita a dois anos de priso, ao passo que o homem no receberia nenhuma punio. O divr-cio por acordo mtuo foi mantido, mas com muitas restries: o marido devia ter pelo menos 25 anos; a mulher devia ter entre 21 e 45 anos; o casamento devia ter durado entre dois e vinte anos, e era necessria uma autorizao dos pais. Registraram-se quase 30 mil divrcios na Frana entre 1792 e 1803, mas a seguir houve um grande decrscimo, sendo o divrcio abolido em 1816. Em Lyon, para tomar um exemplo bastante estudado, ocorreram 87 divrcios por ano entre 1792 e 1804, e apenas sete entre 1805 e 1816. Em Rouen, 43% dos 1129 divrcios feitos entre 1792 e 1816 foram concedidos entre 1792 e 1795 depois de 1803, no se concederam mais do que seis divrcios por ano.

    A VIVNCIA DO DIVRCIO

    A possibilidade de se divorciar ter exercido uma influncia efetiva sobre a vida privada dos novos cidados da Repblica? Nas cidades, sem dvida, mas no campo ela foi bem menor. Em

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    Toulouse, por exemplo, ocorreram 347 divrcios entre 1792 e 1803, mas nas regies rurais de Revel e Muret, no mesmo perodo, registraram-se apenas dois em cada uma. Nas cidades grandes, como Lyon e Rouen, analisando-se os casamentos contrados du-rante a Revoluo e sua situao no ano de 1802, ou seja, den-tro de um prazo de dez anos aps a celebrao, constatou-se que 3% a 4% deles haviam terminado em divrcio. Por volta de 1900, aps a restaurao do divrcio em 1884, o ndice foi de 6,5% taxa certamente menos expressiva que a da ltima dca-da do sculo xVIII, levando-se em conta que foi apenas na dcada posterior a 1792 que houve grandes facilidades para se conseguir o divrcio. Os casais divorciados provinham de todas as camadas da sociedade urbana, embora o maior ndice de divrcios se con-centrasse entre os artesos, os comerciantes e os profissionais li-berais. As mulheres, ao que parece, beneficiaram-se com as no-vas leis; em Lyon e Rouen, dois teros dos pedidos feitos sem acordo mtuo foram encaminhados por iniciativa das mulheres. Os pedidos por acordo mtuo no so muito numerosos: isso ocorre apenas entre 20% e 25% dos casos.

    O motivo de divrcio que aparece com maior frequncia o abandono ou a ausncia. O que vem a seguir a incompatibi-lidade. Mesmo as estatsticas mais ridas vez por outra revelam histrias tristes: em Lyon, um quarto dos que pedem divrcio por abandono se queixam de no ver o cnjuge h dez anos ou mais! Metade dos cnjuges tinha deixado o lar cinco anos antes, ou mais. A Revoluo ofereceu a oportunidade de legalizar uma situao de fato, numa realidade que envolvia problemas eternos. Homens e mulheres citam o abandono e a incompatibilidade em propores praticamente iguais, mas ser de se admirar? so as mulheres que, na maioria das vezes, invocam as sevcias. As atas dos tribunais de famlia e, posteriormente, dos tribunais civis esto repletas de histrias de maridos que batem na mulher, muitas vezes ao voltarem das tabernas, com socos, vassouradas, atirando pratos, ferros de passar e por vezes chegando a facadas.

    A legislao sobre o divrcio no foi concebida apenas pa-ra libertar o indivduo das coeres de uma situao domstica

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    deplorvel. O casal infeliz devia proceder por intermdio de um tribunal de famlia ou de uma assembleia familiar, conforme o motivo do divrcio. Essa instncia se compunha de parentes (ou de amigos, caso no houvesse parentes), escolhidos pelos dois cnjuges, para julgar a aceitabilidade do pedido, para tratar dos acertos financeiros e da guarda dos filhos. Ao que parece, aceita-va-se o divrcio de bom grado, j que apenas um tero e s vezes a metade dos pedidos no eram consumados (certamente devido a presses familiares). O nmero de casos de concesso do di-vrcio surpreendente, considerando-se a novidade do proce-dimento e a resistncia da Igreja. Mesmo os bispos juramenta-dos s aceitavam o divrcio sob a condio de que nenhum dos cnjuges tornaria a se casar enquanto o outro estivesse vivo. To-davia, cerca de um quarto dos homens e mulheres divorciados tornou a se casar (depois de 1816, a Igreja passou a reconhecer o segundo casamento, desde que o anterior tivesse sido apenas civil, pois esse tipo de casamento no tinha valor nenhum a seus olhos). Os pedidos de divrcio raramente resultavam em con-flitos pela guarda dos filhos, de um lado porque a maioria dos solicitantes j no tinha filhos pequenos (60% dos casais regis-trados em Lyon e Rouen no tinham filhos menores de idade), e de outro porque nem os tribunais nem os pais consideravam os filhos como parte integrante da clula familiar. Ademais, so raras as referncias aos filhos nos depoimentos dos casais ou nas discusses dos tribunais; igualmente raros so os questionamen-tos das decises relativas guarda dos filhos; quando os citam, em geral os casais nem sequer mencionam os nomes deles ou, s vezes, nem dizem quantos so.

    As formalidades do divrcio nos oferecem uma das raras vias de acesso sensibilidade privada durante a Revoluo. impossvel dizer at que ponto a vida afetiva sofreu transforma-es. Nougaret conta a histria de uma moa que engravidou de um amante casado. Para proteger a honra de sua filha, a me da jovem anuncia que ela mesma que est grvida; assim, as duas podem se retirar para o campo, at o momento do parto.